ADRIANE DA SILVA MACHADO Pelotas 2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
A Existência de Deus
Nas obras de Anselmo de Aosta e René Descartes
ADRIANE DA SILVA MACHADO
Pelotas
2005
ADRIANE DA SILVA MACHADO
A EXISTÊNCIA DE DEUS
Nas obras de Anselmo de Aosta e René Descartes
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao
Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Pelotas para obtenção
de Graduação-Licenciatura Plena em Filosofia.
Orientador: Profº. Drº. Manoel Vasconcellos
Pelotas
2005
AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar ao meu orientador Profº. Drº. Manoel Vasconcellos,
que sempre esteve disposto a ajudar, de forma incondicional na execução desse trabalho de
conclusão de curso.
Agradeço em especial ao Profº. Drº. Clademir Luís Araldi, ao Profº. Rogério
Almeida, a secretária Mirela pela compreensão nos momentos difíceis e a todos os demais
professores da UFPel, que contribuíram para a minha formação de professora de Filosofia.
A EXISTÊNCIA DE DEUS.Nas Obras de Anselmo de Aosta e René Descartes.
SUMÁRIO:
Introdução06
1. A Fé Buscando Apoiar-se na Razão 09
1.1 Santo Anselmo e o Método 09
1.2 O Argumento Único 12
1.3 Os Atributos Divinos 15
1.4 Como o Argumento Era Visto na Escolástica 19
1.4.1 O Método Escolástico 20
1.4.2 A Refutação de Santo Tomás de Aquino 20
1.4.3 A Fundamentação de Duns Escoto 21
2. A Forma Ontológica da Idéia e Causalidade de Deus 22
2.1 O Método na Filosofia de Descartes 23
2.2 A Primeira Formulação Metafísica de Descartes 26
2.2.1 A Dúvida e a Questão de Deus 28
2.3 As Provas da Existência de Deus nas Meditações Metafísicas 31
Conclusão 38
Bibliografia 41
A EXISTÊNCIA DE DEUS.
Nas Obras de Anselmo de Aosta e René Descartes.
INTRODUÇÃO:
Ainda hoje, o homem busca compreender Deus e sua existência, mesmo
nesta época em que é extremamente comum defrontar-se com ateus, agnósticos,
incrédulos, hereges etc., ainda é uma preocupação de grande parte da humanidade
compreender e explicar a sua existência. A humanidade busca a Deus, seja o Deus
cristão ou não, seja para explicar a sua existência ou para compreender o divino;
este é um problema e uma busca atual. Mesmo após ter-se conhecidos filósofos
magníficos como Feuerbach, Nietzsche entre outros; mesmo assim a humanidade
busca a Deus e anseia por encontrá-lo. Aliás, esta não é uma busca somente da
humanidade contemporânea.
O problema acerca de Deus ocupa grande parte da história da filosofia,
desde a antiguidade até nossos dias. Na antiguidade, a filosofia era concebida numa
ótica cosmológica, ou seja, a totalidade do real como cosmos. Assim, o divino fora
concebido de diferentes formas, por Anaximandro, como fundamento originário; por
Parmênides, como ser imutável; por Heráclito, como ordem do mundo; por
Anaxágoras, como princípio de movimento do mundo. Aliás, em Platão, tem-se a
idéia de Sumo Bem e Deus como Demiurgo; e em Aristóteles, como Ato puro e
Movente não-movido.
Na Idade Média, Deus estava ao centro do filosofar. A discussão era em
torno de sua existência verdadeiramente, uma vez que em Deus todos acreditavam,
mas o que buscavam os medievais em geral era compreender a existência divina.
Também na Idade Média foram temas muito debatidos a dialética, os
universais e as relações entre razão e a fé, tema este que foi abordado por muitos
filósofos.
Acredita-se que Anselmo tenha-se utilizado do tema de forma bastante
peculiar, partindo de que o evangelho de São João, afirma que no princípio era
apenas o verbo, Deus era o Verbo, o logos; portanto Deus era a palavra e também a
razão. Mas o homem é um ser finito e limitado assim como o mundo, e possui a
razão. Todavia, o homem é um ente que participa do logos. A expressão
característica da Idade Média, é que o homem é “medium quid inter nihilum et
Deum”, ou seja, “o meio entre Deus e o nada” 1.
Assim mesmo, a Idade Média é até hoje designada por muitos como “Idade
das trevas” ou “período obscuro”. Mas foi este período que fez emergir o
Renascimento e a Modernidade. Uma época na qual foram erguidas catedrais,
quando se organizou um sistema escolar extraordinário, universidades foram
criadas. Mesmo período no qual Tomás de Aquino escrevera a “Suma Teológica” e
Dante “A Divina Comédia”.
Foi nas bibliotecas dos mosteiros que sobreviveu a cultura antiga, copiaram-
se e até mesmo traduziram-se as obras dos clássicos.
Assim, designando o saber adquirido nas escolas a filosofia deste período foi
caracterizada por “Escolástica”.
No entanto, foi após o cristianismo se impor no Império Romano que a cultura
teve de incorporar conceitos que mais pertenciam à teologia do que propriamente a
filosofia. Foi assim que surgiu o problema entre fé e razão. E foi neste contexto, por
volta de 1077-1078 que Anselmo escrevera a obra da qual se trata neste trabalho.
Para Anselmo, não se deve observar as coisas do mundo para encontrar a
verdade, a verdade está em Deus, e em Deus o homem encontra a si mesmo.
Assim, só por amor a Deus que Anselmo elaborou a sua obra e dedicou sua vida;
elaborou o Proslogion como prova racional da existência de Deus, para embasar
racionalmente o que é crido pela fé.
Anselmo utilizou no Proslogion a razão como apoio a fé, assim podia-se ver
de forma racional que Deus existe verdadeiramente. Embora houvesse tentado
anteriormente em seu Monologion, o monge não ficou satisfeito, não com o
conteúdo da obra obviamente, mas com o grande número de argumentos. Assim, ao
desenvolver o Proslogion limitou-se a desenvolver apenas um argumento.
Argumento este que atualmente é conhecido como argumento ontológico, após ser
assim denominado por Kant.
Nas obras de Anselmo torna-se nítida a necessidade que o autor acreditava
existir em crer para compreender. Portanto, ambas as obras de Anselmo foram
1 Strefling, Sérgio Ricardo. O Argumento Ontológico de Santo Anselmo. p. 23.
escritas para pessoas de fé e não para fazer crer pela razão aqueles que ainda não
crêem.
Para Anselmo, a fé em Deus é uma exigência de amor. Mas, é uma fé
consciente, uma fé que busca compreender; de forma que Anselmo a entende como
regra de vida. Assim, para este monge beneditino, o primado da fé sobre a razão
significa que a nossa especulação metafísica deve partir das verdades da fé. Então,
acredita-se que foi com estes pressupostos que Anselmo desenvolveu o Proslogion,
importante obra produzida no seio da Idade Média.
Anselmo desenvolveu o Proslogion cuidadosamente, esperou em busca de
um argumento que lhe oportunizasse expor a verdade divina e compreendê-la até
onde lhe fosse possível, já que não buscava penetrar na verdade divina, pois tinha
consciência de sua pequenez, portanto buscava compreender a verdade divina até
onde lhe fosse permitido por Deus.
Mais tarde, em meio à filosofia moderna René Descartes (1596-1650), retoma
o argumento anselmiano. Nas Meditationes de prima philosophia (1641), embora
não haja uma menção explícita de Anselmo, até mesmo, porque provavelmente este
só conhecera o argumento indiretamente através da crítica de Tomás de Aquino.
Mas, nem por isso, é possível negar que a prova ontológica da existência de Deus é
retomada por Descartes nas Meditações Metafísicas2, através de uma renovação
radical do fazer filosofia primeira, ou seja, metafísica, teo-logia.
É exatamente com o argumento anselmiano e com a retomada do mesmo por
Descartes, que se ocupa este trabalho. Uma vez, que este trabalho, tem por escopo
tematizar à existência de Deus na filosofia e nas obras de Anselmo de Aosta e René
Descartes, assim respectivamente, no Proslogion e nas Meditações Metafísicas.
Este trabalho será constituído de dois capítulos. No primeiro abordaremos,
ainda que brevemente, a vida de Anselmo de Aosta; seu método, o argumento único
e ainda os atributos divinos contidos no Proslogion. No capítulo segundo,
abordaremos o argumento ontológico de Descartes contido nas Meditações
Metafísicas.
Utilizaram-se, para a realização deste trabalho as obras supra referidas, em
especial, o Proslogion de Anselmo de Aosta, redigido a pessoas de fé “redigi este
opúsculo como uma pessoa que se esforçasse para elevar a sua mente até a
2 Cf. Segunda edição francesa (1647).
contemplação de Deus, a fim de compreender aquilo em que acredita” 3 (proêmio ao
Proslogion, grifo nosso); Assim, como as Meditações Metafísicas, que se constituem
na principal obra metafísica de Descartes, apresentada em seis meditações, em
primeira pessoa, nas quais Descartes afirma “não instaria ninguém a ler este livro a
não ser os que são capazes e estão dispostos a meditar seriamente comigo” 4
(prefácio às Meditações, grifo nosso).
Portanto, é chegado o momento de desenvolver o conteúdo ao qual se
propõe este trabalho.
3 ANSELMO, S. Proslógio. proêmio, p. 98.4 COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. verbete Meditação, p. 110.
1. A fé Buscando Apoiar-se na Razão:
Neste capítulo será abordado, ainda que brevemente, os fatos mais
importantes da vida de Anselmo, suas obras desenvolvidas no seio da fé, assim,
como o método que este utilizou para desenvolvê-las; método este inovador e
diferenciado, cujo objeto único, era compreender as questões da fé; questões essas
que se fizeram presentes ao longo de sua vida, preocupando-lhe até o momento de
sua morte, assim, como a questão da origem da alma.
1.1. Santo Anselmo e o Método:
Anselmo nasceu no ano de 1033, na vila de Aosta, cidade que naquele tempo
marcava fronteira do que se chamava a Borgonha e a Lombardia.
Aos vinte sete anos, Anselmo faz-se monge em Bec, tendo como seu prior
Lanfranco; o qual, ele mais tarde, iria substituir. A partir de então tendo mais tempo
disponível, como prior em Bec, entrega-se totalmente à vida espiritual, à meditação
e ao estudo das Escrituras, cujas verdades não somente descobre senão que trata
de explicá-las e demonstrá-las com claras razões.
Anselmo se dedicou a escrever três tratados: De veritate, De libero arbítrio e
De casu diaboli. Escreveu também, o tratado Gramatico, no qual em diálogo com o
discípulo, propõe e resolve muitas questões dialéticas.
Entre as obras que compôs, destaca-se o seu livro intitulado Monologium,
onde Anselmo fala consigo mesmo e deixando de lado as Escrituras, busca somente
com a razão o que é Deus, e como é certo o que sobre isto diz a fé e que não pode
ser de outro modo.
Logo após, escreveu uma correção ao Monologium, que chamou de
Proslogion, porque nele se entretém com Deus ou consigo mesmo.
No ano de 1093, foi consagrado arcebispo de Cantuária. Mas, ao final do ano
de 1098, Anselmo recolheu-se a meditação e escreveu uma obra tratando da
redenção, que se intitulou, Cur Deus homo?
Até seus últimos dias, Anselmo continuava preocupado com a meditação
filosófica e com a questão, que segundo ele, lhe preocupava o espírito, a questão da
origem da alma. A morte veio ao seu encontro em 21 de abril do ano de 1109, aos
seus 76 anos de idade. Em seguida, começaram as romarias em sua honra na
Catedral de Cantuária.
Em princípio, a atitude de Anselmo diante da filosofia constitui uma clara
tomada de posição diante da questão dialética. A controvérsia entre dialéticos e anti-
dialéticos apresentava mais uma vez o problema das relações entre ratio (razão) e a
auctoritas (fé). Porém a posição tomada por Anselmo, foi de equilíbrio entre ambas.
Anselmo defendeu o uso da dialética para a explicação e compreensão das
verdades aceitas pela fé.
Assim, em todas as obras de Anselmo, aparece sempre o mesmo esquema
geral do pensamento, todas elas pertencem ao estudo das Escrituras. Por isso, o
original do método anselmiano é que as verdades obtidas pela especulação não
estabelecem sua força de persuasão na Escritura de onde se obtém; mas Anselmo
propõe-se a alcançar a compreensão da fé, portanto, apela para a razão para
descobrir nela o significado oculto.
Sendo assim, o Proslogion é um: “Exemplo de meditação sobre os mistérios
da fé para um homem que busca em silêncio, descobrir através da razão, o que
ignora” 5.
Nos diversos tratados, onde este método encontra-se aplicado, não se
apresentam como aplicação de uma verdade completa e já totalmente possuída.
São meditações e diálogos. O método consiste numa interrogação constante até o
descobrimento que satisfaz a alma e permite a ascensão para Deus.
O método anselmiano, na obra que é objeto de estudo deste trabalho,
destaca-se por ter como ponto de partida a fé, de forma que, visa à demonstração
da existência de Deus partindo da fé, mas utilizando apenas a razão para formular
um único argumento. Argumento este que serve para provar que Deus existe não
somente na inteligência (in intellectu), mas, também na realidade (in re).
O argumento que foi formulado por Anselmo, e o qual destacaremos ao longo
deste trabalho, tem início com a citação do Salmo 13 que consta nas Escrituras.
5 ANSELMO, S. Proslógio. proêmio, p. 97-98.
Assim, encontra-se mais um indício de que para Anselmo a fé é prioritária,
tendo a razão o papel de confirmar e embasar a fé. Não que a fé necessite de ser
embasada ou provada, mas para que possamos compreender aquilo que cremos.
Para Anselmo a fé, principalmente a fé em Deus, é uma exigência de amor;
mas esta fé, não é uma fé cega, e sim a fé que busca compreender. Anselmo utiliza-
se da razão para afirmar a sua fé e dos demais que crêem, ele busca compreender
as verdades divinas, até onde nos é possível, utiliza-se da razão para tentar atingir
seus objetivos.
Em Anselmo a fé é vista por ele como regra de vida, conforme se mencionou
no capítulo anterior, afinal ele era monge beneditino. Assim, a fé é o pressuposto
necessário para uma especulação acerca das verdades divinas; por ser prioritária, é
a partir dela que devemos buscar uma especulação metafísica.
Portanto, ao utilizar a razão para “provar” a existência divina deve-se partir da
fé e não da razão. Anselmo utiliza a razão não para fazer crer aqueles que não
crêem, mas para embasar a fé de quem crê; a razão seria uma espécie de apoio
para a fé. Mas, sobretudo, o “doutor magnífico” busca uma fé apoiada na razão.
Para ele, a fé vem em seguida da razão, de forma que não a suprime, pois necessita
dela, em certos momentos, inclusive para mostrar que a fé não é absurda.
Não há dúvida, que a doutrina de Anselmo é reflexo de uma experiência
espiritual. Para ele amor e conhecimento são inseparáveis. Portanto, buscar a Deus
é entender, é ser inteligente. Assim, quem pensa se esforçará por explicar a
imagem de Deus impressa nela, pois é daí que procede todo o progresso do
conhecimento. Nada é tão importante para a alma como recordar, compreender e
amar o bem supremo.
“Nada, portanto, fica mais evidenciado do que a criatura racional tenha sido feita para amar acima de todas as coisas a existência suprema, que é o bem supremo; aliás, para que nada ame a não ser ela, ou por causa dela, porque ela é boa por si, e nada há que seja bom a não ser por ela. Porém, não poderá amá-la se não se esforça para recordar-se dela e para compreendê-la. Fica claro, então, que a criatura racional deve colocar todo o seu poder e querer para recordar, compreender e amar o bem supremo, finalidade para a qual reconhece ter recebido a sua existência” 6.
6ANSELMO, S. Monológio. LXVIII.
Na obra de Anselmo destacam-se dois aspectos: forma e fundo,
método e objeto. O método é o das razões necessárias, que se apresenta como
prevalentemente filosófico e pressupõe que o objeto vem da ação livre de Deus livre
com o homem livremente criado e reconduzido para a liberdade mediante Cristo.
Desde o momento em que Deus expressa livremente a sua essência íntima, tudo
manifesta pela acolhida de sua palavra, e, por conseguinte, pela fé.
1.2. O Argumento Único:
O argumento ontológico, objeto deste trabalho, foi o que determinou que
Anselmo figure, com caráter permanente e em lugar destacado, ao longo da história
da filosofia.
Esta célebre obra de Anselmo foi escrita entre 1077 e 1078, e seria a
correção de sua obra anterior, o Monologion (1076-1078), mas, essa correção
conforme já mencionamos anteriormente, não se referia ao seu conteúdo, Anselmo
não ficou insatisfeito com isso, mas sim, com o número de argumentos contido no
Monologium, assim, escreveu o Proslogion, para que neste houvesse apenas um
único argumento. Argumento este que Paul Gilbert esquematiza da seguinte forma:
“1. Há, ao menos no entendimento, alguma coisa que não se pode pensar nada de mais grande; 2. Mesmo se há no entendimento, esta coisa de mais grande que não se pode pensar nada de mais grande, pode ser pensada também na realidade; 3. Ser pensada também na realidade é mais grande que ser pensada apenas no entendimento; 4. Portanto, existe, no entendimento e na realidade, alguma coisa que nada de mais grande pode ser pensada”7.
A gênese da obra, ou seja, o argumento ontológico, que busca provar a
existência de Deus a priori, encontra-se nos capítulos II a IV.
Anselmo inicia a obra com uma prece, uma preparação para o argumento, o
que reforça a idéia de que a obra foi muito bem esquematizada por ele e que não foi
escrita ao acaso. Mais ainda, somente foi escrita após uma busca incessante por um
único argumento que viesse provar a existência de Deus a priori.
Na opinião de Urbano Zilles, Anselmo teria baseado-se em alguns
pressupostos para escrever o Proslogion, tais pressupostos seriam: A. uma noção 7 Gilbert, Paul. Proslogion de S. Anselm, p. 51-52.
de Deus fornecida pela fé; B. convicção de que existir no pensamento já é
verdadeiramente existir; C. A exigência lógica de que a existência da noção de Deus
no pensamento determine que se afirme sua existência na realidade; D. o que existe
na realidade é maior ou mais perfeito de que o que existe só no intelecto; E. negar
aquilo de que não se pode pensar nada de maior exista na realidade, significa
contradizer-se8.
No capítulo II do Proslogion, Anselmo fala acerca de que “Deus existe
verdadeiramente”, ou seja, ser verdadeiramente é ser imutável e eterno, e como
Anselmo utilizou, significa ser não somente na inteligência (in intellectu), mas ser
também na realidade (in re).
Nas primeiras linhas deste capítulo, Anselmo indica os grandiosos temas que
serão tratados no Proslogion; sobre o ser de Deus e sobre a essência de Deus.
Assim, o primeiro tema indicado será desenvolvido nos capítulos II-IV e o segundo
nos capítulos V-XXVI. Assim, nestas primeiras linhas também é possível perceber
que Anselmo deixa-nos claro qual teria sido o seu ponto de partida, a fé. Afinal,
desenvolve este capítulo tendo como base o Salmo 13 que consta nas Escrituras.
“O insipiente disse, em seu coração: ‘Deus não existe’? Porém, o insipiente, quando eu digo: ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’, ouve o que digo e o compreende. Ora, aquilo que ele compreende se encontra em sua inteligência, ainda que possa não compreender que existe realmente. Na verdade, ter idéia de um objeto qualquer na inteligência, e compreender que existe realmente, são coisas distintas (...). O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência”9.
Ao dizer, ao insensato que o ser do qual não se pode conceber nada maior
existe na realidade, Anselmo está afirmando, esta é uma afirmação. Mas se o ser de
que não se pode pensar nada maior existe apenas na inteligência; pode haver algum
que exista na inteligência e realidade, e este seria ainda maior do que aquele que
existe apenas na inteligência.
“Mas ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’ não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-
8 ZILLES, Urbano. O Problema do Conhecimento de Deus. P. 19.9 ANSELMO, S. Proslógio. II, p. 102.
ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior.Se, portanto, ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ existisse somente na inteligência, este mesmo, do qual não se pode pensar nada maior, torna-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário pensar algo maior: o que, certamente é absurdo.Logo, ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’ existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade”10.
No entanto, este ser do qual não se pode pensar nada maior, existe
verdadeiramente, não se pode pesar que não exista o que necessariamente existe.
Pois, se se pode pensar que o ser do qual não se pode pensar nada maior, não
existe. Então, o ser que não se pode pensar nada maior, não é realmente o ser do
qual não se pode pensar nada maior, isto seria uma contradição.
No final do capítulo IV, Anselmo agradece a Deus por ter lhe proporcionado
ver através da razão, aquilo que antes apenas acreditava através da fé por Ele
gerada.
Anselmo relata ainda, que desta forma, mesmo que não quisesse crer na
existência de Deus, seria obrigado a admiti-la racionalmente.
Portanto, é possível perceber a argumentação a que Anselmo buscara, ou
seja, um único argumento que pudesse expressar de forma lógica e racional a
existência de Deus; encontra-se nos primeiros quatro capítulos; de forma que se
inicia com a prece contida no primeiro capítulo e termina com o agradecimento a
Deus, momento em que Anselmo demonstra plena confiança em ter alcançado ao
que se propusera ao escrever o Proslogion.
Assim, se observarmos, conforme já relatamos anteriormente o argumento
está contido do primeiro ao quarto capítulo do Proslogion de modo que ao iniciar a
argumentação Anselmo através de uma prece dialoga com Deus e no final, na última
linha do quarto capítulo, ele novamente dirige-se a Deus com a certeza de ter
atingido a sua meta. “Obrigado, meu Deus. Agradeço-te, meu Deus, por ter-me
permitido ver, iluminado por ti, com a luz da razão, aquilo em que, antes, acreditava
pelo dom da fé que me deste. Assim, agora, encontro-me na condição em que,
ainda que não quisesse crer na tua existência, seria obrigado a admitir
racionalmente que tu existes”11.
10 Id, ibidem, p. 104.11 ANSELMO, S. op. cit., p. 104.
1.3. Os Atributos Divinos:
Os atributos divinos estão localizados na obra, nos capítulos subseqüentes
ao argumento único, ou seja, a partir do capítulo V ao XXVI. Nesses capítulos,
Anselmo aborda os atributos divinos, que são eles: A perfeição, a infinitude, a
imensidade, a eternidade, a imutabilidade, a simplicidade, a unidade, o
conhecimento, a onipotência e o amor divino.
Anselmo concebe tais atributos da seguinte forma, vejamos:
A perfeição: segundo relata Anselmo no Proslogion, Deus é a perfeição e
todas as perfeições criadas estão em Deus. Se nas criaturas há traços de perfeição,
em Deus encontra-se a suma perfeição, Deus é a perfeição, de maneira que nos
criaturas não conseguimos atingir o seu grau de perfeição, nem mesmo, em
pensamento. Mas, Anselmo ainda identifica perfeição com bondade, logo, Deus é o
bem supremo e Nele se encontra a perfeição. Conclui-se assim que, Deus é a
perfeição da qual não se pode pensar algo maior. Ou nas palavras de Anselmo:
“Portanto, o que és tu, ó Senhor, Deus meu, tu de quem não é possível pensar nada maior? Mas, quem poderia ser, senão aquele que - supremo entre todas as coisas, único existente por si mesmo - criou tudo do nada? Com efeito, o que não é tudo isso é inferior àquilo que o pensamento pode compreender no seu mais alto grau. Mas isto não pode ser pensado de ti. Que tipo de bem poderia faltar, então, ao bem supremo, donde deriva toda espécie de bem?” 12.
A infinitude: Deus é infinito; afinal, não existe nada a não ser Deus que seja
infinito por essência. Assim ao afirmarmos que Deus é infinito, estamos afirmando
que Deus é sem limite em seu ser, Ele é o ser por si, o ser que existe por sua
própria essência. Assim, Deus de nada depende e ao qual tudo é subordinado, pois,
nada existe além e acima de Deus. Assim:
“Tu, portanto, preenches e abranges todas as coisas existentes, pois tu existes antes e depois delas. Existes antes, porque antes que elas existissem, tu já eras. Mas, como pode ser que tu existas ‘depois’ de todas as coisas? Como poderás existir ‘depois’ daquelas coisas que não terão fim? Talvez isso aconteça porque eles não podem existir sem ti, e tu não serias minimamente diminuído se todas as coisas voltassem de novo ao nada? Ou será que tu és posterior a elas porque é possível pensar delas que terão um fim, enquanto de ti não é possível sequer imaginar isso? Com
12Id., ibidem, V, p. 104.
efeito, todas as coisas de uma maneira têm fim; mas tu, nem desta maneira” 13.
A imensidade: é próprio de Deus estar em todas as partes; por essência, por
presença e potência. Assim, sendo infinito, Deus não pode ser limitado por coisa
alguma, logo, a imensidade é a perfeição infinita, assim Deus não ocupa algum
espaço e sim todos os espaços e todos os lugares, pois Ele o enche integralmente
com sua presença e onipotência. Todas as coisas estão em Deus: “Tu, ao contrário,
embora nada haja em ti, tu não estás, entretanto, em lugar e tempo nenhum; e tudo
encontra-se em ti, pois nada pode abranger-Te e, todavia, tu abranges todas as
coisas” 14
A eternidade: Deus por ser infinitamente perfeito é eterno, pois, somente são
finitos os imperfeitos, ser finito ou com duração limitada é uma imperfeição, portanto
não se pode conceber que Aquele do qual não se pode pensar nada maior, possa
ser imperfeito. Assim, se isso fosse possível, um ser do qual não se pode pensar
nada maior e perfeito, seria ainda maior do que este imperfeito.
“Mas se tu, por tua eternidade, foste, és e serás, e se ter sido não é vir-a-ser, de que maneira a tua eternidade tenha passado de modo a não existir mais, nem algo haja que está para formar-se, como se ainda não tivesse existência? Portanto, não exististe ontem, nem exististes hoje, nem existirás amanhã, porque ontem, hoje e amanhã tu existes; mas não se deve dizer ‘ontem, hoje, amanhã’ e, sim, simplesmente: existes; e fora de qualquer tempo” 15
A imutabilidade: a mudança consiste em processo de decadência ou
progresso, se Deus que é perfeito, sofresse mudança esta seria um processo de
decadência e então Ele deixaria de ser perfeito; ou se fosse um processo de
progresso, só é possível a um ser progredir se este não for perfeito, pois não existe
progresso além da perfeição. E Deus é mais que perfeito, é suma perfeição. Por isso
Deus é imutável, pois ser imutável é próprio dos seres perfeitos:
“Somente tu, ó Senhor, és aquilo que és e somente tu és aquele que és. Com efeito, o ser que não é o mesmo em sua totalidade e em suas partes, ou que está sujeito nalgum ponto a variações, esse, certamente, não é aquilo que é (...) Tu, ao contrário, és verdadeiramente aquilo que és, porque
13 ANSELMO, S. op. cit., XX. 14 Id., ibidem, XIX, p. 116.15 Id., ibidem, XIX, p. 116.
tudo aquilo que tu és, ainda que apenas uma vez e de alguma maneira, continuas sendo completamente e sempre” 16
A simplicidade: para Anselmo, Deus é o próprio ser e essência, sendo
assim, é puramente simples. Deus é absolutamente simples:
“Mas como podes, ó Senhor, ser todas essas coisas? Ou elas, quiçá, são partes de ti, ou cada uma já é tudo aquilo que tu és? Mas aquilo que tem partes não é uno, e, sim, composto e distinto de si mesmo e pode-se fracionar, ou na realidade ou pelo ato do pensamento. Porém isso não se pode afirmar de ti, que és o ser do qual não se pode pensar nenhuma coisa melhor. Porém isso não se pode afirmar de ti, ó Senhor. Tu não és múltiplo; és uno e idêntico a ti e de maneira alguma há diferenças em ti. Aliás, tu és, a unidade absoluta, aquela que nem o pensamento consegue fracionar (...) portanto, tu não tens partes, e a tua eternidade - pois se identifica contigo - não é parte de ti, nem da tua eternidade” 17
A unidade: Deus não pode ser dividido em partes ou que existam duas ou
mais divindades. Pois, se Deus concorresse com outro poder semelhante, não
poderíamos afirmar a onipotência de Deus, a razão não pode compreender de outra
forma os dados da revelação, a não ser que Deus é uno. Para Anselmo, a Trindade,
ou seja, o Pai, o Filho e o Espírito Santo não pode ser uma coisa ou outra, mas sim
uma coisa só. Portanto:
“Assim tudo o que é cada um, o mesmo é, completa e simultaneamente, a Trindade - Pai, Filho e Espírito Santo -, porque cada um deles outra coisa não é senão a unidade sumamente simples e a simplicidade sumamente una, que não pode nem multiplicar-se nem ser uma coisa ou outra. Aliás, há apenas um único ser necessário, e é aquele necessariamente uno, no qual encontra-se todo o bem. Ou melhor, ele é o bem completo, o único, o bem total e exclusivo” 18
O conhecimento: em Deus conhecimento e sabedoria se identificam. E Deus
é a própria sabedoria, o homem precisa conhecer para saber, mas Deus é a
sabedoria que criou todas as coisas:
“Oh! Quão grande é esta luz donde desponta e brilha toda a verdade, que resplandece aos olhos da alma dotada de razão! Quão imensa esta verdade em que se encontra tudo o que é verdadeiro, e, fora dela, não há senão o nada e a mentira! Quão imensa é ela, que com um só olhar, enxerga todas as existentes, assim como o princípio, o poder e a maneira com que tudo foi
16 Santo ANSELMO, op. cit., XXII, p. 118.17 Id., ibidem, XVIII, p. 115-116.18 Santo ANSELMO, op. cit., XXIII, p. 119.
feito do nada! Que pureza, que simplicidade, que limpidez, que brilho se encontram nela! Muito mais do que a criatura possa compreender” 19
A onipotência: para Anselmo, em Deus encontramos a máxima potência, a
suma potência. Ser onipotente não significa fazer tudo, mas no caso de Deus, ter
poder para não fazer aquilo que é contrário ao verdadeiro poder.
“Mas como poderás ser onipotente se tu não podes tudo? Como poderás ser onipotente desde que não é possível a ti nem morrer, nem mentir, nem fazer com que o verdadeiro se transforme em falso? Salvo se poder fazer coisas desta espécie não é potência, mas verdadeira impotência, pois quem pode fazer coisas assim, tem a possibilidade de fazer, evidentemente, coisas funestas e contrárias ao dever e, quanto mais tiver poder para fazê-las, tanto mais o mal e a perversidade adquirem força sobre ele e tanto menos ele consegue resistir-lhes. Quem tem, portanto, semelhante faculdade não possui o poder, mas o não-poder (...) portanto, Senhor meu Deus, tu és onipotente no sentido mais verdadeiro e próprio, pois nada tu podes por impotência e nada há que possa prevalecer contra ti” 20
O amor: em todas as obras de Deus existe amor. Amor significa justiça e
misericórdia. Por ser justo Deus perdoa e castiga. E não há contradição em Deus
também perdoar os maus, pois, Ele perdoa os maus por sua bondade divina, e isto é
justo com ele mesmo; mesmo que não seja para nós. Deus é misericordioso, porque
a misericórdia convém a Deus.
“Realmente, pois, todos os caminhos do Senhor, são misericórdia e verdade, igualmente o Senhor é justo em todos os seus caminhos. Não há discordância certamente entre estas duas verdades, porque não é justo que sejam condenados aqueles aos quais queres perdoar. Justo é somente aquilo que tu queres, e injusto, aquilo que tu não queres. É desta maneira, pois, que da tua justiça nasce a tua misericórdia, porque é justo que tu sejas de tal forma bom que, ainda quando perdoas, seja bom” 21
1.4. Como o Argumento Era Visto na Escolástica:
19 Id., ibidem, XIV, p. 113.20 Id., ibidem, VII.21 Santo ANSELMO, op. cit., V, p. 104.
A Escolástica (séculos XI-XIV), etimologicamente, derivada de schola
(escola), caracteriza o período em que o saber era adquirido nas escolas, através de
um orientador ou mestre. O saber neste período não era adquirido através da prática
e sim por intermédio da leitura de grandes obras literárias onde sintetizava-se o
saber da época. Somente aqueles que não possuíam preocupações materiais, e
permaneciam numa atitude de ócio, podiam dedicar-se a este método.
Anselmo ficou conhecido por “pai da escolástica”, por sua aceitação
incondicional da verdade revelada somada ao empenho de penetrá-la com
inteligência, com o intuito de fundamentar a fé com razões indiscutíveis.
Mas, faz-se necessário ressaltar que a escolástica não limita-se ao
cristianismo, sendo que, foi um fenômeno cultural amplo que abrangeu outras
culturas.
As investigações por parte da filosofia, neste período, eram iluminadas pela
fé. Houve uma união entre filosofia e teologia, proporcionando um importante
intercâmbio entre ambas.
O argumento anselmiano influenciou, e muito, a escolástica, embora tenha
sido aceito por alguns e rejeitado por outros, tornou-se uma obra evidenciada entre
as demais obras de Anselmo.
1.4.1.O Método Escolástico:
O método escolástico nasceu a partir de uma necessidade. Nascido junto às
denominadas escolas que mais tarde tornaram-se universidades. O método de
ensino era basicamente a leitura e o comentário de um determinado texto e a
discussão dos problemas nele abordado. O texto era por conta do mestre e as
discussões contavam com a participação também dos discípulos ou alunos.
Neste período, surgiram os comentários (comentaria) aos textos estudados,
dos Padres da Igreja, e também de Aristóteles no século XIII.
Surgiu também o gênero literário chamado questões (quaestiones). Uma
série de problemas analisados sempre sob a orientação de um autor considerado
autoridade nos mesmos. Havia as questões do cotidiano e as questões referidas a
disputas especiais que ocorriam duas vezes no ano.
Assim, do tratamento pormenorizado e a forma separada e breve de uma
questão surgiram os opúsculos. Os gêneros literários da escolástica culminaram nas
sumas (summae), ou seja, grandes sínteses doutrinárias expostas em forma
sistemática.
Pela qualidade das obras do período escolástico, percebemos o quanto
destacava-se nesta época, o alto nível intelectual no diálogo entre mestres e
discípulos, ou seja, quase uma impossibilidade em nossa época, cujo diálogo, na
maioria das vezes nem mesmo ocorre.
1.4.2.A Refutação de Santo Tomás de Aquino:
Tomás de Aquino objetou que nem todos entendem o argumento no sentido
proposto por Anselmo. Para ele existe uma diferença entre o ser no intelecto e o ser
na realidade. Assim, entender o nome Deus no sentido proposto não significa
afirmar sua existência na realidade.
A existência de Deus não é evidente para a inteligência humana, pois esta
não pode perceber direta e intuitivamente a essência divina. Portanto, para Tomás
de Aquino a existência de Deus necessita ser demonstrada.
Para Tomás de Aquino, a verdade é que não podemos formar em nossa
inteligência uma idéia positiva e adequada de Deus, que nos permita ver nela
intuitivamente incluída a sua existência. Santo Tomás, conclui a esse respeito que
não possível demonstrar a existência de Deus através de um procedimento a priori,
como pretende Anselmo com seu argumento, mas somente a posteriori, ou seja,
partindo de seus efeitos.
“Em primeiro lugar, não é evidente a todos, mesmo aos que admitem que Deus é, visto que muitos dos antigos afirmaram que o mundo é Deus. Nem tampouco as diversas interpretações apresentadas por Damasceno para o nome deus nos levam àquela evidência. Em segundo lugar, mesmo que todos entendam pelo nome deus algo acima do qual nada de maior se possa conceber, não é necessário que exista na realidade, este algo acima do qual nada de maior se possa conceber. De fato, deve haver correspondência entre coisa e o nome que a define. Contudo, daquilo que o espírito concebe quanto ao nome deus, só se pode concluir que deus existe apenas em nossa mente. Por outro lado, não é menos necessário que o ser acima do qual nada de maior se possa conceber esteja na nossa mente. Pois bem, de tudo isso não se pode concluir que exista na natureza algo
acima do qual nada de maior se possa conceber. E, assim, não haveria inconveniente algum para os que negam que Deus é”22
Assim, Santo Tomás aceita as premissas do argumento de Anselmo, mas
nega-lhe a conclusão. Aceita que o Ser perfeitíssimo não pode ser concebido senão
como existente, mas agrega que isso significa que existe só no intelecto e não na
realidade. Portanto, ainda que contraditoriamente, Santo Tomás admite a identidade
entre essência e existência, em Deus.
1.4.3.A Fundamentação de Duns Escoto:
Assim como Tomás de Aquino, Duns Escoto admite que a existência de Deus
não é uma verdade evidente em si mesma, e por isso deve ser demonstrada a
posteriori.
Escoto reconhece o valor persuasivo constante no argumento anselmiano
embora não aceite tal argumento. Embora, acredite serem verdadeiras as
afirmações de Anselmo expostas no mesmo.
Portanto, para Duns Escoto a existência de Deus não pode ser demonstrada
a priori, porque toda demonstração a priori é demonstração pelas causas e Deus
não tem causa, senão que Ele é a causa de si mesmo e de todos os demais entes.
Mas, pode-se demonstrar sua existência a posteriori, ou seja, por seus efeitos.
“Embora a proposição ‘Um ser infinito existe’ seja demonstrável pela natureza dos termos, com demonstração ‘propter quid’, para nós é impossível demonstrá-la deste modo. Todavia, podemos demonstrá-la com demonstração ‘quia’, partindo das criaturas”23.
Após revisar o argumento ontológico Escoto percebe que o erro da
prova consiste em supor que a idéia de Deus, como ser existente, é uma verdade
imediata para a consciência, sendo assim que, em realidade, necessita ser
demonstrada, ainda que para fazer isto seja necessário comparar as idéias entre si.
Mas, precisa-se demonstrar a posteriori que a idéia de Deus do ser máximo que se
pode pensar é a idéia de um ser possível em si mesmo.
22 AQUINO, Tomás de. Suma contra os Gentios. vol. I, cap. X.23 Id., ibidem, p. 93.
2. A Forma Ontológica da Idéia e Causalidade de Deus:
Muitos séculos após o argumento ontológico de Santo Anselmo, foi
apresentada por Descartes uma outra versão do argumento a priori. E este, quando
questionado por Caterus (autor das Primeiras Objeções) se seu argumento não seria
uma reedição do argumento anselmiano, Descartes responde que não conhecia a
obra de Santo Anselmo e que iria à biblioteca consultá-la24. Mas, ao Pe. Mersenne
escreve, em dezembro de 1640, que verá Santo Anselmo na primeira
oportunidade25.
Agora, vejamos como é apresentado este argumento a priori na filosofia de
Descartes.
2.1.O Método na Filosofia de Descartes:
Assim, como ocorreu com Anselmo, Descartes destaca-se em seu período
devido à proeminência do método em sua filosofia, é considerado o pai do
pensamento moderno. Método esse capaz de erigir uma ciência certa, que domine a
natureza.
Devido à anarquia reinante no primeiro período do renascimento, em meados
do século XVI começa a preocupação com a questão do método. Outros autores
anteriores a Descartes já haviam colocado o problema; alguns como: Cornélio
Agripa, Luís Vives, Melchior Cano, Jacó Acôncio, Leonardo da Vinci, Galileu, Francis
Bacon, Campanela, assim como Ramus e os ramistas que falavam de uma “lógica
da invenção” e propunham o método dedutivo na ciência. 26
Aliás, como diz Guillermo Fraile em sua obra “História de la Filosofía”, a
preocupação com o método vem desde a antigüidade, com o Estagirita e os filósofos
do Pórtico. A proclamação do método remonta-se até o Organon de Aristóteles e a
Lógica dos estóicos, que não são outra coisa a não ser, regras para dirigir
devidamente a atividade intelectual na investigação científica.
Tratando-se de Descartes, Fraile afirma que o método se converte em
obsessão. Mas, acredita-se que o método constitui-se, para Descartes, no ponto de
24 FRAILE, G. História de la Filosofía, v. III, p. 527.25 JESUS, Luciano Marques de. A Questão de Deus na Filosofia de Descartes. p. 88.26 FRAILE, G. op. cit,. p. 494.
partida para se chegar à verdade e, também, na base de toda sua filosofia. John
Cottingham, fala a este respeito: “Embora sua abordagem não fosse totalmente
original, não há dúvida de que Descartes dedicou bastante atenção sistemática e
cuidadosa ao problema de especificar o método correto para a filosofia” 27.
Embora a questão do método, como a da dúvida e do cogito, não seja
de todo original em Descartes, é de sua filosofia que parte o pensamento moderno,
ela é o ponto de referência de todo pensamento posterior.
O método, na filosofia de Descartes, possui um caráter propedêutico, é
como o preâmbulo de sua filosofia. Mas, a idéia de uma ciência universal é anterior
a qualquer formulação concreta de método.
Em 1628, Descartes fez uma exposição geral do método, em sua obra
“Regras para direção do espírito”, onde supõe uma ordem única nas ciências e no
método, análoga à matemática. Esta unidade tem como condição suficiente a
unidade do espírito conhecedor.“(...) todas as ciências nada mais são que a
sabedoria humana, a qual permanece sempre una e idêntica, por muito diferentes
que sejam os objetos a que se aplique, e não recebe deles mais distinções do que a
luz do Sol da variedade das coisas que ilumina” 28.
Para Descartes, conforme afirmou em sua obra “Discurso do Método”, a
capacidade de distinguir o verdadeiro do falso é comum a todos os homens, a
diversidade das opiniões, decorre da multiplicidade de caminhos e da consideração
de coisas diferentes; uma vez que a razão é a coisa do mundo mais bem partilhada.
Portanto, existe a necessidade de uma regulamentação e de um controle da
razão, para que ela proceda retamente na busca da verdade. Assim: “O ‘poder de
julgar bem e distinguir o verdadeiro do falso’ deve der regulado pelo método” 29.
Descartes, afirmou em certa ocasião30, que após o final de seus estudos
encontrara-se em meio a tantas dúvidas, que o fruto de sua instrução, não fora outro
a não ser a descoberta de sua ignorância. Mas, o estudo das matemáticas lhe
agradava. Portanto, é no Discurso do Método, que se pode perceber o projeto de
Descartes: alargar o alcance da matemática, então restrita a aplicações técnicas
(agrimensura, cartografia, arquitetura) e estender sua certeza ao conjunto do saber,
e cuja certeza está ligada à evidência e ao método (ordem).
27 COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. verbete método, p. 119.28 DESCARTES, René. Regras para a Direção do Espírito. p. 12.29 JESUS, Luciano Marques de. A Questão de Deus na Filosofia de Descartes. p. 18.30 DESCARTES, René. Discurso do Método. I, p. 30.
O desejo e a tarefa de Descartes consistiram, propriamente, em levar a cabo
esta síntese. Assim, no final da primeira parte do Discurso, afirma:
“E eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida (...) tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças do meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir” 31
Na Quarta das Regras, Descartes afirma expressamente que “o método é
necessário para a procura da verdade”. E assim o define:
“Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber” 32
Em sua obra Regras Descartes chega a enumerar vinte e uma, já no
discurso ele as reduz a quatro33. Assim, a primeira regra é a dita da evidência: deve-
se proceder com cautela, evitando toda precipitação e suspender o juízo até que a
idéia se apresente de forma clara e distinta que eu não possa pô-la em dúvida. É
evidente, portanto, o que aparece imediatamente ao entendimento. Assim, emerge
um conceito fundamental para se compreender todo o pensamento cartesiano: a
intuição. A intuição será à base do conhecimento confiável.
A segunda regra, chamada da análise, consiste em dividir cada uma
das dificuldades em quantas parcelas forem possíveis e necessárias para melhor
resolvê-las.
A terceira regra, chamada da síntese, consiste em conduzir por ordem
os pensamentos, indo dos mais simples e fáceis de conhecer aos mais complexos,
supondo uma ordem mesmo entre os que não se precedem uns aos outros.
A quarta regra, consiste em enumerar completamente os dados do
problema e fazer revisões gerais, de modo a ter certeza de nada omitir.
O método cartesiano, a partir da exposição dos preceitos, pode ser
encarado sob um duplo aspecto. O aspecto crítico: o método é o resultado do
esforço da vontade, graças ao qual o entendimento recusa o que não for claro e 31 DESCARTES, René. op. cit., I, p. 30.32 DESCARTES, René. Regras para a Direção do Espírito. p. 24.33 JESUS, Luciano Marques de. A Questão de Deus na Filosofia de Descartes. p. 22.
distinto (primeiro preceito). O segundo aspecto, que pode ser denominado
heurístico, estabelece que o método é um conjunto de processos de descoberta.
Neste ponto é mister assinalar que as regras de Descartes são mais abundantes e
flexíveis. Isto é testemunhado pelo fato de as Regras terem permanecido
inacabadas, o que manifesta a impossibilidade de resolver, por procedimentos
semelhantes, todos os problemas. Assim, são três as noções que determinam os
preceitos do método, a saber, intuição, dedução e ordem.
Portanto, o objetivo da ciência cartesiana será de substituir o aparente
caos da experiência por um todo ordenado e metodicamente engendrado.
2.2.A Primeira Formulação Metafísica de Descartes:
A primeira elaboração metafísica de Descartes foi a teoria da criação das
verdades eternas, consoante a qual, Deus criou, por sua livre vontade, as verdades
eternas, que compreendem “as evidências lógicas, as verdades matemáticas, as leis
físicas, as essências das coisas e, outrossim, os valores morais”. Segundo
Descartes, Deus é o autor da essência tal como da existência das criaturas34. Se
assim não fosse, a liberdade de Deus seria limitada.
Deus é absolutamente livre e onipotente, o que supõe uma total indiferença
na origem de toda a criação. Afirma Descartes:
“Repugna que a vontade de Deus não tenha sido em toda a eternidade indiferente a todas as coisas que foram feitas ou serão feitas um dia, não havendo nenhuma idéia que represente o bem verdadeiro, o que cumpre crer, o que cumpre fazer, ou o que cumpre omitir, que se possa fingir ter sido o objeto do entendimento divino, antes que sua natureza tenha sido construída assim pela determinação de sua vontade (...). Uma inteira diferença em Deus é uma prova muito grande de sua onipotência” 35.
Para Descartes, Deus é infinito e não pode ser compreendido, mas
pode-se atingi-lo com o pensamento, da mesma forma que podemos tocar com as
mãos uma montanha, mas não podemos abraçá-la como fazemos com uma árvore
ou outra coisa que não exceda o tamanho de nossos braços36. Em todo caso, para
saber uma coisa é suficiente tocá-la com o pensamento. Na Meditação Terceira
34 JESUS, Luciano Marques de. op. cit., p. 27.35 Citado por PASCAL, G. Descartes, p. 58.36 JESUS, Luciano Marques de. op. cit., p. 29.
afirma que “é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não
possa compreendê-lo” 37.
Segundo Descartes, no homem pode-se distinguir entendimento e
vontade; esta distinção, no entanto, não é válida para Deus38.
A teoria da criação das verdades eternas não figura em nenhuma
exposição sistemática da filosofia cartesiana. Assim, de alguma forma, ela é a
síntese da metafísica de Descartes.
A teoria da criação das verdades eternas por Deus é complementada
pela chamada teoria da criação continuada (ou contínua), que aparece nas obras de
Descartes: no Tratado do Mundo, no Discurso, nas Meditações e, também, nos
Princípios. Segundo esta teoria, a criação não deve ser remontada somente à
origem do mundo. Toda a substância finita é mantida continuamente por Deus. A
ação de conservação do mundo é a mesma da criação.
Desta teoria pode-se obter duas conseqüências, a primeira é no campo
da física, na qual se tem a distinção entre movimento geometricamente definido e a
força motriz, cuja causa é Deus.
A outra conseqüência é a de ordem metafísica: o mundo é
desentificado, desrealizado. Assim, para Descartes o homem não mais contempla a
natureza ou a teme, mas a domina. A natureza é, pois, manejável. Mas, por isto
mesmo, só pode ser pensada sobre o pano de fundo do infinito. De novo, a ciência
cartesiana apela à metafísica.
2.2.1.A dúvida e a questão de Deus
A dúvida é o ponto de partida necessário da metafísica de Descartes, ou de
toda a metafísica.
37 DESCARTES, René. Meditações. III, 22, p. 30.38 JESUS, Luciano Marques de. op. cit., p. 30.
“A dúvida é o único meio de conceber corretamente as coisas imateriais ou metafísicas. Segue-se daí que aquele que ainda não se exercitou suficientemente na dúvida é de todo incapaz de compreender qualquer coisa de metafísica e, em conseqüência, que também não poderia em absoluto compreender nada da verdadeira natureza do sujeito pensante e do próprio Deus” 39.
Há uma estreita ligação entre a dúvida e as provas cartesianas da existência
de Deus. Na dúvida existe uma dialética de um pensamento imperfeito (infinito, pelo
qual o finito existe), do eu (que duvida) em direção a Deus. Há uma ligação assaz
estreita entre a dúvida e a compreensão de Deus (enquanto ela nos é acessível).
Afirma Lacroix:
“(...) aquele que tiver levado a ascese da dúvida bem adiante adquire por este mesmo processo um conhecimento intuitivo de Deus (...). De fato, Deus é puro Espírito e, sendo a dúvida o esforço supremo de espiritualização do espírito, torna-se evidente que exercitar-se nela representa aproximar-se do próprio Deus” 40.
Assim, a este respeito, afirma o próprio Descartes:
“Além disso, ao nos determos por muito tempo nesta meditação (a primeira) adquirimos pouco a pouco um conhecimento claro e, se assim ouso dizer, intuitivo, da natureza intelectual em geral, idéia que sendo considerada sem limitação, é a que nos representa Deus, e limitada, é a de um anjo ou de uma alma humana” 41
A perspectiva de Descartes e a concordância de Lacroix mostram que a
dúvida (que é real, etc.) não conduz, no seu termo, ao ceticismo, mas ao
conhecimento e, mais do que isto, ao conhecimento do próprio Deus.
A frase mais conhecida de Descartes, e talvez de toda a história da filosofia,
“eu penso logo existo”, surgiu primeiramente em francês, “je pense, donc je suis”, no
Discurso, em 1637:39 Id., ibidem, p. 41.40 Citado por JESUS, Luciano Marques de. op. cit., p. 42.41 DESCARTES, René. Oeuvres et Lettres. (Carta a Silhon, p. 962), citado por JESUS, Luciano Marques de. op. cit. p. 42.
“Adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava” 42.
Mas, tornou-se mais conhecida sob a forma latina Cogito, ergo sum, que
aparece nos Princípios e na tradução do Discurso, ambos de 1644. Contudo, está
nas Meditações43 (ego cogito, ego sum), de 1641, a exposição que melhor expressa
a primeira posição firme de Descartes:
“Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição: Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a anuncio ou que a concebo em meu espírito” 44.
Assim, enquanto duvida Descartes busca uma certeza, ou se isso não for
possível, afirma no início da Meditação Primeira, deseja prosseguir até aprender
“certamente, que não há nada no mundo de certo”45.
Extraordinariamente, é da dúvida universal e radical que gera a nova
certeza primeira: o cogito. E mais ainda, o cogito já esta presente na dúvida; é que
na dúvida mesma há uma afirmação sem a qual a dúvida não poderia existir e que
não se pode pôr em questão e da qual não é possível tentar libertar-se sem com
este mesmo ato recolocá-la: a afirmação do pensamento. Assim, quanto mais
extremada se torna a dúvida, mais profunda se torna a afirmação deste pensamento.
42 DESCARTES, René. Discurso do Método. IV, p. 46.43 Cumpre assinalar a diferença de perspectiva existente entre o Discurso e as Meditações. O cogito no Discurso tem o escopo de erigir um critério da verdade científica, não põe em causa, como as Meditações, um problema ontológico. Assim o cogito aparece no Discurso, antes de mais nada, como a mais clara das verdades, exemplo e critério de todas as verdades. E nas Meditações o cogito, ou melhor, o sum é mais que o modelo das idéias, é o sujeito e o ser de todas as idéias (ver nota, Id, ibidem, p. 43).44 DESCARTES, René. Meditações. II, 4, p. 92.45 Id., ibidem, II, 1, p. 91.
O cogito é o ponto arquimédico do qual parte toda a filosofia de Descartes, é
o primeiro elo da cadeia das verdades positivas. Assim, o cogito se constitui no
modelo e critério de todas as verdades, a partir dele pode-se afirmar que “as coisas
que concebemos mui clara e mui distintamente, são todas verdadeiras” (DM, IV, p.
47; M, III, 2, p. 99-100).
No texto das Meditações, a frase eu penso, logo existo, cede lugar à
expressão eu sou, eu existo. Assim, Descartes faz relação com o pensamento. O
que garante a certeza do eu existo é um processo de pensar e o que dá a certeza da
existência é o fato de estar pensando.
“Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou existir. (...) nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa (res cogitans), isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão”46.
A existência é afirmada somente em função do pensamento, enquanto este
durar. Porém, no cogito não há uma afirmação do primado do entendimento em
geral. Afinal, a expressão que ele retoma constantemente é sum res cogitans (sou
uma coisa que pensa). Res significa não coisa material, mas ser, substância.
Portanto, o cogito apreende-se na primeira pessoa, e postula a existência de um
concreto: Ego existo. O pensamento é ligado a um eu, a uma coisa que pensa, a
uma alma.
O sujeito é uma alma e sua natureza é pensar, mas quando se questiona o
que seria uma coisa que pensa, Descartes descreve como: uma coisa que duvida,
que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e
que sente. Assim, são diferentes os modos de pensar, mas todos pertencem à alma.
Ao chegar a esse ponto em seu itinerário metafísico, Descartes possui uma
certeza absoluta e inabalável - a certeza de existir e enquanto pensa - assim,
Descartes procede, agora, a uma inspeção do eu, analisando as idéias que ele
possui. E aqui, encontramos um novo ponto de partida no tratamento da questão de
Deus, que seria o cogito, o eu pessoal.
46 DESCARTES, René. Op. cit. II, 7, p. 93-94.
As provas da existência de Deus, que seguem, partem justamente da
consciência da finitude do eu. O novo ponto de partida é o sujeito. Com Descartes, o
sujeito passa a ter o primado sobre o objeto. Este aspecto do pensamento
cartesiano pode ser caracterizado como um giro copernicano. O teocentrismo cede
seu lugar para um antropocentrismo sólido e fundamentado, o homem é o centro e
está sustentado por si mesmo.
2.3. As Provas da Existência de Deus nas Meditações Metafísicas:
É na primeira das Meditações Metafísicas que Descartes afirma que irá
preocupar-se apenas com duas questões, a primeira a existência de Deus e a
segunda a imortalidade da alma. Assim, inicia sua reflexão pondo em dúvida
qualquer realidade imediatamente apresentada, como vimos anteriormente, está é a
chamada “dúvida metódica” cartesiana.
A proposta de Descartes é que devemos duvidar de tudo, não apenas das
idéias e imaginações mentais, mas também das nossas próprias percepções
sensíveis, afinal não podemos excluir a possibilidade de essas percepções serem
falsas. O próprio Descartes conclui, que devemos duvidar de tudo; percebendo
inclusive a hipótese de haver um “gênio maligno”, uma espécie de deus negativo,
que diria o que podemos ou não pensar, fazendo com que pensamos coisas,
mundos, sonhos que não correspondam à verdadeira e efetiva realidade das coisas.
Assim, apresenta-se para Descartes uma lacuna entre as coisas pensadas,
imaginadas na mente do homem, e as efetivamente experimentadas, as coisas
concretas e materiais. Abrindo-se assim, um espaço entre as coisas pensadas e
coisas espacial e realmente passíveis de experiência sensível. Mas, já na Idade
Média com Anselmo se pode encontrar um encaminhamento para esta diferenciação
entre idéia e coisa real, quando ele distingue o ser in intellectu (no intelecto) e o ser
in re (na coisa), o ser somente no intelecto e o ser na coisa, e como depois resolva a
diferença através da idéia de Deus, idéia que implica necessariamente na própria
existência.
Para Descartes devemos duvidar de tudo, porque o fato de possuirmos na
mente alguma idéia não significa necessariamente que esta seja derivada da coisa
real da qual deveria ser a representação. Poderia ser que o gênio maligno, que o
artífice, princípio de todas as realidades, seja tão mau em relação ao homem de tal
modo a fazer que ele possa se enganar, que experimente coisas reais pensando-as
de modo diferente daquele que efetivamente são.
Assim, Descartes chegou a deparar-se com um caminho quase ascético de
separação de si, da própria mente de qualquer contato com o exterior, de qualquer
comprometimento com realidades sensíveis, com imaginações impróprias, à
procura, através da dúvida, de alguma coisa indubitável e certa sobre a qual
fundamentar toda a direção do próprio conhecer, do próprio saber, tendo chegado a
desespero extremo de sentido em relação à realidade externa e à veracidade das
próprias idéias, das próprias imaginações. Então considerou que, era verdade ele,
duvidava de tudo, da realidade externa, da existência de Deus, das suas
imaginações, das idéias que não sabia da onde proviam, que não sabia se diziam ou
não a verdade em relação ao que desejam representar, mas não podemos duvidar
do ato de duvidar porque desta forma entraria em um círculo lógico enquanto, no
momento em que duvidasse de duvidar, duvidaria, e portanto afirmaria que estava
duvidando.
Assim, fundamenta-se a famosa frase de Descartes, da qual falamos a
pouco, “cogito ergo sum”, uma vez que duvidamos de tudo, estamos a duvidar e
duvidar é uma atividade do pensamento, e se pensamos, novamente, “cogito ergo
sum”. Duvido = penso, penso logo sou, penso, portanto existo.
Na segunda das Meditações Metafísicas é notória a importância fundamental
para o pensamento que Descartes atribui em relação à materialidade das coisas,
como separa o espírito da matéria, o pensamento da extensão e separando-o
mantenha o elemento essencial para depois acessar a própria realidade material.
Assim, afirma-se a importância do espírito, da introspecção interior. Através da
introspecção interior que deixe de lado qualquer coisa exterior a si mesma,
poderemos procurar o caminho, o método, a via para que possa atingir qualquer
conhecimento.
As idéias em si mesmas, sem fazer uma comparação com as coisas externas
de que deveriam ser idéia ou não, não são falsas. Assim, Descartes classifica as
idéias como: 1) inatas; 2) adquiridas, 3) construídas. Portanto, as idéias inatas são
aquelas em que não encontramos uma origem interna ou externa a nós, mas
encontramos como algo já dado. A idéia adquirida é aquela que deriva de algo
externo. As idéias construídas são aquelas que, podemos tê-las feito nós mesmos,
ou seja, nós as construímos.
Já na terceira e quinta meditação encontraremos o que podemos chamar de
forma ontológica da idéia e causalidade de Deus. É nelas que são apresentadas três
provas da existência de Deus (alguns intérpretes proproram que nenhuma das duas
provas apresentadas na terceira meditação sejam uma prova ontológica, como é,
sem dúvida a apresentada na quinta meditação).
Assim, vejamos os três argumentos apresentados por Descartes, que
consideramos escritos para provar a existência de Deus: nos dois primeiros procede
a partir dos efeitos (da idéia de Deus presente no sujeito e de sujeito que possui a
idéia de Deus), causalmente; no terceiro, em que procede a priori, chamado desde
Kant de argumento ontológico, deduz da idéia de Deus a sua existência. As provas
estão expostas nas Meditações, em forma sistemática e muito mais extensa do que
nos Princípios e nas Respostas às objeções (especialmente nas primeiras e nas
segundas).
Assim, é a partir da primeira prova da existência de Deus, que Descartes fica
persuadido de que o eu não pode tirar a idéia de Deus de si mesmo apenas.
Portanto, deve-se concluir que Deus existe. Afinal, mesmo que o eu seja uma
substância e, portanto tenha a idéia de substância, de onde vem a idéia de
substância infinita, uma vez que o eu é uma substância finita, se esta não tivesse
sido nele colocada por uma substância realmente infinita.
“Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas”.47
Assim, o ponto de partida do processo lógico de demonstração da primeira
prova cartesiana da existência de Deus, é a idéia de Deus (infinito). E aí
encontramos a originalidade de Descartes, que consiste em fazer do infinito positivo
a própria condição do pensamento negativo. Portanto, o infinito é ontologicamente
primeiro em relação ao finito, mesmo se cronologicamente a primeira certeza é a do
meu ser finito.
47 DESCARTES, René. Meditações. 22, p. 107.
A idéia de Deus é muito clara e distinta e contém mais realidade objetiva do
que qualquer outra, apresenta-se como a idéia mais verdadeira e menos sujeita a
erro e falsidade. Assim, tudo o que é concebido clara e distintamente de real e
verdadeiro pelo meu espírito, e que contém em si alguma perfeição, está contido na
idéia de Deus.
Existe a possibilidade de que as perfeições atribuídas a um Deus pertençam
ao eu potencialmente. Mas, Descartes verifica que o conhecimento do eu aumenta e
se aperfeiçoa pouco a pouco e nada impede que aumente até o infinito. Isto, porém,
não se aproxima da idéia que o eu tem de Deus, pois Nele nada se encontra de
potência, mas somente em ato e efetivamente. Ademais, o fato de argumentar
gradativamente, manifesta aperfeiçoamento do eu e, portanto, imperfeição. Ao
mesmo tempo, Deus é concebido como atualmente infinito, que nada se pode
acrescentar à sua perfeição. E o ser objetivo de uma idéia não pode ser produzido
por um ser que exista só potencialmente.
Jesús García López apresenta cada uma das provas em forma esquemática,
com ponto de partida, processo de demonstração e término da prova. Vejamos o
esquema da primeira demonstração cartesiana da existência de Deus:
“A) Ponto de partida. Existe em nós a idéia de Deus, quer dizer, a idéia de um ser infinitamente perfeito, a qual contém uma realidade objetiva infinita. B) Processo de demonstração. Porém a realidade objetiva de uma idéia só pode ser causada, em última análise, por um ser no qual esta mesma idéia exista formal ou eminentemente, e portanto, a realidade objetiva da idéia de Deus só pode ser causada, em última análise, por Deus mesmo. C) Término da prova. Logo, Deus existe, ou seja, o ser infinitamente perfeito”.48
Encontra-se ainda na Meditação Terceira a segunda prova de
Descartes acerca da existência de Deus, assim, ele retoma a possibilidade de o eu
ter sido produzido pelos pais ou outras causas menos perfeitas que Deus. Recorre
novamente ao princípio de causalidade, considerando como evidente que deve
haver ao menos tanta realidade na causa quanto em seu efeito.
“E, portanto, já que sou uma coisa pensante, e tenho em mim alguma idéia de Deus, qualquer que seja, enfim, a causa que se atribua à minha natureza, cumpre necessariamente confessar que ela deve ser de igual
48 LÓPEZ, J.G. El conocimiento de Dios en Descartes, p. 70-80, citado por JESUS, Luciano Marques de. op. cit. p. 66.
modo uma coisa pensante e possuir em si a idéia de todas as perfeições que atribuo à natureza Divina”49
Mas, Descartes analisa, ainda, a possibilidade de que muitas causas tenham
concorrido para a produção do eu e que a idéia de perfeição, atribuída a Deus, seja
oriunda de várias causas ou se encontre algum lugar no Universo e não em Deus. A
isto, Descartes interpõe que uma das principais perfeições de Deus é a unidade, a
simplicidade ou a inseparabilidade de todas as coisas que nele existem.
Com relação à segunda prova, Jesús García López apresenta-a da seguinte
forma esquemática:
“A) Ponto de partida. Eu existo, substância pensante tendo em mim a idéia de Deus e reconhecendo-me imperfeito.B) Processo de demonstração. O ser que tem idéia de Deus e que se reconhece e (por ser somente substância que pensa) é imperfeito, não existe senão porque Deus o conserva.C) Término da prova. Logo, Deus existe, o Ser infinitamente perfeito cuja idéia se dá em mim”50
Na Meditação Quinta, Descartes apresenta o argumento a priori da existência
de Deus. Esta prova não conclui a existência de Deus a partir da existência do eu e
da existência de uma idéia no eu, mas a partir da própria essência de Deus.
Descartes admite certa aparência de sofisma nesta prova, pois ao contrário
do que estamos acostumados a fazer, distinguir a essência da existência em todas
as coisas, isto não se aplica a Deus, assim, afirma Descartes: “(...) quando penso
nisso com maior atenção, verifico claramente que a existência não pode ser
separada da essência de Deus”51
Assim, conforme Descartes conclui, o simples fato de eu não poder conceber
Deus sem existência, prova que Ele existe verdadeiramente.
Uma vez que se reconheça que a existência é uma perfeição, e que Deus
possui todas as sortes de perfeições, é necessário que este ser primeiro e soberano
existe verdadeiramente.
Assim, percebe-se que Descartes sustenta que a idéia de Deus não é
inventada, forjada ou fingida, ou ainda, dependente somente do pensamento, mas “é
49 DESCARTES, René. Op. cit., III, 35, p. 111. 50 LÓPEZ, J.G., op. cit., citado por JESUS, Luciano Marques de. op. cit. p. 66. 51 DESCARTES, René. Op. cit., V, 7, p. 125.
a imagem de uma natureza verdadeira e imutável”52. Isto por dois motivos:
“Primeiramente, porque eu nada poderia conceber, exceto Deus só, a cuja essência
a existência pertence com necessidade”53. Segundo, porque não é possível
conceber mais de um Deus de igual maneira. Tendo-se presente, claramente, que
há um Deus de agora, segue que tenha existido e que existirá eternamente.
Assim, qualquer prova ou argumento deverá voltar sempre a este ponto:
somente as coisas concebidas de forma clara e distinta têm força de persuasão.
Manifestando mais uma vez a excelência do conhecimento que independe dos
sentidos, afirma Descartes sobre Deus:
“E no que concerne a Deus, certamente, se meu espírito não estivesse
prevenido por quaisquer prejuízos e se meu pensamento não se
encontrasse distraído pela presença contínua das imagens das coisas
sensíveis, não haveria coisa alguma que eu conhecesse melhor nem mais
facilmente do que ele. Pois haverá algo por si mais claro e mais manifesto
do que pensar que há um Deus, isto é, um ser soberano e perfeito, em cuja
a idéia, e somente nela, a existência necessária ou eterna está incluída e,
por conseguinte, que existe?”54.
A terceira demonstração, López apresenta com premissa maior,
premissa menor e conclusão:
“A) Premissa maior. O que concebemos clara e distintamente como próprio da natureza, essência ou forma imutável e verdadeira de alguma coisa pode predicar-se a esta com toda a verdade.B) Premissa menor. É assim que concebemos, que clara e distintamente, que a existência é própria da verdadeira e imutável natureza divina; porque: 1- a idéia de Deus, representando a verdadeira e imutável natureza divina, contém o conjunto de todas as perfeições; 2- e visto que a existência é própria da idéia de Deus e, da mesma forma, da verdadeira e imutável natureza divina.C) Conclusão. Logo podemos afirmar com certeza que Deus existe55.
Mas, de todas as exposições do argumento ontológico, Jesús García
López aponta a das Respostas às Primeiras Objeções como a que com mais
52 Id., ibidem, V, 10, p. 126.53 Id., ibidem, V, 9, p. 126.54 DESCARTES, René. Op. cit., V, 11 , p. 127. 55 LÓPEZ, J.G., op. cit., citado por JESUS, Luciano Marques de. op. cit. p. 87.
exatidão expressa o pensamento de Descartes, por não apelar para nenhuma
causalidade extrínseca, por tratar-se na verdade de um raciocínio dedutivo. Assim
comenta López: “(...) a premissa maior é a expressão do critério de clareza e
distinção; a premissa menor é a aplicação deste critério ao caso da relação
necessária entre a essência de Deus e sua existência; e a conclusão é que Deus
existe”56.
CONCLUSÃO:
Quando chega ao ponto de ter provado a existência de Deus,
Descartes percebe que toda a realidade que havia posto em dúvida readquire
veracidade, porque Deus é a garantia da verdade humana, da veracidade de nossos
juízos desde que formulados de acordo com o método da clareza e da distinção.
56 Ver nota anterior.
Deus é a garantia da própria correspondência entre coisas sensíveis, realidades
materiais e idéias com as quais pensamos tais coisas materiais e sensíveis, porque
Deus não pode enganar. A nossa propensão a crer que as idéias claras e distintas
correspondam às coisas das quais são representações é garantida pela existência
de Deus.
Quanto à hipótese de erro, Descartes segue a tradição na qual o mal e
o erro são considerados privação de bem, de ser. O erro é privação, defeito de
clareza e distinção do nosso procedimento intelectivo, através do qual poderemos,
ao contrário, emitir juízos efetivos a respeito das coisas, ou seja, atribuir às coisas as
nossas idéias de acordo com a clareza e a distinção.
Assim, toda a reflexão cartesiana sobre a existência de Deus é
direcionada para encontrar em Deus aquele ápice, aquele ponto transparente
através do qual possa ficar garantida a correspondência entre o mundo sensível e o
mundo inteligível, entre realidade material e espiritual, entre extensão e pensamento,
que havia separado e que somente através de Deus podem ser unidos novamente.
Na quinta meditação encontramos uma formalização ulterior da prova
ontológica da existência de Deus, prescindindo dos recursos da terceira meditação à
idéia de causa, à idéia de que todo o efeito deve ter uma causa tão real, senão
superior ao efeito de que é causa e que, portanto, Deus deverá ser esta última
causa superior. Ainda na Quinta meditação há uma retomada do argumento
ontológico anselmiano, mas com a diferença terminológica muito decisiva: a idéia de
Deus é a idéia daquela essência que inclui em si a própria existência, é a idéia de
algo cuja natureza própria pertence existir. Portanto, a natureza = essência. A
natureza de Deus está em existir, a essência de Deus está em seu próprio existir
exatamente porque Deus é um ser sumamente perfeito.
Em relação à postura de Anselmo foi dado um passo a mais por Descartes.
Primeiramente, porque Anselmo não fala de natureza ou de essência (de Deus); ele
fala mais em termos negativos do que positivos. Anselmo define Deus como aquilo a
respeito do qual não se pode pensar nada de maior e, além desta afirmação, mostra
também no capítulo XV do Proslogion como Deus deve ser, sem divisão, estas duas
coisas: não só “aquilo a respeito de que não se pode pensar nada de maior”, mas
também, “qualquer coisa de maior de quanto possa ser pensado.”57 Assim,
pensando em Deus, não podemos pensar uma coisa que seja maior que Deus, 57 “Id quo maius cogitari nequit e quiddam maius quam cogitari possit”. (Proslogion, XV).
mesmo assim, ainda não pensamos em Deus, porque, de qualquer forma, ele é
sempre maior do que se pode pensar. Portanto, encontramos em Anselmo uma
afirmação desvelada da inefabilidade de Deus.
Mas, em Descartes a idéia de Deus já não é apenas aquela: aquilo de que
não se pode pensar nada de maior, mas é a idéia daquele ser que encerra em si a
própria existência. Em Descartes, definitivamente, não temos apenas a idéia de ente
perfeito, de ente perfeitíssimo – anexo à afirmação aquilo de que não se pode
pensar nada de maior de Anselmo – mas temos a afirmação de Deus como ens
necessarium – ser necessário, de Deus como sendo aquele ser em cuja natureza,
em cuja essência está implícita e inclusa necessariamente a própria existência.
Em Anselmo encontramos um ser necessário no capítulo III do Proslogion,
”Deus não pode ser pensado como não existente”58, mas um ser necessário
meramente lógico. Assim, Deus não pode ser pensado como não existente somente
no pensamento – ao que se limitava Anselmo. Realmente, só o pressuposto da fé –
da fides quaerens intellectum (a fé buscando o intelecto) – torna efetivamente real a
verdade intelectual de que Deus não pode ser pensado como não existente. Assim,
para Anselmo, somente a idéia pensada de Deus como ser que não pode ser
pensado como não existente seja uma idéia que efetivamente exprime uma
existência real: aquela que é atestada pela fé, a respeito da qual exatamente esta
idéia de Deus é justamente a intelecção da fé.
Assim, em Descartes o pressuposto colocado para a busca do entendimento
da existência de Deus não é a fé e sim a dúvida universal. Além disto, quando se
encontra a idéia da existência de Deus não se deixa aberta a possibilidade de
ulterioridade e transcendência de Deus ao pensamento, como acontece em
Anselmo, graças a sua teoria de teologia desvelada, que vimos ser expressa pelo
fato de que para Anselmo Deus é ulterior a qualquer coisa que possa ser pensada
dele e a qualquer definição e ação possível. Mas, em Descartes, Deus fica
definitivamente aliado à idéia encontrada na interioridade do cogito que duvida. No
eu penso se dá à idéia de Deus como essência que implica necessariamente a
própria existência – e é tudo isto o que se pode dizer em relação a Deus. Mediante a
idéia de Deus afirma-se a necessidade de sua existência, bem como que ele existe
necessariamente: a idéia de Deus implica a necessidade de sua existência. Mas, é
58 “Quod non possit cogitari non esse”. (Proslogion, III).
totalmente diferente dizer que Deus não pode ser pensado como não existente, ou
então, dizer que Deus só pode ser pensado como existente, deve ser pensado,
necessariamente, como existente: trata-se mais de afirmação de necessidade do
que de negação de possibilidade.
Assim, sobre esta formulação cartesiana da prova ontológica será
desenvolvida grande parte da filosofia posterior. Schelling, em particular, conseguirá
retomar as exigências de Anselmo, criticando Descartes pela sua idéia de Deus
como ser necessário. Segundo Schelling, a idéia de Deus manifesta a idéia daquele
ser necessariamente existente a partir da sua simples essência, da sua simples
natureza que podemos encontrar na idéia, mas somente se efetivamente existir.
Toda a reflexão cartesiana é válida apenas logicamente, é mera hipótese de
pensamento.
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