Adriano Bernardo Moraes Lima [Olhares sobre a prática da alforria no Brasil setecentista]

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“O homem só consegue enxergar o meio-dia da porta de sua casa”: olhares sobre a prática da alforria no Brasil setecentista1

Adriano Bernardo Moraes Lima2 ([email protected])

O avesso da liberdade

Talvez o argumento mais utilizado pelos pesquisadores da prática da alforria é o de que

faltam estudos sobre o tema ou, corroborando com a idéia anterior, de que eles são

insuficientes para entendê-la. Diante dos mais de 40 textos inéditos (monografias, teses e

dissertações) e outro tanto desse composto por artigos e livros publicados, optarei

espontaneamente por não me apresentar com a mesma justificativa. Por outro lado, não

pretendo neste artigo comentar detidamente tal produção historiográfica, embora vez por

outra possa mencionar algum destes trabalhos na construção de meus argumentos.

A proposta é outra. Tentar desnaturalizar o entendimento a respeito das escrituras

notariais de liberdade, conhecidas também por “cartas de alforria”. Deste modo, nada mais

oportuno que iniciar minha exposição a partir da leitura de um exemplar deste tipo de

documento:

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DOCUMENTO 1 :

Escritura de alforria e liberdade que dá Dona Joana Maria de Jesus à sua escrava mulata Rita Saibam quantos este público instrumento de Alforria e Liberdade virem que, sendo no ano de Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e noventa e um, aos dezenove dias do mês de Novembro do dito ano, nesta Vila de Curitiba, em casas de moradas do Capitão José de Andrada e de sua mulher Dona Joana Maria de Jesus, onde eu Tabelião fui chamado, pessoas reconhecidas de mim pelos próprios de que dou fé. Pela outorgante Dona Joana Maria de Jesus me foi dito, em presença das

1 Texto apresentado no III Encontro Escravidão no Brasil Meridional, realizado em Florianópolis entre os dias 02 e 04 de maiofeminsita de 2007. 2 Doutorando em História Social da Cultura (Unicamp) e bolsista Fapesp.

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testemunhas abaixo nomeadas e assinadas, que eles, entre outros bens que possuíam, era uma mulata cativa por nome Rita, casada com um seu escravo por nome Antônio, de cujo matrimônio tem a dita mulata tido vários filhos. Por este motivo e por ela ter servido com muito amor e prontidão, eu a forrava, e como tal o fazia de hoje por diante, com obrigação somente de que os filhos que a dita mulata tiver de hoje em diante serão estes cativos, os quais ela outorgante por esta faz doação deles à sua neta Iara, filha do Alferes Antônio Xavier Pereira, a quem pertencerá e permanecerá enquanto a vida dela outorgante, e os mais que tiver dali por diante serão forros e libertos, assim como é a dita sua mãe Rita, de hoje para sempre, pois a forrava de sua muito livre vontade. Somente o fazia pelas razões que nesta já havia declarado, cuja valia da dita mulata por falecimento dela outorgante será computada na sua terça. E logo, pela outorgante, a qual havia outorgado e confirmado, para o que pedia às Justiças de Sua Majestade lhe dessem sua inteira validade e cumprimento à presente alforria. Declarou mais a outorgante que no caso [em] que a dita mulata Rita se queira levantar a que seus filhos não sejam cativos, neste caso esta não valerá, ficando a presente escritura de nenhum efeito, e sem vigor algum. E pelos outorgantes me foi dito a mim Tabelião, que como pessoa pública estipulante e aceitante, lhe estipulasse e aceitasse a presente outorga, a qual a estes estipulei. E como tal depois de feita e acabada, lhes li e disseram estava muito a seus contentos; e como tais aqui assinaram com as testemunhas presentes. Antônio Ferreira dos Santos e o Alferes Francisco dos Santos Pinheiro, todos pessoas reconhecidas de mim Tabelião. Pelos próprios de que dou minha fé eu, Antônio dos Santos Pinheiro, tabelião que o escrevi.

Fonte: Arquivo do Primeiro Tabelionato de Notas de Curitiba, Livro de Notas nº 24, fl. 03 (alf. nº 6).

A escritura em tabelionato não era a única forma que os senhores luso-brasileiros

tinham para libertar seus escravos. Eles podiam fazê-lo ainda através de disposição

testamentária (no próprio testamento ou no codicilo), no momento de batizar os ingênuos

(alforria de pia batismal) ou por carta ou escrito de próprio punho. Todas elas atendiam o

desejo senhorial. Já a alforria concedida à revelia da vontade do proprietário, quando o

escravo recorria à Justiça, dava origem às ações de liberdade.

A escritura que apresentamos há pouco enquadra-se no primeiro tipo. Trata-se de uma

escritura redigida em livro de notas por tabelião nomeado e juramentado para o exercício

deste ofício. A função dos tabeliães parece ter mudado ao longo dos séculos nas possessões

portuguesas na América. No período mais remoto da nossa história os tabeliães eram

nomeados exclusivamente pelo Poder Real de Lisboa, fossem eles gerais – isto é, aqueles que

percorriam a colônia, servindo em cada cidade ou povoação por até dois meses – ou

privativos, que possuíam escritório fixo em alguma vila ou cidade colonial. Com o passar dos

séculos, já no XVIII, as Câmaras Municipais adquiriram o direito de criar e suprimir tabeliães,

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sem nunca esquecer que o faziam em nome do soberano português. A partir de 1827, esta

prerrogativa seria transferida para as Assembléias Provinciais.3

Na sociedade colonial, o tabelião era visto como um empregado público. Era

encarregado de lavrar contratos entre particulares e, quando solicitado, auxiliava na redação

de atos judiciais “a que por utilidade pública a lei presta fé e considera sua interferência

como prova de tais atos” 4. Reunia poderes delegados pela autoridade máxima, o rei. Era

conhecedor das leis que ordenavam o funcionamento da administração e da Justiça na colônia,

e por esse motivo, as escrituras por ele lavradas tinham valor de prova judicial quando havia

desentendimento entre as partes. Para se ter uma idéia, transações e contratos que

ultrapassassem determinado valor – que oscilou durante os séculos –, sobretudo na compra e

venda de bens de raiz, incorriam em nulidade se não fossem feitos por meio de escrituras

públicas. Ou seja, as partes tinham na escritura lavrada por tabelião juramentado a garantia

real de que o que fora dito ao tabelião, após lido e acordado entre as partes constituía “prova

provada”.5 A leitura da escritura de alforria acima, sugere que, além do oficial, Dona Joana

Maria de Jesus também possuía conhecimentos a respeito da força de lei que possuíam tais

escrituras, pois “pedia às Justiças de Sua Majestade lhe dessem sua inteira validade e

cumprimento à presente alforria” (linhas 21-22). Se não o sabia, ao menos fora instruída por

outrem que estava bastante familiarizado com as hierarquias dos poderes na sociedade

colonial brasileira, do soberano ao proprietário de escravos.

A estrutura protocolar que abre nossa escritura de alforria obedece à orientação contida

nas Ordenações, pois é através da reunião destas informações que a “escritura pública

presume-se verdadeira” (Livro I, título 78, § 3, nota nº 2). Por essa exigência, o tabelião é

obrigado – sob pena de perder seu ofício, seus bens e ser degredado – a declarar o dia, mês e

ano, além da cidade, vila, lugar ou casa em que fora lavrada a escritura. O formato religioso

da abertura do documento ilustra a indeterminação das esferas da vida colonial ocupadas pelo

Estado e pela Igreja (linhas 3-7).

Neste caso, o tabelião Antônio dos Santos Pinheiro atendeu ao pedido e foi “em casas

de moradas” do Capitão José de Andrada (linhas 5-6). Pinheiro certamente foi à casa do dito

capitão, executar seu ofício fora de seu escritório, por tratar-se de “pessoa honrada” e ligada à

administração colonial. Era o capitão-mor quem cuidava do recrutamento de homens adultos 3 Ver anotações de Candido Mendes de Almeida sobre os “Tabeliães de Notas” (Almeida, 1870, p. 179-185), Ordenações Filipinas, Livro I, Título 78. Cf. também os seguintes aditamentos: Lei de 11 de Outubro de 1827 (p. 379-80); Decreto n. 1569, de 03 de março de 1855 (p. 400-1). 4 Ordenações Filipinas, Livro I, Título 78, nota nº 1, p. 179. 5 Ordenações Filipinas, Livro I, Título 78, § 3, nota nº 2, p. 180 (sub-título “Scripturas”).

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para formação das forças militares locais e responsável pelo comando dos corpos de

ordenanças. Portanto figura ilustre na vila de Curitiba e reconhecida pelos moradores;

possivelmente um “homem bom”.

Conseqüentemente, Dona Joana compartilhava da nobreza e dos privilégios sociais de

seu marido, o que a distinguia das demais mulheres da freguesia. No momento em que achou

oportuno conceder a alforria à sua escrava Rita, recorreu à letra da lei e ao costume para

requisitar – através do capitão, seu marido – a presença do tabelião em sua residência. Ao

fazê-lo, Dona Joana reforçava as hierarquias sociais ao mesmo tempo em que preservava sua

“honestidade”, ostentada por meio do título de tratamento honorífico que antecedia seu nome.

O mesmo parágrafo das Ordenações que mencionamos acima previa situações como a que o

tabelião Antônio dos Santos Pinheiro parecia estar habituado a atender:

E serão diligentes, cada vez que forem chamados para irem fazer alguns contratos, ou testamentos a algumas pessoas honradas ou enfermas, e mulheres, que razoadamente não possam, nem devam com honestidade ir à dita Casa e Paço dos Tabeliães, que vão logo às casas ou pousadas daqueles, a cujo requerimento forem chamados.6

As relações sociais na colônia eram pautadas no reconhecimento das autoridades

públicas – militares, religiosas ou administrativas – pela população local. Solicitar a diligência

do oficial tabelião para a outorga da carta de alforria constituía, igualmente, mais um recurso

disponível à elite escravista brasileira para manter as aparências de distinção social que estes

homens e mulheres ostentavam publicamente.

Dona Joana fazia uso dessa prerrogativa. Apesar de a mulata Rita pertencer ao casal

(linha 9-10), é a matrona quem conduz o nobre ato e decide as circunstâncias particulares de

concessão da liberdade à sua escrava (linhas 7-8, 12, 13-14, 19, 20-21). Com vistas a dar tom

de verdade à sua redação – critério fundamental para a validade da escritura –, o tabelião

reproduz a fala da senhora, transferindo a ação da terceira para a primeira pessoa: “Pela

outorgante Dona Joana Maria de Jesus me foi dito...” (linha 8), para em seguida, “Por este

motivo e por ela ter servido com muito amor e prontidão, eu a forrava...” (linha 12).

Além da preocupação com a veracidade, esta característica das cartas de alforria nos

apresenta a prática da manumissão pela ótica dos proprietários de escravos. O que emerge da

visão expressa no documento é o pressuposto da inviolabilidade da vontade senhorial,

elemento fundamental para a reprodução das políticas de domínio senhorial.7 Todos os

6 Ordenações Filipinas, Livro I, Título 78, § 3, p. 180-1. 7 Sobre o pressuposto da inviolabilidade da vontade senhorial, ver CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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detalhes que incidiram sobre a libertação de Rita mulata – as cláusulas referentes ao destino

dos filhos da escrava, tanto os já nascidos quanto os futuros, a prestação de serviços, as

situações que justificariam a revogação da alforria e o agradecimento ao “amor e prontidão”

com que Rita a serviu por longos anos – foram decisões tomadas “de sua muito livre vontade”

(linhas 17-18). Ou seja, não havia nada ou alguém acima da vontade de Dona Joana; sua

deliberação era a autêntica e legítima expressão do direito senhorial.

A utilização do termo “outorgante” também pode nos dizer algo nesta direção. Além de

atender determinações jurídicas, seu uso traz implícita uma série de atributos daquele que

outorga a alforria. De acordo com o dicionário de Antonio de Moraes Silva, outorgar equivale

a “dar, conceder, permitir; responder que sim”.8 Dar uma resposta afirmativa àquele que

solicita a sua complacência equivale a reforçar as relações de dominação entre senhores e

escravos. Se não concede a liberdade, está em seu direito de senhor; mas se o faz, torna-se

piedoso, capaz de demonstrar generosidade, justo.

Esta associação entre o ato de outorgar e a doação aparece exposta já na síntese que

precede o documento notarial: “Escritura de alforria e liberdade que dá Dona Joana Maria

de Jesus à sua escrava mulata Rita” (linhas 1-2). Haveria aí uma aproximação entre as figuras

do senhor e do rei. Do último emana a lei que rege a vida dos súditos, capaz de agraciar o

condenado ao revogar a pena de morte. Como o rei, o senhor é o único que possui a

prerrogativa de anular o cativeiro de seus escravos.9 Coincidência ou não, Dona Joana procura

assegurar a integridade de sua deliberação vinculando-a, como já dissemos, às “Justiças de

Sua Majestade” (linha 21-22).

Até aí tudo parece normal. A análise que venho fazendo harmoniza-se com as histórias

que ouvimos quando criança sobre escravos que “ganharam” sua alforria de sinhás caridosas.

Porém, uma releitura atenta, demorada, da mesma carta de alforria pode dizer algo mais a

respeito da experiência escrava e sua contrapartida nas relações sociais de dominação.

Até agora vimos como a vontade senhorial representava para aquela sociedade

privilégio inalienável e inviolável. Homens de cabedal, párocos, mulheres forras, pequenos

comerciantes, viúvas, escravos urbanos ou do eito, todos pareciam conhecer este dispositivo

que marcava as relações escravistas. Obviamente, sendo o escravo o elo mais fraco da

corrente – pois considerado cousa –, dificilmente ousaria questionar ou subverter tal ordem.

8 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. v. 2, p. 377. 9 Sobre esta questão, conferir a introdução do Livro V das Ordenações Filipinas feita por Silva Lara. Ver: LARA, Silvia H. (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 19-44.

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Rita de certo conhecia muito bem a essência que movia o convívio entre senhores e escravos;

afinal ela fora agraciada com o bem maior que sua gente poderia esperar, a liberdade.

Por mais que conceder alforria aos escravos pudesse reforçar os papéis exercidos pela

classe senhorial, esta possibilidade não era acessível à esmagadora maioria dos negros que

viviam em cativeiro.10 Rita vivia na vila de Curitiba, localidade que somava, na década de

1790, pouco mais de mil almas cativas. A média anual de escravos alforriados neste mesmo

período, com suas cartas registradas em livro de notas, girou em torno de quatro alforrias.11

Tratava-se de uma região da capitania de São Paulo com população bastante dispersa, que

vivia em pequenas propriedades, e que se dedicava à agricultura de abastecimento e

atividades criatórias. Logo, Rita não teria tido muitas chances de conhecer outra negra ou

negro forro.

No entanto, a mulata parecia conhecer, melhor que seus senhores, os significados da

liberdade para os escravos. Ao redigir a escritura, o tabelião, por força da lei, deveria ouvir as

partes envolvidas no “contrato”. O oficial Pinheiro não deveria fazer a mínima idéia das

condições de vida que Rita levava, da relação conjugal com o escravo Antônio e dos filhos que

vira nascer. Dona Joana, sua proprietária, provavelmente sabia de tudo isso. O problema para

Rita, no entanto, era outro: até que ponto a senhora e o capitão respeitariam sua família? Rita

certamente já havia visto ou ouvido histórias de crianças escravas tiradas de suas mães para

servirem de dote para as donzelas casadoiras. Dona Joana provavelmente a chamou para ouvir

as verbas ditadas ao tabelião, pois, além de lembrar aos presentes sua condição de “mulher

honesta”, sabia que uma escritura só possuía valor legal quando lida em voz alta perante as

partes e as testemunhas.12 Não deveria ter causado surpresa à Rita o destino que sua senhora

havia planejado aos mulatinhos (linhas 12-16). Continuariam escravos da neta de Dona Joana.

Poderíamos acusar de megera a dona de Rita. Fazer uma coisa dessas com aquelas

criancinhas! Bem, como disse anteriormente, a mulata Rita tinha clara noção da ameaça que

rondava sua família. Opor-se frontalmente a esse direito senhorial poderia não ser a forma

10 Os trabalhos clássicos sobre o tema dizem que o número anual de escravos alforriados, em relação à população escrava, raramente ultrapassava 1%. Cf., entre outros: EISENBERG, Peter L. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil (séc. XVIII e XIX). Campinas: Ed. Unicamp, 1989; especialmente os capítulos 10 (“A carta de alforria e outras fontes para estudar a alforria no século XIX”) e 11 (“Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX”). 11 O número absoluto de escravos na população curitibana oscilou de 990 (1790) para 1172 (1799); o de alforrias concedidas anualmente, de 3 (1790) para 2 (1799), havendo pico de 9 alforrias registradas em 1795. Para mais detalhes ver: LIMA, Adriano Bernardo Moraes. Trajetórias de crioulos: um estudo das relações comunitárias de escravos e forros no Termo da Vila de Curitiba (c.1760 – c.1830). Curitiba, 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná. 12 Ordenações Filipinas, Livro I, Título 78, § 4, p. 181.

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mais inteligente de manter-se próxima de seus filhos. De repente, a menção aos filhos e à

união com o escravo Antônio pudessem ser informações sussurradas no ouvido da senhora

para relembrá-la no momento de expressar sua vontade ao tabelião. Com a escritura, Rita

conseguia não só de seus senhores, mas de toda a comunidade escrava e das autoridades

públicas o reconhecimento formal de sua família. É muito comum encontrar nas cartas de

liberdade detalhes a respeito das relações de parentesco constituídas entre os escravos, de

espaços concedidos na propriedade para o plantio de suas roças, de bens acumulados –

animais, dinheiro e mesmo outros escravos – para o pagamento das alforrias, e tantas outras

situações que certamente interessariam muito mais aos mancípios vê-las mencionadas nos

documentos oficiais, que a seus senhores.

É fato que Rita obtinha sua liberdade com a feitura da escritura. No entanto, é plausível

supor que a mulata não estivesse garantindo apenas sua liberdade, entendida como fim do

cativeiro. Rita e tantos outros escravos talvez conhecessem a força de lei que tais papéis

possuíam. Em primeira instância eram documentos que expressavam a vontade senhorial. Mas

por outro lado, através deles muitos escravos garantiam margens de liberdade sem afrontar a

inviolabilidade da vontade de seus senhores. O direito de plantar um roçado nas terras do

senhor, a autonomia para transitar entre as fazendas ou entre elas e a vila, a segurança – ainda

que instável – de manter unida sua família, a possibilidade de guardar dinheiro ou mesmo ter

seus próprios animais e tantas outras conquistas assentadas no costume possuíam também sua

contrapartida na forma documentada.

Mesmo não estando presentes no momento da redação da escritura – fosse na residência do

proprietário, fosse no escritório do tabelião –, a obrigatoriedade da leitura do documento diante das

partes e das testemunhas tornava o costume ali descrito conhecido de todos. A escrava alforriada,

agregados, parentes do senhor e escravos domésticos ouviram a mesma narrativa lida pelo oficial de

notas e a entenderam de acordo com a subjetividade que suas condições lhes permitia. Ao ouvir a

leitura de sua carta de liberdade, Rita deve ter formulado seu entendimento daquilo que se passava.

Nas ocasiões em que se encontrava com seus companheiros de cativeiro, a mulata forra contava sua

versão dos fatos. Cada vez que histórias como a de Rita eram contadas, no eito, nos armazéns, nas

festas das irmandades ou nos encontros de lavadeiras à beira do rio, iniciava-se um processo de

elaboração e difusão de um entendimento escravo sobre a prática da manumissão. Idéias a respeito

de costumes e práticas senhoriais circulavam por meio da narração minuciosa de casos de escravos

que deixaram o cativeiro. Os detalhes dessas histórias, os caminhos trilhados pelos personagens

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centrais da trama – algumas vezes temperados com artimanhas que misturavam situações reais a

tradições orais – acabavam por servir como modelo de conduta para os escravos.13

As percepções dos escravos sobre os significados da carta de alforria certamente diferiam

daquela de seus senhores. Era imprescindível que os escravos entendessem que os senhores

tratavam este documento como espécie de atestado de sua generosidade, mas igualmente, como

mecanismo de preservar sua política de domínio sobre eles. Perceber essa necessidade senhorial

poderia ampliar as margens de mobilidade social dos escravos. Queremos acreditar que, assim como

a mulata Rita, muitos escravos arrancavam de seus senhores aquilo que desejavam. Ao “dar” a

alforria à sua escrava, Dona Joana reconhecia a união estável de Rita com o escravo Antônio. De

quebra, ainda legitimava a prerrogativa de mãe sobre os filhos do casal. Mais ou menos, era como se

Rita conseguisse de sua senhora a promessa de ter, além da liberdade, seus filhos de volta assim que

cumprissem o combinado. Quase que podemos escutar os pensamentos de Rita: “A senhora é muito

generosa em conceder-me a liberdade. Porém, não se esqueça que essa generosidade me é devida

em troca dos bons serviços que lhe presto e da obediência que eu e meus filhos lhe oferecemos”.

Estes homens e mulheres cousas aprenderam na experiência cotidiana a negociar melhores

condições de vida, onde a liberdade representa apenas uma destas instâncias. Suas percepções

tinham de estar em sintonia com as pretensões senhoriais; não deveriam entrar em choque ou

ameaçar a violação da vontade desses patriarcas. Uma escritura como a carta de alforria ou o

testamento poderia significar a garantia de reconhecimento público e jurídico das conquistas

escravas. Rita foi uma entre tantos cativos que participou da difusão de uma concepção

escrava sobre a prática da manumissão. Afinal, como reza um provérbio africano, “O homem

só consegue enxergar o meio-dia da porta de sua casa”.

13 Em Visões da liberdade, Sidney Chalhoub (1990) apresenta episódios envolvendo escravos que elaboram opinião própria sobre suas liberdades. Em texto publicado recentemente, Robert Slenes encontra nos argumentos de um escravo para justificar os golpes de enxada desferidos a outro, a visão deste grupo sobre a concessão da alforria. Ver: SLENES, Robert. “A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no Sudeste brasileiro (século XIX)”. In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006. p. 273-314.

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA: • ALMEIDA, Candido Mendes de (ed.). Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino

de Portugal, Recopiladas per mandado do muito alto catholico e poderoso Rei dom Philipe o Primeiro (1603). 14ª ed. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. Reprodução fac-similar publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, 1985).

• CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

• CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

• EISENBERG, Peter L. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil (séc. XVIII e XIX). Campinas: Ed. Unicamp, 1989.

• LARA, Silvia H. (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

• SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado dos vocabularios impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado, e muito accrescentado. Com Licença da Meza do Desembargo do Paço. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.

• SLENES, Robert. “A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no Sudeste brasileiro (século XIX)”. In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006. p. 273-314.

• SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.