AcordaoSTJ_DacaoEmCumprimento

5
Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Processo: 06B2390 Nº Convencional: JSTJ000 Relator: MOTA MIRANDA Descritores: DAÇÃO EM CUMPRIMENTO DAÇÃO EM FUNÇÃO DO CUMPRIMENTO EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES INTERPRETAÇÃO DA VONTADE Nº do Documento: SJ200610120023907 Data do Acordão: 10/12/2006 Votação: UNANIMIDADE Texto Integral: S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA. Decisão: NEGADA A REVISTA. Sumário : I - A dação em cumprimento corresponde a uma das formas de extinção das obrigações e consiste na realização de uma prestação diferente da devida com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação (art. 837.º do CC). II - É distinta da dação em função do cumprimento (dação pró solvendo), pois nesta a prestação realizada, também diferente da devida, não tem como fim a extinção da obrigação, mas apenas facilitar o seu cumprimento (art. 840.º do CC). III - O carácter extintivo da obrigação por via da prestação diferente da devida tem de resultar da vontade expressa das partes. * * Sumário elaborado pelo Relator. Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Empresa-A instaurou, em 21/5/2002, nas Varas Cíveis de Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra Empresa-B, pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de 17.665,11 , acrescida de juros, vencidos e vincendos. Para tanto e em síntese, alegou que, no exercício da sua actividade, vendeu à Ré 2.250 Kg de camarão congelado, no montante de 59.099,13 , conforme factura de 30/1/2002, a pagar em trinta dias, o que a Ré não fez. Como deve à Ré 41.434,02 , relativos a três fornecimentos que esta lhe fez, procedendo-se a compensação, é ainda credora da Ré no montante pedido. Citada, a Ré contestou, alegando que a A. colocou à sua disposição - e não vendeu - o referido camarão, em quantidade que considerou ajustada à dívida que tinha para com a Ré, no montante de 10.000 contos. Aceitou o produto por a A. viver uma situação económica difícil, sentindo dificuldades em receber, da Ré, os seus créditos. O camarão tinha um prazo de validade diminuto, pelo que teve de o vender a preço mais baixo, o que lhe causou um prejuízo de 12.332,00 , quantia em que a A. deve ser condenada, acrescida de juros de mora, à taxa de 12% e até pagamento, pelo que apenas deve

description

dacao em cumprimento

Transcript of AcordaoSTJ_DacaoEmCumprimento

Page 1: AcordaoSTJ_DacaoEmCumprimento

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de JustiçaProcesso: 06B2390Nº Convencional: JSTJ000Relator: MOTA MIRANDADescritores: DAÇÃO EM CUMPRIMENTO

DAÇÃO EM FUNÇÃO DO CUMPRIMENTOEXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕESINTERPRETAÇÃO DA VONTADE

Nº do Documento: SJ200610120023907Data do Acordão: 10/12/2006Votação: UNANIMIDADETexto Integral: SPrivacidade: 1Meio Processual: REVISTA.Decisão: NEGADA A REVISTA.Sumário : I - A dação em cumprimento corresponde a uma das formas de

extinção das obrigações e consiste na realização de uma prestaçãodiferente da devida com o fim de, mediante acordo do credor,extinguir imediatamente a obrigação (art. 837.º do CC).II - É distinta da dação em função do cumprimento (dação prósolvendo), pois nesta a prestação realizada, também diferente dadevida, não tem como fim a extinção da obrigação, mas apenasfacilitar o seu cumprimento (art. 840.º do CC).III - O carácter extintivo da obrigação por via da prestação diferenteda devida tem de resultar da vontade expressa das partes. *

* Sumário elaborado pelo Relator.Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Empresa-A instaurou, em 21/5/2002, nas Varas Cíveis de Lisboa,acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contraEmpresa-B, pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de17.665,11 €, acrescida de juros, vencidos e vincendos.Para tanto e em síntese, alegou que, no exercício da sua actividade,vendeu à Ré 2.250 Kg de camarão congelado, no montante de59.099,13 €, conforme factura de 30/1/2002, a pagar em trinta dias, oque a Ré não fez. Como deve à Ré 41.434,02 €, relativos a trêsfornecimentos que esta lhe fez, procedendo-se a compensação, éainda credora da Ré no montante pedido.Citada, a Ré contestou, alegando que a A. colocou à sua disposição -e não vendeu - o referido camarão, em quantidade que considerouajustada à dívida que tinha para com a Ré, no montante de 10.000contos. Aceitou o produto por a A. viver uma situação económicadifícil, sentindo dificuldades em receber, da Ré, os seus créditos. Ocamarão tinha um prazo de validade diminuto, pelo que teve de ovender a preço mais baixo, o que lhe causou um prejuízo de12.332,00 €, quantia em que a A. deve ser condenada, acrescida dejuros de mora, à taxa de 12% e até pagamento, pelo que apenas deve

Page 2: AcordaoSTJ_DacaoEmCumprimento

à A. a quantia de 5.314,30 €.

A A. contestou o pedido reconvencional, reafirmando a venda à Rédo camarão e pelo preço acordado, que a Ré não lhe apresentouqualquer reclamação e que é alheia a eventual prejuízo da Ré narevenda.Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a acçãoimprocedente e a absolver a Ré do pedido.Inconformada, a A, apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa que,revogando a sentença recorrida, condenou a Ré a pagar à A. a quantiade 17.665,11 €, com juros de mora, desde a citação e até integralpagamento.

Pede agora a Ré revista para este S.T.J., formulando nas suasalegações as seguintes conclusões:1) Não houve entre recorrente e recorrida qualquer contrato decompra e venda.2) Antes, a recorrida, por sua livre iniciativa, colocou à disposição darecorrente 2.250 Kg de camarão.3) A recorrente deu o seu consentimento a que a recorrida procedesseao pagamento da dívida através de prestação diversa da que eradevida.4) Com essa prestação, de valor superior ao devido, a recorridapretendeu extinguir imediatamente a obrigação.5) Se a recorrida não o pretendesse, não teria posto à disposição darecorrente prestação de valor superior, tanto mais que, sendo umaempresa do ramo, não ignorava as quantidades que colocava àdisposição da recorrente.6) Houve, portanto, pela recorrida a intenção de promover uma daçãoem cumprimento, nos termos do art. 837º do C.C..

Termina, assim, pedindo a revogação do acórdão recorrido,mantendo-se a decisão proferida em 1ª Instância ou, caso assim nãose entenda, que a recorrente seja condenada apenas a pagar-lhe8.458,81 €, valor que resulta da diferença entre a facturação darecorrida e a compensação pretendida pela recorrente.Em contra alegações, a A. afirma não ter sido acordado que, comaquela entrega do camarão, se extinguiriam os créditos e que a Réconfessou ser devedora da diferença entre os créditos invocados pelaA., se bem que reduzida pelos alegados e não provados prejuízos narevenda.

São os seguintes os factos que vêm dados por provados:1) A A. dedica-se ao comércio de produtos alimentares congelados,peixe e mariscos.

Page 3: AcordaoSTJ_DacaoEmCumprimento

2) A A. é devedora da Ré de € 9.696,99, 25.214,98 e 6.522,05,referentes a fornecimentos efectuados pela Ré à A. constantes dasfacturas 808, 897 e 214.3) Da factura n.º 17095 consta que o pagamento seria efectuado a 30dias.4) Apesar das insistências da A., a Ré nada pagou até hoje.5) Da factura 17095 não consta qualquer assinatura por parte da Ré.6) O camarão vendido era de 2 categorias: gamba panada e miolo decamarão.7) A gamba panada foi facturada a 1.340$00/Kg e o miolo decamarão a 1.210$00/Kg.8) A A. entregou à Ré, para compensação de uma dívida, 2250 Kg decamarão congelado, tendo emitido a factura n.º 17095, em30/01/2002, no montante de € 59.099,13.9) A A. tinha um débito para com a Ré, de valor que em concreto nãofoi possível apurar.10) Em virtude da situação económica difícil da A. esta dispôs-se aentregar à Ré mercadoria/camarão.11) A A. colocou à disposição da Ré 2.250 Kg de camarão porconsiderar essa quantidade ajustada à dívida que tinha.12) Quando a A. colocou o camarão à disposição da Ré esta verificouque ele tinha prazo de validade inferior ao da amostra.13) A Ré apenas aceitou tal camarão pelo facto de a A. viver umasituação económica crítica, sentindo sérias dificuldades em receber daRé os seus créditos.14) E ainda pelo facto de ter caducado o seguro de caução que a Répossuía para toda e qualquer operação comercial.15) A entrega do camarão pela A. ocorreu em Janeiro de 2002 e oseguro caução da Ré já caducara.16) Em virtude do prazo de validade do produto ser curto a Ré viu-seobrigada a vender o camarão o mais depressa possível.17) Em 24/01/02, a Ré enviou à A. a carta de fls. 26, na qual se refereque confirmando conversação telefónica e com a intenção decolaborar com a A. fossem tomadas as medidas oportunas paracarregar 160 caixas de camarão, no dia seguinte (25/01/02),designando seu representante o Sr. AA.18) Em dia não apurado de Janeiro de 2002, a Ré, representada peloSr. AA, carregou na câmara da A. na "..." 160 caixas de camarão,para viatura que aí fez deslocar.19) No acto de carregamento e posteriormente foi apresentadareclamação por parte da Ré.20) Em 26/02/02, a A. recepcionou uma nota de débito pararectificação do preço.21) Tendo a A. de imediato devolvido a mesma, com a sua carta, de

Page 4: AcordaoSTJ_DacaoEmCumprimento

fls. 29, e com o seguinte teor: "Junto devolvemos a V/ nota de débito n.º 2002/002 de €13.162,50,porque o preço acordado com V. Exas. foi PTE 4.500$00 o Kg docamarão U/10.Não podemos fazer um desconto de € 5,00 porque se fossemos avender esse camarão a 3.500$00 perderíamos dinheiro no negócio,era a baixo do preço de custo.".22) Em 11/04/02, a Ré disse à A. que era preciso ter em conta osjuros de mora e custos bancários, bem como transporte earmazenagem da mercadoria.

Perante esta factualidade, há que decidir, essencialmente, se a entregadaquele camarão pela A. à Ré constituiu uma dação em cumprimento.Sabe-se que a dação em cumprimento (datio in solutum) é uma dasformas por que se podem extinguir as obrigações e que, como ensinaA. Varela em Das Obrigações em geral, vol. II, 6ª ed., pág. 169,"consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida,com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente aobrigação (art. 837º)".

Esta dação em cumprimento distingue-se da dação em função documprimento, da dação pro solvendo, em que a prestação realizada,diferente da devida, não tem como fim a extinção da obrigação, masapenas o de facilitar o seu cumprimento (cf. art. 840º do C.C. e A.Varela, ob. cit., vol. II, pág. 172).No caso concreto, a A., sendo devedora da Ré, realizou umaprestação diferente da devida.Mas, com esse cumprimento diferente (em vez da prestaçãopecuniária a A. entregou à Ré o referido camarão) não se deu aimediata extinção da sua obrigação - não foi essa a vontade expressados contraentes nessa dação, certo que a essência da dação emcumprimento é a entrega de prestação diferente da devida com o fimde extinguir, imediatamente, a obrigação (cf. A. Varela, ob. cit., vol.II, pág. 170).

Com efeito, dos factos provados não resulta que as partes tenhamquerido extinguir, com a entrega de camarão, a obrigação pecuniáriada A..E que não houve qualquer acordo entre a A. e a Ré sobre a extinçãoda obrigação da A., com aquela entrega do camarão, resultaclaramente da posição assumida pela Ré na sua contestação.Na verdade, a Ré alega que recebeu o camarão da A. com um curtoprazo de validade, o que a fez vendê-lo a preço inferior ao devido,com o consequente prejuízo. E que o valor desse seu prejuízo deveser deduzido no montante pedido pela A..

Page 5: AcordaoSTJ_DacaoEmCumprimento

Ora, se tivesse ocorrido o acordo de aquela entrega de camarãodeterminar a extinção da obrigação da A., não haveria que realizarqualquer dedução ao pedido formulado pela A. - a esta nada eradevido por aquela entrega do camarão se destinar a extinguir aobrigação da A. para com a Ré.Assim, não tendo sido entregue o camarão com a finalidade de fazerextinguir a obrigação da A. para com a Ré, não pode afirmar-se aexistência da pretendida dação em cumprimento.Não pode, portanto, afirmar-se a extinção do débito da A. e docorrespondente crédito da Ré.E não estando extinto o débito da A. e o correspondente crédito da Récom aquela entrega de camarão, tem de se concluir assistir à A. odireito de reclamar da Ré a diferença entre o valor da mercadoriaentregue e o valor da sua dívida (não há que reduzir qualquer valorcom os alegados e não provados prejuízos da Ré).Daí que à A. seja devida a quantia arbitrada no acórdão recorrido.Pelo exposto, confirmando o acórdão recorrido, nega-se a revista.Custas pela recorrente.

Lisboa, 12 de Outubro de 2006

Mota Miranda (Relator)Alberto SobrinhoOliveira Barros