ADORNO, Theodor - Anotações sobre Kafka in Prismas - crítica cultural e sociedade

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    Anotacoes sobre Kafka"Para Gretel

    Si Dieu le Pere a c r e e les choses en les nommant, c'est en leur8tant leur nom, ou en leur donnant un autre que l'artiste les recree.Marcel Proust

    1A popularidade de Kafka, a conforto no desconfortavel que ore-baixa a escritorio de iniormacoes sabre a condicao eterna au atual

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    negado, que sua vida e obscura, confusa ou, como se diz hoje em dia,estacontida no nada, e que teria restado ao homem apenas cumprirhumiIdemente e sern muita esperanca seus deveres imediatos, inte-grando-se a uma comunidade que espera exatamente isso, umacomunidade que Kafka de maneira alguma precisaria ter afrontadose concordasse com ela. Explicar as interpretacoes desse tipo com 0argumento de que Kafka obviamente nao disse 1S50 com palavras tiosecas mas, enquanto artista, se eforcou em traduzi-las ern urn simbo-lismo realista e admitir a insuficiencia dessas formulacoes, mas naornuito mais que isso. .Pois uma representacao ou e realista, ou e sim-bolica; nao imports quao densamente organizados possam estar ossfrnbolos, seu peso especifico de realidade nao prejudica em nada 0carater simbolico, A Pandora de Goethe nao e menos rica em confi-guracao sensfvel do que urn romance de Kafka, mas apesar disso naopode haver diivida quanto ao simbolismo do fragmento, meSIDOquea forca dos simbolos - por exemplo, 0 de Elpore, que personif ica aesperanca - transcenda a intencao itnediata do autor, Se 0conceitode sfmbolo tern alguma pertinencia na estetica, ambito no qual ele esuspeito, ela se deve unicamente a afirrnacao de que os mementosindividuais de uma obra de arte remetem.em vir tude da forcaque oseonecta, paraalern deles mesmos: a totalidade dos momentos conver-ge em urn sent ido, N ada, porern, seria mais inadequado no que dizrespeito a Kafka. Mesmo em criacoes como it de Goethe, que jogatao profundamente com os momentos alegoricos, esses mom~ntossotransrnitem seu sentido ao movimento do todo gra~as ao contexte noqual se enoontram, Na obra de Kafka, porem, tudo e 0 maisduro,definido e delimit ado possivel; aSS1mcomo nos romances de aven-turas, conforme a maxima. que James'Fennimore Cooper escreveu noprefacio ao Corsdrio vermeiho: "A verdadeira idade de ouro da li te-ratura so surgira quando asobras se tornarem tao rneticulosas em suaimpressao quanto urn diario de bordo- e tao granuladas em seuconteiido quanto urn relatorio de vigia". Em nenhuma obra de Kafkaa aura da ideia infinita desaparece no creptisculo, em nenhuma obrase esclarece 0horizonte, Cada frase e literal, e cada frase significa.Esses dois aspectos nao semisturam, como exigiria 0 sfrnbolo, mas sedistanciam urn do outro, e 0 ofuscante raio da fascinacao surge doabismo que se abre entre ambos. Apesar do protesto de seu amigo, aprosa de Kafka se alinha com os proscritos tambem por buscar antes

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    a alegoria do que 0 simbolo . .Benjamin a definiu com razjio comoparabola. Ela nao se exprime pela expressao, mas pelo repiidio aexpressao, pelo rompimento, E uma arte de parabolas para as quais achave fbi roubada; e mesmo quem buscasse fazer justamente dessapenh a chave seria induzido ao erro, na rnedida em que coniundiriaa tese abstrata da obra de Kafka, a obscuridade da existencia, com 0sen teor . Cada frase diz: "interprete-me"; e nenhuma frase tolera ainterpretacao, Cad a frase provoca. a reacao " e assim", e entao a per-gunta: de ondeeu conheco 1SS0P0 d e F t . vu e declarado em perma-nencia. A violencia com que Kafka reclamainterpretacao encurta adistancia estetica, Ele exige do observador pretensamente desinte-ressado urn esforco desesperado, agredindo-o e sugerindo que de suacorreta compreensao depende muito rnais que apenas a equilfbrioespiritual: e uma questao de vida ou rnorte. Urn dos pressupostosmais importantes de Kafka e que a relacao conternplativa entre 0 lei-tor e 0 texto e radical mente perturbada ..Os seus textos sao dispostosde maneira a nao manter uma distancia constante com sua vitima,mas sim excitar de tal forma os seus sentimentos que ela deve ternerque 0 narrado venha em suadirecao, assim como as locomotivasavancarn sobre 0 publico na tecnica tridimensional do cinema maisrecente. Essa proximidade ffsica agressiva interrompe 0 costume doleitor de se identificar com asfiguras do romance. Gracasa esse prin-cipio, 0 surrealismo pode com razao reclarnar Kafka como urn deseus representantes, Ele e Turandot tomada escritura, Quem percebeisso e prefere nao fugir correndo deve arriscar a cabeca, ou entaotentar derrubar a parede com a propria cabeca, correndo 0 risco denao ter uma sorte melhor que a de seus antecessores, Como numconto de fadas, 0destine dos que falharam em resolver 0 enigma, emvez de assustar; serve de incentive. Enquantoa palavra do enigmanao for encontrada, 0 leitor permanece preso ..

    2Pode-se dizer de Kafka, rnais do que de qualquer outro escritor, quenao 0 uerum, mas 0fa/sum e index sui. 0 proprio Kafka contribuiu,porem, para a propagacao do falso, Seus dois grandes romances, 0castelo e 0 processo, parecem trazer na testa - se nao no detalhe,

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    pelo menos em suas linhas gerais - as marcas de filosofemas que,apesar de todo 0seu peso conceitual, nao negam a mencira do tituloatribuido a uma colecao de escritos teoricos de Kafka: "Conside-racoes sobre 0 pecado, a dor, a esperan~a eo verdadeiro caminho".Seja como for, 0 conteiido desses pensamentos nao e canonico paraa obra li teraria. 0 artista nao e obrigado a entender a propria obra, ehi razoes suficientes para se duvidar que Kafka tenha entendido asua. Em todo caso, seus aforismos estao muiro aquern de pet;as eepisodios enigmaticos como "A preocupacao do pai de familia" ou0"0cavaleiro do balde". As criacoes de Kafka se protegem do erroartistico mortal que eonsiste em crer que afilosofia que 0autor inje-ta na obra seja 0seu teor metafisico. SeFosse assim, a obra teria nas-cido morta: ela se esgotaria naquilo que diz e nao se desdobraria notempo. Para se prevenir contra 0curto-circuito causado pelo senti-do prematuro ja visado pela obra, a primeira regra. e tomar tudo li te-ralrnente, sem recobrir a obra com conceitos impostos a partir decima. A autoridade de Kafka e ados textos, Somente a fidelidade aletra pode ajudar, e nao a cornpreensao orientada. Em uma escritaque continuadamente obscurece e esconde 0 que quer dizer, todoenunciado determinado contrabalanca a clausula geral da indeterrni-nacao. Kafka procurou sabotar esta regra, anunciando certa vez queas mensagens de 0 castelo nao deveriam ser entendidas "literal-mente". Pouco importa, se nao se quer pisar em falso, e precisoaceitar 0 que e dito no inicio de 0 processo: alguem deve ter calu-niado Josef K., "pois uma manha ele foi decido sem que tivesse feitomal algum". Tambem nao se pode deixar passar em branco que K.,no inicio de 0 castelo, pergunta: "Em que vila eu me perdi? Issoaqui e urn castelo?", 0 que torna impossivel que ele tenha sidochamado ate la. Ele tambem nada sabe sobre 0 Conde West-west,cujo nome e rnencionado apenas uma unica vez e de quem se vaipaulatinamente esquecendo, ate que ele nao e mais citado, do rnes-mo modo como Prometeu, segundo uma parabola de Kafka, acabapor se identificar com a pedra a qual esta preso, sendo entao esque-cido. 0 principio daliteralidade, certamente uma lembranca da exe-gese da tori feita pela tradicao judaica, pode se apoiar em variestetos de Kafka. As vezes as proprias palavras, sobretudo as metafo-ras, se libertaro e ganham uma existencia propria. Josef K. morre"como urn cachorro", e Kafka narra as investigacoes de urn cachor-242

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    ro. Ocasionalmente, a literalidade chega, por associacao de palav'",8,ao extrema do chiste. Assim, por exemplo, na historia da familia deBarnabas em 0 castelo, onde esta dito que 0 funcionari.o Sortiniteria ficado "bei der Spritze" [junto a bornba] na festa do corpo debombeiros. A expressao coloquial alerna, que designa a fidelidadeao dever, e levada a serio. 0 respeitavel personagem fica ao lado dabomba dos bombeiros, ao mesmo tempo que se alude, como nosatos falhos, ao desejo grosseiro que leva 0funcionario a escrever acarta fatal a Amelia - Kafka, que despreza a psicologia, e extrema-mente rico em intuicoes psicologicas, como a que relaciona 0 caraterinstintivo com 0 carater compulsivo. 0 principio da literalidade,sem cuja medida 0 ambiguo certamente se diluiria no indiferente,condena a tentativa usual de associar na interpretacao de Kafka apretensao de profundidade com a ausencia de rigor ..Cocteau ressal-tou com razao que a introducao do estranho como urn elementoonirico faz com que a obra perca 0 gume. 0 proprio Kafka, paraimpedir esse mau costume, retirou de 0 processo uma passagemdecisiva, que tinha 0 carater de urn sonho - a peca, verdadei-ramente monstruosa, foi publicada em Urn medico rural -, subli-nhando assim que pelo contraste com este sonho todo 0 resto econfirmado como realidade. Tambem poderiam ser lembradas aspassagens oniricas que se encontram as vezes em 0 castelo e emAmerica, construidas de maneira tao tenebrosa que 0 leiter ternmedo de nunca mais acordar do pesadelo. Entre os momentos dochoque nao e0rnais fraco aquele que faz com que as sonhos sejamtornados a la lettre. Tudo 0que se assemelha ao sonho e a sua logicapre-logica e eliminado, e por isso 0 proprio sonho e eliminado. Naoe 0monstruoso que choca, mas sua naturalidade. Logo apos 0agri-mensor ter expulsado de seu quarto os inoportunos auxiliares, estesvoltam a entrar novamente pela janela, sem que 0romance dediqueao episodic mais do que a mera comunicacao do fato: 0heroi estacansado demais para expulsa-los novamente. 0 leiter deveria serelacionar com Kafka da mesma forma como Kafka se relacionacorn 0sonho, ou seja, deveria se fixar nos pontos cegos enos deta-lhes ineomensuraveis e intransparentes. 0 fato de que os dedos deLeni estejam ligados por uma membrana ou que os executoresparecam tenores sao coisas mais importantes do que as digressoessobre as leis. Isto se refere tanto ao modo de representacao quanto a

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    Iinguagem. Os gestos servem muitas vezes eomoeontraponto paraas palavras: 0 pre-linguistico, que eseapa a toda inteneionalidade,serve a ambigiiidade, que como uma doenca devora todos os signi-fieados. "'Li a carta', corneccu K., 'Sabes 0 conteudo?', "Nao',respondeu Barnabas, e seu olhar pareceu dizer mais que assuas pala-vras. Talvez K. estivesse enganado quanto a bondade de Barnabas,da mesma forma que havia se enganado a respeito da maldade doscamponeses. Mas ficou a agradavel sensacao de sua presenca." au,em outra passagem: "'Ora', disse ela de maneira conciliadora, 'foimuito divertido, Me perguntaram se eu conhecia Klamm, e eu' -neste momenta ela se levantou involuntar iamente, e seu olhar vito-rioso, sem que houvesse liga.;;:a.oom 0que havia sido falado, encon-trou novamente K. - 'eu sou a sua amante"'. E tambem na cena daseparacao do agrimensor e Frida: "Frida coloeara sua cabeca nosombros de K., e andaram abracados de urn lado para 0 outro. 'Sen6s tivessemos ... ', disse em seguida Frida lenta e calmamente, quasede modo agradavel, como se soubesse que tinha pouco tempo depaz nos ombros de K., urn tempo que ela entretanto queria aprovei-tar ao maximo, 'se tivessernos emigrado logo naquela noite, pode-riarnos estar em seguranca em qualquer lugar, sempre juntos, a tuamao estaria sempre perto 0 bastante para que eu pudesse toca-la;como preciso estar a teu lado! Como me sinto abandonada quandoestas longe, desde que eu te conheco! A tua proximidade, acreditaem mim, e 0 iinico sonho que eu sonho, nao ha nenhum outro". Taisgestos sao os vestigios de experiencias que foram encobertas pelossignificados. Eo mais novo estado de uma lingua que enche a bocados que a falam, e a segunda confusao babilonica, a qual a diccaosobria de Kafka resiste, forcando-o a inverter a relacao historicaentre conceito e gesto, como num espelho, a gesto e 0 "assim e.Alinguagem, cuja configuracao deveria ser a verdade, torna-se inver-dade quando distorcida. "0 senhor deveria tarnbem ser mais reser-vado ao falar; quase tudo oque disse antes poderia ser deduzido doseu comportamento, ainda que tivesse dito apenas algumas palavras;alem disso, nao foi nada de extremamente favoravel ao senhar." Asvezes, as experiencias sedimentadas nos gestos seguirao a interpre-ta.;;:aoque deveria reconhecer na sua mimese urn universal reprimidopela consciencia humana. "Pela janela aberta se via outra vez a velhasenhora, que com uma curiosidade verdadeiramente senil agora

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    havia passado para a janela que ficava defronte para continuar vendotudo", lemos na cena da prisao no inicio de 0 processo. Quem ja naose sentiu observado da mesmissima forma pelo vizinho em umapensao qualquer; quem ja nao teve a intuicao de urn destinerepugnante, incompreensivel e inevitavel? 0 leitor que conseguissedecifrar tais cenas saberia mais de Kafka do que quem encontra neleuma ilustracao da ontologia.

    3Uma objecao poderia ser apresentada: nao se deveria confiar a inter-pretacao a este elemento, nem a qualquer outro do conturbado cos-mo de Kafka. Estas experiencias nao seriam nada mais que projecoesocasionais e psicologicas. Quem acredita que os vizinhos 0 obser-yam pelas janelas, au escuta no telefone a propria voz que canta - eos escritos de Kafka estao cheios de afirrnacoes deste tipo -, sofre-ria de esquizofrenia e mania de perseguicao, e aquele que transformatudo isso em sistema estaria tornado pela paranoia. Para esta pessoa,as escritos de Kafka serviriam unicamente para a racionalizacao dapropria doenca. Essa objecao so pode ser refutada pela reflexaosobre a relacao entre a obra de Kafka e a psicologia. A sua Frase"pela ultima vez psicologia" e tao conhecida quanto 0 comentariosegundo 0 qual toda sua obra poderia ser interpretada psicanaliti-camente, mas esta interpretacao necessitaria de outras ad infinitum.Tais vereditos, bern como a arrogancia consagrada, ultima defesaideologies do materialismo, nao deveriam sustentar, porem, a tesede que Kafka nao tern nada a ver com Freud. A sua tao celebradaprofundidade seria precaria, se nela se negasse 0 que existe nas pro-fundezas. A coricepcao de hierarquia nao difere muito em Kafka eem Freud. Em uma passagem de Totem e tabu, Freud afirma que "0tabu de urn rei e tao forte para seus suditos porque a diferenca socialentre eles e enorme. Mas urn ministro talvez possa ser urn media-dor inofensivo entre ambos. Traduzido do linguajar do tabu para alinguagem normal, isso significa: 0 sudito, que teme a enorme ten-tacao envolvida no contato com 0rei, pode eventualmente tolerar 0relacionamento com urn funcionario que ele nao precis a invejar

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    tanto, e cuja posicao pode ate mesmo parecer estar a seu alcance. 0ministro, por sua vez, pede contrabalancar sua inveja do rei pelaconsideracso do poder que the foi concedido, Portanto, pequenasdiferencas nas forcas rnagicas que levam a tentacao causam menostemor do que as enorrnes", Em 0processo, urn funcionario de altoescalao diz: Ja nem posso mais suportar a visao do terceiro por-teiro", e ha momentos analogos em 0 castelo. Isso esclarece tambemurn complexo decisivo em Proust , 0 esnobisrno como vontade deacalmar 0 medo do tabu pela aceitacao entre os iniciados: "Pois aproximidade de Klamm nao era a que ele mais desejava, mas sornen-te ele, K., somente ele, nenhum outro, havia conseguido se aproxi-mar de Klamm, nlio para descansar com ele, mas para 0 superar eadentrar o castelo". A expressao d e/ ir e d e t ou che r , igualmente citadapor Freud quando se refere.a esfera do tabu, descreve com exatidaoa encanto sexual que une as homens nas obras de Kafka, sobretudoos inferiores e as superiores ...Mesmo a "tentacao" questionada porFreud - 0 assassinate da figura paterna - e aludida em Kafka. Naconclusao do capitulo de 0 castelo no qual a dona d a p e ns ao explicaao agrimensor que e abolutamente impossivel falar com 0 senhorKlamm em pessoa, este fica. com a ultima palavra: "'0que entao asenhora teme? A senhora nao tern medo de Klamm, nao e?' A donadapensao acompanhou com os olhos, em silencio, enquanto eledes-cia a escada e os aux:iliares0seguiam". Enrende-se melhor a relacaoentre 0 pesquisador do inconsciente e 0 parabolista da impenetra-bilidade quando se lembra que em Freud cenas arquetipicas como ado assassinate do pai.pela horda primordial, a narracao ancestral deMoises ou mesmo a observacao pelas criancas da rela\ao sexual dospais nao sao entendidas como sinteses da fantasia, mas como even-tos reais, Nessas excentricidades, Kafka segue Freud ate 0 absurdo,com uma fidelidade digna de Eulenspiegel.Ele arranca a psicanalisedo ambito da p s ic ol og ia . Na medida em que deduz 0 individuo apartir de impulses amortos e difusos, 0Ego a partir do Id, a psica-nalise ja se opoe, em certo sentido, ao especificamente psicologico.A personalidade se transforma deentidade substanciaI em meroprincipio organizatorio de impulses somaticos, Tanto em Freudcomo em Kafka, a v i ge n ci a d a alma e cancelada; Kafka, na verdade, aignorou desde 0 inicio. Ele se distingue de Freud, mais velho e comespirito cientifico, nao por uma espiritualidade mais delicada, mas

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    ~impor urn ceticis~o a~nda mais radical em relacao ao Ego. .E para1SS0 que serve a Iiteralidade de Kafka. Como se conduzisse urnaexp~~ienc~a,Kafka estuda 0 que aconteceria se os resultados da psi-canabse nao fossem corretos apenas metaf6rica e mentalmente mastamhem fisicamente '.El e aceita a psicanalise na medida em q~e eladesmascar~ a a p ar en ci a d a cultura e do i ndi v fduo bu rgues: e a.explo-de na rnedida em que a torna mais literalmente do que ela propria.De acordo com Freud, a psicanalise dirige sua atencao aos "refu-gos do mu~do das aparencias": os elementos psiquicos, atos {aIhos,sonhos e sintomas neuroticos. Kafka peca contra uma tradicionalregra do jogo ao produzir arte exclusivarnente a partir do que erecusado pela realidade ..A imagem da sociedade vindoura nao eesbocada imediatamente - pois Kafka, assim como toda grandearte,. se comporta asceticarnente diante do futuro -, mas montada apartl .r do entulho que 0 novo, em processo de formacao, elimina dopresente que se torna passado, Em vez de curar a neurose, ele pro-cura nela mesma a forca que cura, a forca do conhecimento; as estig-~a~ ~om qu.ea sociedade ~arca 0indivfduo sao interpretados comoindicios da inverdade social, sao lidos como 0negative da verdade.A forca de Kafka e a da demolicao. Diante do sofrimento incomen-suravel, ele derruba a fachada acolhedora, cada vez mais subrnetidaao controle racional. Nesse processo de demolicao - e nunca esteconceito foi tao popular como no ana da morte de Kafka -, ele naose detem, como a psicologia, diante do sujeito, mas alcanca a materiaem estado brute, 0mero enteque emerge na esfera subjetiva atravesdo colapso ta.ta1de umaconscienciaalienada, que renuncia a qual-quer auto-afirmacao. A fuga atravessa 0 homem ate chegar aodesum~~o - esta e a trajetoria epica de Kafka. 0 declfnio do genio,a passividade forpda que concorda plenarnentecom a moral deKafka, e paradoxalmente recompensado pela autoridade convin-cente de sua expressao. A postura relaxada, quando e tensionadaate 0 dilaceramento, obtern imediatamente e sem intencionalidade,enquanto "corpo espiritual", 0 que antes era.metafora, significado ee~piri to. Como se a . teoria filosofica da intuicao categorial, muitodivulgada no tempo em que Kafka escreveu, tivesse sido honrada noinferno ...A monada sem janelas preserva a si mesrna como lanternamagics, mae de todas as imagens, assim como em Proust e Joyce.Todos eles estiio de acordo sobre aquilo que a individuacao supera,

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    o que ela esconde e 0 que ela consegue fazer por si mesma, mas elaso e apreendida por urn isolamento e uma concentracao que nao sedeixa distrair, Quem quisesse entender como se chega a experienciastao fora do comum como as descritas por Kafka deveria presenciarurn acidente numa cidade grande: imirneras testemunhas se apre-sentam e dec1aram conhecer a pessoa acidentada, como se todaacomunidade tivesse se reunido para assistir ao instante no qual 0poderoso onibus se lancou sobre 0 veIho e fragi! taxi, 0 permanen-temente deja ou e 0 deja vu de todos, Par isso 0 sucesso de Kafka,que se transforma em traicao apenas no momento em que 0 univer-sal e destilado, poupando-se 0 esforco da reclusao mortal. Talvez 0objetivo oculto de sua arte seja a disponibilizacao, a tecnificacao ecoletivizacao do deja vu. 0 melhor, sempre esquecido, e relem-brado e colocado em uma garrafa, como a sibila de Cumas, Mascom isso 0melhor setransforma no pior possivel. "Quero morrer",mas isso the e negado. 0efernero, ao ser perpetuado, e atingido poruma maldicao.

    4Os gestos perpetuados sao em Kafka instantes congelados. Como 0choque do surrealismo, 0 choque que ele produz e semelhanteaquele causado pela observacao de fotografias antigas, Imprecisas equase desbotadas, tais fotografias desempenham urn papel impor-tante em 0 castelo. A dona da pensao mostra a K. a fotografia queguarda como Iembranca de seu contato com Klamm e,por extensao,com a hierarquia. Apenas com muito esforco K. consegue reconhe-cer alguma coisa na fotografia. Kafka introduz freqiientemente emsua obraantigos tableaux retirados da esfera do circo, com a qualele, assim como toda a vanguarda de sua geracao, sentia umacertaafinidade; talvez tudo estivesse destinado a se tornar tableau, 0 queso foi impedido pelo excesso de intencao dos longos dialogos, Tudoo que se equilibra no auge do instante, como urn cavalo empinadosobre as patas traseiras, e fotografado como se a cena devesse serpreservada para sempre. 0 exernplo mais terrivel disso encontra-seem 0 processo: Josef K. abre a porta do quarto de despejo, no qual

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    no dia anterior seus guardas haviam sido espancados, e encontrafielmente reproduzida a mesma cena, inclusive com a invocacaodele proprio. "Imediatamente, K. fechou a porta e bateu nela comos punhos como se desse modo ela ficasse fechada rnais firme-mente." Este e 0 gesto da propria obra de Kafka, que, como jaocorria por vezes em Poe, se afasta das cenas mais extremas, comose nenhum olho pudesse sobreviver aquela visao, Nela se mesclamo efemero e a mesmice. Titorelli pinta sempre e repetidamente essaantiquada paisagem de genero, repleta de campos. A igualdade, ouintrigante sernelhanca, de urn enorme mimero de objetos e urn dosrnais persistentes motivos de Kafka. Todas as especies de sereshibridos possiveis aparecem sempre aos pares, muitas vezes com amarca do infantil e do bobo, oscilando entre a bondade e a cruel-dade, como as se1vagens nos livros infantis, A individuacaotornou-se tao dificil para os homens, e e ainda hoje tao incerta, quedes sao tomados por urn sus to mortal assim que se levanta urnpouco 0 seu veu, Proust estava familiarizado com 0 leve mal-estarsuscitado pelo reconhecimento da semelhanca com urn parentelongfnguo. Em Kafka, 0 rnal-estar se transforma em panico. 0reino do deja vu e povoado de sosias, revenants, bufoes, danca-rinos hassidicos, meninos que imitam 0 professor e de repenteadquirem 0 aspecto de anciaos arcaicos, Em certa passagem, 0 agri-mensor duvida que os seus auxiliares estejam realmenre vivos. Masao rnesmo tempo hi imagens do que estava por vir, homens fabrica-dos em linhas de producao, exemplares reproduzidos rnecanica-mente semelhantes aos ipsilons de Huxley. A genese social doindividuo revela-se no final como 0 poder que 0 aniquila. A obrade Kafka e uma tentativa de absorver isso. Nao hi. nada de insanoem sua prosa, como ocorre noescritor ao qual ele deve li~6es deci-sivas: Robert Walser. .Cada frase traz a marca de urn espirito segurade 5 1 , mas tarnbern foi anteriormente arrancada da zona da loucurana qual todo conhecimento deve se aventurar para se tornar de fatoconhecimento, principalmente em uma era na qual 0 sadio bornsenso apenas contribui para retorcar 0 ofuscamento universal. 0principio hermetico desemp enha, entre outras, a funcdo de umamedida de protecao contra a loucura que avanca, Isso significa,contudo, a propria coletivizacao desse principio. A obra que abalaa individuacao queria evitar, a qualquer pre~D, ser imitada: por esta

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    razao, certamente, Kafka ordenou que ela fosse destruida. Nenhu-rna atividade turistica deveria florescer onde ela chegou. Quem aimitasse, sem ter estaclo la, seria culpado de pura falta de vergonha,por tentar apropriar-se da excitacao e da forca do distanciamentosem correr maiores riscos. A conseqiiencia seria urn rnaneirismoimpotente. Karl Kraus, e em certa medida tarnbem Schoenberg,reagiram de maneira semelhante a Kafka. Urna tal inide Kafka naoe mais invejavel que ados escritores que 0 sucedem: ela seria deanternao uma apologia do mundo. Nao que nao haja 0 que criticarna obra de Kafka. Entre as falhas evidentes de seus grandes roman-ces, a mais sensivel e a da monotonia. A apresentacao do ambiguo,do incerto e do inacessivel e repetida infinitamente, muitas vezes acusta da vivacidade que se busca a cada pagina. A rna infinitude dorepresentado transmite-se a propria obra. E possfvel que nessa defi-ciencia se manifeste uma falha do conteiido, uma preponderanciada ideia abstrata, que constitui 0proprio mito que Kafka combate.A configuracao da obra quer tornar novamente incerta a incerteza,mas acaba suscitando a questao: para que este esforco? Se tudo equestionavel, por que nao se restringir ao minimo possivel? Kafkaresponderia que exige justamente 0 esforco desesperado, da mesmaforma como Kierkegaard queria com sua prolixidade irritar 0 leitere retira-lo da contemplacao estetica. Reflexoes sobre a legitimidadedestas taticas [iterarias sao, entretanto, infrutiferas, porque a criticaso pode referir-se a isso em uma obra que se pretenda exemplar;nos momentos onde diz: "Assim como eu sou, assim deve ser".Exatamente essa pretensao e enfaticamente rejeitada pelo descon-solado "assim e" de Kafka. Apesar disso, a violencia das imagensque ele evoca rompe as vezes sua camada de isolamento. Algumascolocam a auto-reflexao do leitor, sem falar na do proprio autor,diante de uma dura prova: Na colonia penal eA metamorfose, rela-tos que anteciparam os de Bettelheim, Kogon e Rousset, como porexemplo as fotografias aereas das cidades bombardeadas, reabili-taram 0cubismo, pela efetivacao daquilo que este desfigurava narealidade. Se a obra de Kafka conhece a esperan~a, ela esta antes emseus extremos do que nas fases mais moderadas: na capacidade deresistir a uma situacao extrema, transformando-a em linguagem. Achave da interpretacao seria fomecida por estas mesmas obras? Harazoes para se presumir que sim. Na Metamorfose, 0percurso da

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    experiencia se deixa reconstruir na literalidade, como extrapolacao."Estes viajantes sao como percevejos", diz a expressao que Kafkadeve ter escolhido, alfinetando-a como a urn inseto. 0 que aconte-ce com urn homem que e urn percevejo do tamanho de urnhomem? Se 0 olhar infantil do pavor fosse inteiramente isolado eapreendido, os adultos apareceriam enormes e distorcidos, compernas imensas e com cabecas pequenas e distantes; uma cameraobliqua poderia fotografa-los deste modo. Em Kafka, uma vidainteira nao e suficiente para se chegar a aldeia rnais proxima, e 0navio do foguista e a pensao do agrimensor tern dirnensoes taoenormes que seria preciso retornar a urn passado longinquo paraencontrar uma.epoca na qual 0homem percebia seus proprios pro-dutos demaneira similar. Aquele que quer ver as coisas deste mododeve se tornar crianca e esquecer muita coisa. Voltara entao areconhecer 0 pai como urn ogro, 0 que ele ja suspeitava a partir depequenos indicios, e 0nojo a casca de queijo revela-se como dese-jo humilhante e pre-humane. Como a sua ernanacao, 0horrorenvolve visivelmente 0 dono do quarto, urn horror que antes seimiscuia quase imperceptivelmente em cada palavra. A tecnicaliteraria de Kafka se apega, por associacao, as palavras, da mesmaforma como a tecnica proustiana da lembranca involuntaria seapega as sensacoes, mas com 0 resultado oposto: em vez da reme-moracao do humano, ha a prova exemplar da desumanizacao, Asua pressao obriga os sujeitos a uma especie de regressao biologica,preparando 0 caminho para asparabolas animais de Kafka. Em suaobra, tudo se dirige a urn instante crucial, onde os homens tomamconsciencia de que nao sao e1esmesmos, sao coisas. As longas efatigantes secoes desprovidas de imagens tern por objetivo, desde aconversa com 0 pai em 0 veredito, demonstrar aos homens 0 quenenhuma imagem seria capaz de fazer: sua falta de identidade, 0complemento de sua similaridade copiada. As motivacoes triviaisque a dona da pensao e finalmente tambern Frida fazem ver aoagrimensor the sao estranhas - 0 futuro conceito psicanalitico do"estranhamento do Eu" foi extraordinariamente antecipado porKafka. Mas 0 agrimensor confessa aquelas motivacoes. Seu caraterindividual se separa de seu carater social, como no caso do Mon-sieur Verdoux de Chaplin: os protocolos hermeticos de Kafka con-tern a genese social da esquizofrenia.

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    5o mundo de imagens de Kafka e . triste e deteriorado, mesmo ondeele pretende superar esta situacao, por exemplo no "Teatro naturalde.Oklahoma" - como se tivesse previsto a migra~ao dos operariosdeste estado - au em "A preocupacao.do pai de famil ia"; 0 acervode fotos instantaneas e tao palido e rnongoloidequanto urn casa-mento pequeno-burgues de Henri Rousseau; 0 cheiro, 0 de camasainda nao arrumadas; a cor, 0 vermelho de colchoes que perderamo tecido; a angustia evocada por Kafka e aquela que precede 0vomito, E no entanto a maier parte de sua obra e uma reacao aopoder ilimitado, Benjamin chamou este poder, caracteristico depatriarcas raivosos, de "parasitario": urn poder que se nutre da vidade suas vitimas. Mas 0 momenta parasitario e deslocado de modosingular. Quem se metamorfoseia em percevejo e Gregor Samsa, enae 0 seu pai. Quem pareee superfluo nao sao as pod erosos, masos herois impotentes; nenhurn deles presta urn service socialmenteutil , As autoridades ana tam ate mesmo que 0 escriturario acusadoJoseph K., preocupadocom a processo, nao consegue trabalhardireito. Esses herois rastejam por entre propriedades ha muito tem-po amortizadas, que lhes concedem existencia apenas como esrno-la, na medidaem que sobreviveram alern da conta. 0deslocamentoe moldado segundo 0 costume ideologico que glorifica a repro-ducao da vida como urn ato de grar, :ados "empregadores", que dis-poem sabre ela. Ele descreve urn todo no qual aqueles que asociedade aprisiona, e que a sustentam, tornam-se superfluos, Maso sordido, em Kafka, nao se esgota nisso, Ele e 0 criptograma dafase final e resplandecente do capital ismo, que Kafka exclui paradetermina-la mais precisainente em sua negatividade. Kafka procu-ra com a lupa os vestigios de sujeira deixados pelos dedos do poderna edicao suntuosa do l ivro da vida. Pois nenhum mundo poderiaser rnais hornogeneo do que 0 mundo sufocante que ele comprimeem totalidade por meio da angiistia do pequeno-burgues, 0 sis-tema e logico do inicio ao fim e, como qualquer sistema, desprovi-do de sentido, Tudo o que Kafka narra pertencea mesma ordem.Todas as suas historias desenrolam-se no mesmoespar,:o sem espa-co, e todos os buracos sao tao perfeitarnente tapados que as pessoaslevam urn susto quando se menciona algo que nao caberia ali, como

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    a Espanha e 0 SuI da Franca, evocados em uma passagem de 0castelo. A America inteira, entretanto, e incorporada aquele espa~o,como imago dos poroes de urn navio, As descricoes labirinticas deKafka se conectam da mesma forma que as mitologias. Mas 0 infe-rior, Q, absurdo e 0corrofdosao tao essenciais para a sua contigui-dade quahto a corrupcao e as associacoes criminosas 0 sao para adorninacao totalitaria e 0 amor aos excrementos, para 0 culto dahigiene. Sistemas politicos e de pensamento nao desejam nada quenao se lhes assemelhe. Porem, quanto mais fortes ficam, quanto maisreduzem tudo 0 que existe a urn denominador comum, tanto maisoprimem e se afastam do que existe, 0menor "desvio", por isso,lhes parece ser uma ameaca ao sistema como urn todo, algo tao insu-portavel quanto 0 estranho e 0 solitario para as poderosos de Kafka.Integracao e desintegracao, e nela se encontram 0encanto mitico e aracionalidade dominadora, 0 chamado "problema da contingen-cia.",que tanto atormenta os sistemas filosoficos, f01criado por elesmesmos: tudo a que escapa pelas malhas de sua rede torna-se, emrazao da propria inexorabilidade do sistema, urn inimigo mortal,da mesrna maneira como a rainha mitica nao encontra paz enquantoexistir alguem, para alem das montanhas, mais belo do que ela, acrianca do conto de fadas. Nao ha sistema sem residuo, Contem-plando-o, Kafka profetiza 0 futuro. Setudo 0 que acontece em seumundo compulsivo combina a expressao do mero necessario com aexpressao do contingente peculiar a sordidez, Kafka, em sua escritainvertida, decifra esta lei infame. A perteita inverdade e a contra-di~ao de si mesma, por isso ninguem precisa contradize-la explicita-mertte. Kafka desmascara 0 rnonopolismo nos refuges da era liberalliquidada pelos monopolies. Este instante historico, e nao urn atern-poral que perpassa a historia, e a cristal izacao da metafisica deKafka: a eternidade nao epara ele outra coisa que a eternidade dosacrificio infiniramente repetido, que culmina na imagem do sacrifi-ciofinal. "Somente 0nosso coneeito de tempo permite que se chamedessaforma 0 juizo final rJiingstes Gericht], na verdade ele e urnaCOrtesumaria." 0ultimo sactiffcio e sempre 0de ontem. Justamentepor isso, Kafka evita qualquer relerencia explfcita a dimensaohistorica- 0 cavaleirodo balde, nascido da falta de carvao, e umarara excecao. A sua obra tambem se relaciona hermeticamente coma historia: urn tabu pesa sobre este conceito, A nocao do carater

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    invariante e natural do curso do mundo corresponde a eternidadedo instante historico; 0 instante, 0 absolutamente transitorio, e umaparabola da eternidade do perecimento, da danacao. 0 nome dahistoria nao deve ser pronunciado, pois aquilo que seria historia, 0outro, ainda nao se iniciou, "Acreditar no progresso nao significaacreditar que ja tenha ocorrido urn progresso." Em meio a relacoessociais aparentemente estaticas, muitas vezes artesanais ou agrarias,caracteristicas de uma economia mercantil simples, 0 his torico eapresentado por Kafka como algo condenado, da mesma maneiracomo essas relacoes tambern estao condenadas. Seus cenar ios saosempre obsoletos. A respeito do "predio baixo e comprido" quefunciona como escola, e dito que reunia "de modo estranho 0 cara-ter do provisorio com 0 do muito antigo". Dificilmente os homenssao diferentes. 0 antiquado e 0 estigma do presente; em Kafkaencontra-se urn inventario dessas maculas. Mas 0 antiquado e aomesmo tempo a imagem daquilo que se apresenta as criancas, quelidam com os refugos do mundo historico como sendo a historiaenquanto tal, e a " imagem infantil da modernidade" , a esperan

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    Deus. Fracassa tambern a tentativa da Teologia dialetica de se apro-priar da obra, nao apenas devido ao carater mitico dos poderes emjogo, ressaltado com pertinencia por Benjamin, mas tambern esobretudo porque em Kafka ambiguidade e incompreensao jamaissao arribuidas ao outro enquanto tal, como ocorre por exemplo emPavor e tremor, mas tambern aos homens e as relacoes humanas. Enivelada justamente aquela "imensa diterenca qualitativa" ensina-da por Barth e Kierkegaard: entre a aldeia e 0 castelo nao haverianenhuma diferenca. 0 metoda de Kafka foi confirmado quando osobsoletos tracos liberais da anarquia da producao rnercantil, que eletanto acentua, retornaram sob a forma da organizacao politica daeconomia desregulada. E nao foi apenas a profecia de Kafka sobre aterror e a tortura que se confirmou. "Estado e Partido": assim estebando de conspiradores com funcao de polfciase retine em sotaos emora em restaurantes, como Hider e Goebbels no Kaiserhof. A suausurpacao revela 0elemento usurpatorio no mit a do poder. Em 0castelo, os funcionarios vestem urn uniforme especial semelhanteao da SS, que qualquer par ia pode costurar, se for necessario; tam-bern as elites do nazismo nomearam a si mesmas. Detencao e assal-to; tribunal de justica, urn ato de violencia. 0 partido sempre teveurn relacionamento ambiguo e corrupto com suas vitimas potenci-ais, como 0fazem os inacessiveis magistrados de Kafka. 0 termo"detencao preventiva" poderia ter sido inventado por Kafka, se janao fosse corrente durante a Primeira Guerra Mundial. A professo-ra loura, cruel e amante de animais , de nome Gisa, provavelmente aunica rnoca bonita deixada intacta pela descricao de Kafka, como sea sua dureza fizesse troca do redemoinho kafkiano, pertence a racapre-adamitica das virgens de Hitler, que odeiam os judeus muitoantes de eles existirem. Figuras subalternas como os sargentos,colaboradores e porteiros exercem uma violencia desenfreada. Saotodos desclassificados que, na queda, foram amparados pela cole-t ividade organizada e tiveram perrnissao para sobreviver, assimcomo 0pai de Gregor Samsa. Como na epoca da crise do capital is-mo, 0 peso da culpa e tirado da esfera de producao e atribufdo aagentes da circulacao au a pessoas que prestam services: viajantes,bancarios e gar\ons. Desempregados - em 0 castelo - e emi-grantes - em America - sao preservados como fosseis do processode marginalizacao. As tendencias econornicas, cujas relfquias eles

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    representam muito antes de estas terem se afirmado, nao eram demodo algum tao desconhecidas por Kafka quanto 0 seu procedi-mento hermetico pode sugerir. Isso aparece em uma passagem sin-gularmente empirica do prirneiro romance de Kafka, America: "Eraum tipo de empresa de comissoes e despachos, como talvez nao hajana Europa, pelo menos de acordo com as lembrancas de Karl. 0negocio consistia em uma interrnediacao de mercadorias, nao entreprodutores e consumidores, ou eventualmente com os comercian-tes, mas sim de todas asmercadorias e materias-primas com as gran-des carteis e entre estes". Kafka perpetuou justamente 0 'semblantehipocratico deste aparelho distribuidor monopolistico de "extensaogigantesca", que aniquilou 0 comercio e as negocios, 0 vereditohistorico resulta da dominacao disfarcada, que assim se configuracomo mito, como violencia cega que se reproduz infinitamente. Emsua fase mais recente, a do controIe burocratico, Kafka reconhecesua fase inicial, retomando como historia primitiva 0que ela descar-taoAs rupturas e deforrnacoes da modernidade sao para ele vestigiosda idade da pedra, as figuras de giz no quadro-negro de ontem, queninguem apagou, parecem-Ihe os verdadeiros desenhos das cavernas.A atrevida abreviatura dentro da qual aparecem tais retrospectivasrevela ao mesmo tempo a tendencia social. Com a sua traducao emarquetipos, 0 burgues agoniza. A perda de seus traces individuais, adescoberta do horror existente debaixo do monumento da culturamarca a decadencia da propria individualidade, 0 terrivel, entretan-to, e que 0 burgues nao encontrou urn sucessor: "Ninguem 0 fez".Talvez isso remeta ao conto de Gracchus , ao cacador que nao e maisselvagem, urn homem de forca que foi incapaz de morrer. Assimaconteceu com a burguesia. A historia torna-se em Kafka 0inferno,porque a salvacao possivel foi perdida. Esse inferno foi inauguradopela propria burguesia tardia. Nos campos de concentracao do fas-cismo aboliu-se.a linha demarcat6ria entre a vida e a morte, 0 quegerou uma situacao interrnediaria, esqueletos vivos e em estado dedecomposicao, vitimas que falharam na sua tentativa de suicidio, agargalhada de Satanas diante da esperanca da abolicao da morte.Como na epica pelo avesso de Kafka, 0que pereceu ali foi 0para-metro da experiencia, a vida vivida ate 0 fim. Gracchus e a perfeitarefutacao da possibilidade expulsa do mundo: a de morrer em idadeavancada, apos ter vivido plenamente.

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    7o carater hermetico dos escri tos de Kafka nao oferece apenas a ten-ta~ao de contrapor abstratamente a.ideia de sua.obra a historia - 0que ele proprio faz, em longas passagens -, mas tambem a de reti-rar, por meio de uma profundidade barata, sua obra do ambitohistorico. Mas e precisamente como obra herrnetica que ela tomaparte no movimento literario do decenio da. Prirneira Guerra Mun-dial, que tinha Praga como urn de seus pontos centrais, e a cujoambiente intelectual Kafka pertencia. Somente quem conhece asbrochuras pretas da colecao Der jungste Tag editada por Kurt Wolf,onde 0 veredito, A metamorfose e 0capitulo "0 foguista" forampublicados, consegue captar Kafka em seu horizonte autentico, 0do expressionismo. A sua mentalidade epica procurou evitar 0gestolingiiistico deste expressionismo; apesar de passagens como estas,que mostram urn admiravel dominic do estilo: "Pepi, orgulhosa ecom a cabeca erguida, sempre com 0 mesmo sorriso indiscutivel-mente consciente de sua dignidade, andando de urn lado para 0outro, balancando a tranca em cada movirnento"; ou no seguintetrecho: "0 senhor K. saiu para a escadaria ventaneira e olhou para aescuridao", Os personagens, especialmente os das pequenas narrati-vas, sao privados de seus nomes de batismo, como Wese e Schmar,lembrando listas de personagens de pe

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    carater quimerico ele percebeu como nenhum de seus amigos, masao qual ele ainda assirn permaneceu fiel - a uma epica tortuosa; apura subjetividade, necessariamente alienada e transformada emcoisa, e levada a uma objetividade que se exprime atraves da propriaalienacao. A fronteira entre 0humano e 0rnundo das coisas torna-se tenue. Esta e a razao de seu muito comentado parentesco comKlee. Kafka chamava sua maneira de escrever de "rabisco", 0 rei-f icado torna-se signa grafico, os homens proscritos nao agem por simesmos, mas como se cada urn tivesse caido em urn campo mag-netico '. E exatarnente essa definicao externa de personagens inte-riorizadas que confere a prosa de Kafka a aparencia inescrutavel deuma objetividade sobria. A zona na qual nao se pode morrer e aomesmo tempo a terra de ninguern entre 0 homem e a coisa: nessaterra Odradek, visto por Benjamin como urn anjo no estilo de Klee,encontra-se com Gracchus, a modesta imitacao de Nimrod. A com-preensao do todo depended da cornpreensao dessas producoesmais radicais, incomensuraveis, e de algumas outras que igualmentese afastam da ideia corrente que se tern sobre Kafka. Na obra intei-ra, entretanto, esta presente a despersonalizacao da sexualidade.Assim como, segundo 0rito do Terceiro Reich, as mocas nao podi-am dizer "nao" aos condecorados, tambem a maldicao kafkiana, 0grande tabu, aboliu todos os pequenos tabus que pertencem aesfera individual. 0 caso t lpico e a punicao de Amalia e de todos osseus - em razao do decreto de co-responsabilidade familiar -,porque ela nao se entregou a Sortini, Diante dos poderosos, a fami-l ia triunfa como urn coletivo arcaico sobre a sua forma posterior,individualizada. Homens e mulheres deveriam se encontrar sem amenor resistencia, como animais que se acasalam. Kafka fez do seuproprio sentimento neurotico de culpa, de sua sexualidade infantile de sua obsessao com a "pureza" urn instrumento para corroer 0conceito estabelecido de erotismo, A ausencia de escolha e memo-ria nas relacoes sexuais dos empregados nas grandes cidades doseculo xx transforma-se em imago de uma situacao existente hitempos imernoriais, como mais tarde em uma celebre passagem do"Waste Land" de Eliot . Uma situacao de forma alguma eterea, Nasuspensao [Suspension] das regras da sociedade patriarcal , e des-nudado 0 segredo dessa sociedade, 0 da opressao imediata e bar-bara. As mulheres sao reificadas como meros meios para urn fim:

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    como objetos sexuais, como conexoes. Mas Kafka pesca pacien-temente, nessas aguas turvas, a imagem da felicidade, Esta imageme provocada pela admiracao do sujei to hermeticamente fechadosobre 0 paradoxo, 0 fato de que ele mesmo pode ainda ser amado.Como a incl inacao de todas as mulheres para os prisioneiros em 0processo, toda esperan~a e tambem incompreensivel. 0 desencanta-do Eros de Kafka e ao mesmo tempo exuberante gratidao mascul i-na. Quando a pobre Frida se chama de "amante de Klamm", a aurada palavra brilha mais forte do que nos momentos mais solenes emBalzac ou Baudelaire. Ela inventa 0 gesto que a saudade pode espe-rar em van por toda uma vida quando, negando ao dono da pensaoa presenca de K., que se esconde debaixo da mesa, "coloca seu pedelicado acima do peito de K." e entao se abaixa e "0beija suave-mente"; e ashoras nas quais os dois estao deitados juntos, "em meioaos restos de cerveja e de lixo que cobriam 0chao", sao momentosde satisfacao em urn pais tao estranho que" nem mesmo 0 ar e comoo ar da patria", Brecht explorou essa dimensao no terreno da lirica,Em ambos os escritores, contudo, a linguagem do extase e inteira-mente diferente da do expressionismo. A questao de resolver a qua-dratura do circulo e encontrar palavras adequadas para 0espaco dainterioridade desprovida de objetos, ao mesmo tempo que a abran-gencia de qualquer palavra transcende a imediatidade absolutadaquilo que deve ser evocado - uma contradicao na qual toda aliterarura expressionista fracassou -, foi resolvida engenhosamen-te por Kafka atraves do elemento visual. Este afirma sua prioridadepor meio dos gestos. Sornente 0visivel pode ser narrado, mas nesseprocesso 0 visivel torna-se completamente estranho, transforrna-seem imagem, no sentido mais l iteral da palavra. Kafka salva a ideiado expressionismo nao ao se esforcar em vao para escutar as sonsprimordiais, mas ao transter ir para a literatura os procedimentos dapintura expresssionista. Ele se relaciona com essa pintura da mesmamaneira que Utrillo com os cartoes-postais, que teriam servido demodelo para suas ruas cobertas de gelo. Diante do olhar de panicoque retira dos objetos toda carga afetiva, estas ruas se petrificamem algo diferente: nem sonho, que se deixa apenas falsear, nemmacaqueamento da realidade, mas sim a imagem enigmatica dessarealidade, composta de seus fragmentos dispersos. Varias passa-gens decisivas de Kafka podem ser lidas como se fossem descricoes

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    minuciosas de pinturas expressionistas jamais pintadas. No final deoprocesso, 0 olhar deJosef K. incide "sobre 0ult imo andar da casasituada no limite da pedreira. Como uma luz que tremula, as folhasde uma janela abriram-se ali de par em par, uma pessoa que a dis-tancia e a altura tornavam fraca e fina inclinou-se de urn golpe paraa frente e esticou os braces mais para a frente ainda. Quem era?Urn amigo? Uma pessoa de bern?". Este trabalho de transposicaopermeia 0mundo de imagens de Kafka, que se baseia na exclusaocompleta de todo 0 musical, de tudo 0 que se assemelhe a rmisica,na remincia a defesa antitetica do mito: segundo Brod, Kafka era 0que se costuma chamar de uma pessoa insensivel a rmisica. 0 seumudo grito de batalha contra 0 rnito consiste em nao the resisti r, Eesta ascese the presenteia com a mais profunda relacao com a rmisi-ca, em passagens como aquela da cancao do telefone em 0 castelo,ou sobre a ciencia da musica conforme as "Investigacoes de urncao" , ou ainda em uma das iil timas narrat ivas completas de Kafka,"Josefine". Na medida em que sua prosa aspera despreza todos osefeitos musicais, ela procede como se fosse rmisica. Interrompe osseus significados como as colunas que representam a vida inter-rompida nos cerniterios do seculo XIX, e as linhas que marc am ainterrupcao sao seus hieroglifos.

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    por Lukacs em autores como Flaubert e Jacobsen. 0 carater frag-mentario dos tres grandes romances, aos quais alias dificilmentepode ser aplicado este conceito, e condicionado por sua forma inte-rior. Eles nao se deixam levar ao fim, entendido como totalidade deuma experiencia temporal circular. Em Kafka, a dialetica do expres-sionismo leva a uma adaptacao aquelas narrativas de aventurascompostas por series de episodios. Kafka gostava de romancesdeste tipo, Adotando esta tecnica, afastava-se ao mesmo tempo dacultura literaria estabelecida. Entre seus modelos conhecidos, deve-riamos acrescentar, ao lado de Walser, provavelmente 0 inicio doArthur Gordon Pym de Poe, e muitos capitulos do Amerika- M iidemde Kiirnberger, como por exemplo a descricao de uma moradianova-iorquina. Kafka, porem, se solidariza sobretudo com generosliterarios ap6crifos. Do romance policial ele aprendeu os traces desuspeita universal, profundamente incrustada na fisionomia daepoca conternporanea. Neste tipo de romance, 0mundo das coisaspredomina sobre 0 sujeito abstrato, e Kafka utiliza isso para trans-formar as coisas em emblemas onipresentes. Suas grandes obras saosemelhantes a romances de detetive, nos quais fracassa a descobertado crirninoso. Mais instrutiva ainda e a relacao com Sade, ainda quenao se saiba ao certo se Kafka 0 conhecia. Como os inocentes deSade - e tambem dos filmes de terror americanos e dos desenhosanimados - , 0 sujeito kafkiano, especialmente 0 emigrante KarlRossmann, pula de uma situacao desesperadora e sem saida paraoutra: as estacoes da aventura epica transforrnam-se em uma hist6-ria de sofrimento. 0 nexo imanente se concretiza como uma fugade prisoes. Na ausencia de contraste, 0monstruoso torna-se, comoem Sade, 0mundo inteiro, torna-se norma, em oposicao ao irrefle-tido romance de aventuras, que se concentra em situacoes extraor-dinarias apenas para confirmar as situacoes normais. Mas na obrade Sade, e tambem na de Kafka, a razao esta por tras da obra, reve-lando a Ioucura objetiva atraves do principium stilisationis. Ambospertencem ao Iluminismo, mas em graus diferentes. Em Kafka, 0golpe de esc1arecimento eo "assim e" [So ist es].Ele relata como ascoisas acontecem de verdade, mas sem qualquer ilusao a respeito dosujeito, que na extrema consciencia de si mesmo - de sua .nuli-dade- joga-se no monte de entulho, da mesma forma como amaquina da morteprocede com os que the foram confiados. Kafka

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    Epica expressionista e urn paradoxo. Ela narra aquilo que nao sedeixa narrar, 0 sujeito inteiramente voltado sobre .si mesmo e aomesmo tempo privado de liberdade, urn sujeito que na verdade naoexiste enquanto tal. Dissociado nos momentos compulsivos de suapropria confinacao e privado da identidade consigo mesmo, 0sujeito ignora qualquer tempo de vida. A interioridade desprovidade objetos e espac;o, no sentido preciso de que tudo 0 que elapro-duz obedece a lei da repeticao intemporal. A relacao da obra deKafka com a a-historicidade deve-se em grande medida a esta lei.Nao the e possivel constituir uma forma que possua 0 tempo comounidade de sentido interno. Kafka executa a sentenca que pesa sobrea grande epica, uma sentenca cuja forca ja havia sido observada

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    escreveu a robinsonada total, a histor ia de urn perfodo em que cadaurn se torna 0seu proprio Robinson, boiando numa jangada a deri-va, carre gada de objetos reunidos as pressas. A ligacao entre a his-toria de Robinson Crusoe e a alegoria, que tern origem no proprioDefoe, nao e estranha a tradicao do grande Iluminismo, pertencea luta da burguesia contra a autoridade da Igreja. Na oitava secaodos "Axiomatas" dir igidos contra 0 pastor ortodoxo Goeze porLessing, urn escritor que Kafka estimava muito, consta 0relato deurn "pastor luterano do Palatinado, que foi deposto" e de sua fami-li a, "formada por orfaos de ambos os sexes". 0 barco vai a pique,mas a familia se salva, junto com urn catecismo, em urn pequenogrupo de ilhas inabitadas das Bermudas. Depois de varias geracoes,urn missionario de Hessen encontra na ilha os descendentes dasvit imas do naufragio. Eles falam urn alemao "constituido unica-mente por proverbios e express6es do catecismo de Lutero", Elessao ortodoxos, "deixando de lado algumas coisas sem importancia,o catecismo, obviamente, se estragou no decorrer deste seculo emeio, e nao restou outra coisa senao a encadernacao, No meio dasduas pe~as da encadernacao, diziam eles, estava escrito tudo 0 quesabemos. Estava escrito, meus caros!, disse 0 missionario. Nao,ainda esta escrito, disseram eles. Nos nao sabemos ler, nem sabe-mos bern 0 que significa 'ler': mas nossos pais ouviram dos seuspais a leitura. E estes conheceram 0 homem que fez a encaderna-~ao. 0 homem se chamava Lutero e viveu poucos anos depois deCristo". Talvez a "parabola" de Lessing esteja ainda mais proximado estilo de Kafka, pois compartilha com ele urn momento, certa-mente involuntario, de obscuridade. 0 Pastor Goeze, a quem 0texto foi enderecado, a compreendeu de mane ira totalmente equi-vocada. A propria forma da parabola, porern, nao pode ser sepa-rada das intencoes i luministas. N a medida em que sao atribuidossignificados e teorias humanas a elementos da natureza - 0asnode Esopo nao descende do de Ocnos? -, 0 espirito se reconheceneles. Assim ele queb ra 0 encanto rnft ico, ao qual 0 seu olharresiste. Algumas passagens da parabola de Lessing, que Kafka que-ria reeditar sob 0 t itulo de "0 palacio em chamas", sao significati -vas justamente porque ignoram completamente a consciencia daimplicacao mitica despertada por Kafka em algumas passagensanalogas. "Urn rei sabio e trabalhador de urn reino imenso teve na

    sua capital urn palacio de extensoes incomensuraveis e de arquite-tura peculiar. 0 palacio era imenso, porque nele 0 rei reuniu todasas pessoas de que precisava como auxiliares ou instrumentos do seugoverno. A arqui tetura era pecul iar: pois ele nao estava de acordocom nenhum dos estilos normais .. .Depois de muitos e muitos anoso palacio ainda existia na sua pureza e integridade, no mesmoesta-do em que ficou quando os construtores colocaram os iiltimos deta-lhes: por fora urn pouco incompreensivel, por dentro tudo cheio deluzes e sentido. Quem se pretendia especialista em arqui tetura sechocava sobretudo por causa dos lados externos, que eram inter-rompidos por janelas, colocadas ao acaso, janelas grandes e peque-nas, redondas e quadradas, mas tambem urn numero enorme deportas e portoes de diferentes formas e tamanhos . .. As pessoas naoentendiam para que serviriam tantas e tao diferentes entradas, por-que urn portal bern grande de cada lado seria provavelmente maisconveniente e serviria para os mesmos fins. Pois parece haverpouco sentido na crenca de que, gra~as as muitas entradas, cadaurn que fosse chamado ao palacio chegaria ao respectivo lugar pelocaminho mais curto e direto. E assim surgiram entre os especialis-tas diversas polernicas, da qual participaram com maior veemenciajustamente aqueles que tiveram poucas possibilidades de conhecero interior do palacio. Havia ainda algo que se supunha levaria auma solucao rapida e facil para a polemics, mas isso antes a compli-cou ainda mais, alimentando a sua tenaz continuidade. Acreditava-se tambem que existiam velhas plantas elaboradas pelos primeirosmestres construtores do palacio: estas plantas tinham explicacoes esinais, cuja lingua e cuja caracterist ica entretanto ja .haviam sidoesquecidas ... Certa vez, quando a briga sobre as plantas nao haviaterminado, mas de certa forma se arrefecido - escutou-se derepente, a meia-noite, a voz do vigia: Fogo no palaciol.i. Cada umse levantou, e cada urn, como se 0 fogo nao fosse no palacio, mas nasua propria casa, correu para pegar 0que havia de mais precioso -a planta do palacio: Vamos pelo menos salva-Ia, pensavacada urn.o palacio nao pode incendiar-se de modo mais verdadeiro 1.1doque aquil, . . Por causa dos briguentos, 0palacio poderia ter sido defato destrufdo pelo fogo, se tivesse sido incendiado. - Mas 0vigiaassustado havia confundido uma luz boreal com urn incendio."Seria necessario apenas algumas mudancas de enfase para fazer

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    desta ~istoria, qU: e urn elo de liga~ao entre Pascal e a Diapsalmataad se tpsum de Kierkegaard, uma narrativa de Kafka. Bastaria queele acentuasse ainda mais os traces bizarros e monstruosos da cons-t~~ao, em detrimento de sua funcionalidade, e afirmasse que 0pala-CIO nao poderia queimar mais verdadeiramente do que na planta,como uma resposta aos decretos das chancelarias que tern comotinico fundamento juridico 0quod non est in aetis non est in mundoe a apologia da religiao contra a sua exegese pedante se trans-formaria em demincia do poder numinoso, atraves de sua propriaexegese. A obscuridade e 0rompimento da intencao parabolica saoconsequencias do Iluminismo. Quanto mais 0 Iluminismo reduz aobjetividade a uma dimensao humana, tanto mais desconsoladores eimpenetraveis sao os esbocos do puro existente, que ele nunca con-segue dissolver totalmente em sua subjetividade e do qual ele dequa,l~uer modo i . a .sugou tudo 0 que era familiar. Kafka reage, noe~plflto do Iluminismo, a urn retrocesso a mitologia. Sua obra foidiversas vezes comparada a cabala. Se isso e ou nao razoavel,somente os conhecedores do texto judaico podem decidir. Mas sere~h.nente a ~istica judaica, em sua fase tardia, desaparece no Ilu-mirusmo, entao temos que dar atencao a afinidade do iluminista tar-dio Kafka com a mistica antinomista.

    diante do radicalmente desconhecido. A obra de Kafka retem 0momenta no qual a fe purificada se revela como impura, e a des-mitologizacao como demonologia, Ele permanece iluminista, con-tudo, na tentat iva de ret ificar 0 mito que surge sob esta forma,retomando 0processo contra ele, como se houvesse uma instanciade revisao, As variacoes de mitos encontrados em seu espol io tes-temunham seu esforco por uma tal revisao, 0 romance 0 processo eo processo sobre 0 processo. Na condicao de critico, nao na de her-deiro, Kafka se apropriou de alguns motivos da obra Medo e tremor,?e Kierkegaard ..Nas peti

  • 5/7/2018 ADORNO, Theodor - Anotaes sobre Kafka in Prismas - crtica cultural e sociedade

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    THEODOR W. ADORNO PRISMAS

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    em que 0 sujeito deixa de lado a teimosia. Kafka nao glorifica 0mundo pela subordinacao, antes resiste a ele pela nao-violencia.Diante dela, 0poder deve reconhecer-se como aquilo que realmentee . Kafka conta com isso. 0 mito deve se prostrar diante da propriaimagem no espelho. Os herois de 0 processo e de 0 castelo tornam-se culpados nao por sua propria culpa - eles nao tern nenhuma -,mas porque procuram trazer a justica para 0 seu lado. "0 pecadooriginal, a antiga injustica cometida pelo hornem, consiste na cen-sura que 0 homem faz e nao deixa de fazer, ao afirmar que 0pecadooriginallhe foi imposto." Por isso seus pequenos discurs os, sobre-tudo os do agrimensor, tern algo de tolo, idiota e ingenue: 0 seuborn senso aumenta 0 ofuscamen to contra 0 qual eles se levantam.Kafka quer, atraves da reificacao do sujei to, exigida de antemaopelo rnundo, sobrepujar , na medida do possfvel, essa reificacao: 0mortal torna-se mensagem da paz sabatica. Este e 0avesso da teoriade Kafka acerca da morte fracassada: que a criacao danificada naopossa mais morrer e a unica promessa de imortalidade, uma pro-messa que 0iluminista Kafka nao pune com a proibicao de imagens.Ele se apega a salvacao das coisas, daqueles objetos que nao estaomais envolvidos na rede de culpa, que nao podem mais ser troca-dos, que sao inuteis, 0 sentido mais profundo do obsoleto na obrade Kafka refere-se a estas coisas. 0 seu mundo de ideias - comono "Teatro natural de Oklahoma" - assemelha-se a urn mundo desaldos de lojas: nenhum teologoumenon adaptar-se-ia melhor a eledo que 0 titulo de urn cinema americano de cornedia: Shopwornangel. Enquanto no interior das casas, onde as pessoas moram, hadesgraca, nos cantos e nas escadas onde brincam as criancas ha espe-ranca. A ressurreicac dos mortos deveria ter lugar no cerniterio deautomoveis, A inocencia do imitil e 0 contraponto ao parasitario:"0 ocio e 0inicio de todo vicio, e a coroacao de todas as virtudes".Segundo 0testemunho da obra de Kafka, toda posit ividade, todacontribuicao, poder-se-ia mesmo dizer que todo trabalho que repro-duz a vida apenas prornove 0 intrincamento, "Fazer 0 negativo e 0nosso dever: 0 positive ja nos foi dado." 0 unico remedio contra aquase inutilidade da vida que nao vive e a inutilidade plena. E assimque Kafka confraterniza com a morte. A criacao predomina sobrea vida. 0 Selbst, a fortaleza mais segura do rnito, e destruido, namedida em que se rejeita 0 engodo da mera natureza. "0 artista

    se encaminharia para a entronizacao da loucura. 0 mundo e antes'revelado como sendo tao absurdo quanto 0 seria para 0 intellectusarchetypus. 0 reino medic do condicionado torna-se infernal sobos olhos artificiais dos anjos. Kafka tensiona 0 expressionismo ateeste extremo. 0 sujeito se objetiva na medida em que rescinde 0ultimo acordo. E verdade que isso e aparentemente contraditadopor aqui lo que e possivel ler de teoria em Kafka, e tarnbern pelosrelatos do respeito bizantino que ele, como pessoa, grotescamentededicava aos poderes mais bizarros. Mas a ironia desses traces, mui-tas vezes notada, faz parte do proprio conteudo doutrinario. Kafkanao pregou a humildade, mas urn comportamento mais testado con-tra 0mito: a asnicia. Para ele, a unica, mais fraca e menor possibili-dade de 0mundo nao ter razao e a possibilidade de the dar razao,Como 0 cacula nos contos de fada, a pessoa deve tornar-se discretae pequena, uma vftima indefesa que nao insiste no seu direito,segundo os costumes do mundo que reproduz ininterruptamente ainjustica, 0 humor de Kafka deseja reconciliar 0mito atraves deuma especie de mimica, Tambem nisto ele segue aquela tradicao doIluminismo que comeca no mito homerico e vai ate Hegel e Marx,nos quais 0ate espontaneo, 0ato da liberdade, se confunde com arealizacao da tendencia objetiva. Desde entao, entretanto, 0 pesoda existencia, estranho a toda relacao com 0sujeito, aumentou, ecom ele a inverdade da utopia abstrata. Como ha milhares de anos,Kafka procura a salvacao pela incorporacao da forca do inimigo, 0encanto da reificacao deve ser quebrado, na rnedida em que 0 pro-prio sujeito sereifica. 0 sujeito deve executar aquilo de que padece."Pela ultima vez psicologia" - os personagens de Kafka sao reco-mendados a deixar suas almas no guarda-roupa no instante da lutasocial, na qual a unica possibilidade do individuo burgues consistena negacao de sua propria cornposicao e da situacao de classe quea condenou ao que ele e. Assim como seu compatriota GustavMahler, Kafka fica do lado dos desertores. Em vez da ideia de dig-ni.dade humana, conceito supremo da burguesia, aparece em Kafkaa ideia da salutar semelhanca do hornem com 0 animal, presente emgrande parte de suas narrat ivas. 0 rnergulho no interior da indivi-duacao, que se completa nessa reflexao, depara com 0 principio dapropria individuacao, aquele "colocar-se a si mesmo" sancionadopela filosofia: a teimosia mitica. A reparacao e procurada na medida

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    esperou ..ate K.se acalmar edepois .~ ja que'nao, tinha outra sada-1 ,I, d 0 OJ I, fresorveu continuar escrevendo ..'_0 pnmeiropequeno traco que rez

    foi, ,par ',a:K, um a libertacao, mas eta evidente qu e 0 artists s6 foid d I, 1 - 1- AM - - b " " . . . . .capaz __proouzr- 0 com extrema relutancia; aescrita tamoem nao,. - boni b d f-'I-era maistao bonita, ,p ' ,are 'Cla so' oretudo que raltava ouro, ,0 t ra~IO sed- " " ' I id ,. 1 f = i ,1 d E o J - - . . ,l e : s t e ' n _ I ,a .p "aJl l.1 0 ,e IDs;egur 'o e a , e t r a , II IC IOUmu i to : g r: a n ,_ ,e , , __ :_ca ,m , , J a- .estava 'qu,as:,eterminado quando '0 artists bateu furioso com u.m P i e '

    no nimulo, de tal modo que a terra, ern tomo voou p',a~ra0 alto,Pinalmente K",0 compreendeu; nao' havia mais temp0 parapedir-I h e de sc ul p as ; e a v o u c o m tO ld O IS 0'9: I d e " d ' O I S 'a t e r r a qu,e ' ,niol oferecia

    " .1 i O ; ~ d - ~ , d O , ~ I - I . . . . [0resistencia; tU.IOi parecia preparaao: so' para salvar as aparencias, I, . h . ' I 'd '- d' - - o . , 10 ' . . d de }I b . 1 , . d 1tin __1mo disposta uma nna camana ue tierra; ogo emoaixo ceia se

    abria urn gr-and'eburac'o de p a re des I n gr eme s, no q ua l K . m e rg ulh ouvirado de costas , p o r uma s ua ve corrente. M a s enq uanto 1 3.embaixoele era acolhidopela profundeza impenetravel, a cabeca ainda ergui-da sobre a nuca, la , em .cimao seu nome disparava sobre a pedracom possantes ornatos, Encantado com ,a vis,ao, ele despertou,"Somente 10 nome revel '0pela morte natural, e nao a alma viva , res-

    d 1- h .; d ' '.' 1'1 hponaepe 0 que I I;a de nnortat no nomem,

    'N " 1 - t " " C ' 0 , - ' a " s " _ i,._ . : __ . ' . . . . ~ ' . . . . : _ ..~~

    1 Isso eo nd ena t od a s 'as adapt:a,~oesteaerais, ,0 d ram a e po ss fve l apenas onde a l iberdade, e 'v is ivel, mesmo 'q,ue ela seja 0 resultado d e u m a luta,;, todo outre tip o d e ,lll,i.o e u t i L OS'personagens de Kafka S : e L O a tin gi do s p or u rn m a, t,a .moscas, antes de comeearem a Be .mo-. ~ . 1 . h . . . 0 " d O 1 1 1 0 o . o d 'v im entar, Q uem os tev aao p,a.co como _-erO'ISsomente 08 r un ctn an za , '_ autor denpaludes; 'reria permanecido Andre. Gide, se el e nio t ivesse buscado .r~f,aze'~P'TOCf'SS(Ji,.EI,e 3 1 0 1menos na o d ! e v l e r i a ter e s q u e e i d o ::mmeio ,a , [ ,endencia do analfabetismogenem-l iz ado, , que0meio n a , Q I e :algoindifereD'ce : p ' a r , a ISobras de arre d i , g , n l 8 do nome, A s a da p -deveri d- ":'_..J " -' ' 1 -- . . . .1t l~oles' '_Ieverhtm s e r r e se r v ac as a mnus tr ta c u [urcu.

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