A/FC MARILINE ALVES - uc.pt · de cão e de vaca. Temperada com vi-nagre, a mistura foi polvilhada...

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23-09-2018 | Domingo _'J: A/FC TEXTO MARILINE ALVES FOTO DE CAPA _ "A praxe é dura mas é praxe", • o lema acompanha as insignias desta tradição académica. Na maioria das instituições nacionais a pratica do ritual tem por simbolo uma tesoura, uma moca, uma colher de pau e um cetro de praxe.,

Transcript of A/FC MARILINE ALVES - uc.pt · de cão e de vaca. Temperada com vi-nagre, a mistura foi polvilhada...

23-09-2018 | Domingo

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A/FC TEXTO MARILINE ALVES FOTO DE CAPA

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"A praxe é dura mas é praxe", • o lema acompanha as insignias desta tradição académica. Na maioria das instituições nacionais a pratica do ritual tem por simbolo uma tesoura, uma moca, uma colher de pau e um cetro de praxe.,

Há quem se tenha banhado em dejetos ou beijado uma cabeça de porco mas à maioria basta reconhecer que quem manda é quem

praxa. "Sou um reles caloirinho/não passo de um animal/ e agora vão-me praxar/e eu não vou levar a mal"

HISTORIAS DA 1131:AX

ACADÉMIC orte ao caloiro, o caloiro vai morrer" - ouve-se. E só se ouve: "Merrte ao calai-ro, o caloiro vai morrer", repetemin-cessantemente. Numa fila indiana em que os alunos recém-chegados dão as mãos por entre as pernaS do colega cia frente, `Mariana' agarra um colega que conheceu há cinco dias. Os novatos daquela academia do Sul do país são encaminhados cabisbaixos - noite dentro - para o interior da mata anexa à instituição. Estão vendados. "Fui a sofrer", conta. Chegados ao lo cal cio rito - o 'Tribunal de Praxe' - os 'réus' permanecem ajoelhados a aguardar julgamento. Numa altura em que 43 992 estudantes ocupam um lugar no Ensino Superior, reco - lhemos o testemunho sobre a praxe de quem a inflige e•cle quem pela inte-gração chora.

A sessãó estendeu--se até de ma-drugada. Acusada do crime de "ser menor de idade", `Mariana' foi "obrigada a comer um alho" - bem mastigado. Pordelitos distintos, ou-tros foram coagidos a beber "Shots de

vinagre aromatizado com iogurte", a lamber chantilly colocado sobre a cabeça de um porco decepado há muito e congelada no final de cada praxe. No término da cerimónia -dita o costume que a beije e acaricie. No ano seguinte, o 'cérebro cia ope-ração' volta a sair do frio.

A meio da semana, 'Mário' foi con-duzido a um descampado onde aguardou também em pose genufle-tida. "Um grupo trajado com velas aproximou se a entoar uma música fúnebre. Fui vendado. Ouvi gritos, tesouras a cortar cabelo, vi luzes". Foi exigido que revelasse "o melhor e o pior" da sua vicia. Em ano ante - rior, cerimónia idêntica valeu aos novatos de Comunicação a aflição perder a sobrancelha, mas afinal o corte era simulado.

'Mariana' pensou "obviamente em desistir". No dia seguinte ao julga-mento numa mata, a pena acessória manda que faça uma corrida desen-freada na direção de uma piscina úi- suflável onde todos têm de mergulhar

TEMA DE CAPA

"de cabeça" numa sopa 'cozinhada' com dejetos humanos e excrementos de cão e de vaca. Temperada com vi-nagre, a mistura foi polvilhada com bocados de peixe podre. "Fica a fer-mentar na noite anterior", descobre. Dentro da 'vala', o académico que orienta o ritual assegura-se que a `besta' fica coberta coma mistela.

Naquela instituição de ensino supe-rior no Sul clo País, o 'Código de Praxe' - constituição do Magniun Consilium Veteranorum, a assembleia de vete-ranos que a concebe - determina a concessão de títulos hierárquicos aos .estudantes, atendendo à sua antigui-dade. No documento, a carreira aca démica paralela ganha forma em títu-los como o de 'Mancebo', 'Académi-co', 'Veterano' ou 'Velha Guarda', para estudantes com cinco ou mais matrículas. Justifica, por escrito, que o caloiro possa ser chamado de 'bes - ta'. E de `Per f após o batismo.

A vala de `Mariana' foi proibida an-tes sequer de a caloira se ter matricu-lado. A prática generalizada aceite re - sume -se a longos períodos em pran-cha, de joelhos sobre o cimento, com o tronco erguido, a sujidade partilha da, através cio arremesso de ovos, fa-rinha, iogiu-te e ketchup; a almoços e jantares onde, 'acorrentados' uns aos outros, tentam levar a comida à boca com "pauzinhos" ou com um "escor-redor das batatas". `Mariana' recorda a única bem feitoria daquele tempo que, há três anos, em 'praxe solidária' a levou até à praia para limpar o areal.

O cancioneiro da besta `Rúben' entrou há um ano "com medo". " Disseram-me que o chão se-ria o meu melhor amigo durante toda a semana" , conta. Ao primeiro emba-te, em conversa com os pais mostrou intenção de desistir. Decidiu "dar--lhes urna segunda oportunidade".

ii Tenho-me desfeito em lágrimas todos os dias 'FILIPA', CALOIRA

ii Com os meus sapatos fui buscar água à ria 'RUBEN', CALOIRO

Ao segundo dia foi recebido com gri-tos - o seu ponto fraco. Chorou. Foi colocado de lado, para conversa es-clarecedora. "Vi- lhes a parte humana de que nunca tinha ouvido falar. Pude desabafar. Foi único. Soube que nada de mal me iria acontecer" . O rumo in-verteu-se. Recorda que "quando se decide aderir à praxe, não somos obri-gados afazer tudo. Podemos recusar e eu fi-lo." "Não fui excluído", conclui. Não participou em "praxes sujas" -"Vão contra os meus princípios", fez saber. Mas carregava ao pescoço a pla-ca que anunciava o seu 'nome de pra - xe', de que 'curral' procedia, ou seja de onde é natural, e o 'número de ferra-duras', ou seja, a sua idade. No dia em que não se pôde dirigir a quem o pra - xava sentiu - se "sozinho na universi-dade", admite. Ruben' acompanhou o desfile académico, sem participar. O cortejo pelas ruas da cidade, que atrai à porta os locais, conclui- se com oba - tismo. "Com cada um dos sapatos que calçava fui buscar água à ria. Depois, os meus padrinhos, escolhidos na noi-te anterior, pegaram nos sapatos e derramaram a água sobre a minha ca-beça. Passei a fazer parte da família. Foi mágico", não hesita.

`Filipa' - 'besta' este ano - foi ao en -gano quando achava que se ia diver-tir: "Não estou a gostar nada das pra-xes e cair aqui de paraquedas é difí - cil". "As pessoas que conheço do meu curso, e com quem falo, conheci-as antes sequer de começarmos a ser praxados", conta. "Em vez de me di-vertir, sou completamente diminui-da por académicos histéricos que se divertem com a palhaçada de nos re-baixar, de nos dizerem que somos burros ou uma m"". Tenho-me desfeito em lágrimas todos os dias", desabafa. Foi presenteada com o `Ma - nual e Cancioneiro Pessoal da Besta', onde se lê que "o caloiro não é pessoa,

é uma besta; só tem um direito: obe-decer; não namora, não tem sexo " e poderá, "eventualmente, ter a opor - tunidade de respirar e comer".

Nas redes sociais, as fotografias pos - tadas são quase sempre de quem gra-xa - as imagens são dos seniores que submetem os caloiros a 'atentados', onde ao grito de "bomba" esper-neiam no chão ou que ao som de ge-midos simulam posições sexuais. No - va tos e veteranos convivem num contexto esquizofrénico de gargalha-das e gritos autoritários.

ii Sujaram-nos. Cortaram o cabelo. Fraquinhos 'JOANA', ESTUDANTE

°Caloiros durante evento inserido na praxe, com o car-tão de identificação e tipo do ritual ao pescoço O Co bertos de Iodo, estu-dantes recém-chegados ao curso de Biologia de um insti-tuição pública de ensino no Sul do País. ()Sujar, de cabeça baixa, "com os olhos no chão" é palavra de ordem "O As fotos surgiram na internet e foram alvo de uma onda de reprovação nas redes sociais. Alunos veteranos de uma universidade da capital foram fotografados a praxar caloiros na rua Augusta, si-mulando o que aparentavam ser execuções dos terroristas do Daesh. A interpretação foi, mais tarde, rejeitada pela As-sociação de Estudantes da Instituição

A praxar no Alentejo, `Soraia' frisa que a praxe alterna conforme a insti-tuição e de quem a chefia naquele ano. As "bestas" ali são "bichos" e em cur-sos reconhecidos pela dureza da prá - Lica, há quem faça "tudo o que quer" deles. Futura enfermeira, 'Joana', que há dois anos se mudou cia capital para a planície, revela que ali "é mais pu-xado". Por entre os iniciados deste ano conta cinco desistências nos dois primeiros dias. Praxada numa insti-tuição pública em Lisboa, mostrou- se "indiferente" à experiência. "Dividi -

ram nos, sujaram-nos com farinha, bebemos cia mesma colher, cortam--nos um bocado do nosso cabelo. Fraquinho", conclui.

`Teresa', estudante de mestrado numa universidade privada da capi-tal, pinta um ritual iniciático "tran-quilo". "Nunca vi ninguém a passar mal" - e guarda para contar um "rally tascas", jogos que não melindram e um almoço no espaço académico. Naquela instituição de matriz católi-ca, as praxes duram até ao "traçar cia capa", em maio.

TEMA DE CAPA POR VANESSA FIDALGO

O TEMPO NÃO CALA

A DESGRAÇA DAS PRAXES Há quem defenda a tradição

e há quem condene as práticas. As praxes dividem a Academia

mas têm mais participantes A criseipcadémi-ca de 1489, em Coimbra, levanto uma onda de indigna-ção contra o regime e conduziu à suspen-são das praxes

os últimos tempos, a praxe académica tem sido defendida e justificada por uns, criticada e odiada

por muitos outros. O tema está lon-ge de ser consensual, mesmo entre a comunidade estudantil. E mais longe ainda de ser urna brincadeira sem consequências graves, como se viu em 2013, nas seis mortes da praia do Meco. Ainda assim, os nú-meros dizem que a adesão à praxe não diminuiu. Pelo contrário.

Se durante séculos esteve confi-nada à Universidade de Coimbra, desde o início da década de 1980 que se generalizou por todos os es-tabelecimentos de Ensino Superior e Politécnico. Mas as vozes contra têm aumentado de tom. Uma das que mais se fez ouvir foi a de Luís Monteiro (25 anos), deputado pelo Bloco de Esquerda e atualmente a frequentar o mestrado em Museo-logia na Universidade clo Porto, instituição onde anteriormente chegou a assumir a vice-presidên-cia da Associação de Estudantes (AEFLUP).

Em 2016, Luís Monteiro promo-veu uma carta aberta a todas as ins-tituições de Ensino Superior, subs-crita por cem personalidades, onde são sugeridas alternativas à praxe.

"Sou assumidamente antipraxe porque acredito num Ensino Supe-

rior que apele ao espírito crítico, que promova uma sociedade mais justa, menos violenta", declara o deputado do BE. E para o mais jo-vem, deputado cia legislatura, "o• combate à violência na praxe aca-démica não passa por prevenir ape-nas as catástrofes, mas pelo apro-fundamento dos mecanismos de fiscalização sobre todas violências -as mais evidentes e as simbólicas".

Mas do outro lado da barricada há a tradição e os muitos que a defen-dem. João Pedro Louro, presidente da Associação Académica de Lis - boa, aceita a praxe como "um con -junto de rituais e costumes ligados à integração que possibilita a convi-vência imediata dos caloiros com os novos colegas, facilitando assim a sua entrada num novo meio socio-lógico e na sua nova vida como es-tudante do Ensino Superior". Mas salienta: "A praxe não visa a prática de comportamentos humilhantes ou perigosos. Pretende-se que seja digna. Além disso, a participação é absolutamente voluntária."

Do Conselho de Veteranos da Universidade de Coimbra, órgão que concentra o poder de decisão e interpretação da praxe académica, chega, claro, outra justificação a favor: "Achamos que em Coimbra não há 'rituais'. Há sim, práticas e tradições. A palavra `ritual', por norma, tem uma conotação isola-

cionista, restrita a um certo grupo. No Portugal antigo, a vivência académica era única e rara e por isso repleta de mistério, desco-nhecimento, aproveitado pelos mais velhos para se divertirem e fazerem troça. Este fenómeno so-cial acontece em qualquer lado -empresas, associações, grupos de amigos - onde o membro mais novo por vezes é abusado na sua

ingenuidade e desconhecimento para gáudio dos restantes. Praxe há em todo o lado."

A posição dos reitores Neste terna, também o Conselho de Reitores das Universidades Portu-guesas (CRUP) teve de tomar uma posição bem definida.

"Sempre manifestámos grande oposição e repúdio pelas práticas

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Sempre manifestámos grande oposição e repúdio pelas práticas abusivas contidas nas praxes académicas ANTÓNIO FONTAINHAS FERNANDES, PRESIDENTE DO CRUP

Os casos mais graves

abusivas contidas nas praxes acadé-micas", frisa António Fontainhas Fernandes, reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e presidente do órgão que reúne os responsáveis máximos das univer-sidades portuguesas.

"Ao nível interno das instituições, a matéria constituiu sempre objeto de atenção por parte dos reitores, que procuraram sensibilizar as as-sociações académicas para o pro-blema, proibindo práticas violentas ou abusivas dentro das instalações", diz. Em contrapartida, "as universi-dades têm vindo a implementar ou-tras práticas de integração na vida académica, de natureza científica, desportiva e cultural, de forma a al-terar a situação".

Só que "a maioria dessas práticas e, sobretudo, as mais abusivas, são ge-rahnente realizadas fora dos recin-tos universitários, pelo que as uni-versidades não têm jurisdição para aí intervir", salienta.

Quem se queixa, fá-lo geralmente junto do Provedor do Estudante.

Mas é raro tal coisa acontecer. "As queixas são de origem diversa, mas as principais são as que têm efeitos no desempenho pedagógico dos es-tudantes", verifica o reitor.

Idade média A praxe é tão antiga corno a própria violência que demonstra. Isso mes-mo lembra Elísio Estanque, sociólo-go, professor em Coimbra e autor dos estudos 'Caloiros e Doutores: um estudo sociológico sobre a praxe académica em Portugal' e a 'A Praxe como Fenómeno Social' (ISCTE). Este último aconselhou, no ano pas-sado, o Ministério da Ciência, Tec-nologia e Ensino Superior a tornar medidas para "reprimir as práticas e reforçar o apoio" às vítimas.

"A praxe académica está direta-mente ligada a rituais de iniciação e passagem mas o nome 'praxe' só aparece na segunda metade do sécu-lo XIX. Todavia, sabe-se que vários séculos antes já existiam rituais se-melhantes com que os mais velhos acolhiam os mais novos em Coim -

NOVEMBRO DE 1999 Aluna da Escola Superior de Educação de Leiria declara-se vítima de agressões físicas e humilhações num 'tribunal de praxe' que dita o corte do seu cabelo. É a primeira vez que alguém anuncia a vontade de iniciar um processo em tribunal - o que não chegou a acontecer.

OUTUBRO DE 2001 Diogo Macedo terá sido alegadamente espancado com uma revista e morreu de uma lesão numa vértebra cervical durante uma praxe na Tuna Académica da Universidade Lusíada de Famalicão. Um pacto de silêncio entre os envolvidos não permitiu ao tribunal apurar a responsabilidade pelo crime. Onze anos depois, á Universidade Lusíada foi obrigada a pagar uma indemnização de mais de 90 mil euros à família da vítima.

JANEIRO DE 2003 Ana Sofia Damião, aluna do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros, denuncia publicamente as agressões de que terá sido alvo durante as praxes: insultada, obrigada a despir-se, forçada a simular orgasmos e relações sexuais com colegas. Em 2009, o Supremo Tribunal de Justiça condenou o Instituto Piaget a uma indemnização de 38 mil euros.

MARÇO DE 2003 Ana Santos, estudante da Escola Superior Agrária de Santarém, faz queixa na polícia, à direção da escola e numa carta para o ministro do Ensino Superior. Teria sido "esfregada" com bosta, insultada e impedida de usar o telemóvel durante várias horas e, finalmente, abandonada a quilómetros de casa. O Tribunal de Santarém viria a condenar sete estudantes, numa sentença confirmada em 2009 pelo Tribunal da Relação de Évora, a multas entre os 640 e 1600 euros.

OUTUBRO DE 2003 Aluno denuncia ter sido obrigado a atar ao pénis um cordel que amarrava um tijolo no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra. O pai do aluno apresentou queixa no Ministério da Educação. Não houve penalizações.

NOVEMBRO DE 2003 Segundo as noticias, no Instituto Superior de Ciências Policiais, caloiros terão sido obrigados a lamber chantilly num pénis de borracha aplicado a um manequim. Uma das vítimas afirma na imprensa que esteve "duas noites sem dormir" e que nunca antes tinha sido "tão humilhado".

OUTUBRO DE 2006 Reitoria da Universidade de Aveiro

proíbe as praxes no interior do campus, na sequência de "excessos" que obrigaram à hospitalização de uma aluna.

MAIO DE 2007 Aluno da Faculdade de Medicina de . Coimbra terá sido ferido no escroto durante um "rapanço" e outro com ferimentos no crânio por lhe terem rapado o cabelo. Vítimas não avançaram com queixa.

NOVEMBRO DE 2007 Aluno do 30 ano da Escola Superior Agrária de Coimbra ficou tetraplégico após uma queda durante as praxes. Em Elvas, outro caloiro da Escola Superior Agrária caiu do do castelo durante o "rali das tascas" da.semana de receção ao caloiro.

OUTUBRO DE 2008 Aluno do 1Q ano da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria sofreu uma rutura de um aneurisma cerebral depois do "batismo" na Fonte Luminosa.

OUTUBRO DE 2009 Ministério Público acusa oito alunos do Colégio Militar de agressões contra colegas mais novos. Uma das vítimas ficou com um tímpano furado e outra permaneceu mais de um mês numa cadeira de rodas.

JANEIRO DE 2011 Aluna do 1Q ano da Academia Militar é internada com um traumatismo craniano.

SETEMBRO DE 2012 Cristina Ratinho, de 26 anos, aluna do 1Q ano do Instituto Politécnico de Beja sofreu uma paragem cardiorrespiratória após uma praxe. Morreu um ano depois, tempo em que permaneceu em coma. Deixou uma filha de quatro anos.

DEZEMBRO DE 2013 Seis estudantes com responsabilidade pela organização das praxes na Universidade Lusófona morrem ao serem arrastados pelo mar na Praia do Meco.

JANEIRO DE 2014 António Silva Gomes, professor de Psicologia Aplicada da Universidade dó Minho, queixou-se de ter sido agarrado e humilhado por praxistas quando tentava intervir numa praxe abusiva que decorria no interior da instituição.

OUTUBRO DE 2015 Caloira da Universidade do Algarve ficou inconsciente depois de ser enterrada na areia e obrigada a beber até entrar em coma alcoólico.

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ITM

O Manuel Costa Alves começou a estudar Físi-co-Química em Coimbra, em 1961 ®José Cid an-dou no liceu em Coimbra e entrou para Direito, em 1958. Alunos mais velhos perseguiam-no quan-do ia para os ensaios <>Carlos Rolhais, profes-sor de Física, fica espantado com a permissividade dos alunos ()António Fontainhas Fernandes é presidente do Conselho de Reitores das Universi-dades Portuguesas (CRUP) OTeolinda Gersão diz que os alunos "calam e consentem"

bra. Durante a Idade Média houve até indicações oficiais e específicas para que os mais velhos vigiassem os horários, o recolher e os comporta-mentos dos que tinham acabado de chegar e já nessa altura havia relatos de atos violentos", lembra.

Por diversos períodos, a praxe es-teve suspensa, concretamente en-tre 1910 e 1918, por causa da im-plantação da República, e entre 1969 e 1979, o chamado "luto aca-démico", motivado pela contesta-ção ao regime. Só a partir de 1979 a praxe começou a ressurgir. Mas, primeiro, "na clandestinidade, sendo alvo de muita contestação", e depois alargando--se a outras ci-dades e universidades.

Quando Elisio Estanque passa ago-ra na praça da República, centro da cidade de Coimbra e da vida estu-dantil que a anima, torna a ver gente "seminua, de quatro no chão". Até parece uma cena da Idade Média, mas não é. O investigador recorda que, nos anos 60, "até um professor que ia dar aulas pela primeira vez também teve de se ajoelhar" . Queixas são poucas. "Porque,

compreensivelmente, os mais jo-vens não querem ser excluídos nem alvo de retaliações", refere.

Apesar de a participação na praxe ser voluntária, nem por isso o in-vestigador Elísio Estanque deixa de olhar para estes rituais como um défice de informação, cultura e de-mocracia. "A adesão à praxe tem vindo acrescer à medida que há um esvaziamento do movimento asso-ciativo e cultural. Os caloiros ade-rem às praxes, mas as associações de estudantes têm dificuldade em mobilizá-los para acontecimentos culturais de teatro, cinema, músi-ca, que também são de integração e de busca de identidade e coletivis -

ii Já na Idade Média havia relatos de atos violentos ELISIO ESTANQUE INVESTIGADOR

DE CAPA

mo. Há, acima de tudo, um défice democrático. A praxe comporta urna ideia perigosa, de que é preci - so submetermo-nos, resignarmo - - nos e permitir a humilhação, se queremos dar nos bem na vida. Urna ideia que pode ficar para o resto do percurso como sendo na-tural: de que é preciso aceitar a hu-milhação e respeitar a autoridade sem a questionar", afirma o soció-logo e também professor da Uni-versidade de Coimbra.

Anos 60 Quem por ali passou até em tempos mais recuados, antes do luto acadé-mico, sabe que foi sempre assim.

Houve "alunos obrigados a sentar--se em penicos de água quente ama-relada de chá, para os fazer pensar que era urina, ou a entrarem despi-dos no lagoa meio da noite, no frio de novembro", lembra Elísio Estanque.

Um tempo que o meteorologista Manuel Costa Alves viveu. Integra-do numa associação de estudantes

envolvida na luta contra a ditadura, chegou a fazer parte de um movi-mento antipraxe na época das lutas estudantis, mas lembra que, como caloiro, passou um ano de cabeça rapada. "Sempre que nos encontra-vam sem a cabeça rapada, batiam--nos 50, 100 vezes. Era um sofri-mento. Na latada, tínhamos de des-filar em cuecas pela cidade, chovia que deus a dava. Torturavam e ridi-cularizavam-nos. Mas as pessoas submetiam-se e, no ano seguinte, iam praxar os mais novos", recorda Manuel Costa Alves.

O cantor José Cid frequentou o li-ceu em Coimbra e depois entrou para o curso de Direito na Universi-dade, em1958. Como já tocava, ar-riscava a pele sempre que saía à noi -te (coisa proibida aos caloiros) para ir aos ensaios no clube de Jaz z clo Orfeão de Coimbra. Garante que era preciso ter "sapatilhas de borracha e praticar atletismo na Académica" -como era o seu caso - para conseguir "safar-se" às praxes mais hedion-

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das, que passavam "pelas rapadelas de cabelo às idas ao toco - empurra-vam os caloiros de pernas afastadas contra um poste ou tronco". Também o professor de Física

Carlos Fiol liais estudou na Univer-sidade de Coimbra entre 1973 e 1978, mas num período em que as praxes estavam suspensas. "Nunca usei traje académico, que evoca tempos em que a Universidade es-

tava casada com a Igreja mas, quando era aluno do liceu em Coimbra, conheci o pavor das tre-pes vestidas de preto, com tesouras e colheres de pau, que impediam que se saísse à noite. Eram os vam-piros da noite!", recorda. A reali-dade não mudou assim tanto: "Vejo passar filas de caloiros de mão dada a gritar impropérios a mando dos veteranos e acho o cor-

Se nos encontravam sem a cabeça rapada, batiam-nos 50, 100 vezes. Torturavam-nos e ridicularizavam-nos MANUEL COSTA ALVES METEOROLOGISTA FORMADO EM COIMBRA

Universidade do Porto

REITORIA PROMETE PUNIR ABUSOS O novo reitor da Universidade do Porto (UP), António de Sousa Pereira, que tomou posse a 27 de junho, emitiu esta semana um despacho a proibir praxes que "atentem contra a dignidade, liberdade e direitos dos estudantes" e que se traduzam em "atos de violência e coação". Infrações serão punidas com a "interdição da frequência da instituição".

O reitor António de Sousa Pereira

Quando chega à universidade, o caloiro é considerado 'animal'. Essa é a justificação para usar orelhas de burro e rastejar no chão

tejo urna total estupidez. Não sei como é que tanta gente aceita ser humilhada", lamenta.

E lembra o lado mais negro da questão: "Os excessos são crimes que muitas vezes ficam impunes: lembro Os afogamentos no Meco e a queda do muro em Braga. Lembro o estudante da Escola Agrária de Coimbra que ficou paraplégico numa praxe ao escorregar sobre uma vala com bosta. Uma coisa bes-tial para os autores da ideia, mas que eu acho bestial por ser próprio de bestas. Importante: as mulheres são discriminadas nos códigos da praxe, feitos num tempo em que só havia homens no ensino superior. Um `Dux veteranorum' do Porto defen -deu que os 'fados e as serenatas são coisas de homens'. Parece que há mulheres que aceitam estas restri - ções. E fico pasmado, pois não per-cebo a diferença entre isso e a proi-bição de as mulheres guiarem nal-guns países árabes", sublinha.

Teolinda Gersão, antiga aluna da Universidade Coimbra, escritora e professora universitária, lembra

igualmente que na praxe coimbrã, mãe de todas as praxes, "o caloiro é tradicionalmente o 'animal'". Ora, segundo a lei, frisa a escritora, "os animais passaram a estar protegidos de maus tratos, o que abrange qual-quer tipo de coação física: dor, sofri-mento, mutilação ou morte", co-meça por referir.

E aponta o dedo aos próprios caloi-ros: "O que fariam se um professor os mandasse rastejar no chão? Não

obedeciam e o professor teria pro - • blemas. No entanto, estranhamen-

te, para os alunos, a praxe parece ter um poder incontestável. Estão me-nos protegidos do que um cão ou um gato. Calam e consentem, rejeitai] cio ou ignorando a lei em que vivem. Fica um alerta: em caso de tudo cor-rer mal, dir -se -á que lá estavam por vontade própria, e que, se lá esta - Varri, não estivessem. Já no meu tempo eu pensava assim."

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O que fariam se um professor os mandasse rastejar no chão? Mas, estranhamente, para os alunos a praxe é incontestável TEOLINDA GERSÃO PROFESSORA UNIVERSITÁRIA E ESCRITORA

d SEMANA DE 22.09ATÉ22.00.1018 CCMIfi0 FOLZPARTEM~CIAEMOIn ra C.1.14339

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AGARRA 110S PELA FORÇA DA PRAXE ACADÉMICA OS CALOIROS SÃO SUBMETIDOS AOS MAIS VELHOS. DESDE MERGULHOS EM PISCINAS CHEIAS DE DEJETOS A SIMULAÇÃO DE ATOS SEXUAIS NA VIA PÚBLICA, VALE TUDO EM NOME DA TRADIÇÃO. ANTIGOS

tt*- UNIVERSITÁRIOS CONTAM AQUILO POR QUE PASSARAM