Agostinho_Ramalho_Marques_Neto_-_Uma_última_palavra_sobre_o_ensino_do_direito

download Agostinho_Ramalho_Marques_Neto_-_Uma_última_palavra_sobre_o_ensino_do_direito

of 5

Transcript of Agostinho_Ramalho_Marques_Neto_-_Uma_última_palavra_sobre_o_ensino_do_direito

  • 8/4/2019 Agostinho_Ramalho_Marques_Neto_-_Uma_ltima_palavra_sobre_o_ensino_do_direito

    1/5

    ACINCIA DO DIREITO:OCONCEITO, O OBJETO, O MTODO (TRECHO)AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO

    Uma ltima palavra: sobre o ensino do direito

    O ensino do Direito tem tradicionalmente refletido e conservado o dogmatismoainda dominante no pensamento jurdico. A concepo que ainda persiste em larga escala a deque o ensino um simples processo de transmisso de conhecimentos, em que ao professorcabe apenas ensinar e ao aluno, apenas aprender. Com isso, reduz-se o papel do aluno ao de ummero espectador passivo, e conseqentemente desinteressado, dos ensinamentos que lhe vosendo gradativamente ministrados. Tal entendimento acerca da atividade de ensino,infelizmente ainda muito generalizado, traduz claramente toda uma concepo autoritria doprocesso educacional, cuja prtica tem consistido sobretudo na imposio ao aluno dedeterminados conhecimentos que ele deve docilmente aceitar e assimilar, sem maiores

    participaes no processo mesmo de elaborao desses conhecimentos e principalmente semum questionamento mais profundo que ponha em xeque a validade dos ensinamentos que lheso ministrados, o fundo ideolgico subjacente a esses ensinamentos e o porqu de serem essese no outros os conhecimentos transmitidos.1 Ora, tal atitude perante o processo de ensino fazcom que este falhe redondamente diante de sua meta primordial, que o desenvolvimento dosenso crtico, do pensar autnomo, que s pode consolidar-se atravs da livre tomada deconscincia dos problemas do homem e do mundo, e do engajamento profundo na tarefa deresolver esses problemas.

    O ensino jurdico no s reproduz essas deficincias generalizadas no processoeducacional, como ainda as agrava, visto que no s a metodologia didtica usualmenteempregada como tambm o contedo mesmo do conhecimento so apresentados dentro de umaperspectiva essencialmente dogmtica, como se constitussem autnticas verdades reveladas,diante das quais ao aluno no restaria outra opo seno a de aceit-las do modo mais acrticopossvel. Dessa maneira, o aluno encontra imensas dificuldades para uma participao ativa noseu prprio processo de formao, conformando-se, o mais das vezes, com assimilarconhecimentos freqentemente divorciados da realidade social, sem sobre eles formularquaisquer indagaes crticas, o que o leva, na vida profissional, a assumir uma posturadogmtica, ajudando, consciente ou inconscientemente, a manter o status quo implantado pelasclasses socialmente dominantes. Os aspectos propriamente cientficos e filosficos do Direito,quando no so simplesmente negligenciados, so apresentados ao aluno, via de regra, dentrode um dogmatismo normativista que o induz crena de que o Direito se reduz s leis e queestas devem ser consideradas como algo dado, a ser simplesmente interpretado e aplicado.Ignora-se, dessa maneira, o mais importante: que a elaborao terica do Direito, como de

    qualquer outra cincia, resulta de um processo de construo e retificao de conceitos; que as

    1 Ditamos idias. No trocamos idias. Discursamos aulas. No debatemos ou discutimos temas.

    Trabalhamos sobre o educando. No trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma ordem a que ele no adere, masse acomoda. No lhe propiciamos meios para o pensar autntico, porque, recebendo as frmulas que lhedamos, simplesmente as guarda. No as incorpora porque a incorporao o resultado de busca de algo queexige, de quem o tenta, esforo de recriao e de procura. Exige reinveno. FREIRE, Paulo. Educao

    como prtica da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 96-7 (Grifos do autor).

  • 8/4/2019 Agostinho_Ramalho_Marques_Neto_-_Uma_ltima_palavra_sobre_o_ensino_do_direito

    2/5

    normas jurdicas, tambm construdas, decorrem da opo por uma entre vrias alternativaspermitidas pela formulao terica; que, tanto na elaborao das teorias como na construodas normas e na aplicao destas realidade social, h todo um direcionamento ideolgico quedeve ser permanentemente submetido a crtica; que as leis foram feitas para a sociedade, e noa sociedade para as leis, de modo que a eficcia destas s pode ser medida, em ltima instncia,por sua adequao realidade social; que, por isso mesmo, as leis, embora devam sercumpridas durante sua vigncia, no podem prescindir de ser submetidas constantemente aquestionamentos crticos que as renovem e lhes dem vida.2

    O preconceito tanto positivista quanto idealista segundo o qual a atividadecientfica nada mais que uma apreenso de determinadas verdades, j existentes nos fatos, ouna natureza das coisas, ou no interior da conscincia, o principal responsvel pelos trs tiposbsicos de dogmatismo jurdico j criticados nas p. 179-83: o da norma, o do fato e o dosprincpios ideais. Qualquer desses posicionamentos epistemolgicos aplicado ao ensino jurdicoresulta numa viso estrbica do Direito, pois nenhum deles enfoca o problema jurdico dentroda estrutura relacional concreta em que ele se gera e se desenvolve no espao-tempo social. Odogma da norma, que dominante, apresenta a legislao como objeto nico do Direito; o dofato supe que a construo cientfica nada mais do que uma captao passiva das realidades;

    e o dos princpios ideais desvincula o Direito da ambincia social concreta em que ele seproduz, para determin-lo a partir de valores intangveis. Todos eles servem esplendidamentepara consagrar a ideologia imposta sociedade pelas classes dominantes, pois consideram oobjeto do conhecimento jurdico, seja ele a norma, o fato ou o valor, como algo dado e, por issomesmo, no passvel de ser questionado. Todas as concepes epistemolgicas que ignoram oprocesso essencialmente construtivo das cincias e de suas aplicaes prticas, vendo no objetode conhecimento um simples dado, transferem tal concepo para o ensino, o qual passatambm a ser dado, imposto a uma pura aceitao, como se os seus pressupostos e o contedotransmitido atravs dele constitussem verdades intocveis e absolutas, acima de qualquercrtica. assim que o dogmatismo dominante na cincia e na Filosofia do Direito vai servir debase ao dogmatismo do ensino jurdico, o qual, por seu turno, retroalimenta e conserva oprimeiro, num autntico crculo vicioso, dentro de um sistema de pensamento

    extraordinariamente fechado. A maioria dos manuais de Introduo cincia do Direito, porexemplo, ou simplesmente ignora qualquer abordagem cientfica sobre o fenmeno jurdico -alguns ignoram a prpria existncia de tal fenmeno -, consistindo em verdadeiras teoriasgerais do Direito Positivo; ou formula nos primeiros captulos uma teoria geral da cincia, dendole positivista ou idealista, mas raramente dialtica, e apresenta depois uma cincia doDireito que pouco ou nada tem a ver com os princpios daquela teoria geral da cincia, a partirda prpria definio da cincia jurdica como uma pretensa cincia normativa dogmtica, comose fosse possvel tal modalidade absurda de conhecimento cientfico. Depois, mesmo os quereconhecem a existncia de outras realidades jurdicas que no apenas a lei, transferem o estudo

    2 Bem se encaixa, neste ponto, a tautologia denunciada pelo socilogo PODGORECKI: Advogados e

    jurisconsultos, educados no esprito do legalismo dogmtico (...), acreditam que o Direito se define por suavalidez ou por ser produzido pelos rgos estatais autorizados. Diante disso, argumenta o mestre de

    Varsvia: No parecem preocupados com a natureza obviamente tautolgica de tal posio. Na verdade, se

    direito o que vlido, e no direito o que no o , uma pergunta emerge: em que princpio se funda aprpria validez? Os que se dispem a desprezar a tautologia responderiam que o vlido o , por ser jurdico.Alguns advogados dogmticos, mais escrupulosos, modificariam um pouco essa posio, dizendo que ovlido o , devido sua produo por um poder autorizado. Mas que princpio o autoriza? Um princpiojurdico - a resposta. Assim, reaparece a tautologia, apesar de ampliado o raio do crculo. LYRA FILHO,Roberto. Op. cit., p. 32.

  • 8/4/2019 Agostinho_Ramalho_Marques_Neto_-_Uma_ltima_palavra_sobre_o_ensino_do_direito

    3/5

    de tais realidades para disciplinas como a sociologia e a deontologia jurdicas, e atribuem cincia do Direito, stricto sensu, apenas o estudo da norma, aceita acriticamente como um dadooriundo do poder estatal e, nessa condio, passvel de interpretao e aplicao, mas no decrtica. Dentro dessa viso estreita, que ainda domina o ensino jurdico no Brasil e no mundo, oDireito constituiria uma cincia singularssima, cuja elaborao terica se faria com base naparte tcnica, isto , na norma, ao invs de, como ocorre nas demais cincias, a tcnica se fazera partir da teoria, como aplicao desta.

    Dentro desse quadro geral do ensino jurdico, que felizmente vem sendoquestionado h certo tempo por pensadores de uma linha mais crtica, a formao predominantedo bacharel em Direito tem sido tradicionalmente marcada, de um lado, por uma improfcuaerudio livresca - que ultimamente tem declinado bastante em virtude de modificaes nosistema educacional - e, do outro, por um conservadorismo que faz do jurista um indivduomuito mais preocupado com a exegese de textos legais, cujos fundamentos geralmente nemsequer indaga, do que com a possibilidade de transformar o Direito num propulsor de umdesenvolvimento social integral, mediante o engajamento efetivo na superao de muitosangustiantes problemas que a vida social apresenta. Assim, dentro desta lgica, baseada num

    pressuposto arbitrrio de que o Direito s isto, no espanta ver que um jurista, dilacerado

    entre a formao positivista e o engajamento poltico, enxergue na formao jurdica umobstculo ao progresso, e com ela se desencante.3 O socilogo, o economista, o antroplogo, opsiclogo e outros cientistas sociais geralmente falam dos resultados de suas respectivascincias, tanto em termos de elaborao terica quanto de aplicaes prticas. O jurista, aocontrrio, sob o peso de uma formao dogmtica que no o deixa sequer vislumbrar cinciaalguma que constitua o referencial terico de seu universo especfico, limita-se a falar da lei, aprocurar interpret-la, mas raramente a critica em seus prprios pressupostos, pois suaformao mesma o induz a considerar a norma como algo perfeito e acabado, formalmentevlido em si mesmo como produto do sistema de poder constitudo. Da o fato de o jurista estara perder cada vez mais terreno na elaborao de conhecimentos tericos sobre o social e,enquanto jurista, no processo de tomada de decises. Afinal, ele prprio se atribuiprincipalmente o conhecimento da forma das leis, e abre praticamente todo o espao relativo ao

    contedo para outros cientistas sociais, pois, no fim de contas, cr que a anlise e a crtica docontedo extrapolam os limites da cincia do Direito. por isso que raramente um jurista convidado a compor uma equipe interdisciplinar que se proponha elaborar conhecimentosnovos sobre a realidade social e, quando tal acontece, sua participao consiste, no mais dasvezes, em opinar sobre se tal ou qual procedimento contraria ou no a legislao vigente.4

    Todo esse estado de coisas, aqui apresentado de uma maneira mais ou menoscaricatural, infelizmente real no universo concreto das atividades do jurista. E de modo algumacontece por acaso. Ao contrrio: extremamente coerente com a ideologia imposta sociedade pelas classes dominantes. Com efeito, estas procuram efetivar, sob a mscara de umapretensa universalidade, a consagrao legal dos seus prprios interesses. Nada lhes mais

    3Id. Ibid., p. 15 (Grifos do autor).4 Talvez seja por isso que se desencanta o jovem estudante de Direito. Talvez seja por isso que, dizem, ocurso jurdico atrai os alunos acomodados, os carneirinhos dceis, os bonecos que falam com a voz doventrloquo oficial, os secretrios e office boys engalanados de um s legislador, que representa a ordem dosinteresses estabelecidos. O uso do cachimbo dogmtico entorta a boca, ensinada a recitar, apenas, artigos,pargrafos e alneas de "direito oficial. Mas ento, tambm uma injustia cobrar ao estudante a mentalidadeassim formada, como se fosse um destino criado por debilidade intrnseca do seu organismo intelectual.Sendo as refeies do curso to carentes de vitaminas, que h de estranhar na resultante anemiageneralizada? LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se ensina errado. Braslia, UnB. Centro Acadmico deDireito, 1980, p. 28 (Grifos do autor).

  • 8/4/2019 Agostinho_Ramalho_Marques_Neto_-_Uma_ltima_palavra_sobre_o_ensino_do_direito

    4/5

    conveniente do que manter o jurista amarrado a uma formao dogmtica que o transformenum dcil intrprete das leis - de preferncia sob a tica do sistema dominante -, e o impea deformular juzos crticos que ponham em xeque a estrutura, os fundamentos e o funcionamentodo sistema de poder estabelecido. Assim, muito freqentemente, o jurista, que lida diretamentecom os mais fundamentais direitos humanos, paradoxalmente se aliena da essncia socialdesses direitos, para ater-se ao formalismo de uma legislao que no raro os espezinha, emnome de uma suposta segurana que muito mais das elites detentoras do poder, do que dasociedade como um todo, inclusive porque muitas vezes estabelecida contra as aspiraes e oslegtimos anseios de liberdade e igualdade dos segmentos oprimidos na estrutura social.

    As ponderaes que acabamos de apresentar deixam clara a imperiosa necessidadede operar-se uma autntica ruptura em todo o sistema de ensino do Direito, paralelamente auma idntica ruptura em relao s concepes que tm norteado toda a prtica terica dacincia jurdica. preciso, como recomenda LYRA FILHO, transformar o dogma em problema, com vista a uma compreenso crtica e totalizadora do Direito.5 Em outraspalavras, urge libertar o Direito de todo dogmatismo, integrando-o dialeticamente ao contextosocial de que ele parte, como disciplina cientfica que constri criticamente o seu prprioobjeto e assim se constri a si mesma dentro de condies histricas concretas. preciso uma

    profunda tomada de conscincia, por parte dos juristas, de que as normas podem ser realmenteeficazes quando confrontadas, num incessante processo dialtico, com os contedos que elaspretendem disciplinar. preciso, enfim, que a cincia do Direito assuma uma postura aomesmo tempo analtica e crtica, comprometendo-se com as realidades e aspiraes

    da sociedade, sob o impulso de uma prxis libertadora.6 S assim, o ensino doDireito pode ser concomitantemente libertado do dogmatismo que o oprime. No ser comsimples reformas curriculares, mas com a definio de um novo tipo de ensino em consonnciacom um novo tipo de cincia jurdica dialeticamente integrada realidade social, que sepodero propor novos objetivos para um ensino do Direito engajado na construo de umasociedade melhor e mais justa.7 S ento o ensino jurdico deixar de constituir uma simples ealienada transmisso de conhecimentos, para assumir o carter de atividade visceralmenteligada pesquisa e extenso, enriquecendo-as e enriquecendo-se com elas, dentro de um

    sistema universitrio aberto investigao e crtica, em que os conhecimentos sejam

    5LYRA FILHO, Roberto. Para um Direito sem dogmas. Porto Alegre, Srgio Antnio Fabris, 1980, p. 42.

    6cf. LYRA FILHO, Roberto. Para um Direito sem dogmas. Porto Alegre, Srgio Antnio Fabris, 1980, p. 42.7 Em sua magistral aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, em 1955, SANTIAGO

    DANTAS j revelava preocupao com esse problema: O ponto de onde, a meu ver, devemos partir, nesseexame do ensino que hoje praticamos, a definio do prprio objetivo da educao jurdica. Quem percorreos programas de ensino das nossas escolas, e sobretudo quem ouve as aulas que nelas se proferem, sob aforma elegante e indiferente da velha aula-douta coimbr, v que o objetivo atual do ensino jurdico proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e sistemtico das instituies e normas jurdicas.Poderamos dizer que o curso jurdico , sem exagero, um curso dos institutos jurdicos, apresentados sob aforma expositiva de tratado terico-prtico. DANTAS, San Tiago. A educao jurdica e a crise brasileira.

    Revista Forense. Rio de Janeiro. Forense, 159: 452, 1955 (Grifos nossos). Ainda com respeito a um ensino jurdico vinculado a uma nova concepo da cincia do Direito, assim se expressa LYRA FILHO: (...) oimportante a destacar outra coisa: parece-me que existe um equvoco generalizado e estrutural na prpriaconcepo do direito que se ensina. Da que partem os problemas; e, desta maneira, o esforo deste oudaquele no chega a remediar uma situao globalmente falsa. preciso chegar fonte, e no sconseqncias. preciso tentar convencer a todos (...) de que temos de repensar o ensino jurdico, a partir desua base: o que Direito, para que se possa ensin-lo? Noutras palavras, no a reforma de currculos eprogramas que resolveria a questo. As alteraes que se limitam aos corolrios programticos ou curricularesdeixam intocado o ncleo e pressuposto errneo. LYRA FILHO , Roberto. O Direito que se ensina errado.Braslia, UnB. Centro Acadmico de Direito, 1980, p. 6 (Grifos nossos).

  • 8/4/2019 Agostinho_Ramalho_Marques_Neto_-_Uma_ltima_palavra_sobre_o_ensino_do_direito

    5/5

    produzidos em comum pelos professores com a participao ativa dos alunos, e em que asatividades interdisciplinares sejam muito mais do que uma mera justaposio de conhecimentosde reas diferentes. Lutar para que, mesmo a prazo mdio ou longo, o ensino jurdico se renove,rompendo com o seu atual contedo dogmtico, uma tarefa que, desde j, se impe a todosquantos vem no Direito um instrumento de libertao e de justia social.