“Advocacia Criminal escola de cidadania”, é. Edson Odwyer - discurso na OAB.pdf · como algo...

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“Advocacia Criminal escola de cidadania”, é sobre o que lhes devo falar, e essa fala haverá de destacar os pontos em que uma coisa e outra se encontram ou se identificam. Não me parece difícil fazê-lo. Em verdade, quem entende a advocacia criminal como algo que ultrapassa o simples exercício profissional, que se alonga para significar defesa de valores integrativos do direito do homem, sua vivência social e política, o que tudo compõe sua cidadania, haverá de reconhecê-la como a forma mais efetiva de a esta defender e fazer respeitada. Cidadania não é só o que as leis dizem que seja, mas é, também, o reconhecimento de que o homem é mais do que um número de estatísticas, é um ser social que se quer igual aos demais e assim tratado. Na medida em que o advogado criminal luta por alguns dos direitos mais essenciais, entre os quais a liberdade avulta, ele está lutando, exaltando ou construindo cidadania.

Transcript of “Advocacia Criminal escola de cidadania”, é. Edson Odwyer - discurso na OAB.pdf · como algo...

“Advocacia Criminal escola de cidadania”, é

sobre o que lhes devo falar, e essa fala haverá de destacar os pontos

em que uma coisa e outra se encontram ou se identificam. Não me

parece difícil fazê-lo.

Em verdade, quem entende a advocacia criminal

como algo que ultrapassa o simples exercício profissional, que se alonga

para significar defesa de valores integrativos do direito do homem, sua

vivência social e política, o que tudo compõe sua cidadania, haverá de

reconhecê-la como a forma mais efetiva de a esta defender e fazer

respeitada. Cidadania não é só o que as leis dizem que seja, mas é,

também, o reconhecimento de que o homem é mais do que um número

de estatísticas, é um ser social que se quer igual aos demais e assim

tratado.

Na medida em que o advogado criminal luta por

alguns dos direitos mais essenciais, entre os quais a liberdade avulta,

ele está lutando, exaltando ou construindo cidadania.

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É por isso que a vida profissional do advogado

criminal, sua atuação perante os tribunais ou fora deles, é uma luta

permanente pela cidadania, ainda que às vezes não haja plena

consciência disso.

Essa luta diária é uma escola. Uma escola onde

o advogado ensina e aprende.

Se bem observarmos, há dois tipos de cidadania,

como há dois tipos de direitos humanos. Um, é o que está escrito nas

leis, nos tratados, nas convenções, nos livros, às vezes nas sentenças e

sempre nos discursos. É uma cidadania teórica, aparentemente

conhecida e defendida por todos. É uma cidadania divulgada, exaltada,

unânime. O outro, o outro tipo de cidadania, o outro tipo de direitos

humanos, a cidadania que é direito de poucos, direitos humanos

reconhecidos a poucos, cidadania e direitos que a muitos incomodam

até porque nivelam, estes são os direitos humanos e a cidadania com os

quais nós, advogados criminais, estamos permanentemente envolvidos.

Não são muitos os que vivenciam as profundas

diferenças entre cidadania escrita e cidadania vivida. Uma, a escrita, só

aparece na Constituição, expressamente referida com seu nome próprio

– cidadania – duas vezes: no artigo primeiro, inciso III, quando é

apontada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito,

e no art. 22, inciso XIII, quando se fixa a competência exclusiva da

União para sobre ela legislar. É pouco, é muito pouco, para uma

Constituição que se quis Cidadã. A outra, a cidadania vivida, esta nós

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advogados criminais a conhecemos bem, porque somos principalmente

nós os que a defendemos.

A importância ao culto da cidadania precisa estar

mais em nossas consciências, já que não está definida em leis nem nos

textos constitucionais. Cuida-se tão pouco de cidadania, cidadania real,

a que efetivamente nos interessa, que também os dicionários não a

definem. Então, cidadania é o que cada um sente que seja, o que deve

ser reconhecido por todos para diminuir desigualdades, para que ela se

constitua, verdadeiramente, no repositório dos direitos mais essenciais

do homem.

Cidadania, na prática e juridicamente, é, assim,

o conjunto de regramentos e direitos nominados de garantias: as do

devido processo legal, as da tutela jurisdicional do Estado, e todas as

demais ínsitas no art. 5o. da Constituição ou daí decorrentes. E quando

se fala em cidadania e garantias, sobrelevam as que, com todas as

limitações, sustentam a liberdade.

Falando em advocacia criminal e liberdade,

lembro ter ouvido do saudoso J. B. Viana de Morais, em bela oração,

que o advogado criminal se distingue dos outros, porque ele não fala em

liberdade sem se emocionar.

E sob o domínio de suas emoções o advogado

ensina e aprende.

ROGÉRIO LAURIO TUCCI, com suporte em

RUY BARBOSA, vincula, muito bem, direitos e garantias, e na medida

em que o advogado pleiteia garantias em favor de seu cliente e sua

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causa está ele pleiteando reconhecimento de direitos, direitos que em

seu conjunto são direitos de cidadania. E esse ensino e essa

aprendizagem são a escola de cidadania em que se constitui a advocacia

criminal.

Quando falo em advocacia criminal estou falando

do exercício ético da profissão. Se assim não for, se não houver respeito

às regras éticas, não haverá garantia, direito, ensino, nem

aprendizagem. Constatar-se-á, apenas, com sentimento, que os valores

essenciais do direito e da Justiça estão e estarão sendo conspurcados,

porque sem ética não há direito, nem justiça, nem valores.

Depois de mais de 50 anos de profissão, posso

falar de advocacia criminal e cidadania.

E para falar em advocacia criminal e cidadania

eu resolvi lhes contar uma história. Uma história verdadeira, e essa

história que lhes quero contar são muitas histórias, todas as histórias de

advogados criminais, dos éticos, apenas desses, dos que talvez ainda

sejam um pouco românticos, dos que sacrificam comodidades, lazeres,

não temem distâncias, ameaças ou incompreensões e se arriscam a

perder boa fama ou, mais que isso, às vezes até a liberdade. Lembro de

LACHAUD e DE SÉZE, ZOLA, HELENO FRAGOSO e EVARISTO DE

MORAIS.

E essa história há de começar como começavam

todas as histórias.

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Todas as histórias, no meu tempo, naqueles

tempos, “velhos tempos, belos dias”, começavam assim: era uma vez...

Fossem estórias da carochinha, fossem reais ou inventadas,

começavam sempre assim: era uma vez ...

Eu resolvi lhes contar uma história. Uma história

de vida. Não será propriamente a história de minha vida. É a história de

um advogado, um advogado criminal, qualquer advogado criminal. Não

somos iguais, não temos as mesmas lembranças nem vivemos os

mesmos episódios, mas somos parecidos. E como vou lhes contar uma

história, façam de conta que todas as histórias são iguais.

Era uma vez ... um jovem igual aos outros.

Entrou para a Faculdade de Direito aos 18 anos.

Naquele tempo a Faculdade tinha um nome

bonito: era a FACULDADE LIVRE DE DIREITO DA BAHIA.

O primeiro ano era de matérias básicas, mais ou

menos preparatórias para o resto do curso: INTRODUÇÃO À CIÊNCIA

DO DIREITO, TEORIA GERAL DO ESTADO, DIREITO ROMANO e

ECONOMIA POLÍTICA.

Chegava-se ao segundo ano e lá estavam as

primeiras matérias que integrariam a fase profissionalizante: DIREITO

CONSTITUCIONAL, FINANÇAS, DIREITO CIVIL e DIREITO PENAL. E um

dia o jovem estudante recebeu as primeiras lições de Direito Penal.

MANOEL BANDEIRA é um de meus poetas

preferidos.

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E ele diz assim num trecho de seu belo poema

EVOCAÇÃO DO RECIFE:

“Um dia eu vi uma moça nuinha no banho

Fiquei parado, o coração batendo

Ela se riu

Foi o meu primeiro alumbramento”.

O Direito Penal é na Faculdade o primeiro

alumbramento.

São mais de 50 anos de vida profissional. Aquele

jovem se tornou advogado. E já são 50 anos ininterruptos de advocacia

criminal. Envelheceu advogando, vai morrer advogado: são 50 anos de

compromisso com a liberdade e a cidadania.

Todos os que envelhecem advogando no foro

criminal juntam de sua experiência e de suas vivências as lições que

receberam da vida, da vida profissional. Lições que alguns não

aprenderam, mas que são lições de ética e cidadania.

Foram 50 anos de delegacias, juízos, tribunais,

estradas, cárceres, quartéis, tensões, dúvidas, medos, alegrias,

decepções, raivas, surpresas. Foram dias e noites de trabalho

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incessante, foram histórias contadas e ouvidas, foram relatos

emocionados, foram raivas incontidas, ambições incontroláveis,

justificativas inaceitáveis, mentiras deslavadas, arrependimentos

irreversíveis. Foram paixões, ira, ímpetos, desespero. Foram defesas e

acusações.

Durante os anos em que se desdobra a vida do

advogado criminal desfilam ante seu olhos e ouvidos todos os

sentimentos, humores, paixões, dúvidas e esperanças de um número

tão grande de pessoas que não será possível estimar ou calcular. São

pessoas de todas as espécies. São pessoas comuns e especiais. São

pessoas letradas e ignorantes. São ricos e pobres. São culpados e

inocentes. São verdadeiros e mentirosos. São vítimas e autores. E são

também pais, irmãos, esposos, filhos, amigos, desafetos, adversários.

São protagonistas de dramas e comédias. A todos, o advogado, vê e

ouve, a todos conhece, muito ou pouco. Com todos dialoga, a muitos

apenas aconselha e a outros patrocina.

Entre clientes e advogados há uma estreita

relação de confiabilidade, entrega, esperança e às vezes decepção.

De muitos clientes nós, advogados criminais,

recebemos honorários, de outros apenas agradecimentos. De outros

mais nem uma coisa nem outra. Não sei o que mais me recompensou,

me agradou, o que mais me serviu, o que mais me estimulou. Teriam

sido os dinheiros que nos ajudam a viver e sustentar a família? Tenho

sérias dúvidas. O dinheiro nunca me emocionou, mas não foram poucas

as lágrimas diante de um “muito obrigado” ou de um “Deus lhe pague”,

também ditos entre lágrimas.

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O Direito Penal foi também, qual o jovem da

história, o meu primeiro alumbramento. E quando ainda jovens

estudantes, nos deixávamos por ele seduzir, quando ainda não

sabíamos nada da advocacia, nada do direito, nada da vida, a defesa

criminal já se transformava no ideal de futuro, no que deveria vir a ser

definitivo. É nessa fase que o estudante de direito já se antevê na

tribuna do júri, principalmente nela, a fazer o auditório e os jurados se

emocionarem e a se emocionar também, e a tentar, às vezes sem

sucesso, que uma lágrima mais afoita, incontida, incontrolável, não lhe

salte dos olhos na peroração.

Passado aquele instante de beleza do espetáculo

judiciário do júri, as togas, as becas, os debates, a oratória, a tensão da

votação, para a maioria a realidade vai ser outra. E os bacharéis se

albergam no Direito Civil, Comercial, Tributário, Trabalhista, etc ...

São poucos os que ficam. E esses poucos sabem

que não estão indo ao encontro da glória, do poder e da riqueza. O seu

horizonte é a liberdade.

A figura do advogado criminal é sempre a mais

admirada. Lendas, histórias, casos, exemplos, defesas brilhantes, gestos

de coragem e desprendimento, tudo nos faz diferentes dos demais

profissionais do direito aos olhos alheios. A fama dos bens sucedidos

seduz.

O que nem todos sabem é que há um espaço

muito grande ocupado por horas insones, por dúvidas atrozes, por

expectativas bem diferentes daqueles momentos fugazes de alegria,

euforia, emoção, às vezes de aplausos.

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Nesse espaço de ansiedade e tensão, o

advogado é mais cidadão do que nunca e por isso o animo do

cumprimento do dever não se deve tornar menor. E é então que se

pode distinguir o advogado, aquele que faz de sua atividade um

exercício de cidadania, daquele que simplesmente advoga. Enquanto um

norteia seu trabalho para os resultados que não interessam apenas a

seu patrocinado, mas se refletem no todo social, o outro dá-se por

satisfeito quando escreve a última palavra de sua petição ou quando

pronuncia a última frase da defesa oral.

O júri é o instante mágico da defesa. Ele nos

ensina, mais do que possamos aprender em outros momentos

profissionais, o quanto é complexa e diversificada a alma humana.

É no júri que a Justiça está mais próxima de

Deus. E Deus é, também, coração e emoção.

Quando RUY afirmou que não há Justiça sem

Deus, ele certamente estava querendo dizer que não há Justiça sem

emoção, sem coração. Que não há Justiça quando o Juiz só vê à sua

frente a Lei, quando sua preocupação ao sentenciar está voltada,

apenas, para os fatos, as provas, os testemunhos, as perícias, as

contradições, as verdades e mentiras dos autos. RUY sabia que a

justiça criminal técnica esquece o homem, o homem na sua

complexidade, na sua cultura, nos seus condicionamentos, no seu

passado, na sua educação, nos seus vínculos familiares, em sua

formação advinda dos exemplos, bons ou maus, que recebeu. Esquece

que o homem acusado tem alma e sentimentos.

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A justiça técnica, o julgamento técnico, esquece

sempre o homem. Os autos não o retratam, nem sua fisionomia é

lembrada porque o julgador, em regra, só o viu no dia do interrogatório.

Mas os fatos, estes são de importância extraordinária. O Juiz os

conhece, os estudou, é capaz de narrá-los bem na parte expositiva da

sentença. E se julga habilitado a sentenciar. E quando condena faz um

cálculo matemático, sempre técnico, considerando os quantitativos

mínimo e máximo do tipo, e dorme tranqüilo, certo de que cumpriu seu

dever. Esquece ele que os fatos e o crime, não estavam em julgamento,

e que os fatos e o crime não seriam condenados, como não seriam

absolvidos. A condenação ou a absolvição volta-se para o homem, o

homem acusado, aquele que tem alma e sentimentos. E a este ele, o

Juiz, não conhece, não conheceu, não lembra sequer sua fisionomia.

Não lembra que era um ser humano, um cidadão, aquele a quem ele

julgou sem conhecer.

A Justiça do júri é diferente. O acusado ali está,

os jurados ouviram de viva voz sua história, sentiram seu olhar, talvez

tenham identificado seu arrependimento ou sua arrogância, sua

humildade, seu discernimento, suas origens e valores. E podem julgá-lo

melhor, porque ele, o réu, é um homem de sua comunidade. É um

homem igual a eles.

Ali no júri talvez seja onde se tem a certeza de

que é mais importante ter bons juízes do que boas leis.

Ali se erra e se acerta, como em todos os

tribunais. Já vi o Júri errar levado pela oratória da defesa ou pelas

influências políticas ou financeiras, alheias ao direito e à Justiça. Mas já

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vi presentes as mesmas influências em outros Tribunais, os mesmos

erros em outros Tribunais. Nunca vi o Júri errar, propositalmente, contra

o acusado: mas já vi em outros Tribunais.

Em minha vida profissional já houve dezenas,

muitas dezenas de júris. Já defendi culpados e inocentes, já vi

condenações e absolvições, já vi, repito, erros e acertos. Todos os que

advogamos no Júri já os vimos. No julgamento popular todos já

ensinamos e aprendemos cidadania.

Tenho, ainda, paixão pelo Júri. O espetáculo

judiciário que ali se desenvolve continua a ter o mesmo encantamento

do primeiro a que assisti, recém ingressado na Faculdade. Lembro que

naquele momento, como se dissesse a mim mesmo, senti que era

aquilo que eu queria p’ra minha profissão, p’ra minha vida, deslumbrado

que estava com tudo que via. Mal sabia eu que a vida dos advogados

criminais é também feita, e muito, de insegurança e de solidão. É bom

que os jovens não saibam disso para não se intimidar. Mas se a alguns

fizermos confissão nesse sentido devemos lhes dizer, também, que

dúvidas, medos, inseguranças, solidão, tudo isso faz parte da vida.

Não sei de instante maior de cidadania do que

quando o homem comum, o servidor público, o operário, o comerciante,

o jornalista, o engenheiro, o balconista, o vendedor, é feito Juiz,

julgador de um seu igual. Ele, o jurado, está ali por ser respeitável,

respeitado, confiável. Só por isso.

Para usar uma expressão bem nordestina, bem

provinciana, fico matutando comigo mesmo se não era no jurado, no

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Júri popular, no juiz leigo, que ELLERO estava pensando quando

afirmou que

“julgar é uma função que o homem usurpou

a Deus”.

Não há, não deve haver, advogado que já tenha

participado de um Júri, criminalista ou não, que não haja verificado que

o julgamento por homens do povo é um exercício de cidadania, uma

escola de cidadania. E quando se fala em cidadania é necessário que nos

conscientizemos de que ela traz em si toda a carga de imperfeição do

homem, mas mesmo imperfeitos, como somos, tem de ser cada vez

mais exercitada, mais consciente, mais integrada nos bens e nos males

da Justiça.

Estamos falando de cidadania.

É preciso destacar aqui que a cidadania de que

falamos não é aquela que tradicionalmente identificava os que podiam

ou não votar, ou os que adquiriam ou perdiam a nacionalidade. Também

não é o mesmo conceito clássico e antigo, quando cidadão era o que

podia participar da vida política do local onde vivia.

O cidadão de quem lhes falo é aquele para quem

se voltou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,

ainda que mais preocupada ela com o homem do que com o cidadão. O

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cidadão de quem lhes falo é o que se conseguiu definir ou identificar

nas regras da Declaração Universal de 1948 e na Conferência de Viena

de 1993.

Mas o cidadão que nos importa não é o dos

textos legais nem dos discursos, o que nos importa é o cidadão que eu

conheço, que é igual a mim, que é meu vizinho, meu patrão e meu

empregado, meu irmão e meu colega, meu cliente e meu amigo. Este

cidadão é o que está protegido pelos regramentos constitucionais

editados em 88 e é o mesmo que está agasalhado pelos tratados e

convenções pertinentes a direitos humanos recepcionados pela nossa Lei

Maior e a ela integrados na condição de cláusulas pétreas. É o cidadão

que precisa do advogado, o que está lutando por ter seus direitos

reconhecidos e assegurados.

Direitos humanos e cidadania não são

exclusividade de ninguém. Brancos e negros, ricos e pobres, doutores e

analfabetos, homens e mulheres, adultos e crianças, todos os têm. Mas

há uma diferença: em regra, os brancos, os ricos, os doutores e os

homens pensam ter mais...

Nossa escola de cidadania é feita, em maior

parcela, na defesa daqueles que não são considerados homens bons: os

que defendemos, nós advogados criminais, estes são os tidos como

homens maus! E esta é uma das imensas dificuldades e incompreensões

contra as quais lutamos para exercer nossos misteres e cumprir nossos

deveres, o que não nos intimida ou desestimula, ou pelo menos, não

nos deve intimidar ou desestimular. Ao contrário, é nessas defesas que

o advogado se realiza, é nesses instantes que ele é mais do que um

advogado, ele é um protetor, é um amigo, é mais que isso, é um irmão.

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Ao defender os homens maus é difícil que nos

entendam. Mais fácil é que nos julguem e a eles nos nivelem ou

comparem. Mais fácil é que nos condenem.

Mas pouco nos importa como nos vejam ou nos

julguem. VIEIRA dizia que não nos causa mal algum o que falam de

nós mentindo. Não é bem assim. Muito do que dizem de nós, mentindo,

nos causa incômodo, raiva, decepção, e a alguns, marca indelével e

negativamente. Que fazer? Desistir? Não! Conscientizar-se de uma

verdade contida em aconselhamento de RUY a EVARISTO DE

MORAIS, sobre críticas e incompreensões para com o advogado e sua

missão, como EVARISTO julgava sofrer.

RUY nos ensinou que apesar de tudo,

“... nem por isso o papel do advogado é de

menos necessidade ou menos nobre”.

E se preferirmos lembrar, outra vez, MANOEL

BANDEIRA, quando assim for, quando nada mais puder ser feito para

explicar o que somos e o que fazemos, quando, à semelhança do tísico

nada mais puder ser tentado, sequer um pneumo-tórax, versejamos

com ele:

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“... a única coisa a fazer é tocar um tango

argentino...”

Estou a lhes falar de nós, advogados, advogados

criminais. E destes, os que, a meu juízo, merecem nossas atenções,

nossos destaques, nossos louvores, são os advogados que todos

deveriam ser, os sérios, os éticos, os que se entregam às causas, os que

estudam, os que trabalham, os que vibram, os que se emocionam.

Não dou o mesmo tratamento àqueles que se

escravizam aos honorários, aos inescrupulosos, aos anti-éticos, aos que

subornam ou tentam subornar, aos que se acumpliciam com bandidos e

se fazem bandidos também, aos que vivem e sobrevivem às custas do

crime organizado, aos que usam diploma, titulação, identificação

profissional, para vantagens apenas financeiras e pessoais, o que não

lhes dá, nunca, respeito, admiração, dignidade, nem cidadania

profissional. Mas lhes dá, e a eles oferecemos, o repúdio e a execração a

que têm direito.

Os que ensinam e aprendem cidadania com a

advocacia criminal são aqueles que defendem, com o mesmo denodo,

humildes e poderosos.

Se é dever defender liberdade, cidadania, ética,

às vezes também se o faz na acusação. E na acusação também se

aprende muito. Se na defesa os dotes oratórios, a literatura, a escolha

das provas a serem destacadas e as teses jurídicas são estratégias

lícitas, já na acusação entendemos que só a verdade, a mais pura

verdade, a verdade dos autos, pode sustentar a atuação do advogado.

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Nesse lado da causa também se aprende muito,

às vezes até mais do que defendendo. Basta ver que é preciso aprender

a controlar os arroubos, a não exagerar na argumentação, a tratar com

respeito o acusado, a entender seu lado humano, a não partilhar dos

sentimentos e emoções das vítimas.

É preciso não esquecer que, apesar de tudo, ele,

o acusado, é um homem!

Fazer isso é, também, defender e exaltar a

cidadania. Ou o acusado, mormente antes da condenação definitiva, não

é um cidadão? Não tem ele direitos? E não os terá mesmo depois de

condenado?

É assim e por isso que as tarefas do advogado

criminal não se dirigem unicamente à proteção de seu cliente. Elas

transcendem à individualidade e alcançam, direta ou indiretamente, a

todos. O exercício de suas funções, o cumprimento de seus deveres, os

custos de seu trabalho, as canseiras de sua labuta são um exercício de

cidadania respeitante não só a ele profissional, não só a seu

patrocinado, mas a tantos quantos, para viverem civilizadamente,

exigem uma prestação jurisdicional absolutamente respeitadora de

direitos.

Assisti, faz pouco tempo, numa missa

comunitária, uma oração que até então não conhecia. Em suas

invocações, o sacerdote pedia a proteção de Deus, sua compreensão,

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sua tolerância, sua Justiça, para com os bandidos, os criminosos, os

réprobos, os assaltantes e assassinos, enfim, para os homens maus.

Eles precisam mais. Bons ou maus, além de criaturas do Senhor, são

também detentores de direitos, detentores de cidadania mesmo que

limitada, e é imperioso que a respeitemos.

Somos depositários da obrigação de lutar por

tais garantias, nós advogados, principalmente os criminalistas. Às vezes

não é fácil fazê-lo. Pouca coisa é fácil em nossas vidas, mas é preciso

lembrar sempre, a cada instante, a cada embate, a cada dificuldade, a

lição de GORKI:

“só são homens os que se atrevem a

encarar o sol de frente”.

Vejam, meus colegas, que a cada instante, com

dificuldades, ensinamos e aprendemos, e devemos fazê-lo encarando o

sol de frente.

O defensor pode ser público, escolhido ou

nomeado.

A vida é sempre mais difícil para os mais

necessitados e não há necessidade maior, em certos instantes, do que a

de defesa nos tribunais. Mas as defesas são onerosas, são caras, os

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advogados são profissionais que, como todos, com trabalho garantem

seu sustento. E os que não podem pagar têm tanto direito à defesa

quanto os que a pagam. Mas todos têm direito a uma boa defesa. E

nem sempre é uma boa defesa a exercitada pelas defensorias públicas

criminais, que têm sob sua responsabilidade, dezenas, centenas e às

vezes milhares de processos. Certamente não. Daí porque não basta

lutar pela criação e ampliação de defensorias públicas, é preciso lutar

por boas defensorias, sobretudo as criminais, para que elas realmente

exercitem a defesa na sua amplitude; que não se limitem ao

cumprimento de alguns prazos e à elaboração de alguns recursos. Que

não entreguem a maior parte de seu trabalho a estagiários ainda

inexperientes e despreparados. Que tenham disponibilidade de tempo e

meios materiais para ir além do comparecimento às audiências. Que

possam e saibam ouvir seus defendidos e que sejam capazes de se

apaixonar pelas causas, mesmo aquelas que não chegam à mídia e por

isso não fazem a fama dos advogados.

Estou falando do defensor cuja função, segundo

RUY:

“consiste em ser, ao lado do acusado,

inocente ou criminoso, a voz de seus

direitos legais”.

Seja contratado, seja público, seja advogado

nomeado, só é defensor, na integralidade da expressão, aquele que

seguir esse ensinamento.

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Estar ao lado do acusado é protegê-lo. E essa

proteção faltou no julgamento de JESUS CRISTO:

Ele estava só!

Muitos vivemos os anos de chumbo, os tempos

escuros da ditadura, injusta, cruel, malvada, como são todas as

ditaduras, independentemente da ideologia, dos aplausos de muitos e

do conformismo de outros. No âmago, todas se parecem, se igualam,

umas mais repugnantes, repulsivas, outras menos, mas todas

desrespeitando o homem, seus direitos, sua cidadania, suas idéias, seus

sonhos, sua liberdade e até sua vida.

Foram tempos escuros.

Muitos vivemos aqueles tempos. Alguns,

felizmente entre os advogados criminais poucos, ainda trazem marcas

físicas, que se ajuntam às psíquicas, decorrentes das torturas e do

medo. Ainda bem que são poucos. Mas muitos dos que atuaram em

defesa de políticos, presos ou não, não esquecem de como era difícil

apresentar-se em algumas delegacias e em quartéis, como era difícil ser

advogado, como era difícil defender. Como era difícil lutar por liberdade

e cidadania. Mas o fizemos. Não queríamos ser, nem o fomos, heróis,

nem bravos, nem valentes. O que queríamos era ser advogados, apenas

advogados. O que queríamos era defender direitos, cidadania, pouco

importando de quem. O que queríamos era pleitear justiça. E o fizemos

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na medida em que nos era permitido fazer. Em cada defesa como que

repetíamos o belo verso de THIAGO DE MELLO, que era um grito de

esperança:

“Faz escuro mas eu canto - porque a manhã

vai chegar”.

Em tempos assim, qualquer que seja a pátria,

alguns advogados se tornam símbolos. Basta lembrar, na França, de

BERRIER e CHAEVAU – LAGARDE e no Brasil de RUY, SOBRAL

PINTO e EVANDRO LINS.

Aqueles que profissionalmente freqüentaram

delegacias, quartéis, prisões, certamente não estão esquecidos. E é um

motivo de orgulho não esquecer. Não esquecer que valeram tantos e

todos os sacrifícios. Não esquecer que de tudo ficou a lição de que

mesmo sentindo medo, vale a pena não ser covarde. O advogado

criminal é somente um homem, igual aos outros, às vezes frágil, mas

em seu trabalho deve ter a fortaleza dos que não se abatem.

Hoje, felizmente, os tempos são outros. A

manhã chegou. Ainda que não em termos ideais, até porque não seria

possível, e talvez não o seja nunca. Já reconhecemos que há uma

consciência avantajada da importância da cidadania e dos direitos

humanos. Já somos todos quase iguais. Padres, pastores e rabinos já

celebram cultos comuns. Homens e mulheres disputam as mesmas

oportunidades. Brancos e negros convivem em paz. É ótimo que seja

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assim. Mas não basta. Cidadania não é apenas isso. Cidadania é

também alimentação, moradia, saúde, trabalho, justiça, o que tudo se

pode resumir numa palavra: dignidade. E a busca da dignidade é uma

luta incessante. De uma parte dela nós advogados nos encarregamos,

mas somos poucos e não tão fortes como deveríamos e gostaríamos de

ser.

Ainda falta muito. Ainda não temos a pátria

ideal. Tê-la-emos um dia? E quando chegará esse dia? Quando tivermos

consciência de que já não é mais tempo de pedir. Será tempo de exigir.

Exigir tudo que nos é devido: exigir que se acabem as masmorras dos

presídios e as torturas dentro e fora de qualquer dependência oficial;

exigir que os advogados sejam respeitados em delegacias e juízos.

Exigir e receber o que é nosso direito, sem ter de agradecer o pouco, o

quase nada que muitos têm.

Nesse dia, que há de chegar, não precisaremos

mais cantar, com CHICO BUARQUE DE HOLANDA, lembrado por

ALBERTO SILVA FRANCO:

“Por esse pão p’ra comer

Por esse chão p’ra dormir

A certidão p’ra nascer

A concessão p’ra sorrir

Por me deixar respirar

Por me deixar resistir

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Deus lhe pague

Pela cachaça desgraça que a gente tem que

engolir

Pela fumaça de graça que a gente tem que

tossir

Pelos andaimes pingentes que a gente tem

que cair

Deus lhe pague.”

Lutamos e vamos continuar lutando pela ética e

pela cidadania, certos de que cada causa, cada pleito, cada defesa, não

é apenas uma causa, um pleito, uma defesa, é uma luta. Que cada tese

que sustentamos pode aproveitar a alguns, a muitos, a poucos ou a

todos, pouco importa, e que ao lutar estaremos repetindo a lição

aprendida com COUTURE em um dos seus mandamentos, que é um

hino para nós advogados.

“Luta – teu dever é lutar pelo direito;

porém quando encontrares o direito em

conflito com a justiça, luta pela justiça;

Tem fé, tem fé, no direito como o melhor

instrumento para a conquista humana; na

justiça como destino normal do direito; na

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paz como substituto benevolente da justiça,

e sobretudo tem fé na liberdade, sem a

qual não há direito, nem justiça, nem paz".

Nem cidadania.