Adorno_O Monopolio Da Violencia No Brasil

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    O MONOPLIO ESTATAL DA VIOLNCIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORNEA

    SRGIOADORNO1

    In t roduo

    O crescimento da violncia urbana, em suas mltiplas modalidades -

    crime comum, crime organizado, violncia domstica, violao de direitos

    humanos - vm se constituindo uma das maiores preocupaes sociais da

    sociedade brasileira contempornea nas duas ltimas dcadas. O sentimento

    de medo e insegurana diante do crime exacerbou-se entre os mais distintos

    grupos e classes sociais, como sugerem no poucas sondagens de opiniopblica. Trata-se de um problema social que, por um lado, promove ampla

    mobilizao da opinio pblica, o que se pode observar atravs das sondagens

    de opinio, atravs da insistente ateno que lhe conferida pela mdia

    impressa e eletrnica e atravs da multiplicao de fruns locais, regionais e

    nacionais; por outro lado, vem promovendo impacto sobre o sistema de justia

    criminal, influenciando a formulao e implementao de polticas pblicas de

    segurana e justia (tambm chamadas de polticas pblicas penais). Neste

    domnio, o sistema de justia criminal vem se mostrando completamente

    ineficaz na conteno da violncia no contexto do estado democrtico de

    direito. Problemas relacionados lei e ordem tm afetado a crena dos

    cidados nas instituies de justia, estimulando no raro solues privadas

    para conflitos nascidos nas relaes sociais e nas relaes intersubjetivas.

    No Brasil, no h ainda uma tradio de estudos nesta rea da vida

    social, tal como j h nos Estados Unidos, Canad e Europa ocidental. Embora

    tenha despertado o interesse acadmico e cientfico por problemas

    relacionados ao crescimento dos crimes, organizao das agncias

    encarregadas de exercer controle social, em especial polcia e prises, aos

    efeitos do crime organizado, sobretudo o narcotrfico, sobre as instituies da

    sociedade civil e da sociedade poltica, ainda o que se sabe pouco. De modo

    geral, as polticas penais permanecem sendo orientadas ao sabor do estoque

    de conhecimento acumulado por intermdio de culturas organizacionais que

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    agenciam interesses corporativos os mais diversos e, no raro, impedem que

    problemas reais possam ser efetivamente atacados a curto, mdio e longo

    prazos. Fazer com que tais polticas sejam minimamente orientadas por uma

    coleo de dados estatsticos confiveis e de informaes qualitativas

    extradas de pesquisas realizadas no domnio das cincias sociais consiste

    certamente um dos maiores desafios construo de modelos de justia e de

    controle social no apenas eficientes e eficazes mas tambm adequados ao

    Estado democrtico de direito.

    Em recente reviso da literatura, para este mesmo projeto, Alba Zaluar

    (1999) demonstrou o quanto o tema da violncia nesta sociedade, a despeito

    de recente para as cincias sociais brasileiras, j acumulou um aprecivel

    acervo de informaes, resultados de pesquisas, perspectivas terico-

    metodolgicas e, inclusive, acirradas polmicas e debates. Elevados

    categoria de um dos mais dramticos problemas sociais nacionais, os fatos da

    violncia tm tido forte impacto no meio acadmico. Para alm de uma mera

    preocupao para com a fenomenologia da violncia, - algo talvez mais afinado

    com uma perspectiva que se poderia identificar como prpria da tradio

    criminolgica - a pesquisa brasileira identificou neste campo um lugar para

    decifrar, em parte, os rumos contemporneos desta sociedade. Em parte por

    que, neste campo, revelam-se sensveis tenses em mltiplos planos de

    anlise social. Para indicar apenas trs: primeiro, tenses nas relaes entre

    indivduos, grupos e instituies sociais; segundo, tenses nas relaes entre

    sociedade civil, poder poltico e estado; terceiro, tenses nas relaes entre

    processos sociais, estilos de vida e o mundo das representaes simblicas.

    Mas, em parte tambm, porque o tema da violncia, em suas conexes com

    direitos, justia, cidadania, estado de direito, direitos humanos coloca emevidncia os rumos da democracia brasileira, sua institucionalizao e

    consolidao, seu futuro e seus desafios.

    No se pretende, neste ensaio, realizar mais um balano da literatura

    especializada. Meu antigo ensaio, parcial verdade, publicado, no BIB, no

    incio da dcada passada (Adorno, 1993), foi rapidamente superado, conforme

    o demonstram os estudos posteriores de Zaluar, j citado e outro, ainda mais

    1 Professor Associado do Departamento de Sociologia da USP e coordenador do Ncleo deEstudos da Violncia - NEV/USP.

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    recente, realizado por Kant de Lima e outros (2001). Em ambas contribuies,

    possvel percorrer os meandros da literatura especializada, produzida por

    pesquisadores brasileiros, quer em termos temticos quer em termos terico-

    metodolgicos. Em particular, Zaluar promoveu reconstruo densa dos termos

    do debate poltico e acadmico, perquirindo com rigor a constituio deste

    campo cientfico no milieu acadmico brasileiro, seus alcances, impasses e

    paradoxos. Kant e colaboradores, por sua vez, promoveram seu balano com

    base nas informaes disponveis nos Diretrios dos Grupos de Pesquisa no

    Brasil, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico -

    CNPq. Puderam avaliar a distribuio regional da produo; constaram a maior

    concentrao no domnio das cincias sociais e identificaram os recortes

    temticos de maior relevncia2. Sob esta perspectiva, talvez nada houvesse a

    ser acrescentado, pelo momento.

    De qualquer forma, em toda essa literatura h referncias que no

    podem ser negligenciadas, como de resto ocorrem em outros campos de

    saber. Compreendem referncias produzidas por scholars, na medida em que

    firmam perspectivas e, de certo modo, influenciam o debate acadmico,

    inspiram a formulao de modelos de anlise e interpretao que acabam

    orientando a produo subseqente de estudos empricos, desde surveysat

    estudos de caso. Intervem com freqncia no debate pblico em geral,

    alcanando no raro os formuladores de polticas pblicas. Em poucas

    palavras, estimularam a produo de um estilo prprio de pensamento,

    representado no apenas por um ponto de vista terico determinado, mas

    sobretudo por um modo, igualmente determinado e prprio, de construir seus

    objetos.

    No cogitei produzir uma lista exaustiva desses scholars, o quedemandaria investigao mais aprofundada do que me propus, at porque o

    campo recobre mltiplos recortes temticos e perspectivas que aqui no sero

    contemplados, como a violncia nas relaes de gnero, nas relaes de

    classe, nas relaes raciais e tnicas, no mundo das relaes agrrias.

    Concentro minhas preocupaes em torno de alguns estudiosos, em particular

    da violncia urbana, cuja presena nos fruns acadmicos e no-acadmicos

    2 Recentemente, editei dossier sobre violncia, no qual tive a oportunidade de apresentar umbreve balano da literatura estrangeira. Cincia & Cutura, 54(1), jul./set., 2002.

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    tm sido marcante e cuja pesquisa tm sido divulgada atravs de regular

    publicao sob a forma de livros, captulos de coletneas, ensaios, artigos

    veiculados em revistas especializadas no Brasil e no exterior e inclusive

    memrias. Ademais, tm contribudo para a formao de novos pesquisadores,

    constituindo plos de referncia para a orientao de teses acadmicas. Em

    particular, uma obra recentemente publicada, conheceu ampla repercusso no

    debate pblico e acadmico: Soares, L.E. (2000), Meu casaco de general[So

    Paulo: Cia. das Letras]. Nela, possvel percorrer os meandros de um debate

    contemporneo: o impacto do crescimento e das novas modalidades de

    violncia sobre o futuro da democracia brasileira. Em particular, ela explora um

    dos objetos caros sociologia poltica - o monoplio estatal da violncia fsica

    legtima, em torno do qual gravitam outros temas tais como: 1- soberania

    poltica e o futuro do Estado-nao; 2- lei e da ordem versusdireitos humanos;

    e 3- legitimidade, autoridade e justia pblica. Trata-se de temas que via de

    regra comparecem correlacionados no texto indicado. No pretendi inventariar

    idias a respeito de cada um desses temas, embora este ensaio no possa,

    mesmo indiretamente, abster de faz-lo. De modo geral, procurei situar a

    reflexo brasileira no contexto das tradies que dominaram esses recortes

    temticos bem como de alguns de seus desdobramentos contemporneos.

    Resolvi coloc-los - reflexo brasileira e tradio estrangeira - em confronto

    com o propsito de responder inquietaes que povoam nosso imaginrio de

    cientistas sociais, tais como: aquelas tradies fazem eco em nossas

    reflexes? Em qual direo e sentido? Nossas singularidades contrastam com

    as heranas europias e norte-americanas nas cincias sociais modernas, em

    especial no campo da sociologia poltica? Em que lugar nos colocamos face ao

    confronto: o debate avanou, permanece como estava h duas dcadasquando os problemas de violncia e direitos humanos comeavam a inquietar

    os cientistas sociais brasileiros ou adentrou caminhos prprios? Quais desafios

    se pem para o imaginrio dos cientistas sociais brasileiros?

    Por certo, responder a esse conjunto de temas recomendaria, como

    procedimento mais adequado, revisitar a literatura j percorrida por Zaluar e

    Kant de Lima. Por mais atraente que fosse faz-lo, creio tambm que a obra

    selecionada, de algum modo, representativa da produo recente, atendeaos objetivos a que me props e, mais do que, isto permite um dilogo

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    interessante com Zaluar e Kant de Lima. Enfim, procuro atender aos propsitos

    deste projeto no sentido de promover, mais do que balanos e revises de

    literatura3, ensaios com enfoque singular com vistas a proporcionar novos

    olhares, estimular a contraposio de idias e enriquecer o debate terico e

    metodolgico.

    O ensaio est organizado em trs partes. Na primeira, exploro o debate

    atual sobre violncia legtima. Em seguida, apresento um breve resumo da

    obra enfocada. Finalmente, examino de forma um pouco mais detida alguns

    recortes temticos que permitem confrontar nossas reflexes sobre violncia e

    democracia na sociedade brasileira contempornea.

    O monoplio estatal da vio lnc ia

    A moderna sociedade e Estado democrticos floresceram, como se

    sabe, no contexto da transio do feudalismo ao capitalismo, verificado na

    Europa ocidental entre os sculos XV e XVIII4. No curso desse processo,

    operaram-se substantivas transformaes na economia, na sociedade, no

    Estado e na cultura. A dissoluo do mundo social e intelectual da Idade Mdia

    acelerou-se no ltimo quartel do sculo XVIII, conhecido como a era das

    revolues (Hobsbawn, 1977; Nisbet, 1977), convergindo para o fenmeno

    que Max Weber nomeou desencantamento do mundo. Foi no bojo desse

    processo de desencantamento das vises mgicas do mundo e de laicizao

    da cultura que se consolidaram as sociedades modernas, caracterizadas por

    acentuada e progressiva diferenciao de suas estruturas sociais e

    econmicas, no interior das quais nasceram e se desenvolveram a empresa

    capitalista e o Estado burocrtico e se separaram da esfera religiosa a cincia,a arte e a moral (Weber, 1981).

    No curso desse processo, o Estado de Direito vem cumprindo papel

    decisivo na pacificao da sociedade. O Estado moderno constituiu-se como

    centro que detm o monoplio quer da soberania jurdico-poltica quer da

    3 Creio que nesse domnio das revises e balanos de literatura, a Revista do BoletimBibliogrfico em Cincias Sociais - BIB, publicao tradicional da ANPOCS, tem se constitudoem veculo privilegiado, por excelncia, alm de repositrio da memria nacional em cincias

    sociais.

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    violncia fsica legtima, processo que resultou na progressiva extino dos

    diversos ncleos beligerantes que caracterizavam a fragmentao do poder na

    Idade Mdia (Weber, 1970; Bobbio, 1984). Porm, o simples fato dos meios de

    realizao da violncia fsica legtima estarem concentrados nas mos do

    Estado no foi condio suficiente para assegurar a pacificao dos costumes

    e hbitos enraizados na sociedade desde tempos imemoriais. Da a

    necessidade de um direito positivo, fruto da vontade racional dos homens,

    voltado, por um lado, para restringir e regular o uso dessa fora e, por outro

    lado, para mediar os contenciosos dos indivduos entre si. A eficcia dessa

    pacificao relacionou-se, como demonstrou Elias (1990), com o grau de auto-

    conteno dos indivduos, ou seja, sua obedincia voluntria s normas de

    convivncia, bem como se relacionou com a capacidade coatora do Estado

    face queles que descumprem o direito.

    Na histria do moderno pensamento ocidental, o conceito de violncia

    nasce atrelado ao pressuposto antropolgico da absoluta autonomia do

    indivduo. Tudo o que pudesse constrang-la ou restringi-la de alguma forma

    poderia ser ento qualificado de violncia. Sob esta perspectiva, no havia

    como distinguir poder, coao, violncia; mais propriamente, no havia como

    diferenciar poder legtimo e ilegtimo, o justo e o injusto (Colliot-Thlene, 1995).

    Foi preciso portanto uma complexa elaborao intelectual que equacionasse

    essa ambivalncia. Como se sabe, a equao final foi alcanada com Max

    Weber e sua clebre identificao do Estado com o monoplio da violncia,

    cujas razes se encontram na concepo kantiana de Estado.

    Kant parte da distino entrepotestasepotentia, entre fora e potncia.

    Kant recusa a identidade do Estado como pura potncia; do mesmo modo,

    recusa a identidade do Estado com o princpio da fora institucionalizada, isto, como o aparato institucional para realizao da violncia. Em Kant, o Estado

    , por excelncia, "a unificao de uma multiplicidade de homens sob leis

    jurdicas" (Doutrina do Direito, apud Colliot-Thlene, 1995). Do mesmo modo

    do que outros agrupamentos polticos, o Estado um empresa de dominao

    de uns sobre outros, por meio do recurso violncia ou ameaa de seu

    emprego. No entanto, trata-se de uma violncia legtima, porque autorizada

    4A descrio do processo de construo do Estado moderna e de pacificao da sociedade foiextrada de texto anteriormente publicado (Adorno, 1998).

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    pelo direito. isto que faz com que lhe seja possvel diferenciar fora coatora

    do Estado do puro e simples recurso violncia para impor a vontade de uns

    sobre outros. Em Kant, contudo, o direito aparece como o oposto da violncia.

    Como sublinha Bobbio (1984 [1969]), o incio das monarquias modernas foi

    caracterizado por um duplo processo de unificao: 1- a unificao de todas as

    fontes jurdicas na lei; 2- a ordenao de todos os ordenamentos jurdicos

    superiores e inferiores no ordenamento jurdico estatal. Desse modo, "no se

    reconhece mais outro ordenamento jurdico que no seja o estatal, e outra

    fonte jurdica do ordenamento estatal que no seja a lei" (p.13). Em

    decorrncia, o poder estatal um poder absoluto porque emerge como o nico

    capaz de produzir o direito, vale dizer, produzir normas vinculatrias vlidas

    para todos os membros de uma sociedade. Da a identidade entre Estado,

    poder e lei5.

    Guardadas sutis diferenas, Weber perfila, nesta matria, a tradio

    kantiana ao afirmar: "por estado deve entender-se um instituto poltico de

    atividade contnua, quando e na medida que seu quadro administrativo

    mantenha com xito a pretenso ao monoplio legtimo da coao fsica para a

    manuteno da ordem vigente" (Weber, 1974 [1921], v.1, p.43-44). No ensaio

    a poltica como vocao(1970 [1918-19]), ele complementa: "Em nossa poca,

    entretanto, devemos conceber o Estado contemporneo como uma

    comunidade humana que, dentro dos limites de determinado territrio - a noo

    de territrio corresponde a um dos elementos essenciais do Estado - reivindica

    o monoplio do uso legtimo da violncia fsica. , com efeito, prprio de nossa

    poca no reconhecer, em relao a qualquer outro grupo ou aos indivduos, o

    direito de fazer uso da violncia, a no ser em casos em que o Estado o tolere:

    o Estado se transforma, portanto, na nica fonte do 'direito' violncia" (p.56).E continua: "o Estado consiste em uma relao de dominaodo homem sobre

    o homem, fundada no instrumento da violncia legtima (isto , da violncia

    considerada como legtima), O Estado s pode existir, portanto, sob a condio

    de que os homens dominados se submetam autoridade continuamente

    5Como sugere Colliot-Thlene (citado), so mais complexas as reflexes de Kant a respeitodas relaes entre Estado, direito e violncia. Em particular, o uso bastante restritivo do

    conceito de violncia. Convm sublinhar todo o esforo kantiano de demonstrar que o opostoda violncia - em particular daquela que envolve a imposio da vontade de uns sobre outrosem um contexto pr-estatal - no a ausncia de violncia, porm o direito.

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    reivindicada pelos dominadores" (p.57). Da, sua clebre tese dos trs

    fundamentos legtimos da dominao: a tradio, o carisma e a legalidade.

    O conceito weberiano de estado envolve, pelo menos, trs componentes

    essenciais: monoplio legtimo da violncia, dominao e territrio. O estado

    moderno justamente a comunidade poltica que expropria dos particulares o

    direito de recorrer violncia como forma de resoluo de seus conflitos

    (pouco importando aqui a natureza ou o objeto que os constitui). Na sociedade

    moderna, no h, por conseguinte, qualquer outro grupo particular ou

    comunidade humana com "direito" ao recurso violncia como forma de

    resoluo de conflitos nas relaes interpessoais ou intersubjetivas, ou ainda

    nas relaes entre os cidados e o estado. Sob esta perspectiva, preciso

    considerar que, quando Max Weber est falando em violncia fsica legtima,

    ele no est sob qualquer hiptese sustentando que toda e qualquer violncia

    justificvel sempre que em nome do estado. Fosse assim, no haveria como

    diferenciar o estado de direito do poder estatal que se vale do uso abusivo e

    arbitrrio da fora. Justamente, por legitimidade, Weber est identificando

    limites ao emprego da fora. Esses limites esto, em parte, dados pelos fins da

    ao poltica que dela se vale. So duas as situaes "tolerveis": por um lado,

    emprego de fora fsica para conter agresso externa provocada por potncia

    estrangeira e assegurar a independncia de estado soberano; por outro,

    emprego da fora fsica para evitar o fracionamento interno de uma

    comunidade poltica ameaada por conflitos internos e pela guerra civil. Em

    nenhuma dessas circunstncias, porm, a violncia tolerada desconhece

    limites.

    Esses limites esto ditados pelos fundamentos que regem a dominao.

    Na sociedade moderna, a violncia legtima justamente aquela cujos fins -assegurar a soberania de um Estado-nao ou a unidade ameaada de uma

    sociedade - obedece aos ditames legais. Portanto, o fundamento da

    legitimidade da violncia, na sociedade moderna, repousa na lei e em estatutos

    legais. Aqueles que esto autorizados ao uso da violncia o fazem em

    circunstncias determinadas em obedincia ao imprio da lei, isto , aos

    constrangimentos impostos pelo ordenamento jurdico. Legitimidade identifica-

    se, por conseguinte, com legalidade. "Pode-se chamar de 'legtima' umadeciso ou uma ao conformes a um valor ou a uma norma" (Troper, 1995, p.

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    37). Deste modo, o monoplio estatal da violncia no significa apenas o

    exerccio exclusivo da violncia, porm o monoplio exclusivo de prescrever e

    por conseguinte de interditar a violncia (idem, p.39). Conseqentemente, h

    no pensamento weberiano forte identidade entre poder, dominao e controle

    da violncia. A violncia no , como para Hannah Arendt, o oposto do poder

    (Arendt, 1973 [1969]), porm um de seus fundamentos, que inclusive conferem

    ao estado sua capacidade de garantir as liberdades pblicas e civis.

    Quero, ainda, concentrar minha interveno no outro dos requisitos do

    Estado moderno: a noo de territrio. Posso entender que a noo de

    territrio e seu controle constitui assim requisito do controle estatal da

    violncia. Em outras palavras, no limite de um territrio determinado, o recurso

    violncia, apropriado por particulares, no pode ser nem legtimo, nem

    imperativo. Em resumo, o controle estatal do territrio requisito do controle

    estatal da violncia. Isso leva a pensar na noo de territrio. No o caso,

    neste momento, de promover um extenso inventrio sobre essa noo na

    tradio das cincias sociais (certamente h uma rica reflexo em quaisquer

    dos trs domnios que a compem). Sem pretender portanto sequer tent-lo,

    reporto-me a Foucault e seu tema da governamentalidade.

    Por governamentalidade, Foucault est entendendo duas coisas :

    primeiramente, razo de Estado (matria tratada marginalmente em sua obra);

    em segundo lugar, as relaes entre territrio, populao e segurana.

    Governar significa sobretudo gerir populaes e vida. Significa que uma das

    tarefas do governo proteger populaes e o que h de propriedade comum,

    isto , vida (conceito que foi inventado na modernidade). Populaes significam

    fora viva que, uma vez cultivadas e protegidas, sustentam a fora de uma

    nao no contexto de um conflito beligerante entre naes. Protegerpopulaes significa proteg-las (contra tudo que possa enfraquec-las) e

    aliment-las (da a necessidade de riqueza como requisito do fortalecimento

    das naes). O controle do territrio , sob este particular, essencial, pois ele

    assegura controle da riqueza. Em resumo, governar estabelecer uma certa

    relao entre as coisas e as pessoas, entre as riquezas e as populaes, entre

    o territrio e a proteo da vida. Governar resulta de um tripl : territrio,

    populao e segurana. (Inserir referncias)

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    Recente literatura tem questionado a pertinncia de pensar o monoplio

    estatal da violncia em nossa contemporaneidade nos termos em que foi

    proposto no clssico ensaio weberiano. Segundo Michel Wieviorka, o Estado

    se revela cada vez mais incapaz de controlar a economia, sendo forado, por

    exemplo, a recuar diante de circunstncias determinadas como as atividades

    informais, o mercado negro, o trabalho clandestino, tudo contribuindo para

    reforar solidariedades infra e transestatais, inscritas ou no em territrios

    precisos que no mais so os espaos estatais. No raro, o Estado pode,

    atravs da ao de seus agentes, praticar atos de violncia ilegtima. Em

    decorrncia, " cada vez mais difcil para os Estados assumirem suas funes

    clssicas. O monoplio legtimo da violncia fsica parece atomizada e, na

    prtica, a clebre frmula weberiana parece cada vez menos adaptada s

    realidades contemporneas" (Wieviorka, 1997, p. 19).

    Wieviorka est se referindo s sociedades ocidentais capitalistas que

    compem o chamado mundo desenvolvido. No tem por referncia o Estado

    em sociedades que, embora sob a gide do ocidente moderno, no teriam

    ainda concludo - se que devessem faz-lo ou vo ainda faz-lo - suas

    tarefas de modernizao econmica e poltica, inclusive a consolidao da

    democracia social, como o caso da sociedade brasileira. Se este argumento

    aceitvel, ento como se coloca o monoplio estatal da violncia em

    sociedades que jamais lograram, em sua histria social e poltica, alcan-lo

    efetivamente e que certamente no o lograro imersos que se encontram na

    avalanche do processo de globalizao, seja l o que isto signifique? E, mais,

    se considerarmos as tradicionais ausncias de claras fronteiras entre o pblico

    e o privado, entre as atribuies estatais de controle pblico da violncia e o

    largo espectro de recurso violncia privada como forma de resoluo deconflitos nas relaes sociais e interpessoais? E, se ainda acrescentarmos a

    esse quadro o rpido desenvolvimento do mercado privado de segurana que

    acentua ainda mais os obstculos para lograr o monoplio estatal da violncia?

    Cada vez mais vm se tornando comum, no debate acadmico, os

    obiturios do Estado-nao fundados no argumento, entre outros, da perda do

    monoplio estatal da violncia. Herbert (1999), em recente artigo, elabora um

    sumrio desse obiturio com vistas a demonstrar que tais avaliaes ediagnsticos carecem de fundamentao emprica, ao menos no que se refere

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    ao controle do crime nos Estados Unidos contemporneo. Segundo esse

    sumrio, foras externas e internas estariam comprometendo a legitimidade do

    Estado-nao contemporneo. Externamente, processos de globalizao

    econmica e social estariam minando a soberania do estado. Compreendem

    processos de consumo e produo que reforam o poder das grandes

    corporaes econmicas e enfraquecem a capacidade do estado de

    regulamentar, de algum modo, o mercado de forma a evitar a potncia abusiva

    dos mais fortes contra os mais fracos. Ao mesmo tempo, compreendem a

    rapidez das mudanas tecnolgicas, em especial no campo das

    telecomunicaes, que alteram, no tempo e no espao, o fluxo de pessoas,

    mercadorias e de capitais em ritmo e propores jamais conhecidos

    anteriormente.

    Internamente, a legitimidade do Estado-nao viria perdendo fora face

    s polticas neo-liberais e s severas restries ao welfare statecujo principal

    efeito consiste em reduzir ao mnimo o provimento de significativos e

    necessrios servios sociais, com repercusses inclusive no domnio da lei e

    da ordem. Polticas de segurana pblica acabariam igualmente tributrias de

    restries oramentrias. Em conjunturas de crescimento das distintas

    modalidades de violncia e de expanso, em bases internacionais e

    empresariais, do crime organizado, sobretudo em torno do narcotrfico, essas

    restries comprometeriam a eficincia das agncias encarregadas do controle

    repressivo da ordem pblica, abrindo espao inclusive para que o crime

    organizado passasse a competir, com o estado, no controle do territrio como

    espao fsico e social de realizao da dominao sob fundamentos outros que

    no o da legalidade pblica e oficial. Em outras palavras, a perda do monoplio

    estatal da violncia estaria minando os fundamentos legtimos da soberaniaprpria ao Estado-nao. Vejamos o argumento um pouco mais de perto.

    Garland (1996, 2001) seguramente um dos mais importantes e slidos

    analistas desse processo. Em suas obras, ele sustenta a tese segundo a qual

    vem se observando, na contemporaneidade, poderosos processos de

    transferncia das responsabilidades pblicas e estatais de controle do crime

    para as esferas privadas, alis argumento j esboado em outro importante

    analista do mesmo campo (Shearing, 1992). Empiricamente, demonstra-se oargumento apontando para a crescente interveno de comunidades civis no

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    gerenciamento cotidiano da violncia. A sociedade civil, atravs de alguma de

    suas agncias e, em especial, de associaes de moradores, de vizinhanas e

    de corporaes profissionais passam a desempenhar o papel de parceiras na

    conteno do crime. Na mesma direo, medida que os problemas

    relacionados violncia e ao crime vo se tornando mais densos e mais

    complexos, dificilmente equacionveis nos estritos termos propostos pelo

    direito liberal de punir, fundado no princpio da responsabilidade individual,

    apela-se progressivamente para a segurana privada, razo do rpido

    desenvolvimento de um mercado e indstria altamente sofisticados do ponto de

    vista tecnolgico. Ademais, as enormes potencialidades de intercmbio e

    comunicao oferecidos pela cyber-society rompem com as fronteiras

    convencionais do Estado-nao, tanto no que concerne s atividades do crime

    organizado quanto das atividades de inteligncia policial capazes de combat-

    lo. Em outras palavras, as novas tecnologias de comunicao alteram

    sobremodo o controle estatal do territrio, como sugerido um dos elementos

    essenciais do conceito weberiano de estado e de soberania estatal.

    Garland resume nestes termos seu argumento: as tendncias correntes

    sugerem a eroso de "um dos mitos fundadores da sociedade moderna:

    nomeadamente, o mito de que a soberania do estado capaz de prover

    segurana, lei e ordem, e controle do crime nas fronteiras de um territrio. Esse

    desafio para a mitologia da lei e da ordem antes de tudo mais efetivo e mais

    incontestvel porque ocorre no momento em que a difundida noo de

    'soberania do estado' j est sob ataque em no poucos fronts" (1996, p. 448).

    Em particular, trs so os fronts de maior impacto: a inveno da polcia

    comunitria, a expanso dos servios de segurana privada e a

    internacionalizao das operaes policiais. forte o reconhecimento de que, na atualidade, os problemas de

    segurana pblica se tornaram de tal sorte complexos que as agncias

    pblicas e estatais encarregadas de implementar lei e ordem se mostram

    insuficientes para faz-lo. Para que essas agncias, em especial as policiais,

    se mostrem mais efetivas apela-se com mais e maior freqncia para o

    concurso da comunidade que assim se converte em parceira na prestao de

    servios de segurana. A comunidade co-responsabilizada na tarefa deexercer vigilncia local e recolher informaes, bem como apontar problemas

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    de desordem urbana, de deteriorao de prdios residenciais e

    estabelecimentos comerciais, de incivilidades praticadas por adolescentes e

    por grupos no enraizados na vizinhana - orientaes conhecidas como

    "broken windows" (Wilson e Kelling, 1982; Kelling e Coles, 1996). Via de regra,

    tais orientaes so reconhecidas, em no poucos estudos e avaliaes

    profissionais, como porta de entrada do crime violento e organizado,

    particularmente nas comunidades onde habitam em sua maioria cidados

    procedentes das classes urbanas pauperizadas. Em cidades como New York,

    essas orientaes foram radicalizadas conformando, na dcada passada, a

    chamada poltica de "tolerncia zero". Anlises sugerem contudo que as

    supostas virtudes do policiamento comunitrio - maior envolvimento de policiais

    com problemas locais e maior participao e interesse dos cidados nas

    atividades policiais - acabam, em verdade, enfraquecendo as tradicionais

    responsabilidades do poder pblico em suas atribuies exclusivas de executar

    policiamento preventivo e repressivo bem como investigar crimes e apontar

    seus possveis autores. Em outras palavras, o policiamento comunitrio est

    longe de contribuir para o reforo das agncias encarregadas de lei e ordem e,

    por conseguinte, para assegurar a soberania do estado de direito.

    Na mesma direo, quanto s tendncias de desenvolvimento da

    segurana privada. O crescimento do mercado privado de segurana uma

    realidade que no pode mais ser negado. Por um lado, vem atender aos

    sentimentos, sempre crescentes, de que a vida urbana contempornea vem se

    tornando mais e mais insegura, o que alimenta o medo e a intranqilidade dos

    cidados face ao futuro de suas vidas, de seu patrimnio e mesmo dos valores

    que julgam superiores. Contra isso, preciso se proteger, da a ampla oferta de

    servios e equipamentos de proteo pessoal, visando dificultar ou impedirataques de qualquer espcie, partam de onde possam partir. Por outro lado,

    reconhece-se cada vez mais que os perigos se encontram difusos pelos mais

    distintos espaos, como sejam aeroportos, shoppings, parques pblicos,

    estdios esportivos, escolas e universidades, numa palavra espaos por onde

    circulam multides e onde o fluxo de atividades frentico, dificultando o

    policiamento e a vigilncia preventivas (Ocqueteau, 1997).

    A privatizao dos servios de segurana apontada, por inmerosespecialistas, como uma forte tendncia eroso da autoridade estatal de

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    controle do crime e da violncia (Shearing, 1992; Christie, 1993; Garland,

    2001). Isso se d, ao menos, em virtude de dois efeitos: primeiramente,

    transferncia da responsabilidade pblica para a responsabilidade privada e

    individual. O propsito de uma vida segura passa a ser visto como um

    problema de ordem pessoal, no necessariamente afeto rbita do poder

    pblico. Se as autoridades pblicas puderem prover eficientes servios de

    segurana pblica, tanto melhor. Se no, algo esperado pelo pblico em geral,

    no h outra alternativa seno recorrer aos servios proporcionados pelo

    mercado privado de segurana. Em segundo lugar, para serem eficientes junto

    aos consumidores, essas empresas precisam desenvolver seus prprios

    instrumentos de ao e sobretudo seus sistemas privados de informao a

    respeito dos quais o poder pblico no dispe de qualquer controle, nem

    mesmo tem o direito a faz-lo. De algum modo, essas empresas devem

    tambm prever e prover alguma modalidade de sano, uma sorte de "poltica

    retributiva" que oferea aos consumidores a sensao de que justia foi

    aplicada, em curto espao de tempo, sem os inconvenientes e sem os

    elevados custos judiciais. Por exemplo, o que se sucede com freqncia nos

    grandes estabelecimentos comerciais, em que vigilantes privados exercem

    alguma forma de sano direta contra consumidores que praticam pequenos

    delitos de apropriao de mercadorias e bens. essa sorte de poltica

    retributiva, lquida e certa, que garante a crena junto aos cidados de que o

    mercado mais eficiente do que o estado na prestao dos servios de

    segurana. No limite, o poder estatal abdica do monoplio na distribuio e

    aplicao de sanes, de acordo com os princpios que regem o devido

    processo legal, entre os quais direito amplo defesa, direito de pronunciar-se

    somente frente da autoridade judiciria, direito de no ser submetido atratamento violento ou humilhante.

    Por fim, a internacionalizao das atividades policiais. flagrante a

    internacionalizao do crime, em particular de suas formas empresariais e

    organizadas. Em virtude da extenso e complexidade das operaes

    bancrias, de transferncia de networks e dos mecanismos de

    telecomunicaes, multiplicaram-se em curto espao de tempo atividades

    como fraudes, espionagem, trfico de armas e de drogas, terrorismo bemassim outras atividades ilegais que envolvem transaes comerciais atravs de

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    fronteiras nacionais (Sheptycki, 1995). Na esteira desse processo, multiplicam-

    se igualmente as agncias de regulao internacional, em particular

    organismos da ONU e da Comunidade Europia, entre outros, assim como se

    expandem os organismos policiais internacionais com a Interpol (International

    Criminal Police Comission) e o DEA (Drug Enforcement Agency) 6. Para tanto,

    dois movimentos vm se consolidando: por um lado, cada vez mais, em

    matria de crime organizado, os diferentes pases so como que constrangidos

    a aceitarem as orientaes dos organismos reguladores internacionais.

    Tornam-se signatrios de convenes internacionais que, no raro, fazem com

    que as legislaes penais nacionais tenham que ser modificadas para atender

    s exigncias e requisitos firmados. Por outro, a insero de qualquer pas

    nesse processo leva necessariamente aos acordos bilaterais entre estados-

    nao que implicam intercmbio de atividades policiais, inclusive troca de

    informaes normalmente sigilosas. Com isto, a represso ao crime organizado

    acaba submetida autoridade extrajurisdicional, o que se traduz em perda

    significativa do papel do estado-nao em suas tarefas de controle social e de

    aplicao de lei e ordem7.

    Herbert (1999) rene uma srie de argumentos para contestar essas

    tendncias. Embora reconhea que a maior parte desses fatos e processos

    esteja em curso - tais como policiamento comunitrio, privatizao dos servios

    de segurana, internacionalizao das atividades policiais etc. - nada disso

    contudo justifica falar em quebra do monoplio estatal da violncia fsica

    legtima e, menos ainda, de enfraquecimento da soberania do Estado-nao.

    Ele sustm que as estatsticas disponveis revelam extraordinria expanso do

    estado no controle do crime, nos termos que Gordon (1991) nomeou de "justice

    juggernaut". As despesas com polcia cresceram, durante os anos 80, quer emnvel federal, estadual ou local, do mesmo modo que cresceram aquelas

    6Constatei esse processo, em estudo comparativo Brasil-Portugal no que concerne s polticasde controle e represso ao trfico de drogas. cada vez maior o comprometimento de ambassociedades com os mecanismos reguladores internacionais. Vide Adorno e Pedroso (2002).7 Em seu sumrio desse debate, Herbert (1999) ainda considera como presses de ordemexterna o desenvolvimento da cyber-society, os conflitos de jurisdio nacional na aplicaodas leis penais bem como problemas relacionados definio das atividades propriamentecriminais. Em situao de rpida mudana, comum que as agncias encarregadas de lei eordem revelem conflitos de entendimento sobre a efetiva natureza dos crimes, o que contribui

    para que muitos crimes, socialmente percebidos como ameaas em potencial, permaneamimpunes. Trata-se, alis, de aspecto j anteriormente apontado por Dahrendorf (1985) aosexaminar as "reas de excluso" de aplicao de sanes penais.

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    destinadas expanso dos servios judiciais. A populao encarcerada

    cresceu, entre 1980 e 1992, cerca de 168%. A taxa de encarceramento saltou,

    no mesmo perodo, de 138 por 100.000 habitantes para 329, a mais elevada do

    mundo. Nessa mesma direo, Wacquant (1999) demonstrou o quanto, em

    diferentes sociedades do mundo ocidental - em particular nos Estados Unidos -

    a retrao do espao anteriormente (isto , at os anos 70 do sculo passado)

    ocupado pelo estado-providncia estimulou a rpida expanso do estado

    penal, mais propriamente das polticas de conteno rigorosa de criminosos e

    de represso a potenciais autores de crimes.

    Os argumentos de Herbert, contudo, so muito mais elaborados. No

    tocante polcia comunitria, ele sugere, com base em estudos de caso, que a

    suposta co-responsabilizao , em verdade, ilusria. A participao e parceria

    da comunidade no so efetivamente levadas a srio pelos escales

    superiores das agncias policiais que continuam insistindo no aperfeioamento

    dos mtodos de patrulhamento, na profissionalizao das atividades policiais e

    na implementao de meios tcnicos cada vez mais sofisticados e avanos,

    como o geo-referenciamento de ocorrncias policiais e o amplo recursos

    informatizao das tcnicas de vigilncia, represso e investigao. No que

    concerne expanso da segurana privada, Herbert lembra que esse no

    um fenmeno recente, pelo menos nos Estados Unidos. Desde h algumas

    dcadas, a privatizao dos presdios uma realidade por todo aquele pas.

    Embora venham sendo, presentemente, apontados alguns problemas - tais

    como o interesse dos empresrios do setor pela expanso do encarceramento,

    de que resulta presses locais sobre as autoridades judiciais ou sobre as

    cortes de justia, a par de outros problemas relacionados a abusos de poder

    cometidos por agentes penitencirios - as avaliaes quanto eficincia dosservios tendem a ser positivas. Em decorrncia, Herbert no acredita que a

    existncia e mesmo expanso dos servios de segurana privada

    comprometam o monoplio estatal da violncia. Ao contrrio, o endurecimento

    das polticas pblica de controle do crime sugere tendncias contrrias aos

    prognsticos de vrios analistas, entre os quais os j citados Garland e

    Shearing. Finalmente, Herbert igualmente no acredita que a

    internacionalizao das atividades policiais enfraquea a soberania do Estado-nao. Primeiramente, ele argumenta, a cooperao entre polcias no passa

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    de simples troca de informao visando a priso de suspeitos. Em decorrncia,

    a cooperao no age no sentido de enfraquecer o poder dos estados

    nacionais, porm justamente de refor-lo ao proporcionar mais e melhor

    informao para tornar as agenciais nacionais de controle do crime mais

    eficientes e operativas. Ademais, a cooperao limita-se quelas aes

    consideradas crimes nas legislaes penais nacionais. Assim, no h

    quaisquer evidncias de que a soberania dos Estados-nao esteja ameaada.

    Os obiturios seriam prematuros, carecem de razo de ser.

    O debate est apenas comeando. As razes e argumentos a favor ou

    contra a tese da crise da soberania poltica do Estado-nao dependem,

    certo, do modo pelo qual distintos analistas entendem as tradies kantianas e

    weberianas na constituio do estado moderno. Sobretudo, se consideram que

    as tarefas apontadas por Weber j se encontram esgotadas, ensejando novos

    arranjos institucionais e polticos que proporcionem o controle dos crimes nesta

    "era da globalizao". Se assim, cabe ento indagar: no caso brasileiro, em

    que medida o crescimento da violncia em suas mltiplas formas

    resultado de um processo de perda do controle do territrio e, por conseguinte,

    do monoplio estatal da violncia fsica legtima ? Em que medida as aes

    governamentais, em seu propsito de resgatar lei e ordem e o monoplio

    estatal da violncia tm logrado ou no avanos nessa direo ? So essas

    questes que emergem do livro de Soares.

    Violnc ia, poder e democ racia

    Inicialmente, um breve resumo8. Meu Casaco de Generalno apenas

    uma espcie de compte-rendu de uma experincia quase bem sucedida frente da poltica de segurana pblica no Rio de Janeiro, nos primeiros quinze

    meses do governo Garotinho. Menos ainda uma sorte de adeus s armas de

    quem estava em campo, combatendo, h pelo menos quinze anos. , antes de

    tudo, resultado de uma reflexo madura e densa sobre uma oportunidade

    mpar, histrica, de reverter o quadro de insegurana coletiva, medo, violncia

    8O resumo que se segue reproduz texto originalmente publicado: Adorno, S. Crnica de umaderrota. Jornal de Resenhas. Folha de S. Paulo. So Paulo, no. 70, 13/01/01, pp.1-2.

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    e persistente graves violaes de direitos humanos que contamina o cotidiano

    de cidados e cidads na sociedade brasileira contempornea.

    primeira vista, poderia parecer que o livro no se distingue de seus

    congneres: um depoimento autobiogrfico sob a forma de ensaio sociolgico

    que acresce algo mais ao estoque de conhecimento acumulado pelo saber

    acadmico, nos ltimos anos. Mas, no bem assim. Primeiramente, h que

    se reconhecer suas notrias qualidades literrias que tornam a leitura do texto

    amena, sobretudo diante de um objeto to pouco sugestivo para os vos do

    imaginrio. Em segundo lugar, no h como deixar de reconhecer o mtier

    refinado do antroplogo, sempre preocupado em entender as razes do outro,

    em dissecar-lhe o vocabulrio, em transitar por mundos e submundos culturais,

    em decodificar mitos e rituais inclusive os corporativistas, em desautorizar

    vises unvocas do comportamento humano em realidades sociais marcadas

    pelo jogo da diferena e da identidade. Da as fortes inclinaes do texto para

    pintar mltiplas cenas como drama social, no clssico sentido que emprestou

    ao termo Victor Turner, em particular pormenorizados relatos das tenses

    polticas que faziam a segurana pblica do Rio de Janeiro ora pender em

    direo civilizao ora em direo barbrie.

    O essencial do livro repousa em seu prprio objeto: a intimidade da

    poltica de segurana do governo Garotinho. O enredo tem incio com a

    campanha do ento candidato ao governo do estado do Rio de Janeiro.

    Estrategista poltico de primeira hora, convencido em se apresentar como

    alternativa de centro s candidaturas da direita e da esquerda, Garotinho, ex-

    prefeito de Campos e radialista de sucesso, vislumbrou no campo da

    segurana uma das arenas de embate poltico mais sensveis e tambm mais

    perigosas. Propunha-se, neste domnio, marcar diferena face aos governosanteriores e sobretudo distanciar-se do brizolismo. Reconheceu em Luiz

    Eduardo Soares o protagonista exemplar de seus propsitos, nomeando-o

    subsecretrio de Segurana Pblica para as reas de segurana, justia,

    defesa civil e cidadania.

    Militante da resistncia poltica ditadura, Luiz Eduardo desde cedo se

    familiarizara com o tema dos direitos humanos. Como muitos de ns, constatou

    que o fim do regime autoritrio no significava - como de fato no significou - ofim das graves violaes de direitos humanos, sobretudo contra cidados

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    comuns procedentes das classes populares que h muito, independentemente

    da vigncia ou no do Estado de direito, eram vtimas das arbitrariedades das

    agncias encarregadas de implementar lei e ordem. Igualmente, como muitos

    de ns, foi constrangido a ocupar-se de temas relacionados segurana

    pblica. Em parte porque se acirravam, na conjuntura ps-ditadura, os conflitos

    entre a defesa dos direitos humanos e as exigncias de maior rigor no controle

    da ordem, nascidas da exacerbao do sentimento de insegurana coletiva e

    da escalada da violncia urbana. Em parte porque o vazio de polticas

    governamentais conseqentes no domnio da segurana pblica ensejava

    interveno compatvel com o Estado democrtico de direito.

    Instado a engajar-se na campanha e convencido das possibilidades

    polticas oferecidas por Garotinho, Luiz Eduardo ps-se a trabalhar em equipe,

    de que resultou o programa de governo para a rea, cujo ponto de partida

    residiu em diagnsticos setoriais, porm articulados entre si. Por um lado,

    anlises detalhadas da evoluo da criminalidade, em especial a de tipo

    violento, as quais revelaram o peso e a importncia dos conluios entre trfico

    de drogas, contrabando de armas e corrupo policial principalmente na

    escalada das mortes violentas. Por outro, anlises sofisticadas da estrutura,

    funcionamento e desempenho dos rgos policiais que punham em relevo as

    razes da baixa eficincia do trabalho policial: os conflitos entre as polcias

    civis e militares, a fragmentao das orientaes poltico-administrativas, a

    pobreza de equipamentos e recursos humanos, a carncia de

    profissionalizao, a nfase em atitudes reativas diante dos acontecimentos em

    detrimento de posturas preventivas, a m qualidade das investigaes e dos

    servios tcnicos da polcia judiciria estimulando a impunidade e a descrena

    nas instituies pblicas a par da sistemtica arbitrariedade na contenorepressiva da ordem pblica.

    Para reverter esse quadro, foram formulados e estavam sendo

    implementados considervel nmero de projetos cujo eixo residia no trip:

    diagnstico, planejamento e reforma gerencial, algo inspirado na reforma do

    Departamento de Polcia de New York, em meados dos anos 90. Elaborou-se

    agenda positiva, pr-ativa, ambiciosa, de iniciativas que atacava de vez todas

    as frentes de batalha, no deixando quaisquer flancos abertos. Tratava-se deum programa que articulava mltiplas operaes de policiamento, de prestao

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    de servios de segurana e de proteo legal, materializadas em projetos

    vrios, o mais notvel a Delegacia Legal, um modelo de eficincia operativa a

    ser perseguido.

    Por mais ambicioso que fosse o programa, no h como deixar de

    reconhecer sua inventividade e ousadia. Tivesse prosperado, certamente se

    constituiria em modelo de poltica nacional de segurana. Por que ento

    abortou cedo?

    Toda interpretao sempre uma entre tantas possveis. As razes

    apresentadas por Luiz Eduardo podem ser confrontadas com outras. certo

    que sua demisso vinha sendo anunciada - quando menos, urdida nos

    corredores das agncias de controle repressivo da ordem - desde os primdios

    do governo Garotinho. De fato, medida em que os projetos iam sendo

    implementados, ganhavam visibilidade pblica e relativa aceitao junto

    mdia, poderosos interesses corporativos - desde negcios at concepes

    distintas de lei e ordem, incrustados nas agncias policiais - iam sendo

    enfrentados e corriam o risco de amargar uma das mais contundentes fraturas

    de alianas corporativas na histria poltica recente. certo tambm que a

    ambio poltica do governador em apresentar-se como candidato de centro

    esquerda s eleies presidenciais de 2002 desempenhou papel decisivo.

    O cientista Luiz Eduardo estava convencido de que, para fazer avanar

    a poltica de segurana, para impor sua "superioridade civilizatria" era

    necessrio um combate destrutivo ao conservadorismo e tudo o que ele

    simbolizava. proporo em que implementava seus projetos e aumentava o

    alcance de suas iniciativas, deixava-se contaminar por uma certa dose de

    "messianismo reformista", nutrido por uma f na misso civilizatria do

    programa de ao governamental, de que sequer escaparam exageros como aproposta de anistia penal para os jovens recm alados ao narcotrfico - o que

    certamente ensejaria anistia para os policiais corruptos - ou ainda a proposta

    de batalhes sociais, verdadeiro estado social no interior do aparelho de

    Estado, o que levaria a atrelar todas as polticas socais poltica de segurana,

    instigando conflitos para alm das fronteiras da lei e da ordem.

    Esse no era necessariamente o horizonte poltico do governador Garotinho.

    Diz-se que a ambio poltica cega. Talvez obscurea o caminho em direo verdade. Bem ou mal, o governador pareceu mais adepto da "guerra de

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    posies" do que da reforma radical. O programa formulado e implementado

    por Luiz Eduardo confrontava infindveis interesses fragmentrios, dispersos

    no aparelho repressivo de Estado. Porm, como os atacava de vez e todos na

    mesma sintonia, estimulou reaes em cadeia, aqui e acol, que

    enfraqueceram seu poder e sua ascendncia sobre o governador. Alis, em

    no poucas oportunidades, Garotinho o advertiu: v com calma, evite introduzir

    todas as reformas de uma s vez. Duas racionalidades em rota de coliso

    resultaram no pattico episdio da demisso "pblica" anunciada diretamente

    pelas ondas da mdia eletrnica.

    Lei e ordem versus d i re itos hum anos

    O livro , em grande parte, um inventrio dos impasses, paradoxos, das

    ambivalncias, das vacilaes, dos avanos e recuos na histria das polticas

    pblicas de segurana, no apenas no estado do Rio de Janeiro, mas

    certamente em todo o pas, nos ltimos quarenta ou cinqenta anos. Um dos

    maiores desafios reside justamente em compatibilizar o respeito aos direitos

    humanos e as demandas por maior eficincia policial, uma das dimenses

    pelas quais o problema da lei e da ordem se apresenta em nossa sociedade.

    Segundo Soares, aqui manifestam-se por excelncia os embates entre a

    direita e a esquerda brasileiras. Reportando-se ao estudo anteriormente citado

    (Soares e Piquet, 1996), Soares agrupa o conjunto de representaes em dois

    plos opostos: por um lado, alinham-se representaes populares que reputam

    ao crescimento da violncia e dos crimes origens religiosas ou morais. Supem

    solues que contemplam desde a redeno messinica diante da palavra de

    Deus quanto esterilizao de mulheres faveladas; fuzilamento de bandidos, sepossvel sob transmisso direta pela Tv; extino da Justia e de seus morosos

    mecanismos de julgamento que deveriam ser substitudos por instrumentos

    rpidos, imediatos e de preferncia que resultem na execuo do ru. Por

    outro, alinham-se representaes que atribuem uma causalidade scio-

    econmica ao crescimento dos crimes e da violncia em geral.

    Direita e esquerda movimentam-se entre esses estreitos limites. A

    direita, procurando fazer eco s representaes religiosas e morais, propeendurecimento na aplicao de lei e ordem, proposta que assimila, como

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    sempre, velhas frmulas, j desgastadas, que incluem, entre outras medidas,

    contratao de novos policiais e modernizao de equipamentos, mediante

    compra de armas estrangeiras, por exemplo. Se essas medidas tm logrado

    estreitar os laos de segmentos conservadores com amplas parcelas da

    sociedade brasileira, no tm logrado definir e aplicar polticas conseqentes,

    estveis no tempo e eficientes. "Na prtica, ao longo das dcadas em que vm

    exercendo sua hegemonia, tm se limitado a cercar os bairros populares com

    uma espcie de cordo sanitrio repressivo, lanando a polcia como ces

    sobre os pobres e protegendo as reas nobres da cidade" (Soares, 2000, 45).

    Em outras palavras, para a direita conservadora a reivindicao de lei e ordem,

    na melhor das hipteses, no contempla direitos humanos.

    Em contrapartida, a esquerda entende que o crescimento do crime e da

    violncia efeito de grandes problemas econmicos e sociais que, no

    resolvidos, contribuem para que as polticas de segurana somente possam

    repetir as velhas frmulas. Enquanto no houver substantivas mudanas

    estruturais que afetem radicalmente os tradicionais estrangulamentos no que

    concerne distribuio das riquezas e concentrao das desigualdades

    sociais no h muito o que fazer, exceto denunciar os abusos escandalosos. O

    problema torna-se dramtico justamente quando as esquerdas chegam ao

    poder e devem no apenas formular polticas de segurana, mas sobretudo

    implement-las. Neste caso, no basta subscreverem compromissos com

    princpios universais pertinentes ao iderio dos direitos humanos e do

    igualitarismo democrtico. preciso operar leis e regulamentos, gerenciar

    conflitos institucionais locais, investir em recursos profissionais e materiais

    adequados agenda de demandas e ao programa de governo proposto. No

    entanto, como faz-lo se, para as esquerdas, o problema da lei e da ordemest atrelado consolidao prvia de uma poltica de proteo aos direitos

    humanos?

    Como se sabe, esse argumento apia-se sobretudo na experincia

    histrica do Ocidente, cujas democracias foram erguidas em torno de um

    modelo contratual que inicialmente privilegiava os direitos individuais e

    polticos, os quais, uma vez conquistados, serviram de alavanca para a

    conquista dos direitos econmicos e sociais e, mais recentemente, para aconquista dos direitos coletivos, completando-se assim o ciclo contemporneo

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    dos direitos humanos. Certo ou no, trata-se de uma questo em aberto cujo

    peso no desprezvel, porm cujo alcance, desconhecido, certamente no

    suficiente para explicitar os dilemas e impasses suscitados pelas relaes entre

    direitos humanos e segurana.

    No campo da segurana pblica, os governos de esquerda tendem a

    priorizar um tema caro e vital para os direitos humanos. Os abusos de poder

    cometidos por autoridades pblicas no exerccio de suas atribuies legais de

    conteno do crime e da violncia. Nessa medida, a maior parte das iniciativas

    procura proteger o cidado comum contra eventuais arbitrariedades cometidas

    pelo poder pblico. Trata-se evidentemente de uma pea importante no

    tabuleiro da segurana pblica. Porm, no completamente suficiente. certo

    que desejvel coibir as graves violaes de direitos humanos cometidas por

    agentes policiais como requisito de pacificao social. No entanto, como fica o

    outro lado da questo? Como enfrentar o crescimento da criminalidade? Como

    enfrentar o envolvimento crescente de jovens no trfico de drogas, constituindo

    precoces carreiras no mundo da delinqncia? Enfim como deter a onda

    crescente de violncia urbana, em especial as taxas assustadoras de

    homicdios cujas vtimas preferenciais so jovens?

    Bem, esses so problemas que melhor devem ser respondidos pelas

    agncias encarregadas de represso do crime e de conteno da ordem

    pblica. Neste domnio, a tradio outra, o legado autoritrio ainda forte e

    presente, tudo se resume a estratgias, tticas, equipamentos e know-how

    modernos. Neste domnio, os lobbies constitudos em torno de representantes

    com mandato legislativo so atuantes e evitam, o quando podem, mudanas

    radicais que promovam um deslocamento acentuado do eixo da segurana

    pblica em direo ao efetivo controle governo civil sobre o aparato repressivode estado.

    Em seu livro, Soares reputa possvel compatibilizar o respeito aos

    direitos humanos com lei e ordem. Ele acredita ser possvel construir uma

    "terceira via entre a truculncia seletiva da direita e o denuncismo ablico da

    esquerda" (p.48). Para tanto, preciso alcanar, entre outros objetivos, um

    modelo de polcia que alie eficincia com o respeito s leis que protegem os

    direitos do cidado, em particular o direito segurana. Da o imperativo de"valorizao das instituies policiais, como protetoras da vida e da liberdade e

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    promotoras do direito de todos a uma vida pacfica, que , afinal de contas, o

    significado ltimo da segurana pblica num contexto verdadeiramente

    democrtico" (p.49). Da a necessidade de erradicar, da segurana pblica,

    suas heranas autoritrias e conservadoras. Em outras palavras, um propsito

    desta natureza requer um executivo estadual mais inclinado esquerda, mais

    comprometido com os ideais, as propostas e a agenda da esquerda. Ora,

    considerando o feixe de foras e alianas que sustm o governo Garotinho, em

    especial suas bases no legislativo estadual, caberia duvidar, desde o incio,

    que a herana autoritria e conservadora pudesse ser sepultada de vez das

    polticas pblicas de segurana no estado do Rio de Janeiro.

    Outra alternativa no restava seno investir todos os esforos em substantivos

    e radicais investimentos na modernizao da gesto administrativa, no

    aperfeioamento profissional e na racionalizao das rotinas policiais, tudo com

    o propsito de desestabilizar as velhas frmulas burocrticas e de

    policiamento, perturbar a eficcia do saber organizacional e das culturas

    policiais, desmontar nichos descentralizados de poder que contribuem para

    desgastar rapidamente propostas inovadoras. Ora, por mais desejvel que

    fosse essas diretrizes de modernizao e aperfeioamento, a poltica de

    segurana tout court acaba se limitando a um problema de gesto

    administrativa que pode avanar at onde no altere as relaes de foras

    constitudas, mais propriamente as relaes de identidade e solidariedade

    entre segmentos das foras policiais e segmentos da classe poltica

    conservadora. O resultado mais paradoxal uma espcie de inverso no

    cogitada: a busca de eficincia tcnica e administrativa acaba por priorizar lei e

    ordem em detrimento de direitos humanos9. Repete-se, aqui, uma vez mais, a

    velha frmula liberal: preciso mudar para conservar.

    A soc iedade brasi leira e o mo nop l io estatal da violncia

    No contexto desse processo civilizatrio ocidental, a sociedade brasileira

    tambm conheceu acentuada modernizao de suas estruturas sociais. Desde

    o ltimo quartel do sculo XIX, os desdobramentos econmico-sociais da

    9 De certo modo, a percepo desses impasses, sob a tica do liberalismo poltico, j haviasido anotada por Dahrendorf, no II captulo de Law and Order(1985).

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    cafeicultura no Oeste paulista j apontavam para decisivas transformaes

    como sejam: superao da propriedade escrava, formao do mercado de

    trabalho livre, industrializao e urbanizao, mudanas nas bases do poder

    poltico de que resultou a substituio da monarquia pela forma republicana de

    governo, a instaurao de um novo pacto constitucional que formalmente

    consagrava direitos civis e polticos e institua um modelo liberal-democrtico

    de poder poltico.

    Esse conjunto de mudanas ocorreu em menos de um sculo.

    Inspiradas pelo processo democrtico em curso em algumas sociedades do

    mundo ocidental capitalista, essas transformaes no foram assimiladas pelas

    prticas polticas e sequer pela sociedade. As garantias constitucionais e os

    direitos civis e polticos permaneceram, tal como na forma de governo

    monrquica, restritos rbita das elites proprietrias. Estabeleceu-se uma

    sorte de cidadania regulada (Santos, 1979), que exclua dos direitos de

    participao e de representao polticas a maior parte da populao brasileira,

    constituda de trabalhadores do campo e das cidades, de baixa renda, situados

    nos estratos inferiores da hierarquia ocupacional bem assim carentes de

    direitos sociais. Subjugado pela vontade das elites proprietrias, esse

    contingente de no-cidados foi violentamente reprimido todas as vezes em

    que se rebelou e jamais teve assegurados seus direitos humanos. A violncia,

    seja como represso ou reao, mediou a histria social e poltica desses

    sujeitos.

    Certamente, um dos maiores desafios do controle democrtico da

    violncia e, por conseguinte, da instaurao do Estado de direito nesta

    sociedade reside, por conseguinte, no monoplio estatal de violncia fsica

    legtima. Esse desafio apresenta-se sob dupla tarefa: por um lado, efetivocontrole por parte quer da sociedade civil organizada quer do governo civil das

    foras repressivas de estado. Para o controle da ordem pblica, impe-se

    certamente lei e ordem; porm, sem abdicar da responsabilidade pblica e

    institucional que recomenda sejam respeitados os direitos dos cidados e no

    haja abusos de poder de qualquer espcie desencadeados por quem quer que

    ocupe funo pblica, em especial agentes encarregados de aplicar as leis

    penais. Por outro, efetivo controle da violncia endmica na sociedade civil quefaz com que a vontade do mais forte se imponha pelo recurso fora fsica, em

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    particular com emprego de armas. Tem-se em vista notadamente a guerra

    entre quadrilhas pelo controle do trfico de drogas.

    Em seu livro, Soares detm-se na anlise de ambas dimenses.

    Primeiramente, atravs de um detido relato das tenses que marcavam o

    cotidiano de sua sub-Secretaria de Pesquisa e Cidadania, da Secretaria de

    Segurana Pblica do estado do Rio de Janeiro. Nesse relato, destacam-se

    sobretudo os embates entre o comando da Polcia Militar e as diretrizes civis

    que estavam sendo implementadas, embates exacerbados por ocasio da

    promoo, pelo Secretrio de Segurana, de um oficial cuja presena no staff

    governamental comprometia as polticas que Soares pretendia convencer ao

    governador implementar. Ao enfrent-los, Soares deu-se conta da existncia

    de duas linhas de oposio s suas propostas de modernizao tecnolgica e

    gerencial, de moralizao das atividades policiais e de participao

    comunitria.

    Por um lado, uma linha mais ideolgica que suspeitava da legitimidade e

    alcance daquelas iniciativas. Reunia-se em torno do Secretrio de Segurana e

    seus auxiliares mais prximos. Articulada com alguns setores "duros" quer da

    polcia militar quer da civil bem como com deputados, em parte procedentes da

    aliana de sustentao do governo estadual, procurava conquistar ascendncia

    sobre o governador e influenciar a nomeao de oficiais e de delegados para

    postos chaves de comando. Como tal, manifestavam fortes traos de

    comportamento corporativo. Por outro, um bloco, que Soares nomeia de

    "selvagem", que "se organizava sombra das instituies e usava mtodos

    criminosos. Tinha o objetivo de desestabilizar nossa poltica de segurana, mas

    estava disposta a derrubar o que estava pela frente, inclusive o secretrio e

    sua equipe para impedir a reforma das polcias" (p.202).No relato minucioso, deixa-se entrever as vacilaes do governo

    estadual em pender a balana ora do lado das propostas inovadoras, ora do

    lado das demandas corporativas. Avanos conquistados de um lado eram

    neutralizados pelo outro, em momento subseqente. O modelo de gesto dos

    conflitos estava assentado na permanente guerra de posies, a respeito do

    qual os opositores eram sbios e experientes. Embora formalmente chefe das

    foras repressivas a quem devem prestar obedincia constitucional,desavenas srias podem comprometer o equilbrio formal entre governo civil e

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    policiais, desestabilizando politicamente o poder executivo. Evitar chegar a

    esses limites foi tarefa a que se dedicou o chefe do executivo. No se motivo,

    no calor das tenses, o governador Garotinho recomendou a Soares que

    mantivesse pacincia e aguardasse os rumos da reforma do estado, quando

    ento um novo desenho institucional estabeleceria uma nova diviso de

    trabalho e poder entre as sub-secretarias. Esses embates e seus

    desdobramentos revelam que o governo civil no tinha, de fato, o monoplio de

    poder estatal sobre as foras repressivas. Os inmeros episdios de

    desmandos policiais so bastante ilustrativos desse controle parcial.

    Do lado da sociedade civil, a presena do trfico de drogas no cotidiano

    das classes populares tambm outro elemento dissuasivo do monoplio

    estatal da violncia. Soares reconhece que o trfico de drogas e o trfico de

    armas, interligados, promovem profundos desarranjos na sociedade brasileira.

    Da que "reformando as polcias e controlando o comportamento dos policiais,

    resolve-se metade dos problemas de segurana das comunidades das

    comunidades faveladas e dos bairros pobres - toda aquela parte que resulta da

    corrupo, da cumplicidade com o crime e da brutalidade dos policiais. Mas

    resta a outra metade: a tirania do trfico. No basta livrar as comunidades do

    despotismo da polcia. urgente livr-las da tirania dos traficantes" (p.267).

    Soares identifica treze razes pelas quais trfico de armas e de drogas

    constituem as mais perversas dinmicas criminais no Brasil, entre as quais: o

    elevado nmero de mortes; a desorganizao da vida associativa e poltica das

    comunidades; o regime desptico imposto s favelas e aos bairros populares; o

    recrutamento de crianas e adolescentes cuja vida prematuramente

    comprometida; a disseminao de valores belicistas contrrios ao

    universalismo democrtico e do cidado; a degradao da lealdade comunitriatradicional; o fortalecimento do patriarcalismo, da homofobia e da misoginia; o

    entrelaamento com os crimes do "colarinho branco" e com outras modalidades

    criminosas (pp. 267-77). Em uma palavra, o trfico de drogas substitui a

    autoridade moral das instituies sociais regulares pelo carter desptico e/ou

    tirnico das regras ditadas pelos criminosos. Ao faz-lo, impe srios

    obstculos ao monoplio estatal da violncia.

    Para Soares, uma poltica de segurana que se pretenda eficaz deveenfrentar com competncia a tirania do trfico de drogas atravs de uma

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    abordagem consistente capaz de promover avanos concretos. Essa

    abordagem supe, por um lado, esforo no sentido de atendimento das

    principais demandas da populao, atravs da mobilizao de articulao das

    polticas sociais, simbolizadas, por exemplo, no programa "Mutiro pela Paz".

    Por outro, supe o recurso s intervenes policiais repressivas. Neste

    domnio, Soares bastante cauteloso. Examina com acuidade distintas

    modalidades de interveno, seu alcance e eficcia, sua pertinncia ou

    oportunidade; enfim, os efeitos que podem produzir aes to distintas como

    sejam incurses para priso de traficantes, incurses para intervir em conflitos

    armados entre grupos de traficantes, incurses para ocupao de territrios.

    Aqui situa-se justamente um dos mais srios impasses ao monoplio

    estatal da violncia. Se, para conter a violncia do trfico preciso reprimi-lo,

    no raro com emprego de fora repressiva igualmente violenta, como

    estabelecer os limites entre o uso adequado e necessrio para conter o crime

    organizado e o uso abusivo? Como assegurar que, para resgatar o monoplio

    estatal da violncia fraturado pela ao dos grupos de traficantes no se esteja,

    por essa via, abrindo mo do controle civil sobre as foras repressivas, este

    igualmente um requisito fundamental do mesmo monoplio? Se considerarmos,

    como o prprio Soares aponta em seu livro, o crculo vicioso que alimenta

    reciprocamente crime, violncia, represso, segurana, corrupo, crime, como

    fratur-lo? Se considerarmos, dado o quadro poltico considerado, que o

    governo civil revela dificuldades em se impor ao corporativismo policial (quer

    civil, quer militar) e que evita enfrentar as foras conservadoras, com receio

    inclusive de desestabilizar as alianas polticas de sustentao a seu governo,

    como conter efetivamente as oportunidades de interveno policial abusiva?

    Nunca demais lembrar o carter espetacular e o apelo meditico dessasincurses policiais que estimulam desejos coletivos de Estado forte e de

    governo enrgico no controle da segurana pblica.

    O prob lema da legi t imidade

    Por fim, o problema da legitimidade das instituies encarregadas de

    aplicao das leis penais. Uma srie de problemas relacionados formulao eimplementao de polticas de segurana e justia afetam a eficincia das

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    agncias encarregadas de conter a violncia dentro dos marcos da legalidade

    democrtica. A baixa eficincia dessas agncias - especialmente das polcias

    militar e civis em prevenir crimes e investigar ocorrncias, e de todo o

    segmento judicial (ministrio pblico e tribunais de justia) em punir agressores

    -, associada aos tradicionais obstculos enfrentados pelo cidado comum no

    acesso justia acabam estimulando a adoo de solues privadas para

    conflitos de ordem social (como os linchamentos e as execues sumrias)

    bem como contribuindo para a exacerbao do sentimento de medo e

    insegurana coletivos. medida em que esse circulo vicioso mais e mais

    alimentado, cresce a perda de confiana nessas instituies de justia e nos

    agentes responsveis por sua distribuio e execuo.

    Paradoxalmente, parte dos cidados - especialmente procedentes de

    setores conservadores das classes mdias e altas como tambm de

    segmentos das classes trabalhadoras - reage a estes problemas recusando

    polticas pblicas identificadas com a proteo dos direitos humanos. Em

    contrapartida, reclama por mais e maior punio, mesmo que, para garanti-la,

    seja necessrio conferir maior liberdade de ao s agncias e aos agentes

    encarregados da manuteno da ordem pblica, independentemente de

    constrangimentos legais. No sem razo, vimos assistindo nas duas ltimas

    dcadas manifestaes coletivas de obsessivo desejo punitivo que contemplam

    punio sem julgamento, pena de morte, violncia institucional, leis

    draconianas de controle da violncia e do crime. Em outras palavras, em nome

    da lei e da ordem, propem-se justamente controle social carente de

    legalidade.

    Soares aborda tambm esta questo em seu livro ao tratar da violncia

    policial e da corrupo. "... assim como a corrupo e a violncia policiaisdegradam as instituies pblicas e subtraem legitimidade da institucionalidade

    poltica democrtica, a reverso de expectativas restituiria respeito e

    legitimidade. Os formadores de opinio, as classes mdias e as elites discutem

    muito a democracia, seus limites, a necessidade de sua consolidao e o

    aprofundamento atravs da extenso dos benefcios da cidadania aos que

    permanecem excludos, mas tendem a desprezar a polcia. Como se "polcia"

    no fosse tema nobre, digno de ateno, como so a economia, a poltica ouas relaes internacionais" (p.243). Como indica Soares, a experincia

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    internacional indica que a melhoria dos servios policiais bem como o controle

    rigoroso da impunidade quer nos casos de envolvimento de policiais com o

    crime, quer com a corrupo ou com o uso abusivo da fora fsica contribuem

    para reduzir as taxas de sub-notificao dos registros de crime, para aproximar

    o cidado das agncias policiais e para agilizar as investigaes. Esse crculo

    vicioso deve portanto aumentar a confiana dos cidados na polcia e conferir

    legitimidade s instituies de controle da ordem pblica.

    Soares indica, em decorrncia, sua frmula para atacar essa questo,

    composta de trs ingredientes: moralizao institucional; tecnologia e

    modernizao do aparelho policial; e agilizao das investigaes.

    Aparentemente simples, o programa envolve, em verdade, o enfrentamento de

    fortes obstculos polticos e administrativos. Em primeiro lugar, a moralizao

    institucional envolve uma poltica agressiva de combate e de controle da

    corrupo que contempla mltiplas medidas, desde a punio rigorosa dos

    agentes envolvidos at o recrutamento de novos quadros de policiais cuja

    formao tica os torne quase imunes aos apelos financeiros oferecidos pelo

    mercado ilegal de drogas, de armas e do crime em geral. Como se sabe,

    nenhum dos governos civis desde a redemocratizao do pas se aventurou

    decisivamente nessa seara, mesmo porque sabem que intervir nesse domnio

    atravessar poderosos interesses que, embora incrustados no aparelho

    policial, nele no se restringem abrangendo uma extensa e densa rede de

    atores sociais. As recentes CPIs da corrupo e do trfico de drogas revelaram

    o quanto essa modalidade de crime organizado est enraizada de alto a baixo

    na sociedade brasileira, alcanado de simples consumidores e vendedores de

    drogas, a empresrios e polticos profissionais. Portanto, o prprio quadro

    poltico com suas redes e alianas parece poderoso dissuasor da moralizaoinstitucional.

    Do mesmo modo, o processo de modernizao e de aplicao de

    tecnologia aos servios e s rotinas policiais enseja interveno governamental

    em rea igualmente sensvel: a de produo de informaes. Sabe-se o quanto

    policiais, quer civis quer militares, so ciosos desse monoplio. Argumentam,

    com freqncia, o carter sigiloso das investigaes para evitar transparncia e

    acesso pblico. Em verdade, sabem tambm o quanto o controle pblico dasinformaes retira-lhes autonomia e se presta a uma sorte de accountabilityda

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    atividade policial, desestabilizando as prticas convencionais de policiamento

    repressivo e das funes judiciais da atividade policial. No limite, esse controle

    pblico afeta os interesses locais, em particular os negcios entre policiais e

    bandidos.

    Justamente, a melhoria das investigaes esbarra no terreno da

    autonomia dos agentes policiais. Como se sabe, policiais civis se recusam

    consensualmente ao controle externo de suas atividades, em particular atravs

    do acompanhamento dos inquritos policiais por parte do Ministrio Pblico.

    Essa recusa tem sido fundada no peso histrico de nossa cultura jurdica,

    notadamente a influncia das tradies inquisitoriais que marcam o direito

    penal brasileiro. Estudos demonstraram o quanto o inqurito policial lugar de

    arbtrio e de abuso de poder. A ausncia de controles faculta s autoridades

    policiais ampla discricionariedade na seleo das ocorrncias que podem ser

    objeto dos mais distintos interesses. Por conseguinte, aqui tambm, intervir

    nessa seara no desafio de somenos importncia. As possibilidades de xito

    so reduzidas, porque tambm limitadas pelo quadro poltico que sustm

    polticas de segurana. A tarefa de aumentar a confiana das instituies

    encarregadas de aplicar leis penais, sobretudo as agncias policiais, e

    conseqentemente conferir legitimidade institucionalidade democrtica

    encontra poderosos bices que no podem ser enfrentados tendo em vista as

    conexes polticas indicadas e inclusive largamente reconhecidas por Soares.

    [Concluso]

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