AGAMBEN Giorgio- Estancias

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GIORGIO AGAMBEN – ESTANCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estancias – la palabra y el fantasma en la cultura occidental (Tradução para o espanhol de Tomás Segovia). Valência: Pré-textos, 2001, 283 p.

Agamben, recordando o projeto do grupo de Jena que se propunha a superar a separação entre a poesia e as disciplinas crítico-filológicas, afirma que crítica só pode ser aquela obra que inclua em si mesma a própria negação e cujo conteúdo essencial seja aquilo em que nela não se encontra. Neste aspecto, o Trauerspielbuch benjaminiano assume um papel paradigmático e solitário1. A dificuldade em levar a cabo tal intento permite observar que a confusão entre obra de arte e crítica se dá não porque a arte seja somente criação, mas porque inclui a sua própria negação, um processo de sua irônica auto-negação2. Recordando a “estância” dos trovadores do século XIII e o seu “joi d’amor”, Agamben desenvolve a observação da cisão essencial da palavra em que a poesia possui seu objeto sem conhecê-lo e a filosofia o conhece sem possuí-lo.Nesta apresentação também se encontra a consideração lúcida de que a crítica nasce no momento e que a cisão da palavra encontra seu ponto extremo, de modo que ela não é capaz de representar nem de conhecer, mas que conhece a representação e, em função disso, opõe o gozo do que não pode ser possuído e a posse daquilo que não se pode gozar. È sob a égide dessas considerações que o autor desenvolve o estudo da acídia, da melancolia, do fetichismo, da poesia trovadoresca e seus objetos inacessíveis, inexistentes ou obscuros, seus Nachleben warburguianos.

PRIMEIRA PARTE – OS FANTASMAS DE EROS

Capítulo I – O demônio meridiano

Agamben, numa tarefa que lembra o uso das imagens dialéticas benjaminianas, encontra na figura daquela que para os padres da Igreja, na Idade Média, se apresentava como o mais temível dos vícios, contra o qual não havia perdão possível, a acídia – em latim, acedia, tristitia, taedium vitae, desidia – um dos elementos que permeia a existência humana em seu cotidiano. O autor observa as descrições do acidioso – como ser inspirado pelo demônio meridiano – formuladas, por exemplo, por Johannes Cassiani, e recorda a constância da imobilidade e inaptidão para as tarefas espirituais, a “inutilidade” diante da vida e do mundo. Nesse sentido, também observa que o reconhecimento dessas características ainda é possível, mesmo depois de tantos séculos, no mal du siècle presente na literatura de Gautier, Des Esseintes, Huysmans, Giorgio Aurispa, Baudelaire3, Léon Daudet. Mas é na observação dos sentimentos degradantes que rondam a acídia, as filiae acediae de que falava São Gregório, que Agamben percebe com mais clareza a exposição

1 Parece-me muito importante lembrar que, para além do estudo da alegoria feito por Benjamin e todas as sua implicações, também dizia ele em Crítica do Poder/Crítica da Violência – com a marcada dualidade do termo Gewalt – que todo documento de civilização também é um documento de barbárie.2 Sobre a auto-negação da obra de arte, ver as considerações desenvolvidas por Agamben no livro L’uomo senza contenuto, especialmente no capítulo em que trata de Duchamp, da pop art e do ready made, bem como das considerações de Hegel sobre a criação artística.3 Fleurs du Mal, por exemplo, inicia-se sob o signo do tédio (“ennui”). Agamben chega a afirmar inclusive que a obra mesma de Baudelaire se coloca como uma luta mortal, levada a cabo pelo poeta-dândi, com a acídia, numa tentativa de convertê-la em algo positivo. Ver a figura do esnobe em L’Aperto. Lembrar ainda que, como se vê no livro de Hugo Friedrich, Valéry compreendia o exercício do poeta como um dirigir-se para uma esfera não-realizável.

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do estado de alma do acidioso. Padece ele, então, da ambígua manifestação de um amor misturado ao ódio, de rancor diante daqueles que tentam incutir-lhe o bem, de espanto e do titubear retraído diante das dificuldades que o mundo apresenta, de desespero por sentir-se condenado por antecipação e que leva a um mergulhar constante nas profundezas da própria ruína, de torpor, além de ter a mente fugidia, ou seja, deixar escapar a si mesmo entre fantasias que se sucedem e alimentam a proliferação de auto-referências, a busca infinita por novidades e a desordem, o descompasso completo do pensar. Esses são elementos que sinalizam para uma hipertrofia da imaginação capaz de estabelecer o elo entre a melancolia e o amor-doença da medicina humoral, sobre os quais se debruça o autor a fim de percorrer os caminhos nebulosos da fantasia. Recorda-se ainda que a acídia, em tempos modernos, deixou de ser um pecado contra a ordem divina para se apresentar como um pecado4 contra a ética capitalista do trabalho, de modo que os sentimentos acima descritos se revestem de uma preguiça cheia de angústia5, que faz os artistas, por exemplo, se sentirem estéreis e inertes. Entretanto, Agamben, em conformidade com as teorias patrísticas, tende a perceber a acídia não exatamente como uma preguiça, mas muito mais como uma tristeza angustiante ou desespero que se refere aos bens do espírito constitutivos do homem e que se materializa através de uma atitude de retração, recolhimento e de fuga diante das próprias possibilidades espirituais6, os caminhos para a salvação7. Cabe, desse modo, a recordação do aforismo kafkaniano de que “existe um ponto de chegada, porém nenhum caminho”; disso não se pode escapar, uma vez que não se foge do que não se alcança (p. 32). Ainda com base nos textos dos padres da Igreja, Agamben recorda a dialética inerente às categorias da vida espiritual, para sustentar que, ao lado da tristitia mortifera (pecado) acima definida, estaria uma tristitia salutifera (virtude), um luto capaz de gerar alegria, ou seja, um sentimento de tristeza e aflição que impele o homem a buscar e a seguir aquilo que lhe é mais caro, embora inacessível8.

4 O uso do termo “pecado” contra a ética do capital pode ser entendido sob o ponto de vista da leitura do capitalismo como religião, apresentada inicialmente por Benjamin e também sobre a qual Agamben desenvolve as recentes pesquisas acerca da oikonomia e da teologia econômica. Ver Il Regno e la Gloria, bem como entrevista concedida a Gianlucca Sacco e traduzida por Selvino Assmann, publicada no Brasil na revista Interthesis com o título “Da teologia política à teologia econômica”.5 Cito: “Esto es tan cierto, que muy pocos habrán reconocido en la evocación patrística de las filiae acediae las mismas categorías que utiliza Heidegger en su célebre análisis de la banalidad cotidiana y la caída en la dimensión anónima e inauténtica del “se”, que ha proporcionado el punto de partida (en verdad no siempre a propósito) a innumerables caracterizaciones sociológicas de nuestra existencia en las llamadas sociedades de masas” (p. 29). Ver além disso, as considerações feitas sobre o “se” (o “Da” do “Dasein”) em A Linguagem e a Morte, bem como da possibilidade de aproximação entre o homo sacer e o “Dasein” em Homo Sacer. Recorde-se ainda as considerações de Nanne Timmer feitas no colóquio sobre pós-crítica, de 08 de dezembro de 2006, acerca do turismo como busca pela autenticidade perdida nas sociedades contemporâneas, ou então o tema da “fadiga” que toma conta do crítico na pós-modernidade, no tempo da catástrofe – “Deus morreu na cruz”, diria Nietzsche – cujo sentimento dominante, que resta, é o da vergonha. Sobre isso ver Quel che resta di Auschwitz.6 Não é por nada que Agamben recorda a tese de Kierkegaard em que se compreende mortal aquele desespero consciente de ser desespero.7 Vale citar: “Si, en términos teológicos, lo que le [ao homem] falta no es la salvación, sino la vía que conduce a ella, en términos psicológicos la retraccíon del acidioso no delata un eclipse del deseo, sino más bien el hacerse inalcanzable de su objeto: la suya es la perversión de una voluntad que quiere el objeto, pero no la vía que conduce a él y desea y yerra a la vez el camino hacia el propio deseo” (p. 31).8 Cito: “Puesto que su [do homem] deseo permanece fijo en lo que se ha vuelto inaccesible, la acidia no es solo una fuga de..., sino también una fuga por..., que comunica con su objeto bajo la forma de negación y de carencia [...] el acidioso da testimonio de la oscura sabiduría según la cual sólo para quien ya no tiene esperanza ha sido dada la esperanza, y solo para quien en cada caso no podrá alcanzarlas han sido asignadas metas. Así de dialéctica es la naturaleza de su ‘demonio meridiano’. Como de la enfermedad mortal, que contiene en sí misma la posibilidad de la propia curación, también de ella puede decirse que ‘la mayor

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Capítulo II – Melancolia I

Agamben observa que, conforme a cosmologia dos quatro humores presentes no corpo humano, a melancolia era associada ao elemento terreno, seco e frio, ao outono ou ao inverno, à cor negra, à velhice ou maturidade, a Saturno e era vista como causa, para além dos escurecimentos da pele e de partes do corpo, de sonhos sombrios, demência, histeria e fixação suicida9. Isso tudo, entretanto, também através de uma antiga tradição, vinha associado ao exercício da poesia, da filosofia e das artes10. O autor, recordando que se perguntava Aristóteles o motivo de homens que se distinguiam nesses serem melancólicos, ainda sustenta que foi este o ponto de partida para um processo dialético em que a melancolia se passou a associar à doutrina do gênio11, permitindo que a genialidade pudesse ter sido explicada, platonicamente, por Marsilio Ficino (tradutor de grego no studio dos Medici na Florença humanista) por meio da propensão ao conhecimento contemplativo e ao recolhimento interior causados pela influência astral de Saturno. Agamben, então, identifica que, embora seja difícil conhecer o momento em que a doutrina religiosa da acídia se confundiu com a teoria “laica” do humor melancólico, ela possibilitou um posicionamento positivo, no Renascimento, pelo qual a contemplação melancólica foi capaz de reviver o Eros perverso do acidioso, de modo a manter no âmbito da inacessibilidade o próprio desejo (p. 43).

Capítulo III – Eros melancólico

Observa o autor que a mesma tradição que associava a melancolia à poesia, à filosofia e às artes também a ela atribuía uma exasperada inclinação ao éros. Isso desde Aristóteles, passando por Alcuino, Hildegard von Bingen, pelo médico árabe Haly Abbas e por Ficino. Neste, entende-se que o mesmo processo, válido inclusive em ordem inversa, que desencadeia a paixão12 promove a desordem dos humores. Assim, “la intención erótica que desencadena el desorden melancólico se presenta aquí como la que quiere poseer y tocar aquello que debería ser solo objeto de contemplación, y el trágico desarreglo del temperamento saturnino encuentra así su raíz en la íntima contradicción de un gesto que quiere abrazar lo inasible. [Trata-se] más bien de un limite dialéctico que toma su sentido en relación con el impulso erótico de transgresión que transforma la intención contemplativa en ‘concupiscencia de abrazo’” (p. 48). Agamben percebe, dessa forma, que é necessário levar em conta que as intenções alegóricas, expressas através da atitude do melancólico, se subentendem no espaço entre o Eros e seus fantasmas13.

Capítulo IV – O objeto perdido

desgracia es no haberla tenido nunca’” (p. 34-35).9 Origem do Drama Barroco Alemão percebe a melancolia expressada por meio da alegoria barroca como a voz de um mundo que perdeu o centro.10 Atenção às obras de Haroldo de Campos: Galáxias, Signatia quasi caelum, A máquina do mundo repensada, Depoimentos de Oficina e mesmo as traduções dos textos bíblicos. (I. Perceber nelas os elementos de uma possível presença do humor melancólico decorrente da observação de um mundo distópico, o neobarroco. II. Compreensão do mundo como catástrofe, a vergonha do sujeito. III. Dialética da tristeza mortífera e da tristeza salutar, a comunidade que vem, L’Aperto, a potência de Spinoza, o livro que se multiabre no formante final das Galáxias.)11 Ver Genius, em Profanazioni.12 Vale lembrar que, etimologicamente, paixão, de passio, também significa padecimento.13 Ver as considerações feitas por Gilles Deleuze acerca do fantasma (fantasma e acontecimento; fantasma, eu e singularidades; fantasma, verbo e linguagem), em A Lógica do Sentido (tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes), 4 ed, São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 217-224.

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Agamben reconhece a persistência de dois elementos que faziam parte das descrições dos padres da Igreja sobre a acídia e teoria dos humores até mesmo na compreensão psicanalítica da melancolia como enfermidade mental desenvolvida por Freud no texto Luto e Melancolia, publicado em 1917: o recesso de um objeto e a retração em si mesmo diante de uma intenção contemplativa. Segundo Freud, essas seriam características que misturam parte da regressão narcisista e do sentimento de luto, isso porque, no sentir melancólico, havendo uma relação de perda de um objeto de amor, não se segue a transferência da libido para um novo objeto, mas uma retração do eu narcisistamente identificado com aquele objeto perdido. Entretanto, reconhecendo no luto a perda efetiva do objeto, Agamben chama atenção para o fato de que há dúvidas a respeito de, na melancolia, haver tal perda (p. 52). Parece, então, nos estudos feitos por Freud e Abrahan que o melancólico desenvolve uma paradoxal intenção de luto que precede e antecipa a perda mesma do objeto. Assim, a retração da libido no caso não tem outra meta senão a de possibilitar uma apropriação em situações que nenhuma posse, em realidade, pode ser possível e a compreensão de que a melancolia se manifesta como regressão diante da perda do objeto de amor acaba por ceder espaço à idéia de que ela é muito mais a capacidade fantasmática de fazer parecer perdido um objeto do qual não se pode apropriar (p. 53)14. Nesse sentido, Agamben aproxima a compreensão da melancolia àquela do fetiche, posto que esse se apresenta como o signo de algo e de sua ausência, devendo a essa contradição seu próprio estatuto fantasmático, de modo que o objeto do sentir melancólico é ao mesmo tempo real e irreal, incorporado e perdido, afirmado e negado. E ressalta o autor que isso possibilitava a Freud falar, mesmo que intuitivamente, de um triunfo do objeto sobre o eu 15

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Capítulo V – Os fantasmas de Eros

Agamben recorda que Freud sustentava que a realidade, especialmente nos casos de psico-ses alucinatórias do desejo, se colocava fora do âmbito das percepções de maneira a evidenciar uma reação ou uma perda que a realidade afirma mas que o eu tende a negar posto que não poderia suportá-la. Diante disso, o autor retoma a tradição de reconhecer na melancolia uma ligação estreita com a hipertrofia da faculdade fantástica (p. 58). E é nesse sentido que pretende compreender o cerimonial amoroso da lírica trovadoresca e do dolce stil novo, mas, além disso, percebendo a melancolia como um processo erótico impregnado de intercâmbio com os fantasmas capaz de, por uma dupla polaridade reduzida nos termos diabólico-mágica e angélico-contemplativa, fazer emergir tanto a funesta propensão dos melancólicos à necromancia como a aptidão para a iluminação extática17. Essa seria,

14 Recordando o trabalho de Hugo Friedrich a respeito da estrutura da lírica moderna, há como perceber nas descrições ilusionistas de Rimbaud, bem como no spleen de Baudelaire – e isso já observava Benjamin no Trauerspiel – e na busca por compreender o acaso de Mallarmé (“Um lance de dados jamais abolirá o acaso...”) a presença dessa capacidade fantasmática de que fala Agamben. Pense-se, então, que Haroldo de Campos, tentando compreender Mallarmé, também partilhou dessa problemática. Ver Galáxias (formante final especialmente) e considerações de Deleuze, em A Dobra, sobre Mallarmé (no fim do livro).15 Agamben trata nas partes seguintes do livro inclusive da mercadoria. Lembro que Guy Debord falava, baseado em Marx, na supremacia do espetáculo sobre o Eu . Veja-se A Sociedade do Espetáculo.16 Agamben ainda percebe que a ambígua relação melancólica com o objeto se aproximava do festim canibal em que, ao mesmo tempo, destrói-se e incorpora-se o objeto para o qual se orienta a libido (p. 55). Isso é terreno interessantíssimo para se pensar a razão antropofágica de que falava Haroldo de Campos (texto publicado em Metalinguagem e Outras Metas), aliando tal idéia à compreensão do fenômeno barroco.17 Recordar que Benjamin mesmo no Trauerspiel trata da vidência do príncipe, de sua capacidade de mergulhar nos sonhos monstruosos, bem como de perceber o futuro. Ver também La vida es sueño, Hamlet, a

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portanto, a justificação da perspectiva tradicional que liga a melancolia com a atividade artística pela exacerbação, hipertrofia da prática fantasmática, de modo que, entende Agamben, também a obra de arte, de alguma maneira, poderia ser entendida como uma continuação do jogo18 (p. 62). Então, reafirmando a compreensão de que a perda imagi-nária da qual padece o melancólico não tem nenhum objeto real (ver considerações sobre o capítulo anterior), uma vez que é à impossível captação do fantasma a que se dirige sua funesta estratégia, o objeto perdido não pode ser outra coisa senão a aparência que o desejo cria ao próprio cortejar do fantasma e a intromissão da libido se apresenta como uma das facetas de um processo no qual o que o real perde sua realidade a fim de que o irreal assuma tal papel (p. 62-63). Também entende Agamben que é nessa terra de ninguém localizada na “zona cinza”19 do amor narcisista de si e a eleição objetual externa que, um dia, se poderão colocar as criações da cultura humana20 a fim de que o homem estabeleça contato com um mundo do qual depende, acima de tudo, sua felicidade e sua desventura 21.

SEGUNDA PARTE – NO MUNDO DE ODRADEK

Agamben desenvolve esta parte de sua pesquisa incluindo chamadas de texto, os escólios, que lembram muito o trabalho feito por Spinoza em sua Ethica. Vejam-se considerações sobre o tratamento desses no trabalho do filósofo holandês em “Spinoza e as ‘três’ éticas”, Crítica e Clínica, de Gilles Deleuze.

Capítulo I – Freud ou o Objeto Ausente

Agamben observa que os estudos de Freud apontavam como origem da fixação fetichista22

a negação (o termo alemão usado é Verleugnung) do menino a admitir a ausência do falo no corpo da mulher, de sua mãe, uma vez que isso poderia significar-lhe também a ameaça de castração do próprio pênis e, em função disso, o fetiche assume, de modo a gerar uma relação ambígua de renúncia de um fantasma e negativa da percepção da realidade, o papel daquele órgão ausente na psique de um Eu fraturado (Ichspaltung)23. Agamben também vê,

ópera Il Giustino, além das considerações feitas por Schmitt em Hamlet o Ecuba.18 Observar as considerações feitas por Agamben acerca dos jogos em Infância e História (o jogo que rompe a tradição) e em Profanazioni. Poderia, entretanto, em tempos de catástrofe e de vergonha, em que todos virtualmente partilham da condição de homini sacri na oikonomia, na teologia econômica, recair sobre a arte o entendimento profanador como possibilidade efetivamente política? Ter em mente, diante disso, as considerações feitas sobre a arte na modernidade feitas em L’uomo senza contenuto.19 Esse termo usa Agamben para caracterizar o estado de exceção no Homo Sacer e a condição do testemu-nho em Quel che resta di Aushwitz.20 Caberia aqui chamar a atenção para o efetivo estado de exceção de que falava Benjamin na oitava tese sobre o conceito de história?21 Cito o trecho: “No ya fantasma y todavía no signo, el objeto irreal de la introyección melancólica abre un espacio que no es ni la alucinada escena onírica de los fantasmas ni el mundo indiferente de los objetos naturales; pero en este lugar intermediario y epifánico, situado en la tierra de nadie entre el amor narcisista de sí y la elección objetual externa, es donde podrán colocarse un día las creaciones de la cultura humana, el entrebescar de las formas simbólicas y de las prácticas textuales a través de las cuales el hombre entra en contacto con un mundo que le es más cercano que cualquier otro y del que dependen, más directamente que de la naturaleza física, su felicidad y su desventura” (p. 63).22 Vejam-se as considerações sobre a etimologia da palavra “fetiche” no sétimo escólio na página 76 do livro.23 Cito: “En el conflicto entre la percepción y la realidad, que lo empuja a renunciar a su fantasma, y el contra-deseo, que lo empuja a negar su percepción, el niño no hace ni una cosa ni otra, o más bien hace simultáneamente las dos cosas, llegando a uno de esos compromisos que sólo son posibles bajo el dominio de las leyes del inconsciente. Por una parte, con ayuda de un mecanismo particular, desmiente la evidencia de su percepción; por la otra, reconoce su realidad y, por medio de un síntoma perverso, asume sobre si la angustia frente a ella. El fetiche, ya se trate de una parte del cuerpo o de un objeto inorgânico, es por conseguiente al

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no âmbito da linguagem, nas figuras da sinédoque, da metonímia, bem como numa espé-cie de procedimento metonímico, o não-acabado24, um parentesco com o fetichismo, uma vez que não se trata de haver neles uma mera substituição de um termo por outro, mas ambígua negação-evocação tal qual no mecanismo do fetiche25. O fetichismo, entende o autor, também recorda as considerações feitas nos capítulos anteriores sobre a hipertrofia da imaginação na medida que, embora o objeto-fetiche possa ser algo concreto, enquanto presença de uma ausência é ao mesmo tempo imaterial e intangível pelo fato de remeter sempre para um além de si mesmo, para algo que nunca poderá ser possuído em realidade (p. 72). Isso explicaria, para Agamben, o fato de os fetichistas normalmente multiplicarem e colecionarem seus fetiches26.

Capítulo II – Marx ou a Exposição Universal

Agamben aqui trata de estabelecer uma analogia com o fetichismo e o valor de troca das mercadorias e, para isso, chama atenção para o fato de Marx ter escrito na quarta parte do primeiro capítulo do Capital sobre a transformação dos produtos do trabalho em aparências de coisas no qual as mercadorias deixam de representar unicamente um valor de uso (aptidão de satisfazer uma necessidade humana) para também incluírem aí, sob um aspecto preponderante, um valor de troca, seu caráter místico. Isso corresponderia, segundo o autor, no fetichismo, à superposição de um particular valor simbólico ao uso normal do objeto. Então, da mesma maneira que o fetichista nunca consegue possuir integralmente seu fetiche, também o possuidor da mercadoria nunca será capaz de gozar contemporaneamente como objeto de uso e valor, ou seja, ela poderá ser materialmente manipulada de todas as formas possíveis até à destruição, mas, acontecendo isso, o desaparecimento dela será ainda mais enfático ao afirmar a sua inacessibilidade (p. 79). Agamben observa, nesse sentido, que as Exposições Universais – a respeito das quais Benjamin se referia como “lugares de peregrinação ao fetiche-mercadoria” – pela primeira vez possibilitaram que a mercadoria, cujo valor de troca já começava a eclipsar aquele de uso, pudesse ser exposta para o gozo, tal como outrora fora a arte, agora num movimento epifânico do inacessível (“la epifanía de lo inasible”).

mismo tiempo la presencia de aquella nada que es el pene materno y el signo de su ausencia; símbolo de algo y a la vez de su negación, puede mantenerse sólo al precio de una laceración esencial, en la cual las dos reacciones constituyen el núcleo de una verdadera y propia fractura del Yo (Ichspaltung)” (p. 70).24 A observação das obras não-acabadas de Michelangelo por Vasari é mencionada no texto de Agamben, mas recordo também as aulas de história da arte em Florença quando a professora mencionava que, no barroco, os bozzetti (esboços) dos pintores – os mais famosos eram os de Rembrandt e Rubens – passaram também a ser vistos pelo crivo do valor artístico. Agamben chama a atenção, por conseguinte, para o peso que os não-acabados assumem na arte moderna como recurso de estilo. Seria, por exemplo, quando o não-acabado assume valor intencional? Recorde-se, nesse sentido, as considerações de Haroldo a respeito das obras de Kurt Schwitters. Agamben no tocante à poesia moderna afirma algo que Friedrich de alguma maneira deixa patente ao se referir a Valéry. Cito Agamben: “Es supérfluo recordar que, en este sentido, casi todas las poesías modernas, de Mallarmé en delante, son fragmentos, por cuanto remiten a algo (el poema absoluto) que no puede evocarse nunca integralmente, sino sólo hacerse presente a través de su negación” (p. 71).25 Cito: “el término sustituido es, por el contrario, a la vez negado y evocado por el sustituto con un procedimiento cuya amdigüedad recuerda de cerca la Verleugnung freudiana, y es justamente de este modo de ‘referencia negativa’ de donde nace el particular potencial poético del que queda investida la palabra” (p. 70 -71).26 Recordo que minha amiga Flávia Cera escreveu um trabalho para a disciplina ministrada pela professora Ana Luíza no mestrado de Letras em que trata de observar o “colecionismo” de Bispo do Rosário pelo viés da possibilidade de profanação.

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Capítulo III – Baudelaire ou a Mercadoria Absoluta

Neste capítulo Agamben se lança a observar a relação da arte no mundo em que a mercadoria suplantou o seu valor de uso, que se libertou da necessidade de ser útil. Assim, percebe que os limites que separavam os objetos e a obra de arte passaram a ser extrema-mente precários, ou seja, a atitude dos artistas, depois do renascimento, que se pautava pelo estabelecimento da supremacia da criação artística frente ao “fazer” do artesão deixou de ter seu sentido original27. Aponta o autor que a grandeza de Baudelaire, nesse sentido, foi a de ter respondido à invasão da mercadoria nos terrenos da obra de arte, pela transformação mesma desta última também em mercadoria e fetiche, ou seja, a cisão entre valor de uso e valor de troca, ficou evidenciada, na arte, pela cisão entre a autoridade tradicional e sua autenticidade. Com isso, Baudelaire pôde combater as concepções utilitaristas da arte (ela é inútil) e pode teorizar a respeito do caráter inacessível da experiência artística e da questão do belo como instância epifânica instantânea e impenetrável. Agamben reconhece na atitude do poeta ainda a tentativa de criar uma mercadoria cujo valor se confundisse com seu uso de modo que a fetichização fosse levada ao extremo de poder anular a realidade da mercadoria enquanto tal (p. 87). Para isso, Baudelaire propunha como centro da experiên-cia artística o choque, o potencial de estranhamento da arte que deriva da perda do valor de uso28. Desse modo, a obra de arte poderia servir de veículo para o inacessível e restaurar através da inacessibilidade um novo valor e uma nova autoridade, que, por outro lado, exigiria da arte a renúncia das garantias percebidas da tradição, ou seja, a única possibili-dade de sobrevivência da obra de arte estaria na sua própria auto-negação29 como apropriação da irrealidade (p. 88-89).

Capítulo IV – Beau Brummell ou a Apropriação da Irrealidade

Agamben chama atenção para a figura do dandy, exemplificado por Beau Brummell, aquele que faz da elegância e do supérfluo a razão de sua vida, como uma possibilidade de percepção de uma outra relação com as coisas, uma vez que ele vai para além do gozo oferecido pelo valor de uso e pela acumulação do valor de troca e, superando a crítica marxiana, apaga o pecado original da mercadoria (p. 94). Isso se percebe em função do exame das formas arcaicas de economia em que a atividade humana não se reduz à produção, acúmulo e consumo, mas que se define por um princípio de perda e de gasto improdutivo30. Nesse sentido, tanto o dandy quanto a poesia moderna se dirigem para a apropriação da irrealidade31.Capítulo V – Mme. Panckouche ou a Fada dos Brinquedos

O autor entende que toda vez que um objeto ingressa no âmbito dos fetiches há a transgres-são das regras que estabelecem os usos mais apropriados para cada objeto e chama ainda a

27 Ver também as considerações em especial dos três últimos capítulos de L’uomo senza contenuto. Ainda, como se pode perceber o projeto da poesia concreta que, segundo seus idealizadores, deveria se colocar como objeto-útil? E a experiência pós-utópica de que fala Haroldo em artigo de O arco-íris branco?28 “El choc es el potencial de extrañamiento de que se cargan los objetos cuando pierden la autoridad que deriva de su valor de uso y que garantiza su inteligibilidad tradicional, para asumir la máscara enigmática de la mercancía” (p. 88).29 Ver capítulo VI de L’uomo senza contenuto, Un nulla che annienta se stesso.30 Ver textos de Mauss e de Bataille (La notion de depénse).31 Cito: “Lo que hay de nuevo en la poesia moderna es que, frente a un mundo que glorifica al hombre tanto más cuanto más lo reduce a objeto, ella desenmascara la ideología humanitaria haciendo rigurosamente propia la boutade que Balzac pone en labios de George Brummell: ‘rien ne ressemble à l’homme moins que l’homme’” (p. 98-99). Também me parece interessante observar o texto sobre o Snob, em L’Aperto.

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atenção para o fato de que esse código normativo é tão rígido que basta a transferência de um objeto de uma esfera a outra para que ele se torne irreconhecível e inquietante, tal como demonstra o ready-made. Entretanto, observa Agamben que os brinquedos são asso-ciados a usos tão particulares que, de algum modo, conseguem se subtrair às normas cor-rentes. Isso se consegue perceber pela recordação de Baudelaire na casa de Madame Panckouche, o que lhe possibilitou fazer uma classificação dos usos e abusos que os brinquedos possibilitavam, bem como perceber o aturdimento, a tristeza das crianças ao não conseguirem ver neles uma alma. Agamben diz, então, que se inicia aí uma mistura de alegria impenetrável e de frustração estupefata que é a base para as criações artísticas e para as relações entre humanos e objetos.

TERCEIRA PARTE – A PALAVRA E O FANTASMA

Capítulo I – Narciso e Pigmalion

Aqui Agamben desenvolve uma mirada sobre Pigmalion no Roman de la Rose, obra medieval de Jean de Meung, em que se narra a paixão do personagem, de modo a recordar o fol amor dos poetas trovadorescos, por uma ymage “muda e surda” e toda a ritualística da corte amorosa que, por se tratar de uma imagem apenas, faz recordar as considerações feitas em capítulos anteriores acerca do fetichismo. Diante disso, observa o autor que nessa relação, em que o tema do amor se une ao da imagem, se delineiam os traços da mescla ambígua de uma esperança não inocente e de um sinistro desespero que reconheciam os poetas do dolce stil novo pelo nome de dottanza. Percebe-se ainda que Pigmalion em suas desventuras – embate entre a vil luxúria e o culto “religioso” de contemplação da imagem – se reconhece tal como o Narciso das Metamorfoses de Ovídio em sua paixão insana, trop horrible.

Capítulo II – Eros no Espelho

Agamben, percebendo o entrelaçamento do tema do amor e da imagem, estabelece um percurso pela filosofia antiga e medieval a fim de reconhecer a discussão a respeito da capacidade fantasmática do homem. E, desse modo, encontra no Filebo de Platão32 a discussão sobre o problema da memória e da fantasia, cujo interesse é demonstrar que o desejo e o prazer não são possíveis sem a influência da fantasia33, aquela que “pinta” as imagens do mundo na alma e é a fonte dos fantasmas. No De Anima e no De memoria aristotélicos, as imagens, as memórias, ou seja, os fantasmas são metaforicamente repre-sentados como a impronta sobre uma cera34 ou como um desenho. Para Aristóteles, o tema é fundamental e reconhece uma estreita conexão entre a recepção das sensações pela fantasia e a origem da memória35 – inclusive dos déjà vu, da paramnesia e do êxtase –, do

32 E sobre a possibilidade de ver-se o traço da escrita platônica na Idade Média, Agamben tece algumas interessantes considerações sobre a idéia dos discursos de autoridade e da recepção de elementos culturais “estrangeiros” (ver pp. 132-133).33 Agamben ainda lembra que a idéia de situar os fantasmas sob o signo do desejo é uma antecipação a uma das teses de Lacan (ver p. 134).34 Considerações de Agamben acerca da impronta sobre a cera também são oferecidas no texto Bartleby, o della contingenza.35 A memória é definida como “posse de um fantasma como ícone daquilo que é fantasma”. Lembrar que o professor Raúl Antelo, em entrevista feita pelo Alexandre Nodari e publicada no jornal A Notícia de 15 de setembro de 2006, se refere, filologicamente, à memória como não-loucura, “me-moria”.

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intelecto36, do sonho e da adivinhação37 como também da linguagem38. Essas considera-ções, para o espírito exegético medieval, se transformam em um lugar de experiência da alma como um precipitar-se na perdição ou como um deslumbre divino. Assim, no âmbito dos estudos do fantasma desenvolvidos na Idade Média, parte Agamben para a análise de Avicena e de Averroes, nos quais, os termos médicos e filosóficos se misturam. Avicena, por exemplo, localiza a percepção em cinco cavidades cerebrais nas quais se desenrola um progressivo “desnudamento” do fantasma de seus acidentes naturais de modo a permitir que a alma racional se informe (ver pp. 141-143). Averroes traz à tona, por sua vez, a idéia do olho como um espelho que reflete as formas dos objetos fantasmaticamente e, num processo metafórico, que também remete à fantasia quando esta “imagina” os fantasmas na ausência do objeto39. Diante disso, até mesmo o amor se faz compreender como um pro-cesso essencialmente fantasmático em que a imaginação e a memória litigam em torno da imagem pintada ou refletida no íntimo do homem (p. 147). Esse é o entendimento que permite, na Idade Média, perceber o caráter desestabilizador das atitudes de Narciso e de Pigmalion: elas causam abalos porque evidenciam, cruamente, que a paixão, ou seja, as intenções eróticas se desenvolvem em tom de idolatria em função do reflexo, da imagem (ver p. 150). O verdadeiro objeto do amor é, enfim, o fantasma40.

Capítulo III – “Spiritus Phantasticus”

O autor percebe na doutrina pneumática41, dos pneumas, o entrelaçamento da medicina e da cosmologia, da psicologia e da retórica como base harmônica para o desenvolvimento e compreensão da lírica amorosa do século XIII. Essa teoria profundamente arquitetada na Idade Média já recebia de Aristóteles dois elementos importantes: a natureza astral e a presença dos pneumas no esperma. Pelo caráter fisiológico fortemente influenciado pelos estudos de Galeno, ocupava posição central a idéia de um pneuma como sopro cálido originado pelas exalações do sangue ou pela contínua aspiração do ar. Erasístrato, por outro lado, entendia haver um pneuma vital localizado no ventrículo esquerdo do coração e outro, o pneuma psíquico, localizado no cérebro. Zenão e Crisipo teorizavam, por sua vez, acerca de princípio corpóreo, sutil e luminoso como fogo, “artista”, que impregnava o uni-verso e se demonstrava presente em cada ser, em maior ou menor grau, como elemento fundamental para o crescimento e para as sensações. Para eles, a alma não seria nada além de um fragmento desse princípio divino. A filosofia neoplatônica, entretanto, entendia o

36 O intelecto é percebido como uma espécie de fantasia e essa compreensão dominou a tal ponto a teoria medieval do conhecimento que permitiu aos escolásticos cunhar a seguinte fórmula: “nihil potest homo intelligere sine phantasmata”. Considerações sobre isso também são feitas em Infância e História.37 Ver p. 138, alto.38 Cito: “En el De anima (420b), a propósito de la fonación, Aristóteles afirma que no todo sonido emitido por un animal es voz, sino sólo el que va acompañado de algún fantasma [...], porque la voz es un sonido significativo. El carácter semántico del lenguaje está así indisolublemente asociado a la presencia de un fantasma [...]” (p. 138).39 Cito: “Y conocer es inclinarse sobre un espejo donde el mundo se refleja, un espiar imágenes reverberadas de esfera en esfera: y el hombre medieval está siempre delante de un espejo, tanto cuando mira a su alrededor como cuando se abandona a su propia imaginación” (p. 147).40 Cito também: “La fuente de Amor, que ‘inunda de muete a los vivos’, y el espejo de Narciso aluden pues ambos a la imaginación, donde habita el fantasma que es el verdadero objeto de amor: y Narciso, que se enamora de una imagen, es el paradigma ejemplar de la fin’amors, y a la vez, con la polaridad que caractariza a la sabiduría psicológica de la Edad Media, del fol amour que despedaza el círculo fantasmático en la tentativa de apropiarse de la imagen como si fuese una criatura real” (p. 151).41 Susana, sei que minha tradução de “neuma”, “neumático” de que trata o Agamben pode parecer um tanto quanto esdrúxula em alguns momentos (mais à frente você vai encontrar um “veículo pneumático”...), mas me parece que “pneuma” seja o termo mais adequado para falar de algo que remete, justamente, à inspiração.

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pneuma como um veículo ou corpo sutil que acompanha a alma para servir como instrumento da imaginação, como sujeito dos sonhos e das iluminações divinas da adivinhação. Agamben observa, então, que o neoplatonismo e o estoicismo costumam assimilar convergentemente os pneumas e os fantasmas, cuja fusão se daria num espírito fantástico, “sujeto de la sensación, de los sueños, de la adivinación y de los influjos divinos, en cuyo signo se cumple la exaltación de la fantasía como mediadora entre corpóreo e incorpóreo, racional e irracional, humano y divino” (p. 165). Assim, na Idade Média, a teoria se direcionou de modo a reconhecer o coração como a sede da sensibili-dade e da imaginação, mas, em função da corrente pneumática que circula pelo corpo, era no cérebro que elas atuariam. Isso faz com que Agamben perceba em tal cultura, tributária da noção do espírito como elemento mediador entre corpóreo e incorpóreo, a completa inutilidade do estabelecimento de uma distinção entre magia e ciência.

Capítulo IV – Espírito de amor

Debruçando-se sobre a lírica dos stilnovistas, especialmente sobre a de Guido Cavalcanti, o autor trata de discorrer sobre a concepção do amor, não como dois amores (amor-contemplação e amor-concupiscência), mas como única experiência amorosa que permite a contemplação do fantasma interior e a concupiscência na medida em que ela se origina e tem como objeto imediato o fantasma. Assim, é ele (o pneuma fantasmático), entendido como origem e objeto de amor, que possibilita a união – copulatio – do indivíduo com o intelecto único e separado tal qual num espelho (p. 185). E, posto que penetra pelo olhar, permite o movimento espiritual, da circulação dos pneumas, e o processo fantasmático. Agamben percebe, então, que é na poesia do dolce stil novo que a experiência patológica da qual tratavam os médicos se conjuga com o enobrecimento salvador, ou seja, a ambivalência de enfermidade mortal e salvação, ofuscamento e iluminação, privação e plenitude permite a compreensão, nos tratados medievais de medicina, da existência mórbida e saturnina desse amor hereos (p. 189).

Capítulo V – Entre Narciso e Pigmalion

Agamben observa que a expressão “amor heróico” nada tem a ver com a história dos heróis, mas com as definições fornecidas pela patologia médica e pela demonologia neoplatônica. Faz isso com base na tese warburguiana do Nachleben42, na qual se afirma o desenvolvimento e a transformação da cultura ocidental por meio de um processo de “polarização” da tradição cultural recebida43 que pode culminar numa completa inversão de

42 No texto Aby Warburg e la scienza senza nome, de Agamben, e recolhido no livro La potenza del pensiero, o Nachleben é definido como vita postuma, sem a possibilidade de se falar com propriedade de um “renascimento” ou “sobrevivência”, veja-se nota de número 15 na página 130. A cultura, no processo dos Nachleben, é percebida como transmissão, recepção e polarização do elemento tradicional (p. 131, de La potenza del pensiero).43 Cito: “Esto no significa que no haya en ella [na cultura ocidental] momentos criativos y revolucionários (la historia de la expresión ‘amor heroico’ ilustra precisamente, por el contrario, uno de tales momentos), sino simplesmente que (puesto que toda cultura es esencialmente un proceso de transmisión de Nachleben) creaciones y revoluciones operan, en general, ‘polarizando’ los datos proporcionados por la tradición, hasta llegar, en ciertos casos, a sus total inversión semántica. La cultura europea es, a pesar de todo, conservadora, y es conservadora precisamente en la medida en que es progresista y revolucionaria” (p. 193). Essa concep-ção, anacrônica, a respeito do papel da tradição na cultura deve ser importante para o estabelecimento de um contraponto com a leitura feita por Haroldo de Campos em seus textos a respeito da poesia concreta como ponto culminante na visada sincrônica. Assim, além dos textos de A Arte no Horizonte do Provável, veja-se também texto sobre a razão antropofágica, da década de 80, publicado em Metalinguagem e outras metas.

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significados. Assim, no tocante ao tema do amor heróico, Agamben chama a atenção para a presença de elementos da teoria erótica delineada nos capítulos anteriores, bem como os aspectos fantasmáticos da experiência amorosa, de maneira que é pelo ofusca-mento da faculdade estimativa (a mais alta das virtudes sensíveis, capaz de governar a imaginação e as outras virtudes) que se abre espaço para o movimento patológico do amor hereos. Esse processo se daria da seguinte maneira: pelo erro da faculdade estimativa, desencadeia-se o sentimento do desejo que direciona seus tentáculos para a imaginação e para a memória de modo a fazer com que elas girem obsessivamente em torno do fantasma origem do erro. Essa patologia, aponta o autor, através de Arnaldo de Villanova, também compreende o caráter pneumático, uma vez que a causa para o erro da estimativa é encon-trada nos “espíritos” que servem de instrumento à faculdade. Mais uma vez Agamben recorda Warburg ao perceber a inversão semântica por que passou o amor heróico: de patologia na Idade Média passou a uma das mais nobres experiências espirituais do homem moderno. Mas para que isso aconteça, Agamben salienta que é necessário haver a preexis-tência de uma tensão potencial no seio da herança transmitida pela tradição que se reatuali-za e se polariza no encontro com uma nova época (p. 201).

Capítulo VI – A “gioi che non mai fina”

Agamben, a partir de um terceto do Purgatório dantesco, trata de questionar a medida em que a inspiração amorosa de caráter pneumo-fantasmática pode colocar-se como fundamento de uma teoria da linguagem poética. Assim, recordando que a definição da linguagem como signo foi formulada pelos pensadores da Sta e já se encontrava implícita no conceito formulado por Aristóteles para a voz humana como “som significante”, sustenta que, nesse mesmo filósofo, em função da presença do fantasma como fundamento, o algoritmo que representa o signo (S/s, significante/significado = signo, na semiologia moderna) deve ser apreendido da seguinte maneira: signo = F/s, ou seja, fantasma/som. Essa concepção estaria reafirmada no De interpretatione aristotélico, cuja tradução latina de Boécio diz “o que está na voz é signo das paixões que estão na alma”, o que parece remeter, a princípio, às passio animae como as imagens da fantasia de que trata o De anima. Entretanto, sabendo que a fantasia possui um estatuto ambíguo no pensamento do filósofo grego, entre o sentido e a intelecção, no debate medieval, as paixões da alma eram vistas ou como sensações ou como fantasmas, conforme já apontava Boécio, ou então como intelecções das quais se excluíam ao motus spirituum (a ira, o desejo, a alegria...), tal qual defendiam os escolásticos. Dante, por sua vez, entendia a poesia como ditado de amor inspirante e, ao fazer isso, possibilitou a reinserção da teoria da linguagem à doutrina pneumo-fantasmática. Nesse sentido, é o veículo pneumático que une o fantasma à palavra e ao desejo e abre um espaço no qual o signo poético aparece como o único asilo oferecido ao cumprimento do amor e do desejo amoroso como fundamento e sentido da poesia (p. 220). Portanto, a inclusão do fantasma e do desejo no âmbito da linguagem é a condição essencial para que a poesia se possa conceber como joi d’amor e, além disso, ela assume tal aspecto porque é a stantia em que se dá a celebração do amor (p. 121)44. Diante disso, Agamben percebe ainda que, no transcurso de um processo histórico marcado pelas figuras de Petrarca e Mallarmé, a tensão textual da poesia de amor acabou por ceder o espaço ocupado pelo desejo ao luto e Eros por entregar a Thanatos o seu objeto de amor para que 44 Cito também: “La palabra poética venía a estabelecerse así como el lugar donde la fractura entre el deseo y su inasible objeto, que la psicología medieval, con profunda intuición, había expresado en la identificación del Eros con el jovenzuelo ‘que tanto amo su sombra, que murió’, encuentra su conciliación, mientras que la mortal enfermedad ‘heroica’, en la que el amor asumía la máscara saturnina del delírio melancólico, celebra su rescate y su ennoblecimiento” (p. 222).

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fosse recuperado, funestamente, como objeto perdido, de modo que o poema se passa a converter em lugar de uma ausência, a qual também é seu fundamento de autoridade45.

QUARTA PARTE – A IMAGEM PERVERSA

Capítulo I – Édipo e a Esfinge

Aqui o autor trata do mal-estar da ideologia dominante diante da intenção emblemática, da alegoria que desemboca no vazio de que falava Benjamin em seu Trauerspielbuch. Agamben recorda que Hegel, em suas Lições de Estética, tratava justamente desse senti-mento em referência aos símbolos, que por si nada dizem, não se prestam ao gozo e nem contentam suas intuições imediatas. Isso porque evidenciam uma luta entre a expressão, a forma de âmbito dos significantes e seu conteúdo, o significado. O autor ainda percebe que o mesmo mal-estar diante dos símbolos também se apresenta no que se refere à ambigüida-de do significar, posto que o signo é, ao mesmo tempo, manifestante e coisa manifestada 46

e, por isso mesmo, ou seja, porque o significar não é originado por uma plenitude, mas por uma diferenciação (“diferimiento”) que se sente a necessidade de filosofar (pp. 229-230). A fratura da presença, sobre a qual se projeta a experiência da linguagem47, aponta Agamben, toma o aspecto de uma “significação” na medida em que se interpreta a partir da unidade da forma significante e do conteúdo significado ligados um ao outro em uma relação que pode ser de manifestação ou ocultamento (p. 230). O autor ainda fala que, no decorrer do século XIX, começou a formar-se um dogma que floresceu no terreno da estética pelo qual a aparência sensível se identifica sem resíduos com o significado de maneira a fazer com que ele se resolva integralmente em sua manifestação e, na semiologia moderna, é justamente na barra que separa significante e significado (S/s) que se apresenta o esquecimento da fratura original da presença. Para compreender melhor isso, Agamben propõe um outro olhar – não o freudiano no momento – em relação ao mito de Édipo e sua postura diante do enigma proposto pela Esfinge. Assim, “la enseñanza liberadora de Edipo es que lo que hay de inquientante y de tremendo en el enigma desaparece inmediatamente si se vuelve a llevar su decir a la transparencia de la relación entre el significado y su forma, del que sólo en aparencia este logra escapar” (p. 232). Édipo inaugura, com isso, a separação da linguagem cuja conseqüência apresenta uma grande descendência metafísica, de maneira que, por um lado, se colocam o discurso simbólico e os termos impróprios da Esfinge que procuram cifrar e esconder, por outro, o discurso claro e os termos próprios do herói, que expressam e decifram (p. 234).

Capítulo II – O próprio e o impróprio

Observa o autor que a duplicidade originária da concepção metafísica do significar se manifesta na cultura européia como contraposição do próprio e do impróprio. E é na obra 45 Toda essa problemática pode ser percebida, em seus meandros, através da reflexão sobre Experiência e Pobreza e do Traurspielbuch benjaminianos.46 Cito: “El fundamento de esta ambigüedad del significar está en esa fractura original de la presencia que es inseparable de la experiencia occidental del ser y por la cual lo que adviene a la presencia, adviene a la presencia como lugar de una diferición y de una exclusión, en el sentido de que su manifestarse es, al mismo tiempo, un esconderse, su ser presente un faltar” (p. 229).47 Ver textos de Benjamin sobre a linguagem (A tarefa do tradutor, por exemplo) em que se trata da língua pura. Jeane Marie Gagnebin tem um texto em que apresenta alguns elementos dessa teoria: Teologia e messianismo em Walter Benjamin. Isso a fim de perceber como Haroldo de Campos cita a concepção benja-miniana da linguagem para estabelecer a idéia da transcriação. Parece-me ainda interessante frisar que é na tradução que a não plenitude, a fratura original da linguagem de que trata Agamben se faz evidente.

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de Dionísio Aeropagita que o autor encontra os fundamentos da teoria do impróprio, que se expressou pela obsessão emblemática do renascimento e do barroco, na qual, teológica-mente, seguindo um princípio de incongruência em relação ao divino as negações dizem mais, são mais verdadeiras e congruentes, do que as afirmações, ou seja, a representação feita por discrepâncias e desvios é mais adequada do que aquela que atua por meio de analogias e semelhanças (p. 238). Herder caracteriza o período que compreende os séculos XVI e XVII como a época emblemática, em que se procura converter em veículo os elementos de incongruência e de deslocamento, identificados com o simbólico, para um conhecimento superior e, nesse sentido, o emblema, composto por uma alma (o lema) e por um corpo (a imagem), se apresenta como mistura mística, homem ideal (p. 239-240). Também a caricatura, segundo Agamben, conseguiria efeito parecido sobre a figura humana, separando-a, tal como acontecia com a imagem emblemática, de seu significa-do48. Com os olhos voltados para o projeto psicanalítico, Agamben observa que o território do inconsciente coincide como aquele do simbólico e do impróprio, de modo a possibilitar a percepção de que o intento emblemático pode ser inclusive reconhecido como escrita escondida do inconsciente (p. 245). Dessa maneira, também a respeito da negação fetichis-ta se pode reconhecer o elemento “impróprio” na medida em que o objeto rechaçado pelo inconsciente, ou seja, a ausência do pênis materno, é declarado na mesma intensidade em que é negado. Entretanto, observa-se que o esquema próprio/impróprio impede a percepção de que na expressão metafórica, em realidade, nada se substitui a nada. Isso, aponta o autor, fica mais claro quando se está diante de um emblema uma vez que se pode compreender que, num ritmo de explicar ocultando, nenhuma das duas intenções, a do lema e a da imagem, prevalece sobre a outra (p. 250). É em função disso que o autor aproxima a negação fetichista da forma emblemática: “así como en la Verleugnung no hay en efecto simplemente un ‘transporte’ de un significado propio a uno impropio, sino más bien un proceso de negación nunca sustancializable entre una ausencia y una presencia [...] así, en la forma emblemática, no hay ni sustitución ni transporte, sino sólo un juego de negación y de diferencia irreductible al intercambio de lo propio y de lo impropio” (p. 251).

Capítulo III – A barra e a dobra

Tratando dos estudos de Saussure, Agamben percebe o estatuto duplo da unidade lingüísti-ca como o lugar da diferença absoluta, no qual a fratura metafísica da presença se faz reco-nhecer de modo mais estarrecedor (p. 260). Assim, é a barra mesma que separa o signifi-cante do significado a demonstrar a impossibilidade do signo de produzir-se em plenitude (p. 261). Agamben também afirma que a metafísica não é apenas interpretação da fratura da presença como dualidade de aparência e essência, de significante e significado, de sensível e inteligível, senão o fato de que a experiência original já está apresentada como uma dobra, ou seja, que a presença está desde sempre já apresentada em um significar (p. 263). Em função disso, o autor permite compreender que o núcleo originário do significar não está, então, nem no significado e nem no significante, nem na escritura e nem na voz, mas na dobra sobre a qual estes se fundam: o logos que caracteriza o homem enquanto zoon logon echon. E até mesmo o homem é a fratura da presença, na medida em que abre um mundo e sobre o qual se sustenta a linguagem. Nesse sentido, o algoritmo saussuriano deve ser reduzido apenas à barra, não como mero rastro de uma diferença, mas como jogo

48 Cito: “Sólo una época íntimamente avezada, como la época emblemática, a descubrir en la incongruencia en modelo de la verdad, podia parecerle la caricatura más parecida a la persona que la persona misma. La caricatura es em efecto, en la esfera humana, lo que el emblema es en la esfera de los objetos” (p. 241).

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topológico de comesuras e articulações que foram apresentados, exemplarmente, no tocan-te a Édipo e à Esfinge, à profundidade melancólica do emblema, bem como à negação do fetichista (p. 264)49.

49 Sobre a concepção de dobra, observar o que fala Deleuze sobre a concepção do homem. Sabendo que, em A Dobra, o autor estabelece um estudo da obra de Leibniz, qual seria a compreensão sobre o homem como potência, defendida por Spinoza, a ser contraposta entre o filósofo holandês e aquele alemão?