ACKERMAN, Bruce. Adeus, Montesquieu. RDA-FGV
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8/11/2019 ACKERMAN, Bruce. Adeus, Montesquieu. RDA-FGV
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RDA Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 265, p. 13-23, jan./abr. 2014
Adeus, Montesquieu*
Good-bye, Montesquieu
Bruce Ackerman**
RESUMO
Este artigo busca discutir o direito administrativo atual, sob o pressuposto
de que o tradicional contraste entre os sistemas da civil lawe da common
lawdeve ser superado. Ao resgatar Montesquieu em sua anlise, o autorarma que a ideia de trs poderes ignora o surgimento, em nvel mundial,de novas formas institucionais que no podem ser categorizadas comolegislativas, judiciais ou executivas. Isto levaria a um conjunto diferente de
desaos normativos.
PALAVRAS-CHAVE
Poderes administrao pblica Montesquieu burocracia
ABSTRACT
This article discusses the current administrative law under the assumption
that the contrast between the traditional systems of civil law and commonlaw must be overcome. By rescuing Montesquieu in his analysis, the
* Artigo recebido em 27 de setembro de 2013 e aprovado em 19 de dezembro de 2013. Publicado emingls com o ttulo Good-bye, Montesquieu originalmente naComparative Administrative Law, 2010.Disponvel em: . Acesso em: 18 set. 2013.Traduzido por Diego Werneck Arguelhes e Thomaz Henrique Junqueira de Andrade Pereira.Reviso tcnica de Izabel Saenger Nuez.
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Professor de direito e cincia poltica na Universidade de Yale. Universidade de Yale, Yale,Estados Unidos. E-mail: [email protected].
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author argues that the idea of three powers ignores the worldwide rise ofnew institutional forms that cannot be categorized as legislative, judicialand executive. This would lead to a dierent set of normative challenges.
KEY-WORDS
Powers public administration Montesquieu burocracy
Se o campo do direito administrativo comparado pretende ter algum
futuro, ns precisamos construir um novo modelo analtico. O tradicionalcontraste entre os sistemas romano-germnico [civil law] e anglo-saxo[common law] um falso ponto de partida. Independentemente de seu valor
para o direito privado, esse contraste no foi construdo para salientar ascaractersticas distintivas do direito administrativo. O que tambm se aplicapara outros modelos conhecidos, voltados para o processo penal comparado.1
Modelos construdos a partir de experincias nacionais particulares
tm sua utilidade. O modelo do Conselho de Estado francs teve inunciaem algumas outras naes; assim como o sistema alemo de Cortes admi-nistrativas. Mas, no sculo XXI, precisamos de um modelo muito maisamplo, capaz de suscitar comparaes sistemticas em uma escala mundial, e
reexes normativas informadas a partir das contnuas lies da experincia.Isso requer que ns faamos um movimento decisivo para alm dasreexes de Montesquieu2 sobre a separao de poderes. Nenhum outrocampo de pesquisa acadmica to intensamente dominado por um nico
pensador, qui um pensador do sculo XVIII. Apesar de sua grandeza,Montesquieu no tinha nenhuma noo sobre partidos polticos, poltica
democrtica, desenhos constitucionais modernos, tcnicas burocrticas con-
temporneas e as ambies especcas do moderno Estado regulatrio. E,mesmo assim, ns o seguimos sem maiores reexes, assumindo ser possvel
captar adequadamente toda a complexidade contempornea por meio deuma separao tripartite de poderes em legislativo, judicirio e executivo
sendo o direito administrativo comparado inserido, de alguma forma, dentro
do ltimo ramo da trindade.
1 DAMASKA, Mirjan R. The faces of Justice and State Authority. New Haven, CT: Yale UniversityPress, 1986.
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MONTESQUIEU, Charles de Secondat. 1989. The spirit of the laws. Anne M. Cohler, BasiaCarolyn Miller and Harold Samuel Stone, trans. Nova York: Cambridge University Press.
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Que se d a Montesquieu o que lhe devido. Sua teoria representouum avano fundamental em relao s tradicionais ideias aristotlicas sobre
governo misto. De acordo com esse modelo anterior, diferentes poderes
representavam diferentes classes sociais por exemplo, a Cmara dosComuns do Parlamento Ingls representava os plebeus; a Cmara dos Lordes,os nobres; e a Coroa, o mais poderoso dentre eles.3
Montesquieu rejeitou tal compreenso, baseada em classes. Seus dife-rentes poderes correspondem a diferentes funes governamentais. Ao daressa guinada funcionalista, ele seguiu Locke, que tambm havia separadotrs funes governamentais em um modelo de separao de poderes. Mas atrindade de Locke era diferente: ele colocava o judicirio dentro da categoriaexecutivo, preenchendo a lacuna resultante com um poder federativo, o
qual lidava com relaes estrangeiras, produzindo assim o trio legislativo-executivo-federativo (Locke 1987).4 Por ter sido juiz,5 Montesquieu consi-derava especialmente importante enfatizar a independncia do judicirio namonarquia francesa, mas o fez ao custo de suprimir a perspicaz ideia de Lockesobre a especicidade do funcionamento do Estado nas relaes estrangeiras.E assim derivou a hoje clssica trindade: legislativo, executivo, judicirio.Aparentemente, o pensamento trinitrio era to irresistvel no sculo XVIII,que Montesquieu no tolerou quatro categorias em seu esquema conceitual.
Quase trs sculos depois, j passa da hora de repensar a santssimatrindade de Montesquieu. Apesar de seu statuscannico, ela nos mantm cegospara o surgimento, em nvel mundial, de novas formas institucionais que no
podem ser categorizadas como legislativas, judicirias ou executivas. Emboraa tradicional frmula tripartite falhe ao capturar os modos caractersticos deoperao de tais formas, essas unidades novas e funcionalmente independen-
tes esto desempenhando um papel cada vez mais relevante em governosmodernos. Uma nova separao de poderes est emergindo no sculo XXI.A compreenso de suas caractersticas distintivas requer o desenvolvimento
de um modelo conceitual que contenha cinco ou seis categorias ou talvezmais. E, assim, ns devemos dar um carinhoso adeus a Montesquieu, paraento criar novas bases para o direito administrativo comparado, que deem
conta dos desaos dos governos modernos.
3 VILE, M. J. C. Constitutionalism and the separation of powers. Oxford: Clarendon Press, 1967.4 LOCKE, John. Two treatises of government. Richard Ashcra, ed. Londres; Boston: Allen &
Unwin, 1987.5 Tecnicamente, Montesquieu foi presidente do Parlamento de Bordeaux, e trata-se de uma
simplicao descrever essa instituio como uma corte de justia. Mas suas funes judiciaisrealizavam uma limitao importante s ambies absolutistas da monarquia francesa.
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Para compreender essa armao, olhemos para o que est efetivamenteacontecendo no sculo XXI: podemos observar tendncias mundiais paraisolar certas funes tantodo legislativo, do executivo, como do judicirio?
Em caso armativo, quais so elas?Para comear, consideremos a proliferao global de Comisses EleitoraisIndependentes. Em qual das trs categorias elas se encaixam? Ocasionalmente,tribunais atuam para garantir a integridade de eleies, como o caso doConselho Constitucional francs.6Mais frequentemente, porm, essas insti-tuies eleitorais especiais so inteiramente separadas do judicirio comum,bem como dos poderes eleitos. E com razo. Por um lado, faz sentido quea Comisso Eleitoral Independente organize o processo eleitoral do incioao m, em vez de funcionar simplesmente como um tribunal, intervindo aposteriori para determinar se houve irregularidades. Ao mesmo tempo, essencial isolar sua operao dos poderes eleitos porque so exatamente os
polticos no controle do executivo que tm incentivo e poder para manipular a
contagem de votos para assegurar sua reeleio. Consequentemente, cada vezmais, Constituies modernas tratam Comisses Eleitorais como um ramo degoverno distinto, tomando medidas especiais para garantir sua integridade.E mesmo quando a Constituio de um pas no garante formalmente a
independncia da Comisso Eleitoral, a legislao ordinria frequentemente
a isola da interferncia poltica, por meio da criao de uma srie de medidasheterodoxas.7
Usando a Comisso Eleitoral como um exemplo, consideremos o seguinte
modelo analtico, em quatro etapas, que permite diagnosticar a legtima
posio de uma dada instituio na nova separao de poderes. A primeiraetapa envolve a identicao de um valor governamental fundamental: nessecaso, os proponentes de Comisses Eleitorais invocam a democraciacomo ovalor justicador da independncia institucional. A prxima etapa demanda
que os proponentes expliquem por que tal valor fundamental requer quea instituio receba proteo constitucional especial, em relao a foras
externas. Nesse caso, proponentes de Comisses Independentes apontamo perigo evidente de a raposa guardar o galinheiro polticos no podergarantindo mais um mandato a si mesmos, por meio de manipulao da
6 TURPIN, Dominique. Contentieux constitutionnel. Paris: Presse Universitaires de France, 1986.p. 265-282.
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ACKERMAN, Bruce. The new separation of powers. Harvard Law Review, v. 113, p. 716-721,2000.
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contagem de votos. A terceira etapa identica tcnicas de isolamento institu-cional que daro ao novo poder um incentivo para fazer um trabalhomelhor. Por sua vez, tal nfase no desenho institucional leva quarta e ltima
etapa: anlise emprica comparada. Por exemplo, por que a Comisso Eleitoralda ndia realiza um trabalho relativamente bom ao garantir uma contagemcorreta de votos, em meio a um sistema burocrtico marcado pela corrupo
macia e pela inecincia?8 Que lies podem ser apreendidas da recenteperformance insatisfatria da comisso mexicana ao lidar com a contestadaeleio presidencial de 2006?9E assim por diante.
Com base nessas investigaes comparativas, acadmicos podem con-tribuir para o desenho de instituies melhores e instigar anlises crticasquanto s fraquezas das caractersticas de diferentes sistemas constitucio-nais. Considere, por exemplo, a infame disputa eleitoral entre Bush e Goreem 2000. Montesquieu merece parte da culpa pelo desempenho espetacular-mente fraco das instituies dos Estados Unidos quanto resoluo daqueladisputa. Dado o compromisso tradicional dos Estados Unidos com a trindadede Montesquieu, parecia bvio para seus mais proeminentes participantes,naquele contexto, que a administrao das eleies apenas mais umafuno ordinria do poder executivo. Anal, certamente no pertence nemao judicirio, nem ao legislativo e a nica outra categoria que resta o
executivo. Portanto, a administrao de eleies deve pertencer ao executivo e seria completamente estranho aos Estados Unidos pensar em uma quarta
categoria, no ?Essa tricotomia irreetida permitiu ao executivo da Flrida se envolver
em maquinaes polticas ao supervisionar o processo administrativo peloqual Bush foi nalmente declarado vencedor. Os Estados Unidos precisamurgentemente de uma Comisso Eleitoral independente, mas no a tero
enquanto no acordarem de seu torpor montesquiano e se juntarem ao
movimento rumo a uma nova separao de poderes que, atualmente, vemganhando o mundo. Como vimos, h razes convincentes a favor da criaode Comisses Eleitorais Independentes convincentes o suciente, alis,para que a maioria dos pases tenha colocado essa ideia em prtica. Por que osEstados Unidos no deveriam tomar conhecimento desse fato?
H outra tendncia mundial apontando para o potencial do modelo ana-ltico em quatro etapas que desenhei acima. Considere a guinada macia em
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Ibid., p. 718-721.9 Ibid.
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direo a Bancos Centrais independentes, que ocorreu na segunda metadedo sculo passado.10Substancialmente, Bancos Centrais parecem muito dife-rentes de Comisses Eleitorais. Analiticamente, porm, levantam as mesmas
questes. Comecemos pela denio do valor fundamental em jogo. Nessecaso, o valor governamental certamente no democracia. So, em vez disso,teorias econmicas neoliberais que enfatizam a importncia de se protegera oferta monetria das manipulaes polticas imediatistas, e insistem que acincia econmica oferece aos tecnocratas ferramentas analticas superiores
para regular macrovariveis fundamentais. Como antes, a primeira tarefa avaliar os julgamentos valorativos relevantes que constituem a base do
pensamento econmico neoliberal; a segunda tarefa vericar os argumentosrelativos aos incentivos polticos ser realmente verdade que governantes
tm incentivos contraproducentes para manipular a oferta monetria a m deganhar eleies? A terceira tarefa explora diferentes desenhos institucionaisvoltados promoo de independncia como o desenho do Banco Centraldos Estados Unidos difere daquele do Banco da Inglaterra? Finalmente, nsprecisamos de extenso trabalho emprico para descobrir como diferentes
desenhos funcionam na prtica.Explorei outros aspectos da nova separao de poderes em outro
trabalho.11Por ora, suciente notar algumas questes evidentes. Primeiro,
a questo de coordenao: quanto maior o nmero de centros-de-poder queisolamos das instituies polticas e jurdicas clssicas, maior o problema emcoordenar o crescente nmero de poderes separados, de forma a gerar um todo
coerente. Segundo, a questo da legitimidade democrtica: se formos muitolonge na tentativa de isolar poderes do controle poltico direto, poderemos
privar o processo democrtico de seu signicado central deixando osrepresentantes eleitos do povo merc de banqueiros centrais independentes
e outros atores que estejam isolados de seu controle direto.Esses dois problemas sugerem cautela na criao de novos centros-de-
poder independentes. Mas no sugerem que criar uma nova separao depoderes no faa sentido. Em vez disso, recomendam uma conduta caute-losa: ns devemos reservar essa estratgia para a proteo de valores gover-namentais especialmente fundamentais, em contextos em que incentivos
polticos normais so particularmente perniciosos, por meio de desenhos insti-
10 KLEINEMAN, Jan (Ed.). Central Bank independence: the economic foundations, the constitu-tional implications and democratic accountability. The Hague; Boston: Kluwer Law Interna-
tional, 2001.11 Ackerman, The new separation of powers, 2000.
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tucionais que sejam bem concebidos e, se possvel, empiricamente testados.Em sntese, a construo de novos centros-de-poder requer uma srie de jul-
gamentos complexos e que sejam sensveis ao contexto.
Mas uma coisa clara: ns seremos incapazes de fazer esses julgamentosenquanto nos contentarmos em repetir o mantra de Montesquieu. Em vezdisso, devemos modicar o mantra para levar em conta um mundo institu-cional em que instituies independentes desempenham funes cada vezmais importantes apesar de no poderem ser classicadas como legislativas,judiciais ou executivas.
A santssima trindade tem um segundo defeito. Ela nos encoraja aignorar diferenas nas dinmicas que governam operaes administrativasem regimes parlamentaristas e presidencialistas. Formalmente, fcil paramontesquianos desconsiderar essa diferena quando descrevem a separao
de poderes em termos legais. De acordo com a narrativa-padro, tanto presi-dentes como primeiros-ministros so chefes do poder executivo e, portanto,
chefes da administrao pblica.Mas estudos comparativos srios devem ir alm desse paralelismo formal.
O primeiro-ministro e seu gabinete realmente podem exercer o monoplio docontrole sobre a burocracia; mas presidentes devem competir pelo controle,com um Congresso independentemente eleito. Lderes legislativos tm suas
prprias armas para pressionar a burocracia na direo que desejarem principalmente, porque podem ameaar as agncias com a reduo de seus
recursos, caso elas no sigam suas prioridades. Para evitar ameaas desse tipo,presidentes apontam seus correligionrios polticos para os cargos mais altos
da administrao. Ao assumir seu cargo, o presidente Obama, por exemplo,precisou preencher 3 mil dessas posies antes que seu governo pudesse setornar totalmente operacional.12
Ao colocar seus correligionrios polticos no comando, o presidente
espera garantir que os ministrios e as agncias governamentais usaro suadiscricionariedade decisria para seguir as suas prioridades, e no aquelas deseus rivais polticos no legislativo. Mas essa tcnica incapaz de assegurar aopresidente o mesmo grau de controle sobre a administrao que dispe umprimeiro-ministro. Ao presumir, com Montesquieu, que presidentes so chefesdo executivo, comparativistas correm o risco de ignorar esse ponto-chave.
12
LEWIS, David E. The politics of presidential appointments: political control and bureaucraticperformance. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2008. p. 56.
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O conito entre presidentes e legislaturas mediado pelas regras e estru-turas particulares, estabelecidas por distintos regimes constitucionais. Se ospresidentes precisam conseguir a aprovao do Congresso para suas no-
meaes, colonizar a burocracia com pessoas de sua mxima conana sermais difcil para eles. Ao mesmo tempo, o controle do Congresso sobre ooramento varia de sistema para sistema. Isso abre um rico campo para estudocomparado, em meio ao qual consideramos o impacto de diferentes regimes
constitucionais na constante competio, entre presidente e Congresso, por
inuncia burocrtica.Essas variaes fascinantes no devem ofuscar um tema comum: sistemas
presidencialistas encorajam a politizao da burocracia, relegando funcio-nrios pblicos de carreira a posies de segundo escalo, enquanto presi-dentes, em suas contnuas disputas com o Congresso, continuam apontando
correligionrios polticos de conana para posies-chave na administraopblica.
Essa dinmica bsica gera uma questo normativa fundamental. A poli-tizao da liderana burocrtica traz, nada menos, que um desao fundamentalao estado de direito. Correligionrios polticos leais ao presidente sofrerointensa tentao de ignorar o direito, caso isso promova os interesses polticos
de seu lder. O direito administrativo em sistemas presidencialistas deveria
prestar particular ateno a essa ameaa. Essa estratgia, em prol do estado dedireito, pode ser efetuada de maneira distinta em diferentes lugares, e pode se
utilizar de estruturas administrativas especiais, e no s de tribunais. O direitocomparado tem um papel-chave a desempenhar, ao fornecer uma perspectiva
sobre os mritos relativos de estratgias institucionais divergentes.Para alm dessas importantes questes de desenho institucional, uma
questo maior espreita: quem est dentro de sistemas presidencialistas tem
conscincia desse problema particularmente aguado em relao ao estado de
direito? Nos Estados Unidos, por exemplo, a resposta no. A prevalentedoutrina Chevron legitima a deferncia judicial macia para determinaeslegais, por parte da administrao, abrindo um amplo espao para o abuso
poltico da discricionariedade das agncias.13
13 Ver Chevron, Inc. v. Natural Resources Defense Council, 467 US 837 (1984). Uma coisa so ostribunais dizerem que adotaro uma postura de deferncia, outra bem diferente eles defato agirem com deferncia em casos concretos. A extenso dessa diferena exploradapor ESKRIDGE, William N. Jr.; BAER, Lauen. The continuum of deference: Supreme Court
treatment of Agency Statutory Interpretations from Chevron to Hamdan. Georgetown LawReview, v. 96, p. 1083-1226, 2008.
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Dinmicas burocrticas em sistemas parlamentaristas levam a abusosmuito diferentes. O primeiro-ministro e seu gabinete so eles mesmos oslderes da maioria parlamentar, e o seu direto controle sobre o legislativo
elimina a competio entre poderes, que politiza burocracias presidenciais.Como seu monoplio poltico sobre a burocracia garantido, o primeiro-ministro pode ter uma viso bem diferente sobre o funcionalismo pblico
prossional. Ele no precisa se preocupar com burocratas sucumbindo presso de lideranas congressistas. Em vez disso, pode v-los como recursos-chave em sua luta por sobrevivncia poltica. Anal, os prossionais tm umconhecimento profundo de questes fundamentais, bem como conscinciasobre as realidades e possibilidades burocrticas. Se o primeiro-ministroconseguir aproveitar suas energias, os burocratas podem ajud-lo a realizar
suas promessas polticas e aumentar suas chances de vitria na prximaeleio. Dessa perspectiva, para lderes polticos, encorajar um servio pblicoaltamente prossionalizado uma questo de bom senso. Quanto melhor foro servio pblico, melhores suas chances de vitria.
Essa dinmica poltica no inevitvel. Primeiros-ministros podem es-colher povoar as burocracias com seus asseclas, e usar seu controle sobre o
parlamento para silenciar crticas. Essa estratgia pode maximizar o suportepoltico no curto prazo, apesar dos benefcios de longo prazo do prossiona-lismo. Mas, a partir do momento em que um servio pblico forte estabe-lecido, a lgica poltica do parlamentarismo provavelmente sustentar atradio do prossionalismo como sugerem os exemplos do Reino Unido,Alemanha, Itlia e Frana (Terceira e Quarta Repblica).
Isso signica que sistemas parlamentaristas geram patologias admi-nistrativas distintas. Apesar de o funcionalismo pblico, em sistemas presi-denciais, tender a ser fraco demais, h aqui a ameaa de se tornar poderoso
demais. Primeiros-ministros vm e vo, mas prossionais permanecem pordcadas, e podem usar seu monoplio sobre o conhecimento especializado
para manipular os titulares da chea poltica. Um funcionalismo pblicoforte tambm pode se isolar de correntes mais amplas da opinio pblica,e deixar de perceber quando suas aes parecem ser autocrticas, tolas, oucoisa pior. De fato, ele tambm pode se isolar das correntes atuais da pesquisaacadmica, e persistir em polticas e prticas burocrticas que, em crculos
acadmicos srios, h muito foram desacreditadas. E uma cultura de sigiloprovavelmente s far exacerbar essas inexibilidades burocrticas.
Isso leva a um diferente conjunto de desaos normativos. A reforma dodireito administrativo em sistemas parlamentaristas deve enfatizar a capa-
cidade de resposta da burocracia ao ambiente poltico e social mais amplo.
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Comecemos com a poltica. Quando uma nova liderana conquista a maioriaparlamentar, frequentemente se confronta com um time relativamente
unicado de funcionrios pblicos superiores, os quais lhe apresentam um
conjunto muito limitado de opes de polticas pblicas. Estruturas especiaisso necessrias para permitir que uma maioria poltica, recentemente eleita,
alcance uma compreenso mais ampla de suas reais oportunidades. Umaopo um mecanismo que facilite a criao de diferentes times de burocratas
superiores para apresentarem propostas rivais a serem implementadas
com incentivos especiais para o time B pensar com originalidade.No mesmo esprito, a alta burocracia deve se manter em contato com
mudanas na realidade social. Deveria ser exigido por lei que administradoresorganizassem audincias pblicas amplas, antes de promulgar regulamentosadministrativos de grande impacto. E as agncias deveriam ser obrigadas adefender essas regras perante tribunais ou outros rgos de reviso neutros.
Essas propostas foram desenvolvidas em maior detalhe em outro traba-
lho.14Por ora, mais importante perguntar a mesma questo que levantamosem relao aos sistemas presidenciais. Ser que uma dada cultura jurdicanacional estaria preparada para tomar alguma atitude sria de modo a con-
trolar as distintas patologias que caracterizam os sistemas parlamentaristas?Frequentemente, a resposta no. Por exemplo, sistemas parlamen-
taristas na Europa tm, de maneira geral, sido muito relutantes quanto a exigiraudincias pblicas e procedimentos recursais do tipo previsto peloAmerican
Administrative Procedure Act apesar de a responsividade burocrtica socie-
dade civil ser ainda mais importante nesses sistemas do que no regime presi-
dencialista dos Estados Unidos.15
O direito administrativo comparado pode se tornar uma fora intelectual
para tal crtica construtiva. Da mesma forma que expe o fracasso do sistemados Estados Unidos para reconhecer necessidades especcas do estado de
direito em sistemas presidencialistas, tambm expe o fracasso europeu parareconhecer a particular necessidade de promover responsividade burocrticaem regimes parlamentaristas.
Em concluso: adeus, Montesquieu; ol, sculo XXI e sua promessa deuma nova agenda para o estudo comparado do direito administrativo.
14 Ackerman, The new separation of powers, 2000.15
ROSE-ACKERMAN, Susan. Controlling environmental policy: the limits of public law inGermany and the United States. New Haven, CT: Yale University Press, 1995.
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Referncias
ACKERMAN, Bruce. The new separation of powers. Harvard Law Review,
v. 113, p. 633-728, 2000.
ACKERMAN, John M. The 2006 elections: democratization and social protest.In: SELEE, Andrew; PESCHARD, Jaqueline (Ed.). Democratic politics in Mxico.Stanford, CA: Stanford University Press; Woodrow Wilson Center for Interna-tional Scholars, 2010.
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