África em Foco - UFRGS

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

R382 Relações internacionais para educadores : África em foco / Klei Medeiros

... [et al.] ; organizado por Alexandre Piffero Spohr, Marjorie Stadnik, Klei Medeiros. -- Porto Alegre : Editora da UFRGS, 2013.244 p.

ISBN 9788566106046

Publicação do Projeto Relações Internacionais para Educadores (RIPE), destinada a promover a difusão do conhecimento de temas de relações internacionais entre professores e estudantes de Ensino Médio.

1. Relações internacionais. 2. Integração regional. 3. Geopolítica. 4. África. I. Medeiros, Klei. II. Spohr, Alexandre Piffero. III. Stadnik, Marjorie. IV. Título

CDU 327(6)

Responsável: Biblioteca Gládis W. do Amaral, Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS

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Projeto Relações Internacionais para Educadores (RIPE) 2013

ISBN 978-85-66106-04-6Publicação do Projeto Relações Internacionais para Educadores (RIPE), destinada a promover a difusão do conhecimento de temas de relações internacionais entre professores e estudantes de Ensino Médio e Fundamental.

Publication of the International Relations for Educators Project (RIPE), aiming at promoting the dissemination of the knowledge on international relations issues among Elementary and High School teachers and students.

Ano 2, Vol. II, 2013, Porto Alegre, UFRGS.

Universidade Federal do Rio Grande do SulReitor: Carlos Alexandre Netto / Vice-Reitor: Rui Vicente Oppermann

Faculdade de Ciências EconômicasDiretor: Hélio Henkin / Vice-diretor: André Moreira Cunha

Comitê Administrativo:Alexandre Piffero Spohr / Cristiana Maglia / Joana Oliveira de Oliveira / Júlia Rosa / Juliana Freitas Klei Medeiros / Luiza Bender / Lucas de Oliveira Paes / Mariana Willmersdorf Steffen / Marjorie Stadnik

Comitê Acadêmico:Alexandre Piffero Spohr / Alice Canal / Cristiana Maglia / Diogo Ives de Quadros Guilherme Ziebell de Oliveira / Iara Binta Lima Machado / Isadora Loreto da SilveiraJoana Oliveira de Oliveira / Júlia Paludo / Júlia Tocchetto / Klei Medeiros / Leonardo WeberLucas de Oliveira Paes / Luisa Bento Saraiva / Luíza Gimenez Cerioli / Luiza Salazar AndriottiMariana Willmersdorf Steffen / Marília Closs / Matheus Machado Hoscheidt / Natasha PergherOsvaldo Alves Pereira Filho / Pedro Alt / Raul Cavedon Nunes / Renata Schmitt Noronha

Conselho Acadêmico:Ana Júlia Possamai / Igor Castellano da Silva / Luíza Galiazzi Schneider / Marcelo Leal / Nathaly Xavier Sílvia Sebben / Thiago Borne Ferreira

Equipe Técnica:Bibliotecária: Lílian MacielProjeto gráfico: Cláudia Regina PossamaiIlustração: Cláudia Regina PossamaiEditoração Eletrônica: Alexandre Piffero SpohrImpressão: Gráfica da UFRGSApoio: Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS (PROREXT), Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul (SEDUC-RS), Centro Brasileiro de Estudos Africanos (CEBRAFRICA) e Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT)Revisão de Português: Alexandre Piffero SpohrForma de aquisição: permuta.Publicação anual / Yearly publicationTiragem dessa edição: 250 exemplares

Universidade Federal do Rio Grande do SulCampus Centro - Faculdade de Economia

Av. João Pessoa, 52.Porto Alegre - CEP 90040-000 - RS - Brasil

[email protected]

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SUMÁRIO

Apresentação ..................................................................................... 7

Prefácio: África, um continente desconhecido ...................................... 11Prof. Dr. Paulo Fagundes Visentini

1. Os dois lados do atlântico: o continente africano e a cooperação com o Brasil ................................................................................... 13Klei Medeiros, Iara Binta Lima Machado, Alice Canal & Raul Nunes

2. Sociedades africanas antigas: história e características ....................... 31Cristiana Maglia, Marília Closs & Renata Noronha

3. Sob o jugo europeu: do imperialismo branco às guerras de independência africanas ................................................. 65Mariana Steffen, Leonardo Weber & Pedro Alt

4. A formação dos Estados africanos: conflitos e construção de capacidade estatal .................................... 101Alexandre Spohr, Luiza Andriotti & Luíza Cerioli

5. Processos africanos de integração regional ....................................... 135Lucas Paes, Matheus Hoscheidt & Osvaldo Pereira Filho

6. A África no pós-Guerra Fria: geopolítica e “novos” atores ................... 161Guilherme Oliveira, Isadora Loreto da Silveira & Júlia Paludo

7. As influências da África na formação sociocultural do Brasil ................. 185Diogo Ives, Joana Oliveira & Luísa Saraiva

8. Apêndice: países africanos ................................................................ 209Natasha Pergher & Júlia Tocchetto

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APRESENTAÇÃO

Alexandre Piffero SpohrGraduando em Relações Internacionais

Marjorie StadnikGraduanda em Relações Internacionais

Klei MedeirosGraduando em Relações Internacionais

A presente publicação reúne os artigos escritos por alunos da gradu-ação de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a colaboração de professores e de alunos pós-graduandos, pro-duzidos como subsídio para os educadores participantes do projeto “Relações Internacionais para Educadores” (RIPE), em sua edição 2013.

O Projeto RIPE é uma iniciativa dos estudantes de graduação de Relações Internacionais da UFRGS, resultante do desejo comum de fomentar o debate sobre os temas de política, política internacional e relações internacionais para além das fronteiras da universidade, levando-o para dentro das escolas públicas de Porto Alegre e região metropolitana através daqueles que são seus princi-pais agentes: os educadores.

Com esse desejo em mente, em 2009 começou a ser arquitetada a primeira edição de um curso de curta-duração de Relações Internacionais, ministrado por acadêmicos da UFRGS e outras universidades e voltado para educadores de ensino médio da área das Ciências Humanas. Tal como pensado, o objetivo principal do RIPE é propiciar uma formação desses educadores em temas de Relações Internacionais, tão em voga no século XXI, de maneira a capacitá-los e fornecer-lhes subsídios para que levem o debate para as salas de aula, discutam e reflitam sobre a realidade nacional e internacional entre colegas e com seus alunos. O RIPE visa não só a incentivar esse debate, mas a estimular um pensa-mento crítico em relação ao que é veiculado na grande mídia, tanto no que se

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refere ao nosso país, quanto ao modo como são tratados os acontecimentos e eventos internacionais.

Em suas duas primeiras edições, em 2010 e 2011, o projeto obteve o apoio institucional e financeiro do Departamento de Estado dos Estados Unidos e da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, através do Concurso de Pequenos Financiamentos (Small Grant Competition). Da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o RIPE contou com o apoio físico e institucional da Faculdade de Ciências Econômicas, bem como com o apoio institucional da Pró-Reitoria de Extensão (PROREXT). Nesses dois anos, também, foi de suma importância o apoio institucional e logístico da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul (SEDUC-RS), que acolheu o Projeto e divulgou-o nas escolas públicas da região metropolitana. Em especial, destacamos o apoio dos profes-sores da UFRGS, dos quais recebemos não apenas a colaboração e a disposição de ministrarem os cursos, mas o incentivo e a confiança necessários para tocar o Projeto de maneira independente.

A primeira edição do RIPE, ocorrida no primeiro semestre de 2010, mostrou-se um grande sucesso. Mais de oitenta educadores participaram e dis-cutiram conosco temas relacionados à ordem mundial no pós-Guerra Fria e no século XXI, à emergência dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) e do conti-nente africano, à questão do meio ambiente e dos recursos naturais, bem como à questão dos direitos humanos. A receptividade dos educadores e as mensa-gens de apoio recebidas ao final do curso em 2010 incentivaram a organização e a realização de uma segunda edição do RIPE.

A segunda edição do RIPE, que foi desenvolvida no segundo semestre de 2011, manteve o sucesso da edição anterior, alcançando um número de inscritos de mais de 140 professores, com uma média de 80 participantes por palestra. O tema discutido foi “Democracia em Debate”, procurando esclarecer aspectos pouco explorados pela grande mídia acerca das democracias mundo afora - especialmente na América Latina e no mundo árabe - e oferecer uma abordagem mais ampla do conceito de democracia, bem como conscientizar a comunidade sobre o funcionamento dos poderes executivo e legislativo e como a ação popular pode influenciar na agenda política nacional, passando pelo caso Ficha Limpa e discutindo ainda cor, gênero e Democracia na Era Digital.

Em sua terceira edição, o RIPE tem como tema a “África em Foco”. A partir da lei 10.639 de 2003, o estudo da história e da cultura afro-brasileiras se

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Apresentação 9

tornou obrigatório. Contudo, a essa lei ainda é pouco implementada nas escolas brasileiras, e o conhecimento geral sobre assuntos africanos e sobre as raízes de nossa cultura e de nossa sociedade carece de uma reflexão mais aprofun-dada e menos influenciada pela mídia e pela difusão de ideias pré-concebidas. É com o intuito de prover a professores e alunos do ensino médio e fundamental com mais subsídios para o estudo e para a discussão desse tema que esse livro foi desenvolvido, servindo de subsídio para as palestras realizadas na terceira edição do RIPE.

Para melhor entender a importância do estudo dos temas desta edição, trataremos no primeiro capítulo das relações entre o Brasil e o continente afri-cano. A seguir, estudaremos a história do continente africano dividida em três períodos: as sociedades africanas antigas, a colonização e descolonização dos continentes pelas potências europeias, e a formação dos Estados africanos após suas independências. Após a abordagem histórica do continente, passaremos a duas importantes faces da inserção internacional dos países africanos: a inte-gração regional e as relações do continente com atores externos. Por fim, anal-isaremos as raízes africanas na sociedade e cultura brasileiras.

Resultado do esforço de pesquisa coletivo da Equipe Acadêmica do Projeto, que contou com uma equipe ampliada de voluntários – que vão desde os alunos de graduação em Relações Internacionais da UFRGS e colegas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aos alunos dos programas de pós-graduação em Ciência Política e Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS – e contando novamente com a colaboração dos professores da Universidade, é com grande alegria que apresentamos este livro aos educado-res e aos alunos da comunidade escolar gaúcha e brasileira.

Este livro, em sua versão impressa e digital, representa, para a Equipe RIPE, uma forma de popularizar e incentivar o debate desses temas, levando-o a um número ainda maior de educadores e de alunos, transcendendo as fron-teiras de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Buscamos, assim, aproximar a academia e a escola, abrindo as portas da universidade pública, com o fim de transmitir e compartilhar com a sociedade brasileira o conhecimento aqui pro-duzido e construído.

Por fim, esperamos poder, através do nosso trabalho, estimular outros jovens a desenvolver projetos semelhantes em suas respectivas áreas de atu-ação e em suas respectivas regiões, reconhecendo a importância fundamental

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que tem o educador no desenvolvimento de nosso país.Agradecemos a todos que nos apoiaram e colaboraram na realização do

Projeto “Relações Internacionais para Educadores”.

Um grande abraçoOs organizadores.

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PREFÁCIO: UM CONTINENTE DESCONHECIDO

Paulo G. Fagundes VisentiniProf. Titular de Relações Internacionais da UFGRS

Coordenador NERINT/CEBRAFRICA

O Centro Brasileiro de Estudos Africanos (CEBRAFRICA), programa de pesquisa integrado ao Centro Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT) do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA-UFRGS), em 2013, tem o prazer de acolher a publicação dos materiais do RIPE: Relações Internacionais Para Educadores. Esta iniciativa dos estudantes de graduação de Relações Internacionais da UFRGS, neste ano, em lugar de enfocar temas ema-nados da agenda político-acadêmica das potências do hemisfério Norte, brinda os professores gaúchos com palestras e artigos sobre a África.

O tema é importante porque os afrodescendentes representam signifi-cativa parcela da população brasileira e esta contribuição básica à formação da nacionalidade brasileira é tanto ignorada como ocultada, junto com preconcei-tos socioculturais. Com as políticas afirmativas e a obrigatoriedade do ensino da História da África nas escolas e universidades, a produção de material de qualidade se torna essencial, como ferramenta aos professores.

Além disso, o Brasil, desde 2003, tem desenvolvido uma política ex-terior em que os países em desenvolvimento representam um Eixo im-portante: a Cooperação Sul-Sul. Não se trata apenas de aumentar os laços econômicos, mas de exercer solidariedade social e articular politi-camente estes países para atuarem na transformação da ordem mundial rumo à multipolaridade. A África representa a região onde o Brasil tem atuado de forma mais enfática para tais políticas, mas a África segue sendo praticamente desconhecida do público brasileiro, apresentada sempre como uma região voltada ao passado, às supostas tradições estáticas que seriam sua marca: uma região sem desenvolvimento nem futuro.

Mas o que observamos no início do século XXI é um continente em pleno crescimento e que adquire uma posição cada vez mais relevante nos assuntos mundiais. Novos parceiros como China, Brasil, Índia, Rússia, Turquia e países

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árabes, entre outros, hoje mantêm relações intensas com o continente africano, criando novas oportunidades e desafios, mas, sobretudo, melhorando a capaci-dade de negociação dos países africanos. A integração avança com a conversão da Organização da Unidade Africana (que completa meio século de existência agora) em União Africana, complementada pelo programa Nova Parceira Afri-cana Para o Desenvolvimento (NEPAD).

Dessa nova situação resultam iniciativas para resolução de conflitos for-muladas e executadas pelas próprias nações africanas. Além disso, diversos pro-cessos de integração regional estão em andamento, com resultados palpáveis, enquanto a infraestrutura cresce. Mas num quadro de crise mundial e luta por recursos naturais, nos últimos anos temos assistido uma série de iniciativas de “reconquista”, como a militarização proposta pelo AFRICOM (Comando Áfri-ca, dos Estados Unidos), com sua guerra ao terrorismo no Saara, a IV Frota, que pode atuar no Golfo da Guiné (onde cresce rapidamente a exploração de petróleo) e as intervenções franco-britânicas no contexto da Primavera Árabe.

É deste conjunto de eventos, da luta pelo desenvolvimento social, das relações com o Brasil e dos afro-brasileiros que trata a presente obra, redigi-da em grande parte por estudantes que atuaram como Bolsistas de Iniciação Científica do NERINT/UFRGS. Um instrumento indispensável aos professores e estudantes da rede pública de ensino do Estado do Rio Grande do Sul. Por fim, o conjunto da iniciativa demonstra um traço de solidariedade, com estudantes levando o conhecimento universitário de ponta à sociedade.

Porto Alegre, fevereiro de 2013

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1OS DOIS LADOS DO

ATLÂNTICO: O CONTINENTE AFRICANO E A COOPERAÇÃO

COM O BRASILKlei Medeiros, Iara Binta Lima Machado,

Alice Canal & Raul Nunes1

Os laços escravagistas que ligaram o Brasil à África se mantiveram fortes por muito tempo, sendo essa ligação enfraquecida com a colo-nização do continente africano. A partir desse momento, a política africanista do Brasil oscilou entre períodos de aproximação e distan-ciamento. Já com o começo do governo Lula, tem-se o surgimento de um projeto de reaproximação com a África marcado por características inovadoras. Através da cooperação Sul-Sul, o governo brasileiro logrou estabelecer fortes vínculos com o continente africano, atuando nas esferas econômica, política e estratégica, além de intensificar projetos na área de desenvolvimento social.

1 Graduandos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os autores agradecem a revisão de Igor Castellano e a colaboração do Prof. Paulo Visentini.

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UM OLHAR HISTÓRICO SOBRE AS RELAÇÕES BRASIL-ÁFRICA

Os laços que unem África e Brasil são antigos e estão ligados à ocupa-ção portuguesa das duas margens do Atlântico e ao tráfico de escravos que daí resultou (VISENTINI, 2010a). De fato, o tráfico de escravos foi o elo funda-mental entre as duas regiões já nas primeiras décadas do século XVI, mas essa aproximação deve também ser entendida em esfera global enquanto durou a hegemonia do Atlântico Sul enquanto centro dinâmico da economia mundial durante o século XVII (RODRIGUES, 1964).

A chegada de milhões de escravos africanos ao Brasil imprimiu carac-terísticas específicas à sociedade brasileira, cujas marcas ainda são perceptíveis nos dias atuais. Se a historiografia retrata de forma recorrente a contribuição africana em aspectos culturais, linguísticos, religiosos e artísticos, o mesmo não ocorre com a gama de técnicas agropecuárias e de combate a doenças que foram trazidas pelos africanos, as quais eram adaptadas a ambientes tropicais. Daí ser possível dizer que a europeização do Brasil foi acompanhada de sua africanização simultânea (VISENTINI, 2010a).

A conexão entre África e Brasil não foi extinta com o advento da inde-pendência brasileira. Nesse sentido, destaca-se que um africano, o rei do Benim, foi o primeiro soberano a reconhecer a independência do Brasil, ainda em 1823. Ademais, cogitou-se a possibilidade de união entre Brasil e a colônia portu-guesa de Angola para garantir a preservação dos vínculos econômicos escravis-tas entre as duas regiões e satisfazer os anseios de uma elite angolana composta em sua maior parte por brasileiros (VISENTINI, 2010a).

Os laços escravistas que uniam o Brasil à África continuaram fortes após a proclamação da independência, pelo menos até a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz em 1850, que proibiu o tráfico de escravos. Essa proibição tem suas origens nas pressões internacionais exercidas pelos ingleses desde meados do século XIX e que desembocaram na promulgação do Bill Aberdeen (1845), lei inglesa que autorizava o apresamento de navios negreiros. A Lei Eusébio de Queiroz também está ligada à ideologia do “branqueamento” da sociedade brasileira a partir de estímulos à imigração europeia ao país (VISENTINI, 2010a). Essa política foi não só seguida pelo Brasil Império, mas também pelo regime republicano iniciado em 18891.

A segunda metade do século XIX foi, portanto, marcada por um afas-tamento entre Brasil e África, situação essa que foi aprofundada com a inten-

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sificação da colonização no continente africano que ocorre durante a corrida imperialista europeia. Isso fica particularmente evidente em meados do século XX quando se constata que o Brasil realizava cerca de noventa por cento de seu comércio africano somente com a África do Sul2 (VISENTINI, 2010a). Além disso, o país demonstrava uma postura pró-Portugal em fóruns multilaterais, colocando-se contra a descolonização das colônias portuguesas no pós-Segunda Guerra Mundial. Essa postura era reflexo de uma barganha política interna que buscava angariar o apoio eleitoral da comunidade lusitana radicada no Brasil. Do lado português, o regime de Salazar buscava no luso-tropicalismo de Giberto Freyre as bases para a continuidade do colonialismo português, tendo no Brasil o paradigma da política de assimilação que sustentava o ideal das Províncias Ultramarinas (VISENTINI, 2010a; CASTELO, 2011). Em conjunto com a prio-ridade dada pela diplomacia brasileira ao continente americano durante o Governo Kubitschek, a opção portuguesa do Brasil ajuda a explicar o pouco entusiasmo brasileiro diante das independências africanas do começo dos anos 1960. A África só voltaria a ter importância para o Brasil com o advento da Política Externa Independente (PEI) no Governo Jânio Quadros e, posterior-mente, no Governo João Goulart.

A Política Externa Independente, que buscou a inserção diferenciada no Brasil no cenário internacional, teve implicações importantes para as relações com o continente africano. Em primeiro lugar, ela implicou a reversão – ainda que matizada pela influência política da comunidade lusitana no Brasil – da política de apoio ao colonialismo português ao defender a autodeterminação dos povos. Não apenas isso, o Brasil adotou uma postura proativa em relação aos países africanos independentes, abrindo embaixadas em Gana, Senegal, Costa do Marfim, Etiópia e Nigéria3. Não obstante, a mudança de posiciona-mento brasileiro não eliminou as desconfianças que os dirigentes africanos tinham com relação à atuação brasileira; mais ainda, ela veio permeada pelas controvérsias que faziam parte da questão racial no Brasil, como pode ser exemplificado pelas palavras de Kwame N’Krumah, presidente de Gana, sobre a nomeação do escritor negro Raimundo de Souza Dantas como embaixador na África ao dizer que o Brasil deveria mandar embaixadores negros não só para países negros, mas também para países brancos, se quisesse provar sua harmo-nia racial (SELCHER, 1970; VISENTINI, 2010a).

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Outro ponto importante foram as críticas ao regime do apartheid na África do Sul, ainda que tenham sido mantidos os vínculos econômicos com aquele país; entre outras iniciativas, cabe mencionar os convênios na área edu-cacional, que são visíveis nas universidades brasileiras até hoje (VISENTINI, 2010a). Não obstante, apesar dos esforços, a fragilidade que marcou os gover-nos de Jânio Quadros e João Goulart, principalmente a partir de 1963, dificultou o desenvolvimento da política africanista do Brasil (CERVO; BUENO, 2008). Os primeiros anos do regime militar, por sua vez, foram um baque na estratégia brasileira de inserção na África, situação que seria gradualmente revertida a partir do Governo Médici (1969-1974).

A política externa do início do regime militar no Brasil procurou o afasta-mento em relação ao Terceiro Mundo, alinhando-se mais fortemente aos EUA. O Governo Castelo Branco priorizou a segurança do Atlântico Sul através da pro-posta de criação da Organização do Tratado do Atlântico Sul (OTAS), tendo como aliados Portugal e África do Sul. No contexto da Guerra Fria e de alinhamento ao Ocidente, isso implicou a condenação dos movimentos de libertação de inspi-ração marxista nos territórios africanos ainda colonizados (VISENTINI, 2010a). Sob o Governo do General Costa e Silva (1967-1969) foram estabelecidas relações diplomáticas com países importantes, como o Zaire (atual República Democrática do Congo), mas essas ações não tiveram maiores implicações.

Foi somente no Governo Médici (1969-1974) que uma política africana consistente começou a ser esboçada, principalmente através do trabalho do chanceler Gibson Barboza. Em 1972, o chanceler visitou nove países africanos4, ademais, foram assinados diversos acordos culturais, comerciais e de cooperação técnica, como os firmados com o Quênia em 1973 (VISENTINI, 2004; VISENTINI, 2010a). Para um país que buscava meios de promover seu desenvolvimento e expandir os mercados para seus produtos, as relações com a África eram importantes porque “permitiam a inserção dos manufaturados brasileiros e asseguravam ao Brasil matérias-primas e produtos primários. Igualmente, era um campo promissor para as parcerias técnicas que envol-viam transferência de tecnologia e know-how” (VISENTINI, 2004, p. 242).

A política externa do Governo Geisel e de seu chanceler, Azeredo da Silveira, teve repercussões importantes para a atuação do Brasil na África. Conhecida como Pragmatismo Responsável e Ecumênico, essa política proclamou a condenação dos regimes racistas na África do Sul e na Rodésia

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(atual Zimbábue), conduziu a abertura de seis novas embaixadas no continente africano e posicionou o Brasil como o primeiro país a reconhecer a independência angolana em 1975. Entre as motivações do governo brasileiro para reconhecer a independência de Angola estavam a busca pela redução da desconfiança dos países africanos em relação às oscilações da política externa brasileira e a necessidade de diversificar as fontes de petróleo do país diante da repercussão da crise do petróleo de 1973. O país, que importava aproxima-damente 80% do seu petróleo, teve que reorientar esse setor de sua economia, desenvolvendo, dessa forma, parcerias estratégicas com Angola, Nigéria, Gabão, Congo, e Zaire (RIZZI, 2005, p. 36). Tais medidas visavam à manutenção do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), dando continuidade ao processo de substituição de importações iniciado nos anos 1930. Ademais, a África era um espaço interessante para a condução do processo de substituição de exportações intentado pelo governo nacional. Através desse, procurava-se aumentar o valor agregado dos produtos exportados e ascender o Brasil ao status de potência industrial (MENEZES; SCHERMA; MIYAMOTO, 2010). À época, quatro principais empresas brasileiras já estavam presentes em solo africano: a Petrobras (através da Braspetro), a Odebrecht, a Mendes Jr., e a Vale do Rio Doce.

A cooperação com a África foi intensificada durante o governo de João Figueiredo (1979-1985). Durante seu governo, Figueiredo visitou a Argélia, a Nigéria, o Senegal, a Guiné-Bissau, e o Cabo Verde, tornando-se o primeiro presidente do Brasil a pisar oficialmente naquele continente. A contrapar-tida africana veio pela abertura de representações oficiais em solo brasileiro (VISENTINI, 2010a). O fim do Governo Figueiredo, contudo, já prenunciava a crise econômica que assolaria o país pelos próximos anos. Os altos índices de endividamento externo do país foram sentidos quando da elevação dos juros internacionais, caracterizando a crise da dívida brasileira. Mesmo vivendo o período da “década perdida”, o Governo José Sarney (1985-1990), primeiro presidente civil após a ditadura militar, manteve os laços estreitos com a África. O presidente Sarney lançou as bases da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e logrou a formação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS) em 1986. Por ocasião da 1ª Conferência do Atlântico Sul (1988 – Rio de Janeiro), dezenove países africanos estiveram representados (VISENTINI, 2010a).

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A chegada de Collor ao poder marca uma inflexão na política externa brasileira para a África, que passou a ser marcada por relativo distanciamento. Essa mudança pode ser entendida no contexto da política externa do Brasil em geral, em que o eixo prioritário passa a ser o das relações Norte-Sul – ou seja, com os países desenvolvidos –, e sob os auspícios do ideário neoliberal propa-gado pelo Consenso de Washington (VISENTINI, 2010a).

Apesar da retomada de certa visão estratégica em relação à África durante o Governo Itamar Franco, as relações entre o Brasil e o continente continuaram sendo seletivas (VISENTINI, 2010a). Os países de língua portuguesa, a África do Sul e a Nigéria receberam a maior parte da atenção brasileira. Essa linha de política foi mantida durante a quase totalidade do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), sendo perceptível na redução do número de embaixadas brasileiras na África fosse reduzido, passando de 34 em 1989 para 24 em 1996 (VISENTINI, 2010a). Já no fim de seu mandato, Fernando Henrique Cardoso se aproximou novamente dos países em desenvolvimento, entre eles os africanos, como demonstra a cooperação na área da saúde com a África do Sul e com a Índia. Essa política seria intensificada com a chegada de Lula à presidência da República.

GOVERNOS LULA E DILMA: A ÁFRICA COMO VETOR FUNDAMENTAL NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

A posse do presidente Lula, em 2003, marcou uma nova etapa nas relações entre Brasil e África, em que se procura gerar uma transformação social interna e promover o desenvolvimento econômico sustentado. Essa aproximação com a África é reflexo de uma nova visão do Brasil sobre a ordem internacional, caracterizada pela multipolaridade e pela atuação de países em desenvolvimento como África do Sul, China e Índia (SILVA, 2003; VISENTINI; PEREIRA, 2007). Nesse contexto de busca por uma Cooperação Sul-Sul, insere-se a nova estratégia política brasileira direcionada à África, que abrange as áreas de comércio, de investimento (na mineração, em infraestrutura, e na exploração de petróleo), de tecnologia, de saúde, de segurança, de defesa e de pesquisa (VISENTINI, 2010a).

A política de aproximação com a África teve efeitos nas políticas gover-namentais internas também. No governo Lula, incentivou-se a criação de políti-cas afirmativas a afrodescendentes para integrá-los em diferentes contextos da

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sociedade brasileira, como universidades e quadros diplomáticos. Em relação à África propriamente dita, programas como o PEG-G e PEC-PG proporcionam oportunidades de estudos em nível superior no Brasil; outra forma de alcançar um maior vínculo e uma rede de diálogo com África ocorre através de semi-nários e conferências em que são debatidos temas de interesse comum, como a Conferência Internacional de Intelectuais Africanos e da Diáspora (Salvador, 2006) (VISENTINI; PEREIRA, 2007; VISENTINI, 2010a).

A diplomacia no governo Lula, diante dessa nova visão em relação à África, passou por algumas adaptações que favoreceram a aproximação a esse continente. Uma das primeiras medidas foi uma mudança na estrutura interna do Itamaraty com a Divisão de África I, II e III e com a divisão do Departamento de África e Oriente Médio. Além disso, foi registrada a abertura ou reabertura de embaixadas; desde o início do primeiro mandato, foram várias as viagens do então presidente Lula para o continente africano5. Na visão do presidente, esse esforço estaria pautado em um compromisso ético e moral com o continente africano. De fato, as trajetórias históricas, a discussão em relação à igualdade social e o grande número de descendentes africanos são fatores que aproximam o Brasil à África, tornando possível uma cooperação não só na área econômica, mas também em contextos culturais, sociais e de pesquisa (GALLAS, 2008; VISENTINI, 2010a).

Outra política adotada foi o perdão da dívida externa de alguns países africanos. Buscando incentivar a realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio, garantindo também o acesso dos países africanos ao conhecimento e ao desenvolvimento tecnológico, o Brasil perdoou grande parte da dívida externa de países como Moçambique e Nigéria. No primeiro caso, o perdão foi de 95% do valor devido, o que equivale a US$ 351 milhões; no caso nigeriano, o percentual foi de 67% ou US$ 162 milhões (VISENTINI, 2010a).

Essa nova postura em relação à África, iniciada em 2003, pode ser vista como uma forma de o Brasil aumentar sua projeção no cenário interna-cional e de buscar fortalecer uma nova ordem internacional, em que países do sul possam adquirir uma maior liderança política. Essa é uma indicação de uma nova visão que está sendo desenvolvida em relação à África, como um “Renascimento Africano”, com o qual se reconhece o continente como um nicho potencial de exportação de recursos, de investimentos, de comércio. A inserção

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da China, da Índia e do Brasil no continente africano se relaciona a essa nova abordagem (VISENTINI, 2010a).

Em seu discurso de posse, a presidenta Dilma Rousseff apontou o caminho que iria seguir a política externa do Brasil para a África, um caminho de continuidade, marcado pelo aprofundamento dos laços estabelecidos durante o Governo Lula. Essa postura foi reiterada pelo chanceler Antônio Patriota em seu discurso de transmissão de cargo (ROUSSEF, 2011; PATRIOTA, 2011).

Cumprindo com o discurso, a nova presidenta garantiu a manutenção e o reforço das relações diplomáticas, econômicas e estratégicas entre o Brasil e a África nos seus primeiros anos de governo. A primeira viagem de Dilma à África ocorreu de 17 a 20 de Outubro de 2011, na V Cúpula IBAS em Pretória, África do Sul. Em seguida, em Maputo, Moçambique, ela participou de homenagens ao ex-presidente Samora Machel e reforçou o apoio à presidência moçambicana da CPLP, que seria iniciada em julho de 2012. Discutiu-se também nesse encontro a cooperação na área de saúde (instalação da Fábrica de Retrovirais), agricul-tura (ProSAVANA), biocombustíveis, educação, etc. (ITAMARATY, 2011a)6.

Em seguida, Dilma visitou Angola. Em comunicado conjunto, entre outros assuntos, os presidentes destacaram a importância da parceria estratégica de junho de 2010 e dos mecanismos para sua viabilização, além de questões de investimentos e de organismos interregionais (CPLP, CEDEAO, ZOPACAS) (ITAMARATY, 2011)7.

A IMPORTÂNCIA ESTRATÉGICA DA ÁFRICA PARA O BRASIL NO SÉCULO XXI: DIMENSÕES ECONÔMICA E TECNOLÓGICA E AS NOVAS FORMAS DE COOPERAÇÃO

A economia africana, na última década, passou por transformações que proporcionaram crescimento econômico e novas oportunidades de comér-cio e de investimento estrangeiro no continente. Dessa forma, identifica-se uma alteração nas relações econômicas com outros países em desenvolvim-ento, como por exemplo, Brasil, Índia, África do Sul, e China , que se tornaram exportadores de capital e tecnologia para a África. Esse continente, portanto, passa a ser visto como uma oportunidade de ampliação de negócios, de inves-timentos em importantes áreas como a de recursos energéticos e de matérias-primas (petróleo, gás, mineração) (VISENTINI; PEREIRA, 2007).

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Tabela 1: Quadro sinóptico das Relações Brasil-África

Brasil Colônia e Império:- 1538-1850: ligação baseada principalmente no tráfico de escravos;- Fim do tráfico: expansão colonialista europeia na África e retrocesso nas relações entre Brasil e África;- 1822-1830: movimento político em Angola favorável à união com o Brasil; - 1823: rei de Benim é o primeiro soberano a reconhecer independência do Brasil;

Brasil República:- Primeira metade do século XX: comércio principalmente com África do Sul;- Vargas (1950-1954) e Kubitschek (1956-1960): predomínio das relações Brasil-Por-tugal, independências africanas praticamente ignoradas;- 1961: Jânio Quadros e João Goulart - Política Externa Independente (autodetermi-nação dos povos coloniais, criação da Divisão da África no Itamaraty, abertura de em-baixadas); - 1969-1974: Médici – nova reaproximação, “milagre econômico”, Brasil necessitava de mercados e matérias-primas (petróleo); - 1974-1979: Geisel – abertura de embaixadas, condenação dos regimes racistas (Áfri-ca do Sul), discurso terceiro-mundista; - governos de Figueiredo e de Sarney mantêm aproximação com continente africano; - 1990: Collor – adoção do neoliberalismo, distanciamento em relação à África, prevalecem relações com o Norte;- 1995-2002: FHC - África considerada cenário secundário, havendo algumas iniciati-vas de reaproximação; - 2003-2010: Lula – nova visão sobre a ordem internacional (multipolaridade), im-portância da África na política internacional, cooperação Sul-Sul.

Fonte: elaboração dos autores (2013)

Considerando esse contexto econômico africano na última década, pode-se perceber por que o Brasil procurou criar e fortalecer vínculos com os países africanos. Desde o primeiro governo de Lula, houve um aumento nas relações comerciais Brasil-África: em 2003, o fluxo corresponde a US$ 6,15 bilhões; em 2006, US$ 15,5 bilhões; em 2008, US$ 25 bilhões; em 2009, US$ 17 milhões; e, em 2011, US$ 27 bilhões. As exportações brasileiras, principalmente de produtos industrializados e serviços, também apresentaram um aumento expressivo ao longo dos governos de Lula: em 2003, US$ 2,4 milhões; em 2006, US$ 7,5 milhões; em 2008, US$ 10,2 bilhões; e, em 2011, 12 bilhões (MDIC, 2012).

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O desenvolvimento de negócios e de investimentos por empresas brasileiras se intensificou através de missões empresariais e se beneficiou da política diplomática que conduziu a aproximação entre Brasil e África (VISENTINI, 2010a). A Petrobras é uma empresa brasileira que vem ampliando seus negócios na África na área energética. Desde a década de 1970, ela atua na exploração de petróleo em Angola, mas, na última década, intensificou sua presença em outros países como Tanzânia (2004), Líbia (2005), Moçambique (2006), e Senegal (2007), além de buscar uma maior influência na Nigéria, um dos maiores produtores de petróleo do mundo (VISENTINI, 2010a). A produção de biocombustíveis também é uma fonte de investimento da Petrobras no ter-ritório africano (VISENTINI, 2010a).

A Vale, empresa mineradora, em 2009, adquiriu o direito de explorar o complexo carbonífero de Moatize, em Moçambique. A expectativa é que se produzam 11 milhões de toneladas de carvão por ano, sendo exportadas para Brasil, Europa, Oriente Médio, e Ásia. Em relação ao efeito que a exploração desse complexo possa gerar para Moçambique, citam-se a possibilidade de o país tornar-se o segundo maior produtor de carvão do continente; a geração de 3.000 empregos para construção do complexo e 1.500 após sua abertura; e a melhora na sua balança comercial (VISENTINI, 2010a). A companhia, em 2009, também começou a desenvolver projetos e investimentos na Zâmbia para a produção de cobre. Na Guiné, a aprovação de um novo código de mineração10 em setembro de 2011, somada à proximidade das eleições do congresso do país (2012), acabou adiando o processo de negociações para a exploração de minério de ferro na região de Simandou (G1, 2012).

No Brasil, esse esforço exportador e a internacionalização de empre-sas para o continente africano são incentivados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os projetos a que se desti-nam esses recursos são, por exemplo, a construção do Aeroporto de Nacala, em Moçambique; da base da Força Aérea e do corredor rodoviário oriental em Gana; da infraestrutura viária de Luanda, saneamento básico, centros de forma-ção tecnológica e hidrelétrica de Capanda em Angola (BNDES, 2011).

As relações entre o Brasil e a África também se beneficiam de parcerias entre o Brasil e outros países emergentes. Esse é o caso do Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS). Ainda em 2007, Brasil e China concordaram que a distribuição das imagens do satélite seria feita gratuitamente para o

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continente africano, sendo também oferecidos softwares de processamento de imagens. O acesso a essa tecnologia permite aos Estados africanos monitorar, através de imagens de satélite, desastres naturais, desmatamento, desertifica-ção, riscos à saúde pública (VISENTINI; PEREIRA, 2007; VISENTINI, 2010). O projeto do CBERS-3 e do CBERS-4, previsto para 2014, já destinou cerca de R$ 400 milhões em investimentos no Brasil (CBERS, 2012; ESCOBAR, 2012).

Embora as relações entre Brasil e África abranjam uma gama de questões – incluindo projetos de infraestrutura, investimento econômico, entre outros –, as formas de cooperação entre os dois lados do Atlântico se caracterizam por apresentar características específicas. Destacam-se, sobretudo, iniciativas no âmbito de desenvolvimento social, educacional e cultural.

As políticas sociais desenvolvidas desde a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em 2003, fomentaram uma enorme procura por parte de países africanos para desenvolver atividades de cooperação visando ao compartilhamento de experiências e conhecimentos sobre os programas brasileiros. Segundo Madeira, Hellmann e Medeiros (2011, p. 24), “as principais demandas apresentadas ao MDS por parte das delegações estrangeiras dizem respeito ao Programa Bolsa Família (PBF), ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e ao Plano Brasil sem Miséria”. No quadro ao lado, estão destacados alguns exemplos de atividades de cooperação firmadas entre o Brasil e países africanos, bem como com o Fórum IBAS.

Em termos educacionais, ampliaram-se programas de incentivo à pes-quisa científica e intercâmbio de professores, sobretudo no âmbito do PEC. Além disso, estão sendo realizados diversos cursos e seminários visando à troca de conhecimentos e experiências (VISENTINI; PEREIRA, 2007). Outras iniciati-vas ocorrem na área da saúde, como no combate ao HIV/AIDS e na valorização da participação do africano na construção da História brasileira, tal como pro-posto pela Lei 10.639, de 2003.

Vale ressaltar que esses esforços de cooperação atingem também o nível multilateral, através de iniciativas como a Cúpula América do Sul-África, a revitalização da ZOPACAS, o fortalecimento da CPLP e a criação do Fórum-Índia-Brasil-África do Sul. A Cúpula América do Sul-África surgiu como uma iniciativa de Brasil e Nigéria, sendo oficializada com a Declaração de Abuja por ocasião da I Cúpula em novembro de 2006. Ambos os países ficaram responsáveis pela coordenação regional da ASA através do Fórum de Cooperação África-América

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do Sul (ASACOF). A ASA tem como objetivo promover a cooperação entre os países participantes em áreas como comércio e investimento, desenvolvimento e infraestrutura (ITAMARATY, 2012). No começo de 2013, foi realizada a III Cúpula ASA, desta vez na Guiné Equatorial.

Tabela 2: Atividades internacionais no âmbito do desenvolvimento social desenvolvidas com países africanos

País Instrumento Tema das Atividades

Angola Carta deIntenções

Desenvolvimento social, promoção e proteção dos direitos sociais das pessoas vulneráveis; programas de combate à fome e à pobreza; e redução das assimetrias regionais.

Egito DeclaraçãoMinisterial

Troca de experiências em programas sociais; identificação de grupos vulneráveis; intercâm-bio de estudos, pesquisas e avaliações; inter-câmbio de visitas de experts; e apoio à Política Egípcia de Reforma Social.

Senegal Memorando de Entendimento

Segurança alimentar e nutricional; direito humano à alimentação; agricultura familiar e reforma agrária; biodiesel e energias alter-nativas; seguro agrícola; cooperativismo e outras formas de gestão participativa; forma-ção e capacitação; pesquisa e transferência de tecnologia; manejo sustentável dos recursos hídricos; maquinaria agrícola; e controle de qualidade de produtos agrícolas.

Fórum IBAS(Índia, Brasil eÁfrica do Sul)

Memorando de Entendimento

Erradicação da pobreza; seguridade social; políticas sociais; avaliação e monitoramento; desenvolvimento de capacidade institucional; microfinanças; e cooperação em foros multi-laterais.

Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, BRASIL, 2010.

CONCLUSÕES

Se não se pode ter certeza acerca do futuro das relações entre o Brasil e a África, fato é que as interações entre os dois lados foram se modificando ao

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longo dos séculos e se tornando cada vez mais complexas. De fato, os padrões de interação responderam não apenas aos desígnios de ambas as partes, mas também às mudanças que ocorriam no sistema internacional. O começo efetivo dessa trajetória pode ser buscado na dominação colonial do século XVI, a qual legou ao Brasil características sociais e culturais específicas, mas que também deixou o legado da escravidão, que só foi extinta no final do século XIX. A isso, conforme visto anteriormente, seguiu-se um período de afastamento, durante o qual a África esteve submetida ao domínio europeu. Com o advento das independências africanas e a adoção de uma linha de política externa indepen-dentista no Brasil, renovaram-se os laços de união entre o Brasil e o conti-nente africano. Não obstante, essa trajetória sofreu um revés temporário com a chegada de Castelo Branco ao poder em 1964 e o começo do regime militar. Apesar do novo ânimo para a política africana do Brasil trazido por Médici e, posteriormente, por Geisel, é no período Lula que a aproximação parece ganhar contornos de um projeto estratégico em que se conjugam interesses, econômi-cos e sociais, motivados por uma renovada crença nas perspectivas de desen-volvimento africano e pela vontade do Brasil de projetar-se internacionalmente.

No Governo Lula, os fluxos de comércio apresentaram aumentos signifi-cativos. De US$ 6,15 bilhões de dólares em 2003, eles atingiram os US$ 25 bilhões já em 2008. Além disso, as grandes empresas brasileiras expandiram sua atuação na África; o BNDES também participou do esforço com suas linhas de financiamento. Para além do âmbito econômico, no governo Lula, destaca-se o estabelecimento de parcerias no âmbito das políticas sociais para o desen-volvimento, com a assinatura de diversos acordos de cooperação técnica, desde 2003, com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), responsável por iniciativas de reconhecimento internacional como o Fome Zero, o Bolsa Família, e mais recentemente o Brasil sem Miséria.

As visitas de Dilma à África do Sul, Moçambique e Angola, no início do seu mandato, demonstraram o ânimo da presidenta em levar adiante os tradi-cionais projetos de cooperação existentes com a região, em especial nos setores de biocombustíveis, saúde, educação, e meio-ambiente. Além disso, o esforço comercial também foi continuado, com as trocas atingindo US$ 27 bilhões em 2011. Alguns elementos de seu discurso dão sinais de que as relações com países do Sul global serão preservadas e aprofundadas. Mesmo assim, conforme nos mostra a história, o interesse do Brasil por desenvolver parcerias com a

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África oscila dependendo da conjuntura internacional, da visão estratégica internacional dos tomadores de decisão no poder e do viés ideológico dos seus governos. Portanto, pouco se pode dizer sobre o futuro das relações Brasil-África, apesar dos avanços inegáveis na última década.

PONTOS A DISCUTIR

1) Nova estratégia de inserção internacional do Brasil (a partir de 2003): ênfase na concertação e cooperação multilateral e nas reformas de regimes interna-cionais.

2) Projeto de cooperação para o desenvolvimento africano, com programas de combate à fome, de preservação do meio ambiente e de estruturação da saúde pública e combate à anemia e à malária; além da cooperação cultural e educacional.

Notas1 Conforme explica Theodoro (2008), já no início do período republicano um decreto buscava limitar a imigração de africanos e asiáticos no país. 2 Cabe lembrar que esse comércio não era realizado com a África negra, mas sim com um regime racista comandado por uma elite branca de características europeias que ficou conhecido como Apartheid. 3 Internamente também ocorreram mudanças, como a criação da Divisão de África do Itamaraty.4 Costa do Marfim, Benin, Camarões, Togo, Zaire, Gabão, Nigéria, Gana, e Senegal. 5 Entre 2003 e 2006, o então presidente da República esteve no continente africano quatro vezes para a realização de encontros bilaterais. No final de 2003, o então presi-dente visitou Moçambique, São Tomé e Príncipe, Angola, Namíbia e África do Sul. Em meados de 2004, Lula esteve em Cabo Verde e no Gabão. No mês de abril de 2005, foi a vez de Guiné-Bissau, Gana, Senegal, Nigéria e Camarões; em fevereiro do ano seguinte, o presidente Lula passou por Botsuana, África do Sul, Benin e Argélia. Já no segundo man-dato, as viagens bilaterais foram realizadas para os seguintes países: Angola, República do Congo e Burkina Faso (2007); Moçambique (2008); Líbia (2009); África do Sul, Tanzânia, Zâmbia, Quênia, Moçambique e Guiné Equatorial (2010). Visitas de caráter multilateral também foram realizadas (ITAMARATY, 2011c).6 Para mais informações sobre a visita de Dilma à Moçambique, ver o Comunicado Conjunto divulgado em Nota pelo Itamaraty em 19 de outubro de 2011, disponível no meio online em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/comunicado-conjunto-por-ocasiao-da-visita-da-presidenta-dilma-rousseff-a-mocam-bique-maputo-19-de-outubro-de-2011>. Último acesso: 9 de novembro de 2012.

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7 Para mais detalhes sobre os assuntos tratados durante a visita de Dilma à Angola, ler o Comunicado Conjunto divulgado pelo Itamaraty, disponível no meio online em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/comunicado-con-junto-por-ocasiao-da-visita-da-presidenta-dilma-rousseff-a-angola-luanda-20-de-outu-bro-de-2011>. Último acesso: 9 de novembro de 2012.

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30 Relações Internacionais para Educadores (RIPE)

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2SOCIEDADES AFRICANAS

ANTIGAS: HISTÓRIA E CARACTERÍSTICAS

Cristiana Maglia, Marília Closs & Renata Noronha1

Neste capítulo trataremos da história da África Antiga, abrangendo desde o surgimento do homem até o tráfico de escravos. O objetivo fun-damental é apresentar o desenvolvimento das principais sociedades africanas antigas que caracterizam esse período africano e promover um pensamento mais crítico em relação aos conceitos utilizados nos estudos sobre África atualmente.

1 Graduandas de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As autoras agradecem a revisão de Marcelo Leal e a colaboração do Prof. José Rivair Macedo.

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Sociedades africanas antigas: história e características 33

INTRODUÇÃO AOS CONCEITOS

A história da África e a história da humanidade compartilham suas raízes, pois foi no continente, aproximadamente há 30 mil anos, onde o homem moderno completou o longo processo de adaptação e evolução, conhecido como hominização. Mais especificamente, o desenvolvimento humano come-çou na África Oriental e Meridional, onde há cerca de 4,4 bilhões de anos homi-nídeos já habitavam o território situado ao sul da atual Etiópia. Ademais, sabe--se hoje que na África evoluíram as primeiras comunidades humanas.

Antes de qualquer análise mais meticulosa acerca das antigas realidades africanas, é interessante que se destaque alguns pontos importantes à concei-tuação: frequentemente, nossa análise histórica é baseada em conceitos ociden-tais modernos. Nossos parâmetros quanto à extensão de poder (de um rei ou líder, por exemplo) ou quanto à concepção de sociedade ou civilização são majoritariamente territoriais, ou seja, baseamos nossa conceituação de poder e de Estado na extensão territorial alcançada pelos Estados, tal qual ocorreu com o Império Romano e com as monarquias centralizadas ocidentais do Antigo Regime. Tal raciocínio-base provavelmente advém do nosso entendimento de Estado moderno1 e, portanto, é baseado na história europeia do pós-Idade Média. Desse modo, entendimentos mais precisos da história africana deman-dam desapego de tais perspectivas. O alcance de poder na África Antiga tinha dinâmica e extensão diferente do territorial, sendo seu alcance de caráter mais familiar ou religioso. Segundo Herbst (2001, p. 35), a principal diferença em relação à extensão e consolidação de poder era que as organizações políticas não eram baseadas no controle da terra. Diferentemente do continente euro-peu, onde existia pouca terra para uma alta densidade populacional, as relações na África ocorriam dentro de um contexto de território abundante para uma população escassa, com poucos investimentos na terra (por exemplo, o arado não era utilizado). Além disso, o controle de áreas específicas não era frequen-temente contestado, porque, para os povos africanos, seria mais fácil fugir dos governantes e de seus impostos do que confrontá-los. Dessa forma, se fazia necessário manter uma infraestrutura que difundisse o poder, usar coerção e formar laços de lealdade. Existia uma separação entre propriedade e controle da terra, e, segundo a visão dos africanos, um governante poderia cobrar algum tipo de imposto de um território distante, porém sem nenhuma noção de con-

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trole das ações dos habitantes em suas relações cotidianas (HERBST, 2001, p. 43).

É necessário, também, repensar a periodização: a Antiguidade africana, diferentemente do que nos diz a história ocidental, só acabou na passagem do século XVIII para o XIX, quando elementos externos e mudanças estruturais alteraram as formas tradicionais das sociedades africanas. Assim, a História Antiga africana necessita de novas abordagens, principalmente no que se refere à reavaliação do termo “África Pré-Colonial”: ainda que o termo represente a África pré-Conferência de Berlim, a expressão sugere que a colonização foi o principal marco da história da África. Como afirma M’Bokolo (2009, p. 27), tem--se a ideia de que a colonização “abriu” a África para a ciência e para a história. Tal perspectiva é uma clara distorção histórica, pois o período colonial correspondeu a uma parte ínfima da história e do desenvolvimento africano, tratando-se, portanto, novamente de uma visão eurocêntrica de mundo.

Frente a essa perspectiva, alguns conceitos tradicionalmente usados para definir povos da África Antiga não são mais usuais para sua realidade: “império” é um conceito que supõe delimitações territoriais para alcance de poder, e “reinado” é uma expressão que não corresponde à dinâmica do poder e dos governos africanos. O conceito de “tribo” também nos remete a um quadro diferente do africano, na medida em que alude à sociedade sem regras e imutá-vel - características que, como posteriormente será comentado, não refletem a realidade da África Antiga. Finalmente, cabe ressaltar a importância do estudo da África Antiga destinado a superar velhas estigmatizações e aprender sobre uma realidade tão rica, diversificada e pouco conhecida.

ÁFRICA ANTIGA

Há cerca de 1,5 milhão de anos, os primeiros homens, habitavam as gran-des planícies abertas por dificuldade de vivência e caça nas florestas densas. Afinal, a alimentação e a caça nas florestas tropicais demandavam utensílios mais aprimorados do que os que existiam na época. Portanto, as savanas tinham se mostrado ao homem africano como o melhor bioma a ser habitado, com reservas de água, caça disponível e clima propício. À época, o homem já vivia em pequenos grupos (PEREIRA, 2007, p. 20).

Posteriores eventos, como a descoberta do fogo e a capacidade de con-trolá-lo, e o aperfeiçoamento dos instrumentos, levaram a uma maior capaci-

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dade de armazenamento de comida, fator que permitiu à humanidade viver em comunidades maiores. Com o fogo, o homem passou a viver em novos habitats, como as cavernas. A descoberta de novas matérias-primas deu impulso a uma série de avanços, como descobertas da natureza e achados tecnológicos. Enquanto o homem ainda não tinha condições de transformar a natureza na qual vivia para sua produção alimentícia, a humanidade era nômade e vivia em constante luta pela maximização do número de vidas em cada comunidade. O pensamento social era baseado na fertilidade humana, no sentido de garantir o aumento populacional necessário às comunidades. Isso se dava principalmente pela inconstante adaptabilidade do homem em relação ao meio ambiente e pelas incertezas quanto à alimentação por falta de conhecimentos práticos sufi-cientes. A consequência direta disso foi a existência de sociedades poligâmicas em todo o continente africano.

Logo, porém, a África viria a ganhar nova dinâmica: mudanças climáticas permitiram ao homem sair da savana em direção aos demais biomas africanos, o que certamente trouxe ao homem a condição de habitações mais estáveis (PEREIRA, 2007, p. 14). Com a chamada Revolução Neolítica, o animal, que anteriormente só era caçado, passou a ser criado e domesticado. Segundo M’Bokolo (2009, p. 64), ainda que não tenha havido a brutalidade ou a brusqui-dão que a expressão “revolução” remete, a eclosão de civilizações assentadas na produção em vez de simples apropriação teve caráter revolucionário. Desse modo, o homem passou a viver em bandos maiores, dando início ao processo de sedentarização da humanidade. Concomitantemente, o homem africano ganhou conhecimento com a observação da coleta de alimentos e, gradualmente, a substituiu pelo cultivo, celebrando a iniciação agrícola - fato que, para muitos historiadores, é a maior inovação da África Antiga.

As mudanças climáticas anteriormente mencionadas tiveram impactos que levaram o homem africano a criar comunidades agrícolas: o processo de desertificação do Saara expulsou a população que não mais poderia viver lá. Fatos como esse e novas adaptações humanas trouxeram inovações para a agri-cultura. A instabilidade das chuvas fazia também com que a agricultura fosse preferível a atividades como a criação de gado, pois essa era mais vulnerável às inconstâncias naturais que a lavoura. Os grãos mais cultivados na savana eram, entre outros, o milhete e o sorgo. O leste africano produzia raízes semelhantes à banana, enquanto o oeste da África Ocidental, um tipo de arroz com cultivo

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provavelmente iniciado nos pântanos do delta interior do rio Níger. A cultura de raízes permitiu às sociedades agricultoras sua entrada nas florestas, com ênfase para a importância do inhame (FREUND, 1998, p. 21), majoritariamente na região entre os atuais territórios de Gana e da Nigéria. Além do já destacado vale do rio Níger, o vale do Nilo e a bacia do lago do Chade também foram impor-tantes e propícias regiões para a agricultura e suas inovações.

Ademais, simultaneamente, desenvolveu-se, a partir do III milênio a.C., a metalurgia, rapidamente espalhada pelo continente africano. A utilização e a redução do ferro por derretimento significavam maior eficiência na agricultura. Portanto, percebeu-se uma nova dinâmica social e cultural na África: a agricul-tura permitiu maiores densidades populacionais e a produção de excedentes. Essa nova complexidade social trouxe novos pensamentos, como a preocupação com os direitos de propriedade sobre os recursos (FREUND, 1998, p. 22).

A anteriormente comentada desertificação do Saara teve impactos signi-ficativos na África Antiga, tais como migrações de populações que buscavam melhores condições de vida. Tais migrações tiveram consequências significati-vas para as dinâmicas internas africanas: enquanto parte da população foi para o leste, visando às margens do Nilo como novo habitat, outra parcela da popu-lação se direcionou para o norte, em direção às áreas costeiras do Mediterrâneo. Outra parte do povo que habitava o Saara foi para o sul, chegando à região do Sahel, procurando o rio Senegal. Essa separação populacional, frente às mudan-ças climáticas, culturais e tecnológicas que a migração trouxe, teve como conse-quência a formação de diferentes civilizações (MACEDO, 2013, p. 12).

Entretanto, diferentemente do que poderia se pensar, a desertificação do Saara não teve como efeito a transformação dessa região em um obstáculo para os fluxos que por ali passavam. Pelo contrário, segundo Macedo (2013, p. 12), um gigante fluxo de ideias, produtos e tecnologias transaariano existiu durante todo o período da África Antiga. M’Bokolo (2009, p. 29) comenta a transmissão de modelos sociopolíticos, culturais e técnicos a partir de centros, como Egito, Cartago, e Roma. Assim, nesses processos ficou evidente o papel fundamental que o Saara tinha nos fluxos comerciais, especialmente, como disse Macedo, nas trocas em que as potências buscavam ouro e marfim.

Quando se trata da região do Saara, porém, não se pode deixar de falar da influência do Islã em tal área da África Antiga, pois o islamismo teve influência não só religiosa, mas também cultural. Ademais, destacamos aqui também dois

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conceitos importantes à realidade da África Antiga: a ancestralidade e a matri-linearidade.

A ancestralidade é a lógica que imbuiu e ainda faz parte de diversas sociedades africanas. A veneração ancestral é central para os povos, tendo a relação com o espírito papel central nas relações sociais. Essa perspectiva apre-senta a ideia de que existem forças que ligam o mundo e o universo como um todo em todas as instâncias da vida. O poder sagrado - força vital - é o elemento central em qualquer processo. Mais relevante ainda é a relação que a ancestra-lidade teve com as formas de organização política e social. Afinal, as sociedades africanas antigas eram majoritariamente baseadas na genealogia e nas linha-gens de família, com uma maior importância aos anciãos, que eram os descen-dentes mais próximos dos ancestrais.

A matrilinearidade, por sua vez, é a forma de organização social que se deu em grandes quantidades de regiões africanas antigas, em que a sucessão se dava pela linha familiar materna. Esses dois conceitos resultam de criações cul-turais propriamente africanas, e o reconhecimento de sua importância é um ponto importante para a aproximação de uma análise empática com as realida-des histórico-sociais do continente.

SOCIEDADES ANTIGAS

Como já mencionado anteriormente, a classificação do período antigo como pré-colonial na África é equivocada, já que a história africana se estende muito além da influência europeia. O dito período pré-colonial no continente englobou, na verdade, toda a história africana até o século XIX, desde o surgi-mento do homem ao desenvolvimento das complexas civilizações. Tradicionalmente tinha-se a ideia de que as civilizações e os Estados africanos eram prolongamentos dos sistemas políticos mediterrâneos e orientais. Hoje, porém, sabe-se do distinto gênio político africano (M’BOKOLO, 2009, p. 76). A lenta concentração populacional que se deu na África foi gradualmente cons-truindo civilizações por todo o continente, ainda que com maior condensação e desenvolvimento em algumas regiões, como no vale do Nilo e nos planaltos da Etiópia. Logo, para o melhor entendimento desse período e, consequentemente, da formação africana atual, apresentamos uma análise dos processos de evolu-ção das mais relevantes sociedades africanas antigas.

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Núbia/Kush

“Núbia” e “Kush” são ambos conceitos muito vagos: enquanto o primeiro diz respeito a territórios do sul do Egito e irrigados pelo Nilo, o segundo indica uma região mais específica, referindo-se ao vale médio do Nilo (M’BOKOLO, 2009, p. 77). Entretanto, pode-se afirmar hoje que ambos os termos referem-se à região do atual Estado do Sudão e seus arredores. Aqui trataremos a região inteira, Núbia e Kush, como uma organização política.

O Estado kushita por muito tempo fora considerado uma extensão do Egito. Sabe-se hoje, porém, que era uma civilização distinta, e que, apesar da íntima ligação entre esses Estados africanos, nem sempre a história de Kush o retratou como dominado pelo povo egípcio. Segundo Pereira (2007, p. 29), o povoamento da região da Núbia se deu de maneira semelhante à povoação egíp-cia: diversos povos advindos de diferentes regiões migraram das novas regiões desérticas. Contudo, a região da Núbia era mais favorecida pelo clima e pelas condições naturais, pois tinha riquezas em quantidade, como o ouro.

A relação do Estado kushita com o Egito é um ponto interessante para entender as dinâmicas interna e externa do Kush. Enquanto o Egito participava do sistema de trocas entre as regiões com produtos manufaturados como armas de bronze e colares de marfim, a Núbia exportava peles de animais, temperos e metais preciosos (MACEDO, 2013, p. 16). Por conseguinte, tal comércio promo-veu o incremento da infraestrutura necessária, como canais para barcos, insta-lações, e fortes, que se destinavam majoritariamente a escoar os produtos para o Egito. O Estado egípcio se valia, também, de tal infraestrutura instalada para pacificar as tribos hostis, o que aumentava sua influência na região. O povo de Kush logo passou a compor o grande exército egípcio como consequência da relação entre ambos. Entretanto, coube à região da Núbia por tempo significa-tivo servir como posto comercial egípcio em direção às áreas situadas mais ao Sul, como Punt, na atual Somália, e o Sudão Central (PEREIRA, 2007, p. 29).

É interessante pontuar algumas características da civilização Kush: segundo Fyle (1999, p. 4), o Estado kushita tinha sua escolha de líderes feita por eleições e tinha sua própria forma de escrita. Por outro lado, ainda que seja mais estudada e difundida a perspectiva de “egiptização” da Núbia, M’Bokolo (2009, p. 79) discorre acerca do período em que Kush dominou o Egito - um período situado entre os séculos VIII-VI A.C.

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Etiópia

Também na região oriental da África, originou-se o povo Axum, no atual território da Etiópia. Essa civilização se estendia até o Mar Vermelho, o que pro-porcionava uma localização privilegiada entre os centros comerciais egípcios, kushitas e árabes. Não se tem hoje registro de fato ou herói fundador da civili-zação Axum, portanto a literatura tradicionalmente narra a lenda da serpente “Arwe”, objeto de culto do povo e, segundo a lenda, o primeiro rei dos axumitas. Os axumitas possuíam o monopólio do comércio do Mar Vermelho e, por isso, mantinham relações com diversos povos do oriente e com o Império Romano. Ressalta-se também o domínio axumita do estreito de Mab el Mandeb, que teve e, até hoje, tem importância estratégica e econômica gigantesca. Com o desen-volvimento da sociedade axumita, a mobilização de diversas formas de constru-ção de Estado andou de par com a elaboração de uma política exterior muito ativa num espaço geopolítico muito amplo englobando de um lado a África e do outro o Mar Vermelho e a Ásia (M’BOKOLO, 2009, p. 89).

A principal característica da organização axumita foi sua distinção em se tratando da religião. O povo Axum se definia como a única civilização africana a aderir ao cristianismo, sendo, entretanto, uma igreja separada e com caracterís-ticas diferentes do cristianismo europeu. M’Bokolo (2009, p. 95) afirma que a penetração de tal religião data dos anos 330-360 D.C. A religião axumita é, na verdade, um agregado do cristianismo, judaísmo e dos próprios costumes afri-canos, possuindo, também, um calendário diferenciado. Alguns costumes, como as danças, os tambores, e a admissão da poligamia, são traços herdados da orga-nização social e religião africana. Já a distinção entre o consumo de carne pura e impura e a proibição às mulheres de entrar nos templos no dia seguinte ao que tiveram relações sexuais são originários dos costumes judaicos (MACEDO, 2013, p. 19).

A estrutura política do Axum é também peculiar: frente à linhagem de reis que controlavam o território com fronteiras bem definidas e estáveis, e frente à legitimidade que o governante axumita tinha, muitos historiadores enquadravam sua constituição política como “reino”. Outros, entretanto, enten-diam Axum como império, afinal, o soberano - basileus - distribuía títulos a che-fes de exército e dirigentes de uniões políticas subalternas a Axum. Logo, para muitas regiões da África Oriental, Axum comportou-se como “reino tributário”, em que as relações de autoridade/submissão eram manifestadas majoritaria-

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mente com o pagamento de tributos e levantamento de tropas para guerras (M’BOKOLO, 2009, p. 89).

Macedo (2013) destaca que, ao redor de regiões centralizadoras do poder, comunidades agrícolas se dedicavam ao plantio e ao pastoreio. Nos gran-des centros, majestosas obras foram construídas, como palácios, edifícios, e túmulos (M’BOKOLO, 2009, p. 92). Ainda que Axum estivesse integrado às rela-ções econômicas internacionais, como anteriormente comentado, não era “eco-nomia de trânsito”, pois o Estado tinha fortíssima dependência das atividades de caça e pesca para a sobrevivência, bem como a economia de produção era quase somente para a subsistência da população (M’BOKOLO, 2009, p. 92). Ademais, a grande hierarquia e diversidade populacional existentes no Axum da África Antiga deram origem à atual Etiópia (MACEDO, 2013, p. 20).

O ápice do desenvolvimento de Axum se deu até o século VII. Depois, tudo indica que Axum teve de fazer frente, sem muito êxito, às dificuldades de todas as espécies que enfraqueceram o reino a ponto de provocar a sua decom-posição, permitindo a outras comunidades políticas, apoiadas em novas legiti-midades, impor-se no Chifre da África (M’BOKOLO, 2009, p. 110). O autor comenta as causas que levaram ao colapso e às novas forças, sendo essas: a crise do Império Bizantino - grande aliado de Axum-, as presenças persa e árabe em busca de pontos de comércio, a ascensão de regiões periféricas do próprio Axum, os deslocamentos tanto humano quanto do centro de gravidade do poder para o sul, advindos de pressões sobre o mar Vermelho, e a forte oposição ao cristianismo de muitos Estados próximos.

Grande Zimbábue

No sudeste africano, desenvolveu-se outra civilização no início do segundo milênio a.C., o Grande Zimbábue, também influenciado pela matriz lin-guística bantu através dos povos shona, que habitam essa região africana. O antigo Zimbábue se iniciou por grandes assentamentos de mil pessoas, que com o tempo foram se agrupando e se tornando um dos pontos mais importantes de comércio no Oceano Índico, devido à presença de ouro, marfim, ferro, e cobre provenientes do interior. O ouro vinha, principalmente, do sul, e o cobre, do norte. Considera-se que essa aproximação foi gerada pela semelhança de reli-giões entre os povos desses assentamentos (PEREIRA, 2007, p. 35).

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A organização política do Zimbábue se concentrava em um poder cen-tral, cujo controle se dava por chefes e sacerdotes que comandavam o ritual do Mwari - culto aos ancestrais - e por governantes identificados com o título de Mwene Mutapa (Senhor das Minas), também tendo um papel religioso, conside-rados entidades divinas. A característica marcante dessa civilização é a minera-ção, que era controlada, especialmente, por esses governantes. Essa formação próxima a um Estado centralizado se baseava na coleta de impostos extraídos dos povos dominados e no monopólio do comércio com os mercadores da costa do Oceano Índico (MACEDO, 2013, p. 27).

Em relação à estrutura social do Grande Zimbábue, podemos identificar certa divisão social do trabalho, com a presença de grupos especializados, como os artesãos que eram especializados em cobre, ourives, tecelões, escultores, etc. Com a mudança da população para o vale do rio Zambeze, essa partilha social se consolidou na construção de uma muralha, que era considerada símbolo de poder na civilização. Milhares de pessoas moravam fora da muralha, principalmente os pastores e os artesãos, e a população que controlava a mineração e as questões mais administrativas do Estado, como uma elite, ficava na região intramuros (PEREIRA, 2007, p. 35). Essas muralhas de pedra caracte-rizavam as cidades do Zimbábue, chamadas de Madzimbabawe, ou Grande Zimbábue.

Gana

Entre os rios Níger e Senegal e o deserto do Saara, com capital Kumbi Saleh, localizado no sudeste da atual Mauritânia, o povo teve seu nome advindo do seu governante soberano, que significa algo como “rei do ouro”. O Estado Gana foi fundado no século IV por uma família berbere, apesar de ser formado majoritariamente por negros soninkes. Apesar do caráter majoritariamente agrário da civilização de Gana, a grandiosidade dessa se deu por sua privile-giada posição no extremo sul da rota comercial do Saara (PEREIRA, 2007, p._31). Afinal, a articulação comercial dos fluxos transaarianos e subsaarianos que passavam pelos domínios da influência de Gana era tributada. Também eram tributados os povos que foram subjugados, fazendo da tributação a base econômica da civilização. Logo, Gana viria a dominar localizações como Galam, Falemé, e Bambuk, onde havia jazidas de ouro - fato que trouxe ouro para Gana, que era, junto com o sal, utilizado como referencial de valor nas trocas. O meio

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circulante era somente o pó de ouro, pois os outros metais não eram conhecidos na região, e o governante se apropriava das pepitas, permitindo apenas a livre--circulação do pó.

A religião do governante e da maioria do povo era a religião local ani-mista - cultuando, principalmente, o Deus-Serpente, símbolo da cidade de Wagadu; porém, o Islã era aceito, muitas vezes até como um incentivo ao comér-cio, já que muitas das relações eram com povos islâmicos do norte. A própria capital era dividida em duas aglomerações, sendo uma muçulmana, e a outra, animista. A parte animista era a cidade real, onde o governante vivia em um palácio ricamente decorado, enquanto a parte muçulmana era povoada por mercadores berberes, andaluzes e certo número de mesquitas. Retomando o conceito anteriormente explorado de ancestralidade, o governante tinha sua legitimidade para atuar baseada no fato de ser o representante maior dos cos-tumes ancestrais e o protetor dos ritos dedicados às entidades de culto. A isso se somavam o reconhecimento da autoridade pessoal, o poder militar e as rela-ções de parentesco com os governantes da área sob sua influência (MACEDO, 2013, p. 40). Ainda no que tange à ancestralidade, cabe ressaltar a matrilineari-dade nas formas de sucessão da sociedade de Gana.

O auge da grandeza de Gana foi a partir do fim do século VIII, sob o governo da dinastia Cissê Tunkara, quando Gana conseguiu montar um exército poderoso, e o sistema de tributação chegou a seu ápice. Sua extensão ia ao norte da atual Mauritânia, ao leste até o Níger e alcançava ao sul a região da atual Costa do Marfim. Com o sistema de trocas, no qual estava intimamente envol-vido, o povo de Gana conseguia trazer diferentes materiais, como cobre, tecidos, e sal advindos do norte (MACEDO, 2013, p. 41).

A hegemonia de Gana, entretanto, era disputada por outros povos, fos-sem os mercadores árabe-muçulmanos atraídos pelo esplendor que o povo atingira, fossem os tuareg – povo de pastores seminômades que costumavam controlar as caravanas de comércio do deserto do Saara e criavam animais, como cabras, carneiros, e camelos – que aspiravam à privilegiada posição comercial de Gana para o controle das rotas transaarianas (MACEDO, 2013, p._40). Portanto, a partir do século XI, Gana começou seu declínio: a dinastia marroquina dos Almorávidas assumiu o governo de Gana, atacando a civiliza-ção na sua luta em busca da propagação da fé islâmica, a jihad. Entretanto, o

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domínio marroquino pouco durou, e, em 1220, Gana caiu sob o domínio do povo Sosso e depois do povo de Mali (PEREIRA, 2007, p. 31). Mali

O enfraquecimento de Gana deixou um vácuo de poder na África Ocidental que possibilitou disputas entres Estados menores (MACEDO, 2013, p._42). Em 1235, uma coligação de povos mandinga, grande etnia do oeste afri-cano, venceu, na batalha de Kirina, a relativa hegemonia que o Estado soninkê sosso mantinha na região. Esse foi o fato considerado fundador do Estado unifi-cado do Mali, e tal batalha foi liderada por Sundjata Keita, que fazia parte da primeira dinastia dominante do Mali pós-unificado. O Estado do Mali foi criado por vários povos e etnias da África Ocidental que eram aparentados e viviam na região situada entre o rio Senegal e o rio Níger (MACEDO, 2013, p. 42). Sundjata Keita foi o governante responsável por estender as influências do Mali, conquis-tando territórios ao sul e ao norte, regiões onde havia ouro e posições estraté-gicas para o controle do comércio transaariano (PEREIRA, 2007, p. 31), configu-rando a grandeza do Estado de Mali.

Segundo Macedo (2013), tal integração de vários povos evoluiu para que o Mali formasse uma espécie de império; afinal, sua hegemonia fora imposta militarmente, além de ter construído uma rede de tributação que englobava tanto povos aliados quanto povos dominados. Ki-Zerbo (1972) comenta a com-petência de tal estrutura desenvolvida pela civilização para governar uma área de influência tão extensa, um sistema descentralizado foi desenvolvido, em que o governante de Mali era o centro da rede, enquanto a administração das pro-víncias era dada aos chamados farbas. As províncias, por sua vez, eram subdivi-didas em cidades, que eram conduzidas por koufos e dougos. A comunidade era representada por um grande conselho – o Ghara – que decidia questões de guerras e de tributos. Enquanto Macedo (2013) acredita que a hegemonia do Mali se deveu a diversos aspectos, como seu poderoso exército de arqueiros, lanceiros e cavaleiros; seu êxito econômico advindo da extração do ouro; e sua posição de destaque na circulação comercial e sua vitória política ao criar estru-tura administrativa eficiente, Ki-Zerbo (1972) credita o sucesso do Estado majoritariamente à capacidade de flexibilidade da estrutura político-adminis-trativa, que, sem burocracia generalizada, fez regras indiretas para as provín-cias periféricas, tinha tolerância religiosa e, portanto, conseguiu impor modelo

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de integração política que juntou diversos povos sob a autoridade de um sobe-rano.

O apogeu da dinastia Keita ocorreu no século XIV: o governo de Kankan Mussa ampliou sua influência e firmou as bases administrativas do Mali. Ainda, Mussa, adepto do islamismo, buscou aprofundar a relação da religião com o Estado, bem como ganhar visibilidade e dimensão como Estado islâmico. Mansa Mussa peregrinou à Meca e conseguiu maior influência na região do Oriente Médio e do Mediterrâneo. Apesar de o animismo ser a religião da maioria dos governantes e da população até a época de Mansa Mussa, o Islã sempre fora aceito no Mali. Entretanto, a religião era seguida quase somente pelos comer-ciantes do Estado. Mansa Mussa, por sua vez, foi grande entusiasta do isla-mismo, promovendo estudos, incentivando ensinamento das leis corânicas nas madrassas2 e construindo elaboradas mesquitas, como a Grande Mesquita de Djenne, que é hoje patrimônio histórico da humanidade segundo UNESCO.

O século XIV também trouxe, entretanto, problemas para o Estado do Mali: segundo Macedo (2013), a ascensão de novos poderes na África Ocidental - como o Songai e os povos fula, advindos do Senegal - levou a um enfraquecimento da civilização, bem como problemas internos, como a confrontação entre a tradicional matrilinearidade do Mali e a patrilinearidade proposta pelo Corão. Logo o Estado Songai conquistou as principais cidades mandingas, terminando com a hegemonia do Mali. No que tange à hegemonia do Mali, cabe destacar como consequência uma maior difusão do islamismo na África Ocidental.

Songai

A dinastia Songai por volta do século XV ganhou gradualmente indepen-dência do Império do Mali (PEREIRA, 2007, p. 31). Sonni Ali liderou um extraor-dinário processo de expansão militar, em que os povos de origem songai toma-ram Tombuctu e Djenné, venceram os fulas, os tuaregs e os mossis e se estabeleceram finalmente em sua capital Gao, o centro comercial, político e eco-nômico do “império” (MACEDO, 2013, p. 45). Sonni foi considerado um grande soberano e esteve por um longo período no domínio da civilização Songai, lide-rando batalhas contra outros povos, agregando vitórias e expandindo a sua dominação.

O desenvolvimento da organização política e administrativa do “império” foi, na verdade, um aproveitamento das estruturas utilizadas na região ante-

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riormente, como no Mali e em Gana. Segundo Macedo (2013), na medida em que os Estados foram se sucedendo numa mesma área de abrangência, eles incorporaram os elementos das formações estatais anteriores. No vale do Níger, as organizações sempre foram elaboradas. O “império” era governado por altos funcionários de competência territorial ou funcional, como comissários nas províncias e chefes para assuntos específicos. Eram eles que controlavam e regularizavam o comércio e os negócios, coletando impostos e inspecionando pontos de trocas de mercadorias. Além dos impostos extraídos por essa espécie de “burocracia”, outras fontes de renda provinham das propriedades dos sobe-ranos, dos tributos recolhidos sobre as colheitas e de taxas e direitos alfandegá-rios sobre os produtos comercializados (MACEDO, 2013, p. 46). A complexidade atingida pela organização do Songai permitiu que o povo permanecesse mais coeso - ainda mais que seus antecessores - e se expandisse por um território mais extenso.

Em se tratando da organização social da civilização Songai, identifica-se a presença de uma elite que se diferenciava do resto da população. Os mercado-res, que geralmente eram enriquecidos pelo grande fluxo de comércio, faziam parte dessa elite e controlavam as cidades mais influentes da região. Também se nota que a religião predominante nessa parte da sociedade era o islamismo, provavelmente pelo grande contato com mercadores vindos do norte. A outra parcela da população era composta pelos camponeses, pescadores e pastores, que permaneciam com os costumes de seus ancestrais animistas. Apesar dessa divisão social, todos os cidadãos cooperavam em busca de uma coletividade nacional, mantendo-se fiéis ao governante e aos valores da civilização. Ao con-trário de muitas outras organizações sociais, no “império” Songai o excedente era deixado aos interessados, escravos ou homens livres, não sendo apropriado pelo Estado.

A disputa entre os diferentes povos pelo domínio do “império”, assim como ataques dos povos vizinhos, contribuíram para o enfraquecimento da sociedade Songai. Somada a isso, a invasão, ocorrida em 1591, vinda do norte, dos povos berberes e do Império Marroquino (PEREIRA, 2007, p. 31), ocasio-nou a derrota do Songai. Era o fim do longo período de florescimento social, político e econômico dos antigos Estados da África Subsaariana, jamais recupe-rado em sua dimensão original (MACEDO, p. 37). Mesmo com o declínio dessas

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organizações estatais, a influência de Songai, Mali e Gana se estende até hoje refletida nos costumes das sociedades atuais.

Portanto, a análise da sucessão das três hegemonias da África Ocidental Antiga nos permite perceber que uma suplantou a outra, obtendo essa con-quista a partir das falhas e do declínio da hegemonia3 anterior. Tratou-se de um ciclo hegemônico, em que cada Estado se apropriou de estruturas do hegemon anterior. Ademais, Macedo (2013, p. 50) sintetiza as mais importantes caracte-rísticas de Gana, do Mali e do Songai: alcance do poder independente de uni-dade territorial baseado basicamente em alianças, negociações, autoridade pes-soal do governante, e conquistas militares; Estados tributários; Estados multiétnicos com grande influência islâmica, sem deixar de lado costumes tra-dicionais locais; e Estados monárquicos governados por linhagens, oscilando entre matrilinearidade e patrilinearidade e embasados na ancestralidade. Senegal e Golfo da Guiné

A estratégica região do Golfo da Guiné foi o berço de distintas organiza-ções políticas entre os séculos XIII e XVIII. No atual Senegal, o desmembramento do poderoso Estado do Grão Jolof, no século XIV, resultou em pequenas unida-des políticas dispersas, como as Kaior, Waloo, Sine, Salum, e Baol. Como herança do Grão Jolof, essas unidades tinham sua estrutura social divida em três grupos: um primeiro grupo, das altas linhagens (garmi) e o governante (bru), que pos-suía descendência matrilinear; um segundo grupo, de homens livres (gêer dyambur); e um terceiro, de dependentes e agregados (dyaqm) (MACEDO, 2013, p. 57).

No período que vai do século XV ao XVIII, no território onde se encon-tram hoje Gâmbia, Guiné e Casamança4, estava organizado o Estado kaabunke, o qual era fruto da institucionalização da associação da aristocracia militar (nyan-tio) e comerciante (diula) dos grupos étnicos da região em uma estrutura de poder denominada mansaya na língua local (MACEDO, 2013, p. 57). Essa forma-ção política ganhou destaque por seu baixo nível de centralização e por sua ele-vada estabilidade, tendo suas estruturas de poder baseadas no poder tribal em si e na garantia desse poder entre seus pares.

Na costa dos atuais países Togo, Benim e Nigéria, diferentes monarquias centralizadas se desenvolveram de maneira autônoma, mas compartilhando traços culturais comuns, particularmente a língua iorubá. Os principais povos

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incluídos nesse grupo são os ibo, edo, fon, evhé, aja, e agajá. O primeiro reino a se destacar foi o do Benim entre os séculos XIV e XVII, que em sua máxima extensão chegou a compreender a região entre a atual cidade de Lagos (antiga capital da Nigéria) a leste, o rio Níger ao norte e o mar ao sul (MACEDO, 2013, p._59). Entre seus pares iorubás, o principal adversário do Benim era o reino dos povos evhés a oeste. No entanto, seu inimigo real vinha do interior do conti-nente e constituía o poderoso reino de Daomé, fundado no fim do século XVII.

O reino de Daomé tinha o seu sucesso material bastante relacionado à sua associação aos interesses comerciais dos fortes holandeses e franceses do litoral. Após o estabelecimento do povoado de Abomé, que se tornaria o centro do poder daomeano, e o subjugo de diversos povos iorubás da região, o reino de Daomé se inseriu no comércio de escravos, o que se tornou seu elo principal com os europeus e a principal fonte de recursos do reino. Ao longo do século XIX, o poder do reino cresceu na mesma velocidade que sua proximidade com as potências europeias. Com a diminuição do tráfico de escravos e a diversifica-ção dos interesses comerciais europeus na região, o reino acabou sendo absor-vido pela estrutura colonial francesa em 1895 (MACEDO, 2013, p. 59).

Contemporâneo ao reino de Daomé, o reino de Oió foi o mais importante Estado dentre os iorubás. O reino de Oió teve sua expansão em forte colisão com o reino de Daomé, levando a disputas diretas em meados do século XVIII. Ao conseguir dar coesão a uma vasta rede de grupos guerreiros locais, pôs fim à hegemonia de Daomé, submetendo-os ao pagamento de tributos e limitando-os ao controle de alguns postos comerciais no litoral (MACEDO, 2013, p. 60). Na tradição oral teria sido governada primeiramente por Sangó ou Shango – vene-rado como divindade em toda a Costa do Benim e perpetuado nas religiões tra-dicionais de matriz africana difundidas no Brasil pelo nome de Xangô.

Confederação Achanti

A Confederação Achanti estendia seu poder sobre a região onde hoje estão os Estados de Gana e Togo. Na prática, essa organização é a integração da hegemônica elite de guerreiros da cidade de Kumasi (no centro de Gana) e dos povos da região em uma só unidade política. A confederação teve uma duração de cerca de duzentos anos, tendo seu fim fortemente associado à expansão da presença europeia no continente africano ao longo do século XIX.

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A Confederação Achanti teve origem em um conjunto de alianças orques-tradas por uma elite de guerreiros que fundaram a cidade de Kumasi no ano de 1690. A figura de Osei Tuto (1680-1717) foi essencial na formação da confede-ração. O líder guerreiro inicialmente criou em sua rede de alianças matrimo-niais e diplomáticas a concepção de uma defesa coletiva da soberania dos povos locais, tornando-se uma espécie de representante legal dos povos confederados (MACEDO, 2013, p. 62) na figura do achantiene. A partir de sucessivos sucessos militares, Kumasi passou a concentrar recursos e poder, expandindo-se através da adesão dos povos vizinhos e, por conseguinte, aumentando sua capacidade de pressão sob os povos resistentes.

O achantiene Opoku Ware (1720-1750) levou adiante a expansão da con-federação, e, ao longo do século XVIII, a confederação passou a inserir a grande maioria dos povos não vinculados aos mercadores europeus em sua esfera de poder (MACEDO, 2013, p. 62). A relevância da conquista na concepção dessa entidade é exemplificada pela existência de cotas de envio de homens a um exército permanente como manifestação de adesão à confederação. O milita-rismo da Confederação Achanti se destacou dentre outras formações políticas africanas: seu exército permanente - que reunia cerca de 20% da população, chegando a contar com 80 mil homens no século XIX – era um fenômeno pouco comum entre as formações contemporâneas (MACEDO, 2013, p. 62-63).

A relevância do militarismo achanti se explica também pela importância do comércio de escravos como principal maneira de financiamento desse Estado. A necessidade de continuar dominando povos para lhes suprir de escra-vos a serem vendidos junto aos mercadores europeus pode ser elencada como um fator considerável do militarismo achanti. A forte presença dos europeus, seja através de treinamento, seja pelo suprimento bélico na máquina de guerra achanti ilustra essa relação.

Do ponto de vista administrativo, os povos pertencentes à confederação foram progressivamente inseridos em mecanismos de integração e promoção de um sentimento de pertencimento. Assim, estabeleceu-se uma hierarquia entre os povos de acordo com sua antiguidade na formação do Estado, como descreve José Rivair Macedo (2013, p. 63):

“(…) em primeiro lugar havia os aman (estados “confederados”), isto é, que contribuíam para a hegemonia do Estado e eram gover-nados por chefes e funcionários, chamados nkwansrafo. A seguir vinham as províncias “exteriores”, que, depois da conquista, pas-

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saram a ser governadas por representantes do Estado achanti; e as províncias “tributárias”, que continuavam a ser administradas por seus antigos governantes, mas pagavam tributos periódicos e só muito raramente forneciam contingentes militares.”

O progresso material obtido da relação entre a captura e o comércio de escravos e os êxitos militares dos achanti transformou a antiga confederação tribal em um Estado modernizado. A confederação contava com uma capital cosmopolita, amplamente conectada com os centros comerciais continentais, com cerca de 15 mil habitantes. Uma soberania territorial particularmente sólida foi construída através de uma rede de estradas que, além de ter fins comerciais, possuía uma série de postos de controle e permitia um rápido des-locamento de suas forças. A importância da capital Kumasi, enquanto organi-zadora do comércio e do exército, permitiu que se construísse uma burocracia estatal progressivamente profissionalizada e modernizada. Diferentemente do observado em outras formações políticas africanas, os achanti passaram a con-tar com um corpo de serviço publico profissionalizado, chamado de esom na língua local, que permitia o ingresso de indivíduos externos às elites do reino ao gerenciamento de diferentes aspectos da administração pública, transfor-mando-se em um grupo político hegemônico (MACEDO, 2013, p. 64). De uma organização confederada, gerenciada pelos conselhos de líderes tribais, o Estado achanti passou a ter de administrar os influxos de poder da burocracia palaciana, comercial e militar, ademais dos tradicionais líderes, cada vez mais absorvidos pelo cotidiano do poder em Kumasi.

O amplo domínio dos achanti sobre o comércio de escravos na região se converteu em um problema para os mercadores ingleses e holandeses. Ciosos dos problemas de ter a oferta de escravos controlada por um Estado forte, os europeus uniram esforços ao longo dos séculos XVIII e XIX para tentar minar a hegemonia achanti. A grande maioria das incursões e dos embates coleti-vamente realizados por ingleses, holandeses e povos autônomos do litoral – como gas, fantis, akims, denkyiras – foi subjugada pelas forças da Confederação Achanti (MACEDO, 2013, p. 64). Somente em 1870, após quase um século desde o primeiro embate aberto entre a confederação e os europeus, uma coalizão liderada por tropas britânicas tomou Kumasi e obrigou a abdicação do comér-cio de escravos e da expansão dos domínios da confederação. Na prática, isso simbolizava o fim da Confederação Achanti.

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Congo e Angola

No século XIII, importantes formações sociais e estatais surgiram na África Central, na área onde hoje se encontram a República Democrática do Congo, a República do Congo e Angola. A organização complexa do Congo era formada por povos do grupo mbundu, sendo as linhagens dominantes, e do grupo bakongo, que se desdobravam em diversos grupos menores falantes das línguas umbundo e kikongo (MACEDO, 2013, p. 66). Os governantes do Congo, chamados manicongos, possuíam diversas estruturas políticas, entre elas o canda, que estabelecia o vínculo genealógico (COSTA E SILVA, 2006, p. 519) de pertencimento ao clã do Lukeni, cujo ancestral, Nimi-a-Lukeni, pela tradição oral, teria submetido as populações em sua área a seu domínio e se sediado em Mbanza Congo, de onde passou a controlar os yombe, manianga, nlazen, nsuku, e nsaka, por meio de guerras, alianças e extração de tributos.

O Congo era sustentado pela agricultura de subsistência, praticada em geral pelas mulheres, com produtos como legumes, tubérculos, cereais, sorgo, frutas, árvore de palma, e noz de cola. A partir do contato com os portugueses, primeiramente com o navegador Diogo Cão em 1482, eles passaram a plan-tar amendoim, batata doce, goiabeiras, cajueiros e mamoeiros, arroz, milho, e, sobretudo, mandioca, como base alimentar. O comércio podia ser exercido por qualquer indivíduo, com autorização dos chefes locais, sendo exclusivo aos integrantes de linhagens dominantes o controle das transações de produtos de maior valor comercial, como tecidos, marfim, prata, sal, produtos bélicos, e escravos.

Segundo Macedo (2013, p. 69),“nos documentos deixados pelos primeiros (...) [portugueses] enviados ao Congo, toda a região é qualificada de “reino”, e os governantes de “reis”, as demais lideranças locais como “vas-salos” e as áreas próximas a Mbanza Congo como “províncias” [Mbemba, Mbata, Mbamba, Sonio, Nsoundi, Mpangou].”

Para os europeus, a “monarquia” do Congo parecia fraca, pois o poder do “rei” manicongo era restrito, na prática, a Mbanza Congo. No entanto, a linha-gem era a sustentação da sociedade congolesa, e a sucessão ao trono era feita a partir da indicação e da decisão dos chefes locais de linhagens através das regras de sucessão matrilinear.

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Por fazer parte da área de influência portuguesa, em maio de 1491, o Manicongo Nzing Nkumu foi batizado e adotou o nome de D. João I, juntamente com seu filho, Mvemba-a-Nzinga, mais conhecido por seu nome cristão de Afonso I (1509-1540). Contudo, o equilíbrio social foi rompido no governo de D. Afonso I, pela adoção de modelos portugueses, como a política hereditária de sucessão patrilinear do trono, a implantação do cristianismo e a criação de uma corte.

Surgiu uma oposição, liderada pelos chefes das linhagens mais impor-tantes e pelos defensores do culto aos fetiches; porém, a aculturação através da cristianização era uma via de mão dupla, onde também os governantes deman-davam aos reis portugueses construtores, armas de fogo, professores, e missio-nários. No entanto, só os últimos eram enviados (MACEDO, 2013, p. 69).

Com a morte de Afonso I (1540) e o massacre pelos guerreiros ibangalas (1567), sentiu-se uma maior necessidade de ajuda de mercenários europeus e de suas armas de fogo, fazendo com que a pressão dos comerciantes de escra-vos aumentasse. Para contrabalançar a influência portuguesa, os reis do Congo iniciaram relações com a França, com Roma, com a Holanda, e até mesmo com o imperador etíope.

Simultaneamente, missionários e mercenários portugueses, apoiados por aliados africanos, se estabeleceram no Ndongo, organização política que estava logo abaixo do Congo. Segundo a tradição oral, o fundador do Ndongo, Ngola Kiluanje (1515-1556), teria emigrado com seus seguidores do Norte e fundado a cidade de Kabassa, o que sugere vinculação histórica ao Congo (MACEDO, 2013, p. 69). Os portugueses, então, se estabeleceram na região que seria conhecida como Angola, no ano de 1571, com a concordância do mani-congo Álvaro I (1568-1674). A fundação da cidade de São Paulo de Luanda, em 1576, em uma excelente posição estratégica para o tráfico de escravos, gerou interesse holandês e posteriormente levou à ocupação holandesa entre 1641 e 1648, quando foi retomada pelos portugueses.

As relações entre os portugueses e os governantes do Congo se dete-rioraram ainda mais na segunda metade do século XVII e acabaram por con-duzir à batalha de Mbwila, em 1665, com a morte de centenas de indivíduos da alta nobreza e chefes de linhagens tradicionais, incluindo o rei Antônio I. Com isso, nunca mais o reino do Congo recuperou sua posição de potência local (MACEDO, 2013, p. 70).

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Em meio a disputas das nações europeias pelo controle do tráfico de escravos no Congo, a figura de Nzinga Mbandi (1582-1663) foi importante como liderança na África Central, especialmente em Ndongo. Essa rainha foi quem negociou a paz com portugueses em 1622 e assassinou seu irmão pela sucessão ao trono em 1629. Também enfrentou rebeliões e resistência dos che-fes das linhagens, pois era mulher, além de bastarda do rei Nzinga Mbandi Ngola Kiluanji e de uma escrava do palácio. Ameaçada por tropas portuguesas, Nzinga deixou Ndongo e passou a governar outro reino vizinho, de onde promoveu uma política expansionista bem sucedida, com aliança com holandeses pelo for-necimento de escravos, até a expulsão desses últimos em 1648 (MACEDO, 2013, p. 70). Os portugueses e Nzinga acordaram o batismo cristão em 1654, e Angola se transformou numa província lusitana de além-mar, até o século XX.

África do Sul

Desde pelo menos 20.000 A.C., a região no extremo sul do continente africano é habitada por populações autóctones, como os pigmeus e os khoisan (também chamados bosquímanos ou hotentotes). Migrações, principalmente no II milênio a.C., levaram diversos grupos para a região, em especial popu-lações de matriz linguística bantu, entre eles o grupo nguni, falado por shosa, swazi, ndebele, e zulus, em mais de 100 clãs. Muito tempo depois, a partir da metade do século XVII, uma importante migração para a área foi a de grupos de colonos, descendentes de calvinistas holandeses, franceses, germânicos, e ingleses, que eram chamados bôers e desenvolveram uma língua própria, o afri-câner.

A presença europeia na África Austral começou com a circunavegação do continente, feita pelos portugueses, que fixaram pontos de abastecimento, inclusive no Cabo da Boa Esperança, alguns dos quais foram ocupados por holandeses no século XVI. Nesse processo, colonos holandeses, franceses e ale-mães se fixaram no sul da África, dando início à ocupação de áreas do interior, que resultou em conflitos com as populações locais. Em 1837, o movimento de expansão do “Grande Trek”, ou “grande marcha”, resultou na defrontação entre os bôers e os zulus (MACEDO, 2013, p. 73).

Antes disso, sob a liderança do guerreiro conquistador Chaka (1776-1828), que, segundo a tradição oral, possuía atribuições físicas descomunais e poderes sobrenaturais, os zulus passaram por mudanças na forma de organi-

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zação, e, a partir de então, a preparação para a guerra seria primordial, com a introdução de novas táticas e estratégias. Dessa forma, essa máquina de guerra conquistou cerca de 300 chefaturas e organizações políticas menores na região. A grande onda migratória do povo shosa, fugindo da dominação zulu, recebeu o nome de Mfecane (MACEDO, 2013, p. 75). No reinado de Dingaan, que foi até 1840, os primeiros conflitos com os bôers ocorreram na tentativa de barrar o avanço da fronteira bôer e britânica, até a batalha do Rio de Sangue em 1838, quando os zulus foram derrotados, com milhares de mortos. Vale notar, ainda, que a história contemporânea da África do Sul e o apartheid estão diretamente relacionados à história dos bôers, que chegaram a formar 10% da população na África do Sul, nos séculos XIX e XX, além de controlar os postos políticos mais importantes do país5.

TRÁFICO DE ESCRAVOS

A escravidão está presente na história mundial desde a Antiguidade Clássica, no direito à propriedade de seres humanos e de seus serviços, susten-tado pela violência (COSTA E SILVA, 2002, p. 86). Na África, o tráfico negreiro teve como consequências profundas mudanças econômicas, sociais e demográ-ficas, que ajudam a explicar a estrutura atual do continente, que sofreu com a maior emigração de toda a história da humanidade. A diáspora africana levou, forçadamente, milhões de seres humanos a diversas áreas do planeta, especial-mente para as Américas.

Antes de abordar especificamente tráfico de escravos africanos para as colônias europeias, é necessário discorrer acerca dos modos de escravização contemporâneos e antigos existentes, especialmente na África. Primeiramente, o cativeiro era uma forma social de exercício do poder legalizada na Antiguidade, por exemplo, no Egito, na Grécia, e em Roma. Ainda, cabe pontuar que a cons-ciência de uma identidade racial e continental na África só passou a existir no século XX, sendo incorreto afirmar que “africanos” escravizavam “africanos”, já que a consciência coletiva não passava da aldeia, ou no máximo, do grupo linguístico (MACEDO, 2013, p. 81). Na África, a escravidão era amplamente difundida e se expressava em três situações principais: compra/venda, dívida, ou guerra, sendo o último o mais frequente. No entanto, a posição social dos escravos era diferente do que ocorria nas sociedades europeias em que houve escravidão.

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No continente africano, a “escravidão de linhagem” não tinha finalidade de exploração econômica e nem a liberdade pessoal era perdida completamente, já que, muitas vezes, os cativos eram integrados ao grupo social vencedor. Dessa forma, os governantes utilizavam a escravidão no sentido de controlar uma par-cela da população com a qual não possuíam laços de sangue ou de fidelidade. A escravidão era um meio de negar ao adversário estrangeiro os privilégios dos habitantes de uma sociedade, fazendo com que esses pudessem ser explorados. Assim, quanto mais longe fosse a terra do escravo, mais difícil se tornaria a fuga, aumentando seu preço, e quanto maiores as diferenças culturais, linguísticas e religiosas, maior seria o isolamento social, diminuído progressivamente pela aculturação do escravo, até que, possivelmente, esse ou seus filhos mudassem de condição social, pois essa não era hereditária (LOVEJOY, 2002, p. 32; COSTA E SILVA, 2002, p. 18).

No Norte da África, principal eixo de conexão entre a África Subsaariana e o comércio mundial – aqui, em especial no Mediterrâneo, no Oceano Índico, e no Golfo Pérsico –, os escravos, não muçulmanos, eram capturados nas guerras santas que expandiram o islamismo. Aqui, a escravidão seria uma forma de con-versão dos povos pagãos, durante a expansão do Islã, sendo a África Negra, uma importante fonte de escravos para serviços militares, administrativos, econô-micos e domésticos (incluindo sexuais). Vale notar que para o Alcorão, a escra-vidão é vista como natural; contudo, os escravos deveriam ser tratados com bondade, estabelecida regras de convivência entre eles e seus senhores (COSTA E SILVA, 2002, p. 32). Ademais, essa situação não seria autoperpetuadora, pois os filhos de escravos eram, muitas vezes, assimilados à sociedade. Para Lovejoy (2002, p. 40), no mundo islâmico, a escravidão havia passado por uma trans-formação do aprisionamento em sociedades baseadas no parentesco para uma sociedade onde o escravismo era institucional, diferentemente também de uma sociedade onde o escravo era amplamente relacionado ao sistema econômico, como na Europa Medieval e Moderna.

A escravidão feita pelos europeus, por sua vez, tinha fins predominan-temente comerciais para exploração de mão de obra produtiva na Europa e na América. O escravo passou a ser considerado uma propriedade, estando sua força de trabalho sujeita à disposição do seu senhor. Os cativos eram estrangei-ros, excluídos, sem herança social e, hipoteticamente, sem controle sobre seus corpos. Ademais, sua condição seria herdada por seus filhos, pois a possibili-

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dade de assimilação pela sociedade era praticamente negada, principalmente pela questão racial. Paulatinamente, os escravos passaram a se mostrar indis-pensáveis para a realização do trabalho que antes era feito pela família ou pelo assalariado, fazendo com que a escravidão deixasse de ser marginal para ser um mecanismo produtivo fundamental, uma instituição econômica essencial no modo de produção (LOVEJOY, 2002, p. 40). Assim, quando os cativos passaram a ser considerados moeda de troca em um comércio de longa distância pelo estabelecimento da estrutura colonial, a concepção europeia do comércio de escravos se consolidou e acabou por inserir o continente africano no sistema mundial.

As redes de comércio de escravos globais europeias, contudo, não foram pioneiras no trafico de escravos em larga escala. Esse já existia, no século VIII, com mercadores árabe-muçulmanos e afro-muçulmanos, graças à expansão do Islã, em que muitos escravos eram usados como soldados, marinheiros, con-cubinas, eunucos, e administradores. Existem relatos da comercialização de escravos entre as cidades swahili do litoral índico com a Arábia, Síria, Palestina, Pérsia, e, inclusive, Índia e China. Outra via de passagem de contingentes de escravos era o Deserto do Saara nas caravanas comerciais provenientes do Magrebe. Entre os séculos VIII e XVI, a exportação através do Saara, do Mar Vermelho e do Oceano Índico foi de 5.000 a 10.000 escravos/ano. Segundo Inikori (2010, p. 100), 3.956.000 escravos foram comerciados no tráfico tran-saariano, e 2.900.000, no Oceano Índico e no Mar Vermelho.

Assim, o comércio de escravos foi observado em outras regiões do globo e, por distintos fatores, simultaneamente ao comércio de escravos para as colô-nias europeias compreendendo um volume total de comércio que atingiu 22 milhões de indivíduos. Ainda assim, foi o Oceano Atlântico, entre os séculos XV e XIX, a principal área do comércio de escravos, conectando o continente africano ao comércio mundial, com os europeus na colonização da América, com cerca de 50% do total exportado – mais de 11 milhões de escravos – da África. Aproximadamente 40% desse contingente desembarcou no Brasil, espe-cialmente em Salvador e Pernambuco, no Rio de Janeiro, e em Santos, em um importante processo que resultou na atual composição demográfica brasileira. Esses escravos foram levados como consequência do extermínio da população indígena local por ocasião da conquista e das doenças transmitidas pelos con-

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quistadores para desenvolver as produções mercantes. As particularidades desse processo serão objeto da continuidade desta seção.

Tabela 1: Exportações de escravos da África: o comércio atlântico

Período Número de escravos Percentagem

1450-1600 409.000 3.6

1601-1700 1.348.000 11.9

1701-1800 6.090.000 53.8

1801-1900 3.466.000 30.6

Total 11.313.000 100

Fonte: LOVEJOY, 2002, p. 51.

O primeiro negócio de comércio de escravos euro-africano foi feito entre portugueses e a etnia africana dos Jalofos, na região da Senegâmbia. Durante praticamente todo o século XV, Portugal monopolizou o comércio no litoral da África Ocidental, com a fixação de feitorias. Os ganhos da Coroa portuguesa com o comércio mundial, que, na África, contava principalmente com a extração de ouro e com o tráfico de escravos, passaram de cerca de, em valores atuais, 60 milhões de reais na década 1480 para 279 milhões em 1534 (MALOWIST, 2010, p. 4). Os principais produtos usados pelas companhias de comércio europeias, bem como por seus mercadores, no comércio com as elites locais africanas, eram mercadorias provenientes da Europa, embora outros produtos tenham sido introduzidos no circuito comercial. Alguns exemplos são cauris (búzios); bebidas alcoólicas; tecidos de linho; tabaco; e, principalmente, produtos béli-cos, como armas de fogo e pólvora, mais pelo prestígio e pelo poder do que por sua capacidade letal. Outra mercadoria de troca importante foi o fumo, produ-zido no Nordeste brasileiro, que passou a ser vendido na África como escoa-mento de folhas de terceira qualidade, pelos brasileiros, contra a vontade dos portugueses. Além do tabaco, a difusão de bebidas alcoólicas mais fortes do que as africanas foi intensificada, principalmente na África Central. O consumo do vinho europeu aumentou progressivamente no continente, bem como o seu comércio. Em 1650, com a cachaça produzida no Brasil mais forte e barata, a importação de bebidas alcoólicas aumentou, chegando a 2.880.000 litros por

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ano, na África Ocidental, em 1780, e, posteriormente, a 23.000.000 litros em 1860, tornando-se um grande problema no continente (MACEDO, 2013, p. 93).

A dimensão do tráfico de escravos africanos no sistema produtivo colonial ocidental reconfigurou a percepção do europeu em relação ao conti-nente africano e seus habitantes. A entrada dos europeus no continente afri-cano, seja no século XV por acordos de comércio com as elites locais, seja após a Conferência de Berlim, tinha a missão civilizadora do homem branco como um de seus argumentos centrais. Para estudiosos como o filósofo David Hume (1711-1776), a história africana não possuía dinâmicas próprias, como afirmou na passagem:

“Eu estou apto a suspeitar que os negros e em geral todas as outras espécies de homens são naturalmente inferiores aos bran-cos. Não houve nenhuma nação civilizada tão complexa quanto a branca e nem indivíduos eminentes em ação ou especulação. Não existe manufaturas engenhosas entre eles, nem artes, nem ciências... Tamanha diferença, uniforme e constante, não poderia acontecer em tantos países e épocas, se a natureza não tivesse feito uma distinção original entre essas raças de homens” (HUME, 2012 apud BBC. Tradução livre.)

Também para o filósofo Georg Friedrich Hegel (1770-1831),“O negro (...) exibe o homem natural em seu completo estado selvagem e indomado. Nós devemos deixar de lado todo pensa-mento de reverência e moralidade – tudo aquilo que chamamos de sentimento –, se nós desejarmos compreendê-lo. Não há nada em harmonia com humanidade a ser encontrado nesse tipo de caráter. (...) [A África] não é parte histórica do mundo; não tem movimento ou desenvolvimento para exibir. O movimento his-tórico em si – aquele que em sua região nordeste – pertence ao mundo asiático e europeu.” (HEGEL, 2012 apud Nação Mestiça)

Porém, como exposto já neste trabalho, o período clássico da história africana apresenta uma vasta complexidade de civilizações e de expressões cul-turais, das quais se podem observar diversos legados. As relações comerciais entre a Europa e a África não têm um marco inicial e, durante mais de setecen-tos anos antes de 1450, foram feitas pelos comerciantes árabes muçulmanos no norte do continente, eixo de influência externa na economia política da África Subsaariana (LOVEJOY, 2002, p. 47). Não há como afirmar que a África era um continente isolado do sistema mundial de comércio. Dessa forma, a visão euro-peia ilustrada pelos excertos de Hume e Hegel se mostra um reflexo da posição

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em que os países europeus inseriram o continente africano no sistema mundial e não algo condizente com história africana.

É, contudo, a partir das grandes navegações, no século XV, que o conti-nente passou a participar de um novo sistema geoeconômico voltado para o Oceano Atlântico em um dispositivo triangular, que ligava a Europa, a África e as Américas, permitindo aos europeus a dominação sobre os outros. A acumu-lação de capital gerada pelo comércio e pela pilhagem, organizados mundial-mente, foram imprescindíveis na ascensão da Europa (MALOWIST, 2010, p. 5). É importante salientar que as sociedades americanas eram amplamente escra-vocratas, com a figura do escravo necessária ao processo de produção, com um papel muito importante na economia.

A abertura do Atlântico ao comércio marcou a África, não só pela emi-gração de milhões de pessoas, mas também porque essa área litorânea não era conectada ao comercio mundial. Para Lovejoy (2002), a forma de escravidão dos europeus possuía características bastante diferentes da forma muçulmana: não existiam mais o concubinato, os eunucos e os funcionários políticos milita-res com títulos islâmicos. Além disso, como a exploração econômica nas plan-tation europeias nas Américas era a principal função do escravo, os europeus preferiam comprar homens, enquanto que os africanos e muçulmanos, crianças e mulheres.

No século XIX, as potências europeias, em especial a Inglaterra, passaram a defender o fim do comércio de escravos e a abolição da escravatura. Já com a independência dos Estados Unidos e com a Revolução Francesa, um movimento em nome da liberdade e da afirmação dos povos começou a ser defendido por escritores ingleses e estadunidenses, bem como iluministas franceses. Vale notar que a abolição da escravatura foi aceita na Inglaterra em 1803, e o cálculo político e econômico foi feito, principalmente, graças à Revolução Industrial.

Era necessária a expansão de mercados para a obtenção de matérias-pri-mas baratas e de consumidores, que obviamente não poderiam ser escravos, de produtos industrializados. Dessa forma, a Inglaterra, potência econômica e militar, patrulhou o litoral africano, o Oceano Índico, as Antilhas, e o litoral ame-ricano para alcançar o fim do comércio de escravos, enquanto que Campanhas diplomáticas fizeram com que os outros países europeus logo aceitassem a nova condição do comércio escravista. No entanto, como é possível perceber

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pela tabela de Lovejoy, 30% do comércio de escravos ocorreu no século XIX: cerca de 3,4 milhões de pessoas, sendo o Brasil o local que mais recebeu cativos.

Por fim, deve-se salientar o efeito demográfico e as suas consequências que a dimensão do tráfico de escravos exerceu sobre as sociedades africanas e externas ao continente. Esse tráfico humano fez com que milhões de cativos fossem aprisionados, privados de sua liberdade e deslocados à força para, prin-cipalmente, o Novo Mundo. Os navios negreiros da Espanha, França e Inglaterra levavam seus aprisionados para a América Central e para a América do Norte, onde, como no caso dos portugueses no Brasil, os cativos seriam revendidos e reinseridos na sociedade como escravos. Ademais, a mesma justificativa civi-lizadora obrigava aos escravos o batismo cristão, como forma de redução ao cativeiro.

O conjunto desses emigrados africanos, ao redor do mundo, é referido comumente na bibliografia como diáspora. Segundo Peffer (2011), a pala-vra diáspora (dispersão ou semear) é descrita pelos antigos gregos, asso-ciada a ideias de migração e colonização na Ásia Menor e no Mediterrâneo na Antiguidade, de 800 a 600 a.C. Porém, “a conotação inicialmente positiva das sociedades que se disseminavam através e entre diferentes geografias políti-cas e culturais transformou-se num termo de opressão e vitimização” (PEFFER, 2011, p. 2), sendo usado na era moderna para as comunidades de armênios, sul-asiáticos, palestinos, e principalmente para os grupos africanos levados às Américas. Dessa forma, para Macedo (2013, p. 80), esse fenômeno é entendido como o da transposição e da interação entre as experiências socioculturais afri-canas e as das próprias localidades para onde foram os escravos no estabele-cimento de novas manifestações, sejam elas culturais, religiosas, linguísticas, entre outras.

Para os africanos da diáspora, a memória de seu modo de vida e a espe-rança de libertação da condição do cativeiro fez com que sua africanidade formasse novas manifestações culturais, principalmente no Haiti e no Brasil, como novas expressões linguísticas e fusões de crenças, amplamente difundi-dos socialmente. As manifestações religiosas do candomblé, no Brasil, da san-teria, em Cuba, e do Vodu, no Haiti estão amplamente ligadas entre si e com as praticadas em Daomé e Benim, no culto aos ancestrais (MACEDO, 2013, p. 97). No Brasil, dentro dos terreiros, as práticas religiosas tradicionais africanas e o catolicismo oficial sofreram uma fusão, e, para que os orixás do candomblé fos-

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sem invocados, houve uma associação entre esses e os santos católicos. Assim, a umbanda foi criada no Brasil, combinando elementos da religião católica, do candomblé e, também, do espiritismo, símbolo de sincretismo no Brasil6.

A África pôde ser integrada numa rede internacional de escravidão por-que as formas nativas de dependência pessoal permitiam a transferência de pessoas de um grupo social para outro. O continente africano possuía oferta de escravos baratos e abundantes e entrou no comércio mundial de larga escala com a importação de 22 milhões de pessoas pelas Américas, pelo Saara, pelo Mar Vermelho e pelo Oceano Índico. Esse comércio escravocrata está ampla-mente ligado à atual situação de dependência africana, do ponto de vista tanto econômico, quanto demográfico, político, cultural e psicológico. Para se ter uma ideia, entre 30% e 40% dos cativos eram mulheres, o que levava à redução da capacidade de reprodução na África, e “se levarmos em conta as perdas suple-mentares causadas pelas exportações para as Américas (a mortalidade entre o momento da captura e o da chegada ao término da viagem, os falecimentos devidos a combates e a fome durante as capturas), assim como a exportação de 6,9 milhões de negros (dos quais a maioria era composta por mulheres) para o resto do mundo, tudo indica que a população de África Negra diminuiu, em valores absolutos, ao menos entre os anos de 1650 e 1850” (INIKORI, 2010, p._124).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a introdução da lei número 10.639, de nove de janeiro de 2003, das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira e Africana se tornou obrigatório no Brasil. Como abordado no presente capítulo, a África possuiu, ao longo de sua história, diversas civiliza-ções complexas e uma ampla variedade de formações políticas e culturais. Mais que uma fonte de escravos, o continente viveu uma dura realidade, que muitas vezes passa despercebida dos principais estudos, inclusive em um dos princi-pais vetores desse comércio, o Brasil. Dessa forma, consideramos relevante a divulgação do conhecimento sobre África e a democratização do assunto.

Ademais, tentamos colocar a África como centro de sua própria histó-ria, revendo os conceitos de pré-colonial e pós-colonial. Para um novo ensino, é necessária a mudança de posição da África de marginalizada para integrante e formadora da história da humanidade. Ressaltamos, também, a importância

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da compreensão de conceitos que são essenciais para o entendimento da África Antiga - e, consequentemente, da África atual – e que, entretanto, ainda não fazem parte do nosso cotidiano.

Apesar do grande número de povos e civilizações da África Antiga, a aná-lise de algumas sociedades foi feita com a pretensão de expormos dinâmicas e realidades africanas que pudessem abranger mais amplamente o continente. A grande dinâmica e a grande quantidade de migrações intra e intercontinentais foram sublinhadas com uma breve apresentação do quadro de tráfico de escra-vos africanos na Antiguidade – que certamente representou essa grande movi-mentação. Cerca de 22 milhões de pessoas emigraram do continente, refletindo na sociedade, economia e demografia do atual continente africano.

Por fim, ressaltamos que existe a necessidade de uma nova reflexão sobre a África: por anos enquadrado em conceitos históricos e sociológicos eurocên-tricos, o continente foi objeto de teorias deterministas de subdesenvolvimento. Aqui, tentamos trazer a perspectiva de que não há como compreender a África atual sem análise da África Antiga e de como se desenvolveram suas sociedades.

PONTOS A DISCUTIR

1) Os conceitos utilizados para a África.2) As características de cada civilização com um enfoque mais regional e os

reflexos nas sociedades atuais.3) Impactos do tráfico de escravos no Brasil (religiões, novas palavras, comida,

racismo, etc.) e na África (perda demográfica de milhões de pessoas).

Notas1 Estado Moderno, como celebrado pela Paz de Westfália em 1648, proclamando o Estado soberano com limites territoriais delimitados.2 Palavra de origem árabe que designa instituição destinada à educação, geralmente associada à religião islâmica.3 Supremacia de um povo sobre os demais.4 Casamança é uma região do atual Estado do Senegal e se localiza entre Gâmbia e Guiné Bissau, cortada pelo rio Casamansa.5 Para mais informações acerca da África do Sul nos séculos XX e XXI, veja o Apêndice.6 Para mais informações acerca das influências culturais, sociais e religiosas da África no Brasil, veja o Capítulo 7.

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Referências1. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística. Contagem Populacional. Censo 2010. Disponivel em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/. Último acesso: 18 dez. 2012.

2. COSTA E SILVA, A. A manilha e o libambo: a África e a escravidão. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2002.

3. __________. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. 3.ed. revisada e am-pliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

4. FREUND, B. The Making of Contemporary Africa: Development of African Society since 1800. United States: Lynne Rienner Pub, 1998.

5. FYLE, C. M. Introduction to the History of African Civilization - Volume I: Preco-lonial Africa. Lanham: University Press of America, 1999.

6. HERBST, J. States and Power in Africa: Comparative Lessons in Authority and Con-trol. Princeton: Princeton University. Chapter 2, Power and space in precolonial Africa, 2001.

7. INIKORI, J. E. A África na História do mundo: o tráfico de escravos a partir da África e a emergência de uma ordem econômica no Atlântico. In: OGOT, B. A. (Org.). História geral da África V: África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010. p. 91-134.

8. KI-ZERBO, J. Histoire de L’Afrique Noire. Paris: Libraire Hatier, 1972.9. LOVEJOY, P. A escravidão na África: uma história e suas transformações. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.10. MACEDO, J. R. História da África. Texto inédito, em curso de publicação pela Editora

Contexto, 2013.11. MALOWIST, M. 2010. A luta pelo comércio internacional e suas implicações para

a África. In: OGOT, B. A. (Org.). História geral da África V: África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010. p. 1-26.

12. M’BOKOLO, E. África Negra: História e Civilizações - Tomo 1 (até o século XVIII). São Paulo: EDUFBA e Casa das Áfricas, 2009.

13. NAÇÃO MESTIÇA. O Racismo de Hegel. Nação mestiça. Disponível em: http://www.nacaomestica.org/HegelMFP.htm. Último acesso: 20 nov. 2012.

14. PEFFER, J. A diáspora como objecto. Disponível em: http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/Arte-africana-contemporanea-e-dias-pora.pdf. Último acesso: 8 fev. 2013.

15. THE ABOLITIONIST – BBC AFRICA. Taken from Of national characters in Essays: Moral, Political & Literary by David Hume, Scottish philosopher and historian (1711-1776). Disponível em: http://www.bbc.co.uk/scotland/education/hist/abolition/?section=tri_trade&page=africa&mainContent=read. Último acesso: 8 fev. 2013.

16. VISENTINI, P. F.; RIBEIRO, L. D. T; PEREIRA, A. D. Breve História da África. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007.

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17. WALLERSTEIN, I. A África e a Economia-Mundo. In: AJAYI, J. F. A. (Org.). História geral da África VI: África do século XIX à década de 1880. Brasília: UNESCO, 2010. p. 27-43.

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3SOB O JUGO EUROPEU: DO IMPERIALISMO EUROPEU

ÀS GUERRAS DE INDEPENDÊNCIA AFRICANAS

Mariana Steffen, Leonardo Weber & Pedro Alt1

Descrição histórica da inserção europeia no continente africano, desde a expansão marítima até a colonização efetiva, e quatro estudos de caso sobre a independência de ex-colônias europeias na África (Angola, República Democrática do Congo, Níger e Nigéria).

1 Graduandos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os autores agradecem a revisão de Thiago Borne e a colaboração do Msc Marcelo Leal.

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INTRODUÇÃO

Para melhor compreender a África, é necessário olhar um pouco para sua história. O continente africano foi ocupado de fato pelos europeus por ape-nas sete décadas, se tomarmos como referências a Conferência de Berlim e o grande boom das independências africanas entre as décadas de 1950 e 1960. No entanto, essa talvez tenha sido a mais severa colonização, impondo mudan-ças a uma população que, embora viesse sofrendo pequenas e médias modifi-cações em seu modus vivendi nos últimos séculos, claramente não estava prepa-rada para tal choque de realidade.

Neste capítulo, faremos uma tentativa de relatar o processo de inserção europeia no continente africano, passando pelas principais motivações que fizeram com que os Estados europeus passassem a olhar a África com outros olhos, pelas mudanças de interesse econômico e político na África, além das próprias mudanças pelas quais o continente africano veio a passar. Logo após, discutiremos a questão da Conferência de Berlim, marco histórico da ocupa-ção da África, e as formas através das quais os europeus vieram a penetrar o território africano. Vale lembrar que daremos ênfase à África Central e à África Ocidental, regiões abordadas pelos quatro estudos de caso analisados e mais próximas ao Brasil, embora referências às outras partes da África sejam feitas quando necessário.

COLONIALISMO, NEOCOLONIALISMO E IMPERIALISMO: CONCEITOS

Antes de iniciar-se o relato histórico da inserção europeia na África, cabe esclarecer alguns conceitos que são empregados de forma direta ou indireta no artigo, como o de “colonialismo”. No caso africano, esteve generalizada a colô-nia de exploração onde, através da exploração de determinada localidade por parte da máquina de outro Estado, o sistema colonial é caracterizado por diver-sos aspectos: apropriação de lucros, comando do exército que age localmente, povoamento da área colonizada, constituição de leis exercidas na colônia, ten-dência a ignorar os anseios locais, entre outros. Em outras palavras, a coloniza-ção é concretizada quando um lugar é diretamente explorado por outro. Esse tipo de colônia é distinto da de povoamento, que melhor desenvolvia a vida

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dos colonizados e era encontrado, por exemplo, nas colônias inglesas no atual território norte-americano.

Já o conceito de “neocolonialismo” foi elaborado por vários pensadores, muitas vezes defensores dos movimentos de libertação nacional do século XX. Kwame Nkrumah, por exemplo, foi o primeiro presidente de Gana, e sua con-ceituação será aqui apresentada por se tratar do grande mentor do aprofunda-mento do estudo dessa prática por parte dos africanos. No entanto, reforça-se a ideia de que há um debate estabelecido quanto a essa definição1. A essência do neocolonialismo é, segundo o ganês, “que o Estado que a ele é submetido é, em teoria, independente, tendo todas as supostas benesses da soberania interna-cional. Na verdade, seu sistema econômico e, portanto, sua ação política estão sendo direcionados de forma exógena” (NKRUMAH, 1965, tradução dos auto-res). O neocolonialismo, como o próprio nome do livro escrito por Nkrumah diz, seria o último estágio do imperialismo e sua forma mais perigosa.

Portanto, para melhor compreender o conceito abordado no parágrafo acima, se faz necessária uma explanação sobre o “imperialismo”. Nos primeiros anos do século XX, estando mais intensas do que nunca as pretensões europeias sobre o território africano, três tentativas de desvendar os caminhos do impe-rialismo europeu tiveram mais sucesso: Imperialism: A Study, de John Hobson (1902); A Acumulação de Capital, de Rosa Luxemburgo (1913); e Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo, de Vladimir I. Lênin (1916). Tomaremos o tra-balho de Hobson como referencial. Enquanto os três trabalharam o conceito com aproximadamente o mesmo teor, Luxemburgo e Lênin eram participantes ativos da Internacional Comunista2, e essa participação acabou por priorizar certos preconceitos ideológicos, segundo autores (HUNT, 2005).

Os dois, porém, não discordavam dos mais fundamentais pontos defen-didos por Hobson. O imperialismo era fruto de forças sociais isoladas que, em nome do Estado, acabavam por explorar economicamente outros povos visando à multiplicação de seu próprio capital. Um dos grandes perigos abordados por Hobson era a fachada cristianizada do caráter missionário que caminhava ao lado dessas forças sociais (HUNT, 2005, p. 335). A tentativa de “elevar” os povos inferiorizados pelo Ocidente escondia o real propósito da missão: o de tornar a imagem do empresário imperialista mais aceitável. Cobrindo o imperialismo com um véu de humanidade, a acumulação de capital por parte do empresário se dava de forma descontrolada. Era justamente essa gana de acumular mais e

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mais que retroalimentava o próprio esquema capitalista: a poupança interna era tanta que os investidores não encontravam mais em seus países de origem o destino para seus investimentos. Assim, um sistema financeiro foi inteira-mente desenvolvido para o melhor direcionamento desse capital ocioso para o exterior – no caso, a África. Segundo Hobson, o lucro obtido pelos financistas, mediante os investimentos externos, seria muito maior do que qualquer lucro obtido através do comércio (HOBSON apud HUNT, 2005, p. 353).

O CONTATO DIRETO ENTRE EUROPA E ÁFRICA: PORTUGAL E OS PRIMEIROS SÉCULOS

Os primeiros contatos diretos entre europeus e africanos se relacionam principalmente com o desejo por parte dos primeiros de expandir seu domí-nio marítimo, abrindo uma rota via Oceano Atlântico rumo à Ásia. Não há, con-tudo, como afirmar que a África estivesse isolada do contato econômico com os europeus anteriormente, uma vez que o comércio no norte africano era domi-nado pelos muçulmanos, que comerciavam com os europeus não apenas mer-cadorias, mas também escravos na região mediterrânea (VISENTINI, 2010b). Também não podemos deixar de citar como motivação para o expansionismo europeu essa presença islâmica na região mais próxima à Europa.

No final do século XIV, os venezianos dominavam o comércio europeu via Mar Mediterrâneo, inviabilizando a utilização de suas rotas por parte de outros mercadores. Essa supremacia comercial por parte de Veneza destacou a necessidade europeia de procurar uma nova rota para escoar sua produção rumo ao Oriente – tarefa que coube aos portugueses. No entanto, é válido ressaltar que não se deve relacionar a temática do “descobrimento” a tais expe-dições. No mínimo desde o século XIII, os árabes já haviam entrado em contato com as costas ocidentais africanas, e, já no início do século XIV, outros navega-dores europeus haviam se aventurado em ilhas do Atlântico (M’BOKOLO, 2009).

A partir de 1415, com a tomada da cidade de Ceuta, os lusitanos iniciaram sua constante expansão pelo litoral ocidental da África. A Escola de Sagres, fun-dada nos anos 1440, reunia inúmeros navegadores portugueses e impulsionou as navegações do reino ibérico. No final do século XV, Portugal havia alcançado o Cabo da Boa Esperança, no extremo sul do continente africano. Pelo caminho, os exploradores montavam bases estratégicas em pontos onde entendiam poder encontrar metais preciosos e escravos. Assim, deixaram incólumes inúmeras

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áreas que, pensavam os portugueses, não poderiam fornecer algum dos dois “produtos”. Podemos destacar dentre os empreendimentos portugueses na África Ocidental as bases para futuras obtenções de metais na Costa do Ouro (atual Gana) e de escravos em Benim. Na África Oriental os nativos não eram tão receptivos, dada a maior influência muçulmana na região; no entanto, principalmente na Etiópia, reino cristão, e em regiões próximas ao Rio Zambeze, a influência portuguesa se deu de forma mais intensa.

Embora as viagens marítimas lusitanas tenham estabelecido os primei-ros contatos diretos entre Europa e África, é demasiado otimista afirmar que foram as primeiras relações euroafricanas que se deram de forma concreta. O interesse europeu, primeiramente, era encontrar uma nova forma de chegar ao Oriente. Era o controle dessa região que importava naquele momento, uma vez que era a região que mais fornecia as especiarias consumidas pelos europeus, sendo a África apenas uma segunda opção (VISENTINI, 2010b). Isso não tirava de maneira alguma a importância da rota que era controlada por Portugal e pas-sava pelo litoral africano, mas não era de fato ocupada: por mais de um século a hegemonia portuguesa (e entre 1580 e 1640 hegemonia da União Ibérica) sobre a região garantiu incontável lucro aos lusitanos pela imposição do uso de navios portugueses durante o trajeto.

SÉCULO XVII: QUEDA IBÉRICA, ASCENSÃO HOLANDESA

A confrontação pela sucessão ao trono português no final do século XVI colocou em risco as possessões portuguesas. Em 1580, a União Ibérica foi for-mada, tendo Filipe II (I de Portugal) como novo rei. O problema é que o novo soberano era de origem hispânica, e isso na prática significou que todo inimigo espanhol era, então, um inimigo português. Na prática, isso significou constan-tes ataques às localidades de domínio luso ao redor do globo. Na África, houve uma nova corrida para tomar as então enfraquecidas bases de Portugal, cada vez mais subjugado pelo chamado “domínio filipino”, em alusão ao nome do monarca. Essa corrida foi liderada pela Companhia das Índias Ocidentais, da Holanda (na época, chamada de Províncias Unidas). Observando a fraqueza portuguesa, a ideia de Nassau era dominar completamente o comércio da cana--de-açúcar. Essa dominação passaria não apenas pela supremacia comercial e naval, já estabelecida pelos holandeses, mas também pelo controle do tráfico de escravos, mais bem explicado em seção posterior deste artigo, que fornecia

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a mão de obra usada de forma mais intensa nesse tipo de cultivo. Em poucos anos, a Companhia das Índias Ocidentais passou a dominar o tráfico negreiro em sua quase totalidade.

Com o fim da União Ibérica em 1640, porém, Portugal conseguiu reaver muito do que perdeu ou estava em vias de perder na África, restabelecendo sua posição em Angola e em grande parte do comércio de escravos no Atlântico Sul. Na metade norte do oceano, contudo, os holandeses permaneceram soberanos, inclusive em regiões antes firmemente comandadas pelos lusitanos, como a Costa do Ouro e o Benim.

Em meados do século XVII, o Mercantilismo é consolidado e os governos absolutistas intensificados. Segundo Pierre Deyon (2001), o Mercantilismo foi na verdade um mito, uma vez que a tarefa de enquadrar todas as ações políticas e econômicas dos Estados europeus naquela época em uma exata linha de ação é dificílima, por mais que as práticas demonstrem certas similaridades. Três dessas práticas são, sem dúvida, o protecionismo econômico, a ideia de que a economia mundial se resume a um jogo de soma-zero e a busca por metais preciosos. Observando a progressão do domínio holandês no comércio interna-cional, ingleses e franceses tomaram medidas drásticas a respeito. A França ele-vou significativamente suas tarifas de importação, praticamente fechando-se à entrada de produtos vindos de navios holandeses; os britânicos, que já dispu-tavam com a Holanda o posto de melhor marinha do mundo, promulgaram os Atos de Navegação em 1651, exigindo que os navios que fizessem negócio com a Inglaterra fossem de origem inglesa. Ambas as medidas afetaram seriamente os interesses holandeses, que foram ainda mais prejudicados por uma série de guerras navais anglo-holandesas das quais a Inglaterra saiu vitoriosa. O declí-nio das Companhias das Índias, principalmente a Ocidental, seguido de inúteis tentativas de ressuscitá-las, foi rápido e inevitável.

O SÉCULO XVIII E O AUGE DO TRÁFICO NEGREIRO

Por mais que a disputa entre franceses e ingleses tenha sido a princi-pal encontrada na África do século XVIII, cabe ressaltar que eles não foram os únicos a buscar seu lugar no continente africano, principalmente na África Ocidental. Suecos, dinamarqueses, portugueses e alemães, embora ainda não unificados, também tentavam conquistar localidades que pudessem fornecer matérias-primas, principalmente ouro e marfim (VISENTINI, 2010b). Isso basi-

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camente consistia em montar bases litorâneas e conseguir o direito de comer-cializar os produtos locais mediante negociação com os governantes da região. Essas negociações normalmente não exigiram o uso da força, uma vez que não necessariamente alteravam a hierarquia local e poderiam ser facilmente con-cluídas através da cessão de produtos aos nativos, como pólvora, bebidas alcoó-licas, ou utensílios domésticos.

Embora a busca por determinados bens em terras africanas seguisse substancial, era cada vez mais importante o fortalecimento do tráfico de escra-vos, sendo essa a mercadoria de grande valor à época. A escravidão, segundo Paul Lovejoy, é:

“(...) uma forma de exploração. Suas características específicas incluíam a ideia de que os escravos eram uma propriedade; que eles eram estrangeiros alienados pela origem ou dos quais, por sanções jurídicas ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição de um senhor; que eles não tinham direito à sua própria sexualidade e, por extensão, às suas próprias capacidades reprodutivas; e que a con-dição de escravo era herdada, a não ser que fosse tomada alguma medida para modificar essa situação” (LOVEJOY, 2002, p. 29-30).

A utilização do africano como mão de obra escrava não está ligada ape-nas à diferente sociedade da qual ele provinha, fator facilitador da sensação de inferioridade demandada pela relação escravo-senhor. As vantagens econô-micas apresentadas foram as grandes forças propulsoras do tráfico negreiro. O surgimento do tráfico negreiro não deve, no entanto, ser diretamente rela-cionado ao desenvolvimento da agricultura extensiva nas colônias europeias da América, na própria Europa e nas ilhas africanas. Em meados do século XV, os primeiros escravos obtidos pelos portugueses – normalmente via captura – muitas vezes eram usados em trocas realizadas com outras regiões africanas, estando os europeus em posição de intermediários; outras tantas vezes um bem fútil para o europeu, como um cavalo, poderia ser trocado por uma dúzia de escravos, e esses muitas vezes eram usados como domésticos na Europa (M’BOKOLO, 2009). Aliás, por mais que a América Latina tenha sido a mais importante importadora de escravos por mais de quatro séculos, a massiva migração de africanos em direção ao continente europeu não pode ser esque-cida, sendo Portugal, inclusive, um importantíssimo entreposto distribuidor de escravos por longos anos.

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Foi no início do século XVI que o tráfico negreiro passou a constituir um comércio regular e minimamente organizado. Por volta do ano de 1450, D. Henrique, encarregado de coordenar as ações portuguesas na África, já havia ordenado o estabelecimento de relações comerciais estáveis com os reinos africanos. No início do século XVI, também iniciaram as plantações de cana-de--açúcar nas ilhas do Oceano Atlântico, como Canárias, Madeira, e Cabo Verde. O modelo de plantação em larga escala e escravagista serviria de modelo não apenas ao Brasil, mas às possessões europeias no Caribe e em outros empreen-dimentos agrícolas do globo – além, claro, de ser o primeiro exemplo mais claro de colonização efetiva por parte dos europeus no continente africano, embora bem pontual.

Os governantes locais africanos conseguiram manter até o século XIX forte controle sobre o comércio litorâneo com os europeus, seja ele de escravos, de especiarias, ou de minérios. Dessa forma, as bases europeias na África fica-ram limitadas a fortificações concentradas na área costeira, sem grandes pene-trações ao interior. Essas penetrações eram monopolizadas pelos Estados do litoral, como Ashanti (Costa do Ouro) e Benim (Costa dos Escravos). Através da guerra ou do comércio, esses Estados subjugavam seus vizinhos inferiores do interior, estabelecendo uma espécie de relação tributária3 (VISENTINI, 2010b).

O tráfico, portanto, teve diferentes efeitos sobre a África. Conforme dito anteriormente, a região hoje pertencente à África do Sul, inicialmente coloni-zada pelos holandeses, mal conheceu o comércio de escravos. A África Oriental, muito influenciada pelos muçulmanos, costumava negociar escravos com os países árabes, tendo o comércio de escravos dessa região para as Américas apenas se fortalecido com a maior regulação do tráfico negreiro no Atlântico Norte. Os Estados litorâneos do Atlântico eram de características heterogêneas: embora normalmente fortes e burocráticos, outras vezes eram extremamente desorganizados (WALLERSTEIN, 2010, p. 31); nesses últimos casos, sofreram pesadas mudanças com relação ao tradicional, principalmente com a introdu-ção da arma de fogo e a exploração de rivalidades entre africanos. Como grande parte dos escravos capturados era de Estados do interior africano, o tamanho da população litorânea não sofreu grandes abalos. Já no interior houve um rearranjo generalizado, incluindo o desaparecimento de muitos povoados ou até mesmo de Estados, e muito provavelmente a população africana, em valo-

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res absolutos, diminuiu, embora a certeza desse dado talvez nunca seja obtida (M’BOKOLO, 2009, p. 331).

O SÉCULO XIX, A ABOLIÇÃO DO TRÁFICO LEGAL E AS NOVAS RELAÇÕES COMERCIAIS

A Grã-Bretanha, indiscutível potência hegemônica após as Guerras Napoleônicas, encerrou as atividades negreiras em seu imponente império ao longo da primeira metade do século XIX, e pouco a pouco as demais potências ocidentais fizeram o mesmo. Por mais que a abolição da escravatura fosse gradativamente consolidando um caráter supostamente humanitário na inserção africana por parte da Europa, sua principal motivação não era essa.

Desde o final do século XVIII o Reino Unido passava por uma grande mudança estrutural – a Revolução Industrial. Não era mais interessante levar milhares e milhares de homens inadaptados para uma sociedade completamente distinta da qual eles viviam, objetivando o trabalho em uma área rural que cada vez mais tendia à insignificância. Claro que nas colônias espalhadas pelo mundo, cujas situações majoritariamente agrárias não mudariam ainda por um longo tempo, o trabalho do negro era ainda de suma importância; porém, vale lembrar que a grande maioria dessas colônias latifundiárias não era colonizada por ingleses – e eram os ingleses os capazes de policiar os oceanos e controlar sua proibição ao tráfico.

O projeto europeu, liderado pela Coroa Britânica, incluía o fim do tráfico negreiro e o incentivo à industrialização, o que demandaria o assalariamento da mão de obra no mundo. Com todos tendo renda própria, a participação na cons-tituição de um grande mercado que viria a ser criado pelos países industria-lizados, principalmente pela vanguarda inglesa, seria generalizada e de suma importância para a fomentação do mesmo. Esse plano não excluía a África, e o grande objetivo europeu passaria a ser a introdução do africano à nova divisão internacional do trabalho (WALLERSTEIN, 2010).

Muitos escravos em terras europeias e americanas retornaram ao conti-nente, seja por revolta, seja por causar “perigos sociais”, como muitos europeus diriam (M’BOKOLO, 2009). O próprio Estado da Libéria foi criado por escravos que voltaram da América. O término do tráfico negreiro causou um acréscimo populacional na África, com um mercado potencial a ser satisfeito. Ademais, as nascentes indústrias europeias precisavam de matérias-primas que não eram

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encontradas em seu próprio continente, senão em terras africanas – e era o próprio nativo quem, a princípio, as propiciaria, e não o europeu.

Nasceu, então, um novo sistema de comércio legal entre europeus e afri-canos. Uma vez que o comércio de escravos não poderia mais ser uma fonte de renda segura – embora o tráfico ilegal tenha continuado por um bom tempo (M’BOKOLO, 2009) –, os Estados africanos tiveram de buscar novos negócios, ou desenvolver outros já existentes. Por exemplo, algumas regiões próximas ao Golfo da Guiné desenvolveram o mercado do óleo de palma, importantíssimo para a fabricação de sabão (KI-ZERBO, 1972). Outras regiões, como a Costa do Marfim, não tiveram a mesma sorte, já que a exploração desenfreada durante os séculos anteriores dizimou quase que completamente a população de elefantes. Porém, essa situação não durou muito. A avidez europeia em controlar negócios na África falava mais alto, não sendo cabível que os negócios estivessem sob o total controle dos africanos, embora muitos dos nativos lucrassem com tais empreendimentos.

A CONFERÊNCIA DE BERLIM: “PARTILHA DA ÁFRICA” OU APENAS UM MITO?

Não é consenso entre os historiadores a ideia de que a Conferência de Berlim (novembro de 1884 - fevereiro de 1885) de fato constituiu uma “partilha da África”4. Ao contrário do que se pode pensar, os Chefes de Estado e diplo-matas europeus, convocados pelo chanceler alemão Otto von Bismarck, não sentaram em uma mesa gigantesca, dispuseram o mapa do continente africano sobre a mesma e, utilizando réguas e lápis, dividiram a geografia africana. O que aconteceu foi o estabelecimento de regras quanto a três problemas encontrados pelas potências europeias na África: o primeiro deles dizia respeito à foz do Rio Congo, disputada por três Estados (Bélgica, Portugal e França); o segundo dizia respeito à navegabilidade dos rios de longa extensão; e o terceiro dizia respeito às circunstâncias que determinariam se uma região estava efetivamente ocu-pada ou não (M’BOKOLO, 2009).

O primeiro ponto na verdade se resumiu a um espetáculo de habilidade diplomática protagonizado pelo rei belga, Leopoldo II. Sem nunca ter posto um só pé na África e ao mesmo tempo investindo de seu próprio bolso uma enorme quantia de dinheiro, o monarca conseguiu a maior área privada do continente africano – o Estado Independente do Congo (EIC). Claro que não estavam ape-

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nas no empreendedorismo do rei as razões do sucesso encontrado. A Alemanha, com grandes planos para a região da atual Namíbia, preferia ter como vizinha na África um reino menor, como a Bélgica, do que o Reino Unido ou até mesmo a França (KI-ZERBO, 1972). Os Estados Unidos da América e os próprios alemães gostavam da liberdade comercial prometida pelo rei belga e planejavam fortes investimentos na região. Leopoldo II, acima de tudo, possuía uma grande “rede de amigos” (M’BOKOLO, 2009). Essa rede era constituída de exploradores como Henry Stanley, que talvez tenha sido o mais eficaz do século XIX e que propor-cionou através de suas expedições o aproximado desenho do EIC; de financistas estadunidenses, alemães e franceses; e de políticos capazes de acalmar os âni-mos ingleses.

O segundo ponto foi resolvido facilmente. Estando as grandes dúvidas postas quanto à navegação de rios que cruzavam terras pertencentes a bases de mais de uma potência, principalmente o Congo e o Níger, foram simplesmente estabelecidos os mesmos regramentos impostos pelo Congresso de Viena5 quanto aos rios internacionais. O terceiro ponto, no entanto, suscitou enorme debate e foi, de fato, o grande legado da conferência.

Os artigos 34 e 35 do capítulo VI do Ato Geral assinado em 1885 trata-ram de como tornar futuras ocupações do litoral africano efetivas, afirmando duas ideias básicas: novas investidas em regiões costeiras da África tinham de ser comunicadas a todos os pactuantes; e essas novas investidas tinham de ser acompanhadas de uma efetiva colonização para serem consideradas – isto é, firmar tratados com os locais, governar os locais e manter uma força coercitiva no local.

Os dois artigos citados promoveram ardente debate entre os que que-riam ampliar as decisões a todo o continente e aqueles que pensavam que as coisas estavam melhor assim, limitadas às regiões costeiras. A falta de uma regra que tratasse das áreas interiores do continente, inexploradas diretamente pelos europeus, fez com que o ímpeto das potências colonizadoras se voltasse rapidamente para tais regiões. Uma vez que o Ato Geral foi assinado da forma como foi, o resultado da Conferência de Berlim foi uma corrida desenfreada buscando os centímetros restantes da África da costa africana, que na verdade ainda eram muitos, e não a partilha efetiva do continente africano, que viria a ser feita normalmente através de acordos bilaterais. Citando Joseph Ki-Zerbo (1972, p. 76):

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“Em 1880, apenas uma décima parte da África estava vagamente ocupada pelos europeus. Em vinte anos, vão-se eles apoderar de todo o resto. Ocupam-se territórios porque se pensa ter-se necessidade deles para proteger ocupações anteriores. Depois ocupam-se porque estão ao alcance da mão. Em seguida, para chegar antes do vizinho. Acaba-se por ocupar por ocupar, como em tempo de penúria, porque ‘sempre pode fazer jeito’, nem que seja para trocar por qualquer coisa mais”.

A EUROPA CONHECE O INTERIOR DO CONTINENTE AFRICANO

Por mais que a presença europeia na África date do século XV, uma colonização mais ampla não se consolidou, à exceção da África do Sul, até o século XIX, e a África permanecia um “continente obscuro”, com um grande espaço desabitado no interior de seu mapa (HEADRICK, 1989). Isso não se dava somente pelo desinteresse por parte dos europeus em penetrar o interior africano, conhecer a África além de seu litoral era um grande desafio geográfico, sanitário e bélico.

As dificuldades geográficas e bélicas caminhavam juntas. Dado o perigo esperado dentro do continente, as embarcações que tentavam subir os rios carregavam pesados armamentos e enorme quantidade de suprimentos. A grandiosidade do arsenal europeu se justificava pela resistência africana que, ao contrário do que muitos podem pensar, não foi inexistente. Além de serem grandes conhecedores da área em questão, os nativos eram mais resistentes ao clima e às doenças, e na maioria das vezes guerreiros muito bem organi-zados – características que beneficiaram os colonizadores mais tarde, quando esses nativos vieram a lutar com suas bandeiras –, e apresentavam maior lon-gevidade. O barco a vapor era um desenvolvimento necessário à exploração da África, e o Reino Unido foi um pioneiro na sua utilização para reconhecer o inte-rior africano. No entanto, mesmo com esses barcos, grande quantidade de expe-dições sofria numerosas baixas. Não apenas os expedicionários pereciam: nas fortificações europeias do litoral africano, era enorme a proporção de morte por soldado europeu.

A grande causa das mortes era a malária, cuja ação encontrava muito maior resistência por parte do corpo dos nativos do que dos europeus. Essa “inimiga” foi pouco a pouco vencida pela introdução da medicina na África, sob a forma da quinina. A quinina era uma substância usada primeiro pelos jesuítas europeus para o tratamento da malária, e cuja origem eram os Andes – portanto,

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de difícil obtenção. Na década de 1820, franceses finalmente obtiveram a fór-mula básica da substância, e logo ela passou a ser comercializada (HEADRICK, 1989, p. 63). Na segunda metade do século, as expedições passaram a alcançar muito maior sucesso através de seu uso.

Antes mesmo desse avanço tecnológico e médico quanto à penetração ao interior, missões católicas e protestantes marcavam presença no litoral europeu. Desde o século XVIII, um novo espírito encorajava os europeus a alcançar tal façanha. Filósofos como o inglês David Hume descreviam os negros como algum ser de caráter inferior, que demandava uma espécie de “salvação”. Segundo Headrick (1989, p. 57), a revitalização do proselitismo cristão – na forma do ativismo religioso incorporado pelas missões –, a abolição do tráfico de escravos e uma curiosidade jamais vista reanimaram o ânimo de uma bur-guesia que passou a investir em projetos que visavam ao descobrimento do interior africano.

Passou, então, a existir uma polaridade na África entre o protestan-tismo, capitaneado pelas missões inglesas, e o catolicismo, capitaneado pelos franceses. As missões geralmente atuavam em áreas africanas com presença da nação europeia de onde vieram. No Estado Independente do Congo, coberto por expedições comerciais e embrenhado no interior do continente, as mis-sões não tiveram tanta força. Dotados de um discurso filantrópico, visando a “civilizar” os “bárbaros” africanos, os missionários não tiveram um efeito com-pletamente negativo na África, promovendo ações e práticas que as potências imperialistas raramente fariam com suas próprias mãos – e, quando as faziam, visavam à modernização de estruturas que maximizariam a exploração econô-mica (VISENTINI, 2010a). Todavia, conforme dito em seção anterior, o discurso humanitário do imperialismo europeu viria a dar forças ao caráter exploratório, que acabava encoberto pela filantropia.

A figura do explorador foi de enorme importância para a consolidação da Europa no interior africano no decorrer do século XIX. Reconhecendo áreas e fazendo inventários dos recursos naturais e dos desafios a serem encontrados, esses aventureiros normalmente eram contratados por sociedades privadas para tais empresas, muitas vezes não atuando, portanto, em prol de sua nação de origem. Alguns exploradores, como Livingstone ou Speke – ambos ingleses –, foram de certa forma figuras que humanamente desbravaram terras ainda não atingidas pelo interesse europeu. Já Henry Stanley chegou ao continente

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como enviado de um jornal nova-iorquino para encontrar Livingstone, à época desaparecido. Andava pela África com uma expedição gigantesca e mal cuidada, cujas baixas eram enormes. Conhecido por sua falta de escrúpulos, ele traba-lhou em nome de inúmeras sociedades comerciais, talvez a mais famosa delas a criada pelo rei Leopoldo II visando à delimitação do Congo (KI-ZERBO, 1972).

AS ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS E ECONÔMICAS ESTABELECIDAS PELA EUROPA

Os domínios europeus sobre a África se basearam, segundo Visentini (2010b), em dois tipos de organização política (direta e indireta) e duas formas de dominação (colônia e protetorado). A organização direta ocorria quando não havia organismo intermediário no território africano entre o governo da metró-pole e a área ocupada, estando o representante europeu dotado de plenos pode-res. A organização indireta dava à metrópole caráter dominante, mas havia no território ocupado organismos que poderiam aconselhar ou até mesmo legis-lar. A colônia, mais relacionada à ocupação francesa, possuía forças militares e policiais híbridas (europeus e nativos), organização diretamente vinda da metrópole e poderia ser rearranjada socialmente conforme a livre e espontânea vontade da potência colonizadora. O protetorado, muito usado pelos ingleses na África e podendo ser relacionado à organização política indireta, era conso-lidado através de acordos com chefes nativos, mantendo uma organização de caráter razoavelmente próprio e um governo local, embora estivesse protegido militarmente por um Estado europeu e mantivesse suas relações diplomáticas sob domínio europeu.

Já a organização econômica, segundo Coquery-Vidrovitch e Moniot (1985), baseava-se em alguns pilares. Os investimentos em infraestrutura eram um deles. Concentrados 72,4% na África do Sul até 1900, faziam com que a União Sul-Africana acabasse, por conseguinte, obtendo melhores resultados econômi-cos. Em 1936, os investimentos aumentaram substancialmente na África, dimi-nuindo a supremacia sul-africana. As possessões britânicas comercializavam muito mais e tinham menor investimento de capital público, enquanto a parte francesa investia muito menos no geral e mais através da economia estatal.

Outro pilar é a economia de pilhagem. Sobretudo nas possessões france-sas, essa prática sobrecarregou as colônias, esgotando as matérias-primas com sua visão de curto prazo e sem qualquer tipo de investimento infraestrutural –

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aí está a grande explicação para o fraco rendimento das colônias francesas. No Congo Belga, por exemplo, as companhias comerciais encorajadas por Leopoldo II tinham muito maior competência na pilhagem, em larga margem devido aos grandes investimentos feitos pelo próprio rei no final do século XIX.

Dois pilares (ferrovias e exploração mineira) estão estreitamente relacio-nados com os investimentos em linhas férreas africanas até a Primeira Guerra Mundial, feitos em sua quase totalidade para evacuação de recursos minerais tirados da África. Com ambos os pilares firmemente postos também na África do Sul, a exploração mineira praticamente financiou a própria infraestrutura sul-africana e direcionou a atenção de todo o continente para a procura por riquezas minerais, que representavam mais da metade das exportações sul--africanas às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

A economia de plantation6 é outro pilar apresentado pelos autores. Tendo mais sucesso em terras com colonos brancos, como a África do Sul, ou com sociedades comerciais bem organizadas, como os Camarões Alemães e o Congo Belga, esse tipo de organização econômica não obteve os mesmos resul-tados em outras colônias devido à dificuldade dos africanos em estabelecer pro-duções agrícolas estáveis e rentáveis, especialmente diante de um contexto de crise e instabilidade como o começo do século XX. Os produtos do campo, sem necessariamente serem advindos de plantio, mais rentáveis na África Negra da primeira metade do século passado foram a lã, o algodão, o óleo de palma, o cacau, e o amendoim.

O FIM DO IMPERIALISMO: PROCESSOS DE INDEPENDÊNCIA

No continente africano, houve duas grandes “ondas” de independên-cias: a primeira, entre a Segunda Guerra Mundial e a década de 1960, quando as metrópoles europeias ainda conseguiam controlar o processo e manter vínculos neocoloniais com os novos países. Nesse período, a transição para a independência ocorria de forma majoritariamente pacífica. A segunda onda, por sua vez, compreendeu o período entre a década de 1970 ao início dos anos 1990, nas colônias portuguesas e nas de minoria branca, onde a violência foi maior.

Apesar da intensidade que a mobilização pela independência tomou após a Segunda Guerra Mundial, é necessário frisar que a resistência e o nacio-nalismo africanos mostraram-se contínuos desde as primeiras tentativas de

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dominação estrangeira e duraram até que a independência fosse de fato read-quirida. Cabe compreender como e por que a emancipação das colônias se deu em determinado período.

A Segunda Guerra Mundial teve múltiplos efeitos no que tange à situa-ção das colônias. O envio de africanos a outras partes do mundo e o esforço de guerra serviram para a superação da ideia de submissão construída no conti-nente e para uma visão mais abrangente do homem branco, que agora também estava em luta, não era mais apenas o dominador imperial. Os soldados africa-nos, regressos ou não, teriam um importante papel na luta pela independência. Outra consequência é a debilidade em que se encontravam as antigas potências europeias; com uma infraestrutura destruída e uma vitória conquistada através de um alto custo humano, a Europa não seria mais capaz de manter seus vastos impérios, ao menos não da mesma forma nem por muito tempo.

Enquanto isso, as duas grandes potências que emergiam após a guerra, Estados Unidos e URSS, defendiam fortemente o anticolonialismo e o direito dos povos de decidirem sobre seus próprios destinos. A primeira, consciente da fra-gilidade europeia e temendo que os soviéticos assumissem e influenciassem os rumos do continente, defendeu sua já existente política de abertura comercial que permitiria acesso aos recursos naturais africanos e liberdade para realizar os investimentos antes feitos pelos europeus. A URSS via na divisão colonial um reflexo dos interesses econômicos dos países capitalistas; quanto à África, espe-cificamente, a posição soviética seria materializada nos partidos comunistas e sindicatos de orientação marxista presentes nos países colonizadores; após a guerra, certos partidos de esquerda chegariam ao poder na Europa e, junto com as mudanças que propunham ao seu próprio país, também viriam políticas mais brandas para com as colônias.

A Organização das Nações Unidas, afirmando a igualdade entre os povos e o direito à autodeterminação, tornou-se um espaço para discussão onde os paí-ses menores e mais frágeis tinham voz. Um ponto relevante, que foi um avanço se comparado à fracassada Liga das Nações, é o envio de corpos expedicioná-rios às regiões instáveis onde a guerra era iminente. Obviamente, o ativismo da ONU ficou limitado pelos interesses das grandes potências (e seu poder de veto dentro do Conselho de Segurança), pelas contradições inerentes à organização e pelos entraves burocráticos de tamanha estrutura institucional.

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As seções seguintes deste capítulo serão destinadas ao estudo de casos de independência de colônias das quatro principais potências europeias pre-sentes na África, sendo elas Grã-Bretanha, França, Portugal, e Bélgica, a fim de compreender as diferenças entre as relações metrópole-colônia, bem como analisar seu papel na independência dessas.

INDEPENDÊNCIA DAS COLÔNIAS BRITÂNICAS: O CASO DA NIGÉRIA

A presença britânica na África ocorreu de diferentes formas, variando conforme os territórios e as culturas dominados. Tratar as antigas colônias britânicas como um grupo uniforme, portanto, não é possível – fato que se acentua quando notamos a desigualdade no grau de impacto da administração colonial em cada um desses territórios. Para compreender melhor a forma de dominação britânica na África e principalmente o processo político que levou as antigas colônias à independência, restringimos o foco à região denominada de África Ocidental Britânica, composta pelos Estados que hoje correspondem a Gana, Serra Leoa, Gâmbia, e Nigéria. Assim, realizaremos nesta parte do capí-tulo um estudo de caso relativo à colônia da Nigéria, a partir do qual pretende-mos evidenciar semelhanças e traçar padrões que se repetiram na história das independências das colônias britânicas.

O surgimento da Colônia Britânica da Nigéria ocorreu em 1914, através da fusão dos protetorados do Norte e do Sul da região sob a mesma unidade política. Após definidos os contornos do território, as bases do governo britâ-nico foram estabelecidas com o emprego da chamada “administração indireta”, que consistia na utilização de estruturas e tradições das tribos já existentes na região para o estabelecimento da administração britânica. Na prática, os líderes tribais seguiam governando suas terras, desde que coletassem impostos para a Coroa britânica e que seguissem as instruções dos Conselhos Legislativo e Executivo, formados por oficiais britânicos. Esse sistema, implementado pela Grã-Bretanha em todas as suas colônias, tinha como base a ideia de que os povos colonizados precisavam ser preparados para que pudessem eventual-mente se autogovernar – o que, à época da colonização, permanecia uma pers-pectiva muito distante.

Na década de 1920, observa-se um amadurecimento no cenário político nigeriano. A emergência de uma nova e educada elite, preparada para iniciar

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uma oposição ao colonialismo inglês, substitui a reivindicação de retorno às estruturas políticas pré-coloniais levantada pelos antigos grupos opositores. Essa nova elite, educada em bases ocidentais, buscava preservar e aumentar sua influência dentro do novo sistema, através da conquista de espaços dentro da administração colonial. Foi a partir desse grupo que surgiu o movimento nacio-nalista nigeriano. Num primeiro momento, tanto no caso nigeriano quanto nas demais colônias britânicas da região, esses movimentos tinham como objetivo a defesa dos interesses dessa nova elite dentro do sistema colonial britânico, através do aumento na participação no processo governamental a nível regio-nal. Assim, esse grupo consolidaria sua influência no sistema, o qual ainda não apresentava a opção pela independência como uma alternativa viável.

Às demandas dessa elite os dirigentes coloniais responderam realizando pequenas concessões. Em 1922, a criação de uma nova Constituição permitiu, pela primeira vez na África inglesa, a eleição de nativos nigerianos ao Conselho Legislativo. A criação de espaços na política voltados para os nigerianos incentivou o aumento da participação política da população, e, a partir daí, pode-se notar também o crescimento em número e em influência de partidos políticos nacionais na Nigéria. Tanto nas eleições de 1922 como nas posteriores, em 1928 e 1933, é possível observar uma hegemonia do Partido Democrático Nacional da Nigéria (Nigerian National Democratic Party – NNDP, na sigla em inglês), sob a liderança de Herbert Macaulay, considerado precursor do nacio-nalismo nigeriano (MONTCLOS, 2000). Essas concessões contribuíram para que ocorresse um alinhamento entre as ambições políticas e sociais da nova elite junto às da metrópole, uma vez que o domínio britânico permanecia van-tajoso para essa elite, pois assegurava seu controle político local.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial pôs fim à estabilidade do domínio colonial alcançada durante o período entreguerras. O desdobramento do con-flito, bem como as consequências advindas dele, influenciou de diversas formas tanto o fortalecimento do nacionalismo e a demanda por autogoverno da parte dos nigerianos, como a mudança na postura britânica em relação às suas colô-nias.

No que diz respeito às alterações do ponto de vista nigeriano, a Guerra criou novas condições sociais e econômicas que os nacionalistas podiam explo-rar em busca de seu fortalecimento. Essas condições pressionaram os nacio-nalistas no sentido de uma radicalização de seus programas e da promoção

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de demandas mais urgentes por reformas sociais e avanços constitucionais. Em primeiro lugar, a reorganização da economia colonial, devido ao esforço de guerra da Grã-Bretanha, que criou indústrias e levou novas infraestruturas para os centros urbanos, provocou um aumento na população nas grandes cida-des, o que significava um público maior para a difusão das ideias nacionalistas. Além disso, a exigência de maior esforço por parte dos agricultores, que deviam suprir a mesma demanda de trabalho em menor número, espalhou um senti-mento anticolonialista na zona rural, cujos habitantes, posteriormente, consis-tiriam no braço armado e revolucionário da elite nigeriana, como observaram Fage e Oliver (2008). As divisões sociais também sofreram alterações: os solda-dos enviados para lutar no exterior conviveram com etnias nigerianas supos-tamente rivais de maneiras não usuais na colônia, ao passo que o aumento da presença de imigrantes temporários brancos em solo nigeriano desconstruiu a divisão prática entre negros e brancos na sociedade e enfraqueceu também o mito da superioridade branca. O fortalecimento do nacionalismo se fez sen-tir na demanda por compensações pelo apoio concedido à potência colonial durante a guerra – único do tipo em territórios britânicos. Assim, os nigeria-nos obtiveram em 1943 a possibilidade de indicar dois representantes para o Conselho Executivo da colônia, órgão antes formado exclusivamente por envia-dos da potência colonial.

O domínio colonial britânico, por sua vez, viu-se fortemente abalado pelo conflito, que destruiu o mito da invencibilidade colonial: apesar de fazer parte do grupo de países considerados vencedores da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha vivenciou expressivas invasões em suas colônias asiáticas, o que ameaçava a sua capacidade de governar e defender seus territórios coloniais. A isso se somavam as pressões advindas internamente, de membros do Escritório Colonial7, que defendiam a independência dos africanos, e externamente, no que diz respeito aos interesses norte-americanos e soviéticos, as duas novas superpotências que emergiram do conflito e que detinham opiniões hostis aos impérios coloniais. Outro fator que contribuiu de maneira fundamental para a mudança da mentalidade britânica em relação às suas colônias foi a descrença na ideia de um Império Britânico. As colônias, antes motivo de orgulho, no pós--guerra se tornaram motivo de embaraço, necessitando ser justificadas com frequência. A questão econômica também era latente: o Estado britânico se encontrava profundamente abalado após a Segunda Guerra. As desvantagens

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da manutenção do Império colonial passaram, assim, a superar as vantagens, e os territórios coloniais ou eram voluntariamente entregues aos seus habitantes ou vivenciavam o colapso da entidade colonial.

Os primeiros indícios de mudança na relação da Grã-Bretanha com suas colônias se encontraram em 1940, com um aumento substantivo no valor do dinheiro direcionado às colônias, através de um ato chamado Colonial Development and Welfare Act (Ato Colonial de Desenvolvimento e Bem-Estar). Esse simbolizou o fim de uma relação basicamente extrativa entre metrópole e colônia, substituindo por uma noção de cooperação. Além disso, em 1943, os nigerianos obtiveram a possibilidade de indicar dois representantes para o Conselho Executivo da colônia, órgão antes formado exclusivamente por envia-dos da potência colonial. Entretanto, até 1946, a Grã-Bretanha não demons-trava nenhuma intenção de permitir que as colônias se autogovernassem – as alterações políticas se limitavam a respostas às crescentes demandas da elite nigeriana, como demonstrou a constituição introduzida em 1945 que, dentre as principais alterações no sistema político nigeriano, estabeleceu a incorporação da região norte ao sistema político central, estendeu a representação nigeriana nos Conselhos Executivo e Legislativo e, finalmente, subdividiu o país em três regiões com três corpos representativos próprios.

As diferentes forças políticas nigerianas dirigiram fortes críticas a essa Constituição. A fim de evitar distúrbios como os que haviam ocorrido na colônia que corresponde ao atual Estado de Gana, a administração britânica respondeu propondo a revisão da mesma através de uma série de conferências locais, as quais culminaram numa conferência nacional. Tais consultas foram as primei-ras a trazer as províncias do norte para a política nigeriana, e é a partir delas que se pôde notar uma polarização entre as províncias do norte e do sul, bem como o a divisão étnica8 como fator dominante na política nigeriana. A falta de importância do governo central e federal, em relação às regiões, foi também um dos traços principais da política nigeriana até a independência.

A independência da Índia, importante colônia britânica na Ásia, em 1947, conforme apontam Fage e Oliver (2008), tornou a inevitabilidade da concessão de independência aos territórios africanos evidente. Ciente disso, a potência colonial optou pela transferência gradual de poder para a emergente elite nige-riana, através de um processo pacífico e com perturbações mínimas, ao final do qual o governo britânico perderia o controle político do território, mas man-

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teria a influência econômica sobre o mesmo. O objetivo definido então pelo Escritório Colonial era a independência das colônias unidas sob a Comunidade de Nações Britânicas9.

Já com o objetivo de uma futura independência em mente, a nova Constituição resultante das consultas previa um conselho central de ministros com maioria nigeriana, no qual a região norte teria direito a um terço dos eleitos bem como à metade das cadeiras na Câmara dos Representantes, o que confe-ria predomínio político ao NPC, partido dominantemente relacionado ao norte. Na prática, como observam Fage e Oliver (2008), esse partido governava atra-vés de uma coalizão com outras forças políticas importantes, como o Conselho Nacional dos Cidadãos Nigerianos (NCNC, na sigla em inglês).

A independência da Nigéria ocorreu em 1º de outubro de 1960, resul-tante de negociações pacíficas entre a colônia e a metrópole, através de um ato do Parlamento Britânico que a conferiu ao país. O caráter extremamente regionalista do país era causa de preocupação quanto à preservação da sua uni-dade – o que parecia amenizar-se sob a liderança de Alhaji Sir Abukakar Tafawa Balewa, o qual gozava de alto prestígio no norte, no sul, e também em nível internacional.

INDEPENDÊNCIA DAS COLÔNIAS FRANCESAS:O CASO DO NÍGER

Diferentemente da Grã-Bretanha, a França organizava politicamente seus territórios sob duas grandes federações: África Francesa Ocidental e África Francesa Equatorial. Sob esses grandes corpos políticos, os territórios consti-tuintes eram controlados através de uma administração direta e altamente cen-tralizada, dentro da qual os habitantes africanos não possuíam nenhuma repre-sentação, até as mudanças realizadas em razão da Segunda Guerra Mundial. Para melhor compreender o processo de independência das colônias francesas na África, analisaremos o caso do Níger.

O Níger foi a última colônia formada no seio da África Francesa Ocidental – à qual nos referiremos, a partir de agora, como AOF, sigla que advém do fran-cês Afrique Occidentale Française. O status de colônia, adquirido em 1922, implicou duas importantes mudanças ao então território militar: primeira-mente, permitiu um grau de autonomia administrativa e financeira ao Níger, à semelhança das demais colônias, dentro dos limites da federação. Em segundo

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lugar, implicou um maior direcionamento de recursos da metrópole ao desen-volvimento das estruturas sociais e econômicas da colônia, necessidade antes ignorada devido ao papel secundário que o território exercia, qual seja, conferir continuidade terrestre às possessões francesas na África Ocidental.

O entreguerras foi importante para a configuração política do Níger, uma vez que foi nesse período que a administração colonial suprimiu a importância das lideranças pré-coloniais graças à criação de uma nova categoria social, a dos auxiliares administrativos, detentores então do poder efetivo. O retorno de imi-grantes e de antigos combatentes à colônia contribuiu também para fragilizar a autoridade dos antigos líderes. Além disso, a crise dos anos 1930 afetou profun-damente o território: o corte de gastos impactou as infraestruturas sociais, e as precárias condições de vida da população se agravavam com a falta de investi-mento na área sanitária – o período foi marcado por epidemias anuais.

A crise, entretanto, não provocou o surgimento de movimentos de resis-tência armada, conforme observa Coquery-Vidrovitch e Goerg (1992). Por outro lado, o descontentamento com o regime colonial se manifestou no oeste do país, através de uma espécie de canal religioso, com a criação do movimento hawka. Organização fortemente hierarquizada, a hawka atuou como uma espé-cie de contracultura que procurava lutar contra a lógica colonial no interior da colônia.

Segundo Djibo (2003), o fim da Segunda Guerra Mundial foi o ponto de partida de uma evolução política no Níger – e também nas demais colônias francesas –, que lhe conferiu, primeiro, o status de território de além-mar, para depois, em 1958, tornar-se uma República e, finalmente, em 1960, um Estado independente membro da Comunidade Francesa.

Podem-se observar os primeiros indícios de mudança na postura da França em relação às suas colônias nas reformas idealizadas pela Conferência de Brazzaville em 1944. O General de Gaulle, então presidente da França, ciente da ajuda fundamental fornecida pelas colônias africanas durante o curso da guerra, propôs um grupo de reformas que previa o aumento de direitos políti-cos aos cidadãos africanos, dentro de uma indivisível e indissolúvel união entre a França e seus territórios no além-mar, como apontam Fage e Oliver (2008). Além disso, esse grupo abrangia também o aumento no volume de investimento econômico destinado à colônia, caracterizando uma maior preocupação da potência colonial para com seus territórios. Essas mudanças, ainda que não pre-

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vissem de forma alguma a concessão de autogoverno aos territórios coloniais, estão no seio da transição política que culminaria na independência desses.

Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram cruciais para a aproximação do pensamento político francês em direção à independência de suas colônias. A emergência das superpotências encerrou a dominação britâ-nica e francesa nos países não industrializados e impôs uma forte pressão rela-tiva à independência das possessões coloniais. As dificuldades sociais, econô-micas e políticas da França, decorrentes dos impactos da guerra, levaram seus governantes a renunciar, gradualmente, ao controle colonial, através de uma concessão progressiva de poder político aos africanos. Por fim, na medida em que a opção britânica pela independência se fazia clara, a vontade dos líderes africanos de se submeter à dominação francesa diminuía.

A abertura concedida pelos franceses teve reflexos imediatos na colônia. Djibo (2003) aponta que, no Níger, as primeiras movimentações políticas por parte da população surgiram como reação às reformas previstas em Brazzaville, consideradas insuficientes. Formou-se, assim, um grupo, chamado de “Grupo da 2ª Conferência de Brazzaville”, o qual, através da denúncia dos abusos da administração colonial e da contestação do sistema estabelecido, marcou o iní-cio de uma nova era no território do Níger.

As eleições para a segunda Assembleia Constituinte francesa, em 1946, motivaram esse grupo a orientar suas atividades de forma a adquirir uma formação política – e assim nasceu o Partido Progressista do Níger (PPN). A Constituição da IVª República Francesa favoreceu as atividades políticas, uma vez que, ao criar a União Francesa, essa constituição transformou as colônias em territórios do além-mar, cada um dotado de um Conselho Geral formado por dois colégios – o primeiro reservado aos cidadãos franceses e o segundo reser-vado aos cidadãos locais, desde que fossem beneficiários da cidadania francesa. Conforme observam Fage e Oliver (2008), embora os representantes africanos fossem dotados de poderes limitados, o espaço de representação era impor-tante para o desenvolvimento político, na medida em que conferia experiência política significante para que a elite africana exigisse governar seu próprio país.

A demanda por autogoverno aumentou significativamente nos territó-rios da AOF durante a década de 1950. Partidos políticos, organizações de troca e o movimento jovem exerceram forte pressão sobre o governo francês, já fra-gilizado pela derrota no Vietnã e pelo conflito argeliano. Os líderes franceses,

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buscando evitar a criação de problemas em uma nova frente, prepararem-se, nesse momento, para considerar a mudança em seus territórios africanos.

A lei-cadre, também conhecida como lei Gaston Defferre, de 1956, con-firmou as ideias acima expressadas. Como observa Djibo (1992), ela conferiu autonomia interna aos territórios da AOF, introduzindo na federação o sufrágio universal e a constituição das assembleias territoriais, em busca de uma “afri-canização” das estruturas políticas. As reformas realizadas representavam um caminho sem volta na abertura política da colônia à sua população. Além disso, a divisão de poder entre o governo francês e os territórios se tornava insus-tentável na prática, pois contrariava a Constituição de 1946. Assim, de acordo com Fage e Oliver (2008), a independência total já era inevitável, só não ainda reconhecida pelos dirigentes franceses.

Em 1958, o retorno do General De Gaulle à presidência da França repre-sentou um novo momento na relação francesa com suas colônias: ele propôs, através de um referendo, que as nações africanas escolhessem ou pertencer à Comunidade Francesa como repúblicas autônomas, ou adquirir independên-cia total, o que significava o fim da ajuda financeira francesa. O Níger, nesse período, contava apenas com duas formações políticas que rivalizavam entre si: o PPN, seção local da Junta Democrática Africana (RDA, na sigla em francês); e a seção local do PRA (Partido do Reagrupamento Africano). A campanha em torno do referendo animou o debate político no Estado e provocou a defesa de posições radicais por ambos os lados. Djibo (1992) observa que, o conjunto de forças diversas e pouco coerentes, às margens dos partidos políticos de então, influenciou decisoriamente para a vitória da resposta positiva ao referendo, o que significava a permanência do Níger dentro da Comunidade Francesa.

O Níger, então governado pelo PPN-RDA – partido que apoiou o sim ao referendo e, assim, garantiu sua predominância nas instâncias políticas do país –, foi, em 1958, proclamado um Estado membro da Comunidade Francesa, a República do Níger, cuja Assembleia territorial se tornou Assembleia Constituinte, e seus membros assumiram o título de deputados. Consagrando-se como força política, o partido dissolveu o Sawaba – outra força política do Níger –, se tornando assim o único partido do país.

Em 1959, a França anunciou o fim das federações, que seria consequên-cia do referendo implementado no ano anterior – a decisão da maioria dos paí-ses por permanecer sob a Comunidade Francesa como Estados membros extin-

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guiu a necessidade de uma instituição administrativa de caráter colonial, caso das federações. Assim, a independência do Níger foi obtida através do aprovei-tamento de lacunas políticas propositadamente criadas pelo governo colonial, com uma transferência de poder direta para a elite africana, no caso, o PPN-RDA. Como aponta Djibo (2003):

“Por um procedimento de exclusão, a nova administração da Républica ‘democrática’ e ‘igualitária’ do Níger se beneficia de uma organização institucional que a permite ocupar legalmente um terreno adquirido através da violência e das irregularidades eleitorais para conduzir o país à independência sob a direção do PPN-RDA, partido único, em 3 de agosto de 1960” (DJIBO, 2003, p. 58).

A independência do Níger foi, à semelhança das demais colônias da AOF, atingida através de um processo pacífico, cujo principal resultado foi a apreensão do poder pela elite, a qual resultou do processo colonial. A França abriu caminho às ideias de independência durante um período difícil, em que o conflito argeliano e a ameaça de uma guerra civil interna a impediam de pos-suir mais uma frente com a qual se preocupar. À realidade da independência somava-se o desejo francês de manter sua influência local através da ajuda financeira, agora permitida graças a uma emenda na Constituição francesa. No fim de 1960, as antigas colônias africanas se encontravam dispostas em 14 ter-ritórios soberanos e membros da ONU.

INDEPENDÊNCIA DA COLÔNIA BELGA:A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO

O Congo Belga, atual República Democrática do Congo, ao contrário das outras colônias africanas, foi por muito tempo tratado como uma propriedade da Coroa, e não do Estado belga; a família real sempre manteve interesses polí-ticos e econômicos diretos no território, mesmo após uma mudança formal que tornou o Congo uma colônia do Estado. O sistema colonial belga refletia o abso-lutismo do rei Leopoldo, no sentido da concentração acentuada de poderes em apenas uma pessoa. O ministro das Colônias era quem tinha as funções execu-tivas, cargo quase sempre ocupado por um católico conservador; a autoridade colonial se centrava em Léopoldville, cujo nome mudou para Kinshasa após a independência. Apesar de a administração ser oficialmente indireta, os belgas eram bastante imperiosos e intervencionistas em qualquer assunto.

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Quanto à economia, a empresa europeia Union Minière du Haut-Katanga era a de maior importância, visto que a mineração foi a principal atividade de exploração no Congo, especialmente na região rica em minérios que se projeta sobre o território da Zâmbia (KI-ZERBO, 1972). Na agricultura, o trabalho cam-ponês era forçado, mas assalariado, garantindo alta oferta de mão de obra. De modo geral, havia algumas concessões a outras empresas privadas, mas tudo continuava basicamente nas mãos do Estado belga.

Com a Segunda Guerra Mundial, a administração colonial ganhou mais autonomia, porque o governo da Bélgica estava exilado em Londres. Devido ao conflito e às demandas resultantes (por minério, especialmente), o número de dias de trabalho dos congoleses aumentou e tropas foram enviadas para opera-ções no norte da África, do que resultaram algumas revoltas pontuais de traba-lhadores. Com o aumento da articulação das massas e sua exigência por melho-res condições de vida, algum tipo de resposta teria de ser dada em matéria de direitos políticos. Assim, foi estabelecido um plano para o desenvolvimento da colônia; além disso, com o boom dos mercados de produtos agrícolas e mine-rais no pós-guerra, a colônia teria seus próprios meios de fomentar melhorias nas áreas de educação, moradia, saúde, e distribuição de água. Entretanto, as reformas se mostraram muito lentas e só obtiveram resultados efetivos para europeus que viviam na colônia.

Apesar disso, à medida que outros países africanos se tornavam inde-pendentes e as notícias chegavam ao Congo, a discussão sobre a emancipação política aumentou e surgiram planos variados para que esse objetivo fosse atin-gido gradualmente. Nesse sentido, eleições municipais foram marcadas para o final do ano de 1957, o que não evitou novos tumultos no ano de 1959, em Léopoldville.

Os tumultos se deveram a uma reunião da Association du Bas-Congo (Abako), um dos partidos mais ativos na busca pela independência, liderado pelo futuro presidente Joseph Kasavubu. O encontro foi reprimido pelos belgas, e os confrontos geraram tensão na cidade e grande adesão das massas, com des-truição de símbolos do colonialismo. Desse modo, os belgas perderam o con-trole da área de acesso ao mar, e alguns meses depois as massas rurais aderiam aos atos políticos.

Como resultado dos tumultos e da consequente pressão internacional, os belgas concluíram que permitir pacificamente a independência era o melhor

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caminho de assegurar algum tipo de influência futura no Congo, usando a admi-nistração colonial já existente (DAVIDSON, 2008). Após o diálogo direto entre autoridades belgas e líderes africanos, fixou-se a data da independência para 30 de junho de 1960 e eleições nacionais e provinciais para maio do mesmo ano.

Entretanto, havia uma discussão interna no Congo, quanto ao futuro estado emancipado. A Abako, presidida por Joseph Kasavubu, defendia um Estado federal moderado em que as regiões tivessem forte autonomia; Patrice Lumumba, líder africano de destaque, propunha um Estado unitário centrali-zado e forte. Quanto a essas diferentes visões, as eleições refletiram a proemi-nência das ideias de Lumumba, mas foi necessária uma coalizão que, apesar de delicada, formou-se entre os dois principais líderes: Lumuba como primeiro--ministro (chefe de governo) e Kasavubu como presidente. O governo formado enfrentaria uma variedade de desafios para gerir a instabilidade do país, com destaque para quatro: a desordem do exército nacional, a desordem dos qua-dros burocráticos, o separatismo da província de Katanga, e o enfraquecimento constitucional do regime (DAVIDSON, 2008).

Em anos anteriores, as tropas do exército haviam sido africanizadas, com aceitação dos belgas; após a independência, ocorreram amotinações por parte dos congoleses contra os comandantes europeus. Lumumba tentou paralisar as revoltas, tornando o exército completamente africano e mantendo os belgas apenas como conselheiros. Mesmo assim, a desconfiança mútua prevaleceu: os congoleses tinham medo de que os belgas os submetessem novamente, e os belgas tinham medo da violência e do ódio africanos. Assim, o governo estava sem um controle forte de seu próprio meio de segurança.

Quanto à administração do país, os quadros burocráticos continuaram totalmente europeus com uma participação africana insignificante, que tinha de ser graduada e ocupava cargos como o de escriturário. Com a independên-cia, a ameaça de demissões ou expulsões levou os belgas a fugir, enquanto os antigos escriturários assumiam posições de diretoria; apesar de esses serem capazes de exercer tais funções, a desordem era tão grande que a situação da burocracia não era muito melhor que a do exército para prover um controle centralizado.

A província do Katanga (atual Shaba), por sua vez, havia sido tratada de forma diferenciada pelos belgas, dada sua riqueza em recursos minerais; fora uma parte distinta da colônia, sobre a qual o controle e os interesses econômi-

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cos eram maiores. Antes da independência, as empresas europeias, com desta-que da Union Minière du-Haut-Katanga, viram no líder local Moisés Tshombe a figura que precisavam para terem colaboração na região e garantir a conti-nuidade de suas atividades. Aproveitando-se do rompimento em Kinshasa, Tshombe declarou a independência de Katanga em 11 de julho de 1960, com apoio belga. Apesar disso, posteriormente, o apoio belga foi negado, e o estado de Katanga se encontrou sem reconhecimento de nenhum país. A região do Kasai do Sul também declarou independência em agosto do mesmo ano e, por ser a principal área produtora de diamantes, aprofundou a crise do governo Lumumba. Foi nesse ponto que a ajuda da ONU foi pedida.

Por fim, ocorreu uma divisão entre os próprios governantes. Os dois líde-res eleitos, Lumumba e Kasavubu, tinham uma coesão muito fraca; durante a crise, acabaram isolando-se um do outro e, por fim, demitindo-se mutuamente (KI-ZERBO, 1972). Então, o coronel Mobutu Sese Seko anunciou o estabeleci-mento de seu próprio “Colégio de Comissários”, formado por estudantes uni-versitários, ameaçando a constitucionalidade do regime. Nesse contexto geral de crise, as tropas da ONU se posicionaram para defender a residência de Lumumba.

Em julho, forças belgas intervieram no país para proteger a população europeia, o que foi primeiramente aceito pelo governo congolês, considerando seu propósito estrito. Entretanto, a Bélgica começou a apoiar o separatismo de Katanga, e o governo pediu a intervenção da ONU e dos Estados Unidos, além de um “olhar próximo” da URSS. Entretanto, a fidelidade da ONU ao governo eleito no Congo era questionável, e sua posição no país ao longo da crise foi bastante dúbia (VISENTINI, 2008). Os Estados Unidos e a Bélgica, então, mostraram um forte apoio a Mobutu e a Kasavubu, enquanto que o apoio soviético a Lumumba não teve efeito prático na crise. Então, Lumumba decidiu deixar a proteção da ONU e tentar reunir suas forças, mas acabou sendo capturado por autoridades de Kinshasa, transferido para Katanga e assassinado em janeiro de 1961.

Na primeira metade do mesmo ano, com a mediação da ONU, uma recon-ciliação foi buscada, mas sem grandes resultados, dadas as discordâncias: o grupo remanescente de Lumumba continuou com a visão de um Estado uni-tário e radicalmente contra os belgas; Katanga desejava manter algum tipo de autonomia dentro de uma futura federação, já que perdera o apoio internacio-nal; Kinshasa oscilou entre as duas posições; o coronel Mobutu assumira a lide-

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rança do exército. Um governo que mantinha o antigo vice-primeiro ministro do governo Lumumba, Antoine Gizenga, com Cyrille Adoulla, foi montado, mas conseguiu apenas reduzir um pouco o caos reinante no país.

Enquanto isso, a ONU buscava acabar com a secessão de Katanga, tendo o Secretário-Geral sido enviado para negociar com o líder Tshombe, mas morreu em um acidente de avião na Zâmbia em setembro. A forte presença das tro-pas da ONU continuou; entre momentos de maior conflito e outros de negocia-ções infrutíferas, a ONU promoveu uma ação militar final em janeiro de 1963 para pôr fim à secessão e desarticular as forças separatistas, obtendo sucesso. Entretanto, desde a desintegração do poder central em 1960, várias províncias tentaram separar-se do país, multiplicando os conflitos locais e dividindo o país em múltiplos combates entre as tropas da ONU, o exército nacional e os dissi-dentes.

No início do ano de 1964, em decorrência da vitória das forças da ONU, Tshombe havia fugido para Madri, onde começara a organizar uma frente opositora, possuindo muitos recursos obtidos durante a luta pela secessão de Katanaga. As empresas europeias, conscientes de que ele continuava um “amigo do Ocidente”, também lhe prestaram apoio. Assim, à medida que o governo de Adoula não conseguia lidar com os problemas que lhe eram postos, a possibilidade de Tshombe assumir o governo se tornou factível, e Kasavubu o nomeou primeiro ministro.

O novo governo logo enfrentou mais uma onda de rebeliões que toma-ram conta do Congo, dentre as quais a proclamação de um governo revolucio-nário pela grande região de Kisangani A instabilidade gerada pelas rebeliões provocou uma impressão de que o regime em Kinshasa estava a ponto de colap-sar, pois cerca de um terço do território já não estava sob seu controle. Esse foi o momento em que paraquedistas belgas, transportados por aviões estaduni-denses, ajudaram o governo de Tshombe a massacrar os revoltosos no leste do país, ainda influenciado pelas ideias de Lumumba, que recebera auxílio de Che Guevara e alguns cubanos (VISENTINI, 2010).

O governo de Kasavubu e Tshombe, entretanto, também entrou em desa-cordo, resultando na demissão do último. Numa última tentativa de organiza-ção, novas eleições foram marcadas para março de 1965. Nesse momento, o alto comando militar decidiu instalar o coronel Mobutu como presidente, em 25 de

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maio de 1965; o parlamento, convocado repentinamente e reprimido, aprovou unanimemente o golpe de Estado.

Os anos de 1960-1965, pelos quais o povo congolês passou, representa-ram um período de crueldade e desordem na vida cotidiana do país. Apesar da manutenção de muitas empresas europeias, das escolas e de outros aspectos da rotina diária, as numerosas mortes de pessoas próximas e os conflitos inter-mitentes formaram um conjunto de condições que explicam por que o golpe de Estado foi aceito pelo parlamento que, de fato, representava a população; o legado da primeira experiência republicana foi negado, e o regime de Mobutu, aceito (DAVIDSON, 2008).

INDEPENDÊNCIA DAS COLÔNIAS PORTUGUESAS: O CASO DE ANGOLA

As colônias portuguesas permaneceram intactas sob o domínio de sua metrópole após a Segunda Guerra Mundial. Portugal não participou diretamente do conflito, mas a influência dos anos de guerra seria sentida indiretamente ao longo do tempo. As exportações provenientes de Angola aumentaram muito durante o período conflituoso, o que indica um esforço específico da população colonial nesses anos. Partindo do pós-guerra, podem-se delinear duas fases até a independência: a primeira mais estável, de 1945 a 1960, e a segunda com um crescimento acentuado dos movimentos nacionalistas, de 1961 a 1975.

A condição de atraso das colônias portuguesas refletia a situação de sua metrópole europeia. Submetido ao regime fascista de Salazar, chamado de “Estado Novo”, Portugal só buscou algum tipo de modernização entre 1950 e 1960, mas ainda assim restrita a questões econômicas, sem promover uma evo-lução sociopolítica, o que posteriormente geraria violência (KI-ZERBO, 1972). Salazar buscou atrair o capital estrangeiro para um forte investimento em uma rede de infraestrutura e logística moderna que trouxesse crescimento eco-nômico, mas sempre com foco nos interesses europeus, já que outro objetivo importante era que as colônias absorvessem o excedente populacional portu-guês, além de complementarem a economia metropolitana. A composição do investimento mudou, e o capital estrangeiro entrou em áreas estratégicas, como a mineração, que teve especial participação da República Federal da Alemanha, enquanto que Inglaterra e Estados Unidos seriam mais presentes a partir de 1964, principalmente.

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As medidas de Salazar, ainda que arcaicas, se destinavam a manter seu império colonial, gerando rendas a Portugal e garantindo algum papel ao país no novo contexto internacional. Qualquer liberalização ou reforma era vista como um perigo que poderia dar espaço a outra potência imperial, especial-mente aos Estados Unidos; no ano de 1960, pensaram ter alcançado um ponto de equilíbrio entre a obtenção do desejado crescimento econômico e a mudança estrutural das bases sociais, ou seja, não transferiram mais autonomia aos afri-canos (DAVIDSON, 2008).

Apesar de algumas críticas e da desconfiança internacional quanto ao tratamento dado por Portugal aos africanos, como prisões de manifestantes ou execuções, Salazar soube usar o contexto da Guerra Fria a seu favor, apresen-tando os movimentos nacionalistas africanos como comunistas e, por isso, rece-bendo o apoio que precisava. Para minar as críticas que recebia da ONU quanto à independência das colônias, foi feita uma reforma constitucional que conferia a elas o status de províncias ultramarinas, dando ao Estado Novo o argumento de que elas eram uma extensão do território português, e não áreas coloniais submetidas ao regulamento específico previsto pela Carta da ONU.

A política de Salazar promoveu maior centralização administrativa e, por conseguinte, maior capacidade de coerção do Estado português. O recru-tamento para o trabalho e o cultivo obrigatório de culturas para exportação também foram duas implementações centrais à economia, gerando resultados vultosos (DAVIDSON, 2008). A existência de trabalho forçado aumentou, mas-carada sob o nome de “trabalho contratado”. A educação era majoritariamente católica, mas a quantidade de analfabetos era muito grande. Tal instrução era destrutiva porque buscava “aportuguesar” os africanos, através da língua e dos costumes, negando tanto quanto fosse possível seu idioma nativo. Desse modo, eram preparados para uma vida futura onde seriam comandados pelos brancos.

Perto do fim da década de 1950, a panfletagem pela independência, ile-gal, tinha se tornado comum. No ano de 1961, uma série de ataques a fazendei-ros europeus, além da tomada de postos policiais e militares, foi um prenúncio da violência pela qual Angola passaria. A resposta portuguesa foi cruel; caça aos guerrilheiros, bombardeios e execuções em massa levaram à morte de dezenas de milhares de angolanos (KI-ZERBO, 1972).

Em virtude disso, Portugal recebeu críticas internacionais pela dura repressão que fazia, resultando no anúncio de algumas reformas que ou tinham

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pouco efeito prático, ou estavam sendo implementadas tarde demais, se con-siderar-se que os africanos pediam mais que meras melhorias na qualidade de vida. Dez anos depois, novas reformas seriam anunciadas com o mesmo propósito de atenuar as críticas recebidas, com resultados novamente fracos (DAVIDSON, 2008). Assim, promessas como a de conferir autonomia gradual às “provinciais ultramarinas” no início da década de 1970 já não correspondiam à realidade do avanço que o movimento nacionalista obtivera naquele momento.

O estímulo ao estabelecimento dos brancos nas colônias continuou e aumentou sempre. A desapropriação de terras de africanos em proveito de europeus também foi grande, gerando uma enorme massa de desapropriados que trabalhariam como assalariados nas fazendas dos brancos, com claras des-vantagens. Além disso, ocorreram manobras feitas por militares, os ordena-mentos rurais, que retiravam a população de áreas onde a revolta nacionalista era mais forte e colocavam-na em aldeamentos ou grandes espaços vigiados pelo exército. Isso desestruturou tanto a agricultura como a atividade pastoril angolanas. O crescimento agrícola advindo de tais medidas foi explosivo para as exportações, mas era socialmente insustentável. O problema dos aldeamentos é que o exército não conseguia manter um controle firme sobre eles, e, por isso, eles falharam. A partir de 1968, o uso de bombardeios em áreas tomadas pelos movimentos nacionalistas se tornou mais comum.

Os anos finais da luta nacional tiveram contornos mais violentos em Angola porque o país tinha uma população maior de brancos que outras colô-nias portuguesas, era rico em minerais (por isso, importante), e houve rivais internos que minaram o principal partido, o Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA), cujo líder era Agostinho Neto. Apesar de não possuir grande experiência em questões militares, o MPLA foi treinado e recebeu ajuda da URSS, de Cuba, da Iugoslávia, da Europa Oriental, e da China Comunista.

Houve outros dois partidos de maior proeminência em Angola. A Frente Nacional de Libertação da Angola (FNLA), liderada por Holden Roberto e que nascera no norte de Angola, na fronteira com o Zaire. A FNLA foi um partido que se envolveu na independência desse último país e manteve vínculos com a polí-tica de lá, tornando-se um problema na luta do MPLA, até mesmo destrutivo, pois sofria forte influência de Mobutu e dos Estados Unidos (DAVIDSON, 2008). A União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) se originou de uma separação do FNLA, e seu líder era Jonas Savimbi. Esses dois partidos não

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desempenharam um papel proeminente na guerra de independência e agiram basicamente destruindo ou atrapalhando o MPLA. A UNITA manteve até mesmo um acordo com os portugueses, voltado contra o MPLA.

Apesar do crescimento do orçamento militar português e da ajuda dos países da OTAN, a metrópole não soube lidar com as estratégias irregulares e pouco tradicionais usadas pelos angolanos. Assim, mesmo com uma superio-ridade clara para reprimir a luta pela independência não apenas em Angola, mas em suas outras colônias, Portugal sofreu um grande desgaste, pois os gas-tos com armamentos eram muito altos. Em abril de 1974, um movimento de jovens oficiais que adquiriram um novo olhar político de suas experiências nas guerras de repressão na África derrubou o regime de Salazar com as palavras “descolonização e democratização”, a chamada Revolução dos Cravos, que teria resultados definitivos sobre o fim da repressão sobre as colônias.

No ano de 1975, o país se encontrava divido entre áreas dominadas por cada um dos três partidos. O novo regime de Portugal conduziu a um acordo com os três movimentos, sem grande utilidade para diminuir a luta interna, mas que fixou uma data para a independência, à qual Portugal respeitou, retirando--se do país. Ao longo do ano, o MPLA conseguiu expulsar o FNLA da capital Luanda e obter o controle de 12 dos 16 distritos de Angola, mostrando-se ainda capaz de dominar o que restava. Nesse momento, Mobutu, com apoio chinês (que, devido à ruptura com a URSS, deixara de ajudar o MPLA) e estadunidense, ajudou as forças do FNLA através da fronteira com o Zaire, enquanto a África do Sul invadia a fronteira sul do país, através da Namíbia, com ajuda dos líderes do FNLA e da UNITA, numa ação conjunta para pressionar o MPLA. Apesar disso, a independência da República Popular de Angola foi declarada em 11 de novem-bro de 1975, a data acordada com Portugal, por Agostinho Neto, em Luanda. Os outros dois partidos procederam da mesma forma e criaram uma União entre os dois movimentos; entretanto, apenas o governo do MPLA foi reconhecido internacionalmente, e o controle sobre Luanda continuou resistindo a novos ataques (KI-ZERBO, 1972). Com a ajuda emergencial cubana, o MPLA conse-guiu bloquear a ofensiva sul-africana e expulsar, já no ano de 1976, a que veio do Zaire. A África do Sul, já sem suporte internacional, desistiu de continuar a invasão.

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Sob o jugo europeu: do imperialismo branco às guerras de independência africanas 99

PONTOS A DISCUTIR

1) A ocupação do continente africano pelos europeus ocorreu de forma pla-nejada? Quais as implicações que as diferentes motivações europeias (rota para o Oriente, tráfico negreiro) tiveram na consolidação do imperialismo no século XIX?

2) Qual a importância da Conferência de Berlim na distribuição das colônias europeias no continente africano? Pode-se considerá-la realmente uma “par-tilha da África”?

3) De que maneira as estruturas coloniais implementadas pelas metrópoles influenciaram os processos de descolonização? É possível traçar um paralelo entre elas?

Notas1 Outras versões do debate podem ser vistas, por exemplo, em SARTRE, 2001 ou CHOMSKY; HERMAN, 1979.2 Internacional Comunista – no caso de Lenin e Luxemburgo, a segunda – é a forma através da qual a associação entre diversos partidos socialistas e comunistas no mundo era chamada. 3 Essa relação acontece quando um Estado se encontra subordinado a outro, seja através do paga-mento de tributos ou da cessão de produtos, escravos ou riquezas.4Uma visão que contrasta com a apresentada de M’Bokolo pode ser encontrada em PAKENHAM, 1992.5 Congresso que foi realizado após as Guerras Napoleônicas, em 1815, e que estabeleceu liberdade de navegação em rios internacionais europeus.6 O plantation se caracteriza pelas grandes porções de terra, pela monocultura, pelo uso de mão de obra barata, e pelo direcionamento da produção ao setor externo, tendo sido usado também no Brasil.7 O Escritório Colonial era o órgão do governo britânico responsável pela administração de todas as colônias pertencentes à Grã-Bretanha.8 O Estado correspondente à atual Nigéria era, na época pré-colonial, dividido em diferentes grupos étnicos de variados tamanhos. A rivalidade preponderante, entretanto, estava presente entre três grupos maiores: Hausa na região Norte, Ibo no Lest, e Yoruba no Oeste (SCHWARZ, 1966).9 A Comunidade de Nações (Commonwealth of Nations) é uma organização intergovernamental composta pelos países que pertenciam ao antigo Império Britânico (Disponível em: http://www.thecommonwealth.org/Internal/191086/191247/the_commonwealth/. Último acesso: 20 nov. 2012).

Referências1. CHOMSKY, N.; HERMAN, H. The Political Economy of Human Rights, Volume I: The

Washington Connection and Third World Fascism. Boston: South End Press, 1979.

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2. COQUERY-VIDROVITCH, C.; GOERG, O. L’Afrique occidentale au temps des Français: colonisateurs et colonisés (c. 1860-1960). Paris: La Découverte, 1992.

3. COQUERY-VIDROVITCH, C.; MONIOT, H. África Negra: de 1800 a nuestros días. Barcelona: Labor, 1985.

4. DEYON, P. O Mercantilismo. São Paulo: Pioneira, 2001.5. DJIBOU, M. Les enjeux politiques de la colonie du Niger (1944-1960). Autrepart, n. 27,

p. 41-60, 2003. Disponível em: http://horizon.documentation.ird.fr/exl-doc/pleins_textes/autrepart2/010032246.pdf. Último acesso: 18 nov. 2012.

6. FAGE, J. D.; OLIVER, R. The Cambridge History of Africa. Vol. 8. Reino Unido: Cambridge University Press, 2008.

7. HEADRICK, D. Los Instrumentos del Imperio. Cidade do México: Alianza Universidad, 1989.8. HUNT, E. K. História do Pensamento Econômico: uma perspectiva crítica. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2005.9. KI-ZERBO, J. História da Africa Negra – II. Lisboa: Publicações Europa-América, 1972.10. M’BOKOLO, E. África Negra: História e Civilizações – Tomos I e II. São Paulo: Casa das Áfricas,

2009.11. MAZRUI, A. A.(Org.). História geral da África VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010.12. NKRUMAH, K. Neocolonialism, The Last Stage of Imperialism. Disponível em: http://www.

marxists.org/subject/africa/nkrumah/neo-colonialism/index.htm Último acesso: 16 nov. 2012.

13. PAKENHAM, T. The Scramble For Africa: White Man’s Conquest of the Dark Continente From 1876 to 1912. Nova Iorque: Avon Books, 1992.

14. SARTRE, J. Colonialism and Neocolonialism. Nova Iorque: Routledge, 2001.15. SCHWARZ, W. Tribalism and politics in Nigeria. The World Today, Vol. 22, No. 11, 1966.

Disponível em: http://www.jstor.org/stable/10.2307/i40017741. Último acesso: 28 dez. 2012.

16. VISENTINI, P. G. F. A África Moderna. Porto Alegre: Leitura XXI, 2010a.17. __________. A África na Política Internacional: O Sistema Interafricano e sua Inserção Mundial.

Curitiba: Juruá, 2010b.18. WALLERSTEIN, I. A África e a Economia-Mundo. In: AJAYI, J. F. A. (Org.) História Geral da

África VI: África do Século XIX à Década de 1880. Brasília: UNESCO, 2010. p. 27-43.

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4A FORMAÇÃO DOS

ESTADOS AFRICANOS: CONFLITOS E CONSTRUÇÃO

DE CAPACIDADE ESTATALAlexandre Spohr, Luiza Andriotti & Luíza Cerioli1

A estruturação dos Estados africanos, após a concessão de independên-cia política pelas metrópoles europeias, enfrentou diversos desafios provocados pela ausência dos recursos necessários à legitimação e consolidação das estruturas estatais. A situação em que essas inde-pendências ocorreram foi marcada por uma nova forma de dependên-cia das antigas colônias para com as potências; isso acabou por minar muitas das iniciativas dos governos, levando à maioria dos conflitos percebidos no continente nesse período. O presente capítulo se focará nesse momento da história africana de construção e de busca pela afir-mação dos Estados africanos. Com esse objetivo, conduziremos estu-dos de caso focando nos seguintes países: República Democrática do Congo, Ruanda, Burundi, países de colonização portuguesa, Serra Leoa, Costa do Marfim, Libéria, Etiópia, e Somália.1 Graduandos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os autores agradecem a revisão de Luíza Schneider e a colaboração do Prof. Luiz Dario Ribeiro.

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A formação dos Estados africanos: conflitos e construção de capacidade estatal 103

INTRODUÇÃO

O processo de construção dos Estados africanos ocorreu em grande parte após a independência dos mesmos, que em sua grande maioria ocorreu na década de 1960. As bases para a formação desses Estados foram as estrutu-ras criadas durante o período colonial, e, para garantir a legitimidade interna e externa de seus governos, os novos governantes precisaram se apoiar nas fortes relações com as antigas metrópoles. Assim, a formação dos Estados africanos ocorreu ainda em condição de forte dependência econômica e institucional das antigas metrópoles europeias (MAZRUI, 2010). Nessa situação, a liberdade de ação dos novos governos foi em grande medida sacrificada, e elementos de fra-queza do poder público foram mantidos, sendo muitos os desafios para esses novos países.

OS GOVERNOS AFRICANOS (IN)DEPENDENTES

A criação de instituições que serviriam para organizar e dirigir os países africanos ocorreu sob a influência e, muitas vezes, sob a tutela das antigas metrópoles europeias, que escolheram ou cooptaram as lideranças que ascenderam ao poder após as independências. Em muitos casos, deixar-se coop-tar pelas potências europeias era a forma mais assegurada de garantir a sua independência. Além disso, os governos e parlamentos africanos demoraram a incluir uma parcela mais significativa da população originalmente africana, deixando de ser predominada por descendentes dos colonizadores. Os mode-los institucionais europeus foram adaptados pela maioria dos países africanos em vias de formação. O parlamentarismo britânico, por exemplo, foi copiado nas antigas colônias dessa metrópole. O início do período independente dos países africanos, devido à tentativa de utilizar os modelos políticos europeus, foi caracterizado por um temporário pluralismo político, herança do final da colonização (M’BOKOLO, 2009). As constituições e o processo jurídico e judi-cial dos países independentes foram adaptados de seus equivalentes europeus. Contudo, esses modelos não condiziam com a realidade africana e acabaram por impedir a construção de Estados legítimos e por perpetuar as elites políti-cas escolhidas pelas metrópoles.

Os Estados africanos, quando de sua independência, não eram dotados das capacidades estatais necessárias à manutenção de sua soberania interna,

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principalmente devido à forma como sua independência, na maioria dos casos, fora concedida. Os grupos que assumiram o controle dos países africanos não tinham os instrumentos necessários à manutenção da legitimidade de seus governos, que lhe propiciassem um desenvolvimento econômico constante e igualitário; requerendo, assim, apoio externo para manterem seu controle (CLAPHAM, 1996). A forma como a independência foi concedida aos africanos mantinha muitas das vantagens que os europeus tiravam do continente, redu-zindo os gastos em que esses incorriam com a manutenção do controle sobre os africanos. As concessões feitas aos europeus e a importância desses para a estabilidade do governo reduzia as possibilidades de atuação dos governan-tes, mantendo sua dependência para com os europeus. Contudo, alguns chefes de Estado africanos se aproveitaram das disputas entre potências estrangeiras para atrair recursos para a consolidação de seus governos.

Os integrantes das elites africanas criaram instrumentos de manutenção de seus privilégios sobre o poder público, se valendo das práticas imperialistas europeias concernentes à educação e à administração pública. Assim, a europei-zação da cultura das elites tornou a ascensão social mais difícil, enfraquecendo os elementos culturais africanos, que eram vistos por muitos como um retro-cesso em sua busca por ascensão (ELAIGWU, 2010). O idioma oficial adotado pela maioria dos países africanos foi o de suas metrópoles, que foi utilizado pela burocracia estatal, pela maioria das redes de informação e pelos integrantes da cúpula do setor privado. Contudo, esse idioma não é o falado pela maior parte da população, que acabou por ser marginalizada de todos os processos políticos (CHAZAN et al., 1999).

Quase todos os governos africanos independentes resolveram se dedicar à melhoria da educação em seus respectivos países. As estratégias por eles ado-tadas com esse intuito tinham diferentes focos, alterando o peso dado aos dife-rentes níveis educacionais. Os africanos de forma geral viram na educação uma forma de ascensão social, sendo recorrentes casos em que pais, ou até mesmo pequenos vilarejos, faziam sacrifícios para permitir às crianças uma melhor educação, o que lhes permitiria defender melhor os interesses da comunidade frente às elites políticas (idem, 1999). Contudo, a preocupação com a educação se centrava na cópia do modelo de ensino europeu; os conteúdos mais africanos eram frequentemente criticados pelos pais, que davam maior valor a certifica-

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dos equivalentes aos europeus, que supostamente trariam um melhor nível de vida para seus filhos.

Uma das prioridades defendidas pelos governantes africanos era a cul-tura, que era vista como parte integrante do desenvolvimento dos novos países. Essa defesa se concretizou na criação de símbolos nacionais, como bandeira e hino, numa tentativa de utilizar o nacionalismo das lutas anti-imperiais e trans-formá-lo em patriotismo. A forma mais empregada para a promoção da cul-tura foi a utilização do ensino (M’BOKOLO, 2009). Nessa estratégia, buscou-se a retomada de elementos originalmente africanos, o que, como mencionado ante-riormente, foi criticado por muitos pais, que percebiam a educação nos moldes europeus como a única forma de ascensão social. Contudo, essa preocupação com a educação acabou por ser abandonada quando as economias africanas apresentaram os primeiros sinais de crise, sendo um dos primeiros elementos a serem eliminados dos gastos públicos (CHAZAN et al., 1999).

Os governos que traçaram os rumos após a independência dos países africanos foram marcados, em sua maioria, por um caráter nacionalista em suas políticas. Esse nacionalismo tomou diferentes formas no continente africano, sempre buscando o desenvolvimento dos países africanos e a difusão e per-petuação das culturas africanas. Contudo, para atingir seus objetivos, os líde-res nacionalistas africanos tiveram que lidar com a questão da diversidade de seus países em termos étnicos, linguísticos, sociais e religiosos. Muitas vezes, a estratégia adotada para lidar com essa situação foi a simples negação dessas diferenciações, o que provocou situações de impasse que resultaram em diver-sos dos conflitos que afetaram o continente; a falta de uma identidade nacional agregadora possibilitou essa situação (THOMSON, 2010).

A presença de indivíduos com tantas diferenças em um mesmo territó-rio é em boa parte consequência da manutenção das fronteiras coloniais como definição do espaço dos países africanos. Essa divisão, que fora criada com o intuito de facilitar a conquista e a manutenção do subjugo dos povos africa-nos, se perpetuou até os dias de hoje, com pouca alteração e algumas tentativas falhas de integração e de divisão territorial. As relações entre os países africanos foram pouco desenvolvidas no início de sua fase independente, principalmente devido à intensidade de suas relações com as potências coloniais. Contudo, as relações interafricanas foram utilizadas por diversos chefes de Estado dentro

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de suas estratégias nacionalistas, através da defesa de certos grupos étnicos ou, às vezes, através da disputa por certos territórios (M’BOKOLO, 2009).

A questão das etnias africanas ocupou um papel central na criação de dis-putas durante o período colonial e após a independência dos países africanos. A recorrente tribalização1 dos conflitos africanos foi um importante instrumento das potências imperialistas para promover sua dominação sobre os povos africanos e continua a ser utilizado para permitir a intervenção no continente (THOMSON, 2010). A justificativa de conflitos através de elementos tribalísti-cos nada mais é do que a perpetuação desses instrumentos de dominação. Não há, nem nunca houve conflitos intrínsecos aos grupos étnicos africanos, nem há rivalidades históricas entre eles que justifiquem as proporções dos conflitos africanos do século XX. Esses conflitos, que a África continua presenciando no século XXI, foram, em grande parte, causados pela manipulação das diferenças étnicas africanas2 e de disputas regionais por recursos para manufaturar “con-flitos históricos” que enfraquecessem os africanos e permitissem o subjugo de uns sobre os outros, sob o controle europeu (THOMSON, 2010). A atual organi-zação dos governos africanos apresenta diversos casos em que o poder político é monopolizado por um grupo étnico, ou mais, que controla a distribuição dos recursos públicos. Nesse contexto, a etnicidade se torna um elemento de mobi-lização social, unindo indivíduos desprivilegiados pelo poder público contra o sistema em vigor em busca de uma distribuição dos recursos que lhes benefi-cie. Assim como a etnia, a religião foi um importante elemento de segregação dos povos africanos e de manipulação pelas potências coloniais na conquista do continente, resultando em conflitos vigentes até os dias de hoje. Atualmente, as principais religiões presentes no continente são o islamismo, o cristianismo e o animismo, que costumam incorporar elementos das grandes religiões mono-teístas às crenças originalmente africanas.

O nacionalismo dos governos africanos independentes se desenvolveu tanto à direita quanto à esquerda, acabando com o pluralismo político inicial. Contudo, a maioria dos governantes optou inicialmente por um modelo que ficou conhecido como o socialismo africano, que muitas vezes não buscava seguir os preceitos do socialismo soviético ou chinês, adaptando a ideologia aos requisitos para a manutenção do apoio ocidental. Esses novos regimes, em sua maioria, buscavam reduzir a dependência externa e a pobreza, e promover o desenvolvimento econômico, a construção do Estado, um estado de bem-estar,

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e as culturas africanas (M’BOKOLO, 2009). As lideranças pregavam o retorno dos valores e de outros elementos das sociedades africanas anteriores, que, segundo muitos governos, não possuíam divisões sociais. A partir dessa ideo-logia, os Estados africanos passaram a deter um poder decisório e regulatório cada vez maior, mas sem alcançar os resultados esperados.

Devido à situação dos países africanos independentes e ao objetivo comum de promover seu desenvolvimento, a centralização do poder no governo foi uma característica comum e, de certa forma, aceita pela população para aquela situação. A criação de regimes de partido único, que acabaram com o pluralismo político inicial no continente, atingiu quase todos os novos Estados africanos. Contudo, a centralização do poder significou a concentração do con-trole dos recursos africanos, que não foram distribuídos para as populações de forma equilibrada. As instituições políticas foram se atrofiando, com o acúmulo de funções pelo executivo, que muitas vezes foi marcado pela importância da figura do líder político (THOMSON, 2010). Nessas circunstâncias, elementos de ineficiência administrativa do governo emergiram, como a corrupção e o clien-telismo. Os recursos públicos foram utilizados para a manutenção dos líderes no poder, privilegiando grupos fortes, em detrimento daqueles sem influência sobre os processos decisórios. O descontentamento de diversos setores levou a uma redução drástica da legitimidade desses governos, que em sua maioria foram derrubados (ELAIGWU, 2010).

O socialismo africano não conseguiu manter sua força por muito tempo, sofrendo ataques intelectuais de todos os lados. Alguns regimes sucumbiram ao capitalismo de Estado, enquanto outros imergiram mais profundamente no socialismo científico. De qualquer forma, o autoritarismo e a centralização se mantiveram, e os problemas não foram resolvidos. Devido à fraqueza da socie-dade civil africana, a maioria das mudanças de poder ocorridas nos países do continente aconteceu através de intervenção militar. Os militares, parte impor-tante da estrutura estatal de qualquer país, tiveram um papel crucial na evo-lução política dos países africanos, detendo uma visão normalmente indepen-dente dos etnicismos e regionalismos que possuem um forte papel na formação das políticas de muitos governantes. Com o fracasso de diversos regimes políti-cos autoritários no continente, os exércitos tomaram para si a responsabilidade de governar seus respectivos países. A falta de legitimidade dos governos ante-riores e a escassa experiência democrática no continente explicam em parte a

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atitude dos militares (THOMSON, 2010). Contudo, as causas que provocaram a decisão dos militares pelos golpes foram diferentes: recuperar o país da ina-bilidade de gerência do governo civil, impedir mudanças sociais drásticas que prejudicariam os interesses do exército, ou alterar a sociedade, derrubando o governo tradicional.

As decisões militares pelos golpes se repetiram em diversos momentos críticos durante a história dos países africanos: entre os anos de 1952 e 1990 foram observados 71 golpes militares no continente africano, derrubando regi-mes em 60% dos países (THOMSON, 2010). Contudo, esses golpes foram em sua maioria caracterizados por um baixo número de mortes e conflitos: uma vez detendo um poder militar muito maior do que o resto da população, o exér-cito não encontrou uma oposição que ousasse resistir à sua mobilização. Os governos militares geralmente se propunham a devolver o poder aos civis após a recuperação do país. Contudo, os governos militares acabaram por manter as mesmas práticas que eles condenavam anteriormente, como a corrupção e a má gerência da máquina estatal. Os governos militares resultaram normalmente em aumento das despesas com esse setor, uma maior cooperação entre o exér-cito e as elites tradicionais e a repetição de práticas dos governos anteriores.

A INSERÇÃO INTERNACIONAL DA ÁFRICA

Durante a colonização, a construção de infraestrutura, educação e saúde foi consequência da exploração e da incorporação do continente à divisão inter-nacional do trabalho. Já durante o período independente, a construção estrutu-ral se deu sem romper radicalmente com as características do período colonial, através de ajudas provindas de um “relacionamento privilegiado” com as gran-des potências, que resultaram não só em uma absorção da cultura estrangeira (sistemas constituintes, métodos educacionais), mas, também, em um aumento da dependência e da dívida externa (MUNANGA, 1993).

Os Estados africanos independentes surgiram durante a bipolaridade da Guerra Fria, passando a ser, então, cooptados ou pelo lado do capitalismo Ocidental, ou pelo lado Oriental, associado à ideologia soviética. O processo de descolonização coincidiu com a chamada Primeira Guerra Fria, período no qual a África era um território estrategicamente marginalizado. Entretanto, visto que o objetivo maior de Washington era a contenção do comunismo, a África não poderia ser totalmente ignorada pelos EUA. Assim, a despeito de seus inte-

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resses estratégicos e econômicos limitados, Washington considerava essencial manter sua atenção em países específicos para a contenção da influência sovié-tica, com no caso de Zaire, Marrocos, Etiópia, Somália, e Quênia, dando apoio diplomático e ajuda econômica (THOMSON, 2010).

Todavia, na segunda metade da década de 1970, o interesse de ambas as potências pela África cresceu rapidamente. Três fatores, interconectados, vão dirigir tais mudanças na conjuntura africana nesse período da Guerra Fria. O primeiro fator é que, nesse período, se dão as independências tardias, princi-palmente das colônias portuguesas, e as conseguintes revoluções nacionalistas e emancipacionistas. O segundo fator é que os EUA, desgastados pela Guerra do Vietnã e pelos seus exorbitantes gastos militares, decidem lançar mão da Doutrina Nixon, que, em suma, retirava o país dos confrontos diretos e guer-ras, dava maiores responsabilidades aos seus aliados nas tarefas de segurança regional e, também, estabelecia um relacionamento estratégico com a China (VISENTINI, 2010). Esse novo cenário criava uma correlação de forças no sis-tema internacional que desfavorecia a União Soviética, que passa então a buscar um novo equilíbrio estratégico através de seu relacionamento com o Terceiro Mundo.

Visto nunca ter se envolvido em projetos colonialistas e possuir uma ideologia antimperialista a, a URSS parecia ser um aliado natural da causa dos novos países africanos. Entretanto, durante as décadas de 1950 e 1960, os soviéticos não colocavam o continente africano no topo de suas prioridades, sendo que, mesmo mostrando simpatia aos movimentos nacionalistas, não haviam se envolvido diretamente até então (THOMSON, 2010). Logo, o terceiro fator é que, na década de 1970, a URSS passa a ter um papel mais ativo na África, vendo nesse continente um locus frutífero para a expansão do socialismo. Os soviéticos passaram então a intensificar sua colaboração – principalmente no fornecimento de armas – aos movimentos revolucionários e nacionalistas do Terceiro Mundo. Entretanto, os soviéticos não eram os únicos comunistas no continente, tendo os cubanos participado ativamente nesses movimentos, estando eles intensamente comprometidos com a causa ideológica, assim como os chineses, que também se envolveram a fim de propagar sua versão de comunismo.

Na década de 1970, então, EUA e URSS se mostraram presentes não só nas emancipações das ex-colônias portuguesas, mas também nas guerras e conflitos

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do Chifre da África, como na Somália e na Etiópia (VISENTINI, 2007). Tanto na Angola, quanto em Moçambique, os governos que se instalaram depois da revo-lução eram apoiados por assessores militares e civis soviéticos e cubanos, mas, mesmo assim, esses dois novos países mantiveram suas relações econômicas voltadas para o Ocidente. Visto que a concorrência entre as duas potências era alta, os líderes africanos tinham certo poder de barganha ao se alinhar com uma ou outra ideologia. Para esses líderes, o momento era essencial para aumen-tar a importância estratégica do seu país, assim como conseguir maior atenção, apoio e ajuda aos seus objetivos nacionais (CLAPHAM, 1996). Os países africa-nos recebiam das superpotências ajuda para o desenvolvimento, empréstimos baratos, assistência técnica, e outros benefícios (THOMSON, 2010).

Entretanto, a década de 1970 também significou um momento turbu-lento para a economia mundial. Os sucessivos déficits na balança de pagamento dos EUA forçaram o governo Nixon a eliminar, unilateralmente, o padrão ouro do regime monetário de Bretton Woods, em 1972, e a desnacionalizar o dólar estadunidense. Além disso, o mundo passou pela sua primeira crise do petró-leo (1973), que estremeceu as bases das economias fortemente ligadas a esse recurso energético. Essas crises se propagaram exponencialmente na periferia, causando fortes impactos no continente africano.

Nos anos 1980, o continente africano se encontrava em colapso, mes-clando crise política, econômica e estrutural. De 1950 a 1980 a população tripli-cou, sendo o crescimento majoritariamente urbano, ao mesmo tempo em que o governo não possuía capacidades mínimas para responder às necessidades dessa sociedade, aumentando o número de pessoas marginalizadas e o traba-lho informal (MUNANGA, 1993). Na década de 1980, a norma eram os golpes militares, cujos regimes não se mostravam menos corruptos que os anteriores (idem, 1993). Ao mesmo tempo, os países africanos sofriam as enormes conse-quências da crise econômica mundial da década de 1970, o que só foi intensi-ficada com a globalização e com a revolução científico-tecnológica, levando ao total colapso das economias africanas (VISENTINI, 2007). Perante tal agrava-mento da crise, tornou-se quase impossível aos líderes africanos não recorrer aos organismos financeiros mundiais, como FMI e Banco Mundial, com todas as consequências regressivas que isso significava.

No que tange a conjuntura da ordem bipolar, a passagem da década de 1980 para 1990 foi marcada pelo desencadeamento, pelo governo estaduni-

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dense Reagan, de uma corrida armamentista que abalaria enormemente a eco-nomia soviética, que, já debilitada, se vê na necessidade de limitar seus apoios às revoluções do Terceiro Mundo e aos governos de esquerda (idem, 2007). Já em 1987, a URSS passou a pressionar seus aliados a buscar uma acomodação e estabilidade política, enquanto reduzia sua ajuda militar e econômica aos mes-mos (idem, 2007). O resultado foi uma clara marginalização da África no cená-rio estratégico mundial, o que só aumentaria com o fim da Guerra Fria. Além disso, com o fim do embate bipolar, acabava o pequeno poder de barganha que ainda restava aos líderes africanos e dava aos conflitos africanos um caráter menos estratégico. A falta de interesse das potências em continuar sustentando as guerras revolucionárias africanas (guerras proxy) serviu como um estímulo para que os conflitantes locais chegassem a acordos, como no caso da UNITA e do MPLA na Angola (THOMSON, 2010).

A Nova Ordem Mundial dos anos 1990 se associou diretamente com os conceitos neoliberais. Entretanto, não só a economia passou por intensos pro-cessos de liberalização e globalização, como, também, muitos países africanos passaram a encarar a necessidade de liberalizar e democratizar seus sistemas políticos. Com o fim do conflito bipolar, para os EUA, não havia mais necessi-dade de sustentar países africanos, muito menos aqueles que possuíam regimes ditatoriais (THOMPSON, 2010). Surgiu, então, um forte estímulo exógeno para a democratização dos regimes, tanto que muitos organismos financeiros inter-nacionais condicionavam sua ajuda a reformas democratizantes (VISENTINI, 2010). Regimes de partido único eram eliminados, organizavam-se eleições multipartidárias, assinavam-se acordos de paz regional: tal processo de demo-cratização culminou na independência da Namíbia em 1990 e no fim do regime racista apartheid na África do Sul.

A inserção da África na ordem internacional não diminuiu o alto número de problemas e dificuldades pelos quais o continente passa. Conflitos étnicos continuam matando um número grande de civis, assim como a fome e as doen-ças endêmicas, principalmente a AIDS. O processo de formação dos Estados africanos ainda é incipiente e se encontra nos seus estágios iniciais, entretanto, desde seu início, está totalmente inserido na conjuntura global. O fim da Guerra Fria levou a uma marginalização dos problemas do continente, fazendo com que os países começassem a desenvolver mecanismos para resolver seus pro-blemas dentro do seu âmbito regional (THOMSON, 2010). O surgimento da

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União Africana, em 2002, é um bom exemplo de como os países africanos – com destaque para a posição de liderança da África do Sul – têm cooperado em ques-tões estratégicas para o seu desenvolvimento em conjunto e a realocação de sua importância no palco internacional.

RUMO A NOVAS DESIGUALDADES ECONÔMICAS

A herança do sistema colonial deixou quase todos os países africanos com um sistema especializado de monocultura no qual um tipo de commodity3 era produzido somente para exportação. Esses produtos de monocultura tinham pouquíssima demanda interna africana, logo, praticamente toda a produção era exportada, tornando a África completamente dependente da demanda oci-dental por seus produtos mesmo após a descolonização. Durante a colonização, somente uma infraestrutura básica para o escoamento dessa produção fora construída, além de a grande parcela dos lucros da produção ser levada para o ocidente, sem qualquer reinvestimento local. Essa situação deixou a África com uma economia altamente especializada, sem outras atividades grandes o sufi-ciente que pudessem ser uma fonte de renda alternativa (importante em anos de má colheita, ou em casos de depreciação do produto principal no mercado internacional), além da falta de acesso à tecnologia e uma base manufatureira diminuta como ponto de partida para os países independentes (THOMSON, 2010).

No momento de ascensão à soberania, os Estados africanos tentaram modificar a situação, não se mostrando meros espectadores passivos das desi-gualdades comerciais. Nos novos Estados independentes era quase unânime a vontade de garantir o desenvolvimento das economias nacionais, dando ao con-ceito “desenvolvimento” um conteúdo diferenciado, através do qual se enten-dia um aumento da industrialização ao mesmo tempo em que se expandiam os serviços sociais e o investimento em infraestrutura e recursos humanos. Inicialmente, os recursos para tal empreitada deveriam ser garantidos pelos rendimentos das exportações e dos direitos aduaneiros, o que levaria à manu-tenção, e até à intensificação, das produções características do período colonial, mantendo os laços de dependência econômica com as antigas metrópoles atra-vés do neocolonialismo (M’BOKOLO, 2009).

Determinados em aumentar a parcela da indústria em suas economias, os governos africanos independentes iriam optar, na sua maioria, por um pro-

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cesso de produção local de produtos de consumo primário a fim de substituir parte de suas importações. O aumento da manufatura era importante a fim de diminuir a desigualdade dos termos de troca no comércio internacional, que se configurava pela venda de produtos primários de baixo valor agregado por parte dos países em desenvolvimento em troca da compra de produtos manufa-turados de alto custo provenientes dos países industrializados (CHAZAN et al., 1999). Logo, o lucro obtido com as exportações africanas acabava por se dirigir às economias centrais, uma vez que eram utilizados para importar produtos advindos desses países, explicitando parte da natureza das relações neocolo-niais.

Contudo, a industrialização pela substituição de importações na África iria encontrar restrições estruturais internas e externas. Sem condições de concorrer com produtos manufaturados no mercado internacional, a produção industrial era voltada para os mercados internos, mas esses eram extrema-mente reduzidos devido à baixa renda per capita. A solução de produzir para o mercado regional africano encontrou obstáculos com as dificuldades em se for-mar acordos aduaneiros de forma efetiva. Soma-se a esse panorama a falta de mão de obra qualificada especializada para as atividades industriais e a ausên-cia de empreendedores e investidores locais com nível de capital suficiente para investir nas indústrias incipientes (idem, 1999). A primeira fase econô-mica da África independente (até fins de 1970) foi marcada, então, pela forte ação do Estado na promoção do desenvolvimento através da industrialização (M’BOKOLO, 2009).

As tentativas industrializantes foram minadas por outros fatores que se somaram aos anteriormente citados. A instabilidade dos preços das matérias--primas no comércio internacional gerava baixa acumulação de capital e uma poupança interna insuficiente para os investimentos necessários à indústria. A falta de adaptação dos projetos industriais à realidade africana acabava por não absorver os recursos disponíveis no continente africano, uma vez que a maioria das indústrias instaladas vinha dos países centrais, empregando métodos que aproveitavam os recursos disponíveis nesses países, que eram muito diferentes dos recursos existentes na África. Essa não absorção da mão de obra acabava por não gerar empregos o suficiente para desenvolver o mercado consumidor interno (M’BOKOLO, 2009; CHAZAN et al., 1999). A falta de capital interno levava a associações com grandes companhias transnacionais a fim de promo-

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ver a industrialização, o que acabava por acentuar a situação de dependência. As companhias transnacionais acabavam por adquirir influência nas políticas e estratégias de industrialização dos governos (CHAZAN et al., 1999).

Devido à falta de recursos internos, os governos africanos recorreram a empréstimos junto aos países ocidentais. São esses empréstimos que expli-cam a profunda crise da dívida externa enfrentada por esses países nas décadas seguintes. Essas dívidas chegaram a níveis extremos devido à situação inter-nacional durante as décadas de 1970 e 1980, que acabou por deteriorar ainda mais a situação dos países africanos mergulhados na dívida (THOMSON, 2010). Essa situação era resultado do esgotamento do ciclo de expansão capitalista pós-guerra, marcado pela desvinculação do dólar ao ouro em 1971, pela rees-truturação da produção em uma nova divisão internacional do trabalho e pelos choques do petróleo em 1973 e 1979 (VISENTINI, 2007).

Inicialmente, acreditava-se que os empréstimos adquiridos poderiam ser pagos com a renda advinda das exportações primárias. O que ocorria era uma hipoteca das futuras colheitas. No entanto, o tendente decréscimo dos pre-ços das commodities no mercado internacional tornava muito difícil quitar as dívidas. A essa tendência se somariam os choques econômicos da década de 1970 (THOMSON, 2010). Com o aumento dos preços do petróleo induzidos pela OPEP em 1973, os termos de troca dos produtos africanos afundaram ainda mais, pois seria necessária a venda de uma quantidade exponencialmente maior de produtos primários para a compra de uma mesma quantidade de petróleo.

Durante esse período, os países enriquecidos pela exportação de petró-leo investiam grandes quantidades da sua riqueza em sistemas bancários oci-dentais, o que acabou por gerar um excedente de petrodólares nessas institui-ções financeiras. Esse excedente foi oferecido, então, aos países africanos na forma de empréstimos atrativos (THOMSON, 2010). Necessitando de investi-mentos, os países africanos aceitaram a oferta de crédito, mergulhando em um círculo vicioso de endividamento e sobre-endividamento (M’BOKOLO, 2009).

Com o segundo choque do petróleo em 1979, somado à crescente crise orçamentária estadunidense – resultado da situação da Guerra Fria, principal-mente dos gastos com a Guerra do Vietnã–, as taxas de juro internacionais se elevaram intensivamente. A elevação da taxa de juros transformou o que ante-riormente era visto como empréstimos atrativos em dívidas insuportáveis para as economias africanas (THOMSON, 2010). Esses fatores externos à África

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transformaram os empréstimos adquiridos nos anos 1970 na crise da dívida externa africana dos anos 1980 e 1990.

Uma nova conjuntura nos anos 1980 surgia em um momento no qual as economias africanas se encontravam extremamente fragilizadas. O peso de problemas como a pressão demográfica, as dificuldades sanitárias, as epide-mias, e os conflitos político-militares agravavam a situação (M’BOKOLO, 2009). Os preços das matérias-primas caíram mais ainda, junto com os investimentos estrangeiros. A ajuda ao desenvolvimento, que tomava lugar dos empréstimos exteriores, também declinou no período, principalmente após a queda do bloco comunista e a consequente perda de posição estratégica da África existente durante a Guerra Fria (M’BOKOLO, 2009).

Os governos do continente se encontravam em uma situação na qual se tornava cada vez mais difícil conseguir novos empréstimos e pagar os já exis-tentes, apesar de grandes fatias do capital africano irem para o pagamento des-sas dívidas, pequena era a diminuição do total devido. As instituições finan-ceiras internacionais se tornavam a única opção para a obtenção de recursos (THOMSON, 2010). Como condição, os países africanos tiveram que se subme-ter aos Programas de Ajuste Estrutural (PAE) impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial (M’BOKOLO, 2009). Esses PAE eram programas de empréstimos con-dicionados. Os governos africanos não tinham quase opções se não aceitar as imposições. Iniciados no último ano da década de 1970, pela metade dos anos 1990 quase todos os países africanos haviam se submetido aos programas (THOMSON, 2010).

Os Programas de Ajuste Estrutural culpavam o desenvolvimento promo-vido pelo Estado pela situação econômica africana. Seu objetivo era acabar com o estadocentrismo característico dessas economias (THOMSON, 2010). Embora cada PAE fosse desenhado de acordo com o país e ser aplicado, havia princí-pios básicos que determinavam a sua aplicação. Primeiramente, as estratégias de desenvolvimento deveriam favorecer a produção primária. As instituições financeiras acreditavam que o problema de desenvolvimento resultava dos gas-tos com o setor industrial urbano enquanto o setor mais produtivo das eco-nomias africanas era o rural. Os governos dominavam o mercado da produção agrícola, pagando preços baixos aos produtores e vendendo mais caro para as exportações. O lucro daí obtido era usado para o desenvolvimento industrial. Essa situação acabou por levar a África a importar a maior parte dos alimentos

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consumidos, já que havia poucos incentivos para o desenvolvimento de novas áreas de produção agrícola (THOMSON, 2010). Os PAE exigiam, então, o fim da intermediação do Estado nos preços agrícolas e a concentração das economias no modelo agroexportador.

O segundo princípio básico era uma reforma no sistema cambial e nas políticas de importação/exportação. Exigia-se, então, uma taxa de câmbio mais realista (sem grandes interferências do Estado) e o fim das tarifas protecionistas do sistema de substituição de importações (THOMSON, 2010). Essas políticas levavam a uma desvalorização da moeda nacional desses países a fim de enco-rajar as importações (M’BOKOLO, 2009). O terceiro princípio fazia referência à diminuição da ação do Estado na economia, diminuindo os gastos dos governos e abrindo as economias aos investimentos privados (THOMSON, 2010).

Os impactos econômicos, políticos e sociais dos PAE foram profundos no continente africano. Ao incentivar o modelo agroexportador, o programa só reproduzia as desigualdades dos termos de troca herdadas do sistema colonial. Uma vez que as moedas desses países haviam sido desvalorizadas, os lucros obtidos com as vendas dos produtos primários eram poucos. As exigências do programa visavam à atração de investimentos estrangeiros para o continente, o que não aconteceu, pois os grandes investidores internacionais não tendem a investir em economias frágeis e instáveis (THOMSON, 2010).

As reformas no setor público e a diminuição da ação do Estado levaram a um corte nas políticas sociais, provocando um mal-estar social, diminuição dos salários, deterioração do sistema de saúde, deterioração do sistema esco-lar, e uma queda nas condições gerais de existência da população (M’BOKOLO, 2009). Essas modificações também atingiram o status quo político africano. Não podendo fornecer mais serviços, empregos e recursos na mesma intensidade anterior, o sistema de favores existente entre governos e seus apoiadores se desmantelou. Não podendo mais prestar serviços em troca de apoio, as elites políticas se viram deslegitimadas, processo que levaria a uma desestabilização política (THOMSON, 2010). O Estado perderia força internacional e nacional-mente, abrindo espaço para maior atuação de organizações e associações inter-nacionais dentro de seu território. Além disso, a África se tornaria um centro de trânsito dos tráficos internacionais devido aos conflitos do fim do século XX e pelo colapso do Estado (M’BOKOLO, 2009).

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Somente em 2005 é que medidas mais concretas foram tomadas para aliviar a dívida africana. Na 31ª cúpula do G8, em Gleneagles, chegou-se a uma iniciativa para o cancelamento ou alívio da dívida externa dos Países Pobres Altamente Endividados (PPAE), cuja maioria se encontrava na África Subsaariana. No entanto, esse programa também impõe condicionalidades para o recebimento da ajuda. Essas medidas são geralmente de cunho liberal econô-mico, fiscal e cambial (THOMSON, 2010).

Outro ator que também se faz presente atualmente no continente é a China. O interesse desse país se centra tanto em objetivos econômicos, como a obtenção de mercados e de matérias-primas, como em interesses diplomáti-cos, no caso, combater a presença de Taiwan. Em 2006 foi realizada a primeira cúpula China-África, lançando uma política de investimentos em infraestrutura e de ajuda ao desenvolvimento (VISENTINI, 2007).

ESTUDOS DE CASO

República Democrática do Congo

O território atualmente constituinte da República Democrática do Congo foi possessão pessoal do rei belga Leopold II de 1885 a 1907, quando se tornou colônia estatal sob o nome Congo Belga. Durante todo o período em que foi explorado por belgas, o povo congolês foi assolado por um regime de trabalho compulsório e de taxação pesada, o que, tendo sido condenado por inúmeros órgãos internacionais, se somou às pressões pelo fim da colonização do país (HERNANDEZ, 2005). A RD Congo possui um território rico em diversos recur-sos naturais: diamantes, ouro, cobre, estanho, urânio, coltan, zinco, e cobalto, além de seu solo ser muito fértil. A independência congolesa só foi concedida em 1960, deixando o recém-criado Estado em uma situação de instabilidade e de conflito pela manutenção de sua unidade territorial.

Quando de sua independência, o Congo-Kinshasa passou a ser gover-nado por seu primeiro-ministro, Lumumba, um dos ícones do movimento de libertação do país do jugo belga, e por Kasuvubu, seu presidente. Contudo, junto à criação de um governo independente, surgiram movimentos separatistas na região de Katanga liderados por Moise Tchombé, rica em recursos naturais. Esse elemento de desestabilização, somado a outros movimentos de desintegração nacional, foi causa de inúmeros choques entre forças governamentais e rebel-

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des, culminando nas guerras civis ocorridas no país. O presidente congolês com o maior mandato no século XX foi o general Mobutu Sese Seko; sua primeira ascensão ao posto foi durante a crise entre o primeiro-ministro Lumumba e o presidente Kasuvubu em 1960. Ele assumiu o poder novamente em 1965, para tentar trazer estabilidade para o país e acabar com as tensões separatistas. Em 1965 Mobutu ocupou a liderança do país dentro do contexto de uma nova ten-tativa de separação da região de Katanga (US DEPARTMENT OF STATE, 2012). Com o apoio das Nações Unidas, Mobutu conseguiu derrotar as forças sepa-ratistas; contudo, seu suposto mandato de cinco anos foi estendido até 1997, quando foi derrubado por Laurent Kabila4 e logo após morreu.

O governo de Mobutu Sese Seko foi marcado pela centralização do poder político em sua figura, que controlava todos os atores envolvidos no governo sob um regime de partido único, além de manipular os interesses e atitudes de atores internacionais no país de forma a perpetuar seu poder e garantir as sus-tentações internas para possibilitar esse objetivo. Sob Mobutu desenvolveu-se uma cleptocracia, o que acabou por enfraquecer enormemente o poder público, além de marginalizar boa parte da população (THOMSON, 2010, p. 233). As práticas adotadas durante esse governo monopolizavam os recursos obtidos através da exploração de minerais e arruinaram o potencial agrícola do país, ao acabar com os estímulos para os indivíduos do setor. A população normal foi se vendo cada vez menos contemplada pelo poder público, que, enfrentando crises devido à má gestão dos recursos obtidos, teve de reduzir seus programas e suas redes de compra da estabilização (THOMSON, 2010). Assim, boa parte da população optou por se afastar do governo, deixando o mercado regular para integrar o mercado paralelo, que cresceu enormemente, passando a ser maior do que o mercado normal, e começou a ser utilizado também por indivíduos políticos que cobravam por sua inação em determinadas situações.

O governo de Mobutu sempre foi muito ativo com relação a instabilida-des de seus vizinhos, o mesmo sendo verdadeiro com relação à presença de seus vizinhos nos conflitos congoleses. Laurent Kabila, por exemplo, retirou Mobutu do poder com o apoio de Ruanda e Uganda, que mais tarde se tornaram inimigos da RD Congo, apoiando grupos separatistas nos sangrentos conflitos que ficaram conhecidos como a Primeira e a Segunda Guerra do Congo (Guerra Mundial Africana). Durante esses conflitos, a presença da ONU foi intensificada, com a criação de missões de paz. Após o assassinato do presidente Laurent

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Kabila, seu filho, Joseph Kabila, assumiu a presidência. Esse alterou parte das políticas negativas de seu pai e foi eleito para seu terceiro mandato em 2012, de cinco anos (US DEPARTMENT OF STATE, 2012). A República Democrática do Congo ainda enfrenta sérios desafios à sua integridade territorial, como grupos separatistas e invasões de países vizinhos, como Ruanda, que explora as reser-vas congolesas de coltan5 sem o consentimento do Estado congolês.

Ruanda

Os tutsis, grupo aristocrático originalmente pastoril habitante da região dos Grandes Lagos africanos, dominaram os demais grupos que habitavam o espaço hoje ocupado por Ruanda e Burundi. Os hutus, maioria na região, ori-ginalmente agricultores, e os tuas, caçadores e coletores, minoria absoluta, foram então submetidos a um regime de traços monárquicos sob a soberania do mwami6. Essa dominação pelos tutsis se baseava em elementos legitima-dores de origem divina e perdurou até a independência de Ruanda. No final do século XIX, os alemães dominaram com facilidade os regimes de Ruanda e Burundi, mantendo-os sob seu jugo até a Primeira Guerra Mundial, quando os belgas, através de sua colônia, o Congo Belga, tiraram esses territórios dos alemães, unificando-os na colônia de Ruanda-Urundi. A administração colonial reforçou as diferenças e as tensões entre tutsis e hutus em Ruanda. Com a cria-ção de partidos distintos na luta pela independência: União Nacional Ruandesa (Unar, tutsi) e Partido do Movimento da Emancipação Hutu (Parmehutu), as tensões entre tutsis e as autoridades coloniais levaram à abolição do regime do mwami em 1961 (HERNANDEZ, 2005). Quando da concessão de independência a Ruanda em 1962, a república instaurada passou a ser controlada pela maioria hutu.

Devido à sua situação desprivilegiada, boa parte dos tutsis deixou o país por temer retaliações da nova elite hutu, refugiando-se nos países vizinhos. O novo governo do Parmehutu fechou os demais partidos e perseguiu a minoria tutsi. Devido à ineficiência da gestão de Grégoire Kayibanda, então líder do Parmehutu, esse foi deposto por um golpe militar organizado pelo general Juvénal Habyarimana (1973-1994), que governou a partir do partido Movimento Revolucionário Nacional para o Desenvolvimento (MRND). Em 1990, os tutsis refugiados em outros países tentam mudar o regime ruandês, invadindo o país sob a direção da Frente Patriótica de Ruanda (FPR) (US DEPARTMENT OF STATE,

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2012). A frente conseguiu certa liberalização, mas, quando do assassinato do presidente Habyarimana em 1994, os hutus extremistas iniciaram um forte ataque contra os tutsis, iniciando o genocídio de Ruanda, assassinando não só tutsis, mas também hutus moderados. O genocídio em Ruanda durou até julho de 1994, sendo realizado por milícias de hutus extremistas, que encorajavam o extermínio de tutsis pela população, resultando no assassinato de mais de 800 mil pessoas (VISENTINI et al., 2012, p. 155). A FPR conseguiu restabelecer certa estabilidade no país, ao tentar conciliar os dois lados do conflito, criando um regime de união nacional, sob a presidência do tutsi Paul Kagame. Atualmente, um número bastante alto de ruandeses, que haviam deixado o país para fugir do genocídio durante a guerra civil ruandesa ou para integrar os corpos militares que invadiram a República Democrática do Congo entre 1996 e 2003, permanece refugiado em países vizinhos, gerando instabilidade nas fronteiras. Os soldados ruandeses que continuam na RD Congo estão envolvidos na extração ilegal de coltan e no financiamento a grupos separatistas.

Burundi

A situação do Burundi anterior à sua independência em 1962 é muito similar à de Ruanda: os mesmo grupos sociais (tutsis, hutus e tuas) ocupavam as mesmas posições políticas e sociais, e a mesma sequência de dominação externa (alemã e belga) foi imposta. Contudo, quando da luta anti-imperial, o principal partido político, o Partido da União para o Progresso Nacional (UPRONA), encabeçado pelo filho do mwami burundiano, buscava a união nacional para a independência. Os belgas apoiaram a ascensão do Partido Democrata Cristão (PDC), que buscava uma transição lenta e gradual para a independência, integrado por setores conservadores da elite. Os dois partidos estabelecidos nesse período não se prenderam às divisões étnicas, se chocando no programa político defendido, principalmente com relação à independência do Burundi. O ganwa (“príncipe”) burundiano, Louis Rwagasore Mwambutsa, dominava o cenário político pré-independência quando foi assassinado por for-ças do PDC em 1961 (HERNANDEZ, 2005).

O governo independente burundiano foi marcado por uma fraqueza do poder público e pela instabilidade do controle político. Entre 1966 e 1996, quatro golpes militares foram desferidos contra o poder executivo (THOMSON, 2010). Nesse período, a monarquia inicialmente instalada foi derrubada; as

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tensões entre tutsis e hutus na vizinha Ruanda influenciaram movimentos simi-lares no Burundi, que teve seu governo dominado pelos tutsis até a ascensão de Melchior Ndadaye, primeiro presidente hutu, em 1993. Contudo, esse presi-dente foi assassinado, iniciando a Guerra Civil do Burundi, entre tutsis e hutus, que durou de 1993 a 2005, intensificada em 1996 pelo assassinato do então presidente burundiano, Cyprien Ntaryamira, junto ao ruandês Habyarimana no aeroporto de Kigali (capital de Ruanda) (VISENTINI et al., 2012, p. 130). Em 2005, uma nova constituição foi promulgada, e o atual presidente, Pierre Nkurunziza, um hutu, foi eleito.

A África Portuguesa

Enquanto a maioria dos Estados africanos alcançavam suas independên-cias na década de 1960, os bastiões brancos do sul do continente somente pas-sariam por tal processo no decorrer da década de 1970. Após a Segunda Guerra Mundial, Portugal deixou claro que não tinha nenhum interesse em conceder independência às suas colônias africanas e, para isso, adotou uma estratégia para reforçar a comunidade europeia em Angola e Moçambique, a fim que criar uma complexa relação de integração com a metrópole (CHANAIWA, 2010). Entretanto, sendo uma clara potência europeia decadente, com dificuldades econômicas internas, Portugal não conseguia fomentar investimento em suas colônias, a administração colonial apresentava pífios desempenhos e o desen-volvimento econômico era bastante fraco, sempre vinculado aos interesses das transnacionais que atuavam também na metrópole.

Já na década de 1960, movimentos nacionalistas começaram a surgir em Moçambique (fundidos no grupo FRELIMO) e em Angola (MPLA, FNLA e UNITA), assim como na Guiné Bissau e no Cabo Verde (PAIGC). Os movimen-tos de libertação na África Austral foram dominados pela luta armada revo-lucionária e pelos sentimentos anti-imperialistas e esquerdistas. A decepcio-nante experiência histórica da maioria dos Estados africanos já independentes ensinou a esses movimentos que a descolonização e a independência política eram vãs se não fossem acompanhadas de emancipação econômica e cultural (CHANAIWA, 2010). Dessa maneira, a maioria dos movimentos de independên-cia nas colônias portuguesas teve um caráter fortemente marxista, com apoio das massas urbanas e rurais, dos intelectuais progressistas e, muitas vezes, dos países socialistas, como URSS, China, e, principalmente, Cuba. Também é pre-

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ciso reconhecer que esses movimentos coincidiram com uma conjuntura inter-nacional na qual as duas superpotências retomavam a corrida por influências, nesses conflitos gerados pelas emancipações, logo, EUA e URSS estavam forte-mente presentes (VISENTINI et al., 2007).

As duas principais colônias portuguesas, Moçambique e Angola, se emanciparam através da luta armada. Inicialmente assumindo os custos da luta, Portugal logo ficou incapacitado de arcar com os fardos dos conflitos, que absorviam cerca de metade do seu orçamento anual e causavam rejeição crescente na opinião pública (CHANAIWA, 2010). Logo, ficou clara a incapaci-dade de Portugal de vencer os movimentos emancipacionistas e a crise interna, sendo um de seus efeitos a revolução nacional que depôs o governo salazarista, a Revolução dos Cravos em 1974. Após a revolução, o governo esquerdista que assumiu o governo portugês resolveu retirar suas tropas de Angola, assim como reconhecer a independência do país. A luta dos três movimentos independen-tistas levou Portugal a negociar um acordo, em 1975, prevendo um governo de transição onde haveria representantes não só dos três grupos angolanos, mas também de Portugal (JOSE, 2008).

No caso de Moçambique, a luta armada revolucionária (organizada pela FRELIMO) já durava quinze anos, a elite branca já havia sido afugentada, e o movimento já controlava boa parte do país quando ocorreu a Revolução dos Cravos, que só acelerou o movimento de independência. Em 1975, o governo que assumiu em Moçambique era de predominância negra e se autoproclamava marxista-leninista (VISENTINI et al., 2007). Já a Angola, recém-independendi-zada, mergulhou em uma sucessão de guerras civis que só acabou definitiva-mente em 2002. O conflito se dava por causa dos diferentes projetos dos dois principais movimentos de libertação, MPLA e UNITA, sendo o primeiro mar-xista com apoio de Cuba, URSS e China, e o segundo tendo o apoio dos EUA e da África do Sul do apartheid (JOSE, 2008). O período de guerra civil se estendeu por vinte e sete anos, deixando dezenas de milhares de mortos, mutilados, e refugiados e, também, impediu o sucesso das inúmeras missões de paz da ONU no país. Em 2002, o governo angolano, que já havia substituído sua economia pelas vias do mercado liberal, com abertura para o capital estrangeiro e pluri-partidarismo, passou a tomar medidas para as negociações de paz efetiva, che-gando ao ponto de reconhecer a existência do partido UNITA-Renovada (JOSE, 2008).

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Se o processo de formação dos Estados africanos é bastante recente, podemos concluir que o caso das ex-colônias portuguesas é ainda mais inci-piente. Durante o período de colonização, a população nativa foi mantida em condições primitivas, sem um mínimo de segurança, educação ou de direitos. Já com a saída da maioria das elites brancas desses países, houve uma enorme fuga de capital, além de uma privação de mão de obra especializada, técnicos e administradores (VISENTINI et al., 2007). Logo, tornou-se complicado para os lideres desses novos países responder às necessidades primordiais da socie-dade, como fornecer infraestrutura, educação e desenvolvimento econômico. Além do mais, esses países se tornaram independentes em um período extre-mamente conturbado para a economia mundial, visto que a crise dos anos 1970 havia atingido todos, principalmente os países do Terceiro Mundo.

Já na década de 1990, esses governos perderam grande parte de suas tendências marxistas para vincular sua econômica e mercados à nova ordem mundial (VISENTINI, 2010). Foram inúmeras as questões enfrentadas por esses países na construção de suas estruturas estatais: estabilização da economia, pacificação dos longos períodos de guerra civil, busca por caminhos de demo-cracia representativa e de reformas sociais, diminuição da pobreza, melhoria das condições de habitação, das condições sanitárias, das condições ambientais, entre outros (JOSE, 2008). Para tal, muitos desses países têm se relacionado com as potências emergentes e buscado benefícios para o seu desenvolvimento com essas relações, como no caso da China e seu maior parceiro econômico na África, a Angola. Hoje a Angola passa por um processo de restauração estrutu-ral, com forte cooperação e recursos aportados pelo governo chinês, reorga-nizando e reconstituindo sua esfera política, social e econômica (JOSE, 2008).

Serra Leoa

A Serra Leoa, obedecendo a certo padrão da África Ocidental de ocu-pação inglesa, teve seu processo de independência sem a presença de surtos revolucionários, através da escolha de um caminho por etapas e de reformas políticas que garantiam à administração europeia uma parte na condução desse processo (HERNANDEZ, 2005). No entanto, não se pode negar a presença de mobilizações sociais e as reivindicações suscitadas pela degradação da situação econômica e social da situação imposta após a Segunda Guerra Mundial pelos britânicos (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010).

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O desenvolvimento da estrutura social de Serra Leoa e suas característi-cas desiguais se devem, principalmente, à divisão do território entre a colônia na faixa litorânea e o protetorado, que corresponderia ao atual interior do país. Devido à sua importância comercial e devido aos interesses da Sierra Leona Company, formou-se na região litorânea uma “burguesia” de características oci-dentais, que criava laços com os estrangeiros em detrimento da antiga ligação com as autoridades nacionais (HERNANDEZ, 2005). Essa região acabou dando origem à colônia britânica de Freetown em 1807. O interior do território, por sua vez, era ocupado por povos nativos, cuja população era muito maior que aquela da colônia. Essa região acabou por se transformar em um protetorado britânico, conservando, contudo, sua organização tradicional. Apesar de certo grau de estabilidade social, os aspectos da ligação entre a colônia e o prote-torado gerariam, após a independência, problemas de integração nacional e de instabilidade política advindas das rivalidades entre as elites da colônia e a população rural do protetorado (HERNANDEZ, 2005).

Em 1943, então, o governo britânico decidiu juntar as populações da colônia e do protetorado, colocando em aplicação a africanização da direção, o que levou a um aumento de nativos no Conselho Executivo. Já em 1947, em vias de unificação nacional, foram introduzidas emendas constitucionais que favoreciam maiorias africanas nas Assembleias Legislativas da África Ocidental britânica, o que, em Serra Leoa, significava uma representação proporcional que beneficiava a população do protetorado (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010). A consequência desse ato foi o aumento das divisões entre as duas parcelas do território. Criou-se o Partido Conselho Nacional de Serra Leoa (NCSL), consti-tuído pelos crioulos7 da zona da colônia, a fim de boicotar a Constituição. Como reação, surgiu o Partido do Povo de Serra Leoa (SLPP), que defendia a aplicação da constituição. Essas divisões só permitiram que se chegasse a um consenso sobre a data de independência do território em 1959, após a vitória, em 1958, de Milton Margai (líder do SLPP) como primeiro-ministro. Em 1960, a oposi-ção se uniria ao SLPP, formando uma frente nacional que entrou em acordo sobre a independência, confirmada em 27 de abril de 1961 pela Grã-Bretanha (HERNANDEZ, 2005).

Com a morte de Margai em 1964, seu meio-irmão assumiu o cargo de primeiro-ministro. Nas eleições de 1967, o partido All People’s Congress (APC) ganhou a maioria no parlamento e o líder do partido, Siaka Stevens, foi

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nomeado primeiro-ministro. No entanto, um golpe dado pelo Comandante das Forças militares de Serra Leoa (David Lansana) impediu que Stevens chegasse ao cargo. O episódio foi sucedido por um segundo golpe, que levou à prisão de David Lansana e à suspensão da Constituição. Em 1968, um terceiro golpe militar prendeu os líderes do movimento anterior, restaurou a Constituição e Stevens finalmente assumiu o cargo de primeiro-ministro, ficando no cargo até 1985 (US DEPARTMENT OF STATE, 2012). Durante seu governo, Stevens tornou o APC no único partido legal do país, banindo o resto, além de instaurar outros meios que garantissem sua posição no poder. O país só voltou a um sistema multipartidarista em 1991 durante o mandato de Joseph Saidu Momoh, aliado de Stevens no APC que o suscedeu no cargo em 1985.

Em 1991, um grupo chamado Revolutionary United Front (RUF), impul-sionado pelo conflito corrente na Libéria, começou a promover ataques na fron-teira com esse país, chegando a controlar as minas de diamantes na região de Kono. O país mergulhou em um conflito que só acabou oficialmente em janeiro de 2002 após intervenções da ONU e da Grã-Bretanha, antiga metrópole da região.

Costa do Marfim (Côte d’Ivoire)

Durante o período colonial, a Costa do Marfim fazia parte de uma “fede-ração” de oito colônias da África Ocidental Francesa cuja administração era controlada por um governador-geral. As reivindicações contra a exclusão da população colonial da vida política foram reforçadas pela situação pós-Segunda Guerra Mundial, reivindicando por uma mudança no estatuto político. Como resultado, ocorreu a Conferência Africana de Brazzaville no início de 1944, reunindo governadores e colonos. Essa conferência excluiu qualquer ideia de autonomia da região e toda a forma de evolução fora do bloco francês (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010). Contudo, pela primeira vez a população da colônia poderia eleger deputados para a Assembleia Nacional Constituinte Francesa, que redigiu a Constituição da IV República da França. Essa medida foi tomada a fim de conquistar a simpatia política dos colonos. Esse fato levou à eleição de representantes africanos que conduziam a defesa pelo fim do regime colo-nial, no caso da Costa do Marfim, Félix Houphouët-Boigny – médico formado em Dakar que se tornou importante figura no processo de independência do país.

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No entanto, a Constituição de 1946 suprimiu toda possibilidade de evo-lução rumo à independência, além de garantir o poderio político-econômico dos proprietários de terra europeus na Costa do Marfim, em detrimento dos pro-prietários rurais nativos. O governo da Costa do Marfim enfrentou, então, uma crise política gerada pelos grupos economicamente dominantes (HERNANDEZ, 2005). Como reação à situação, criou-se o Sindicato Agrícola Africano sob a liderança de Boigny, buscando melhores condições para os agricultores nati-vos. A nível regional, em 1946, foi convocada uma reunião de todos os partidos no Mali a fim de se organizar a luta anticolonial. Nesse congresso, foi criado o Agrupamento Democrático Africano (RDA), que federou os partidos locais com base nessa luta (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010).

Com a Guerra Fria, a França começou a seguir uma política de restau-ração colonial, cuja política de repressão teve seus esforços concentrados na Costa do Marfim, a fim de dificultar a atuação do RDA e do Parti Démocratique de La Côte d’Ivoire (PDCI), que defendia as reivindicações da sociedade agrí-cola marfinense e, por consequência, os interesses das massas reprimidas pelo regime colonial (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010). Em consequência das fortes medidas de repressão, Boigny optou pela via colaborativa à política governa-mental, levando a uma direitização da RDA. Gerando simpatia por sua opção, houve uma entrada de capitais ocidentais considerável na Costa do Marfim (HERNANDEZ, 2005).

Com a degradação da situação internacional francesa (derrota na Indochina, guerra de libertação na Argélia...), o governo da França se anteci-pou às demandas de independência. Em 1957 concedeu uma “semiautonomia” aos territórios além-mar. A nova constituição de 1958 (V República Francesa), ao fazer desaparecer a África Ocidental Francesa como unidade política, levou a um processo de balcanização da região (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010). A Costa do Marfim garantiu sua independência frente à França no dia 7 de agosto de 1960.

Um dos fatores mais impressionantes após a independência do país foi seu crescimento econômico. O “milagre” econômico marfinense durou até o fim da década de 1980, quando os preços do cacau e do café começaram a enfren-tar instabilidades no mercado internacional. As três primeiras décadas da Costa do Marfim independente foram dominadas pelo poder pessoal de Boigny (THOMSON, 2010). Tornando-se o partido no poder com as eleições após a

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independência, o PDCI iniciou uma tática de estabelecimento de um sistema unipartidário, absorvendo parte dos grupos de oposição e eliminando outros. Ao garantir a eliminação dos grupos de oposição, Boigny deixou o PDCI se des-mantelar. Centralizando os poderes político-institucionais no poder executivo encabeçado por sua pessoa, o governo passou a garantir sua legitimidade a par-tir de um sistema clientelista de troca de favores que se manteve relativamente controlado até meados dos anos 1980 (THOMSON, 2010). Com os problemas econômicos da segunda metade dos anos 1980 (instabilidade dos preços agrí-colas), esse sistema de favores perdeu sustentação pela diminuição de recursos do governo, gerando demandas pela volta do sistema multipartidarista e pela liberalização política.

Após a morte de Boigny em 1993, nenhum partido ou indivíduo con-seguiu gerar legitimidade suficiente para acalmar a situação política do país (THOMSON, 2010). A incerteza política aumentou após um golpe militar em 1999 e, mesmo com o fim desse em 2003, a política da Costa do Marfim ainda se encontra deteriorada.

Libéria

A formação da Libéria pode ser considerada como um caso especial na África. O país foi fundado pela American Colonization Society, com auxílio do governo dos EUA, que, após a independência, buscava uma solução para os negros em seu território. A American Colonization Society obteve terras das chefias locais que habitavam a região litorânea da Libéria (HERNANDEZ, 2005). Para esse território foram enviados afro-americanos, tanto por convencimento quanto por ameaças. Tendo os EUA como modelo, esses imigrantes fundaram a capital, Monróvia, na costa do Atlântico. Formou-se, a partir de então, um mito da Libéria como a “terra da liberdade”, que foi muito usado em discursos políti-cos (HERNANDEZ, 2005).

Em 1847, a Libéria se tornou independente da American Colonization Society, com uma estrutura política inspirada nas instituições estadunidenses, embora continuasse dependente economicamente dos EUA. A falta de capaci-dade do Executivo em se fazer representar em todas as unidades do território levou à detenção do poder político por certas famílias de imigrantes américo--liberianos. Desde então, duas características marcaram a história da Libéria: o domínio de privilégios pelas regiões centrais do país (aquelas próximas ao lito-

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ral, compostas por américo-liberianos), em detrimento das regiões periféricas; e a divisão entre os américo-liberianos e os povos nativos, que tinham grandes diferenças culturais entre si (HERNANDEZ, 2005).

A situação econômica do país sofreu uma deterioração com a Primeira Guerra Mundial. O governo do país aceitou em 1930 empréstimos em troca de concessões de exploração da borracha ao truste da Firestone (empresa estadu-nidense). A Firestone se tornou um Estado dentro de um Estado, aumentando ainda mais a dependência da Libéria em relação aos EUA (HERNANDEZ, 2005). A situação sofreu alterações com a ascensão à presidência de William Vacanarat Shadrach Tubman em 1944, que ficou no cargo até 1971. Tubman visava a diminuir a dependência econômica do país em relação à Firestone, tentando atrair investidores ao país. Essas medidas conseguiram certa diversificação das atividades econômicas e dos destinos de investimento dentro do país (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010). Com a descoberta de minérios de ferro, as receitas nacionais sofreram um aumento, e, em 1978, a Libéria se tornou a maior produ-tora de ferro da África e a terceira maior do mundo.

Tubman levou a uma mudança na situação social do país, colocando em aplicação políticas de assimilação entre os dois diferentes setores da sociedade, incentivando a cultura autóctone e estendendo a essa população o direito de representatividade nas eleições legislativas (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010). Já em 1944, foi concedido o direito ao voto para todos os africanos do sexo mas-culino que pagassem seus impostos em dia. Apesar dessas reformas, a Libéria ainda continuou dependente do capitalismo internacional e subordinada aos interesses dos investidores estrangeiros.

A história da Libéria a partir do fim da era do partido de Tubman (o True Whig Party), marcada pelo golpe militar de 1980 (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010), foi marcada por golpes políticos que levaram a uma militarização da política e a uma parceria do poder com as grandes empresas internacionais interessadas nos minérios de ferro e diamante na fronteira do país com a Serra Leoa (HERNANDEZ, 2005). Esses governos fizeram vista grossa à entrada de armamentos no país, o que acabou por transformar “pequenas rivalidades etnoculturais em sangrentas guerras civis” (HERNANDEZ, 2005, p. 326) que se estabeleceram no país até a deposição de Charles Taylor em 2003.

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Etiópia

O mito fundador do povo etíope afirma que o primeiro soberano do país (em um sistema similar a uma monarquia) era filho do rei Salomão e da rainha de Sabá. Essa lenda demonstra a força do cristianismo do país, religião dos gru-pos etíopes historicamente dominantes, que tiveram uma forte influência na disseminação dessa lenda. Os etíopes sobreviveram ao imperialismo europeu, mantendo sua independência até 1936. Para obter tal resultado, eles se vale-ram das disputas imperiais de Inglaterra, França e Itália na região do Chifre africano, da crença popular da predestinação do povo etíope, da força de seu exército imperial, e do status obtido após as suas vitórias militares contra for-ças invasoras (europeias ou africanas) e dentro de seu projeto expansionista (HERNANDEZ, 2005). A Etiópia conseguiu, assim, evitar as tentativas euro-peias, principalmente italianas, de invadir seu território, além de ter obtido um forte status internacional, sendo membro da Sociedade das Nações. Contudo, a Itália fascista de Mussolini resolveu intensificar sua presença na região do Chifre Africano, provocando tensões com a Etiópia até invadi-la e dominá-la em 1936. O domínio italiano, porém, não durou muito tempo, sendo encerrado antes do final da Segunda Guerra Mundial, em 1941.

Quando de sua independência, a Etiópia anexou a antiga colônia italiana Eritreia, que adquiriu o status de província autônoma, retomando sua saída para o mar. O regime monárquico estabelecido, sob Haile Selassie, manteve certa estabilidade, mas, devido às revoltas pela independência dos eritreus e dos somalis e aos maus resultados econômicos, principalmente à ineficácia das medidas tomadas para reparar a falta de alimentos que ocorreu no país em 1973, o regime perdeu suas bases de sustentação. Em 1974, um golpe mili-tar tirou o monarca do poder na Etiópia, instaurando um regime que adotou o marxismo-leninismo como ideologia (VISENTINI, 2012). Essa revolução teve profundas repercussões na organização do país, como a reforma agrária, a alfabetização de grande parte da população, a contenção das minorias, a esta-tização das propriedades urbanas, entre outros. Apesar de diversas alterações estruturais, o regime instalado enfrentou inúmeras dificuldades, relacionadas em parte à heterogeneidade do movimento que permitiu sua ascensão, resul-tando em medidas opressivas (SCHNEIDER, 2010). Logo quando da instauração do regime militar, as tensões com a Somália pela região etíope habitada por somalis provocou uma guerra. Nesse contexto, os etíopes abandonaram suas

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antigas alianças com os Estados Unidos do período imperial, passando a rece-ber apoio da União Soviética e de Cuba, antigos aliados da Somália. Assim, a Etiópia derrotou a Somália, assim como o fez com os eritreus que almejavam sua independência.

O regime de Mengistu (líder do governo militar) conseguiu manter-se estável até o ano de 1991. Uma vez que o apoio recebido da URSS, já enfraque-cido, se interrompeu, o regime etíope contou com um menor apoio externo para manter sua autoridade nacionalmente. Em 1991 dois movimentos internos se fortaleceram e conseguiram derrubar o regime: o TPLF (Frente de Libertação do Povo do Tigré) e o EPRDF (Frente Democrática Revolucionária do Povo Eritreu). Esse dois movimentos se uniram e tomaram o poder na Etiópia, aban-donando o marxismo, embora a influência da esquerda tenha sido mantida. Nesse contexto, foi possível a independência da Eritreia, que a obteve oficial-mente em 1993, acabando com a sangrenta luta pela autodeterminação do povo eritreu. Contudo, apesar do suposto clima de fraternidade entre Eritreia e Etiópia, quando da independência da primeira, as relações entre os dois países passaram por um processo de intensa deterioração, uma vez que as fronteiras não foram bem estabelecidas, gerando uma guerra entre os dois países no iní-cio do novo milênio. Os etíopes ainda estão envolvidos na guerra da Somália, onde buscam a consolidação do governo de transição, tentando estabilizar o país apoiando grupos somalis com uma postura não hostil para com os etíopes, temendo a ascensão de indivíduos que venham a contestar seu direito sobre a região somali na Etiópia (JANE’S, 2009).

Somália

O povo somali não possui divisões étnicas, a desunião que pode ser per-cebida na região ocupada por eles se deve às dificuldades em estabelecer um Estado que unifique todos os clãs, grupos determinados a partir da linhagem masculina, no caso somali. A maioria dos somalis é muçulmana sunita, e a poli-gamia masculina prevista pelo corão (número máximo de esposas sendo qua-tro) é uma prática comum, havendo facilidade para a obtenção de divórcio. O casamento sempre foi um instrumento de negociação entre os diferentes clãs nas regiões ocupadas por somalis, sendo comuns os casamentos arranjados (LEWIS, 2008).

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A falta de coesão entre os somalis facilitou a conquista dos seus territó-rios por três potências coloniais, Inglaterra, França e Itália, movidas pela impor-tância geoestratégica do Chifre Africano. A França ocupou o território que mais tarde se tornou o Djibuti; a Inglaterra, o da atual Somalilândia (território que busca independência da Somália); e a Itália, a região sul do país (HERNANDEZ, 2005). Durante o regime fascista de Mussolini, houve a expansão do território ocupado pelos italianos que tomaram a parte inglesa e dominaram a Etiópia. Contudo, as derrotas italianas na Segunda Guerra Mundial levaram ao retorno da Etiópia à independência, à devolução da Somalilândia britânica aos ingleses sob o sistema de protetorado, e à perda da Somália italiana para os britânicos. Contudo, parte do território somali voltou ao controle italiano sob a forma de protetorado. A independência dessas duas regiões da Somália ocorreu no ano de 1960, quando ambas também se unificaram.

A política externa da Somália após a sua independência se baseou na unificação das regiões ocupadas por seu povo, se voltando para a promoção da identidade pan-somali. Nesse intuito, buscava-se a independência do Djibuti dos franceses e a retomada dos territórios habitados por grupos somalis, mas ocupados pelo Quênia e pela Etiópia. As tensões com a Etiópia por território foram em parte responsáveis pela instabilidade que o regime em formação apresentava. O governo independente na Somália teve de enfrentar as dificul-dades de unificar dois modos diferentes de organização e regiões em diferentes estágios de desenvolvimento econômico. O governo se mostrou bastante fraco e acabou por ser derrubado por um golpe militar em 1969, liderado pelo general Siyad Barre. Esse novo governo logo optou por aderir ao socialismo científico, o que implicou um foco maior na coordenação das políticas internas (LEWIS, 2008).

Aos poucos o governo de Siyad Barre retornou à antiga política de união dos somalis. Nesse contexto, a Somália entrou em guerra com a Etiópia pela região do Ogaden e apoiou a independência do Djibuti dos franceses (1977). A Guerra com a Etiópia foi incrivelmente devastadora para os somalis. A perda da guerra para os etíopes gerou inúmeros problemas para o governo. Houve uma intensificação dos fluxos de deslocamento através das fronteiras entre Etiópia e Somália. Além disso, uma forte seca atingiu a região entre 1974-75, criando problemas ainda maiores de pobreza. Ao se perceber em uma situação de derrota frente aos etíopes e sob pressão externa, o presidente somali bus-

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cou criar um acordo com a Etiópia. Ao firmá-lo, o chefe de Estado da Somália gerou importantes resultados: os senhores da guerra que apoiavam a causa pan-somali desistiram de sua luta e passaram a buscar a sua própria autonomia (LEWIS, 2008). Assim, em 1991, a derrubada do governo iniciou o período atual de falta de legitimidade do governo do país, a acentuação das divisões internas, e a sabotagem ao poder político central.

No atual estado de desintegração da Somália, diversos presidentes já buscaram reunificar o povo sem sucesso. Duas grandes porções do território buscaram alterar o seu status com relação à união: o território setentrional da Somalilândia se declarou independente em 1991, sem obter reconhecimento internacional; a porção da Somália localizada na ponta do chifre se declarou uma região autônoma em 1998 sob o nome de Puntlândia, alegadamente bus-cando estabilizar parte do país e depois expandir isso para o resto (LEWIS, 2008). Enquanto isso, missões de paz da ONU já tentaram trazer estabilidade para o país e reduzir os problemas que assolam os somalis. Contudo, duas mis-sões já foram estabelecidas e canceladas, sem que qualquer sucesso tenha sido obtido, inclusive não conseguindo atingir as parcelas mais desfavorecidas com seu auxílio médico e alimentício (JANE’S 2009).

PONTOS A DISCUTIR

1) As independências dos Estados africanos trouxeram uma ruptura do sistema colonial de fronteiras ou as mantiveram? Se as mantiveram, que problemas surgiram a partir dessa situação?

2) A conquista de soberania política significou a emancipação plena dos terri-tórios dos antigos impérios coloniais ou significou a emergência de um novo sistema de dominação e exploração (neocolonialismo)?

3) Os modelos de organização política, jurídica e educacional adotados após a independência copiavam os modelos das metrópoles europeias. Quais foram as consequências da adoção desses modelos?

4) Qual foi o papel desempenhado pelas forças armadas para a manutenção da independência dos novos Estados? Por que eles tiveram um papel desta-cado?

5) Por que razão após a independência política vários Estados africanos busca-ram aplicar os padrões socialistas originários do marxismo como forma de organização político-social?

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Notas¹ A tribalização consiste na redução das explicações sobre os conflitos africanos como algo inerente à população em questão e da complexa organização social estabelecida nas sociedades africanas anteriores ao domínio europeu a simples tribos, muitas vezes chamadas de “atrasadas”.² Os conceitos de etnia e tribo são muitas vezes confundidos, em diversos casos propositalmente. O primeiro se refere a um grupo de indivíduos que têm a consciência de serem diferentes de outras pessoas, enquanto o segundo, a um grupo étnico organizado politicamente sob o comando de um ou mais líderes, muitas vezes com uma linhagem comum. Já o termo nação é empregado para descre-ver grupos étnicos que possuem uma vida econômica comum (EVANS; NEWNHAM, 1998). Todos os conceitos são objeto de intensa discussão nas ciências sociais.³ Produtos que, por não possuírem muitas diferenças entre si, são intercambiáveis por qualquer outro produto igual, independente de quem o produz. Possuem um preço determinado ao nível de oferta e demanda global. Exemplo: produtos agrícolas.4 Laurent Kabila iniciou sua participação na política congolesa como guerrilheiro, tendo alterado sua linha de pró-cubano para pró-chinês após a saída dos cubanos da República Democrática do Congo. Kabila foi bem sucedido na “libertação” de uma zona próxima às fronteiras com Ruanda e Burundi onde buscou estabelecer sistemas de produção maoístas. O futuro presidente congolês possuía relações próximas com os governantes da Tanzânia, para onde se mudou até conseguir dominar seu país natal a partir do apoio ruandês e ugandês. Quando de sua ascensão, Kabila havia se associado a grandes empresas estadunidenses e mudado seu ramo de atividades para a extração mineral (CASTELLANO, 2011).5 O coltan (ou coltão) é um mineral que é utilizado na produção de aparelhos eletrônicos e chips de computadores e na indústria espacial. Estima-se que 80% das reservas mundiais se localizem na República Democrática do Congo, onde se concentra nas zonas próximas às fronteiras com Ruanda, Uganda e Burundi (CASTELLANO, 2011). Sua exploração vem sendo conduzida ilegalmente por indivíduos desses países fronteiriços, e essa renda é muitas vezes utilizada para financiar grupos opostos ao governo central.6 Mwami era o nome dado ao soberano em Ruanda e no Burundi, além de outros sistemas na região. Apesar de ser normalmente traduzido como monarca ou rei, o mwami não possuía as mesmas características de seu equivalente europeu (Ver capítulo 2 para formas de organização política das sociedades africanas antigas).7 Indivíduo de origens étnicas da metrópole (no caso, de origens europeias), mas nascido em terri-tório colonial.

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Leitura XXI, 2010.18. __________. As relações internacionais da Ásia e da África. Petrópolis: Vozes, 2007.19. __________. As Revoluções Africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo: Editora UNESP,

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5PROCESSOS AFRICANOS DE

INTEGRAÇÃO REGIONAL

Lucas Paes, Matheus Hoscheidt & Osvaldo Pereira Filho1

A ideia de construir uma unidade africana acompanhou o processo de criação do sistema de Estados africanos contemporâneos. Desde a época colonial, diversos agrupamentos regionais foram construídos a fim de integrar as diferentes estruturas sociais, políticas e econômicas internas a cada formação colonial. Os movimentos de libertação nacional fortaleceram a concepção de identidade continental e geraram um novo vetor de aproximação. Ao mesmo tempo, ao redor do planeta, a associação entre integração e desenvolvimento socioeconômico impulsionou a criação de iniciativas de integração como alternativa para lidar com os desafios de diversos países africanos. Neste capítulo, analisaremos algumas das principais organizações vigentes no conti-nente: União Africana, CEMAC, COMESA, ECOWAS, IGAD, SADC, e UMA.

1 Graduandos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os autores agradecem a revisão de Nathaly Xavier e a colaboração do Msc. Mamadou Diallo.

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Processos africanos de integração regional 137

INTRODUÇÃO

Os agrupamentos regionais africanos, apesar de terem início no começo do século XX, foram estabelecidos rapidamente ao longo do continente a partir dos anos 80. Esse fenômeno, segundo Chazan et al. (1999, p. 276), foi uma das estratégias adotadas pelos países da África para diminuir sua dependência da economia mundial. Os resultados insuficientes do desenvolvimento econômico duas décadas após as independências e a extrema vulnerabilidade em relação aos preços mundiais de commodities fomentaram o surgimento de estratégias de aumento da autonomia nacional e coletiva entre os países africanos. Por fim, essa ideia de integração como modelo de desenvolvimento foi fortalecida pelo processo atual de globalização (CHAZAN et al., 1999, p. 277; KABUNDA, 2009, p. 91).

Antes das independências, as potências europeias já administravam as colônias em nível regional, como no caso da África Ocidental Francesa e da África Equatorial Francesa, duas unidades administrativas que dirigiam as doze colônias da França. Mesmo assim, essas grandes unidades eram divididas em territórios com governadores coloniais próprios, provocando reivindicações por autonomia e independência políticas em relação aos agrupamentos regio-nais. O excesso de desigualdades econômicas entre as colônias, o que deixou algumas receosas quanto a ganhos desiguais da integração, também fez a maio-ria dos territórios coloniais escolher se tornar independente sem vínculos fede-ralistas com as outras colônias da mesma unidade administrativa (CHAZAN et al., 1999, p. 278). De modo parecido, a África Oriental Britânica compreendia territórios do Quênia e Uganda atuais.

Hoje em dia, há mais de 200 arranjos regionais no continente africano, compreendendo desde organizações para cooperação setorial até uniões políticas (KABUNDA, 2009, p. 91). Nesse sentido, a tabela abaixo mostra os principais processos de integração atuais da África e suas respectivas regiões. Para os propósitos deste capítulo, escolhemos estudar os casos específicos dos blocos que consideramos possuir maior relevância político-econômica e estra-tégica no continente africano: UMA, ECOWAS, CEMAC, COMESA, SADC, e IGAD. Antes de analisá-los, entretanto, faz-se necessário apresentar o caso da União Africana, organização responsável pelo desenvolvimento conjunto do conti-nente através da integração desses diversos organismos sub-regionais.

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Tabela 1: Processos africanos de integração regional

África do Norte UMA (União do Magreb Árabe)

África Ocidental

ECOWAS (do inglês, Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental)

MRU (União do Rio Mano)

UEMOA (União Econômica e Monetária da África Ocidental)

África Central

CEEAC (Comunidade Econômica dos Estados da África Central)

CEMAC (Comunidade Econômica e Monetária da África Central)

CEPGL (Comunidade Econômica dos Países dos Grandes Lagos)

África Oriental e

Austral

COMESA (do inglês, Mercado Comum da África Oriental e Austral)

EAC (do inglês, Comunidade da África Oriental)

IGAD (do inglês, Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento)

SACU (do inglês, União Aduaneira da África Austral)

SADC (do inglês, Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral)

Elaboração dos autores com informações de Kabunda (2009, p. 92)

UNIÃO AFRICANA

A União Africana ganha destaque, dentre as iniciativas de integração aqui descritas, pela sua definida pretensão continental e pelo seu caráter predomi-nantemente político. Em um primeiro contato, pode ser intuitiva uma compara-ção da organização enquanto equivalente da União Europeia. No entanto, con-duzir a observação por esse caminho pode afastar o estudo da compreensão dos próprios objetivos e da construção dessa iniciativa de integração, o que a difere amplamente do caso europeu. Apesar de compartilhar da pretensão dimen-sional e possuir clara inspiração no sucesso do caso europeu à época de sua criação, a União África tem seu foco na promoção de um espaço de construção primordialmente de uma identidade africana e correlatamente de uma ideia conjunta de desenvolvimento. O tratado de Lomé (2002) expressa tais objetivos da instituição. Ainda que a promoção da integração social, econômica e política do continente seja um objetivo central da União Africana, o perfil da integra-ção será construído internamente à instituição e junto aos Estados membros. O aspecto supranacional ainda é tema de ampla disputa dentro da instituição, como refletido em sua estrutura organizacional.

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Os órgãos da União Africana podem ser agrupados em dois grandes gru-pos. O primeiro agrega os órgãos relacionados ao âmbito interestatal. Entre eles estão a Assembleia de Chefes de Estado e de Governo; o Conselho Executivo, integrado pelos chanceleres; o Comitê Permanente de Representantes, com-posto por representantes permanentes dos Estados membros em Adis Abeba; e a Comissão da UA. No segundo grupo, estão órgãos permeáveis a uma maior pluralidade de atores, incluindo a representação direta dos cidadãos africa-nos, como o Parlamento Pan-Africano, eleito por sufrágio universal. Ademais, a União Africana possui forte interação com outras iniciativas de integração e de promoção do desenvolvimento no continente.

Atualmente a instituição conta com 52 países, estando ausente apenas o Marrocos da totalidade dos países continentais e insulares africanos. A ausên-cia do Marrocos se deve à inclusão do Saara Ocidental1 ao bloco em 1984, ainda sob a forma de Organização da Unidade Africana. Dentre os atuais membros, Madagascar e Guiné-Bissau se encontram suspensos da organização dado fato de os seus governos terem ascendido ao poder via golpes de Estado. A atual composição do bloco compreende uma população de 1 bilhão de pessoas, uma área de cerca de 30 milhões de km² e uma economia de 1,681 bilhões de dóla-res.

O processo de integração

A criação da União Africana, em 2002, sucedeu a outras organizações anteriores de mesmo escopo: a União Africana de Estados e a Organização da Unidade Africana. Ao longo da história do sistema contemporâneo de Estados da África, o processo de integração em sua dimensão continental foi matizado por diversos fatores internos e externos, uma trajetória marcada pela ausência de uma linha clara de progressão em meio a distintas concepções dos objetivos da integração e dos caminhos para alcançá-los. Em seu princípio, a ideia de uma organização que compreendesse o conjunto do continente africano está forte-mente alicerçada no Pan-Africanismo, no qual se encontra a origem política e intelectual das iniciativas predecessoras da atual União Africana.

O Pan-Africanismo por vezes se confunde com a onda majoritária de des-colonização africana no final da década de 1950 e inicio da de 1960. Assim como no caso dos processos de independência de muitos países africanos, o movi-mento encontrou seus principais atores fora do continente, em meio à diáspora

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africana e a setores da sociedade que deixaram temporariamente seus países em busca de aprimoramento na sua educação formal junto a universidades europeias e estadunidenses (MAZRUI e WONDJI, 2010, p. 849-872). Ainda que o Pan-Africanismo nasça centrado em um caráter racial, em nome da afirmação dos negros dentro e fora da África, o progressivo foco do ativismo negro em questões relacionadas à cidadania interna a cada país da diáspora e às próprias políticas assimilacionistas desses governos redirecionou o Pan-Africanismo a assumir um caráter continental. As contingências relacionadas ao anticolonia-lismo foram o que promoveu a coesão em torno do movimento pan-africanista em caráter continental, incluindo países de maioria não negra, como no Norte da África. A materialização imediata desse pensamento é a relação estabelecida entre os distintos movimentos de libertação no continente.

A conexão entre pan-africanismo, movimentos de libertação e integração continental pode ser encarnada na figura do presidente ganês Kwane Nkrumah. Além de proeminente ativista do pan-africanismo já na época colonial, Nkrumah percebia a libertação de Gana apenas como o primeiro passo da libertação de todos os povos do continente e, nesse sentido, conduziu os primeiros esforços de ação conjunta dos países africanos pela expansão da libertação das colô-nias africanas (MAZRUI e WONDJI, 2010, p. 900). Com menos de um ano da independência ganesa, em 1958, Nkrumah organizou a primeira Conferência dos Estados Africanos Independentes, que teve ampla adesão dos seus pares – nominalmente, o Egito, a Etiópia, Gana, a Libéria, o Marrocos, o Sudão, e a Tunísia. Entre 1958 e 1963, outras edições da Conferência ocorreram em dife-rentes capitais dos novos Estados africanos. Ao mesmo tempo Gana, Guiné e Mali construíam em conjunto a União Africana de Estados (UAE), a primeira tentativa de criação de uma entidade supranacional no sistema de Estados afri-canos contemporâneo. A UAE possuía uma identidade político-ideológica socia-lista e teve seu fim a partir de mudanças políticas internas a um de seus mem-bros, a Guiné, além do fortalecimento da ideia de uma nova instituição pautada no não alinhamento na Guerra Fria e no anticolonialismo a fim de possuir maior capacidade de adesão.

A concomitância do sucesso das independências africanas, particular-mente no turbulento caso da Argélia (1962), com o ativismo dos membros da conferência em torno da causa fortaleceu o grupo resultando na criação da Organização da Unidade Africana (OUA) (RUTHERFORD, 1992). A organização

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reuniu progressivamente os novos Estados que se libertavam em torno de uma agenda minimalista de autodeterminação dos povos (MAZRUI e WONDJI, 2010, p. 900-905). Apesar de unidos no combate às forças coloniais e pela criação de um sistema de Estados independentes na África, existiam grandes divergências quanto aos objetivos e aos meios da integração a ser construída entre os países independentes.

No seio das Conferências dos Estados Independentes Africanos, for-maram-se dois grupos majoritários no tocante ao grau de integração conti-nental que seria coletivamente buscado. Em um grupo, denominado Grupo de Monróvia2, estavam países mais reticentes à cessão de soberania, enfatizando a ação coletiva via cooperação. Ao mesmo tempo, as elites dirigentes dos países desse grupo possuíam uma percepção menos nociva das suas antigas metró-poles. No outro grupo, o Grupo de Casablanca3, uma expressiva ruptura com as antigas metrópoles era vista como um passo necessário à autonomia africana. Nesse grupo, estavam países com uma concepção de integração mais preten-siosa, com vistas à planificação coletiva do desenvolvimento e da defesa do con-tinente (JANUS, 2010). Paralelamente, o líder ganês criou, junto à Guiné e ao Mali, a União de Estados Africanos, objetivando uma derradeira união política, os Estados Unidos da África.

Uma terceira via, liderada, entre outros, pelo imperador etíope Haile Selassie, construiu uma agenda comum que culminou com criação da OUA em 1963. A luta pela garantia da autodeterminação dos povos e a defesa do não alinhamento em relação à Guerra Fria se tornaram uma agenda consensual que permitiu a entrada de cada novo Estado independente nos anos seguintes (MAZRUI e WONDJI, 2010, p. 876-877). A despeito da ampla adesão à institui-ção - fundada por 31 Estados4 e atingindo seu número máximo de membros com a adesão da África do Sul pós-apartheid em 1994 – a OUA se viu progressi-vamente distante dos reais desafios dos países africanos. A consequência mais direta desse processo foi a proliferação de iniciativas regionais externas ao seu guarda-chuva institucional, como as que serão analisadas neste capítulo.

Após quase três décadas de insuficiente desempenho econômico no con-tinente, a OUA era associada a esse contexto. A necessidade de uma reforma institucional que tornasse a organização mais capacitada para um engajamento no desenvolvimento de seus membros se tornou dominante na instituição. O Plano de Lagos, de 1980, refletiu esse sentimento e apontou a relevância da

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construção de iniciativas de integração que rompessem com a dependência dos mercados exteriores e fortalecessem a autonomia local. Em 1990, o Tratado de Abuja formou a Comunidade Econômica Africana como braço econômico da OUA. Nesse sentido, em 1999, a partir da Declaração de Sirte, a Organização da Unidade Africana deu lugar à União Africana, com o objetivo de trazer para suas instituições uma gama maior de debates que possibilitem a construção coletiva de um conceito de desenvolvimento e de políticas para atingi-lo.

Situação e perspectivas

O principal símbolo da relevância dada ao desenvolvimento por parte da União Africana é a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD). A inciativa se propõe como uma alternativa entre as organizações autonomistas e o assistencialismo vertical predominante até o momento (DIALLO, 2006. p. 64). Dois aspectos são fundamentais nesse sentido: o compromisso com as políti-cas de boa governança como maneira de garantir o financiamento exterior aos seus projetos e a relação de cooperação com as inciativas regionais de integra-ção (DIALLO, 2006, p. 81). Essas organizações são denominadas Comunidades Econômicas Regionais no arcabouço institucional da UA e constituem os princi-pais instrumentos de integração econômica do continente (UNITED NATIONS, 2011). Algumas das principais dessas iniciativas serão apresentadas neste capí-tulo nas seções seguintes.

Talvez a mais marcante das diferenças entre a antiga OUA e a nova União Africana seja a possibilidade de intervenção em seus países membros, através de sansões ou até mesmo de incursões militares. Até agora, os membros da UA autorizaram intervenções militares em quatro países - Burundi, Sudão, Somália, e Comores - havendo mobilizando cerca de 15 mil soldados (WILLIANS, 2009). As missões são deliberadas no Conselho de Paz e Segurança da Entidade, com membros eleitos na Assembleia da UA.

Mais de cinquenta anos após a formação dos grupos de Monróvia e Casablanca, o debate sobre a formação ou não de estruturas de governo supra-nacionais ainda está vivo na União Africana. Na reunião de chefes de Estado ocorrida em Acra, em 2007, a ideia de um Governo da União Africana tomou corpo, com marcado incentivo do então presidente líbio Muammar al-Gaddafi. Ainda que sem metas claras, o debate perdeu força com a deposição de Gaddafi, mas segue vivo dentro da instituição. De todo modo, se pode considerar a União

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Africana como um ponto de inflexão no processo de integração do continente africano, por constituir-se na primeira iniciativa de dimensão continental, com adesão praticamente absoluta dos Estados africanos, a construir capacidades para cumprir um papel ativo de mudança política e econômica.

UNIÃO DO MAGREBE ÁRABE

A União do Magrebe Árabe (UMA) reúne os países da região norte da África denominada de Magrebe (Al-Maghrib) no mundo árabe, em oposição a Maxereque (Al-Mashriq), significando respectivamente poente e nascente do sol, ou oeste e leste. Os países incluídos nessa região são Argélia, Líbia, Marrocos, Mauritânia, e Tunísia (FERRABOLLI, 2009, p. 111). Juntos, os mem-bros dão ao bloco uma dimensão de 516 bilhões de dólares de PIB, em 2011, e uma população de quase 90 milhões de habitantes distribuídos em uma área de cerca de 6 milhões de km².

A ideia de criar uma organização que reunisse os países da região estava presente entre as lideranças locais desde suas independências nas décadas de 1950 e 1960. No entanto, a união só irá tomar forma em 1989, a partir do Tratado de Marraquexe, estabelecendo planos para uma progressiva integra-ção econômica, focada na integração de infraestruturas, no incremento do fluxo de bens e pessoas e na coordenação de políticas públicas entre os Estados membros. Após sua criação, a UMA só teve seu segundo encontro cinco anos depois 1994. O terceiro encontro só teve lugar no começo de 2012, em Rabat, no Marrocos, para introduzir os novos governos da Tunísia e da Líbia (AFRICAN UNION).

A baixa frequência de reuniões dos chefes de Estado reflete o baixo grau de aprofundamento que a iniciativa teve desde sua fundação. Ademais das duas reuniões de chefes de Estado, a UMA realizou 37 outras reuniões que resulta-ram na ratificação de cinco tratados relacionados à redução de tarifas em deter-minados setores e à eliminação da dupla taxação. Do ponto de vista físico, a organização esteve no centro da construção de uma autoestrada conectando a Tunísia ao Egito, passando por Argélia e Líbia.

O arcabouço institucional da União do Magrebe Árabe conta com um Conselho de Chefes de Estado, como seu órgão deliberativo máximo. Além disso, a instituição conta com um Conselho de Ministros de Relações Exteriores, que se desdobra em grupos de trabalho temáticos; uma Assembleia Consultiva;

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uma Corte de Justiça; e um Secretário Geral (AFRICAN UNION). Os últimos gru-pos são os encarregados de executar as medidas estabelecidas pelo Conselho de Chefes de Estado, com um orçamento anual médio de 1,7 milhão de dólares.

O principal entrave ao desenvolvimento da União do Magrebe Árabe é a relação conflituosa entre Marrocos e Argélia no tocante ao Saara Ocidental (FERRABOLLI, 2009, p. 112). A Argélia possui uma posição abertamente favo-rável à causa da RASD5, o que dificulta o entendimento junto ao Marrocos. A renúncia da presidência da entidade por parte da Argélia em 1994 pratica-mente congelou qualquer avanço adicional às deliberações até então traçadas. A volta das reuniões de Chefes de Estado pode ser um sinal de uma retomada no processo de integração, ainda que não esteja acompanhado de melhoras sig-nificativas nas relações entre Argélia e Marrocos.

COMUNIDADE ECONÔMICA DE ESTADOS DO OESTE AFRICANO (ECOWAS)

A ECOWAS (do inglês, Economic Community of West African States), criada em 1975, em Lagos, Nigéria, compreende atualmente os Estados de Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, e Togo, numa região de colonização francesa e inglesa. Essa divisão é chave para o entendimento de algumas das divisões internas que desafiam um projeto de integração mais pro-fundo na região. A ECOWAS possuía, entre seus objetivos iniciais, lograr a inte-gração econômica entre seus membros, com a constituição de uma zona de livre comércio, união monetária e gradual avanço no processo conjunto de harmoni-zação de políticas e medidas macroeconômicas. Contudo, os graves problemas de segurança na região, com implicações diretas para a integração econômica, colocam em evidência a necessidade prévia de garantia da estabilidade nos Estados membros. No ano de 1995 foi adotado o Tratado Revisado da ECOWAS, que inclui segurança e desenvolvimento como prioridades (ILHEDURU, 2003, p. 52).

Durante a década de 1990, a região se tornou palco de violentos con-flitos, com destaque para as guerras civis em Serra Leoa e na Libéria, onde a extração de minerais (sobretudo a exploração das abundantes reservas de dia-mantes, mineral de fácil extração) deu suporte à criação e ao fortalecimento de grupos armados com o objetivo de controlar o acesso às áreas de riqueza mine-

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ral. O papel da ECOWAS na resolução desses conflitos evidenciava a mudança da concepção do processo de integração, trazendo à tona a securitização da inte-gração regional. Atualmente, conflitos na região do Azawad, no Mali, colocam em cheque a capacidade de reação da ECOWAS para a manutenção da paz e da segurança na região.

Em relação a essa cooperação securitária regional, é interessante notar os mecanismos que estabeleceram esse nível de atuação. O Protocolo de Assistência e Defesa Mútua estabeleceu a criação de uma Força Armada Aliada da Comunidade já em 1981, e em 1990 foi assinado um protocolo de não-agres-são entre seus membros (NIGERIA, 2012). Ainda em 1990, foi criado o ECOMOG (do inglês, Ecowas Monitoring Group), um conjunto de forças especiais de terra, mar e ar para agir em resposta ao colapso da estrutura formal do Estado da Libéria. Apesar de seus inúmeros desafios operacionais, esse mecanismo foi efetivo para a construção da paz na Libéria e demonstra que iniciativas regio-nais africanas podem ser capazes de lidar com seus próprios problemas securi-tários, sem requerer auxílio externo (KHOBE, 2000).

Entre as instituições sob o escopo da ECOWAS, estão a Comissão da ECOWAS, o Parlamento, a Corte de Justiça, e o Banco da ECOWAS para Inves-timento e Desenvolvimento. Há ainda inúmeras agências especializadas, entre as quais estão agências ligadas à promoção da saúde, como a Organização do Oeste Africano da Saúde, além de agências monetárias, sobre energia, além de outros tópicos de interesse (ECOWAS, 2012). O Banco da ECOWAS para Inves-timento e Desenvolvimento (EBID, do inglês, The Ecowas Bank for Investment and Development Group) é a principal instituição financeira da comunidade, foi criado em 2004 e está situado na cidade de Lomé, no Togo. Ele possui duas instituições subsidiárias, o Fundo de Desenvolvimento Regional da ECOWAS (ERDF) e o Banco de Investimento Regional da ECOWAS (ERIB). O EBID atua tanto no setor público como no setor privado, e 66, 6% de seu aporte de capital advém dos Estados membros da ECOWAS, sendo o restante originário de auxí-lio externo (TALL, 2006).

Após o término do período colonial, França e Inglaterra continuaram a manter relativa influência sobre as novas nações previamente sob seu domí-nio. Uma das heranças francófonas que interage diretamente na dinâmica do processo de integração está hoje institucionalizada na União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA), que adota uma moeda única, o Franco

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da Comunidade Financeira Africana. Nos países da região que tiveram seu pro-cesso de colonização dirigido pela outra potência estrangeira, a Inglaterra, não houve ainda tal convergência monetária. Todavia, há o plano de implementação de uma moeda única, o ECO, no ano de 2015, em Gâmbia, Gana, Guiné, Libéria, Nigéria, e Serra Leoa, sob o escopo da União Monetária do Oeste Africano (WAMZ, do inglês, West African Monetary Zone) (NIGERIA, 2012). As influên-cias divergentes dos dois diferentes processos coloniais dificultam ainda hoje o processo de integração, devido ao fato de que muitos países da região mantêm fortes laços de dependência em relação aos antigos países colonizadores.

Atualmente, a principal economia da região é a Nigéria, que tem sua base econômica assentada principalmente na exportação de commodities como petróleo, carvão, e alumínio. A Nigéria está situada no Golfo da Guiné, região que hoje é uma das principais produtoras de petróleo do mundo, situação que aumenta o interesse externo na região. Os Estados Unidos, por exemplo, bus-cam aqui uma maneira de diminuir sua dependência do petróleo do Oriente Médio, contando ainda com a vantagem de a distância marítima ser muito menor em relação àquela região. Por outro lado, a degradação ambiental que a produção petrolífera causa na região é visível, e denúncias de derramamento e mau-gerenciamento dos recursos ambientais pelas multinacionais estrangeiras são frequentes.

A forte exploração de petróleo traz consigo maciços investimentos em infraestrutura, sobretudo no tocante à infraestrutura necessária para o escoa-mento da produção em direção ao litoral. Um dos projetos realizados foi o Gasoduto Oeste-Africano, um gasoduto de 678 km, que contou com investimen-tos do Banco Mundial, de multinacionais do setor, e também de uma empresa petrolífera estatal nigeriana. Investimentos em infraestrutura energética também fazem parte das atribuições do Banco de Investimento Regional da ECOWAS (TALL, 2006).

COMUNIDADE ECONÔMICA E MONETÁRIA DA ÁFRICA CENTRAL (CEMAC)

A CEMAC é uma organização regional que compreende seis países da África Central: Camarões, República do Congo, Gabão, Guiné Equatorial, República Centro-Africana, e Chade. Ela foi estabelecida em 1994, dando suces-são à União Aduaneira e Econômica da África Central (UDEAC), criada em 1964.

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A UDEAC, por sua vez, fora fundada para dar continuidade à União Aduaneira Equatorial (UDE), constituída em 1959. Camarões ingressou na UDE em 1961, e Guiné Equatorial entrou na UDEAC apenas em 1983. De acordo com dados de 2010, a população do bloco é de cerca de 36,7 milhões de habitantes, distribuí-dos em uma área de cerca de 3 milhões de quilômetros quadrados e com uma taxa de crescimento do PIB real de 4,08%. A relevância da CEMAC, diferente de outros acordos regionais africanos, reside no seu papel em conduzir a política monetária do franco CFA no território de seus Estados membros (CEMAC, 2012; METZGER, 2008, p. 17).

Conforme consta em sua carta, os principais objetivos da CEMAC são: (i) criar um mercado comum baseado na livre circulação de pessoas, de bens, de capitais, e de serviços; (ii) assegurar uma gestão estável da moeda comum; (iii) proteger o ambiente das atividades econômicas e de questões diversas; e (iv) harmonizar as regulações das políticas setoriais. A instituição da CEMAC encar-regada do estabelecimento do mercado comum é a União Econômica da África Central (UEAC), ao mesmo tempo em que cabe à União Monetária da África Central (UMAC) administrar a moeda comum. O principal órgão da UMAC é o BEAC, Banco dos Estados da África Central (CEMAC, 2012).

A zona do franco CFA existe desde 1945 e, segundo Metzger (2008, p._17), foi criada para proteger a moeda de alguns países africanos da desva-lorização monetária francesa em relação ao dólar devido às disposições de Bretton Woods. A partir de 1958, CFA deixou de significar “Colônias Francesas da África” e passou a ser ”Comunidade Francesa da África”. Da sua criação até 1999, o franco CFA era indexado pelo franco francês e, a partir de então, pas-sou a ser indexado pelo euro. Na primeira metade dos anos 90, a deterioração econômica que precedeu uma profunda desvalorização do franco CFA levou à formação de dois subgrupos com seus próprios Bancos Centrais em 1994: a CEMAC e a União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA). A partir dessa data, CFA passou a significar “Franco da Comunidade Financeira Africana” para os membros da UEMOA e “Franco de Cooperação Financeira em África Central” para os países da CEMAC. Muito embora haja tentativas recentes para harmonizar e integrar as políticas monetárias dos dois subgrupos, ambos pertencem a processos de integração diferentes. A CEMAC constitui grande parte dos países-membros da CEEAC (Comunidade Econômica dos Estados da África Central), enquanto todos os membros da UEMOA também participam

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da ECOWAS (METZGER, 2008, p. 17-18; FERNANDES; BOUKOUNGA; JÚNIOR, 2011, p. 33-34).

O uso de cada franco CFA é limitado à sua sub-região, e ambos são defi-nidos com paridade em relação ao outro. A convertibilidade dessas moedas é garantida pelo governo francês sob a condicionalidade de o Banco Central dos Estados da África do Oeste (BCEAO), instituição bancária da UEMOA, e o BEAC depositarem 50% de suas reservas internacionais no Tesouro Francês. Esse tesouro serve de emprestador de última instância para os países membros dos dois blocos e compensa o franco CFA pelas depreciações do euro. Em troca, os bancos centrais do CEMAC e da UEMOA não podem emprestar para seus membros mais do que 20% da receita pública do país devedor no ano anterior (METZGER, 2008, p. 18).

Em 1990, UEMOA e CEMAC firmaram um Pacto de Convergência, Estabilidade, Crescimento e Solidariedade. Esse acordo é reflexo de esforços para uma maior convergência macroeconômica entre os dois blocos e resultou na adoção de uma meta de inflação conjunta de 3% e na limitação da dívida pública para 70% do PIB dos Estados membros. Ainda assim, praticamente ine-xiste qualquer forma de compromisso entre os blocos para reduzir as desigual-dades regionais, sociais e econômicas (METZGER, 2008, p. 20-21).

Por muito tempo, a união monetária garantiu bom desempenho em alguns indicadores econômicos da região. Considerando séries de 1960 a 2004, por exemplo, um estudo de Metzger (2008, p. 19-20) aponta que a inflação média da zona do franco CFA foi de 8%, enquanto para o resto da África foi de 75%. Do começo dos anos 90 até meados dos anos 2000, a taxa real de juros e a taxa de câmbio real efetiva se mantiveram consideravelmente estáveis. A crise econômica global de 2008, entretanto, teve um grande impacto negativo para os países do bloco. A queda no volume de exportações, aliada ao declínio do preço do petróleo e de outros produtos primários, diminuiu substancialmente as receitas governamentais e aumentou a inadimplência e o desemprego dos países membros da CEMAC (WAKEMAN-LINN et al., 2009, p. 15-16).

De todos os membros da organização, apenas a República Centro-Africana não é exportadora de petróleo. A renda gerada pela exportação de petróleo cor-responde a cerca de metade do PIB de países como Chade, República do Congo, Gabão, e Guiné Equatorial. Em Camarões, a maior economia da região, esse per-centual não excede 8%6. A grande dependência de países do bloco com relação

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às exportações de petróleo acaba condicionando o desempenho econômico da CEMAC às variações de preços mundiais. Além disso, a taxa de juros da região é considerada bastante elevada, o que dificulta a atração de investimentos produtivos e o aumento da competitividade global do bloco (METZGER, 2008, p. 20-21).

MERCADO COMUM DA ÁFRICA ORIENTAL E AUSTRAL (COMESA)

O COMESA (do inglês, Common Market for Eastern and Southern Africa) é uma organização de integração regional que compreende Estados do leste, sudeste e sul africanos. O COMESA possui atualmente 19 países membros: Burundi, União das Comores, República Democrática do Congo, Djibuti, Egito, Eritreia, Etiópia, Quênia, Líbia, Madagascar, Malaui, República de Maurício, Ruanda, Seicheles, Sudão, Suazilândia, Uganda, Zâmbia, e Zimbábue. Dentre esses, destacam-se Burundi, Djibuti, Quênia, Madagascar, Malaui, República de Maurício, Ruanda, Sudão, Zâmbia, e Zimbábue, que já assinaram acordo de cria-ção de uma área de livre comércio na região. A população total de seus mem-bros é de cerca de 389 milhões de pessoas, cobrindo uma área de 12 milhões de metros quadrados, quase 40% de toda população e território africanos. O PIB somado de todos os países do bloco é de mais de 1 trilhão de dólares estaduni-denses7 (UNIÃO AFRICANA, 2011, p. 64; COMESA, 2012; CIA, 2012).

O COMESA foi criado formalmente em 1993, substituindo a Zona de Preferência Comercial (ZPC) para África do Leste e Austral, estabelecida em 1981. Em 1981, com o intuito de se tornar um mercado comum dez anos depois, a ZPC já previa sua sucessão por novos acordos que aprofundassem a integra-ção. O COMESA nasceu como uma comunidade econômica unida para fomentar o desenvolvimento econômico e superar desafios enfrentados pelos Estados individualmente. Ainda assim, ele trabalha também com alguns temas de paz e segurança, através do (a) apoio ao sistema de alerta avançada do COMESA; (b) apoio à capacidade de resposta dos Estados aos conflitos oriundos das economias de guerra; e (c) apoio à promoção da governança democrática e do comércio como ferramenta para prevenção de conflitos (COMESA, 2012; UNIÃO AFRICANA, 2011, p. 78).

Além dos dispositivos supracitados, o COMESA articula diversos pro-jetos na área de infraestrutura para reduzir os custos de transporte e evitar rotas de cargas através de terceiros países devido às más condições das estra-

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das. Nesse sentido, alguns instrumentos jurídicos foram criados para facilitar o trânsito e harmonizar as taxas de utilização de estradas. Além disso, o “Pool de Energia Elétrica para a África do Leste” é um projeto desenvolvido no âmbito do COMESA, financiado pelo Banco Africano de Desenvolvimento, para ampliar o acesso à energia elétrica na região. Na área de agricultura e segurança ali-mentar, o COMESA já desenvolveu projetos para aumentar a produtividade dos agricultores, melhorar a condição de vida do campesinato e resolver proble-mas sobre questões sanitárias e fitossanitárias dos países do bloco. O Banco Mundial, através do Programa Global para Agricultura e Segurança Alimentar (GAFSP, do inglês), já aprovou fundos da ordem de 50 milhões de euros para investimentos nos planos estratégicos de agricultura e segurança alimentar de Ruanda, além de financiar projetos semelhantes em Burundi, Etiópia, e Malaui. Em 2007, o Banco da ZPC financiou 128 milhões de dólares em investimen-tos na região do COMESA e 156 milhões para promoção do comércio (UNIÃO AFRICANA, 2011, p. 74; COMESA, 2012; GAFSP, 2012).

Muito embora o desenvolvimento institucional do COMESA tenha se dado em um ritmo considerável, a efetiva integração econômica ainda deixa bastante a desejar. O nível de comércio intrarregional do COMESA, no início dos anos 2000, ainda era inferior a 10%, sendo esse comércio praticamente dominado por apenas alguns membros, como Quênia e Zimbábue (GEDA; KEBRET, 2007, p. 363)8. Somente nos últimos anos, a importância comercial de Zâmbia e da República de Maurício cresceu de uma maneira expressiva. Os produtos expor-tados pelo bloco são, em sua maioria, produtos primários, como café, pérolas, pedras preciosas e semipreciosas, tabaco, e outros. As mercadorias industriais da região são vinculadas ao setor têxtil e não possuem grande participação na pauta de exportação do bloco, sendo que apenas o Egito, a Suazilândia e a República de Maurício possuem grande parte do seu PIB gerado pela indústria. Do mesmo modo que o bloco é um grande exportador de produtos primários, ele se constitui como um grande importador de produtos manufaturados e mais intensivos em tecnologia, como medicamentos humanos e veterinários, equipa-mentos de telecomunicação, motores, etc. (GEDA; KEBRET, 2007, p. 11; MEYN, 2005, p. 9).

Outras Comunidades Econômicas Regionais da África (RECs, sigla em inglês) também enfrentam dificuldades para desenvolver sua integração eco-nômica. Ainda assim, em 22 de outubro de 2008, representantes do COMESA,

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da SADC e da EAC se reuniram para começar a harmonizar conjuntamente os arranjos comerciais das três sub-regiões. O objetivo de longo prazo dessas nego-ciações é fundir as três RECs em uma única área de livre comércio (JUNIOR; LEITE, 2008, p. 8).

No âmbito do COMESA, diversos fenômenos são apontados como causa da sua relativa dificuldade em integrar de fato as economias da região. Dentre esses, os principais são:

1) Falta de complementaridade produtiva. O bloco, de maneira geral, é fortemente dependente da importação de produtos manufaturados de países industrializados. O comércio intrarregional, por sua vez, é dado via produtos primários similares, o que impede grande parte da comple-mentaridade econômica e dos ganhos de escala oriundos da integração (MEYN, 2005, p._9; GEDA; KEBRET, 2007, p. 368).

2) Perdas de receita. Boa parte da receita dos governos da região é oriunda de taxação de produtos importados. Essa situação configura um grande desincentivo à filiação a blocos que visam a liberalizar o comércio. Zâmbia e Namíbia, por exemplo, possuem mais de 30% de suas receitas governamentais procedentes de tarifas comerciais, enquanto Lesoto e Suazilândia possuem mais de 50% (MEYN, 2005, p._11).

3) Ganhos desiguais e mecanismos de compensação. Os países menos desenvolvidos do bloco temem perder as poucas indústrias que pos-suem devido à competição com os maiores polos do bloco, como Quênia e Zimbábue. Muitos autores propõem a criação de mecanismos que com-pensem as perdas iniciais dos países com produtos menos competitivos (MEYN, 2005, p. 10).

4) Baixa convergência de políticas macroeconômicas. O viés essencial-mente comercialista do COMESA não permitiu uma coordenação con-junta para sanar problemas dos países membros, como altos índices de inflação, moedas não-conversíveis, instabilidade monetária, câmbio supervalorizado, e ausência de oferta de capitais (MEYN, 2005, p. 10; GEDA; KEBRET, 2007, p. 272).

5) Sobreposição de membros. Muitos membros do COMESA são filiados a mais de um bloco econômico regional. Dos 19 membros totais, por exem-plo, 4 também são membros da EAC, 8 são vinculados à SADC, e outros 6, ao IGAD. Essa dupla ou tripla filiação exige maiores gastos financeiros

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e em capital humano por parte de países com já escassas capacidades técnicas, administrativas e humanas (GEDA; KEBRET, 2007, p. 270-271).Além desses pontos, outras questões limitam as perspectivas de sucesso

do COMESA, como a existência de Acordo de Livre Comércio entre o Egito e a União Europeia, por exemplo. Negociações recentes para a assinatura de Acordos de Parceria Econômica (no inglês, EPAs), pactos de liberalização comercial entre países africanos e a União Europeia, também poderiam impos-sibilitar a implantação de uma Tarifa Externa Comum (TEC) e, portanto, a cria-ção de uma União Aduaneira na esfera do COMESA. A União Europeia é res-ponsável por 30% das importações do bloco e por 40% das suas exportações, e, com exceção de Angola, Egito e Suazilândia, todos os membros do COMESA negociam EPAs com a UE (MEYN, 2005, p. 16).

AUTORIDADE INTERGOVERNAMENTAL PARA O DESENVOLVIMENTO (IGAD)

A IGAD foi criada em 1996 para substituir a Autoridade Intergovernamental para a Seca e o Desenvolvimento (IGADD), organização fundada em 1986 como resposta à sequência de secas e outros desastres naturais que ocorreram entre 1974 e 1984 no nordeste africano. Em 1986, com apoio das Nações Unidas, Djibuti, Etiópia, Quênia, Somália, Sudão, e Uganda estabeleceram a IGADD. Em 1993, após sua independência, Eritreia também aderiu à organização, totali-zando sete Estados membros. Esses países compreendem a região do chamado Chifre Africano, ou península Somali, que é a maior projeção leste da África e é onde o estreito de Bab-el-Mandeb separa o continente africano do asiático. A função da IGADD era, basicamente, promover a cooperação funcional nas áreas de proteção ambiental, segurança alimentar, gestão de recursos naturais, e ges-tão dos efeitos da seca, sem grandes pretensões securitárias. Apesar de possuir alguns mecanismos inovadores para cumprir seu mandato, seu secretariado tinha somente 12 profissionais, e o excesso de conflitos entre membros do bloco dificultava o bom andamento das negociações para a integração (HEALY, 2011, p. 106-107; WELDESELLASSIE, 2011, p. 2).

Em 1991, o fim da guerra de três décadas entre Etiópia e Eritreia, com a decorrente estabilização da região, foi um ponto decisivo para a retomada do papel da então IGADD. Em 18 de abril de 1995, durante uma cúpula em Adis Abeba, Etiópia, chefes de Estado e de governo acordaram em expandir o man-

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dato da IGADD, abordando também questões de estabilidade política, desen-volvimento, promoção da integração econômica, desenvolvimento conjunto de infraestrutura, e cooperação securitária. Em 1996, emendaram a Carta da IGADD, renomeando a organização Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) e especificando a expansão de seu mandato. Em 1998, mais uma vez Eritreia e Etiópia entram em guerra, prejudicando as negociações no âmbito da IGAD. Junto com a sua criação, estabeleceu-se também o Fórum de Parceiros da IGAD (na sigla em inglês, IPF), um grupo de países e organiza-ções internacionais que acompanham, suportam e/ou financiam as atividades da IGAD. O IPF, ao mesmo tempo em que viabiliza operações da IGAD, diminui a autonomia da região para solucionar de forma independente as suas questões de segurança (WELDESELLASSIE, 2011, p. 2-4).

Em relação à participação da organização frente aos conflitos regionais, o padrão de sua atuação é exemplificado ao analisarmos os casos do Sudão e da Somália. De acordo com Healy (2011, p. 116-117), ao tentar solucionar os con-flitos que sucederam entre 1993 e 2005 entre o governo do Sudão e os sul-suda-neses, a IGAD colaborou nas negociações do Amplo Acordo de Paz, que garantiu relativa pacificação da região e permitiu o referendo que determinou a criação do Estado do Sudão do Sul em 2011. Quanto à atuação da IGAD na Somália, muitas críticas lhe foram dirigidas, apontando que, ao apoiar a intervenção da Etiópia em território somali, a Autoridade foi instrumentalizada para servir aos interesses de alguns membros específicos sem mostrar disposição para prote-ger a vida de mais de 15 mil civis que foram mortos. Essa situação na Somália e as relações conturbadas com a Etiópia levaram o governo da Eritreia a deixar a IGAD em abril de 2007. De maneira geral, os conflitos da região têm uma forte dimensão religiosa, com Etiópia e Eritreia apoiando, respectivamente, governos cristãos e muçulmanos. Controversas a parte, a IGAD é considerada um caso raro de mediação securitária regional, e sua legitimidade para moderar confli-tos é reconhecida por seus países membros (HEALY, 2011, p. 128-120).

Em relação aos programas e instituições da organização, o Mecanismo de Alerta Avançado e de Resposta às Situações de Conflito (do inglês, CEWARN) adquiriu responsabilidade pela prevenção, gestão e resolução de conflitos intra e interestatais. Na prática, entretanto, suas funções foram reduzidas ao mapea-mento e ao alerta antecipado de pequenos conflitos transfronteiriços entre pas-tores. As atividades do CEWARN em muito são comprometidas pelo ambiente

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de conflito que rondeia a IGAD e dificulta a troca de informações sensíveis e o trabalho conjunto em questões de segurança (UNIÃO AFRICANA, 2011, p. 141-142; WELDESELLASSIE, 2011, p. 20-21).

A IGAD destina esforços consideráveis para projetos que minimizem os efeitos de desastres climáticos. Nesse sentido, o Centro da IGAD para Previsão e Aplicação Climática (ICPAC) serve para melhorar a capacidade técnica dos pro-dutores que utilizam informações climáticas, bem como desenvolver e difundir um melhor sistema de recepção e resposta a essas informações. Esses mecanis-mos também são essenciais para a questão da segurança alimentar no Chifre da África. A região, em 2009, recebia 40% da ajuda alimentar mundial, e pelo menos dois milhões de pessoas dependiam dessa ajuda. A falta de infraestru-tura também colabora com a insegurança alimentar, pois, ao dificultar a comer-cialização, torna a produção agrícola uma atividade não rentável. Para projetos de infraestrutura, por sua vez, a função da IGAD é apenas de facilitar e coorde-nar projetos entre os Estados membros (UNIÃO AFRICANA, 2011, p. 147-150, 160-162).

As questões comerciais da IGAD são tratadas através de programas con-juntos com o COMESA a fim de evitar dispêndio desnecessário de recursos e garantir maior coerência entre as políticas da região. Dos membros da IGAD, apenas a Somália não faz parte também do COMESA, sendo que Djibuti, Quênia e Sudão fazem parte até mesmo da Zona de Livre Comércio do COMESA. O espí-rito de cooperação entre os dois organismos ficou evidente no acordo que esta-beleceu a IGAD em 1996, onde consta como meta da organização “promover e realizar os objetivos do Mercado Comum da África Oriental e Austral (COMESA) e da Comunidade Econômica Africana”. Ainda assim, em 2008, uma reunião sobre o Programa Mínimo de Integração solicitou com urgência a realização de estudos que norteiem o estabelecimento de uma Zona de Livre Comércio entre os países da IGAD. Nas negociações para harmonização das políticas dos Estados membros, existem ainda tratativas para elaboração de um Protocolo para Livre Circulação de Pessoas entre os países da região (UNIAO AFRICANA, 2011, p. 41, 158-160, 173).

A IGAD desenvolve uma série de projetos para a promoção da igualdade de gênero em diversos âmbitos dos Estados membros. Em sua estratégia para a Política de Igualdade dos Sexos, a IGAS elaborou indicadores de avaliação da igualdade de gênero, criou campanhas que integram as mulheres em cargos de

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tomada de decisões na esfera pública e defendeu publicamente a luta contra a violência baseada na diferença de gênero. Além dos projetos nesse sentido, a IGAD levanta fundos com os membros do IPF para sustentar programas de luta contra HIV/AIDS. Em 2007, 15 milhões de euros foram levantados com a ajuda do Banco Mundial para programas como esses (WELDESELLASSIE, 2011, p. 11-12; UNIAO AFRICANA, 2011, p. 163).

Ao pesar os acertos e erros da IGAD, Weldesellassie (2011, p. 26) aponta que os ambientes políticos variados e as formas muito distintas de governo dos países membros são um dos maiores obstáculos à integração na sub-região. Como consequência, a IGAD consta atrás de outras organizações regionais africanas ao se considerar o desenvolvimento do setor privado, a integração econômica e as convicções normativas e políticas do bloco. Desde que a IGAD adicionou as questões de paz e segurança em seu programa, não há grandes evidências de que o grau de segurança coletiva aumentou e de que a região está menos conflituosa. Ao mesmo tempo em que se avalia positivamente a relativa estabilidade do processo de paz no Sudão e a criação do Sudão do Sul, o envolvi-mento duradouro da IGAD na Somália demonstra algumas limitações do bloco em solucionar conflitos de uma maneira efetiva.

COMUNIDADE DE DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL (SADC)

Na África Austral, o fenômeno da sobreposição de diferentes mecanis-mos de integração é particularmente intenso. A SADC (do inglês, Southern African Development Community), o maior organismo de integração da região, engloba quinze Estados: África do Sul, Angola, Botsuana, República Democrática do Congo, Ilhas Maurício, Lesoto, Madagascar, Malauí, Moçambique, Namíbia, Seicheles, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia, e Zimbábue. Entre alguns Estados que compõem a SADC, outros mecanismos de integração são Área Monetária Comum (CMA, do inglês, Common Monetary Area), entre África do Sul, Lesoto, Namíbia, e Suazilândia, e a União Aduaneira da África Austral (SACU, do inglês, Southern African Customs Union), que além dos países da CMA, engloba Botsuana. Também há sobreposição, em relação a alguns Estados que fazem parte de ambos os processos de integração, entre a SADC e a COMESA. A sobre-posição desses dois processos ocasiona maiores dificuldades devido a seus já escassos recursos humanos, administrativos e de capacidade técnica (MEYN, 2005, p. 13).

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O antecedente direto da criação da SADC foi a Conferência para a Coordenação do Desenvolvimento da África Austral (SADCC, do inglês, Southern African Development Coordination Conference), que foi organizada ainda no contexto da Guerra Fria e da vigência do regime do apartheid9 na África do Sul. A SADCC reunia Angola, Botsuana, Lesoto, Malaui, Moçambique, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia, e Zimbábue e possuía, entre seus objetivos, a cooperação entre seus membros para diminuir a influência da África do Sul sobre a região. Nota-se que, durante esse período, o Estado sul-africano atuava em diversos conflitos de baixa intensidade, fazendo incursões na região, sobretudo em Angola e Moçambique, com o objetivo de desestabilizar os governos socialistas ali instalados. Em 1992, a SADCC é transformada em SADC, com a inclusão de novos membros, inclusive a própria África do Sul, que já passava por um amplo processo de superação de seu regime segregacionista e intervencionista.

Segundo Meyn (2005), o processo de integração objetivado pela SADC busca atingir um patamar de desenvolvimento industrial aliado à integração dos mercados. Em relação ao volume efetivo de comércio, as trocas intrarregião ainda possuem importância econômica limitada. O maior fluxo de comércio da SADC ocorre com a União Europeia. Dentro desse contexto, foram estabe-lecidos diversos acordos entre os blocos (os chamados Economic Partnership Agreements), incrementando o direcionamento norte-sul10 do comércio dos países do bloco.

A SADC também busca a cooperação na área de defesa e segurança. Dentro dessa premissa, foi assinado, em 2001, o protocolo que deu origem ao Órgão para Política, Defesa e Segurança. Nos anos subsequentes, ocorreram intervenções no Lesoto, na República Democrática do Congo, no Zimbábue, e em Madagáscar. Apesar de alguns balanços positivos, como a eficácia para a manutenção da segurança no Lesoto, essas intervenções possuíram sérias limitações, de ordem financeira e mesmo de legitimidade interna. Os países interventores acabaram tendo de arcar com altos custos sobre a manutenção de tropas. Instituições financeiras como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial inclusive demonstraram preocupação com o volume de gastos de alguns países nessas operações, e, dada a contínua dependência desses em relação à ajuda financeira externa, ficou demonstrado o limite da autonomia que esses países possuem para estabelecer a segurança dentro do processo de integração (MBEBE, 2000).

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O Parlamento da SADC promove uma série de programas para o efe-tivo desenvolvimento da região, indo além da cooperação em nível econômico. Exemplos desses programas estão nas áreas de democracia e governança, saúde pública e combate ao HIV/AIDS, desenvolvimento regional e integração, igualdade de gênero, e informação e tecnologias de comunicação (SADC, 2012). A SADC também possui sua própria estrutura judicial, o Tribunal da SADC, que estava previsto no artigo 9 do tratado de constituição da comunidade. O Tribunal foi inaugurado no ano de 2005 e está localizado na Namíbia (SADC TRIBUNAL, 2012). Outros setores em que a comunidade busca atuar incluem projetos em infraestrutura, energia, e turismo.

Com relação à infraestrutura intrabloco, essa apresenta os melhores indicadores de todo o continente. Apesar de algumas restrições e de necessá-rias melhorias para a efetiva ligação entre os países, os transportes rodoviá-rio, ferroviário e a oferta de portos apresentam bons indicadores. A produção de energia possui a maior capacidade da África, mas o acesso pela sociedade ainda é limitado (WORLD BANK, 2011). É preciso notar, contudo, que muito dessa infraestrutura é anterior ao processo de integração, e que a capacidade de escoamento da produção nem sempre se reflete em real desenvolvimento para o conjunto da população. Outro ponto relevante é a posição da África do Sul como principal detentora de uma infraestrutura adequada, o que demons-tra a necessidade ainda não contemplada de melhorar a interligação entre os outros países da região.

O processo de integração na África Austral é bem estabelecido, cobrindo diversos setores, além da tentativa de melhorar o volume comercial e avançar em outras políticas macroeconômicas. Desde a constituição do bloco, tarifas do comércio entre os países foram reduzidas, e os fluxos tiveram um gradual incre-mento. O aumento da importância do comércio em relação ao PIB desses países é também um claro indício da crescente integração (BEHAR, A.; EDWARDS, L., 2011). Apesar disso, há ainda muitos desafios à SADC, entre eles possibilitar o crescimento industrial e o desenvolvimento de todos os países da região. O estabelecimento de cadeias produtivas complementares e a consecução de um mercado comum, com livre fluxo de pessoas e capital, somados ao alargamento da união aduaneira para além do âmbito da SACU, também são importantes para o crescimento e para a consolidação do bloco.

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PONTOS A DISCUTIR

1) Qual a importância dos processos de integração africanos para a inserção internacional dos países da região e do continente como um todo?

2) De maneira geral, quais são os principais obstáculos à melhor efetivação da integração africana no âmbito sub-regional e continental?

3) Qual o papel de potências regionais, como África do Sul para SADC e Nigéria para ECOWAS, nos processos de integração da África?

Notas¹ O Saara Ocidental é alvo de disputa territorial com o Reino do Marrocos. Enquanto o primeiro reivindica sua independência sob o nome de República Árabe Saarauí Democrática, o Marrocos mantém o território sob seu domínio.² O Grupo de Monróvia era composto pelas ex-colônias francófonas mais Libéria, Serra Leoa, Nigéria, Togo, Somália, Tunísia, Etiópia, e Líbia. ³ O Grupo de Casablanca era composto por Gana, Guiné Conacri, Mali, Marrocos, Egito, e Argélia. 4 Os membros eram Argélia, Burundi, Camarões, Republica Central Africana, Chade, Congo-Brazzaville, Congo (Leopoldville), Egito, Etiópia, Gabão, Gana, Guiné, Costa do Marfim, Libéria, Líbia, Madagascar, Mali, Mauritânia, Marrocos, Níger, Nigéria, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Togo, Tunísia, Uganda, Alto Volta (atual Burkina Faso), Tanganica e Zanzibar (os dois últimos hoje formam a Tanzânia), em seus nomes na época.5 Ver nota 1.6 Estatísticas de 2010 do banco de dados do Banco Mundial. Disponível em: http://databank.worldbank.org/. Último acesso: 16 nov. 2012. 7 Dados de estimativa para 2011 em paridade do poder de compra (PPC). Disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/ Último acesso: 4 fev. 2013.8 Deve-se considerar que esses números não consideram trocas transfronteiriças informais.9 O apartheid foi um regime segregacionista, que opôs a minoria branca sul-africana à maior parte da população negra e de outras minorias do país até o ano de 1994. O regime também foi caracteri-zado pelo alinhamento com o bloco capitalista no contexto da Guerra Fria, o que condicionou inter-venções intermitentes da África do Sul contra vários de seus vizinhos, como Angola e Moçambique, que ensejavam suas revoluções socialistas durante a década de 1970.10 Esse direcionamento norte-sul do comércio, entre países desenvolvidos (em geral situados ao norte do globo) e países em desenvolvimento (ao sul, como os países constituintes do bloco da SADC) evidencia o forte papel dos produtos primários na pauta de exportações da SADC.

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6A ÁFRICA NO PÓS-GUERRA

FRIA: GEOPOLÍTICA E “NOVOS” ATORES

Guilherme Ziebell de Oliveira, Isadora Loreto da Silveira & Júlia Paludo1

O período pós-Guerra Fria vem testemunhando o reposicionamento africano no sistema internacional. Seja entre atores tradicionais, seja entre novos parceiros, o continente vem gerando renovado interesse. A análise do “renascimento africano” e das relações exteriores da África é, portanto, essencial à compreensão das relações internacionais contemporâneas.

1 Graduandos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os autores agradecem a revisão de Ana Júlia Posssamai e a colaboração da Profª. Analúcia Pereira.

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INTRODUÇÃO

O fim da Guerra Fria promoveu profundas transformações no sistema internacional. Tais transformações se devem à configuração de novos espaços de projeção internacional, assim como à redistribuição de poder, marcada pela emergência de novos atores estatais importantes no cenário internacional. O continente africano representa, nesse contexto, um importante espaço geoes-tratégico nas relações internacionais contemporâneas. Ao mesmo tempo em que as potências mundiais buscam criar zonas de influência no continente, as elites políticas africanas, muitas vezes fragilizadas pelos problemas e conflitos domésticos gerados pelo próprio processo ainda não consolidado em diversos países de formação do Estado-nação, necessitam do apoio externo. Os interes-ses africanos em torno da autonomia e do desenvolvimento têm sido, nesse sentido, condicionados pelo movimento sistêmico de rivalidade ou cooperação entre as principais potências desde a formação do sistema de Estados no con-tinente.

Atualmente, pode-se perceber a atuação crescente de países emergen-tes como China, Índia, Brasil, Rússia, assim como de potências como os Estados Unidos e integrantes da União Europeia, notadamente a França, no espaço africano, devido à capacidade de algumas regiões africanas em suprir algumas demandas econômicas mundiais e à importância estratégica do conti-nente africano no século XXI. A análise do padrão das relações desses países com a África é, portanto, fundamental para a determinação das perspectivas para o desenvolvimento africano, no quadro de interações marcadas algumas vezes por fortes estruturas de dominação e com traços neocoloniais e outras, por cooperação Sul-Sul e situações de ganhos mútuos e, ainda, relações com diversas nuances entre os dois extremos. Portanto, em seguida trataremos das relações entre o continente africano e parceiros tradicionais, como a França e os EUA, e também dos vínculos com parceiros alternativos como China, Índia, Rússia, Cuba, e países do Oriente Médio.

AS RELAÇÕES ENTRE A FRANÇA E A ÁFRICA: A FRANÇAFRIQUE

A França buscou, ao conceder independência às suas colônias africanas, sobretudo durante a década de 1960, substituir o domínio direto por uma forte influência sobre esses países, de forma a manter o seu status de potência global.

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Nesse contexto, articulou-se a chamada Françafrique1, uma rede através da qual foram estabelecidos diversos sistemas de dominação, com o objetivo de manter a dependência dos países africanos em relação à antiga metrópole, que teve como principais articuladores De Gaulle e seu braço direito, Jacques Foccart.

Com isso, a França buscava quatro objetivos principais. Primeiramente, objetivava estabelecer uma rede de apoio junto à Organização das Nações Unidas (ONU), composta pelos Estados africanos, garantindo apoio e votos a favor de seus interesses na Organização. Em segundo lugar, buscava-se garan-tir o acesso a matérias-primas estratégicas ou muito rentáveis (como petróleo, urânio, e madeira). Em terceiro lugar, visava a estabelecer uma ampla rede de financiamento para os partidos políticos franceses, gerada principalmente atra-vés do desvio de parte da ajuda pública ao desenvolvimento africano. Por fim, a França buscava cumprir um papel de alinhamento com os EUA no contexto da Guerra Fria, mantendo os países francófonos da África dentro da esfera antico-munista (VERSCHAVE, 2004).

Assim, a França buscou, através da atuação de seu serviço secreto e da utilização de diversas outras ferramentas (institucionais ou não), levar ao poder e apoiar governantes pró-França nos países independentes. Entre essas ferramentas, estava o uso da violência, fosse ela contra os movimentos inde-pendentistas2, fosse contra líderes políticos específicos3. Também na tentativa de ampliar seu domínio, a França fomentou a formação de grupos paramilita-res e mercenários (para que esses realizassem os serviços nos quais o exér-cito francês não podia se envolver) e criou a Comunidade Financeira Africana, ou Zona do Franco (CFA), que serviu para facilitar a evasão de divisas para a França4. Foram criadas ainda empresas fantasmas e bancos, ambos com o obje-tivo de facilitar a dominação e a atuação francesa, além da evasão de divisas. Além disso, por meio do fornecimento de financiamentos públicos, que nunca eram de fato repassados, os bancos foram utilizados para aumentar as dívidas externas dos países africanos e consolidar sua dependência em relação à antiga metrópole (VERSCHAVE, 2004). Nesse sentido, Patrick Pesnot (2008, p. 10) destaca que

[...] depois de décadas, Paris jamais deixou de impor sua tutela e de fazer tudo para preservar seus interesses econômicos e polí-ticos na África (urânio nigerino, petróleo gabonês, cacau marfi-nense, etc.). Para concretizar essa ambição, os sucessivos gover-nos franceses utilizaram todo o arsenal de meios que estavam à sua disposição: golpes, truques sujos dos serviços secretos, inter-

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venções das tropas deixadas no continente após a descolonização, envio de mercenários, acordos secretos assinados com os dirigen-tes [de alguns países] autorizando Paris a se imiscuir nos assun-tos internos, estabelecimento de redes de mercenários, pressões econômicas... (tradução dos autores)5

Diversos foram os líderes africanos que, ao apoiarem os interesses fran-ceses e submeterem seus países a eles, estabeleceram fortunas quase tão gran-des quanto as dívidas externas de seus países6. Com isso, grande parte desses países teve suas estruturas de saúde, educação e de outros serviços básicos completamente desmontadas. Além disso, uma significativa parcela desses paí-ses jamais logrou alcançar um verdadeiro desenvolvimento econômico – o que, em grande medida, serviu aos interesses franceses. Se esses países, eventual-mente, conseguissem atingir um desenvolvimento produtivo real, surgiriam diferentes classes de empresários e assalariados que poderiam vir a contestar a utilização das verbas públicas. Logo, a perpetuação do subdesenvolvimento desses países não se deu por uma incapacidade local, mas por obra da atuação da antiga metrópole, que tinha o objetivo muito claro de facilitar e perpetuar a sua dominação (VERSCHAVE, 2004).

A partir da década de 1980, teve início uma fragmentação da Françafrique. A crise econômica que assolou o sistema internacional a partir daquela década diminuiu o montante de recursos a serem destinados para a cooperação econô-mica (e, consequentemente, o montante disponível para desvio). Somaram-se a isso, as imposições colocadas pelos programas de ajuste estrutural7 e as trans-formações internacionais surgidas com o fim da Guerra Fria, as quais deram início a uma onda de democratização que varreu o continente africano, contri-buindo para que houvesse um enfraquecimento do sistema de dominação fran-cês e uma reestruturação da política externa francesa para a África a partir de meados dos anos 1990 (MÉDARD, 2008).

A onda de democratização que ocorreu a partir da queda do muro de Berlim tornou mais difícil a atuação dos líderes africanos apoiados pela França. Nesse contexto, por meio da Ajuda Pública ao Desenvolvimento, os franceses passaram a dotar diversas ex-colônias de sistemas de votação e de informatiza-ção e centralização de resultados semelhantes aos utilizados na França. Através desses sistemas, a Françafrique passou a manipular os resultados das eleições, propagando uma imagem de difusão da democracia e, ao mesmo tempo, perpe-tuando no poder os líderes aliados à antiga metrópole, mesmo que esses não

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contassem com o efetivo apoio da população8. Os poucos países em que esse processo de “controle democrático” estabelecido pelos franceses acabou sendo revertido pela população foram rotulados de antidemocráticos e sofreram cor-tes na cooperação francesa (VERSCHAVE, 2004).

Paralelamente a isso, a partir do início da década de 1990, os discursos de diferenças étnicas começaram a se intensificar em diversas dessas antigas colônias, em uma tentativa dos líderes de conquistarem o apoio de parte da população. Esse foi, em grande medida, o discurso que fomentou o genocídio em Ruanda em 19949. Ainda que até hoje não esteja plenamente esclarecida a profundidade do envolvimento francês, sabe-se que o país teve papel impor-tante no evento. A França, que havia assinado um acordo de cooperação militar com Ruanda em 1975, também foi responsável por treinar e equipar o exér-cito ruandês no início da década de 1990. Assim, quando os primeiros massa-cres tiveram início no país, a França se preocupou primeiramente em retirar do país seu aliado, o presidente ruandês Jean-Pierre Habyarimana, bem como seus parentes e todos aqueles que eram próximos a ele, sem se preocupar com a estabilização da situação. Nesse ínterim, Paris se opôs, junto à ONU, ao reco-nhecimento do massacre dos tutsis e dos hutus moderados como genocídio (PESNOT, 2008). Além disso, ao longo do genocídio, a França forneceu armas e munições aos militares ruandeses (VERSCHAVE, 2004).

O envolvimento no genocídio em Ruanda contribuiu fortemente para uma piora da imagem francesa no continente africano, com uma consequente diminuição de sua credibilidade e de sua influência – sobretudo após a queda do regime aliado de Habyarimana. Associado a isso, a França impôs, em 1994, uma desvalorização do Franco CFA, o que foi percebido pelas elites e populações dos países detentores da moeda como uma traição e quebra do contrato informal que ligava a França às suas antigas colônias (MÉDARD, 2008). Esses eventos marcaram o início de uma reforma estrutural da Françafrique. A transforma-ção do Zaire, de Mobuto Sese Seko, que era apoiado pela França, em República Democrática do Congo, sob Laurent Kabila, com o apoio de Ruanda (agora sob Paul Kagame) e de Uganda (sob Yoweri Museveni) e a morte de Jacques Foccart, o arquiteto da Françafrique, ambos em 1997, reforçaram ainda mais a perda de influência e a ideia de reestruturação da política francesa para a África (MARTIN, 2002).

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A partir de 1998, uma reestruturação ministerial pôs fim à diferenciação entre os países africanos francófonos e os demais. O ministério da Cooperação, que se dedicava exclusivamente às relações com as ex-colônias africanas, foi absorvido pelo ministério das Relações Exteriores, colocando todos os países no mesmo patamar para a política externa francesa. Além disso, foi realizada uma reestruturação na política militar francesa para a África. O número de tropas francesas no continente foi reduzido, e Paris passou a fornecer apoio técnico e logístico para que os países africanos pudessem resolver seus confli-tos de maneira independente10 (MÉDARD, 2008).

Essa atitude refletiu, em grande medida, a preocupação francesa com a estabilidade do continente, em uma tentativa de evitar que seus interesses (políticos e econômicos) fossem afetados. Afora isso, a adoção da nova doutrina militar para o continente africano tinha o objetivo de garantir que, caso aconte-cesse algum conflito, esse fosse rapidamente neutralizado, e a situação, estabi-lizada, evitando qualquer prejuízo aos interesses franceses, sem a necessidade de uma intervenção direta (MÉDARD, 2008).

Nesse contexto, a França buscou uma maior multilateralização e conti-nentalização de sua política externa para a África, desenvolvendo laços mais fortes também com países não-francófonos, tais como como Nigéria, África do Sul, e Gana – países capazes de (e interessados em) manter a estabilidade do continente. Da mesma forma, a França buscou, entre 1997 e 2002, realizar uma política de não intervenção nos países africanos. Todavia, o discurso francês de cooperação militar que emergiu após o genocídio em Ruanda foi puramente retórico, havendo, na realidade, uma relegitimação da hegemonia francesa sobre a África Subsaariana (CHARBONNEAU, 2006). Apoiando-se na defesa de “normas e valores democráticos”, a atuação militar direta da França acabou sendo autorizada e legitimada no continente. A partir de então, os conflitos africanos passaram a ser retratados como apolíticos e irracionais, enquanto a intervenção externa era apresentada como a ferramenta capaz de fornecer as condições para a paz duradoura. Nesse sentido, o país realizou intervenções na Costa do Marfim, a partir de 2002, que culminaram, em 2011, na retirada do presidente marfinense, Laurent Gbagbo, do poder. Em 2006, intervenções foram realizadas no Chade e na República Centro Africana. Por fim, em 2011, a França interveio na Líbia, sob a égide da OTAN11, sendo a responsável pelos

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ataques aéreos que viabilizaram a captura e a morte do líder líbio, Muammar al-Gaddafi, pelas forças rebeldes.

Ademais da multilateralização, destaca-se a europeização da Françafrique, no bojo da atuação da União Europeia (TAYLOR, 2010; VERSCHAVE, 2004). Esse fenômeno pode ser percebido pela atuação da Força da União Europeia (EUFOR, na sigla em inglês), uma força de reação rápida que já atuou na República Democrática do Congo em 2006 e atua, desde 2007, no Chade e na República Centro Africana. AS RELAÇÕES ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E O CONTINENTE AFRICANO

Durante a Guerra Fria, a interação estadunidense com o continente afri-cano se deu por meio da realização de alianças com elites anticomunistas e do apoio a e da manutenção de guerras por procuração12, no bojo da realpo-litik13, que caracterizou as relações internacionais do país no período. Com o fim da disputa bipolar e da necessidade de contenção comunista engendrado pela queda da URSS, os anos 1990 ficaram conhecidos como a “década do não envolvimento” na África. Aos olhos de Washington, o continente havia perdido sua importância estratégica. Não houve, todavia, um abandono completo, sendo mantido o comércio e o apoio ao desenvolvimento, além da assistência finan-ceira condicionada à “boa governança” e à liberalização econômica. Nos anos 2000, porém, ainda que tenha havido continuidades em relação à política pra-ticada na década anterior, a África adquiriu um novo lugar estratégico nas rela-ções exteriores dos EUA, marcado pela securitização da agenda, pela crescente importância africana para a segurança energética dos EUA e pela competição com a China (TAYLOR, 2010).

No imediato pós-Guerra Fria, tanto o governo de George H. W. Bush (2001-2009), quanto o de Bill Clinton (1993-2001) buscaram um engajamento proativo no continente africano, inclusive mediando um acordo de paz nego-ciado na Guerra Civil Angolana, a qual anteriormente ambos haviam ajudado a perpetrar. Nesse quadro, em 1990, a reforma política adquiriu importância central na relação dos EUA com o continente africano, uma vez que Washington, Londres e Paris anunciaram que a assistência estrangeira à África seria condi-cionada a partir de então à democratização dos países africanos. Após a malo-grada intervenção na Somália entre 1992 e o início de 1994, quando teve início

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a retirada estadunidense, inaugurou-se um novo período nas relações dos EUA com a África (LAWSON, 2007).

Esse período se caracterizou pelo desengajamento. À época da retirada dos EUA da guerra civil somali, o genocídio em Ruanda já ocorria, e o governo dos EUA optou por não se envolver. Clinton chegou a emitir uma decisão dire-tiva presidencial que determinava a limitação de futuras missões da ONU e a participação dos EUA nelas. As duas principais considerações para aprovar mesmo missões da ONU, inclusive as que não contassem com participação estadunidense, eram: (i) se a operação seria benéfica aos interesses dos EUA; e (ii) se a operação se justificava por uma ameaça clara à segurança e à paz internacional. As ações humanitárias dos EUA passaram, então, a ser limitadas pelo pragmatismo (LAWSON, 2007).

Segundo Taylor (2010), os atentados às Torres Gêmeas em 11 de setem-bro de 2001 redundaram na securitização das políticas para a África sem, toda-via, promover uma mudança em seus princípios. Atualmente, os principais objetivos declarados da política estadunidense para o continente africano são a integração da África na economia global por meio de crescimento econômico, do desenvolvimento, da boa governança e da resolução de conflitos, além do combate a ameaças de segurança transnacionais, principalmente terroristas. As principais áreas das políticas dos EUA na África são o combate e a prevenção à AIDS; a proteção do acesso ao setor de energia, notadamente ao petróleo; a Guerra ao Terror14; a tentativa de resolução dos conflitos armados; e a assistên-cia ao desenvolvimento, sempre condicionada à boa governança.

As iniciativas estadunidenses de combate ao terrorismo na África contam com diversas iniciativas militares de assistência securitária, tais como a Iniciativa Pan-Sahel (PSI, na sigla em inglês) e a Força Tarefa Conjunta Combinada–Chifre da África (CJTF-HOA, idem) em 2002; a Iniciativa de Contraterrorismo da África Oriental (EACTI) em 2003; e a Iniciativa de Contraterrorismo Transaariana (TSCTI, idem), que substituiu a PSI, em 2005 (COPSON, 2007). Ademais, em 2007, foi criado o Comando dos EUA para a África (AFRICOM, na sigla em inglês), tornando-se um dos nove Comandos Combatentes Unificados do Departamento de Defesa dos EUA, dos quais seis têm foco regional. Com base em Stuttgart, na Alemanha, o AFRICOM entrou completamente em operação em 2008. O Comando é responsável, junto ao Secretário da Defesa, pelas relações militares dos EUA com os países africanos (AFRICOM, 2012). Anteriormente, a

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Figura 1: Comandos Combatentes Unificados

Fonte: US Army Medical Department.

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responsabilidade pela África estava dividida entre três comandos: o Comando Europeu (EUCOM, sigla em inglês), o Comando Central (CENTCOM, idem), e o Comando do Pacífico (PACOM, idem) (ESCOSTEGUY, 2011). A Figura 1 ilustra a distribuição geográfica dos Comandos.

De acordo com Copson (2007), os esforços diplomáticos dos EUA para a manutenção da paz no continente africano durante os dois mandatos do Presidente George W. Bush foram limitados e não foram considerados tema prioritário. Nesse governo, a política externa dos EUA para a África foi pautada pela condução da guerra global ao terror e pela proteção do acesso ao petróleo, deixando de lado o apoio à resolução de conflitos. A demora de Washington em se posicionar em relação ao conflito de Darfur15, região na porção oeste do Sudão, foi o maior exemplo disso (COPSON, 2007). Além disso, houve parcimô-nia na manutenção da paz, com cortes nas contribuições estadunidenses a essa área. Em seu lugar, foram criadas iniciativas de treinamento de pacificadores, visando à economia de força dos EUA. Dentre essas iniciativas, destacam-se a Formação e Assistência a Operações de Contingência Africanas (ACOTA), criada em 2002, e a Iniciativa das Operações Globais de Preservação da Paz (GPOI), criada em 2004 e da qual a ACOTA passou então a fazer parte, visam à economia de força dos EUA, que, dessa forma, não precisam destacar contingentes muito grandes para operações de paz no continente africano.

Desde o Governo Bush, o país procura aumentar seu acesso ao petróleo africano, a fim de reduzir, pelo menos em algum grau, a dependência em relação ao petróleo do Oriente Médio, muito suscetível às mais variadas instabilidades. Embora seja impossível aos EUA escapar dessa dependência completamente, há um esforço claro no sentido de reduzir a vulnerabilidade do país quanto a interrupções de fornecimento, diversificando seus fornecedores. A política atual do governo dos EUA sobre a compra de petróleo de países africanos, em especial da Nigéria, se baseia na “Política Energética Nacional”, definida ainda em maio de 2001, pelo relatório final do Grupo de Desenvolvimento da Política Energética Nacional, um corpo de alto nível nomeado pelo presidente Bush em fevereiro do mesmo ano, que contou com a participação de Dick Cheney na sua elaboração (KLARE; VOLMAN, 2006).

A securitização da política africana dos EUA tem gerado também con-sequências nas políticas de desenvolvimento adotadas por Washington para o continente. O Departamento de Defesa, uma vez que vem tendo seu orça-

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mento aumentado às custas da diminuição do da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID, sigla em inglês), tem assumido algu-mas das funções de assistência ao desenvolvimento que eram prerrogativas da USAID; porém, sem sucesso, devido à falta de capacitação do seu pessoal. Ainda, a falta de informação e de compreensão das dinâmicas locais faz com que as iniciativas estadunidenses de combate a ameaças assimétricas16 se dê, muitas vezes, em áreas equivocadas e que sejam cometidos equívocos na prisão de sus-peitos (COPSON, 2007).

Em seus esforços para garantir bases no continente africano, os EUA têm negociado, ultimamente, acordos que concedam acesso a aeroportos e a outras instalações em vários países africanos. Essas instalações, denominadas “bases nenúfares”, porque têm tamanho reduzido e não possuem grande infraestru-tura instalada, permitem que as forças dos EUA entrem e saiam rapidamente do continente em tempos de crise, evitando deixar a impressão de que estejam estabelecendo uma presença ostensiva e permanente. Elas já foram estabeleci-das em Uganda, no Mali, no Senegal, no Gabão, no Marrocos, na Tunísia, entre outros (KLARE; VOLMAN, 2006).

No ano 2000, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Crescimento e Oportunidade para a África (AGOA, sigla em inglês). A AGOA oferece preferências comerciais e outros benefícios econômicos para os países da África Subsaariana que atendam a determinados critérios, tais como libe-ralização econômica e respeito ao Estado de Direito e aos direitos humanos e do trabalhador. Acordos de livre comércio também poderão ser negociados, sob a AGOA, sempre que possível, com os países interessados. O investimento estrangeiro direto (IED) dos EUA na região em 2011 foi de cerca de US$ 3,1 bilhões, sendo África do Sul, Angola, Gana, e Libéria, respectivamente, os princi-pais destinos desses fluxos de investimento. De acordo com a Organização das Nações Unidas, o IED mundial total para África Subsaariana foi de cerca de US$ 35 bilhões no mesmo ano (JONES; WILLIAMS, 2012).

Quanto às relações comerciais, o comércio com os países da África Subsaariana corresponde a uma pequena parcela do comércio total dos EUA. Em 2011, os Estados Unidos importaram US$74 bilhões de países da África Subsaariana, ou cerca de 3,4% do total das importações globais do país. Por sua vez, no mesmo ano, os Estados Unidos exportaram US$ 20,3 bilhões para a região, o que corresponde a 1,5% do total das suas exportações. O comércio

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total entre os Estados Unidos e a África Subsaariana cresceu 51% entre 2009 e 2011, passando de US$ 62,4 bilhões em 2009 para US$ 94,3 bilhões em 2011. Fatores externos, incluindo o aumento dos preços do petróleo e outros recur-sos naturais, podem explicar, em parte, o crescimento dramático desse volume de comércio. No entanto, observa-se que parte significativa desse comér-cio é realizada com um pequeno número de países. Em 2011, cerca de 79% das importações dos Estados Unidos da região vieram de três países: Nigéria (47%), Angola (19%), e África do Sul (13%). As exportações, igualmente, foram concentrados, tendo os mesmos três países recebido 68% delas: África do Sul (34%), Nigéria (22%), e Angola (12%) (JONES; WILLIAMS, 2012). Além disso, a Tabela 1 demonstra a grande importância do petróleo e dos recursos minerais entre os produtos importados pelos EUA da África Subsaariana.

Tabela 1: 10 Principais Produtos de Importação Estadunidense da África Subsaariana, 2010 e 2011 (em US$ bilhões)

Número no Sistema Harmonizado de Tarifas dos EUA (HTS)17

2010 2011 Variação (em %)

27 - Combustíveis minerais e petróleo 51,38 58,97 14,871 - Pérolas, pedras preciosas, metais preciosos, etc. 3,95 4,33 9,887 - Veículos, exceto de vias férreas ou semelhantes, e suas partes

1,61 2,16 34,1

18 - Cacau e preparações de cacau 1,04 1,27 22,629 - Produtos químicos orgânicos 1,22 1,16 -4,772 - Ferro e aço 0,76 0,89 16,726 - Minérios, escórias e cinzas 0,67 0,79 17,762 - Artigos de vestuário e seus acessórios, não de malha 0,40 0,46 14,784 - Reatores nucleares, caldeira, maquinário e peças 0,36 0,46 26,361 - Artigos de vestuário e seus acessórios de malha 0,39 0,44 14,3Subtotal 61,77 70,94 14,8Todos os demais 2,58 3,08 19,4Total 64,35 74,02 15

Fonte: U.S. International Trade Commission Trade Dataweb, http://www.usitc.gov.

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Finalmente, no âmbito dos departamentos de Política Externa e de Defesa e das agências de inteligência dos EUA, há uma preocupação em rela-ção ao engajamento diplomático crescente da China em países em desenvolvi-mento, particularmente nos países africanos. Para os EUA, essa aproximação chinesa do continente africano visa à obtenção de maior acesso aos recursos naturais (minerais, agrícolas e energéticos) e aos mercados da região (JANE’S, 2009).

VÍNCULOS INTERNACIONAIS ALTERNATIVOS

A preocupação estadunidense é válida na medida em que a multilatera-lização da política externa africana enfraquece os mecanismos de dominação tradicionais ocidentais, como a Françafrique (VISENTINI; OLIVEIRA, 2012). As renovadas relações da África com China, Índia, Rússia, Oriente Médio, e Cuba (entre outros) demonstram como o Ocidente está perdendo seu papel central na região, sendo substituído por uma pluralidade de centros de poder pelo mundo. Dizem-se relações renovadas porque esses países (com a exceção de Cuba) têm laços históricos – alguns mais antigos que as relações África-Europa – mas que, a partir do movimento de descolonização africano, ganharam novo fôlego. Além disso, essa cooperação confere aos países envolvidos um poder coletivo de barganha nos fóruns mundiais (KAPOOR, 2006). Tendo isso em conta, serão analisados os “vínculos internacionais alternativos” da África, ou seja, os parceiros além da esfera ocidental que, apesar de distintos, promovem de forma similar a autodeterminação africana.

A China na África: imperialismo asiático?

O fim da União Soviética criou novas ameaças e desafios ao mundo afro--árabe e asiático, o que criou uma necessidade de solidariedade entre essas regiões. Nessas condições, seus líderes adotaram a Parceria Estratégica Ásia-África, documento que busca promover maior integração social e econômica entre os dois continentes e aumentar a cooperação contra a pobreza, a corrup-ção e o terrorismo (SHARMA, 2006). Essa parceria, no entanto, é amplamente criticada pelas potências ocidentais, sobretudo no que diz respeito à aproxima-ção chinesa. Isso porque se afirma que a China tem interesses exclusivamente econômicos – petróleo e outros recursos naturais – e políticos – garantia de que Taiwan não seja reconhecido como país independente18. Ademais, os críticos

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desaprovam as relações chinesas com regimes autoritários africanos. Porém, a análise do impacto chinês na África desmonta o mito de que a China seria um novo agente imperialista no continente (SAUTMAN; HAIRONG, 2008).

A China mantém relações com a África Oriental desde o início do século XV. Já no contexto pós-Revolução Chinesa (1959), a partir dos “Cinco Princípios para a Coexistência Pacífica”, buscou relações com os países recém-independen-tes de todo o mundo, além de apoiar ativamente o processo de descolonização do continente africano. No início dos anos 1980, voltada ao seu próprio desen-volvimento, a China diminuiu a assistência econômica e humanitária à África, situação revertida no final da mesma década, quando o país crescia de forma robusta e necessitava de recursos naturais e de um mercado consumidor. Por conseguinte, a década de 1990 se caracterizou por um novo impulso nas rela-ções sino-africanas, que aumentaram em intensidade e em escopo (VISENTINI; OLIVEIRA, 2012).

No plano econômico, destaca-se a criação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), em 2000, cuja função é coordenar a atuação e o investi-mento dos atores chineses (públicos e privados, individuais e multinacionais) no continente africano. Pequim também tem estabelecido no continente zonas econômicas especiais e zonas de livre comércio desde 2006, tais como as cria-das na Zâmbia e na Nigéria (VISENTINI; OLIVEIRA, 2012). Quanto aos inves-timentos, cabe destacar que, ao contrário dos realizados pelo Ocidente, esses não são focados somente no petróleo, distribuindo-se em vários outros seto-res, como infraestrutura, transporte e telecomunicações; além disso, não estão atrelados a outras condicionalidades, como ajustes neoliberais e a compra de produtos nacionais, prática tipicamente estadunidense (SAUTMAN; HAIRONG, 2008).

Apesar de o volume de comércio com a China ter representado apenas um décimo das trocas comerciais africanas em 2008, essa relação é extrema-mente importante, uma vez que a China oferece maquinário e eletrônicos de alta tecnologia, não concorrentes com a indústria local, por um preço significan-temente mais acessível, o que tem permitido elevar o padrão de consumo dos africanos. A taxa de crescimento aumentou consideravelmente, e a demanda chinesa foi grande responsável por esse resultado. Ainda, os fluxos migrató-rios sino-africanos diferem dos existentes entre a África e a Europa, pois não ocorre a chamada fuga de cérebros africanos, problema que afeta a educação, a

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saúde e outros setores críticos que necessitam de profissionais especializados; ainda, o salário se assemelha mais entre imigrantes chineses e a população local africana se comparado à discrepância entre ocidentais e locais (SAUTMAN; HAIRONG, 2008).

No plano político, a África representa para os chineses um grande apoio diplomático em organizações internacionais, promovendo o país asiático como um polo alternativo na ordem mundial. A China, por sua vez, representa um grande parceiro na democratização dos fóruns internacionais e uma espécie de protetor para os países africanos contra as medidas ocidentais desfavorá-veis, dado que ela é um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e, portanto, pode vetar tais medidas. Por fim, a China não coage seus aliados africanos a votarem consigo em organizações internacionais, tampouco inter-vém militarmente nesses países - práticas de teor ocidental. Pelo contrário, até o momento, apenas tem enviado missões de manutenção de paz sob a égide da ONU, como as operações no Chipre e no Saara Ocidental19 (VISENTINI; OLIVEIRA, 2012).

Obviamente, a China busca seus próprios interesses nas relações com a África, sendo uma praticante da realpolitik de aumento de poder e prosperi-dade, no que se assemelha com o Ocidente. De fato, deve-se prestar atenção à questão do impacto da imigração chinesa no desemprego africano, à flexibiliza-ção de leis trabalhistas em zonas econômicas especiais, e às condições de inves-timento – duração, reinvestimento de lucro, transferência de tecnologia, entre outros (CORKIN, 2008). Ainda assim, a cooperação chinesa se difere bastante dos mecanismos de dominação das tradicionais potências na África.

As relações da Índia com a África: lutas e valores comuns

Dentro do contexto de solidariedade entre os continentes africano e asiá-tico, têm-se as relações indo-africanas, pautadas por valores e lutas comuns. Tanto a Índia quanto os países africanos passaram por processos de luta contra o colonialismo, por situações de discriminação racial e pela exploração econô-mica estrangeira, construindo, assim, uma cooperação sobre pilares de paz e desenvolvimento. Os laços entre a Índia e a costa leste da África (até hoje estra-tegicamente importante para os indianos em razão do intercâmbio comercial) também remontam à época anterior à chegada dos europeus. Durante o período colonial, houve uma intensa relação política e cultural: a Índia foi o primeiro

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país a levantar a questão racial na África do Sul20, em 1946, e forneceu assistên-cia financeira e militar para o movimento anti-apartheid, além de apoiar outros movimentos de libertação. A relação comercial e econômica, porém, só aumen-tou recentemente, sobretudo por iniciativa indiana (KAPOOR, 2006).

Em 1964, a Índia estabeleceu o Programa Indiano de Cooperação Econômica e Técnica (ITEC, em inglês) para a África, um programa de treina-mento e capacitação de africanos em diversos setores. Já em 1986, foi lançada a Ação para Resistência a Invasão, Colonialismo e Apartheid, quando foram estreitados os laços políticos, comerciais, técnico-científicos, culturais, e até securitários. A cooperação indiana também se intensificou com a criação da União Africana (UA)21, em 2002, ano em que também foi lançado o programa Foco África, voltado especificamente ao comércio.

Além das trocas comerciais, destaca-se a criação de joint ventures22, principal forma de entrada de investimento indiano na produção de bens e de infraestrutura, e a abertura de linhas de crédito. No campo da saúde, a Índia é a maior fornecedora de medicamentos para a África Subsaariana.

Por sua vez, a África também se mostra para a Índia uma importante fonte de recursos naturais, sobretudo energéticos. No setor agrícola, o conti-nente exportou seu conhecimento adquirido na Revolução Verde23. Da mesma forma que os chineses, os bens indianos se destacam por uma boa relação entre competitividade e qualidade, na visão dos africanos. A complementaridade da produção entre as duas regiões facilitou a busca conjunta por prosperidade eco-nômica, além da tradicional ligação política (SHARMA, 2006; KAPOOR, 2006).

O retorno da Rússia à África

De forma similar à China e à Índia, durante a Guerra Fria, a União Soviética se apresentava para a África como um aliado no anti-ocidentalismo e na luta pela libertação colonial, dando apoio político-diplomático e sendo um grande fornecedor de armas às guerras de independência. Com o colapso da URSS, as relações sofreram um declínio, mas a reconfiguração da política externa russa, pautada em um novo pragmatismo, permitiu a reconstrução de tal relaciona-mento. A África, assim, se tornou uma nova prioridade da política russa, tanto por questões políticas – podendo representar o retorno russo à condição de potência global – quanto por questões econômicas – sendo capaz de suprir a demanda russa por certos recursos naturais (MATUSEVICH, 2007).

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Essa relação – que tomou novo impulso a partir de 2000, com Vladimir Putin na presidência – também se mostrou benéfica para os africanos. No plano econômico, foi fundado o Conselho Empresarial Rússia-África em 2002, com a participação de atores empresariais (públicos e privados) de setores como os de petróleo, gás, finanças, e turismo. A Rússia investiu na África Subsaariana cerca de US$ 1,5 bilhão em 2007, além de ter participado do Plano de Ação Africano e da Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (NEPAD). A cooperação também abrange a questão securitária, expressa no envio de solda-dos a missões de paz, treinamento das Forças Armadas africanas e venda de armamentos (FIDAN; ARAS, 2010). Nesse sentido, a complementaridade das relações favorece a tendência de penetração russa no continente africano.

Oriente Médio e a construção de uma identidade afro-árabe

Outro parceiro histórico africano são os países do Oriente Médio, que compartilham similaridades geográficas e políticas com a África, sobretudo com os Estados árabes ao norte do continente. A diplomacia árabe, por meio da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)24, passou a apoiar economicamente os países africanos na década de 1960 e abriu a eles espaço em organizações como a Liga Árabe e a Organização da Conferência Islâmica. No que se refere às relações com Israel, Tel Aviv buscou cooperar com os regi-mes mais conservadores do Marrocos e da África do Sul, com a qual desenvol-veu uma parceria estratégica nos campos econômico, tecnológico e securitário (VIZENTINI; RIBEIRO; PEREIRA, 2007).

Clapham (1996) explica que havia certo ressentimento africano, sobre-tudo de países não muçulmanos que mantinham relações com Israel, quanto à relação com o Oriente Médio, vista como desigual. No entanto, houve um esforço árabe em construir uma identidade com base no passado comum de submissão à dominação europeia (ainda que essa tenha sido diferente em cada região) e nas demandas também comuns de desenvolvimento e libertação. A luta árabe em favor da Palestina e a luta africana contra o apartheid reforçaram tanto laços internos como a simpatia externa. Essa identidade continua se fortalecendo, mesmo após o final da Guerra Fria.

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Cuba e África, realidades semelhantes

Por fim, tem-se o relacionamento de Cuba com a África, que merece ser mencionado devido ao comprometimento cubano com os movimentos de liber-tação e o desenvolvimento africano. Merece destaque, ainda, o vasto conheci-mento cubano sobre a região, resultado de um amplo esquema de cooperação civil e militar, fato que contrastava com a atuação das duas superpotências, EUA e URSS, que pouco conheciam ou se identificavam com a realidade africana (VIZENTINI, 2007).

Durante o processo de descolonização, Cuba “desenvolveu um ativo apoio aos movimentos de libertação nacional na África Austral e a vários gover-nos africanos” (VIZENTINI, 2007, p. 184). Sua participação foi particularmente marcante na independência de Angola, em 1974. O regime de Fidel Castro enviou armas e cerca de vinte mil soldados para ajudar o MPLA25 e só se retirou do país em 1989, depois de negociar o fim da guerra com a África do Sul, a liber-tação da Namíbia e, consequentemente, o fim do apartheid.

As relações afro-cubanas não se restringiram somente aos campos polí-tico e militar: mesmo com recursos escassos, Cuba fomenta a cooperação nas áreas de educação, saúde, biotecnologia, comércio, e investimentos. Ao todo, Cuba mantém relações com 51 dos 54 países africanos e conta com 30 embaixa-das espalhadas pelo continente. Nessas condições, observa-se que as relações Cuba-África se caracterizam pela permanência da cooperação, mesmo diante das mudanças sistêmicas e dos inúmeros desafios que as sociedades cubana e africana tiveram que enfrentar com o final da Guerra Fria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O reposicionamento africano no sistema internacional é visível no período pós-Guerra Fria, superando a marginalização no cenário mundial sofrida pelo continente durante a década de 1990, devido à fragilidade gerada pela crise dos anos 1980, pela instabilidade e irrupção de diversos conflitos, e pela disseminação da AIDS, além da ocorrência de diversas epidemias. Há, atualmente, um forte interesse em relação à África tanto entre atores tradicio-nais, quanto entre novos parceiros, devido à sua importância como fornecedora de recursos essenciais ao crescimento econômico e à sua renovada relevância estratégica.

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Nesse sentido, a interação crescente de novos atores com o continente africano contribui para o seu empoderamento, ou seja, para o aumento do seu poder de barganha junto a atores tradicionais (principalmente junto às antigas metrópoles europeias e aos Estados Unidos). Esse processo contribui para a diminuição da ingerência desses atores tradicionais sobre assuntos africanos e promove uma maior autonomia do continente.

A análise das relações ocidentais, como a Françafrique e os mecanismos estadunidenses, e das relações alternativas, com a China, a Índia, a Rússia, o Oriente Médio, e Cuba, permite visualizar uma espécie de divisão do continente africano. Alguns países permanecem alinhados às grandes potências, esta-belecendo relações bilaterais, enquanto outros passaram a buscar parceiros alternativos, adotando uma perspectiva multilateral. A fragilidade dos Estados africanos é um forte motivo para que as suas elites continuem buscando apoio externo. Felizmente, essa situação tende a se transformar com a consolidação das nações africanas.

PONTOS A DISCUTIR

1) As relações franco-africanas e a permanência/ruptura neocolonial.2) O novo ciclo de intervenção ocidental na África.3) A África e os “novos” parceiros internacionais.

Notas¹ O termo Françafrique, criado por Félix Houphouët-Boigny, foi cunhado com esse sentido por François-Xavier Vershave, referindo-se à “[...] política franco-africana [...], que é uma caricatura de neocolonialismo, é uma política extraordinariamente nociva.” (VISENTINI; OLIVEIRA, 2012, p. 36)² Como foi o caso, por exemplo, do movimento independentista camaronês União dos Povos do Camarões (UPC), liderado por Ruben Um Nyobé, que contava com o apoio da população na luta pela independência e que foi eliminado, entre 1957 e 1970, pelo exército francês. Foram mortos, nesse período, entre 100 mil e 400 mil camaroneses.³ Nesse período, diversos líderes de países africanos que haviam sido eleitos legitimamente por seus povos e que se opunham aos interesses franceses foram mortos nas mais diversas situações, contando sempre com o apoio francês. Entre esses, podemos citar os casos de Sylvanus Olympio, no Togo – morto em 1963, durante um golpe perpetrado por quatro sargentos franco-togoleses –, e de Barthélémy Boganda, na República Centro Africana – que lutava contra os abusos da exploração colonial e pela emancipação total dos homens negros e que morreu em 1959 em um acidente de avião bastante misterioso (PESNOT, 2008).

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4 Uma das cláusulas do acordo que estabeleceu a criação da Comunidade e a utilização do Franco CFA obriga os países africanos que utilizam a moeda a depositarem ao menos 65% de suas reservas estrangeiras no Tesouro francês (NOURY, 2010).5 Do original em francês.6 Podemos citar, entre eles, Mobuto Sese Seko, da República Democrática do Congo, Étienne Eyadéma Gnassingbé, do Togo, e Moussa Traoré, do Mali, entre outros.7 Programas de Ajuste Estrutural eram políticas impostas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) aos países que buscavam novos empréstimos junto a essas insti-tuições.8 Segundo Verschave (2004), isso se repetiu mais de cinquenta vezes entre 1991 e 2003, em países como o Togo, o Camarões, a República do Congo, o Gabão, o Djibuti, e a Mauritânia, entre outros.9 Ainda que tutsis e hutus (as duas etnias que compõe o país) compartilhassem, há muitos séculos, o mesmo território, falassem o mesmo idioma e praticassem a mesma religião (PESNOT, 2008) (para mais informações a respeito do genocídio de Ruanda, consultar o estudo de caso do capítulo 4).10 A doutrina foi chamada RECAMP (Reforço das Capacidades Africanas de Manutenção da Paz). Através dela, a França apoiou o envio de tropas africanas para a prevenção e resolução de conflitos na República Centro Africana (1997-1999), na Guiné Bissau (1999), e na Costa do Marfim (2003), sendo ainda responsável pelo fornecimento de material e de treinamento militar para essas tropas (MÉDARD, 2008).11 A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é uma aliança militar intergovernamental, criada em 1949 e integrada por Albânia, Alemanha, Bélgica, Bulgária, Canadá, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, França, Grécia, Hungria, Islândia, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Romênia, e Turquia.12 Conflito armado no qual dois países se utilizam de terceiros como substitutos, de forma a não lutarem diretamente entre si. Esse tipo de guerra foi muito comum durante a Guerra Fria.13 Tipo de realismo político, de acordo com o qual a política exterior é baseada em avaliações de poder e interesse nacional.14 Iniciativa militar desencadeada pelos EUA a partir dos ataques de 11 de setembro como parte de uma estratégia global de combate ao terrorismo.15 Conflito armado na região de Darfur, no oeste do Sudão, que teve início em 2003.16 Ameaças assimétricas implicam combatentes cujas capacidades militares, estratégias ou táticas diferem significativamente.17 O Sistema Harmonizado de Tarifas dos EUA classifica um bem baseado em seu nome, uso e/ou material utilizado na sua produção e lhe atribui um número de dez dígitos.18 Alega-se que a cooperação chinesa com o continente africano tem a contrapartida da One China Policy, ou seja, o reconhecimento da República Popular da China em detrimento a Taiwan (República da China) (VISENTINI; OLIVEIRA, 2012).19 A China está entre os dez maiores contribuintes financeiros e é o décimo quinto maior fornece-dor de pessoal para as Operações de Paz da ONU, participando de todas as seis existentes na África (BRIC, 2011).20 Para mais informações acerca da África do Sul, leia o apêndice do livro.21 Organização fundada com o objetivo de superar os vestígios de colonialismo e do apartheid, promover unidade e solidariedade entre os africanos, resguardar a soberania e a integridade ter-ritorial, e fomentar a cooperação. Sua parceria com a Índia é institucionalizada em conferências, cúpulas, e parcerias.

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22 Associação entre duas empresas para a realização de alguma atividade por tempo limitado. No caso das relações entre Índia e África, essa associação é interessante na medida em que facilita a transferência de tecnologia para as empresas africanas.23 Termo utilizado para expressar a modernização de técnicas agrícolas e a invenção de novas sementes a fim de aumentar a produtividade no campo. Na Índia, ocorreu na década de 60.24 Organização criada em 1960 com o objetivo de unificar a política petrolífera dos países mem-bros a fim de controlar a produção e, consequentemente, o preço. Fazem parte da organização paí-ses tanto do Oriente Médio (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irã, Iraque, Kuwait, e Catar) quanto da África (Angola, Argélia, Líbia, e Nigéria), além de Equador e Venezuela.25 Movimento Popular de Libertação de Angola, de inspiração marxista-leninista, apoiado pela União Soviética. Disputava o poder com a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e com a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), que contavam com o apoio dos Estados Unidos e da África do Sul, entre outros (VIZENTINI, 2007).

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A África no pós-Guerra Fria: geopolítica e “novos” atores 183

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7AS INFLUÊNCIAS DA ÁFRICA

NA FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL DO BRASIL

Diogo Ives, Joana Oliveira & Luísa Saraiva1

O negro teve papel fundamental na formação do que é entendido hoje como “nação brasileira”. Traços físicos, idioma, religião e música guardam heranças permanentes vindas da África. Este capítulo apre-senta as principais manifestações culturais que receberam influência dos afrodescendentes e aborda o processo de integração social deles à sociedade brasileira.

1 Graduandos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os autores agradecem a revisão de Sílvia Sebben e a colaboração do Prof. Karl Monsma e da Profª. Luciana Prass.

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INTRODUÇÃO

A conquista portuguesa, a população indígena, a escravidão, as imi-grações, todas contribuíram para a configuração da população brasileira. Atualmente com mais de 190 milhões de pessoas, o Brasil é composto por 7,61% de autodeclarados negros, 43,13% pardos e 47,73% brancos, além de amarelos e indígenas1. A composição multicultural, entretanto, foi e continua sendo palco de complexos conflitos sociais. Propomo-nos neste capítulo a anali-sar a influência cultural dos brasileiros descendentes de africanos na formação cultural do Brasil, bem como o conflito social de integração pelo qual passaram ao longo da história brasileira.

RAÇA E ETNICIDADE

“Se a brutalidade e a crueza do racismo norte-americano prova-ram ser sua maior fraqueza, então, ao inverso, a flexibilidade e a sutileza do racismo brasileiro provaram ser sua maior força. A indignação moral contra a desigualdade racial é muito mais difícil de ser gerada em um país onde a discriminação assenta-se sobre formas silenciosas e, às vezes, inconsistentes, tornando difícil identificá-la e transformá-la em ação política.” (ANDREWS, 1985, p. 55).

A ideia do Brasil como “paraíso racial” ou como país sem racismo por vezes permeia o imaginário de muitos cidadãos. Infelizmente, a integração da população negra enfrenta grandes desafios e deve ser analisada em maior pro-fundidade.

Anterior à revisão histórica dessa integração é necessário um esclareci-mento sobre a utilização dos termos “raça” e “etnicidade”. São extensas as dis-cussões sobre sua diferenciação e validade. Peter Wade (2000, p. 11) afirma que esses não são termos que têm referentes fixos e tampouco se referem de “maneira neutra a uma realidade transparente”. Seriam eles construções sociais “parciais, instáveis, contextuais e fragmentárias” (WADE, 2000, p. 28). Por seu turno Guimarães (2002, p. 10) acrescenta que “a constante recriação de raças, gêneros e etnias continua sendo um dos meios mais eficientes de gerar explo-ração econômica”.

O desmantelamento do racismo científico2 no século XX tem forte indí-cio nas declarações da UNESCO no pós Segunda Guerra Mundial, em que se afirmava que os humanos são fundamentalmente iguais e que as diferenças de

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aparência não passam disso, não indicando diferenças essenciais (WADE, 2000, p. 20). Ou seja, passa-se a entender que, pelo menos em respeito à biologia, “raças” não existem: não há distinções na raça humana que possam ser classi-ficadas com critérios científicos. Elas existem, contudo, no mundo social e pos-suem efeitos bastante expressivos.

Portanto, há um consenso de que a ideia de “raça” é uma construção social. Wade (2000) ainda acrescenta que o termo “negro” tampouco tem um referente fixo, simples ou único; seu significado varia de acordo com o contexto social em que está inserido. Como exemplo, o autor cita estudos latino-ameri-canos que mostraram que uma mesma pessoa vestida de maneiras diferentes pode ser identificada como pertencendo a diferentes tons de uma escala entre negro e branco. Isto é, a identificação vai além do fenótipo. Ao mesmo tempo, outros estudos apontam que por vezes se utilizam como equivalentes os termos “negro” e “pobre”, ou seja, existe uma relação com o status econômico3. Dessa forma, para Wade (2000, p. 49), ”negro” é uma categoria com aspectos raciais e étnicos.

O termo “etnicidade”, o qual é utilizado com frequência para substituir “raça”, também deve ser entendido como uma construção social para identifi-cações de diferença e igualdade, assim como raça, gênero, e classe. A diferença entre esse termo e “raça” estaria em que etnicidade se refere a diferenças cul-turais, com um enfoque na identificação de lugar, enquanto raça a diferenças fenotípicas (WADE, 2000, p. 24). Vale mencionar que essa distinção não pode ser vista como extrema, mas deve ser considerada para fins de estudo do tema. Assim, Wade (2000, p. 129) afirma que “as identidades raciais e étnicas devem ser consideradas agora em um contexto nacional e global, como construções mutantes, descentralizadas e relacionais, sujeitas a uma política de identidade, cultura e diferença que engloba o gênero, a sexualidade, a religião, e outras expressões culturais”.

INTEGRAÇÃO SOCIAL: REVISÃO HISTÓRICA

Analisar essas construções sociais anacronicamente gera entendimentos superficiais. Por isso, nos dedicamos aqui a, mesmo que brevemente, realizar uma revisão histórica considerando as diferentes formas de integração social da população negra. A importância dessa revisão é reforçada pela opinião de Wade (2000, p. 29) para quem existe uma relação histórica dos enfrentamen-

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tos coloniais com as diferentes formas de racismo na América como um todo e também na Austrália.

O período colonial foi marcado por lutas contra limitações legais de mobilidade social e por diferentes identificações do índio e do negro. Os dois grupos, índios e negros, recebiam diferentes tratamentos em relação a institui-ções legais e à burocracia. Apesar de ser difícil definir como se davam as rela-ções sociais cotidianas a partir de leis, podemos dizer, de uma maneira geral, que a relação do negro com a escravatura tornava menos flexível o seu espaço de manobra na estrutura social (WADE, 2000). No contexto colonial e na imi-nência da abolição da escravatura, o racismo surgiu em reação a possível insti-tuição da igualdade política entre os brasileiros4.

A escravidão foi abolida no Brasil em 1888, e a partir de então se buscou eliminar as limitações à igualdade perante a lei. No entanto, não foram abolidas do cenário nacional as categorias de “negro” e “mestiço”. As teorias de racismo científico, principalmente advindas da Europa, defendiam um determinismo racial evitado com frequência pelas elites latino-americanas. A ênfase aqui era dada à possibilidade de melhorar a população através de projetos de “higiene social” e miscigenação.

A miscigenação tinha majoritariamente o objetivo de branqueamento progressivo da população. Mesmo no Brasil, com grande população negra e onde ocorreu uma reavaliação positiva do negro em alguns círculos, a ênfase estava no surgimento de uma nação mista que teria, contudo, o componente negro sob controle (WADE, 2000, p. 43).

Essa via, a do “embranquecimento”, é apontada por Guimarães (2004a, p. 271) como o primeiro modo de integração dos descendentes de africanos na sociedade brasileira. Nesse processo, indivíduos negros, principalmente elites negras, eram absorvidos pela elite nacional, assimilando seus valores e interes-ses. Não se pode pensar, contudo, que essa assimilação acontecia somente por uma via. Também esses indivíduos, aos poucos, introduziram à cultura da elite nacional “valores estéticos e ideias híbridas e mestiças” (GUIMARÃES, 2004a, p. 272).

Intelectuais negros da época mostraram que esse modo de integração se mostrava uma dolorosa experiência para os negros. Guimarães (2004a, p. 273) chega a falar em “emparedamento psicológico dos negros pela ciência e pelos preconceitos”. Por outro viés, esses intelectuais se autorrepresentavam como

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aqueles cujo trabalho produziu a nação brasileira. Essa ideia trazia o negro como parte integrante do povo brasileiro (GUIMARÃES, 2004a).

Esse primeiro modo de integração se inseriu em um período, entre a abolição da escravatura e os anos 1930, em que o Brasil viveu certa estagnação econômica e social. Tal contexto pode ser apresentado como influente na con-solidação do modelo de “embranquecimento” como hegemônico, limitando os meios de inclusão social da população negra como a mobilidade social coletiva e a arregimentação política.

Um segundo modo de integração ganharia importância a meados do século XX. Nesse, a mobilização política e o cultivo da identidade racial pas-saram a ser privilegiados. Formaram-se, por exemplo, os jornais Liberdade e Clarim em São Paulo, nos anos 1920, e em 1931 foi criada a Frente Negra Brasileira (GUIMARÃES, 2004a; DOMINGUES, 2007). Inicialmente com caráter de movimento social, presente em diversos estados brasileiros e com número de afiliados superior a 20 mil pessoas, o grupo se transformou em partido polí-tico em 1936 até ser extinto no ano seguinte, assim como todas as organizações políticas, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas.

Um pouco anterior aos anos 1940, Gilberto Freye revolucionou o enten-dimento da integração da população negra e mesmo do racismo brasileiro ao chamar de “democracia social e étnica” a alma nacional, a qual seria oriunda da “velha, colonial e mestiça cultura luso-brasileira nordestina” (GUIMARÃES, 2004b, p. 12). Nos anos 1940, baseada nos escritos políticos de Freyre, ganhou força a ideia de “democracia racial5”, a qual mais tarde receberia o adjetivo de “mito”. Essa ideologia, desenvolvida inicialmente por intelectuais brancos como Freyre e Arthur Ramos, ganhou apoio de intelectuais negros preocupados com a bandeira antirracista. O envolvimento desse último grupo acabou por influen-ciar sua conformação, agregando ideais de igualdade política e cultural, bem como ampliação de liberdades civis (GUIMARÃES, 2004a; GUIMARÃES, 2004b).

A “democracia racial” convergia compromissos dos âmbitos material e simbólico. Primeiramente, ocorreu a ampliação do mercado de trabalho urbano, incorporando grande contingente de indivíduos negros e pardos. Essa incor-poração foi institucionalizada, como através da lei de Amparo ao Trabalhador Brasileiro Nato, de 1931. Pelo âmbito simbólico, a ideia modernista de uma nação mestiça ajudou o reconhecimento de manifestações artísticas e folcló-ricas da população negra como “cultura afro-brasileira” (GUIMARÃES, 2006).

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Com o golpe de Estado de 1964, da democracia racial se mantiveram as vertentes simbólica e material, mas se eliminou qualquer papel político. A conhecida repressão política também atuou contra forças sindicais e associati-vas, e a mobilização negra passou a se organizar a partir da denúncia do “mito da democracia racial”. O movimento negro foi desarticulado e desmobilizado, voltando a ganhar força somente na década seguinte, como demonstrou a for-mação do Movimento Negro Unificado6 em 1978 e a volta da “imprensa negra”, com jornais espalhados pelo país.

O final do século XX assistiu a um período de pós-modernidade em que surgiu um novo entendimento da “nação” - como o de Benedict Anderson de “comunidades imaginadas”, também título de sua principal obra publicada pela primeria vez em 1983 - na qual passaram a se destacar as dimensões culturais e simbólicas abrindo espaço para discussões sobre a participação de grupos, como os negros, nessa imagem da nação (WADE, 2000, p. 101). De acordo com o estudo dos modos de integração de Guimarães que viemos utilizando, foi neste período, dos anos 1970, que se formou um terceiro modo no qual con-vergiam “integração social, disputa política e heterogeneidade cultural e racial” (GUIMARÃES, 2004a, p. 276).

A reforma constitucional no Brasil, inserida no processo de redemocrati-zação, abarcou essas novas ideias de sociedades e nações pluriétnicas e multi-culturais. Contudo, esse movimento foi acompanhado pela forte introdução de medidas neoliberais nas áreas econômica e social.

O cenário desse momento se mostrou importante para esse estudo, principalmente no que diz respeito ao surgimento de movimentos sociais com objetos étnicos e de identidade racial (WADE, 2000, p. 100). À diferença do que acontecia antes, agora eram os próprios negros que reivindicavam seus direi-tos. Ademais, nesse momento o foco estaria não em grandes intelectuais negros, mas em pequenos intelectuais, os quais, excluídos dos âmbitos da educação superior e dos círculos das belas artes, haviam internalizado valores moder-nos e que se mobilizaram na transformação de sua cultura de origem em cul-tura negra ou africana (GUIMARÃES, 2004a). Esse novo momento incluiu como aliados indivíduos brancos e ao mesmo tempo enfatizou a distinção racial ou cultural.

O que se percebe nesses novos movimentos sociais é a convergência de pautas. Como descreve Wade (2000, p. 117), há um “entrelaçamento dos dife-

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rentes eixos de identificação e de ação: a etnicidade, a raça, o gênero, a classe, a orientação sexual, a religião, a música, etc” os quais passam a ser os princípios mobilizadores e organizadores desses movimentos.

É evidente que movimentos sociais negros existem há muito tempo7. Rebeliões de escravos ou comunidades de escravos fugidos, como o conhecido Quilombo dos Palmares, irmandades negras, terreiros de candomblé, e capoeira são apenas algumas lembranças que mostram a existência desses movimen-tos. Como mencionamos, no início do século XX, se formou no Brasil a Frente Negra Brasileira. Outros movimentos floresceram por volta da década de 60. Contudo, foi no final do século XX, nos anos 80 e 90, que os movimentos sociais desse cunho ganharam força e número, integrados em uma tendência mundial de “novos movimentos sociais”. O ativismo negro por um período dialogou com pautas de políticas de classes, com respaldo de partidos políticos como o PT, o PDT, o PMDB, e o PSDB. A partir do final da década de 1980, os grupos passaram a atuar de forma mais autônoma através principalmente de organizações não governamentais (GUIMARÃES, 2006, p. 277).

O movimento negro passou a renegar totalmente o ideal de “democracia racial” e a lutar pela defesa dos direitos humanos, civis e sociais dos negros. Assim, ocorreu a criação de múltiplas ONGs e organizações populares agindo nas áreas de cultura, educação, emprego, e saúde.

A partir do governo Collor, em 1990, as políticas neoliberais foram acentuadas, o que gerou uma diminuição do Estado. A consequência para o movimento negro foi que funções de assistência social foram transferidas a ONGs e empresas privadas, o que acabou por fortalecer essas instituições. Paralelamente, o Estado adotou o discurso do multiculturalismo e se afastou da pauta de política de identidade nacional (GUIMARÃES, 2006, p. 278).

O governo Lula é apontado por Guimarães (2006, p. 278) como o ponto culminante desse modelo de relação do Estado com o tema. É nesse momento que o Estado passou a absorver as reivindicações, incorporando ao próprio Estado indivíduos dos movimentos sociais. Esse processo gerou fluidez e maior comunicação entre as duas instâncias.

“O argumento de que as desigualdades sociais no Brasil estão amarradas a mecanismos invisíveis (ou invisibilizados) de discri-minação racial, que favorecem a sua reprodução ampliada, pas-sou paulatinamente a ser consensual, atingindo na última década não apenas o espaço público onde atuam os movimentos sociais,

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mas os próprios organismos de planejamento governamental” (GUIMARÃES, 2006, p. 280).

Antes de concluir, devemos mencionar dois pontos: a relação entre raça e religião, e raça e gênero. A religião, abordada em maior profundidade na seção a seguir, deve ser citada como importante componente de identificação, além de misturar-se com as identidades étnicas e raciais. A história brasileira passou por uma longa identificação dos africanos e de seus descendentes a uma atri-buição de poder mágico que perpassa ideias de perigoso, poderoso, maligno, e sedutor. A ideia de sedução abrange também outras áreas, das quais pode-mos citar rapidamente a imagem entrelaçada dos negros na América Latina ao poder da sexualidade, da música e da dança (WADE, 2000).

Em relação à raça e gênero, somente nos anos 80 e 90 esse se tornou um tema importante nos estudos de raça e etnicidade na América Latina. A ques-tão ganhou forma a partir da insatisfação de feministas negras diante de, por um lado, atitudes patriarcais de homens negros ativistas e, por outro, atitudes etnocentristas de feministas brancas. Ou seja, há um cruzamento de vários fato-res, e em cada caso mudam os valores de papeis relativos. Wade (2000, p. 124) acrescenta que “já que o gênero e a sexualidade são tão integrais para a cons-trução das identidades étnicas e raciais, os movimentos que dão forma a essas identidades resultam inevitavelmente afetados”.

De maneira geral, contemporaneamente, parece haver a aceitação do que Wade (2000) chamou de “nacionalismo pós-moderno”, em que a nação é defi-nida em termos de multiculturalidade. Isso se percebe através da aprovação de leis e mesmo mudanças constitucionais que reconhecem a multiculturalidade ou direitos especiais para grupos étnicos. Essa visão não pode, no entanto, ser ofuscada pelo fato de que muitas vezes essas ações parecem obedecer a jogos de poder e controle político. Ainda, a apresentação desses diferentes modos de integração não deve levar a conclusões de facilidade nesse processo. Muitos foram os desafios enfrentados.

Por fim, as atuais ações referentes à inclusão social de grupos étnicos ganham força e visibilidade, como mostra a questão da reserva de cotas em uni-versidades e para outros concursos públicos. Entre 2002 e 2011, cerca de 70% das universidades públicas brasileiras adotaram algum tipo de política afirma-tiva, e, paralelamente, o governo instituiu o PROUNI, programa de bolsas em universidades privadas (GUIMARÃES, 2012, p._22). Além dessas ações, ainda devemos mencionar a Lei 10.639, sancionada em janeiro de 2003 e estímulo

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para o projeto RIPE, a qual prevê a obrigatoriedade do estudo de história e cul-tura afro-brasileiras em escolas brasileiras, bem como institui o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro) em homenagem a morte do líder quilom-bola Zumbi dos Palmares.

“No Brasil atual, ganha força a corrente de opinião que defende que as desigualdades raciais, ou seja, as desigualdades sociais atribuíveis à ideia raça e à forma como as pessoas se classificam ou são classificadas racialmente, só podem ser combatidas com ações e políticas que reforcem essas identidades raciais. Ou seja, as políticas de ações afirmativas requeriam políticas de identi-dade” (GUIMARÃES, 2006, p. 280).

OS ELEMENTOS AFRICANOS NA CULTURA BRASILEIRA

“Nega-se ao negro a participação na construção da história e da cultura brasileiras, embora tenha sido ele a mão de obra predo-minante na produção da riqueza nacional, trabalhando na cultura canavieira, na extração aurífera, no desenvolvimento da pecuária e no cultivo do café, em diferentes momentos de nosso processo histórico” (FERNANDES, 1995, p. 1).

Ao falar-se a respeito da cultura brasileira, é inegável considerar o papel desempenhado pelas diferentes etnias que, com sua diversidade, contribuíram para a multiplicidade cultural que é característica do Brasil. Em especial, des-taca-se a influência das culturas africanas devido a sua expressividade em con-tingente populacional e dispersão no território brasileiro. Atualmente, o Brasil figura como o segundo maior país em população negra do mundo, - de modo que teve sua cultura fortemente influenciada pelos aspectos culturais africanos (IBGE).

Apesar de durante muitas décadas os estudos a respeito da cultura afri-cana no Brasil terem recebido pouca atenção, seja por desinteresse, seja por ausência de materiais adequados para pesquisa, a partir do início do século 20 essa realidade se modificou por meio de antropólogos, historiadores e cientis-tas sociais, como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, e Raymundo Nina Rodrigues, que buscaram definir e compreender a cultura brasileira em suas múltiplas dimensões. O papel dos africanos no Brasil ganhou um novo destaque, e esses passaram a ser considerados co-colonizadores do Brasil devido à sua conside-rável influência cultural sobre os índios que aqui viviam (FREYRE, 1976, p. 6).

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Analisando a diversidade cultural que compõe o continente africano, pode-se compreender sob diferentes aspectos suas contribuições para a forma-ção da cultura brasileira. Nos seus diferentes âmbitos culturais, como religião, língua e folclore, é perceptível a influência dessas distintas regiões da África, como a região Centro-Oriental (Costa do Marfim e Angola), acrescentando suas peculiaridades ao desenvolvimento de uma cultura brasileira.

LÍNGUA: AS INFLUÊNCIAS AFRICANAS NA DIFERENCIAÇÃO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Considerando o aspecto linguístico, a influência africana no Brasil é notá-vel na diferenciação do português europeu (padrão) para o português brasi-leiro. Como resultado do tráfico negreiro, que durante seus ciclos capturou e enviou ao Brasil africanos de diferentes etnias e regiões da África desde o século XVI, muitas línguas africanas (com estruturas e origens diferentes) chegaram ao Brasil, deixando suas contribuições no português utilizado no país.

Filólogos como João Ribeiro afirmam que o Elemento Negro (modo como são designadas as alterações na linguagem brasileira em decorrência da influência africana) provocou alterações profundas no vocabulário e no sistema gramatical do português utilizado no Brasil.

“Sob a denominação de Elemento Negro designamos toda espécie de alterações produzidas na linguagem brasileira por influência das línguas africanas pelos escravos introduzidos no Brasil. Essas alterações não são tão superficiais como afirmam alguns estudio-sos; ao contrário, são bastante profundas, não só no que diz res-peito ao vocabulário, mas até ao sistema gramatical do idioma” (RIBEIRO, 1897, p. 219).

Durante o século XX, a questão da influência africana na diferenciação do português brasileiro foi fortemente retomada por diferentes autores (bra-sileiros e estrangeiros). Nesse contexto foram expressas duas linhas de pensa-mento: a influência africana sobre o idioma, e a formação de uma língua crioula de base portuguesa.

A crioulização defendida majoritariamente por autores estrangeiros, como J. Holm (Creole Influence on Popular Brazilian Portuguese, 1987) e G. Guy (Linguistic Variation in Brazilian Portuguese: Aspects of Phonolog e On the Nature and Origins of Popular Bazilian Portuguese, 1981), é o resultado do desenvolvimento de um pidgin (uma simplificação da língua utilizada pelos

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falantes não-nativos) com mudanças semânticas e diferenças de vocabulário em relação a língua materna (o português europeu). Os autores que defendem essa tese afirmam, com base nas diferenças morfossintáticas, que as variações existentes entre o português padrão e o português popular do Brasil são resul-tado de uma crioulização (ou semicrioulização) que ocorreu no passado e que mantém seus traços até hoje. Os dados demográficos do período da escravidão servem de embasamento para tal teoria, uma vez que mais de 3,6 milhões de africanos foram traficados para o Brasil, e em algumas regiões sua concentração populacional era superior à presença europeia (BONVINI, 1998).

Sendo assim, essa vertente de pensamento defende que o português brasileiro sofreu um processo de crioulização devido às influências africanas, semelhante ao ocorrido no Suriname e em algumas regiões da Caribe. Os tra-ços dessa crioulização permaneceriam até hoje no português brasileiro, que no momento estaria em um processo de descrioulização por meio do qual busca aproximar-se, novamente, do português padrão (BONVINI, 1998).

Em contrapartida, autores brasileiros, como A. Naro (Crioulização e mudança natural. Estudos diacrônicos, 1973) e Yeda Pessoa de Castro (A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII, 2002), afirmam que o português brasileiro não é o resultado de uma crioulização do português padrão. Para esses autores, as influências exercidas pelas línguas africanas no português utilizado no Brasil não ocorreu em um nível tão pro-fundo como afirmam os autores estrangeiros. Os autores nacionais defendem que a proximidade existente entre o português padrão e o português brasi-leiro na forma escrita evidencia a inexistência de um processo de crioulização. Tendo em vista a preexistência de uma língua padrão utilizada no país (o portu-guês padrão), a qual os escravos precisavam utilizar para se comunicar entre si e com a população de origem europeia, e a ausência da mistura de populações africanas com idiomas diferentes (cada etnia tendia a concentrar-se em uma região), contribuíram para que não se formasse no Brasil um crioulo de base portuguesa. Ademais, nenhum registro histórico (textos datados do período da colonização) indica a existência de uma língua crioula no Brasil (BONVINI, 1998).

Independentemente das diferentes teses defendidas a respeito das influências africanas no português brasileiro, algumas marcas dessa interação linguística permanecem perceptíveis até hoje. Dentre elas merecem destaque

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os empréstimos lexicais, que, embora em menor quantidade que os provenien-tes das línguas Tupi-guarani, são estimados em mais de 3000. Em relação aos traços fonológicos, morfológicos e sintáticos adquiridos pelo português brasi-leiro em decorrência da interação com as línguas africanas, os filólogos desta-cam o processo de desnasalização, a flexão verbal reduzida e a dupla negação. De acordo com Bonvini (1998), foram esses encontros entre o português euro-peu e as línguas africanas que influenciaram o português utilizado no Brasil e lhe garantiram seu dinamismo e flexibilidade.

RELIGIÃO

Assim como o aspecto linguístico, a formação religiosa do Brasil também foi fortemente influenciada pelas culturas africanas. De acordo com Rodrigues, as práticas religiosas transmitidas dos negros aos seus descendentes são a ins-tituição que se manteve mais preservada no Brasil. Os dados estatísticos contri-buem para comprovar esse argumento, pois, no ano de 2010, os praticantes de religiões afro-brasileiras representavam uma população de 588.797 pessoas8. Essas religiões afro-brasileiras têm como origem as práticas religiosas trazidas pelos escravos africanos e recriadas no Brasil, onde foram influenciadas pelos costumes locais, que na época derivavam do catolicismo. Destacaram-se na for-mação dessas religiões afro-brasileiras os negros das etnias nagôs (iorubas) e jejes (ewes), que possuíam práticas religiosas mais desenvolvidas em compara-ção aos demais grupos étnicos e que originaram o candomblé (com suas dife-renciações regionais) e a umbanda.

As práticas religiosas dessas etnias africanas se baseavam no animismo, que de acordo com Edward Tylor (2010) é a crença na qual seres da natureza (plantas e animais), elementos inanimados e fenômenos naturais possuem essência espiritual. Ademais, as práticas religiosas desses grupos também pos-suíam uma estrutura hierárquica de membros e um sacerdócio, que foram man-tidos pelo candomblé.

O candomblé é umas das principais religiões afro-brasileiras, sendo pra-ticada em todo o território brasileiro e também em outros países. É uma religião de crença monoteísta, na qual o Deus único adorado varia conforme a nação do candomblé a qual se participa. Essas nações nas quais a religião se subdivide são resultado da sua difusão para as diferentes regiões do país. Além disso, os contatos estabelecidos no Brasil entre as religiões dos diferentes grupos com

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os traços culturais locais contribuíram para a diferenciação dessas nações do candomblé de acordo com entidades veneradas (seu Deus único), músicas e lín-gua sagrada utilizada nos rituais. No Rio Grande do Sul, a principal nação do candomblé é a bantu, de influência angolana e congolesa.

O elemento do sincretismo9 é o principal responsável por originar essas religiões afro-brasileiras, pois representou um elo entre a tradição religiosa africana com os costumes religiosos brasileiros, o catolicismo do período colo-nial. Esse processo de sincretismo teria sido introduzido ainda na África pelos missionários católicos com o objetivo de facilitar a evangelização dessas popu-lações; no entanto, foi no Brasil que esse movimento ganhou força e estabeleceu uma forte ligação entre o candomblé, religião afro-brasileira, e o catolicismo.

Tendo em vista que, durante o período da escravidão, a religião católica era dominante no país, era fundamental que, perante a sociedade, os negros (libertos ou escravos) se submetessem às tradições católicas. Essa tradição era imposta aos escravos negros, que, proibidos por seus senhores de realizarem práticas religiosas de origem africana, “camuflavam” seus orixás (divindades) com imagens de santos católicos. Mesmo após ganharem sua liberdade, os negros continuaram adeptos das tradições católicas, a fim de evitar um maior preconceito da sociedade, e concomitantemente mantinham suas crenças de origem africana. Como consequência, as religiões afro-brasileiras que se desen-volveram nesse período possuem fortes ligações com a religião católica, ado-tando as mesmas festividades e possuindo entidades (orixás/santos) equiva-lentes com nomes distintos (OLIVEIRA, 2010).

Essa relação de sincretismo é perceptível no candomblé, cujos primeiros candomblés (locais de reunião/culto) foram estabelecidos no início do século XIX e estavam vinculados a agremiações étnico-sociais com ligações com a reli-gião católica. Como exemplo, cita-se o primeiro candomblé jeje-nagô no Brasil, o Axé Airá Intilê, fundado no século XIX, em Salvador (Bahia), constituído por escravas libertas que também pertenciam à organização católica Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte (OLIVEIRA, 2010). Esse sincretismo permanece forte até hoje na religião candomblé, que mantém uma equivalência entre suas divindades e os santos católicos.

Dessa forma, o candomblé agregou as crenças dos diferentes grupos afri-canos que passaram a conviver em um mesmo espaço no Brasil, desenvolvendo--se como uma religião afro-brasileira. Ademais, a religião candomblé também

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foi resultante de uma relação entre essas múltiplas crenças de origem africana e das crenças locais (o catolicismo).

Outra religião afro-brasileira que merece destaque é a umbanda, que se desenvolveu em um contexto histórico e social diferente do candomblé. A umbanda se originou no Sudeste brasileiro no século XX, como resultado da mescla entre o candomblé proveniente da Bahia, de origem africana, e o espi-ritismo kardecista10, de origem francesa (OLIVEIRA, 2010). A umbanda, assim como o candomblé, apresenta o sincretismo com a religião católica e espírita; no entanto, em um grau mais elevado. O elemento brasileiro introduzido às crenças de origem africana é representado pelas tradições católicas e espíritas brasileiras, como rezas, devoções, e valores religiosos11.

Além das suas contribuições na língua e na religião, as tradições afri-canas influenciaram outras manifestações culturais no Brasil. Suas influências também são notáveis em outras áreas, como a música, onde contribuíram para a formação do samba e de uma identidade cultural brasileira.

SAMBA: DE RITMO AFRICANO A SÍMBOLO BRASILEIRO

A autenticidade do samba como um estilo musical brasileiro foi fruto de um processo lento e ecumênico de construção social. A invenção do gênero como é entendido hoje envolveu influências de diversos grupos, como africa-nos, baianos, cariocas, pobres, ricos, políticos, e intelectuais. A aceitação do ritmo por vários estratos sociais não foi rápida, dado um conflito persistente entre o elitismo e a cultura popular. Conforme Oliveira Vianna explica, “como todo processo de construção social, a invenção da brasilidade (...) foi produto de uma longa negociação” (VIANNA, 1995, p. 152). Esta seção faz uma síntese do processo histórico e social que transformou um ritmo africano do século XIX em símbolo autêntico da cultura brasileira a partir da década de 1930.

O samba tem suas raízes na África. A etimologia da palavra samba pode ser traçada a partir de vários vocábulos africanos: do quimbundo semba, “umbigada”; do umbundo samba, “estar animado, estar excitado”; ou do iorubá e outras línguas bantas, samba, “pular, saltar com alegria” (QUEIROZ, 2008). Apesar da origem discutível, a acepção da palavra era a mesma entre os grupos africanos. Tratava-se de uma dança caracterizada pelo gesto coreográfico da “umbigada”. O ato consistia no choque de ventres, ou umbigos, entre os par-ticipantes da dança, que se organizavam em roda. O centro da roda era ocu-

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pado por uma pessoa, até que essa designasse, através de uma umbigada, um participante do sexo oposto para substituí-la no meio. Todos os participantes batiam palmas e cantavam um curto refrão, intermediado por improvisos de um solista. Os acompanhamentos instrumentais cabiam ao pandeiro, ao prato--e-faca e à viola (SANDRONI, 2001).

Um movimento de internacionalização da música africana foi regis-trado ao longo do século XIX. Testemunhos do samba, entendido como “dança de umbigada”, foram descritos em diversos pontos do continente americano devido à disseminação da mão de obra negra. A primeira descrição impressa no Brasil foi feita no jornal pernambucano O Carapuceiro, em 1838. A dança era recorrente entre os escravos do Nordeste, especialmente na Bahia. Nessa época, as classes altas demonstravam um recalque diante da cultura negra. A música africana tinha um ritmo que se definia pela síncope, forma musical diferente da métrica europeia, à qual a elite brasileira estava acostumada, de modo que essa tinha uma predisposição cognitiva de rejeitar o que divergia do seu padrão cultural. Entretanto, mais forte para a rejeição era a motivação social, uma vez que o ritmo diferente remetia aos escravos, o que repassava à música a mesma qualidade inferior com que esses eram tratados (SANDRONI, 2001).

Não obstante o repúdio afirmado contra a cultura musical africana, a elite brasileira a abraçaria de forma gradual. Esse processo começou anteriormente ao samba. A modinha brasileira, famosa no país desde o início do século XIX, era uma música com influência africana. Inventada principalmente por mulatos das camadas populares, correspondia a um estilo autêntico em face das modas, ou canções líricas, portuguesas. As modinhas brasileiras privilegiavam temas amorosos – sendo mais explícitas em sua libidinagem do que as versões portu-guesas – e eram acompanhadas por violão ou bandolim. Elas faziam sucesso na corte de Dom Pedro I (VIANNA, 1995).

O lundu também ganhou aceitação da classe alta durante o século XIX. Tratava-se inicialmente de uma dança sem cantoria, que fora trazida pelos escravos de Angola e do Congo. Fazia grande sucesso nas camadas populares. A partir da década de 1830, quando tem início a impressão musical no Brasil, o lundu se tornou um gênero de salão, ouvido pela elite. As canções passaram a ter versos, criados por gente branca e mestiça dos principais centros urba-nos. As letras do lundu elitizado remetiam ao mundo afro-brasileiro em um sentido cômico, em vez de mostrarem o duro cotidiano do trabalho escravo.

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Faziam referência ao negro que dançava e que entretinha seus senhores bran-cos. Geralmente havia um duplo sentido sexual relacionado às mulatas e negras. Segundo Mário de Andrade, através desse recurso da graça, o lundu foi o pri-meiro traço cultural que venceu a impermeabilidade da sociedade branca em relação à cultura negra (SANDRONI, 2001).

“O lundu (...) é a primeira forma musical afro-negra que se dis-semina por todas as classes brasileiras e se torna música ‘nacio-nal’ (...). A comicidade (...) era o disfarce psicossocial que permi-tia a difusão [do lundu] nas classes dominantes (...) [e] retirava qualquer dor e qualquer drama [do negro]” (ANDRADE apud SANDRONI, 2001, p. 53-54).

Nos aspectos de dança, o lundu exibia movimentos sensuais, porém caracterizava-se pelo par separado. O contato entre os dançarinos surgiu com a polca, dança que foi trazida por artistas de teatro franceses nos anos de 1840 e que fazia sucesso entre as camadas populares do Rio de Janeiro. O maxixe, surgido na década de 1870, juntou, na sua dança, a sensualidade do lundu com o contato entre os dançarinos da polca, o que mais tarde influenciaria o samba. O ritmo do maxixe foi influenciado pela música trazida por escravos de Moçambique, o que explica ter o mesmo nome de uma cidade moçambicana. Ainda que tivesse uma forte conotação de vulgaridade, o maxixe se tornou extremamente popular entre todas as classes, substituindo o lundu como a “dança nacional” na virada do século XIX para o XX. Ele era tocado com flautas, violões e cavaquinhos (mais tarde, seria classificado como um subgênero do choro) (SANDRONI, 2001).

A partir da década de 1870, a palavra samba começou a aparecer no Rio de Janeiro para descrever danças que se encaixavam no conceito de “dança de umbigada”, mas cujo cenário não era mais a Bahia nem as fazendas de café. Na segunda metade do século XIX, tinha havido um aumento do fluxo migratório do Nordeste para o Sudeste, acompanhando a mudança do eixo econômico nacio-nal. Uma parte desse contingente era constituída por negros baianos livres, tanto filhos de escravos alforriados como beneficiados pela Lei do Ventre Livre. Através de fortes laços de solidariedade, os negros baianos construíram uma comunidade na zona central do Rio, região que já abrigava afrodescendentes e outras classes populares. Os baianos levaram consigo o “samba de umbigada”, cuja disseminação entre a classe popular foi rápida. Em 1872, no romance Til, José de Alencar retratava o samba como um ritmo dos “pretos da roça”. Anos

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depois, em 1890, Aluísio Azevedo descreveu, em O Cortiço, brancos, mulatos, baianos e portugueses dançando o samba em roda. O samba deixava de ser visto como uma exclusividade do Nordeste, da roça e dos negros (SANDRONI, 2001).

Em poucas décadas, samba adquiriu uma conotação mais ampla, extra-polando o “samba de umbigada”. Como o maxixe havia surgido na mesma região central do Rio de Janeiro onde o samba de roda se popularizou, músicas que antes seriam chamadas de maxixe foram batizadas de samba. Os títulos nas par-tituras mudaram, sem que o conteúdo musical e o gosto popular pelo maxixe se alterassem. Violões e flautas ainda eram utilizados, e o par dançava junto. Buscava-se fugir da classificação vulgar do maxixe através da adoção de um novo nome. Nascia, assim, a diferenciação entre o “samba carioca”, que desig-nava o samba popular, e o “samba baiano”, mais folclórico, que se referia ao “samba de umbigada” (SANDRONI, 2001).

O samba carioca nasceu no bairro da Cidade Nova, um dos redutos dos imigrantes baianos no Rio de Janeiro. O bairro surgiu por volta de 1860 e logo se tornou o mais populoso da cidade. Abrigava os divertimentos de má fama (como a dança do maxixe), onde o negro podia fazer uso das suas práticas cul-turais fora do alcance repressivo da população branca. Em 1876, Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, saiu de Salvador e chegou à Cidade Nova. A baiana foi uma figura importante na criação do samba carioca, uma vez que a sua casa foi ponto de encontro de todos os sambistas de destaque das déca-das iniciais do século XX, como Donga, Pixinguinha, Sinhô, João da Baiana, e Caninha. Festas musicais, chamadas de pagodes, eram promovidas com fre-quência por Tia Ciata e serviram como espaço para o samba carioca se desen-volver (SANDRONI, 2001).

Em 1917, na casa de Tia Ciata, surgiu Pelo telefone, canção que marcou oficialmente o início do samba carioca. Seu autor, Donga, a incluiu no registro de autores da Biblioteca Nacional como sendo do gênero “samba carnavalesco”. Outras composições haviam sido registradas nessa categoria anteriormente, mas não alcançaram o grande sucesso da canção de Donga. Com a fama de Pelo telefone, o termo samba se tornou extremamente popular e levou a uma proli-feração de canções classificadas nesse gênero (SANDRONI, 2001).

A princípio, o samba foi combatido por ser considerado uma distração de vagabundos. Rodas de samba eram desfeitas pela polícia, e quem tocasse pan-deiro podia ser preso. Um aspecto que contribuía para a perseguição do samba

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era a sua associação com as religiões africanas, o que contrariava o catolicismo, religião que era quase oficial no Brasil. Todavia, paralelamente à repressão, desenvolveu-se desde cedo um interesse da elite pelo gênero. Os Oito Batutas foram o primeiro conjunto musical organizado por Pixinguinha e Donga a fazer sucesso no Rio de Janeiro, a partir de 1919. Para a fama do grupo, foi fundamen-tal o apoio de Irineu Marinho, fundador do jornal O Globo, e o financiamento de Arnaldo Guinle, integrante de uma das famílias mais ricas do Brasil (SANDRONI, 2001).

Gilberto Freyre, na posição de intelectual, desempenhou um papel des-tacado para a aceitação do samba pela elite. Em 1926, Freyre visitou o Rio de Janeiro e assistiu a Pixinguinha e Donga. No dia seguinte, publicou, no Diário Pernambucano, um artigo chamado Acerca da valorização do preto, no qual escreveu que havia um movimento de apreciação do negro em andamento no Rio. As cantigas e danças negras, “talvez a melhor coisa do Brasil”, estavam ganhando espaço, fazendo o brasileiro “ser sincero num ponto de reconhecer--se penetrado da influência negra”, no lugar de querer ser europeu (FREYRE, 1979, apud VIANNA, 1995, p. 28). Esse interesse da elite intelectual em desco-brir “coisas brasileiras” se desenvolveu ao longo do movimento modernista da década de 1920 e dos anos nacionalistas da década de 1930. Além do samba, seriam valorizadas, por exemplo, a feijoada e o mestiço. Em comum às três coisas, a mistura cultural, com fortes influências africanas, passava a formar a identidade brasileira (VIANNA, 1995).

Em fins dos anos 1920, dois tipos de samba passaram a coexistir no Rio de Janeiro. O tipo mais antigo, associado ao ambiente da casa da Tia Ciata, pas-sou a conviver com um samba criado no bairro Estácio de Sá (ou simplesmente Estácio) por compositores que ali viviam ou circulavam, como Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Brancura e outros, também descendentes de escravos. O samba da Estácio se difundiu nos anos 1930 e ganhou destaque, tornando-se sinônimo de samba moderno, ao passo que, posteriormente, críticos aproxima-riam o estilo do primeiro tipo ao maxixe. Enquanto as gravações de estúdio do grupo da Cidade Nova incluíam bons tocadores de piano, flauta, clarineta, cor-das, e metais, o acompanhamento musical, na Estácio, cabia ao violão, ao cava-quinho, ao pandeiro, ao surdo, e à cuíca – quando não a batidas em mesa. Tais instrumentos também eram tocados na Cidade Nova, onde o batuque negro era muito presente, mas apenas ganharam proeminência com a turma do Estácio.

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No novo estilo, o samba deixava de ser feito com instrumentos europeus para ser tocado apenas com instrumentos de origem africana ou inventados no Brasil (SANDRONI, 2001).

O contexto coreográfico do final dos anos 1920 também havia se alterado em relação ao início do século, o que exigia um novo ritmo ao samba. A roda do “samba de umbiguada” havia dado lugar ao bloco de rua, no qual todos dan-çavam ao mesmo tempo. O ritmo do Estácio, mais batucado e marchado, res-pondia à nova demanda de dança, enquanto o samba carioca da primeira fase tinha um ritmo dançante mais adequado a um salão. O lugar social privilegiado para fazer o samba se transferia da casa da “tia baiana” para o botequim, onde a quantidade de pessoas em contato com a música era muito maior. A esse novo estilo, também se associou a figura do malandro, isto é, o sambista que, amante do botequim, das festas e das orgias, se esquiva do mundo do trabalho para cantar. Do primeiro tipo do samba carioca, enfim, só restou a figura da baiana nos desfiles de carnaval (SANDRONI, 2001).

Os blocos de rua foram os antecessores das escolas de samba. Reuniam, como hoje, grupos de carnavalescos do mesmo bairro, que cantavam e desfila-vam em torno de um estandarte. No início da década de 30, os jornais cariocas anunciavam os primeiros desfiles de escolas de samba como algo misterioso, principalmente pela exibição de instrumentos que raramente sabiam identifi-car. Tais instrumentos eram conhecidos apenas pelo povo negro que ocupava os subúrbios e as favelas do Rio de Janeiro. Nos primeiros desfiles, feitos a par-tir de 1932, na Praça Onze, raramente as escolas tinham mais de cem integran-tes. A bateria tocava com cerca de dez ritmistas. À medida que os contingentes aumentaram, foram introduzidos novos instrumentos musicais, como o agogô (vindo do candomblé), o surdo (criação da primeira escola de samba, a Deixa Falar, do bairro do Estácio), a caixa, os pratos, o tamborim, o ganzá, o reco-reco, a cuíca, o apito, e os atabaques (CABRAL, 1991).

A primeira gravação do samba da segunda fase foi feita em 1929, quando o Bando de Tangarás, integrado por jovens de classe média do bairro Vila Isabel (Noel Rosa, João de Barro, Henrique Brito, e Álvaro Miranda), gravou Na Pavuna, de Almirante e Candoca da Anunciação. O grupo, que queria imitar o som ouvido no Estácio, alcançou grande sucesso no carnaval de 1930. Apesar de as gravações feitas pela classe média urbanizada tentarem imitar o som dos morros, os sambas “lá de cima” eram diferentes. No morro do Estácio, cantava-

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-se uma estrofe, e, em seguida, os improvisadores se encarregavam de inventar as partes seguintes. Dava-se espaço para a originalidade. No contexto do estú-dio, a letra tinha de estar pronta para ser gravada, o que impossibilitava impro-visações. Ainda assim, do samba dos morros nasceu o samba urbano carioca, que se espalhou pelo país nos anos seguintes (CABRAL, 1991).

O samba se consolidou como o ritmo brasileiro fundamentalmente por causa da Revolução de 30. O governo de Getúlio Vargas, interessado em con-quistar apoio popular e formar uma identidade nacional, divulgava a música popular para todo o território brasileiro. Seu projeto político de unidade foi possibilitado pela introdução do rádio e do mercado de discos nos anos 1920. Visto que os programas de rádio de maior audiência eram transmitidos a partir do Rio de Janeiro, a difusão do samba foi inevitável. O gênero alcançou sucesso e ascendeu à posição de música nacional. Por trás do fenômeno, o projeto polí-tico de nacionalização da sociedade brasileira também saiu vitorioso (VIANNA, 1995).

O maior reflexo do impacto que o samba teve na sociedade brasileira foi observado no carnaval. No início do século XX, o campo da música popular ouvida no país era variado em estilos, e os bailes de carnaval repercutiam essa diversidade. Os maiores sucessos das folias eram polcas, valsas, tangos, mazur-cas, schottishes, charleston, e fox-trot. Do lado nacional, ouviam-se maxixe, modas, marchas, cateretês, e sertanejos. Nenhum desses estilos conquistou a hegemonia popular, até que, a partir dos anos 1930, o samba carioca conseguiu dominar as festas. Os outros gêneros passaram a ser considerados regionais (VIANNA, 1995).

Ao final dos anos 30, o samba estava difundido no Brasil. Críticos passa-ram a classificá-lo como “a música nacional”, ouvida em todas as regiões e pro-movida no exterior como produto cultural. Nas décadas seguintes, a dissemi-nação dos grupos de samba produziu inovações no estilo, como samba-enredo, samba de gafieira, samba-reggae, pagode, e vários outros. A sequência de ino-vações reflete a assimilação de um ritmo africano pelo brasileiro, que o trans-formou em algo próprio. A mistura das influências de diversos grupos sociais terminou por fazer do estilo musical um retrato da sociedade nacional. O samba e o Brasil guardam a semelhança de serem construções autênticas feitas a par-tir de uma mistura de elementos heterogêneos. A valorização dessa diversidade ainda é um processo em andamento.

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CONCLUSÃO

A vinda de escravos africanos no período colonial deixou legados perma-nentes na construção da nação brasileira. A mão de obra que produziu grande parte da riqueza econômica nacional ao longo de séculos também foi responsá-vel por influenciar a música que é ouvida, o vocabulário que é usado e as reli-giões que são praticadas no Brasil de hoje. A cultura negra se somou às influên-cias de outros povos e está presente no cotidiano de qualquer brasileiro. Ainda assim, os africanos e seus descendentes enfrentaram uma desvalorização social que não faz jus ao seu importante papel histórico. Séculos marcados pelo domí-nio da “civilização branca” na economia, na política e na cultura moldaram um pensamento, ainda presente, que inferioriza e marginaliza o negro.

Uma barreira social tão arraigada demora a ser derrubada. O processo se iniciou recentemente, no século passado. Intelectuais começaram a inverter o desprestígio do negro, a evolução da ciência desmentiu a teoria do determi-nismo racial, e a população afrodescendente conquistou espaço na imprensa e na política. Nos últimos anos, iniciativas governamentais buscaram acelerar a inclusão social dos “não brancos”, maioria no Brasil atualmente. As medidas incitaram um amplo debate sobre a posição do negro na sociedade, gerando controvérsias e reações que são naturais na tentativa de modificar um padrão civilizacional. A discussão está posta e convida cada brasileiro à reflexão. Hoje, expressões que tratam o Brasil como “o país da diversidade” e da “democracia racial” mascaram uma realidade de desigualdade e preconceito; porém, servem como ideais a serem perseguidos em nome da justiça social.

PONTOS A DISCUTIR

1) O samba é genericamente tratado como um elemento da identidade brasi-leira, porém ainda há controvérsias e preconceitos na sociedade em relação ao gênero. O samba se consolidou de fato como música nacional?

2) Em que aspectos o samba sofreu influência da cultura trazida pelos escravos? Como essa cultura foi recebida pela elite?

3) Em que aspecto consiste a brasilidade das religiões afro-brasileiras?4) Em quais dimensões as línguas africanas influenciaram na formação do por-

tuguês brasileiro?

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Notas¹ Dados do Censo nacional de 2000 (IBGE). Disponível em: http://www.ibge.gov.br/english/esta-tistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_populacao/tabelas_pdf/tab3.pdf. Último acesso: 17 dez. 2012.² No século XII, teorias buscavam explicar diferenças e superioridade racial, como a de Conde Arthur de Gobineau, intitulada Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Teorias biológicas identificavam negros e indígenas com status inferior permanente, bem como mestiços como seres degenerados.³ O importante estudo de “classes” entre as construções sociais foi a principal corrente por muitos anos e permanece gerando um grande interesse, no sentido, por exemplo, de que muitos dos movi-mentos sociais atuais incluem de alguma forma objetivos materiais. Contudo, a categoria de classe e o intenso debate que ela suscita vão além do esforço de estudo deste capítulo. Assim, enfocaremos a revisão histórica a partir da categoria “raça”.4 O racismo brasileiro, contudo, não pode ser interpretado simplesmente como reacionário a essa igualdade formal entre todos os brasileiros. Guimarães (2004b, p. 11) ressalta que o racismo tam-bém se origina da reação de elites brasileiras às desigualdades regionais, inseridas no processo de decadência do período açucareiro e prosperidade da cafeicultura. 5 Para estudo compreensivo sobre “democracia racial” – GUIMARÃES, 2006.6 Cabe mencionar o apontamento de Domingues (2007, p. 115) sobre a adoção pelo MNU do termo “negro”, sem conotação pejorativa, como para designar com orgulho todos os descendentes de afri-canos no país. Esse foi um grande estímulo para a identificação do grupo e para a proscrição da expressão “homem de cor”, amplamente utilizada naquele momento. 7 Para estudo sobre movimento negro brasileiro – DOMINGUES, 2007.8 Dados do Censo 2010.9 Sincretismo é a tentativa de conciliar doutrinas religiosas ou filosóficas distintas.10 Doutrina espírita codificada por Allan Kardec que acredita na evolução moral do homem e na comunicação com o plano espiritual.11 Para estudo compreensivo sobre “religiões afro-brasileiras” – OLIVEIRA, 2010.

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2. BONVINI, E. Portugais du Brésil et langues africaines. Langages, 1998, n° 130, p. 68-83.3. CABRAL, S. Breve história do samba. In: SALAZAR, M. Batucadas de samba: como tocar samba.

Rio de Janeiro: Lumiar Ed., 1991. p. 8-16.4. DOMINGUES, P. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo,

Niterói, v. 12, n. 23, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042007000200007&lng=en&nrm=iso. Último acesso: 10 dez. 2012.

5. FERNANDES, J. R. O. Ensino de história e diversidade cultural: desafios e possibilidade. Caderno Cedes, Campinas, vol. 25, n. 67, p. 378-388, set./dez. 2005. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br Último acesso: 27 dez. 2012.

6. FREYRE, G. Aspectos da influência africana no Brasil. Cultura – MEC, Brasília: v. 23, n.6, p. 6-19, out./dez. 1976.

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7. GUIMARÃES, A. S. A. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002.8. __________. Intelectuais negros e formas de integração nacional. Estudos avançados, São

Paulo, v. 18, n. 50, apr. 2004a. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100023&lng=en&nrm=iso. Último acesso: 13 dez. 2012.

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10. __________. Depois da democracia racial. Tempo social, São Paulo, v. 18, n. 2, nov. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702006000200014&lng=en&nrm=iso. Último acesso: 10 dez. 2012.

11. __________. Cidadania e retóricas negras de inclusão social. Lua Nova, São Paulo, n. 85, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452012000100002&lng=en&nrm=iso. Último acesso: 13 dez. 2012.

12. OLIVEIRA, M. F. S.; et al. Candomblé, na natureza e sociedade: reinvenção da África mítica no Brasil. In: Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte, 2. 2010 Belém.

13. PRANDI, R. As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. Civitas, Porto Alegre, v. 3, nº 1, jun. 2003.

14. QUEIROZ, S. (Org.). Brasilidades que vêm da África. Belo Horizonte: FALE/UMG, 2008.15. RODRIGUES, R. N. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Biblioteca Virtual de Ciências

Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.16. SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio

de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.17. TAYLOR, S. E. Primitive culture. Cambridge : Cambridge University Press, 2010.18. VIANNA, H. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.19. WADE, P. Raza y etnicidad en Latinoamérica. Quito: Abya Yala, 2000.

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8APÊNDICE:

PAÍSES AFRICANOS

Natasha Pergher & Júlia Tocchetto1

Os perfis a seguir têm por objetivo trazer informações sobre o continente afri-cano, com vistas a dar suporte para o estudo de suas especificidades em rela-ção às demais regiões do globo. Para tanto, buscamos refletir sobre algumas questões, como: até que ponto o discurso ocidental sobre os direitos huma-nos, liberdade e democracia é um fim em si, e em que circunstâncias ele pode ser usado como um instrumento de dominação, e, portanto, como um meio para atingir outros fins? Quais as consequências da insistência no processo modernizador de padrão ocidental para a África? De que maneira o conti-nente conseguirá uma posição de maior visibilidade no âmbito internacional que não seja meramente em função dos interesses das grandes potências nos seus recursos naturais? Que posição adotar frente aos dilemas religiosos que afetam as sociedades e os Estados africanos e que provocam disputas entre os que defendem a moder-nização secular do Estado e aqueles que profes-sam sua inclinação religiosa? Essas perguntas, que não temos a pretensão de responder, devem ser minuciosamente analisadas sob uma perspectiva crítica e consciente a fim de evitar reducionismos e banalizações.

1 Graduandas de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As autoras agradecem a revisão de Sílvia Sebben.

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Apêndice: países africanos 211

ÁFRICA DO SUL

Em seu largo território, a África do Sul apresenta uma diversidade de paisagens naturais. Sua população de quase 50 milhões de habitantes é majo-ritariamente negra (79%), e há também diversos grupos étnicos: nguni, sotho--tswana, venda, e khoisan são os principais, tendo os dois primeiros maior densidade populacional. Convém acrescentar, ainda, a diversidade linguística do país: a constituição reconhece 11 idiomas oficiais, entre eles o africâner e o inglês (CIA, 2012; VISETINI, 2012).

É importante considerar a história do país antes da colonização europeia, quando o sul do continente africano era habitado pelos grupos étnicos khoi-san e bantu1. Do século XV até meados do século XVII, a região serviu apenas de entreposto comercial para os navegantes europeus. A companhia marítima holandesa foi pioneira em instalar uma feitoria na Cidade do Cabo, em 1652; os holandeses que permaneceram na região passaram a se dedicar ao pas-toreio e ficaram conhecidos como os boêrs, população que se expandiu e foi ganhando espaço na região, com extermínio e escravização dos nativos (aqui já se salientava a ideia de discriminação racial que pautaria o apartheid do século XX). Assim, os boêrs passaram a criar sua própria identidade, desvinculada da holandesa, a africâner (VISENTINI, 2012; VISENTINI; RIBEIRO; PEREIRA, 2007). Vale destacar o início da influência de povos de origem estrangeira para a história sulafricana, principalmente para o Apartheid, posteriormente.

Durante as Guerras Napoleônicas, a Inglaterra invadiu o Cabo da Boa Esperança e lá estabeleceu sua tradicional forma de domínio indireto, por meio da elite local. Com a abolição da escravatura em 1888, um conflito que já per-meava a competição entre os boêrs e os comerciantes ingleses ficou salientado, uma vez que os primeiros necessitavam de escravos; resultado disso foi a explo-ração do interior da região pelos boêrs, que fundaram a República de Transvaal e o Estado Livre de Orange. Em seus territórios, na segunda metade do século XIX, seriam encontrados diamantes e ouro, enriquecendo-os. A Guerra dos Boêrs (1880-1881 e 1899-1902) envolveu justamente a competição pelos recursos naturais existentes na área e foi vencida pelos britânicos (VISENTINI, 2012). Posteriormente, foi formada a União Sul-Africana, e, em sua constitui-ção, já se estabeleciam algumas diretrizes que embasariam o apartheid (como a proibição do voto e do direito à propriedade de terra aos negros africanos). A partir de então, várias legislações segregacionistas foram implementadas,

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cabendo destaque para o Native Land Act de 1913, que dividiu o território do país em 93% para a minoria branca (10% da população) e 7% à maioria negra (75% da população). Foi a partir de 1948, todavia, que o apartheid foi estabele-cido, tendo o Partido Nacionalista, representante dos interesses dos africâners, vencido as eleições com promessas de aprofundar a legislação racial.

Assim, o regime de discriminação institucionalizada surgiu; ele provia enormes vantagens aos brancos, enquanto os negros conviviam com injus-tiça, pobreza, falta de oportunidades, e restrições severas (proibição do voto, do casamento inter-racial, etc.). Durante o período, como forma de responder aos embargos econômicos que os países ocidentais e a ONU - sob a justifica-tiva de defender os direitos humanos - declararam, a África do Sul expandiu sua indústria através da estratégia de substituição de importações, nos setores siderúrgico, químico, de minerais processados, energético, e, posteriormente, de armamentos (VISENTINI; RIBEIRO; PEREIRA, 2007). A partir de 1950, o Congresso Nacional Africano (CNA) liderou a oposição ao regime do apartheid. Seu líder, Nelson Mandela, foi preso em 1963 (quando o partido já havia sido declarado ilegal) e condenado à prisão perpétua. Como marco anterior a essa previsão, destaca-se o Massacre de Sharpeville de 1960, quando a polícia ata-cou civis negros que protestavam pacificamente, matando 69 pessoas. O ponto de mudança foi a eleição de Frederik de Klerk (do Partido Nacionalista) para presidente em 1989: ele anunciou a libertação de Mandela em 1990 e iniciou os movimentos para acabar com o apartheid. O processo para o fim do apartheid iniciou em 1991, quando Klerk revogou leis raciais; em 1993, Klerk e Mandela ganharam o Nobel da Paz. Em 1994, Mandela foi eleito presidente, marcando o fim do regime segregacionista. Jacob Zuma é o atual presidente da África do sul, que hoje em dia é uma democracia parlamentarista e multiétnica (JANE’S, 2009; VISENTINI, 2012).

Cabe salientar a importância econômica da África do Sul para o conti-nente africano e, especialmente, para sua região. Uma economia regional prós-pera é central para sua política econômica externa, bem como sua inserção na economia mundial. O país conta com uma boa infraestrutura interna, possui abundantes recursos naturais em seu território e tem produção industrial e mineral destacada no continente. Os serviços bancários, a mineração e a indús-tria leve são os setores centrais do país. Vale acrescentar que o país gera a maior parte da eletricidade do continente; sua estatal Eskom está entre as 10 maiores

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Apêndice: países africanos 213

empresas energéticas do mundo. A Copa do Mundo de 2010 melhorou significa-tivamente a infraestrutura do país e sua atratividade para turistas estrangeiros, apesar de haver controvérsias quanto aos reais benefícios para a população, muitas vezes marginalizada aos benefícios do investimento, devido à elevada desigualdade do país (em geral, entre negros e brancos). Entre alguns desafios a serem salientados, estão o alto desemprego (em 2011, ele estava em 25%), principalmente entre os negros, e a incidência de AIDS na região: o país é o 1º no mundo tanto em número de mortes pela doença como o de pessoas vivendo com ela (VISENTINI, 2012; CIA, 2012).

Vale destacar seu proeminente papel no cenário internacional. A África do Sul é um país de grande relevância – econômica e política - em seu conti-nente, com importante participação em diversos fóruns, como o G20, o BRICS e o IBAS. Os dois últimos são de especial relevância para o Brasil, pois repre-sentam espaços para cooperação entre países em desenvolvimento e afirmação da atual ordem multipolar que vem emergindo. O IBAS, em particular, unindo a Índia, a África do Sul e o Brasil, é grupo ímpar, pois seus países compartilham diversas características e interesses comuns, buscando uma maior coordenação política e produtiva, o estreitamento dos laços comerciais, políticos e securitá-rios entre os países, além da maior inserção internacional.

CABO VERDE

O Cabo Verde é um arquipélago de 10 ilhas, divido em municípios e fre-guesias. O país é caracterizado pela mestiçagem da população, uma vez que a região servia de entreposto comercial na época do tráfico de escravos, tendo a maioria da população origem étnica europeia e bantu. A religião predominante é o cristianismo. O país é pobre em recursos naturais, em razão de seu relevo de origens vulcânicas; somado a isso, o seu isolamento geográfico aumenta sua dependência em relação ao exterior, tanto em termos de empréstimos quanto de importações (82% dos alimentos são importados). Apesar da fraqueza da agricultura, a população é majoritariamente rural (70%). Enquanto isso, 76% do PIB de Cabo Verde é concentrado em serviços (principalmente os públicos e os voltados ao comércio, ao turismo, e ao transporte). Vale salientar, ainda, a grande desigualdade econômica entre as ilhas que constituem o país. A polí-tica econômica recente visa à diversificação da economia, através da atração de investimento estrangeiro e do desenvolvimento do setor privado. A estabili-

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dade e a ajuda externa culminaram nas suas taxas altas de crescimento verifica-das desde a independência (VISENTINI, 2012; CIA, 2012).

Ao contrário da maioria dos países africanos, o Cabo Verde era desabi-tado antes da colonização europeia. Os portugueses se instalaram no arquipé-lago no século XV, aproveitando-se da localização geográfica privilegiada das ilhas - no Oceano Atlântico próximo à costa ocidental da África - central para a rota do tráfico de escravos. A colonização foi predatória, prejudicando a paisa-gem natural do país e agravando a escassez de água, característica muito preo-cupante presente até hoje. Os europeus cultivavam principalmente algodão, cana-de-açúcar e frutas, destruindo a parte fértil do solo. As grandes secas sub-sequentes causaram intensos fluxos de emigração para países da costa africana, para os EUA e para o Brasil.

Em 1956 criou-se o PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné (Bissau) e de Cabo Verde, de orientação marxista, evidenciando uma união pró-independência dos dois países. A independência foi precedida pelas diversas guerrilhas na Guiné e a resistência no Cabo Verde. A queda do dita-dor português Francisco Salazar, contudo, foi o que possibilitou a indepen-dência. Após Portugal reconhecer a independência de Cabo Verde, o PAIGC foi adotado como único partido legítimo. A partir daí, e apesar da manutenção de relações com a URSS, o país manteve uma posição de não alinhamento. Em 1975, Aristides Pereira foi eleito presidente, e Pedro Pires, primeiro-ministro. A Assembleia recém-estabelecida promulgou uma espécie de constituição que tratou da organização política do Estado e que permaneceu em vigor até ser escrita a real constituição em 1980. Em 1981, o PAIGC de Cabo Verde rompeu com o PAIGC de Guiné, passando a se chamar PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde), ainda de orientação socialista (VISENTINI, 2012).

Depois da independência, o Cabo Verde era um dos países mais pobres da África. O PAICV, a partir de 1982, iniciou uma série de reformas para o desenvol-vimento do país, divididas em planos, centrados na reforma agrária, na infraes-trutura e no estímulo a setores produtivos específicos. No início dos anos 1990, houve a abertura política do país, a partir de uma alteração da Constituição, o que fez o regime de partido único converter-se em multipartidário. Nas pró-ximas eleições, o recém-criado Movimento para a Democracia (MpD) colocou

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Mascarenhas Monteiro na presidência. Ele realizou, nos dois mandatos em que se manteve no poder reformas de caráter liberalizante (VISENTINI, 2012).

O PAICV voltou ao poder em 2001, com Pedro Pires na presidência e maioria no legislativo. Pires também foi reeleito, nas eleições de 2006. O país, desde o governo de Mascarenhas, procurava abrir-se ao exterior, melhorando as relações com a União Europeia e com os EUA. O bloco europeu é central para a política externa do Cabo Verde, que busca tornar-se membro pleno da UE. Um avanço recente nesse sentido ocorreu em abril de 2012, quando alguns acordos entre a UE e o país foram assinados, facilitando o trânsito recíproco de pessoas. Desde 2011, Carlos Fonseca, do MpD, é presidente do país; o primeiro-ministro é do PAICV, mas tal fato não causou atritos ou mesmo uma cisão substancial de interesses.

É importante ressaltar a tamanha influência externa sobre a região, por meio de remessas de doações, investimento direto estrangeiro, e relações diplomáticas mais estreitas. A posição privilegiada das ilhas de Cabo Verde e o interesse da OTAN e da União Europeia para com a região contribuem para sua importância na agenda dessas duas organizações, havendo alguns movimentos de cooperação do país com a OTAN: em 2006, por exemplo, o país acolheu exercício militar dessa organização. A possibilidade de ele integrar a OTAN já foi considerada, mas, possivelmente por se superestimar o papel de Cabo Verde na conjuntura atual e não ser de aceitação consensual dos países membros, a adesão ainda não ocorreu. O país, assim como Guiné-Bissau, Nigéria, e Senegal, é utilizado no tráfico de drogas, principalmente de cocaína e heroína, da América do Sul para a Europa, adquirindo uma renovada importância na agenda inter-nacional. Com os mercados norte-americanos saturados, o comércio de drogas sul-americanas tem se deslocado para a Europa, utilizando-se da fraca estru-tura institucional dos governos da África Ocidental (PERDIGAO, 2012).

EGITO

A República Árabe do Egito se situa em uma posição estratégica no continente africano, estando em uma das principais rotas que ligam a África ao Oriente Médio. Tal posição garante ao país influência tanto na região do Mediterrâneo, quanto no Oriente Médio, o que faz com que seja um Estado importante para os interesses dos países ocidentais. A economia dinâmica – baseada no turismo, na exportação de gás e petróleo, e na mineração –, a par-

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ticipação em fóruns multilaterais, como o G20 comercial, e a relevância para o contexto da África setentrional e Oriente Médio permitem caracterizá-lo como uma potência regional (BUZAN; WAEVER, 2003). De uma população que soma 90 milhões de cidadãos, boa parte se concentra na região marginal do Rio Nilo, fato que se mantém desde a fundação da civilização egípcia e que foi um dos condicionantes da sua história milenar.

O território egípcio foi, ao longo dos séculos, o espaço em que uma rama variada de culturas se desenvolveu. Aspectos da civilização helenística foram incorporados quando do reinado de Alexandre, o Grande, na Grécia; posterior-mente, a invasão do país pelos muçulmanos e a retomada do poder pelos bizan-tinos intensificaram o cruzamento cultural, religioso e social, que proveu ao Egito fundamental relevância para o mundo muçulmano. A influência europeia, materializada nas presenças francesa e inglesa na região, provocou efeitos de ordem ímpar e inseriu definitivamente o país dentro do novo contexto inter-nacional. No século XX, o domínio europeu se tornou insustentável; o desfecho da Segunda Guerra Mundial e a divisão do mundo nos preâmbulos da Guerra Fria exigiam dos países europeus maior tolerância frente ao nacionalismo das colônias africanas, ao mesmo tempo em que as metrópoles não poderiam aban-doná-las completamente em função da disputa com os soviéticos. As influên-cias da dinâmica internacional na região da intersecção dos continentes afri-cano e asiático podem ser avaliadas como uma das principais causas da Guerra Árabe-Israelense (1948), em que os exércitos de Egito, Iraque, Líbano, Síria e Transjordânia iniciaram um conflito com o recém-proclamado Estado de Israel (HAHN, 1991; ROGAN; SHLAIM, 2001).

Na década de 1950, as interferências externas foram desafiadas quando da eleição de Gamal Abdel Nasser para presidente do país, após a declaração da República do Egito. Seu governo surgiu como reflexo do nascimento do nacio-nalismo anti-imperialista egípcio, o qual se fortaleceu contrário ao controle externo sobre o país, especialmente sobre o Canal de Suez. Esse fora construído em meados do século XIX e se manteve sob controle francês e britânico após a independência do país. A decisão pela nacionalização do canal culminou na Crise do Suez, protagonizada por França, Inglaterra e Israel de um lado e o Egito do outro. O nacionalismo de Nasser, combinado com o desfecho negativo da guerra de 1948 contra Israel, levou à criação do movimento pan-arabista, que teve como expoente a República Árabe Unida (1958), que uniu Egito e Síria.

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Menos de dez anos depois, a tentativa de reunir os Estados árabes, por meio da luta comum contra o Estado de Israel, culminou na Guerra dos Seis Dias, em que os Estados árabes não só foram incapazes de recuperar as regiões perdidas em 1948, como também tiveram seus territórios diminuídos pela ofensiva israe-lense (BARNETT, 1992).

A política egípcia foi modificada quando da eleição de Anwar Al Sadat, o qual deu início à política da Infitah2, cujo objetivo era encorajar os investimentos privados, diminuindo o espaço do setor público. No governo de Sadat, o Egito reconquistou parte da península de Sinai, a qual fora perdida na Guerra dos Seis Dias e foi totalmente reapropriada mediante negociações diplomáticas. Sadat ficou conhecido como o presidente que fez as pazes com Israel, o que provocou a expulsão do Egito da Liga Árabe (criada em 1945) devido ao des-contentamento com a aproximação do país com Israel.

A era do militar Hosni Mubarak iniciou no ano de 1981 e foi caracte-rizada por uma autocracia sutil, em que o Estado era considerado secular e a população possuía certa liberdade de expressão para se opor às políticas do governo. As dificuldades econômicas desenvolvidas na era Mubarak, como a estagnação da infraestrutura de transportes, o elevado nível de pobreza, e as debilidades sociais, contribuíram para um elevado grau de fragilidade polí-tica, que culminou, no ano de 2004, na criação do movimento de oposição ao governo egípcio, chamado Movimento Kefaya, o qual reivindicava democracia e recusava a sucessão hereditária de Mubarak. Além do Kefaya, Mubarak enfren-tou a oposição política da Irmandade Muçulmana, movimento fundamentalista islâmico que rejeitava as reformas seculares do governo do militar.

A fragilidade política do país provocou, em janeiro de 2011, os protes-tos sociais que resultaram na derrocada de Mubarak da presidência egípcia. As manifestações contrárias ao governo foram realizadas no Cairo, na Alexandria, e em Suez e contavam com a participação de membros dos partidos de oposição tradicionais, da Irmandade Muçulmana, e de grupos que clamavam por mais democracia, liberdade, e direitos. A oposição era visivelmente heterogênea, aglutinando grupos cujas reivindicações visavam a uma maior secularização do Estado, ao passo que outros eram contrários à secularização existente no governo Mubarak. Após a queda do presidente, uma junta militar assumiu o poder, propondo um referendo constitucional e realizando eleições para o par-lamento pela primeira vez desde a ascensão de Mubarak.

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Em junho de 2012, a população egípcia elegeu para presidente do país Mohamed Morsi, membro do Partido Liberal e da Irmandade Muçulmana. A legitimidade das eleições foi contestada, e o debate sobre a secularização do Estado tem dado mostras de ser um potencial desestabilizador da política egíp-cia, uma vez que Morsi demonstrou predisposição ao diálogo secular, mas pro-pôs um referendo constitucional que barrava uma série de direitos conquista-dos durante o governo Mubarak. Longe de ser uma questão resolvida após a queda do antigo presidente, o dilema sobre a modernização secular do Estado ou sua inclinação religiosa se mantém em aberto tanto para a população do Egito quanto para os demais países do norte da África e do Oriente Médio, onde os efeitos dessa matéria terão influência direta.

GUINÉ BISSAU

A Guiné-Bissau se localiza na África Ocidental, especificamente no Golfo da Guiné, e faz fronteira com o Senegal e com a Guiné, sendo banhado pelo Oceano Atlântico. É um país pequeno e muito pobre, que possui jazidas de petróleo. A exploração petrolífera, contudo, tem tido obstáculos devido a insta-bilidades internas e à indefinição quanto à posse das mesmas com os vizinhos (principalmente com o Senegal), uma vez que estão em território marítimo. Outras jazidas importantes são as de fosfato e bauxita. A pesca e a agricultura são base da sua produção, o que caracteriza sua falta de modernização indus-trial. A indústria existente é basicamente de processamento de alimentos. Vale salientar a importância das doações estrangeiras para o país, que chegam a representar 30% do PIB. A população é de grande diversidade étnica e é divi-dida entre 50% de muçulmanos, 40% de religiões animistas, e 10% de cristia-nismo (VISENTINI, 2012; CIA, 2012). Essas divisões religiosas são caracterís-tica relevante em diversos países africanos e trazem tensões; a causa dessas divisões internas é a colonização europeia, que uniu territorialmente, em paí-ses, populações com diferenças étnico-religiosas marcantes. Convém acrescen-tar, ainda, que a localização do país coloca-o na rota do tráfico de drogas entre a América do Sul e a Europa (atividade econômica lucrativa, embora ilícita, que traz rendas para o país). Esse é o desafio que permeia toda a região da África Ocidental. Entre todos os países da área, todavia, Guiné Bissau é considerado o país mais afetado pelo tráfico e pela proliferação de redes criminosas ligadas a ele. O contrabando de armas está relacionado com essas questões e tem

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causado mais instabilidade política na região e, em especial, na Guiné Bissau (PERDIGAO, 2012).

A história do país foi marcada pela presença portuguesa na região desde o século XV, que foi altamente exploradora e violenta. Na costa, populações eram aprisionadas para serem escravizadas. A produção interna se voltou à exportação, com trabalho praticamente escravo dos nativos e uma situação de grande miséria: pouco dos lucros ou do excedente da produção permanecia no país. O Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde (PAIGC), fundado em 1956, foi essencial para o processo de independên-cia. Essa foi obtida em 1974, após inúmeras guerrilhas promovidas pelo PAIGC, tornando a Guiné-Bissau a primeira colônia portuguesa na África a conquis-tar a independência. Em 1972, com eleições livres, foi criada uma Assembleia Nacional Popular, a qual proclamaria, no ano seguinte, a República Democrática, Anti-imperialista e Anticolonialista da Guiné. Com o PAIGC no poder, diversas reformas - desde agrícolas e agrárias até a aplicação de um modelo socializante - foram promovidas, e uma política externa anticolonialista e não alinhada pas-sou a ser a linha de atuação do país. A unificação com Cabo Verde também era buscada, mas acusações de corrupção ao próprio governo e outros empecilhos impediram tal movimento.

Em 1995, ocorreram as primeiras eleições multipartidárias, e o presi-dente que já estava no poder, João Bernadino Vieira, foi reeleito. Uma guerra civil assolou o país três anos depois, quando de uma tentativa frustrada de golpe de Estado, que culminou no exílio do presidente Vieira. O presidente que o seguiu fez um governo pouco eficaz, e em 2003 um novo golpe de Estado ocor-reu, o qual culminou em um Conselho Nacional de Transição, que organizou as próximas eleições. O ex-presidente Vieira foi novamente eleito em 2005, mas foi assassinado em 2009 pelas forças armadas, alegadamente como retaliação ou revolta, pois seu chefe havia sido morto em um atentado (VISENTINI, 2012). Tais descrições comprovaram uma instabilidade política grave do país. Além de prejudicar a população, tal instabilidade impediu tanto reformas econômicas necessárias ao país quanto a resolução da questão das jazidas de petróleo, que, se efetivamente exploradas, trariam rendas importantes. A instabilidade polí-tica do país, portanto, é alarmante; em 2011, a União Europeia, em razão dessa, suspendeu parte de sua ajuda financeira, o que foi prejudicial, tendo em vista a dependência externa do país.

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Recentemente, ocorreu mais um golpe de Estado, como os muitos que permearam sua história política, assolando o país com inúmeros problemas. Em março de 2012, com novas eleições a serem realizadas, tal golpe, mane-jado pelas forças armadas, impediu que um presidente assumisse o cargo, pois interrompeu as eleições antes do segundo turno. Manuel Nhamadjo assumiu como presidente da transição, e, sob mediação da ECOWAS3, foi feito um com-promisso de que, no prazo máximo de um ano, novas eleições serão realizadas (VISENTINI, 2012; CIA, 2012). Na Guiné-Bissau os momentos de democracia foram muito efêmeros, recorrentemente reconstruídos sob frágeis bases. A instabilidade e a violência política do país são características constantes e difí-ceis de serem superadas. Segundo o New York Times, em notícia divulgada em 2012, nos últimos três anos, pelo menos seis assassinatos políticos ocorreram - incluindo do presidente e do chefe do Exército em 2009 - e também três tenta-tivas de golpes, incluindo esse último. Cabe salientar ainda que nenhum presi-dente completou um mandato inteiro, o que salienta a alarmante instabilidade política de Guiné Bissau (NOSSITER, 2012).

LÍBIA

A República da Líbia foi palco, em 2011, das movimentações conhecidas como Primavera Árabe4. Para compreender esses acontecimentos, no entanto, deve-se ter em mente os elementos históricos, sociológicos, econômicos e polí-ticos que estão na origem desse processo.

Após ser colonizada durante todo o século XIX pelos turco-otomanos e, no inicio do século XX, pelos italianos, a Líbia conquistou a independência política, instaurando em 1951 um regime monárquico. O reconhecimento da independência por parte dos países centrais lhe rendeu por uma década e meia uma condição de dependência em relação a essas nações, em especial, ao Reino Unido e aos EUA. Em meados de 1960, descobertas de reservas abundantes de petróleo transformaram o país no mais rico Estado do continente. É nesse con-texto que se dá a ascensão de Muammar al-Gaddafi, em 1969, quando um con-selho revolucionário depõe a monarquia, instaurando a república. O governo de Gaddafi desde o início foi centralizado, mas sustentado em ideias progressistas de combate ao racismo e ao neocolonialismo. Tais concepções foram sintetiza-das no Livro Verde, em que Gaddafi expõe suas visões acerca da democracia, dos problemas econômicos e da estrutura social necessária à constituição de

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uma nação, as quais lançaram as bases para a organização política, econômica e social da Líbia. O respeito às propriedades estrangeiras, no entanto, garantiu a legitimidade do governo do coronel Gaddafi no âmbito externo, muito embora alguns países tenham sempre tentado manter certa influência no país, devido aos seus interesses nas reservas petrolíferas da região.

Fundamental para a economia Líbia, a exportação de petróleo – cru ou refinado – corresponde a 95% das rendas da exportação, 25% do PIB e 60% dos salários do setor público. A Líbia é o segundo maior produtor do continente, sendo que o valor de sua produção equivale a 2% do total mundial. Esse número é importante, haja vista que, tanto a instabilidade política, quanto os desequilí-brios econômicos e sociais são capazes de elevar o preço dessa matéria-prima em nível internacional. Nessa matéria está a justificativa para a preocupação incisiva dos países europeus e dos EUA em relação à Líbia nos últimos anos, bem como um dos motivos para a intervenção militar sofrida pelo país no ano de 2011. A necessidade e a dependência da energia petrolífera, bem como os impactos que uma instabilidade no fornecimento poderia trazer à zona do euro, foram os principais motivadores para os eventos de março de 2011, quando for-ças da OTAN invadiram o país alegando que o governo do coronel Gaddafi, por ser antidemocrático, deveria ser deposto. Por detrás do interesse humanitário em proteger a população líbia, a operação visava, além do controle sobre os recursos petrolíferos, a uma posição estratégica no norte do continente, onde o acesso ao Oriente Médio era favorável (CAECEDO; ALVAREZ, 2011).

Em 17 de fevereiro de 2011, data da primeira grande manifestação popu-lar, iniciou-se a transição política na Líbia, a qual culminaria na queda de Gaddafi. Informações sobre a utilização de aviões militares para reprimir a população civil, bem como a contratação de mercenários para atuar em defesa do governo, foram veiculadas pelos grandes meios de comunicação, gerando repúdio de muitos civis ao governo central. Nesse sentido, a adesão da população à causa anti-Gaddafi e o inconformismo com a posição do governo abriram espaço para as intervenções estrangeiras no país, garantindo as presenças europeia e estadunidense no território africano. A mobilização contra o governo líbio contava com a participação de grupos rebeldes, de militantes da al-Qaeda e de forças da OTAN, as quais interagiam visando a um mesmo propósito, mas sem coerência operativa. Além do suporte oficial da OTAN, Qatar, Emirados Árabes Unidos e Jordânia declararam apoio à intervenção militar na Líbia, apesar de a

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Liga Árabe os ter condenado, demonstrando os interesses desses países pelos mercados líbios de petróleo. Por outro lado, as forças líbias eram respaldadas por mais de 10.000 Tuaregs, grupo étnico presente no Mali e no Níger, fiéis a Gaddafi em função do suporte aos levantamentos armados realizados por esses grupos em seus países durante os anos 1960.

Outro elemento relevante quando se analisa a invasão líbia é o grau de independência dos países africanos e a legitimidade das instâncias regionais, como por exemplo, a União Africana. Gaddafi foi um dos estadistas que mais intensamente trabalhou para a consolidação do bloco desde a sua criação em 2002. Sua participação foi essencial para a mediação do conflito em Darfur, no Sudão, e, quando presidiu a organização em 2009, demonstrou interesse na independência e no fortalecimento dos países do continente frente às for-ças extrarregionais. Quando da formação do Conselho Nacional de Transição Líbio (o qual assumiu a direção do país após a destituição de Gaddafi), a União Africana adotou uma postura claramente divergente, no entanto, não demorou muito para que a União reconhecesse o conselho como legitimo, evidenciando a influência externa exercida no órgão e nos assuntos da região como um todo e na matéria de segurança em particular.

Em 2012, a Líbia vivenciou o primeiro pleito eleitoral dos últimos qua-renta anos. Sabe-se que os EUA juntamente com a China recebem 22% das exportações de petróleo líbias, e que a China tem investido pesadamente no país, possuindo mais de 75 companhias, muitas delas na área de energia. É de conhecimento público que as reservas petrolíferas da Líbia somam mais de 39.000 milhões de barris, o que corresponde a 40% das reservas totais do con-tinente, e que no ano de 2009 a Líbia desafiou o poder das grandes potências ao propor, em um discurso na ONU, que o poder máximo da organização passasse à Assembleia Geral, mesmo em questões relativas à segurança internacional. Está claro, portanto, que a invasão na Líbia não se pautou somente na defesa da democracia e dos direitos humanos, mas que envolveu uma série de questões que tocavam em pontos controversos para a ordem global. MALI

Situado na região do Sahel africano, o Mali é um país de grande diver-sidade étnica e pouca diversidade religiosa. De uma população de quase 16 milhões de pessoas, 90% são muçulmanos, 9% seguem religiões nativas, e ape-

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nas 1% da população é cristã. Na esfera étnica, no entanto, a multiplicidade é mais visível, sendo um país de, pelo menos, 5 etnias distintas: Mande (50%), Fulbe (17%), Voltaic (12%), Songhai (6%), e Tuaregs (10%). Por ser um dos países mais pobres do planeta, o Mali enfrenta uma série de desafios na esfera social. Além de a expectativa de vida no Mali (52,2 anos) ser bastante inferior às médias mundial (71,8 anos) e norte africana (74 anos), a taxa de mortalidade no país é mais alta do que a média da África Subsaariana – 98,2‰ e 69,4‰ crianças de até 1 ano (WORLD BANK, 2012). Em termos econômicos, diferen-temente dos demais países da região, o Mali não é um grande exportador de petróleo. Sua economia se baseia, essencialmente, na exportação de algodão e ouro e na agropecuária (ARIEFF, 2013). No âmbito da exploração mineral, como resultado das políticas liberalizantes do final dos anos 1980, as regras são bastante flexíveis, o que, apesar de gerar maiores investimentos para o setor, também contribui para o aumento da intervenção estrangeira no país.

A história do Mali remonta às disputas interétnicas que formaram os impérios africanos durante milhares de anos. A região do Sahel africano – e os países que dele fazem parte – constituiu-se enquanto o espaço de controle do comércio transaariano, desde o século VIII até o século XVI, transportando sal, ouro, escravos, e outros artigos preciosos para as regiões do Oriente Médio e da Ásia Central. A descoberta da rota pelo sul da África, no século XVI, no entanto, fez com que o comércio transaariano perdesse a importância que obtivera nos anos anteriores. O contexto da corrida imperialista, no século XIX, culminou no controle francês do Mali, o qual perdurou por toda a primeira metade do século XX.

Em 1959, o Mali se uniu ao Senegal em busca de independência polí-tica. Em 1960 nasceu a Federação do Mali, sendo Modibo Keïta o primeiro pre-sidente eleito do novo país, o qual implementou no Mali um sistema de par-tido único. No final da década de 1970, como resultado de um golpe militar, o General Mousa Traoré assumiu a presidência do país, permanecendo na chefia do governo até a redemocratização, em 1991. Traoré realizou reformas eco-nômicas, políticas e sociais que desagradaram muitos grupos malineses. Além disso, ele enfrentou, durante os pouco mais de 20 anos em que esteve no poder, grande oposição popular devido ao regime autocrático, que impedia manifesta-ções contrárias ao governo, e à falta de bem-estar do povo, a qual foi identificada como sendo consequência do alinhamento do governo com as demandas do

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Fundo Monetário Internacional. Em 1991, movimentos de oposição ao regime de Traoré culminaram em um golpe de Estado que estabeleceu um governo de transição, redigindo uma nova constituição e implementando o multipartida-rismo como pilar do novo sistema. Esses protestos, os quais contaram com forte resistência do governo, ficaram conhecidos como a Revolução de Março. Após a redemocratização malinesa, o Mali foi reconhecido como um dos mais estáveis países africanos.

No ano de 2012, no entanto, essa estabilidade foi ameaçada. Como conse-quência dos eventos da Primavera Árabe, indivíduos de etnia Tuareg, que luta-ram ao lado do governo líbio quando da invasão do país, retornaram ao Mali, provocando um aumento do fluxo de armas para o país e colocando em questão a estabilidade política interna. Em março de 2012, o presidente eleito, Amadou Toumani Touré, foi deposto por uma junta militar na capital Bamako, ao mesmo tempo em que o grupo insurgente Movimento pela Libertação Nacional de Azawad (MNLA) ocupou o norte do país, provocando o deslocamento de mais de meio milhão de pessoas para outras regiões (SOLO, 2012). O MNLA, de ori-gem Tuareg, reivindicava a independência de Azawad (que inclui as regiões de Timbuktu, Kidal, e Gao), no norte do Mali. Outros grupos islâmicos atuantes no país, no entanto, passaram a intervir diretamente na região. Dentre esses gru-pos estão o Al Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI) e o Movimento pela Unidade e Jihad na África Ocidental (MUJAO), os quais receberam ajuda do Qatar e exi-giram a implementação da lei da sharia5 nas zonas ocupadas; e o Ansar Dine, também de etnia Tuareg, o qual mantém relações informais com as autoridades argelinas e que possui maior influência política e capacidade de mobilização social, devido à forte imagem de defensores da fé islâmica no país (NARANJO, 2012a). A relação entre os rebeldes Tuareg e os islamitas tem provocado ten-sões políticas e dificultado os diálogos em prol da resolução do conflito.

As forças ocidentais têm se mostrado atentas ao conflito. França e Alemanha determinaram apoio logístico ao governo malinês contra os insur-gentes do norte, ao passo que os Estados Unidos têm se apoiado nas estru-turas da ONU e das organizações africanas para respaldar o governo do Mali (NARANJO, 2012b; NARANJO, 2012c). Os principais elementos de inquietação que servem como justificativa para intervir no país são o respeito aos direitos humanos e a luta contra o terrorismo. Do mesmo modo, os países vizinhos ao Mali, como Mauritânia e Argélia, estão apreensivos quanto aos efeitos que a

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intervenção estrangeira é capaz de gerar para seus territórios, podendo esses servir de refúgio para os grupos rebeldes atuantes no Mali.

O desenrolar dos fatos no Mali deve ser acompanhado com proximidade pelos estudiosos da área, uma vez que o país correspondia a um dos pilares da estabilidade política da África e contribuía de forma efetiva para o pan-afri-canismo, com sua participação em organizações como a União Africana (UA). O golpe de março de 2012 provocou a expulsão do país da UA, dificultando o fortalecimento da integração africana e a inserção mais efetiva e independente do continente na ordem internacional.

NIGÉRIA

A Nigéria se localiza no oeste da África, na costa do Golfo da Guiné, é o país mais populoso da África e possui 250 etnias diferentes, com concentra-ção populacional nas três seguintes: Hausa-Fulani (29%), Yoruba (21%), e Igbo (18%). Ela é, ainda, grande exportador de produtos primários e o país que mais produz petróleo no continente. Possui grandes redes hidrográficas – com des-taque para o Níger e seu afluente Benue. Na região sul, a mais povoada, estão localizados os principais rios e as reservas de petróleo. A economia nigeriana é muito dependente desse óleo, sofrendo fortes abalos com as flutuações no preço dos combustíveis fósseis. A agricultura do país não é bem desenvolvida; portanto, importações de gêneros alimentícios são fundamentais (VISENTINI, 2012). O país é marcado por conflitos entre cristãos (região sul) e muçulma-nos (região norte). As perseguições religiosas são constantes, e noticiam-se diversos episódios da disputa. Questão relevante para o conflito é o fato de os 12 estados muçulmanos do norte terem introduzido versões da sharia (lei islâ-mica) em suas legislações em 2000, movimento que provocou a fuga de muitos cristãos da região. Outro desafio marcante é o vírus HIV. A Nigéria é o 2º país do mundo com mais pessoas que vivem com AIDS e está em 2º lugar no ranking de países com maior número de mortes pelo vírus. Em ambos os casos, o 1º lugar do ranking é a África do Sul (CIA, 2012).

Durante o século XIX, a região era dividida, a grosso modo, nos seus três grupos étnicos principais. Os Hausa-Fulani, no norte; os Yorubas, no sudoeste; e os Igbos, no sudeste, em comunidades dispersas ao longo do Rio Níger. No norte, a maioria já era muçulmana e, no sul, era cristã. Cabe salientar que tal dicotomia esteve presente durante toda a história nigeriana e, como descrito,

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até os tempos atuais, assolando o país pela intensa rivalidade que causou mor-tes, perseguições e povos refugiados. O domínio dos britânicos se iniciou em 1861, quando esses conquistaram sua primeira colônia na região, nas terras Yorubas; em 1914, houve a unificação administrativa de todos os povos da região, integrando-os em uma só colônia chamada Nigéria; em 1947, a colônia se tornou uma federação. O domínio era sob o modelo indireto, pois se estabe-leceu um governante local – no caso, os emires Hausa-Fulani – para ser interme-diário da autoridade inglesa (VISENTINI, 2012).

Eleições multipartidárias ocorreram em 1959 para formar um governo único da federação. Em coalizão com o Conselho Nacional de Nigéria e Camarões (NCNC) – oriundo do povo do leste –, o Partido do Congresso do Povo do Norte (NPC) venceu as eleições. Praticamente nada mudou para a população quando, em 1960, a Federação da Nigéria tornou-se um Estado independente, parte da Commonwealth. A independência não abordou a questão das diferenças étnico-religiosas, característica marcante na sociedade nigeriana e tradicio-nalmente negligenciada pela política dominante. Resultado disso foi a Guerra do Biafra (Guerra Civil Nigeriana), tentativa fracassada dos Igbos de secessão (VISENTINI; RIBEIRO; PEREIRA, 2007).

Em 1963, o país adotou uma constituição republicana e se tornou a República Federativa da Nigéria. Em 1966, após disputas partidárias e mudan-ças de coalizões, houve dois golpes de Estado seguidos. Em 1979 uma nova constituição findou com o governo golpista; porém, novamente em 1984, um golpe ocorreu em um contexto de frágil situação econômica e instabilidade política. Em 1993, o governante no poder não reconheceu as eleições que res-taurariam o presidencialismo; como resultado disso, os EUA e o Reino Unido suspenderam relações diplomáticas, ajuda econômica e treino de militares com a Nigéria. Após disputas quanto à tomada do governo, em 1998 eleições multi-partidárias elegeram Obasanjo, ex-preso político, presidente pelo PDP (Partido Democrático Popular, mais liberal); seu mandato durou até 2007, tendo sido reeleito em 2003, apesar de acusações de fraude (JANE’S, 2009).

O presidente Obasanjo deu ênfase ao combate à violência e à corrupção e buscou promover uma maior cooperação entre os países da África. Ele lançou, por exemplo, a parceria para o desenvolvimento econômico com os presiden-tes da África do Sul e da Argélia. A distribuição da renda do petróleo, princi-pal fonte de renda do país, também foi alvo de discussões em seu governo. Os

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grupos rebeldes do delta do Níger – região muito pobre, mas rica em petróleo – protestam pela melhor distribuição dos ganhos provenientes do combustí-vel, uma vez que eles são praticamente repartidos entre o governo federal e as multinacionais que o extraem. Tais grupos (entre eles, o MEND – Movimento pela Emancipação do Delta do Níger) chegam a atacar os oleodutos e a raptar trabalhadores estrangeiros para expressar sua causa; conflitos causados por essa disputa são recorrentes. A principal multinacional na região, a Shell, está envolvida em episódios de derramamento de petróleo; ela aceitou a responsa-bilidade por dois derramamentos (2008 e 2009), mas se eximiu da culpa pelo que ocorreu em dezembro de 2011. A empresa clama que a instabilidade local, o vandalismo e as sabotagens à infraestrutura são as maiores causas. Ativistas afirmam que a empresa poderia ter prevenido os derramamentos e é culpada pelos mesmos (VIDAL, 2012; BBC NEWS, 2012a).

Hoje, a Nigéria está passando pelo seu período mais longo de liderança civil desde a sua independência. As eleições de 2007, apesar de violentas, mar-caram a primeira transferência de poder entre dois civis; Umaru Musa Yar’Adua, do PDP, foi eleito. Em 2010, Yar’Adua faleceu, sendo substituído por Goodluck Jonathan (PDP), que venceu as eleições convocadas para 2011. Nesse ano, houve tentativas de acordos com o Grupo Boko Haram (fundamentalista islã, do norte do país), mas novos ataques do grupo impediram-nas. (VISENTINI, 2012; JANE’S, 2009).

Jonathan mantém a visão do governo anterior de voltar-se para a África, apoiando os princípios de não alinhamento, não interferência, unidade africana, e cooperação e desenvolvimento regional. O país tem grande potencial para liderar a região ocidental africana, sendo o principal membro da ECOWAS – tem a maior economia (66% do total do PIB do bloco) e a maior população (53% do total do bloco) (WORLD BANK, 2012). Tais desenvolvimentos são relevantes para afirmar a importância da região em detrimento da influência externa, sem-pre muito marcante, ainda mais em um país com reservas de petróleo predomi-nantemente exploradas por uma multinacional estrangeira. Falta, contudo, uma posição de maior autonomia do governo, que não dá indicativos de promover uma distribuição mais justa das rendas do petróleo e é parceiro da Shell na exploração do combustível.

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SUDÃO

O Sudão está localizado na África Setentrional, ou Transaariana, e faz fronteira com sete países, entre eles o Sudão do Sul, que se separou do Sudão em 2011, depois de um referendo popular. O país é rico em recursos minerais: tem reservas de ferro, cobre, cromo, zinco, tungstênio, mica, ouro, e petróleo. Antes da secessão, o Sudão era o país africano de maior extensão territorial. A parte separada do país também era a que contava com três quartos do total de petróleo produzido, questão muito importante a ser considerada, tendo em vista tanto a situação econômica do Sudão quanto os interesses internacionais em apaziguar a região. Hoje, o escoamento do petróleo ainda passa pelo Sudão, o que leva à necessidade de negociação acertada entre os dois governos, dada a importância da atividade econômica envolvida. Grande parte do PIB do país era oriunda de rendas do combustível; agora, o Sudão se engaja em encontrar fon-tes alternativas de renda e recursos para recuperar a estabilidade econômica. A agricultura contribui com 24% do PIB e emprega 80% da mão-de-obra, o que demonstra o caráter ainda predominantemente rural da população (VISENTINI, 2012).

A ligação do Sudão com os árabes é oriunda da “arabização” que ocor-reu na área (principalmente no norte do país), quando a expansão árabe buscava explorar ouro e escravos na região. Hoje aproximadamente 80% da população é islâmica sunita, e aproximadamente 70% da população, árabe. O governo é engajado com o pan-arabismo e tem importante papel na Liga Árabe; o país considera esse bloco um instrumento relevante para sua diplomacia. Além desse, o Sudão participa de outros arranjos multilaterais, como a União Africana, o COMESA (Mercado Comum da África Oriental e Meridional), o Eixo de Segurança do Sudão, da Etiópia e do Iêmen, a Iniciativa da Bacia do Nilo, e a ONU (JANE’S, 2009).

Vale iniciar a história do Sudão pela invasão do egípcio Muhammad Ali em 1820. O Egito ocupou totalmente o país em 1876; e, seis anos depois, os ingleses ocuparam o Egito, passando a também influenciar no Sudão, que se tornou, então, domínio britânico e egípcio. Os ingleses conquistaram proemi-nência na Bacia do Nilo, alinhados aos egípcios; ela era essencial para os britâ-nicos devido à importância do Canal de Suez e de suas rotas comerciais maríti-mas. Vale salientar que, desde a formação da região, as diferenças entre o norte árabe e o sul cristão eram bastante relevantes, e o sul era subordinado ao norte,

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com uma dominação econômica, social e política. A independência do Sudão ocorreu em 1956; no entanto, o separatismo dessa foi deixado a um referendo posterior, que não ocorreu, provavelmente devido à grande importância econô-mica do sul. A partir desse momento, regimes militares com orientação muçul-mana governaram o país (JANE’S, 2009).

A guerra civil entre o norte e o sul do país, que se deu depois da indepen-dência, foi decorrente do separatismo frustrado dos sudaneses meridionais. Ela se estendeu até 1972, e nenhuma mudança significativa aconteceu. Os gover-nos subsequentes não promoveram o desenvolvimento do sul, e, em 1983, foi decretado o uso da lei islâmica sobre toda a população para punir certos crimes, o que agravou a situação dos sudaneses cristãos. Em 1983, o sul do país foi dividido, sem consulta popular, em 3 províncias, o que serviu de causa imediata para o surgimento do Exército Popular de Libertação do Sudão (SPLA), colo-cando o país em nova e violenta guerra civil, que duraria mais de duas déca-das. Trocas de regime durante a guerra não trouxeram diferenças. No início da década de 2000, com Omar al-Bashir no poder (desde o golpe de Estado de 1986), a paz começou a ser negociada, culminando no Acordo Compreensivo de Paz (2005), o qual previa eleições em 2010 e dois referendos em 2011, ambos referentes ao sul separatista. Fora garantida autonomia ao sul até o referendo sobre a sua independência, que foi aprovado em 2011 com 98,8% da população votando a favor; o outro, sobre a integração da região de Abyei à região sul, ainda não ocorreu (VISENTINI, 2012). Mesmo após a secessão, várias questões ficaram pendentes – especialmente as que dizem respeito à divisão das receitas do petróleo e à demarcação concreta das fronteiras – e tensões entre os Estados persistiram.

A primeira eleição democrática e multipartidária, realizada em 2010, elegeu o atual presidente Omar al-Bashir. Os países ocidentais são contra seu regime e já o acusaram de genocídio no conflito de Darfur; al-Bashir tem man-dado de prisão pelo Tribunal Penal Internacional6. Aqui, é essencial salientar o restrito escopo de países que geralmente respondem a esse tribunal - prin-cipalmente os africanos e asiáticos -, o que demonstra a clara segregação do sistema internacional e a evidente tentativa, por parte dos países ocidentais, de exercer influência nas regiões cujo líder é posto em julgamento. A China, por sua vez, país relevante na política externa de muitos Estados africanos, defende o governo e uma maior autonomia do Sudão quanto à influência ocidental. Ela

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tem estreitado seus laços com o país, devido ao investimento que faz na extra-ção de petróleo na região.

Os conflitos internos, como o de Darfur – área de conflito entre popu-lação árabe e não árabe, sendo a última separatista e alvo de perseguições -, os problemas de infraestrutura e abastecimento, e a falta de modernização do Sudão são os maiores desafios atuais para o país. Em relação a Darfur, vale salientar que a região, a oeste do país, foi anexada ao Sudão ainda antes da independência, em 1916. Cabe citar, ainda, a preocupação do ex-ditador egíp-cio, Mubarak, com o conflito de Darfur, região muito próxima do seu território e historicamente ligada ao Egito. O conflito que estourou em 2003 deixou quase 2 milhões de desabrigados e entre 200 a 400 mil mortos. A presença de missões da ONU tenta estabilizar a região desde 2007, bem como o fazem na área de Abyei, região petrolífera em disputa, logo ao norte do Sudão do Sul. O governo sudanês é recorrentemente acusado de discriminar a população não árabe; tais acusações partem principalmente do Exército Popular de Libertação do Sudão (SPLA) e do Movimento pela Justiça e Igualdade (JEM), além de serem corro-boradas pela posição internacional que, vale salientar, conserva interesses nos recursos existentes nessa área. Há, ainda, permeando a região, intensas ondas de refugiados do Chade, da Etiópia, da República Centro Africana, e, mais recen-temente, da Líbia - devido às agitações da Primavera Árabe. Em 2006 e 2011 foram assinados acordos de paz para a região, mas que não acabaram, de fato, com a escalada da violência (VISENTINI, 2012).

ZIMBÁBUE

O Zimbábue, localizado no sul da África, é um país povoado predomi-nantemente por grupos de língua Banta, sendo o de maior expressão os Shonas (82%). Sua capital, Harare, é também sua cidade mais populosa e um dos principais centros comerciais da África Subsaariana. Os principais produtos que sustentam a economia do Zimbábue são o tabaco e o cromo, que são bens essencialmente primários e que têm gerado disputas políticas, dada a nacio-nalização da produção por parte do governo zimbabuano. Além desses, o sub-solo zimbabuano é bastante fértil e apresenta reservas de ouro, carvão e outras riquezas minerais. A economia do país é bastante instável, sendo o Zimbábue o primeiro Estado a sofrer de hiperinflação no século XXI, mal que perdura até os

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Apêndice: países africanos 231

dias atuais e que se mantém como um elemento importante da disputa política e da dinâmica social do país (VISENTINI, 2012).

Antes da ocupação britânica do país, o território do Zimbábue era habitado por uma rama variada de etnias. Os primeiros a se instalarem no país foram os Shonas, no século V, dando origem ao império Zimbábue. Posteriormente, outros grupos étnicos penetraram a região, dando início ao império Monomotapa (ITM, 2012). A chegada dos britânicos se deu atra-vés da Companhia Britânica da África do Sul, na figura de Cecil Rhodes, o qual obteve concessões para explorar as minas e o subsolo da região. No período em que Rhodes dominou a exploração mineral do território, esse foi chamado de Rodésia do Sul. As lutas das populações autóctones não foram suficientes para recuperar a autonomia e expulsar os colonizadores, de modo que, a partir de então, os grupos étnicos que há séculos habitavam o país foram submetidos às leis britânicas.

O final da II Guerra Mundial intensificou no Zimbábue (até então Rodésia do Sul) e nos países ao redor os movimentos de emancipação. A antiga Rodésia do Norte obteve autonomia sob o nome de Zâmbia, ao passo que a Rodésia do Sul (Zimbábue) permaneceu na condição de colônia. Após mais de três décadas de disputas, no ano de 1979, o acordo de Lancaster House concedeu a indepen-dência política ao Zimbábue. As lutas por emancipação foram protagonizadas especialmente pelo Exército Revolucionário do Popular do Zimbábue (ZIPRA), pela União Nacional Africana do Zimbábue (ZANU) e pelo Exército Africano de Libertação Nacional do Zimbábue (ZANLA). É nesse contexto que se deu a ascensão de Robert Mugabe, líder do movimento ZANU.

A situação atual do país está intrinsecamente relacionada ao esgota-mento do governo de Mugabe, no poder desde 1980, e da Frente Patriótica da União Nacional do Zimbábue Africano, partido do presidente. É importante res-saltar que tal esgotamento não se relaciona somente à situação política interna do país, mas que tem raízes na dinâmica extrarregional e na influência externa sofrida por grupos de oposição. Em 1998, dado o contexto de crise política e inflação elevada, surgiu no país o principal partido de oposição, o Movimento para a Mudança Democrática (MDC), liderado pelo atual primeiro-ministro Morgan Tsvangirai. Apesar do enfraquecimento do governo Mugabe, muitos ainda o consideram o único dirigente capaz de manter a unidade política do país frente às inúmeras facções rivais que atuam no território zimbabuano e o único

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no partido capaz de impedir a ascensão do primeiro-ministro Tsvangirai, con-solidando a liderança do ZANU no contexto político nacional (THE ECONOMIST, 2012).

Em 2008, a perda de influência de Mugabe se tornou evidente quando da criação do Acordo Político Global, liderado pelo MDC, o qual estabeleceu um governo de união entre os partidos e previu que o presidente consultasse o primeiro-ministro para a tomada de decisões. Segundo a revista The Economist (2012), desde a implementação do pacto, a situação econômica do Zimbábue melhorou, devido ao controle da inflação, à reabertura de escolas e hospitais há muito fechados, ao crescimento econômico que atinge cerca de 7% a.a, etc. Além disso, o abandono da moeda local e a adoção do dólar estadunidense como moeda oficial estimularam o auxilio ocidental, de modo que tanto o governo compartilhado, quanto os investimentos estrangeiros, trouxeram mais estabi-lidade política e redução da violência no país. Certamente a posição da revista The Economist (2012) deve ser avaliada nos termos das reflexões apresentadas na introdução desse apêndice, sobre até que ponto a interferência externa é, de fato, benéfica para a soberania dos países africanos. A adoção do dólar como base monetária, por exemplo, pode eliminar todo e qualquer instrumento de política monetária do país, tornando-o refém das oscilações dessa moeda, o que pode gerar perda de soberania e aumento da vulnerabilidade do Zimbábue no médio e no longo prazo.

Notas1 Grupo étnico que habita o sul do continente africano.2 A política de abertura econômica iniciada pelo presidente egípcio Anwar al-Sadat.3 Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, composta por 15 países da África Ocidental (região de colonização inglesa e francesa). Foi estabelecida para promover o comércio regional, o estreitamento de relações, e o desenvolvimento da região.4 Movimentações sociais que atingiram países do norte da África e do Oriente Médio, com especial ênfase para os casos da Tunísia, Líbia, Egito, Síria, e Bahrein.5 Em linhas gerais, é a lei que se baseia na moral do islã, em seus costumes e obrigações. Sendo extremamente cultural, imporia restrições e questões conflituosas para cristãos que vivam sob sua jurisdição.6 É um tribunal permanente, estabelecido em Haia em 2002. Caracteriza-se por julgar indivíduos e não Estados (quem tem mandato sobre os Estados é a Corte Internacional de Justiça).

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CEBRAFRICACentro Brasileiro de Estudos Africanos

O Centro Brasileiro de Estudos Africanos (CEBRAFRICA) tem suas origens no Centro de Estudos Brasil-África do Sul (CESUL), um programa estabelecido em 2005, através de um convênio entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Suas atividades de pesquisa são desenvolvidas junto ao Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT), localizado no Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. É importante salientar que o CEBRAFRICA é uma instituição estritamente acadêmica e independente, de uma Universidade pública brasileira, sem qualquer vínculo governamental ou com fundações estrangeiras.

Devido ao crescente interesse de Professores-pesquisadores e de estudantes de graduação em Relações Internacionais e do Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (muitos dos quais africanos) por múltiplos temas e regiões africanas, em março de 2012 o CESUL foi ampliado para abranger o conjunto geográfico do continente africano, transformando-se em CEBRAFRICA, enquanto a Série Sul-Africana, que publicou cinco livros, foi transformada em Série Africana, com novas obras no prelo. O objetivo segue sendo o mesmo: realizar pesquisas, apoiar a elaboração de teses, dissertações e trabalhos de conclusão, congregar grupos de pesquisa em temas africanos, realizar seminários, promover intercâmbio de professores e estudantes e estabelecer redes de pesquisa e projetos conjuntos com instituições africanas e africanistas, publicar obras produzidas no Brasil ou traduzidas e ampliar a biblioteca especializada fornecida pela FUNAG.

As pesquisas têm por objetivo o conhecimento do continente africano e de suas relações com o Brasil, nas seguintes áreas: Relações Internacionais, Organizações de Integração, Segurança e Defesa, Sistemas Políticos, História, Geografia, Desenvolvimento Econômico, Estruturas Sociais e sua Transformação e Correntes de Pensamento. São parceiros do CEBRAFRICA conceituadas instituições do Brasil, Argentina, Cuba, México, Canadá, África do Sul, Angola, Moçambique,

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Senegal, Cabo Verde, Egito, Nigéria, Marrocos, Portugal, Reino Unido, Holanda, Suécia, Rússia, Índia e China.

As pesquisas em andamento versam sobre: A presença do Brasil, da China e da Índia na África; A África na Cooperação Sul-Sul; Conflitos e Segurança na África; Integração e desenvolvimento na África; Relações Internacionais da África: o sistema interafricano; A presença cubana na África; e a Construção do Estado e da Nação: estudo de casos.

(www.ufrgs.br/nerint/cebrafrica) Pesquisadores do CEBRAFRICA:

Paulo Fagundes Visentini (UFRGS) - CoordenadorLuiz Dario Ribeiro (UFRGS)Analúcia Danilevicz Pereira (UFRGS)Marco Aurélio Cepik (UFRGS)José Carlos dos Anjos (UFRGS)Eduardo Filippi (UFRGS)Kamilla Rizzi (Unipampa, Brasil)Pio Penna Filho (UnB, Brasil)Alfa Diallo (UFGD, Brasil)Hilário Cau (ISRI, Moçambique)Mamoudou Gazibo (Université de Montréal, Canadá)Gladys Lechini (UNR, Argentina)Lito Nunes (Univ. Guiné Bissau)Lotfi Kaabi (ITES, Tunísia)Fantu Cheru (Nordic África Institute, Suécia / Washington, EUA)Gerhard Seibert (CEA/ISCTE, Portugal)Francis Kornegay (IGD, África do Sul)Silvio Baró Herrera (CEAMO, Cuba)Paris Yeros (UFABC, Brasil)

Publicações do CEBRAFRICA:

Série Africana

África do Sul: História, Estado e Sociedade (FUNAG)

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O Brasil e a África do Sul (1918-2000) (FUNAG)

A África do Sul e o IBAS: Segurança Humana (FUNAG/UFRGS)

África do Sul: A rede de ativismo transnacional contra o apartheid (FUNAG)

Breve História da África (Leitura XXI)

Os Países Africanos: diversidade de um continente (Leitura XXI)

Congo, a Guerra Mundial Africana: Conflitos Armados, Construção do Estado e Alternativas para a Paz (Leitura XXI)

Relações Internacionais para Educadores: África em Foco (CEBRAFRICA/NERINT/UFRGS)

Próximos Lançamentos:

Nigéria: política externa e relações com o Brasil

Brasil, China e Índia na África

O Brasil e os Pequenos PALOP (C. Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe)

Outras Publicações:

A África na Política Internacional (Juruá)

As Revoluções Africanas: Angola, Moçambique e Etiópia (UNESP)

A Revolução Sul-Africana (UNESP)

História da África e dos Africanos (Vozes)

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NERINTNúcleo Brasileiro de Estratégiae Relações Internacionais

O Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT) foi o primeiro centro voltado exclusivamente ao estudo e à pesquisa em Relações In-ternacionais no sul do Brasil. Foi estabelecido em 1999 junto ao Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre (a cidade do Fórum Social Mundial), Brasil. Seu objetivo sempre foi o estudo crítico e inovador da transformação do sistema mundial após o fim da Guerra Fria. Buscou sempre contribuir para a retomada da discussão de um projeto nacional para o Brasil no plano da análise das opções estratégicas para a inserção internacional autônoma do país, a partir da perspectiva do mundo em desenvolvimento.

O advento de uma “diplomacia ativa, afirmativa e propositiva” no Brasil no início do século XXI veio a convergir com as análises e projeções feitas nos seminários e publicações do NERINT (2 coleções, com 24 volumes). Os estudos exploratórios sobre os novos espaços dos países em desenvolvimento se revelaram acertados, e conheceram notável desenvolvimento. A Cooperação com instituições estatais, empresariais, acadêmicas e sociais foi intensificada, bem como o contato direto com centros na América Latina, África e Ásia, além dos já existentes com a Europa e a América do Norte.

Um dos resultados da nova realidade foi a implantação de um curso de graduação em Relações Internacionais (2004) e de um Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (2010), bom como da revista bimestral Conjuntura Austral e da semestral bilíngue Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais. Assim, além da pesquisa avançada, focada prioritari-amente nos países emergentes, o NERINT deu origem ao ensino de graduação e pós-graduação diferenciado, além de propiciar intensa atividade editorial.

(www.ufrgs.br/nerint/)

Pesquisadores do NERINT:

Paulo Fagundes Visentini (UFRGS)Luiz Dario Ribeiro (UFRGS)

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Marco Aurélio Cepik (UFRGS)Carlos Schmidt Arturi (UFRGS)Álvaro Luiz Heidrich (UFRGS)André Moreira Cunha (UFRGS)André Luiz Reis da Silva (UFRGS)José Miguel Quedi Martins (UFRGS)Érico Esteves Duarte (UFRGS)Fábio Costa Morosini (UFRGS)Analúcia Danilevicz Pereira (UFRGS)Luiz Augusto Estrella Faria (UFRGS)Jaqueline Angélica Hernández Haffner (UFRGS)

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