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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DOUTORADO EM SOCIOLOGIA Terra incognita: liberdade, espoliação. O software livre entre técnicas de apropriação e estratégias de liberdade FRANCISCO ANTUNES CAMINATI CAMPINAS 2013

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANASPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

Terra incognita: liberdade, espoliação.O software livre entre técnicas de apropriação

e estratégias de liberdade

FRANCISCO ANTUNES CAMINATI

CAMPINAS2013

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Dedico esse trabalho aos sonhos de liberdadedo Cacique Apow' e de Richard M. Stallmaẽ n.

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AGRADECIMENTOS:

TODO MEU RESPEITO E GRATIDÃO:

À FAPESP E AO POVO DO ESTADO DE SP, por apoiarem este trabalho de pesquisa durante 5 anos.

AO IFCH E À UNICAMP, A TODOS OS PROFESSORES, FUNCIONÁRIOS E COLEGAS; E A TODA COMUNIDADE UNIVERSITÁRIA E DE BARÃO GERALDO, por proporcionarem um verdadeiro encontro com o mundo.

AO PROFESSOR PEDRO PEIXOTO FERREIRA pelo apoio decisivo na reta final e na defesa.

AO PROFESSOR LAYMERT GARCIA DOS SANTOS por incentivar meu trabalho desde o início e pelas experiências de pensamento e pelos experimentos de criação que realizamos juntos.

AOS PROFESSORES: IMRE SIMON (in memoria) e MAURO W. B. ALMEIDA pela participação no exame de qualificação que marcou a passagem da pesquisa de Mestrado para Doutorado (2007); RICARDO ANTUNES e SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA por participarem do segundo exame (2011) que, anos depois, habilitou a realização da defesa.

AOS PROFESSORES: SÉRGIO SILVA, NÁDIA FARAGE, VANESA LEA, RENATO ORTIZ, MARIA FILOMENA GREGORI, MARCELO RIDENTI, OSWALDO SEVÁ, OMAR RIBEIRO e JORGE TÁPIA.

AOS COLEGAS E PARCEIROS DO GRUPO DE PESQUISA CTeMe; DA REDE LATA – LABORATÓRIO DE ANTROPOLOGIA, TERRITÓRIO E AMBIENTE; E DO LABORATÓRIO DE CARTOGRAFIA DO CERES.

À RÁDIO MUDA E AO COLETIVO SARAVÁ.ORG – por proporcionarem, a partir da superação da especialização técnica e da propriedade sobre o saber, experiências de cruzamento de conhecimentos e de práticas voltados para a transformação social e invenção de novos mundos, que foram a escola política de mais de uma geração.

AO POVO A'WUÊ UPTABI DA ALDEIA WEDERÃ, E A TODAS AS ALDEIAS DA T. I. PIMENTEL BARBOSA-MT; À CASA DE CULTURA TAINÃ e À REDE MOCAMBOS; À FÁBRICA RECUPERADA FLASKÔ; E À POPULAÇÃO DA RESEX ALTO DO RIO JURUÁ, por mostrarem que existem outros mundos e, principalmente, outros modos de viver e de construir o mundo.

AOS COLEGAS DO ISA PHD LAB MOSCOW 2008: Vishal Jadhav, Asuka Kawano, Zharaa McDonald, Claudia Mullen, Lou Antolihao, Daniel Woodman, Anna Chursina, Tanya Butnor, Vera Bobkova, Alla Vaselova e Holland Wilde; OS COORDENADORES DO LABORATÓRIO: Isabela Barlinska, Nikita Pokrovsky, Tatiana Venedictova, Maria Soukhotina, Valentina Shilova, Stephen Brier, Marcel Fourneir e Michael Burawoy; E À INTERNATIONAL SOCIOLOGICAL ASSOCIATION e À FUNDAÇÃO FULLBRIGHT por possibilitarem minha participação nesse interessante projeto.

AOS ORGANIZADORES E PARTICIPANTES DOS EVENTOS: “Mídia, Tecnologia e Liberdade” (SESC-SP, 2010); “Direitos, Culturas e Conflitos Territoriais na Amazônia” (UFPR, 2010); “Software Livre – Filosofia e Prática” (UNICAMP, 2011); “II Seminário do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar: Sociedade e Subjetividade” (UFSCar, 2011); "'ESC – Espectro, Sociedade

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e Comunicação” (UNICAMP, 2011); “Outros Mapas: Cartografia e Pesquisa Social” (FUNDAJ, 2012); “Oficina de Trabalho: Redes de Educação à Distância Como Instrumento de Proteção Da Amazônia” (CENSIPAM, 2012).

À MINHA FAMÍLIA, AOS AMIGOS E AOS VIZINHOS DE SANTOS, GUARUJÁ, SÃO PAULO, NOVA ODESSA, LUCÉLIA, PRUDENTE, SÃO CARLOS, CAMPINAS, BRASÍLIA E MATO GROSSO.

***Algumas pessoas merecem agradecimentos especiais pois, por motivos diversos e em alguns casos mesmo sem saber, foram fundamentais para a realização deste trabalho:

Augusto Postigo, Fábio Candotti, Paulo Tavares, Pedro Peixoto Ferreira, Paulo José Lara, André La Salvia, Samuel Leal, Rafael Diniz, Silvio Rhatto são grandes amigos e foram os principais parceiros e interlocutores durante a pesquisa.

Rafael Diniz e Silvio Rhatto merecem um agradecimento a mais pela iniciação tecnológica no Software Livre via seu submundo – tivessem sido outros os primeiros guias, certamente não teria me interessado tanto pelo tema e certamente os caminhos tomados seriam outros

Rafael Gomes Banto Palmarino pelas indicações bibliográficas que a universidade branca simplesmente não poderia fornecer; pelas conversas libertadoras sobre racismo, descolonização e tecnologia; e pela manutenção da plataforma wiki onde estão publicados alguns anexos da Tese

Maria Christina Faccioni, Secretária do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, por sempre resolver tudo com habilidade, agilidade e competência impressionantes, mesmo diante do excesso de trabalho que a lógica do produtivismo acadêmico e do sucateamento das condições de trabalho na Universidade impõe. Estendo o agradecimento a todas as secretárias e secretários da Pós-Graduação e dos Departamentos do IFCH, que desempenham uma função tão importante quanto pouco valorizada por parte da Instituição.

Paty Carrión, Fabricio Astudillo e Quiliro Ordoñez, pelo apoio e amizade durante a realização de pesquisa de campo em Quito (Equador); Alexandre Oliva e a rede da FSFLA foram fundamentais para o estabelecimento dos contatos certeiros para a viagem e para a pesquisa. À Paola Miño agradeço pela indicação do Encontro de Cultura Livre da FALCSO. À Catherine Walsh agradeço pela entrevista inspiradora. A Santiago Cordovilla, Javier López Narváez e Marcelo Bonilla, agradeço pelas entrevistas e por apresentarem, respectivamente, a Subsecretaria de Tecnologia da Informação, o Ministério da Cultura e a Escola de Constitucionalismo e Direito do Instituto de Altos Estudos Nacionais.

Cipassé, Severiá Idiorê, Clara Rewai'õ, Caimi Waiassé, Leandro Parinai'á, Andréia, Wanderley e especialmente aos anciãos Wazaé, Cidaneri, Maurício e Fernanda (in memorian), e demais moradores de Wederã; Eurico, Josimar, Benedito, Jorge Protodi, Johny, Jamiro e demais moradores de Etenhiritipá, e a todos e todas que vivem, praticam, continuam, levam adiante e expandem o sonho de liberdade e de resistência dos antigos.

Nilsão, Seu Luiz, Benê, Benezinho (in memorian), Rogério Morcego,Priscila, Benetti, Santos, Suely (eventos), Suely (biblioteca), Muchacho, Júnior, Dunguinha, Seu Geraldino, Seu Marcelino Corinthiano (deve estar feliz da vida!), Deti, Seu Zé Negão (in memorian), as trabalhadoras

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terceirizadas da faxina. Família Carniça e todas as agremiações da Copa Muchachão. Os antigos Verdinho do Ataliba Nogueira e todos e todas que, além de manterem a UNICAMP de pé e na ativa, transformam-na em um lugar muito mais humano.

Fernando Farah Torres, Raphael Cessa, Rafael Cruz e Freire, Caio Bosco (e Cerebral), Andressa Passetti, Cássio Quitério, Fernando Bragança Mukeka, Thiago Galletta, Bruno Amaro, Carlos Filadelfo de Aquino, David Coturnada, Raul Ortiz, Gustavo Alemão, Gabriel Fontan, Ricardo Terner, Dj Paulão, Chirs, Samuel Leal, Didi Helene, Mendigo, Luiz Fernando Lima e Silva, Fábio, Maitê, Juba, Bruna, Letícia, Roberto Rezende, Piru, Ana, Odete, Ricardo Zollner, Morita, Daniel Manzatto, Roxo, Hidalgo, Alice, Elisa Ximenes, Paulinha Saes, Lauren... por estarem sempre por perto, mesmo quando longe, fazendo aquilo que só os amigos fazem.

Famílias Hasegawa e Itikawa, como todo meu respeito e gratidão. Vó Rosa, Tio Antonio e Tia Cecília Volpim, Tia Dita, Marcio, Cá, Deja, Carol, Ricardo, Renata, Pai, Mãe, Nando e Telma, obrigado por tudo! Vocês fizeram toda a diferença desde sempre.

Duas pessoas merecem agradecimentos ainda mais especiais:

Fernando Antunes Caminati, meu irmão, que desde sempre me estimulou a conhecer o mundo; e foi decisivo em alguns dos momentos mais difíceis da caminhada.

Aline Yuri Hasegawa foi certamente a pessoa mais importante nesse processo. Guerreira, esteve sempre ao meu lado me mostrando que com trabalho, humildade e amor vencemos qualquer coisa, juntos.

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Irrealizáveis nessa ordem social, realizáveis numa outra, essas propostas, que constituem apenas uma consequência natural

do desenvolvimento técnico, servem à propagação e formação dessa outra ordem...BERTOLD BRETCH

Discurso sobre a função do rádio 1932

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RESUMO:

Esta Tese apresenta os resultados de uma pesquisa de Sociologia da Tecnologia que aborda as inovações tecnológicas, as implicações geopolíticas e as possibilidades ecológicas do Software Livre. A pesquisa explorou o papel operatório das ideias e das práticas de liberdade e de abertura associadas, respectivamente, aos conceitos de Free Software e de Open Source. O objetivo foi analisar a ambivalência da relação que, ao longo de sua evolução histórica, o Software Livre estabeleceu com o Mercado: num primeiro momento, confrontou-o para garantir a possibilidade de liberdade, posteriormente, aliou-se para fortalecer e expandir essa liberdade. O objetivo era investigar até que ponto a liberdade pode se expandir através dessa aliança com o mercado, e quais as consequências para expansão ou retração do meio técnico e informacional compartilhado através dela. Com o intuito de demarcar conflitos e limites precipitados pela conciliação do Software Livre com tecnologias que restringem liberdades e com regimes de apropriação que remetem a relações de espoliação, e de proporcionar o entendimento da característica que está por trás da aparente convergência sinergética entre uma nova forma de liberdade inaugurada pelo SL e uma nova forma de apropriação praticada por um capitalismo open source, a Tese apresenta o conceito de Terra Incognita. Foi realizado um estudo de caso sobre a NOKIA e o modo como constituiu e mobilizou uma comunidade de trabalho em rede para desenvolver de maneira colaborativa o sistema operacional e os programas de uma linhagem de smartphones através dos projetos Maemo e MeeGo. Além disso, através de pesquisa de campo realizada no Equador; da memória da participação na elaboração e na implementação de políticas públicas no Brasil; e de uma experiência de colaboração tecnológica com o Povo Xavante da Aldeia Wederã (T.I. Pimentel Barbosa, MT) na instalação de um laboratório de processamento audiovisual em Software Livre na escola da Aldeia, são analisadas as implicações geopolíticas da “liberdade de não pagar” – uma consequência e não um imperativo do modo de distribuição do Software Livre – que permite que países de Terceiro Mundo, no caso, da América do Sul, se apropriem do Software Livre em projetos de “Soberania Tecnológica”. Os resultados alcançados apontam para a descrição de técnicas que mobilizam o open source como uma linguagem para a prática de uma apropriação sem propriedade; e da radicalização política do Software Livre pelo encontro de sua liberdade com as realidades e problemas locais nas experiências sul-americanas, encontro este que permite uma extrapolação de seu sentido político para além de uma questão tecnológica, comportando uma concepção de meio comum que remete a informação à terra e é, portanto, ecológica.

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ABSTRACT: This thesis presents the results of a Sociology of Technology research encompassing technological innovation, geopolitical implications and the ecological possibilities of Free Software. The examination explores the operational aspect of ideas and material practices regarding freedom and openness related, respectively, to the concepts of Free Software and Open Source. This effort was made in order to analyze the ambivalent relation between Free Software and the Market, built on a contradictory basis: at first Free Software confronted the Market to defend freedom; but later was able to forge an alliance with the same Market, to build up and expand freedom. The objective is to investigate how far freedom can be expanded within such an alliance and which consequences the expansion of technical and informational environment shared through a Market-controlled freedom might suffer. It is presented the concept of Terra Incognita, as a way of bounding the limits and conflicts arising from conciliating Free Software and freedom restrictive technologies, as well as collaborative communities with appropriation regimes based on spoliation relations. Terra Incognita serves also as way of understanding what lies behind the apparent synergistic convergence between a new kind of freedom, launched by Free Software, and a new kind of appropriation, practiced by an Open Source Capitalism. A case study on NOKIA's mobilization of a networked community to foster collaborative development of the operational system and several softwares for smartphones in the projects Maemo and MeeGo. Besides, through field research in Ecuador; the memoir of the professional participation in public policy implementation in Brazil; and collaborative experience of installing a Free Software audiovisual lab with the Xavante people in the Wederã village (Pimentel Barbosa Indigenous Territory, Mato Grosso, Brazil), this thesis analyses the geopolitical implications of the “freedom of not to pay” – meaning that in Free Software distribution not paying is a consequence, not an essential attribute – which allows Third World countries to use Free Software as a means of enabling projects of “Technology Sovereignty”. All the results combined point out to the usage of open source as a language to the practice of appropriation without property, also they bespeak the political radicalization of Free Software when its freedom meets reality and social issues sort out in the South American societies. By such an encounter, it is possible to extrapolate the whole meaning of Free Software beyond technology, to a new conception of common environment, comprising information, knowledge and land, hence being itself ecological.

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SUMÁRIO:

APRESENTAÇÃO.............................................................................................................................................25

1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TERRA INCOGNITA 1.1 Alguns aspectos do processo de emergência do SL e de seu conflito imanente.............................39

1.2 Fazendo do SL um objeto da Sociologia da Tecnologia...................................................................56

2 LIBERDADE E ABERTURA 2.1 A Liberdade do SL (Freedom as in Free Software)..........................................................................89

2.2 Consequências não intencionais I: GNU/GPL................................................................................116

2.3 Consequências não intencionais II: O ecossistema do Linux e a emergência do Open Source.............................................................................................................................135

2.4 Terra Incognita: Ambiguidade e Contradição..................................................................................150

3 TÉCNICAS DE APROPRIAÇÃO: TRABALHO, VALOR, REDES DE INOVAÇÃO 3.1 Como se ganha dinheiro com Software Livre?.…..........................................................................169

3.2 Apropriação 2.0: Apropriação sem propriedade.............................................................................177

3.3 Trabalho em rede: Inovação...........................................................................................................183

3.4 Valor como efeito colateral: A Espoliação do Comum como Liberdade..........................................196

3.5 Um case de sucesso, rastros de um conflito..................................................................................213

3.6 Capital Humano, Liberdade e Servidão Voluntária.........................................................................239

3.7 Estranha Síntese, Impensável Conjunção, inominável realidade...................................................247

4 SOFTWARE LIVRE NA AMÉRICA DO SUL 4.1 A liberdade de não pagar como Soberania Tecnológica.................................................................259

4.2 Estudo de Caso I: Colaboração Wederã – Como lidar com o Waradzú.........................................274

4.3 Estudo de Caso II: Software Livre no Equador...............................................................................299

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................................315

ANEXOS.............................................................................................................................329

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FIGURAS: 1 «Ji Shin Noben Map», Mapa, Japão, (1855).................................................................................37

2 «Political Overlaps» Diagrama de Hung Chao-Kuei, FSF (2001).................................................87

3 «Community Involvement Diagram» (JAAKSI, 2008).................................................................167

4 «Selected IBM Revenues, 2000-2003» (BENKLER, 2006)........................................................174

5 «Inside-Out Roadmap» (JAAKSI, 2008).....................................................................................184

6 «The best of breed gets promoted» (Gil, 2008)..........................................................................189

7 «Where Open Source is deployed?» (Gil, 2008) ........................................................................191

8 «Duplo Engajamento: Trabalho-Vida» (Jaaksi, 2007) Fonte: Ian McKellar – Berlin, 2008..........240

9 «Follow me, I got the key» (JAAKSI, 2008).................................................................................249

10 «SailfishOS Girls: Unlinke?» Barcelona, 2013...........................................................................252

11 «Armazém de computadores obsoletos da UFAM» Manaus, 2005...........................................257

12 «Richard Stallman @ Rádio Muda» Campinas, 2009................................................................331

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SIGLAS, ACRÔNIMOS E ABREVIAÇÕES:

BSD: Berkley Software Distribution

CC: Creative Commons

DRM: Digital Rights Managements

EB: Exército Brasileiro

FISL: Festival Internacional de Software Livre

FOSS: Free and Open Source Software

FSF: Free Software Foundation

FSFLA: Free Software Foundation Latin America

GCC: GNU Compiler Collection

GNU: GNU is Not UNIX

GPL: General Public License

GPSL: Grupo Pró-Software Livre da UNICAMP

ITI: Instituto de Tecnologia da Informação

OMPI: Organização Mundial da Propriedade Intelectual

OS: Open Source

OSI: Open Source Initiative

P2P: peer to peer (produção, comunicação e troca realizada entre pares)

SL: Software Livre

TI: Tecnologia da Informação

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APRESENTAÇÃO

Esta Tese apresenta os resultados de uma pesquisa de Sociologia da

Tecnologia que aborda as inovações tecnológicas, as implicações geopolíticas e

as possibilidades ecológicas do Software Livre. A pesquisa consistiu em uma

investigação sobre a evolução das relações do SL com o mercado, suas

implicações para a expansão ou retração da liberdade tal como informada pelos

novos meios livres e pela prática de compartilhamento de conhecimento, e suas

implicações geopolíticas a partir da especificidade dos desdobramentos locais

dessas relações na América do Sul.

Foram dois os eixos que guiaram o trabalho.

Em um deles, busca-se o entendimento do papel operado pela confusão

entre os conceitos de abertura e de liberdade, associados respectivamente aos

conceitos de Open Source e de Software Livre, na manutenção de uma condição

de ambivalência na qual o SL precisa reagir ao mercado para garantir a liberdade,

podendo se aliar ao mercado para expandir a liberdade.

No outro, volta-se para experiências recentes de políticas públicas

propostas e praticadas por Brasil e por Equador e para o modo como o software

livre foi (e vem sendo) apropriado e atualizado localmente. Por um lado,

investigou-se os efeitos de um decreto presidencial que estabelece a opção

estratégica e a preferência de uso pelo software livre no âmbito da administração

pública estatal no Equador. Por outro, analisa-se os resultados de uma experiência

de colaboração para instalação de um laboratório de edição audiovisual em

software livre em uma aldeia indígena (Xavante) no Brasil buscando entender a

especificidade do papel desempenhado pelo software livre nesse processo.

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A evolução das relações entre SL e mercado foram acompanhadas,

perseguidas e analisadas a partir da exploração das ambiguidades, contradições e

convergências entre as práticas associadas aos conceitos de Software Livre e

Open Source, e do papel que operam tanto na conversão do que foi projetado

como estratégia e como prática de liberdade em um proeminente modelo de

negócio, quanto na continua afirmação e expansão da liberdade no ambiente

digital apesar dessa conversão e, também, tirando proveito dessa conversão – às

vezes simultaneamente. Buscou-se, portanto, compreender o modo de operação

que concilia eficácia técnica e contradição política através da constituição de uma

zona de resolução de tensões e de ressonâncias, na qual práticas e interesses

antagônicos convergem e, aparentemente, se potencializam.

Esta convergência toma forma no compartilhamento de conhecimento

técnico e de tecnologia, que se constitui como um verdadeiro ecossistema de

relações de produção e de troca de abrangência global. Contudo, este

compartilhamento ocorre em meio a contradições e conflitos, pois trata-se de um

ecossistema que comporta que a liberdade do SL conviva com práticas de

espoliação de meios e de recursos comuns, e que a expansão da liberdade

associada à produção, reprodução e criação de meios livres de alguma forma

co-exista e, mais importante, co-evolua com uma apropriação intensificada de um

trabalho precarizado, coletivo, dividual, disperso e diluído. Um trabalho realizado

em rede.

Com efeito, são analisadas experiências que forjam técnicas de apropriação

que produzem valor a partir da mobilização de redes de inovação cujas formas de

engajamento e associação são cada vez mais difíceis de serem entendidas como

trabalho, entre outros fatores, por desafiarem tecnicamente a noção de indivíduo

como referência para demarcação e medição da atividade laboral; e por

aproveitarem de maneira gratuita do acesso privilegiado aos produtos de trabalho

precário e de atividades genéricas de uso que produzem valor mas não são

percebidas ou realizadas como trabalho, e até mesmo aquelas que são realizadas

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como liberdade.

Para a realização desse estudo, foi acompanhada uma experiência de

produção colaborativa e de aproveitamento do trabalho em rede praticada por uma

empresa, a NOKIA, em conjunto com comunidades, Maemo e MeeGo, para o

desenvolvimento dos sistemas e aplicativos de software para uma linhagem

comercial de smartphones1. Esta experiência forneceu também um ponto de vista

para o acompanhamento do que foi a emergência avassaladora do mercado

mundial da indústria mobile, da importância das tecnologias open source para

essa indústria – vide o sucesso do Android – e, ao mesmo tempo, dos limites de

uma estratégia econômica baseada nos princípios do open source – vide a própria

espantosa perda de mercado sofrida pela NOKIA, e o desmanche de quase todas

suas operações open source decorrente de sua guinada na direção da

MICROSOFT2.

Numa tentativa de garantir uma perspectiva cruzada, ou de como este

arranjo baseado na co-existência e na co-evolução em meio a contradições e

conflitos também pode funcionar a favor da liberdade, são analisadas experiências

que, de maneira robusta e portadora de grande potencial de expansão, se

relacionam com e através deste ecossistema compartilhando do conhecimento, do

desenvolvimento técnico e da inovação resultante, em uma perspectiva do meio

como bem comum. Na qual o compartilhamento é considerado condição de

liberdade e substitui a concorrência como impulso dinamizador da produção de

valor e de riqueza.

A especifidade dos desdobramentos locais dessa relação serão buscados a

partir do modo como o software livre se popularizou na América do Sul, ou seja, a

partir da extrapolação de seu sentido político e da radicalização de suas

premissas políticas quando estas encontram as culturas, os problemas e as

1 Conhecida como N series, atualmente extinta, cujos últimos lançamentos foram os modelos N900, N950, N9.

2 A opção do abandono do open source pela NOKIA é abordado no capítulo 3 [TÉCNICAS DE APROPRIAÇÃO]. Um conjunto de links que informam e repercutem esse acontecimento, bem como a guinada da NOKIA em direção à MICROSOFT foi reunido no ANEXO WK-13.

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realidades locais. Brasil e Equador são escolhidos como campos privilegiados

para esse estudo devido à natureza de políticas públicas forjadas por seus

respectivos Estados e devido à criatividade e à inventividade dos desdobramentos

que as sucederam quando apropriadas e absorvidas em contextos locais.

A liberdade de não pagar por licenças de uso e por royalties, uma

consequência e não um imperativo das licenças copyleft do software livre, e as

possibilidades de desenvolvimento técnico a partir das demandas culturais e

econômicas locais, acrescentam uma dimensão geopolítica à problematização da

liberdade em meio à informação. Pois, muito mais que apenas uma questão de

preço, como também argumentam os defensores do SL, é justamente pela

possibilidade da tradução do acesso livre por acesso gratuito, que uma relação

mais balanceada entre o desenvolvimento tecnológico do Norte e a apropriação

local permitida aos países do Sul Global pelas leis e dispositivos de propriedade

intelectual, passa a ser possível de ser imaginada, almejada e, por que não,

criada. Este é um efeito mais profundo, que talvez ainda nem tenha se realizado

para além de um potencial, mas o que interessa, é sua implicação geopolítica: o

modo como o SL fornece uma linguagem para a política no que concerne o

desenvolvimento e a soberania tecnológica, o acesso às novas tecnologias e sua

distribuição internacional.

Através do processamento dos resultados de um projeto realizado em

parceria com um Ponto de Cultura instalado em uma Aldeia Indígena Xavante –

Wederã (T.I. Pimentel Barbosa, MT) – é analisado o potencial de liberdade do SL

quando apreendido e incorporado como meio para superar condições históricas de

adversidade tecnológica – tanto no que se refere ao acesso a meios técnicos,

quanto no que se refere ao acesso e à apreensão dos conhecimentos técnicos

associados a eles e que são requisitos fundamentais para a interação e

interlocução com e através desses meios técnicos. Aqui, reflito sobre o papel do

SL como diferencial de esforços de superação de cenários de exclusão/fronteira

digital. Em seguida abordo o modo particular no qual o SL foi remetido à cultura

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local e o modo como encontrou e potencializou uma antiga estratégia de

liberdade.

No que concerne ao sentido político adquirido pelo SL, ou produzido a partir

dele na América do Sul, mais interessante que se perguntar qual liberdade ou qual

tipo de liberdade pôde se associar à liberdade do SL, é buscar entender como a

apreensão/incorporação particular do SL na América do Sul abriu novos campos

de atuação política. Tanto no sentido em que velhas lutas puderam se expressar

por novos meios e estabelecerem alianças com redes antes totalmente

disparatadas, quanto no sentido em que uma nova linguagem pôde ser mobilizada

para enfrentar os problemas contemporâneos e disputar seus desdobramentos e

consequências futuros.

***

Esta Tese está dividida em 4 capítulos:

O primeiro [CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TERRA INCOGNITA]

apresenta o objeto e a problematização geral da tese, com especial atenção ao

conceito de Terra Incognita. Em seguida, descreve a trajetória da pesquisa e modo

como seu objeto foi demarcado e a investigação realizada.

O segundo [LIBERDADE E ABERTURA] tem como objetivo definir e

diferenciar os conceitos de open source e de software livre, para problematizar

suas diferenças e as implicações políticas que cada um acarreta. No entanto, não

se trata de tentar mostrá-los como duas realidades distintas para isola-las. Ao

contrário, o objetivo será o de ver que tipo de reciprocidade que as práticas

imbuídas nestes conceitos estabelecem entre si, interessado em entender: como

se complementam e como se contrariam; quando há choque e competição; e

quando há convergência e sinergia.

Sua primeira parte apresenta uma tentativa de sistematizar um conceito de

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liberdade que pode ser definido a partir do Software Livre. Em seguida, é

abordada a importância da criação da licença GPL enquanto consequência

não-intencional do movimento, e é analisada sua função estrutural para o

estabelecimento de um ecossistema favorável à produção colaborativa e para

expansão virótica das redes de produção. Ainda explorando o sentido da ideia de

consequências não-intencionais, abordo a criação do Linux e a emergência de um

modelo de negócios associado ao software livre, buscando compreender as

relações entre hackers e o mercado a partir da criação do conceito de Open

Source. Por fim, descrevo as zonas de ambiguidade entre o software livre e open

source para pensar seu papel operatório na constituição da margem de

contradição que permite que um modelo de negócio de sucesso impulsione e

propague um movimento de defesa de liberdades, e vice versa; e na

problematização dos dilemas políticos que decorrem do papel fundamental que a

ambiguidade, a indistinção e a confusão de sentido desempenham nessa lógica

operatória.

O terceiro capítulo [TÉCNICAS DE APROPRIAÇÃO: TRABALHO, VALOR,

REDES DE INOVAÇÃO] tem como objetivo descrever as técnicas de apropriação

que se projetam sobre as formas contemporâneas de produção de conhecimento

prestando especial atenção para o papel das articulações em rede, nas quais

observamos um trabalho de tipo dividual. Para isso, são analisadas as relações de

trabalho, de compartilhamento e de apropriação estabelecidas através da

linguagem do open source entre uma empresa de atuação global, a NOKIA, e

comunidades de colaboração, Maemo e MeeGo. O material de análise é extraído

de um estudo de caso sobre o desenvolvimento de uma linhagem de

computadores móveis, que culminou no lançamento de um smartphone com

sistema operacional baseado em software livre. Buscarei descrever a ocorrência

do aproveitamento econômico de um tipo de trabalho dividual, disperso, diluído e

quase imperceptível, um trabalho de inovação realizado em rede e por uma rede.

E tentarei indicar quais conflitos essa nova forma de produção de valor enseja e

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faz precipitar.

Na primeira e na segunda parte deste capítulo, apresento os primeiros

modelos de negócios associados ao SL, os quais baseavam-se principalmente na

prestação de serviços associados ao código disponibilizado livremente, e a

passagem para um outro modelo de negócio que se volta para o aproveitamento

da capacidade de produção de invenção e de inovação. Na terceira parte, a partir

de slides e outros materiais de divulgação e de mobilização de colaboradores

produzidos pela NOKIA, analiso a relação entre um trabalho de tipo específico, o

trabalho em rede, e a produção de inovação. Na quarta, problematizo este modelo

de produção a partir de um enunciado que afirma que o valor é produzido como

“efeito colateral” do uso de tecnologias e do engajamento em redes de

colaboração, e analiso este aproveitamento a partir do conceito de apropriação por

espoliação. Na quinta parte, faço um esforço na busca de expressões de conflito

em meio a este processo, e na sexta tento entender como se dá a mobilização do

trabalho neste modo de produção. Por fim, termino mostrando alguns limites e

incongruências da “estranha síntese” entre liberdade e espoliação que são a base

de um capitalismo aberto e suave que pratica apropriação sem propriedade.

No quarto capítulo [SOFTWARE LIVRE NA AMÉRICA DO SUL] analiso as

experiências de apropriação do software livre no Brasil e no Equador enquanto

tecnologia e enquanto linguagem para a política. Aqui trata-se da problematização

do papel central que a possibilidade do não pagamento de licenças de uso

desempenhou nesse processo; e de como essa liberdade de não pagar pode e

deve ser percebida como um instrumento fundamental para a conquista de

soberania tecnológica. As consequências desse tipo de apropriação são

processadas através de suas implicações geopolíticas, a partir da reflexão sobre o

papel dos dispositivos de propriedade intelectual na regulação dos fluxos de

conhecimento e de capital entre os países do Norte e do Sul, e da função que

desempenham no controle e na gestão da distribuição e do acesso a

conhecimentos e tecnologias que, mais que estratégicas, são fundamentais para

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que se participe das novas modalidades de socialidade contemporânea.

Na sua primeira parte, apresento a ideia de liberdade de não pagar,

tratando a gratuidade como uma consequência e não um imperativo do software

livre, a qual considero que é dotada de um potencial que, na América do Sul, é

mobilizado em projetos de Soberania Tecnológica. Em seguida, analiso uma

experiência local de apropriação tecnológica realizada em parceria com a

comunidade Xavante da Aldeia Wederã na instalação e na ativação de um

laboratório de edição audiovisual em software livre, no âmbito da execução de um

projeto de Ponto de Cultura, buscando entender qual a contribuição específica que

o software livre implicou para o projeto de preservação e desenvolvimento de uma

comunidade tradicional. Na última parte, apresento e analiso dados de pesquisa

de campo realizada no Equador, reconstituindo, em alguns de seus aspectos, a

criação e a definição do escopo de atuação a Subsecretaria de Tecnologia da

Informação e do decreto 1014, ambos voltados para estruturas e executar uma

política de adoção de software livre em escala nacional. Além disso, a partir de

entrevistas com ativistas e pesquisadores locais, faço uma avaliação da evolução

e da repercussão dessa experiências medidas a favor do SL instituídas pelo

governo desde 2008. Por fim, realizo uma experiência de aproximação política do

conceito de software livre com o conceito de sumak kawsay, tentando explorar as

ressonâncias políticas entre uma liberdade experimentada na relação com a

informação e do bem-viver experimentado em uma relação com a terra.

Anexado à Tese, um pequeno arquivo da passagem de Richard Stallman

por Campinas, em 2009, composto por um breve descrição geral de sua estada e

a transcrição de uma entrevista realizada na Rádio Muda.

Por fim, em uma plataforma wiki (externa ao texto da tese) está publicado

um repositório digital de arquivos e links construído ao longo do processo de

escrita da Tese como uma ferramenta de apoio e de gestão de dados e de

materiais de referência.

O objetivo desta seção é, por um lado, proporcionar uma experiência de

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linguagem através da plataforma wiki – que foi um importante instrumento de

trabalho e de criação, o qual acredito que é dotado de um potencial ainda pouco

explorado pelas Ciências Sociais – e, por outro, proporcionar outras possibilidades

de processamento, e mesmo de evolução, para a Tese através das conexões

abertas pelos materiais e dos cruzamentos possíveis que a rede informada pela

reunião deles em um repositório on-line pode proporcionar.

Ao longo da Tese são feitas referências aos “ANEXO WK”, escritas desse

modo, em caixa alta, sempre acompanhando o número do respectivo arquivo. Os

ANEXO WK podem ser acessados através do seguinte endereço:

http://caminati.wiki.br/WK/WK

Este link dá acesso ao nível raiz do repositório, para acessar diretamente

um dos arquivos, basta incluir o número do arquivo indicado no final deste

endereço3.

3 Por exemplo, no caso de uma referência ao ANEXO WK-01, o endereço para acesso direto é: http://caminati.wiki.br/WK/WK01.

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1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TERRA INCOGNITA

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FIGURA 1: Mapa, «Ji Shin Noben», Japão, 1855

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1.1 ALGUNS ASPECTOS DO PROCESSO DE EMERGÊNCIA DO SL E DE SEU CONFLITO IMANENTE

O Software Livre é um fenômeno sócio-técnico recente que data do início

dos anos 1980. Sua difusão em escala global é mais recente ainda, consolidou-se

a partir do final dos anos 1990, sobretudo devido ao sucesso técnico e comercial

de seus produtos. Criado como uma resposta política pragmática ao que se

delineava como o cercamento do conhecimento no meio informacional, desde o

início o SL se constitui como um movimento social cuja principal característica é a

articulação inextricável entre prática tecnológica e eficácia política.

A liberdade almejada, conquistada e defendida pelo SL, a liberdade dos

usuários4 de computadores, era uma liberdade mediada tecnicamente:

experimentada em um novo contexto social em que a técnica deixa de ser um

objeto da política para emergir como o próprio meio de sua ação/execução; um

novo contexto social, em que a mediação técnica é condição para a política5.

4 O conceito de usuário pode ser um tanto controverso, pois pode adquirir sentidos diversos: pode tanto significar uma redução na capacidade de interação com os computadores, quanto uma relação plena de interação que se confunde com o próprio desenvolvimento técnico. No contexto do início dos anos 1980, contexto de origem do SL, o ato de usar um computador constituía uma ação que denotava uma relação completamente diferente do que a mesma ação denota hoje. Antes restrito aos laboratórios e as mãos de especialistas, com interfaces gráficas rudimentares, os computadores ainda estavam mais associados à produção do que ao consumo e, por isso, usar um computador era praticamente sinônimo de programar. Dado o atual estado da arte das tecnologias de informação, do ponto de vista técnico, essa relação contínua entre uso e desenvolvimento, devido ao alto grau de avanço da tecnicidade, é possível em uma intensidade ainda maior. Contudo, esse tipo de relação é evitado a todo custo pelas tendências do mercado e pelas empresas que concentram gigantescas fatias do mercado mundial e que ditam os rumos da produção técnica, que se esforçam ao máximo para reduzir a experiência de computação ao trabalho alienado, ao entretenimento ou ao consumo. A redução da experiência de uso das tecnologias – através da categoria de usuário (que deriva da condição de acesso e de conexão a meios tecnológicos) – corresponde à supressão de categorias como a de pessoa, cidadão, povo. Contudo, é justamente no sentido da preservação da liberdade para que seja possível uma relação de uso baseada numa interação/interlocução de tipo complementar, na qual uso e desenvolvimento não estejam separados, mas fluindo em conjunto, que foi criado o SL.

5 Por novo contexto aqui deve-se entender o período histórico de viradas, transformações e rearranjos informados pelos colapsos e crises da modernização (Kurz, 1992); pelas mutações pós-modernas (Latour, 1994; Harvey, 1993; Guattari, 1995); pelo avanço do neoliberalismo (Wiebel, 1998; Harvey, 2008; Andrade, 2009); pela virada cibernética e a emergência de um mundo ciborgue (Haraway, 1987; Hayles, 1999; Santos, 2003; Chopra & Dexter, 2007), pela presença e colonização da paisagem por meios digitais

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Um aspecto característico da proposta e da prática política do SL é que a

defesa da liberdade era afirmada, viabilizada e garantida tecnologicamente por

softwares e por um inteligente modo de produção baseado em redes globais de

colaboração e no compartilhamento de tecnologias livres. Não se tratava, portanto,

somente da proposta de aproveitamento de algum potencial de um meio com o

objetivo de promoção da liberdade (ou do uso de um meio associado a uma

ideologia de liberdade), tratava-se de um software sujeito de liberdade; da

constituição de um meio livre cuja liberdade é pré-condição para a própria

possibilidade de liberdade neste novo contexto. Daí que não se fala em

programadores e programadoras livres, ou usuários e usuárias livres, mas:

programas livres – Software Livre. E nesta articulação, que pode ser considerada

a grande inovação política do SL, a questão da liberdade foi inscrita no corpo do

código informacional, fazendo do desenvolvimento tecnológico uma linguagem e

um lugar para uma emergente política.

No entanto, é importante notar e destacar dois aspectos fundamentais

desse tipo de articulação entre tecnicidade e política, na qual técnica e política

são duas dimensões indissociáveis. Primeiro, se há uma objetificação da liberdade

– sua transferência para uma terceira parte, para uma dimensão ou realidade

estritamente técnica – isso implica necessariamente em algum tipo de alienação. A

ocorrência dessa alienação constitui, entretanto, parte importante do segredo do

sucesso do SL, pois é responsável por seu potencial de evolução técnica: de fazer

a liberdade evoluir através do desenvolvimento tecnológico, através do

aproveitamento do avanço técnico realizado em rede. Segundo, que a criação do

SL também indica a emergência de um novo meio para a fruição e para a disputa

que geram sempre novos meios (Mackenzie, 2006; Sterling, 2004); pelo ressurgimento do conceito de commons associado à produção cultural e de conhecimento inscritas no meio digital (Boyle, 2008); pela emergência política da Terra através dos conceitos sul-americanos de pachamama e de bem-viver que procuram inventar novas alternativas de desenvolvimento baseadas num princípio de equilíbrio integrado no modo de se relacionar com o meio, de gerir suas riquezas e de conviver coletivamente (Morales, 2008; Walsh, 2009, 2010; Gudynas & Acosta, 2012); e, também, da virada geopolítica precipitada pela crise financeira iniciada em 2008 (Karachalios & Ernest, 2010).

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da liberdade. Indica, portanto, uma nova forma de liberdade ao mesmo tempo

viabilizada e limitada por uma mediação técnica cada vez menos separada, e

possível de ser separada, da vida social. Implicando na fusão entre técnica e

política que, por sua vez, denotam a fusão entre tecnologia e vida social.

A respeito da abrangência e dos efeitos da emergência de uma realidade

social cada vez mais fundida com seu próprio meio (ou de uma realidade

tecnicamente mediada), é valido recorrer a uma passagem de Samir Chopra e

Scott Dexter (2007; p. 145) na qual, mobilizando a antropologia ciborgue de Donna

Haraway (1987) para falar de uma “nova era tecnológica” e da produção de um

“mundo ciborgue”, definem de maneira muito interessante a função política e

metafísica do SL neste novo contexto:

As implicações filosóficas do Software não são apenas sociais e políticas, mas também metafísicas. O código canaliza a engenhosidade e intenção humana para produzir um novo mundo híbrido – o mundo ciborgue. O código ao mesmo tempo cria e destrói distinções, reformulando (reworking) nossas ontologias e, portanto, demandando uma revisão de nossa política. O código pode tanto fazer avançar quanto neutralizar imperativos políticos: nesse contexto, o software livre (free software) não é somente uma questão de manejar a tecnologia, mas de determinar os contornos de nossa própria natureza (our selves) e das políticas que escolhemos. Tecnologia e política se tornam inseparáveis quando entidades tecnologizadas são atores políticos e objetos de nossa filosofia política. Uma nova filosofia política para essa era tecnológica deve refletir o borramento das fronteiras (blurring of boundaries), e as novas obscuridades que a tecnologia induz. O potencial libertário/liberador (liberatory) do software livre reside em seu potencial de enfrentar (address) estes efeitos6.

6 “Software's philosiphical implications are not only social and political but also metaphysical. Code channels human ingenuity and intention to produce a new, hybrid world – the cyborg wolrd. It both creats and destroys distinctions, reworking our ontologies and therefor necessitating a revision of our politics. Code may both advance and counteract political imperatives: in this context, free software is not just a question of managing technology but of determining the contours of our selves and the politics we choose. Technology and politics become inseparable when technologized entities are political actors and objects of our political philosophy. A new political philosophy for this technological age must reflect the blurring of boundaries, and the new obscurities, that technology induces. The liberatory potential of free software lies in its potencial to address both thesse effects.”

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Esta fusão dos domínios da tecnicidade e da política marcou o processo de

evolução do SL com uma característica peculiar que pode mesmo ser considerada

paradoxal. Tal característica, que foi estratégica para disparar seu processo de

evolução, e ainda o é para a continuidade de sua evolução, deriva do fato de que

o sucesso político do SL favoreceu e resultou no desenvolvimento de produtos e

de processos de produção que apresentaram vantagens técnicas em relação ao

que se consolidou como o modelo hegemônico de produção de software, o

modelo proprietário7, e que, por sua vez, estas vantagens técnicas logo foram

traduzidas em vantagens competitivas no mercado. De modo que aquilo que havia

sido forjado como uma estratégia de liberdade construída para responder a uma

situação limite imposta pelo mercado – o cercamento, a necessidade do

fechamento do código – passasse a fornecer ao mercado novos modelos de

produção e novos modelos de negócios mais flexíveis em relação à propriedade

intelectual.

Acontece que, ao longo da evolução de sua luta, o SL conseguiu forjar e,

mais importante, colocar em prática, uma contra-resposta ao mercado,

endereçada ao mercado, que buscava evitar a possibilidade de um tipo específico

de apropriação (aquela baseada na aplicação de dispositivos de propriedade

intelectual), que afirmava uma nova forma de liberdade (aquela baseada na

colaboração e no compartilhamento) que, no entanto, não era necessariamente

anti-mercado. Uma inteligente e pragmática oposição não-excludente garantida

por um uso esperto e não convencional das leis de direitos autorais8, realizado

7 Aquele baseado no fechamento do código, que para auferir lucro e renda sobre software precisa separar o código de seu processo social de criação e impedir sua livre circulação e seu livre compartilhamento.

8 Cristopher M. Kelty (2008:2) fala de “um uso esperto e não convencional dos direitos de copia”. Um uso que subverte o sentido original da lógica dos direitos de cópia que, sem os anular ou os invalidar, coloca em prática uma adaptação que não limita a cópia nem restringe a generalização da reprodução de um bem para realizar seu valor. Justamente o contrário: um uso esperto (poderia até mesmo chamar de malandro – clever), pois que inverte o sentido corrente de sua aplicação para garantir e, mais importante, proteger a generalização de prática da cópia e do compartilhamento de informação e conhecimento. Proteção à cópia e ao ato de copiar ao invés da proteção contra a cópia.

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através do que pode ser considerado o grande hack do movimento do Software

Livre: a criação da licença GNU/GPL baseada no conceito de copyleft (DELANDA,

2001).

Por ser de tipo não-excludente, a oposição feita ao mercado através do

copyleft da GNU/GPL com o intuito de defender e garantir a liberdade do

conhecimento, pode, mesmo que não intencionalmente, favorecer também o

mercado. Ao forjar as condições de possibilidade para a garantia e expansão da

liberdade do conhecimento, o SL conseguiu, ao mesmo tempo, favorecer –

mesmo que não intencionalmente, e mesmo que, posteriormente, muitas vezes

com este objetivo declarado – o próprio mercado ao ampliar os espaços e

condições de possibilidade de práticas de livre mercado para a produção de

software.

Trata-se de uma estranha opção estratégica que projeta um certo

engajamento com o contraditório, ou uma espécie de aliança com o inimigo: a

qual, em um primeiro momento, pode aparecer como tática de sobrevivência,

como contingência, e que deve ser avaliada pela medida do quanto,

posteriormente, se torna condição para sua existência. Obviamente, trata-se

sempre de saber aproveitar o que o ambiente comporta e oferece tanto para

superar adversidades, quanto para evoluir. E, também, de saber faze-lo funcionar

a seu favor mesmo quando funciona em alguma outra direção, ou quando está

projetado para combater e extrair recursos de seu próprio movimento. Ou seja,

quando funciona na direção contrária.

Dessa forma, o compartilhamento de conhecimento pôde, por um lado, se

contrapor à acumulação de capital, ao limitar a sua realização através dos regimes

de cercamento aplicados sobre a produção de conhecimento (BOYLE, 2008) e

sobre a aplicação/conversão desse conhecimento em tecnologias; e, também, por

criar novas condições e relações de produção que seguem outras lógicas que não

a da propriedade privada. Ao mesmo tempo que, justamente por seguir e ensejar

outras lógicas de produção, e por serem estas outras lógicas mais eficientes para

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a produção de inovação técnica, possibilitou também o surgimento de novos

modelos de negócio e de produção que se beneficiam do conhecimento

compartilhado e do ecossistema informado pela prática do compartilhamento de

conhecimento, sobretudo no que concerne à invenção e à inovação técnica.

Defendo que essa característica paradoxal precisa ser

entendida/processada em termos da resposta que sua pragmática9 – seu modo de

atualização, de existência e de reprodução – comporta e oferece em sua relação

ambígua com o mercado. Para tanto, esta Tese apresenta e aplica o conceito de

Terra Incognita com o intuito de proporcionar o entendimento desta característica

que está por trás da aparente convergência sinergética – que alguns consideram

até mesmo simbiótica10 – entre uma nova forma de liberdade inaugurada pelo SL e

uma nova forma de apropriação praticada por um capitalismo open source, a qual

buscaremos abordar como um conflito imanente do processo de emergência do

SL enquanto tecnologia e enquanto movimento social.

O uso deste conceito foi apropriado de um termo usado na computação

para designar zonas obscuras e ininteligíveis do código de um programa:

sequências de código que não funcionam ou que funcionam sem que se conheça

os motivos, sem que se entenda o porquê11. Esta utilização, por sua vez, já era

uma apropriação de um antigo termo cartográfico usado para designar territórios

9 Normalmente, a ideia de pragmatismo é associada mais ao OS do que ao SL com o intuito de diferenciar suas abordagens em relação ao grau de politização: o SL seria um movimento mais político, enquanto o OS um movimento mais pragmático – pois mais focado em resultados práticos, menos interessado em política. Discordo dessa tentativa de caracterização do OS como um movimento apolítico (os motivos serão desenvolvidos mais adiante), e utilizo o conceito de pragmática associado ao SL pois, apesar de seu alto grau de politização, a orientação prática e funcional de suas estratégias, ações e meios é sempre tão importante quanto os aspectos políticos de sua filosofia. Através da justificativa de Richard Stallman para a aplicação do Copyleft, é possível entender melhor a dimensão pragmática do método que fundamenta a prática do SL. O próprio título do texto já é bastante revelador: “Copyleft: Idealismo Pragmático”. E seu conteúdo demarca de maneira clara qual tipo de relação está sendo proposto para seus conceitos e práticas políticas: 'Se você quer realizar algo, idealismo não é o bastante – você precisa escolher um método que funcione de verdade para atingir o seu objetivo. Em outras palavras, você precisa ser ``pragmático''.' (Aspas do original). Cf. : http://www.gnu.org/philosophy/pragmatic.html acessado em 16/08/2012).

10 Como é o caso de Yochai Benkler (2006), como veremos com mais detalhes no terceiro capítulo [TÉCNICAS DE APROPRIAÇÃO: TRABALHO, VALOR, REDES DE INOVAÇÃO]

11 Em inglês here be dragons, ou, tal como utilizado na programação, na forma de sigla: HBD.

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ou regiões desconhecidas ou descontínuas em mapas – e, por isso, aparece aqui

em sua forma original, em latim (e, sendo assim, sem acento)12.

A inspiração para a aplicação da expressão Terra Incognita enquanto um

conceito foi despertada pelo encontro com sua utilização, em sua versão em

inglês, here be dragons, como o subtítulo do blog de Mark Shuttleworth13 e, em

seguida, como o nome de uma empresa de investimento de risco (Venture Capital)

fundada por ele na África do Sul, no ano 200014. Shuttleworth é um proeminente

desenvolvedor e investidor sul africano que é fundador, entre outras empresas,

fundações e iniciativas, do Projeto UBUNTU15 – um dos mais importantes projetos

de SL do mundo. Este projeto é responsável pelo desenvolvimento de uma das

mais difundidas distribuições do sistema operacional GNU/Linux – a distribuição

que utilizo no computador para escrever esta tese.

A escolha da expressão here be dragons para apresentar seu blog, através

do qual compartilha suas opiniões sobre diversos temas e alguns aspectos de sua

trajetória pessoal, e, também, para batizar uma empresa de investimento de risco,

possuía uma relação um tanto sutil com o projeto UBUNTU, quase nula.

Justamente por isso, mostrou-se bastante reveladora.

Ocorre que o culto à pessoa e aos feitos de Shuttleworth16, desvinculados

de um conhecimento amplo sobre a abrangência de sua atuação econômica,

desempenhava importante papel na mobilização de novos membros para a

comunidade de desenvolvimento do UBUNTU, e mesmo para a criação de uma

12 Os territórios desconhecidos eram muitas vezes representados pela imagem de dragões, vide FIGURA 1, e eram consideradas regiões providas de potencial para futuras descobertas e de riscos inimagináveis; ao mesmo tempo, zonas de poderes e de perigos: podiam tanto proporcionar novas fontes de exploração de riquezas, quanto implicar em ameaças. Para dados complementares, inclusive sobre a FIGURA 1, consulte o Anexo WK-01.

13 Cf. : http://www.markshuttleworth.com/biography .14 Cf. : http://www.hbd.co.za/ . 15 Para informações complementares sobre o Projeto Ubuntu e para o sentido da palavra africana Ubuntu –

proveniente do idioma Nguni, do tronco linguístico Bantu –, consultar o ANEXO WK-04.16 Como o fato de ter integrado uma missão espacial como turista (sendo o primeiro africano a ir ao espaço),

e ter selecionado os primeiros desenvolvedores para trabalharem no Projeto UBUNTU após uma viagem de barco à Antártica, na qual passou 6 meses offline lendo e estudando os arquivos das listas de e-mails da comunidade DEBIAN.

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aura e atmosfera de inovação e de confiança em torno de seu projeto – que, de

certa forma, também eram transferidas para o SL como um todo.

A distribuição UBUNTU teve destacado papel na disseminação do uso do

sistema operacional GNU/Linux entre os chamados usuários finais17, pois foi

projetada para acompanhar o ritmo das soluções tecnológicas dos fabricantes de

hardware, e para o aprimoramento do sistema GNU/Linux em termos de sua

usabilidade18 – sobretudo através do desenvolvimento de interfaces gráficas

amigáveis que facilitam a instalação, a configuração e a atualização do sistema.

Esta relação sutil entre reputação individual, atividade econômica e

potencial de ativação de redes e de mobilização de trabalho comunitário, indicava

um novo tipo de modelo de negócio e mesmo de um novo tipo de modo de

produção que se constituía como um ecossistema em que a produção é realizada

de maneira aberta, distribuída e difusa. Neste, as fronteiras entre os negócios

(business) e a liberdade aparecem como zonas cinzentas, como indecisão. Há

confusão e sobreposição por todos lados. Por vezes é difícil demarcar o tipo de

recurso que se está mobilizando para produzir e o tipo de relação de produção ao

qual se está engajando – se junto a um regime comunitário; se junto a um regime

comercial; se ligado a ambos; ou se na passagem de um para o outro.

Desde sua criação, a distribuição UBUNTU é produzida através de uma

complexa rede sócio-econômica, que combina o aproveitamento do trabalho da

comunidade DEBIAN19, desenvolvimento comunitário UBUNTU e prestação de 17 Chamo de usuários finais, numa tradução direta do termo inglês end-users, aqueles usuários que não são

hackers, nem portadores de conhecimento técnico complexo, e que, talvez mais importante, não estão interessados em desenvolver este conhecimento para ter que utilizar computadores, nem de se envolver ativamente no desenvolvimento dos programas.

18 Usabilidade aparece como tradução-direta do termo usability, do inglês. Seu sentido pode ser o de: capacidade de ser usado, de ser mais fácil de ser usado e de ser mais útil. Usabilidade, portanto, tanto como capacidade quanto qualidade do ato de utilizar. Numa proporção na qual quanto maior a usabilidade maior a capacidade de ser utilizado. As implicações da relação entre uso e capacidade de utilização e a evolução da tecnicidade serão analisadas com maior atenção no CAPÍTULO 2 [LIBERDADE E ABERTURA].

19 A distribuição DEBIAN é considerada a mais importante distribuição comunitária do universo do SL. É muito bem organizada, possui um contrato social, sua própria definição de software livre, e a firme posição de não incorporar software não-livre em seus pacotes (Cf.: http://www.debian.org/). Se, por um lado, esta estrutura comunitária não primava pela velocidade e pela agilidade no acompanhamento das

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serviços realizados por uma empresa, a CANONICAL20 – sua principal

mantenedora. Um tipo de rede que, como veremos sobretudo no capítulo 3, se

generalizou como um padrão bem sucedido de produção open source.

A razão da utilização do conceito de Terra Incognita nesta Tese visa,

portanto, demarcar uma zona de ambiguidade pragmática e retórica, e, por

conseguinte, técnica e política, inerente às práticas de produção de conhecimento

mobilizadas em torno dos conceitos de Free Software e Open Source em suas

relações com o mercado. Esta zona de ambiguidade constitui-se a partir de uma

dualidade imanente ao SL, com a qual as duas acepções buscam lidar de

maneiras particulares: seu modo dual de existência enquanto tecnologia e

enquanto movimento social.

Para estruturar esse conceito, parte-se da constatação de que os conceitos

de Free Software e Open Source podem designar conjuntos idênticos de códigos

ao ponto de seus nomes tornarem-se sinônimos; e, também, e em muitas

ocasiões ao mesmo tempo, estarem associados a práticas sociais que são

contraditórias ao ponto de se tornarem incompatíveis. E, ainda, que a oposição

mais evidente que se pode estabelecer em relação a ambos, um inimigo que se

pode eleger como comum, dificultando o contraste entre suas práticas e seus

conceitos, é o Software Proprietário – aquele baseado no regime de propriedade

exclusiva e no cercamento da informação – em relação ao qual toda a estratégia

do SL foi criada.

O que interessa e se busca evidenciar aqui é, portanto, o papel fundamental

que a ambiguidade opera, através das confusões entre ideias e práticas de

inovações dos fabricantes de hardware – que ademais correspondem mais a uma lógica da obsolescência programada do que a verdadeiras inovações técnicas –, por outro, apresentava grande estabilidade em seu funcionamento. A distribuição UBUNTU aproveita a arquitetura de dados da distribuição DEBIAN – inclusive utilizando a mesma estrutura de repositório de arquivos para atualização e instalação de aplicativos, o sistema apt-get, e esta opção estratégica permitiu que o desenvolvimento da distribuição UBUNTU partisse de um ponto já bastante desenvolvido, aproveitando da ampla base de usuários e colaboradores DEBIAN e sua linguagem de interação, uso e desenvolvimento comunitário. Além disso, e talvez o que seja o mais importante, permitiu que desenvolvedores da comunidade DEBIAN fossem contratados para trabalhar em suas fileiras e se integrassem ao novo projeto com agilidade.

20 Cf.: http://www.canonical.com/ .

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liberdade e de abertura, na eficácia técnica e política tanto do software livre quanto

do open source. E aqui reside um ponto chave: não se trata de uma simples

denúncia de como o open source deturpa ou coopta o software livre; trata-se

sobretudo de entender como a ambiguidade funciona para os dois lados, tanto

para o open source quanto para o software livre, e quais limites este

funcionamento traz especificamente para cada um deles.

A confusão entre a mobilização dos conceitos de liberdade e abertura tem

sua maior expressão, sem dúvida, no termo FOSS, que, em suas diversas

variações, os unifica numa sigla só21. Esta confusão será descrita como condição

para a articulação inextrincável entre a expansão do software livre enquanto

movimento social e luta pela liberdade, e a expansão do open source enquanto

um modelo de produção e de negócios mais eficiente, pois mais ágil em seu modo

de gestão do trabalho de cooperação – redução dos custos transacionais da

produção, como aponta Yochai Benkler (2005).

Esta ambiguidade estrutural, que nutre um conflito imanente, informa o que

chamo de margem de contradição, e a analiso como um fator que impulsionou e

continua impulsionando tanto a evolução técnica de softwares que são open

source mas não são livres (favorecendo e permitindo sua aplicação em técnicas

de apropriação que, via espoliação ou precarização, se apropriam do trabalho

cooperativo das redes), quanto à propagação da filosofia política do software livre

através desses mesmos códigos (permitindo a elaboração e execução de

estratégias de liberdade que conseguem apreender e aproveitar as vantagens

técnicas mesmo quando produzidas em regimes voltados para a apropriação e

associadas a práticas de não-liberdade).

Trata-se, portanto, de um arranjo sócio-técnico complexo e peculiar que

21 A sigla FOSS é o acrônimo de Free and Open Source Software. Uma de suas variações incorpora um L, tornando-a FLOSS, numa alusão ao termo libre, de origem latina, para demarcar que o free significa livre e não grátis (um dos sentidos possíveis na língua inglesa). Outras variações colocam o L entre parênteses: F(L)OSS; ou inserem uma barra entre o F e o O para indicarem uma diferenciação entre os dois conceitos: F/OSS.

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pelo novo e diferente tipo de fisicalidade22 de sua fonte material, ou natureza

informacional de seu meio, permite que a propriedade se torne comum e que o

comum se torne propriedade sem que haja uma relação clara e evidente de

rivalidade. Fazendo emergir paisagens estranhas à percepção que desafiam

nossa capacidade de compreensão ao minarem alguns de nossos mais

importantes instrumentos teóricos e conceituais como, por exemplo, no caso das

técnicas de apropriação capitalista que prescindem de relações explícitas de

propriedade sobre os meios, e que, portanto, praticam apropriação sem

propriedade.

Por isso a opção metodológica de forjar um conceito que desse conta, ao

mesmo tempo, do contraste, da ambiguidade, da contradição e da confusão. Uma

vez que se busca o delineamento dos limites – nem sempre estáveis e evidentes –

entre as práticas de liberdade e as de apropriação. Daí, também, a ênfase, ao

longo da pesquisa, na perseguição de acontecimentos que indicam como os

conflitos são precipitados, evitados, contidos e resolvidos. E no questionamento

crítico da sinergia entre liberdade e apropriação capitalista via espoliação

(HARVEY, 2003).

A aplicação desse método e os delineamentos dos conflitos acompanhados

e perseguidos durante a pesquisa, apontam para disputas e choques em torno da

liberdade e da espoliação do comum. Ou seja, apontam para certos limites da

co-existência e da co-evolução entre as práticas de liberdade e as novas técnicas

de apropriação forjadas para, através de um capitalismo open source, viabilizarem

a apropriação realizada sobre as riquezas produzidas pelas redes de colaboração

a partir de seu modo específico de produção (BENKLER, 2005, 2006; BAUWENS,

22 A ideia de um novo e diferente tipo de fisicalidade foi originalmente proposta por Bruce Sterling (2004) para designar as novas modalidades de relacionamento possíveis entre humanos e objetos proporcionadas pelo cruzamento das tecnologias de processamento, armazenamento e transmissão de dados digitais – sobretudo pelo avanço do desenvolvimento e da adoção das tecnologias móveis e de mobilidade. Adrian Mackenzie (2006, p. 172) retoma essa ideia para destacar que o modo como o software é produzido, circula e é consumido, implica em uma certa perda de sentido desses termos e do próprio quadro (framework) de análise baseado na ideia de produção, circulação e consumo. Atividades cujas fronteiras estão cada vez mais borradas e difíceis de serem identificadas e delimitadas entre si.

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2007, 2008A, 2008B).

Estes conflitos, limites e seus limiares, encarnam aquilo que, como apontou

Konstantinos Karachalios (2010), pode ser caracterizado como a contradição

central da economia política da informação, cuja expressão mais precisa pode ser

encontrada no célebre aforisma cunhado por Stewart Brand em 1984: “A

informação quer ser livre. A informação também quer ser cara”23.

A primeira vez em que Brand apresentou este aforisma foi em uma histórica

conferência realizada em 1984 – Hackers' Conference24 –, cuja importância

consiste em ter sido uma das primeiras a reunir explicitamente, e sob essa

denominação, hackers. A versão completa, reproduzida a seguir, foi publicada

poucos anos depois em um livro sobre o Media Lab do MIT (1987: 202) :

A informação quer ser livre. A informação também quer ser cara. A informação quer ser livre, pois tem se tornado cada vez mais barata para que se distribua, copie e recombine – muito barata para ser medida. Ela quer ser cara, pois pode ser infinitamente valiosa para seu destinatário. Esta tensão não irá desaparecer. Ela leva a um violento e interminável debate sobre preço, copyright, propriedade intelectual, a retidão moral da distribuição casual, pois cada rodada de novos dispositivos torna a tensão ainda pior, não melhor25.

A tradução do termo free por livre pode gerar controvérsias neste caso,

pois, como o contraponto é feito a partir da afirmação de que a “informação

também quer ser cara”, pode-se argumentar que se trata da ideia de gratuidade e

não da ideia de liberdade. Opto pelo uso do termo livre nesta tradução pois o

23 Para uma interessante análise dessa questão, com referências para diversas apropriações e utilizações do aforisma de Stewart Brand, ver o arquivo digital organizado por Roger Clarke: http://www.rogerclarke.com/II/IWtbF.html .

24 Para informações complementares e referências específicas sobre essa conferência, consultar o ANEXO WK-14.

25 “Information wants to be free. Information also wants to be expensive. Information wants to be free because it has become so cheap to distribute, copy, and recombine - too cheap to meter. It wants to be expensive because it can be immeasurably valuable to the recipient. That tension will not go away. It leads to endless wrenching debate about price, copyright, 'intellectual property', the moral rightness of casual distribution, because each round of new devices makes the tension worse, not better.”

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considero mais adequado por ser mais abrangente. Contudo, é importante

destacar que os sentidos de livre e de gratuito não se anulam aqui, afinal a

gratuidade – a tendência à gratuidade (“too cheap to meter”) – aparece como um

importante vetor do devir de liberdade que o enunciado tenta caracterizar a partir

da imagem de um descontrole imanente à condição material da informação: “cada

vez mais barata para que se distribua, copie e recombine” por gerar produtos de

usufruto materialmente não-rival.

Este enunciado, apesar de muito difundido e conhecido, costuma ser

apresentado pela metade: apenas a sua primeira parte, que afirma que a

informação quer ser livre. Em sua composição completa, o enunciado expressa

um sentido mais complexo, pois demarca um conflito fundamental que não

aparece em sua versão encurtada, um conflito que se encontra no cerne do

funcionamento dos dispositivos de propriedade intelectual. É preciso destacar que

o esquecimento da parte que demarca e remete ao conflito, foi e continua sendo

muito útil para consolidar – num contexto em que as tecnologias digitais e a

própria arquitetura e infraestrutura física de comunicação da internet representam

justamente o contrário (Saravá, 2008) – a ideia de um certo potencial

democratizante intrínseco à internet, que seria realizado pelo acesso às

tecnologias de informação e comunicação, e que estaria fundamentado na

suposta impossibilidade de um controle estrito sobre a circulação da informação

digital.

Fazendo ver o jogo entre demarcação e esquecimento do principal conflito

que vêm embutido nas escolhas técnicas que eram, e continuam sendo,

apresentadas como as únicas possíveis e, ao mesmo tempo, as melhores

possíveis – o que adiciona um forte aspecto de irreversibilidade e inevitabilidade

no imperativo da adesão ao mundo das tecnologias digitais – o recurso ao

enunciado de Brand mostra-se ainda mais profícuo: expõe o limiar entre controle e

descontrole como uma característica inerente ao meio digital, ao qual os

dispositivos de propriedade intelectual se projetam com voracidade na tentativa de

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forjar novos modos de apropriação e de controle.

O fundamento básico dos diferentes regimes de propriedade intelectual, sua

própria razão de existência, é estimular a produção de invenções a partir da

garantia de que o conhecimento possa ser protegido em sua circulação de modo

que o autor ou o inventor seja recompensado por sua criação, permitindo assim

que o conhecimento seja compartilhado publicamente para que beneficie a

sociedade e, num sentido mais amplo, evolua enquanto conhecimento humano.

Contudo, mais do que um mecanismo de recompensa ou incentivo aos autores, ou

de disponibilização pública de conhecimento e de informação inovadora, as

experiências mais recentes permitem que vejamos como os dispositivos de

propriedade intelectual converteram-se em instrumentos de competição entre

empresas e de colonização de mercados.

A respeito das transformações no sistema de patentes, que não pode ser

confundido com os outros campos de aplicação dos dispositivos de propriedade

intelectual como, por exemplo, o dos direitos autorais, é interessante observar o

que afirma Paul David (2006, p. 66) :

Em alguns setores industriais, o rápido crescimento do volume de patenteamentos nos anos recentes reflete o crescimento do uso das patentes como ferramentas estratégicas para competição no mercado (business competition), não como uma fonte de informação sobre possibilidades inventivas, e nem mesmo como um meio de redução da incerteza de investimento na criação de conhecimento novo e comercialmente aplicável através da pesquisa científica e de engenharia26.

Acompanhando o restante de seu argumento, é fácil entender por que as

disputas contemporâneas envolvendo alegações de quebra de patentes serem

correntemente chamadas de “guerras de patentes”, ou, mais recentemente, de

26 “[I]n some industrial fields the rapidly growing volume of patenting in recent years reflects the rise in the use of patents as strategic tools in business competition, not as a source of information about inventive possibilities, and not even as a means of reducing the uncertainty of investing in creating new, commercially applicable knowledge through science and engineering research.

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“insanidade das patentes27” – diante do aumento assombroso do volume desse

tipo de disputa e do efeito negativo que vem exercendo sobre a produção de

inovações, cada vez mais dificultando-as ao invés de incentivá-las:

O impulso para esse crescente recurso ao patenteamento não é a abertura de um campo técnico mais rico para a inovação. Ao contrário, o impulso é defensivo – proteger posições de mercado existentes e fluxos de renda através da ameaça a possíveis candidatos a concorrente em uma lucrativa linha de negócios, aumentar os custos dos rivais existentes forçando-os a caros litígios, e proteger-se contra tais ameaças através da aquisição de um portfólio de patentes que represente uma aparente “capacidade de retaliação”. Estas estratégias ofensivas e contra-ofensivas de aplicação de direitos de monopólio garantidas através do sistema de patentes estão interligadas e se reforçam mutuamente, na medida em que a expectativa de ataques (e retaliação) induz a investimentos defensivos28.

É certo que no caso do open source há uma outra forma de resolver a

tensão entre o aumento do valor estratégico e a diminuição de custos para o

acesso e para a reprodução da informação. Em sua abordagem, a difusão e

reprodução da informação agregam valor a ela (Evangelista 2010b, p.5), e seus

modelos de negócios são construídos a partir de outros mecanismos, que

substituem a dependência do monopólio, do controle ou do acesso exclusivo à

informação pelo know-how associado à capacidade de coleta de dados, resolução

de problemas, processamento e agenciamento de informação29. No entanto, a

27 Um caso emblemático, é a recente vitória da APPLE na justiça americana contra a empresa coreana SAMSUNG, numa disputa pelo design de um smartphone, na qual a empresa coreana foi condenada a pagar mais de um bilhão de dólares como compensação para sua rival. Cf.: https://url.sarava.org/ZZ2 e também https://url.sarava.org/ZZ6 . Para dados complementares e uma coleção de links sobre o tema consultar: ANEXO WK-21.

28 “The impetus for this increasing resort to patenting is not the opening of a richer technical field for innovation. Rather, the impulse is a defensive one – protecting existing market positions and profit streams by threatening potential entrants to one‘s profitable lines of business, raising existing rivals‘ costs by forcing them into expensive litigation, and protecting oneself against such threats by acquiring a patent portfolio that represents an apparent “retaliatory capability“ These offensive and counter-offensive strategic deployments of monopoly rights granted under the patent system are interlocked and mutually reinforcing, inasmuch as the expectation of attack (and retaliation) induces defensive investments.”

29 É interessante destacar que Richard Buckminster Fuller (1984) ao pensar as transformações tecnológicas e geopolíticas que, desde o pós-guerra, e com maior intensidade no fim dos anos 1970, implicam no que

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tensão enunciada por Brand permanece e é no entendimento de suas implicações

que estamos interessados.

Como veremos, para que seja possível conciliar o open source com as

práticas da produção capitalista é sempre necessário fechar a produção em algum

momento. É preciso restringir o acesso e o compartilhamento do conhecimento em

alguma parte do processo de produção. Mesmo que não seja fechando

propriamente o código fonte, mas através de alguma obstrução como não

compartilhá-lo; ou atrasando esse compartilhamento, compartilhando somente

após um intervalo de tempo suficiente para garantir que a inovação tenha dado

algum retorno em termos de vantagem competitiva, ou de concentração de

mercado; ou, ainda, vinculando-o a uma tecnologia fechada e protegida por

patentes, ou a uma tecnologia de restrição de uso – como no caso dos DRM30.

A necessidade de se fechar alguma parte do processo para que seja

possível a apropriação capitalista, mesmo em suas experiências sintonizadas com

a flexibilização da propriedade intelectual, nos interessa por dois motivos.

Primeiro, pois indica que o livre acesso ao conhecimento se contrapõe à

acumulação do capital, uma vez que esta precisa necessariamente criar barreiras

artificiais a sua circulação para auferir renda ou lucro31. O compartilhamento é uma

chama de “transformação evolucionária mais difícil da história”, caracteriza este processo como uma espécie de ápice da sociedade industrial que resulta em sua passagem para uma sociedade em que o “estritamente metafísico 'know-how' tecnológico se tornou a propriedade mais rentável...”. Considero significativo que ele perceba nessa passagem a possibilidade de mudança e de superação do paradigma da killingry machine – onde todo o potencial da sociedade industrial é convertido em potência de morte – pelo paradigma da linvingry machine, onde o escopo é voltado para a produção de vida, no que, apesar de obviamente não ter se concretizado, possui uma interessante ressonância com os conceitos e práticas do buen-vivir sul-americano.

30 DRM são dispositivos digitais de restrição que atuam sobre o meio físico, limitando o funcionamento de aparelhos eletro-digitais. A sigla em inglês possui duas possíveis traduções: digital rights management, a oficial, empregado pelos defensores da possibilidade de apropriação privada da informação, responsáveis pelo desenvolvimento e aplicação destas tecnologias; e digital restrictions mechanisms, cunhada por aqueles que sentem os efeitos da aplicação destes dispositivos como perda de liberdade e restrição do acesso ao conhecimento humano. Para um aprofundamento desta discussão ver: http://www.defectivebydesign.org/ .

31 Esta formulação visa responder a uma questão colocada pelo Prof. Dr. Sérgio Amadeu da Silveira durante o exame de qualificação desta pesquisa (realizado em 28 novembro de 2011), para a qual sugeriu que eu respondesse precisamente: “A liberdade de acesso ao conhecimento se contrapõe à acumulação de capital?”.

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negação prática do cercamento que não se restringe simplesmente a uma

negação ou oposição formal ou política. O termo negação talvez seja mesmo

insuficiente, pois trata-se, antes, da afirmação de uma prática que é anterior ao

cercamento. Dessa forma, pode-se dizer que é o cercamento que se coloca em

oposição ao compartilhamento, e não o contrário.

Segundo, fornece uma chave para o entendimento da diferença que faz a

diferença entre os regimes de liberdade e abertura associados ao SL e ao OS.

Pois é na diferença do modo de lidar com essa realidade que reside o ponto chave

para o entendimento da diferença entre os regimes de liberdade e abertura, e,

mais importante, para o entendimento do papel operado por sua indiferenciação: a

articulação entre entre o avanço técnico de tecnologias que produzem e garantem

liberdades – estendíveis para além da questão tecnológica, associadas à criação

de uma nova concepção de comum que vai da informação à Terra e que é,

portanto, ecológica –, e sua co-existência com, e mesmo subsunção, a uma

tecnocracia que busca converter o comum em um novo tipo de propriedade, ou

conciliá-lo com novas formas de apropriação.

É nessa direção, no entendimento dessa articulação estranha, e na

problematização desse conflito imanente, que esperamos que essa Tese possa

trazer alguma contribuição.

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1.2 FAZENDO DO SOFTWARE LIVRE UM OBJETO PARA UMA SOCIOLOGIA DA TECOLOGIA

A realização dessa pesquisa foi marcada por uma espécie de encruzilhada

que parecia acompanhá-la em todos os momentos, tomando a forma de dilemas

práticos que sempre demandavam uma escolha entre: a observação e a

participação; a análise de um objeto e o engajamento em um processo; a prática

de pensamento individual e a prática de pensamento em rede – compartilhado e

realizado junto com outros; e, no limite, entre a trajetória profissional e a trajetória

pessoal do pesquisador – implicando em uma confusão entre o trabalho e a vida.

Os dilemas que todos esses cruzamentos ofereciam, implicavam sempre

numa questão de posicionamento e de escolha em relação à pesquisa e ao objeto

investigado. As escolhas feitas, como não poderia ser diferente, determinavam os

rumos e os desdobramentos do trabalho, implicando mudanças significativas em

seus objetivos originais, pois, em muitos casos, uma vez feita a escolha o caminho

era sem volta.

Além disso, um estudo sobre o SL e suas implicações políticas e sociais,

demandava um outro tipo de cruzamento, ou mesmo hibridismo, entre o

conhecimento técnico – aquele próprio da linguagem de funcionamento das

máquinas operadas pelos programas livres – e o conhecimento da teoria social.

Apesar dos cruzamentos apresentados no primeiro parágrafo afetarem

diretamente na própria trajetória e na evolução da pesquisa, este outro tipo

cruzamento, o do encontro com o conhecimento técnico, foi sempre o que trouxe

mais desafios. Arrisco mesmo a dizer que este seja o grande desafio enfrentado

por todos os estudos de Sociologia da Tecnologia.

O SL, apesar de sua popularização, ainda não é um objeto dócil para as

Ciências Sociais. A despeito do crescente número de pesquisas dedicadas ao

tema, da consolidação de grupos e redes de pesquisa dedicadas a estudos de

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ciência, tecnologia e informação, da criação dos chamados Software e Media

Studies nacionais, e mesmo diante da consolidação de um circuito/mercado de

produção cultural e de conhecimento conhecido como Cultura Digital, prevalece

ainda no Brasil uma certa percepção do SL como um objeto exótico, estranho.

Neste contexto, uma certa imagem de novidade acaba sendo super

explorada: uma ideia de novo que é, obviamente, repleta de facetas inovadoras e

de virtuosidades que, no entanto, parece que nunca se realizam. Na maioria das

vezes, consistem em novidades estrangeiras/importadas, oriundas das redes e

dos circuitos culturais euro-americanos, adaptadas à realidade local por atores

(artistas, pesquisadores, acadêmicos, produtores) que tem acesso privilegiado –

muitas vezes devido a um uso um tanto exacerbado de financiamento público – a

esses circuitos e redes externos.

Consequentemente, é comum ao pesquisador que se dedica ao tema ter de

recorrentemente explicar o que é o SL. Como se fosse sempre necessário partir

do grau zero de entendimento, sendo necessário retomar seu processo histórico

de criação, pontuar suas principais implicações técnicas e políticas – as mais

gerais, obviamente –, para que, somente após este percurso forçado e nem

sempre construtivo, seja possível apresentar alguma consideração específica,

problematização ou resultado de sua pesquisa. Na maioria das vezes, em

seminários, grupos de trabalho, reuniões acadêmicas e mesmo aulas, o curto

tempo reservado para as apresentações se esvai nesse tipo de introdução

forçada.

Uma consequência desse cenário é que prevalece uma certa aura de

novidade atrelada ao SL, que é facilmente transferível aos estudos dedicados ao

tema, que, independente de realmente merecerem, acabam por ser rotulados

como inovadores simplesmente por tratarem de um tema supostamente inovador.

Se esta situação é por um lado cômoda, por outro, é bastante improdutiva: o

pesquisador não precisa produzir um pensamento original, pois, muitas vezes, a

simples “tradução” de um ou outro acontecimento do “mundo da tecnologia” para a

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linguagem das ciências sociais já é o suficiente. Isto só funciona pois, a despeito

da crescente importância, irreversibilidade e mesmo dependência da mediação

tecnológica para a vida social na contemporaneidade, os cientistas sociais em

geral tendem a se acomodar facilmente atrás de enunciados do tipo: “não entendo

nada de tecnologia” e “este assunto é muito técnico”; para logo em seguida

voltarem a se dedicar a suas respectivas especialidades temáticas.

Esta situação informa um contexto no mínimo peculiar às Ciências Sociais:

os cientistas sociais (e não só os das novas gerações) vibram e aderem com

facilidade e entusiasmo às novidades tecnológicas, do iphone ao facebook,

enquanto consumidores, ao mesmo tempo que se recusam a pensar sobre elas –

obviamente há exceções (raras).

Acredito que sejam dois os fatores que favorecem tal disposição.

Primeiro, a relação histórica do Brasil como um território importador e

não-produtor de tecnologia. O que faz com que a tecnologia, percebida através do

signo da falta, seja considerada, por um lado, uma barreira ao desenvolvimento

nacional – diferença estruturante de nossa incapacidade estrutural de atingir os

mesmos níveis de desenvolvimento dos países centrais do capitalismo, nossas

antigas metrópoles – e, ao mesmo tempo, por mais contraditório que seja, como

única via para a superação do subdesenvolvimento. Esta relação implica numa

eterna corrida atrás dos padrões de inovações que vem de fora, e num

distanciamento entre conhecimento técnico e a cultura local, afinal, a técnica não é

objeto da produção, muito menos do pensamento, é objeto de consumo e de

distinção social.

Segundo, pelo distanciamento entre os saberes técnicos e filosóficos

decorrente da especialização e disciplinarização da produção de conhecimento

acadêmico e científico. Nesse sentido, a invenção do SL ao inaugurar um

meio/linguagem para a política vinculando técnica e política para contrariar os

pressupostos da propriedade sobre o conhecimento, contraria também algumas

propriedades do conhecimento, entre elas, um de seus fundamentos principais: a

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especialização do saber.

Outro aspecto que marcou profundamente a realização e o

desenvolvimento da pesquisa, decorreu do modo próprio como seu objeto se

constituía de maneira heterogênea, repleta de facetas, sujeita a variações bruscas

e em constante processo de transformação. O que demandou a construção de um

conjunto de práticas e, sobretudo, disposições específicas para para lidar com a

condição de instabilidade e, até certo ponto, imprevisibilidade proporcionada por

essa característica. Acontece que a pesquisa não lidava como uma realidade

definida e bem delimitada, mas com um processo histórico em pleno desabrochar,

cujo sentido era disputado intensamente. Um processo, portanto, aberto e em

evolução.

Além disso, o próprio contexto histórico aumentava a dificuldade de leitura e

delimitação do objeto. Refiro-me aqui às transformações no cenário geopolítico

decorridas da crise financeira iniciada no fim de 2008 e ainda não superada, que

ficou conhecida pelo sugestivo apelido de Meltdown – adotado por insuspeitos

meios de comunicação como o jornal The Financial Times. O meltdown aparece

como uma imagem que remete a intensa e brusca perda de valor dos mercados

financeiros à gravidade do colapso do reator de uma usina nuclear. E não deixa

dúvidas, ao associar a crise a um acidente nuclear, de que se trata de um

fenômeno de consequências drásticas e de certa forma irreversíveis32.

Este acontecimento, pela gravidade e pela abrangência de seus

desdobramentos, e por evidenciar uma incapacidade do sistema capitalista em

lidar, em seu núcleo central, com limites que ele próprio criou, indicava que a crise

não era apenas financeira, mas também cultural. Afinal, a crise do valor

32 O meltdown também pode ser uma alusão ao derretimento das geleiras do Ártico, numa relação com a crise climática e com o fato da crise ocorrer e afetar sobretudo os países do Norte, mas possuindo um efeito global e irreversível. Para um exemplo muito interessante desse tipo de relação, ver a campanha publicitária da empresa de bebidas Schweppes, que, através de uma fina ironia, ainda durante o calor dos acontecimentos, explorou-os satiricamente exibindo executivos em terno e gravada lutando para se manter em cima de blocos de gelo que derretem. Uma cópia do cartaz da campanha pode ser acessado em: https://cteme.sarava.org/Main/MeltDown .

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especulativo, ou a crise da capacidade de especulação do sistema financeiro,

também podia ser entendida como uma crise da capacidade de especulação do

sistema cultural que o sustentava. Crise da capacidade de interpretação do

movimento da história, assim como da capacidade de predição dos possíveis

desdobramentos deste movimento. Crise de pensamento, portanto33.

A virada geopolítica decorrente do meltdown iniciado em 2008, exigiu e

impôs uma mudança de perspectiva em relação ao entendimento da eficácia dos

dispositivos de propriedade intelectual que – como veremos com mais detalhes no

terceiro capítulo – até então eram tomados e apresentados como a estratégia e os

meios perfeitos para assegurarem a supremacia dos países do Norte com base

numa supremacia tecnológica. Uma supremacia que parecia inabalável, mas cujas

fragilidades e fraquezas foram violentamente reveladas e ficaram expostas pela

crise.

Isso não significa que os dispositivos de propriedade intelectual tenham

perdido de uma hora para outra toda sua importância e sua eficácia, ou deixado

de ocupar um papel central na dinâmica da acumulação capitalista e de

ordenamento do fluxo internacional de riquezas. Porém, significa que as

transformações na distribuição de poder ocasionada pela virada geopolítica

decorrente da crise – ou intensificada com a crise – alterou radicalmente a

capacidade de barganha dos países do Norte para a imposição desses

dispositivos em escala global como único instrumento possível para a mediação e

para a regulação da apropriação do conhecimento e da difusão tecnológica.

A título de exemplo, após a crise econômica, algumas empresas de

33 No ano de 2009, tive a oportunidade de trabalhar as implicações dessa formulação num esforço de pesquisa coletiva junto ao Grupo de Pesquisa CTEME/IFCH-UNICAMP, em um projeto chamado “Terra, Território e Tecnologia” que, a despeito de não ter originado nenhum produto, constituiu um importante experimento coletivo de pensamento (cf.: https://cteme.sarava.org/Main/EX-3T ). No ano seguinte, 2010, trabalhei, como assistente de curadoria de Laymert Garcia dos Santos e de Gilberto Gil, na concepção de um Seminário, financiado pelo Ministério da Cultura, intitulado “Onde estamos, para onde vamos: Fórum Internacional Geopolítica da Cultura e da Tecnologia”, realizado entre os dias 10 e 12 de novembro, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo-SP. O texto-conceito desse seminário e seu programa estão disponíveis no ANEXO WK- 15.

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investimento de risco – que desempenham papel fundamental para o

financiamento de novas tecnologias34 – passaram a exigir, como garantia para que

os objetivos de um projeto inovador por elas apoiado fossem atingidos, que parte

do trabalho de inovação fosse realizado na China, na Índia ou em algum outro

país emergente como Coreia do Sul, Cingapura, Rússia e até mesmo Brasil. O

que dá mostras de que a geografia da inovação havia evoluído, e já superava a

divisão internacional consolidada naquilo que se convencionou chamar de

globalização após o colapso do mundo bi-polar da Guerra Fria: a qual concentrava

o trabalho de criação intelectual ou imaterial no Norte, e a produção industrial suja

e de baixo valor agregado nos países periféricos. Essa inversão apontava, assim,

para uma nova disposição em que o trabalho de criação e de invenção passava a

ser realizado através das chamadas Redes Globais de Inovação (Karachalios e

Ernest, 2010).

Nessa direção é válido também citar a surpresa causada em abril de 2012,

durante evento sobre inovação35 realizado pela revista The Economist e pela

Universidade de Berkley, por uma entrevista realizada a um importante site sobre

tecnologia36, na qual o entrevistado afirmou que “a inovação real agora vem do

Sul”. Esta afirmação sinaliza que, dada a urgência da questão climática, a

democracia pode não ser o melhor ambiente para o fomento e a implementação

das invenções e inovações necessárias, já que estas demandam transformações

por vezes muito radicais, que são mais fáceis de serem executadas por Estados

com poder mais centralizado e que podem prescindir dos longos processos

públicos de aprovação e de convencimento da sociedade, ou de negociações e de

barganhas como o mercado.

34 O filme Capital de risco (título original: Nicht ohne Risiko; Alemanha, 2004, vídeo, cor, 50’), de Harum Farocki, é um material poderoso para a visualização do modus operandi desse tipo de empresa, e do tipo de relação de risco que está associada à comercialização e, por que não, especulação do valor de invenções e de inovações técnicas. No qual, ademais, o valor técnico é o que menos importa.

35 Cf. : http://www.economist.com/events-conferences/americas/innovation-2012/ 36 Cf.: “Keen On… Stewart Brand: How Real Innovation Is Now Coming From The South”

http://techcrunch.com/2012/04/02/keen-on-stewart-brand-how-real-innovation-is-now-coming-from-the-south-tctv/ .

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E as transformações ocorridas no plano geopolítico não se resumem às

transformações econômicas. O avanço de uma outra crise, muito mais grave em

seus possíveis efeitos – apesar de ter ficado um tanto ofuscada pela crise

financeira –, a crise ambiental ou climática, também implicou alterações no

espectro de entendimento sobre a atuação e a aplicação da propriedade

intelectual; e até mesmo, se quisermos radicalizar a percepção, sobre o próprio

futuro do sistema de propriedade intelectual.

A atual crise climática – vulgarmente conhecida como mudanças climáticas

– desafia a lógica do sistema de propriedade intelectual em sua eficácia. Tanto no

que concerne à produção de invenções quanto no que concerne à distribuição e à

difusão das invenções no campo que vem se chamando de tecnologias limpas –

tecnologias não poluentes, que revertem processos de poluição ou que

aproveitam melhor os recursos ambientais.

O que se passa é que caso sejam garantidos monopólios de exploração de

certas invenções e inovações técnicas – o que pode ocorrer sobre campos inteiros

de invenção técnica –, o tempo de gestação privada dessas invenções pode ser

maior do que o tempo necessário para colocar as invenções e as inovações em

prática, implicando um cenário de irreversibilidade para a crise climática. Por isso,

alguns analistas chegam a propor uma espécie de copyleft para as tecnologias

aplicadas à área ambiental, e também conclamam uma maior participação estatal

no financiamento e produção dessas tecnologias37. No que pode ser lido como

uma análise da incapacidade dos mercados produzirem por si só, e em seu

próprio ritmo, as invenções e as inovações que o momento do planeta demanda.

Se levarmos em conta a diferença que isto significa em relação ao modus

operandi do neoliberalismo, que até há poucos anos era apresentado como única

37 No artigo “How to change the global energy conversation”, publicado no dia 28 de novembro de 2010 na versão online do Wall Street Journal, Ted Nordhaus e Michael Shellenberger apresentam interessante reflexão sobre a relação entre o ritmo de desenvolvimento de tecnologias e os atuais dispositivos de propriedade intelectual, advogando a favor da uma modificação radical no direcionamento de sua aplicação (cf. : http://online.wsj.com/article/SB10001424052748704312504575618972157288244.html?mod=googlenews_wsj )

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chave possível para a interpretação da realidade, para organização econômica e

para gestão social, podemos avaliar a intensidade da virada política em questão,

que segue aberta.

Em meio a este cenário de grandes transformações econômicas e

geopolíticas, a temática do Software Livre incorporou uma dimensão ecológica,

pois seu modo de produção, de gestão e de difusão do conhecimento passa a ser

considerado como um modelo mais potente tanto para a aceleração do

desenvolvimento das invenções e das inovações necessárias, quanto para um

modelo de difusão de conhecimento e de tecnologia mais inteligente, justo e

adequado ao que emerge como uma demanda mundial. E que chega até mesmo

a ser tratada nos termos de uma demanda por um novo sistema econômico38.

De forma que, como consequência tanto da dinâmica de forças inerentes ao

software livre – o modo particular com que evoluiu enquanto tecnologia e

enquanto movimento social em relação às diferentes formas de apropriação e de

incorporação de sua lógica de produção e de seus produtos pelo mercado –,

quanto devido às importantes transformações históricas e políticas que informam o

contexto no qual esse processo de evolução ocorreu e está inserido, ao longo da

pesquisa, e principalmente em seu início, as atualizações do SL por vezes

surpreendiam pelas associações contraditórias que podiam ensejar. E, também,

pelos novos tipos de relações que podiam estabelecer, fazendo com que novos

elementos entrassem de maneira forçada no espectro de pesquisa, de certa forma

exigindo que também fossem considerados.

A primeira grande dificuldade era a de compartilhar do tempo de

transformação do objeto. Como se fosse preciso um esforço para se tornar

contemporâneo de seu tempo, ou de sua temporalidade, para conseguir

acompanhar suas transformações, que ocorriam de maneira acelerada. Esta

38 Nessa direção, o tema de um seminário apoiado pela Agência Ambiental Europeia, realizado em outubro de 2011 na Alemanha, é bastante sintomático: “Economic Crisis, Climate Change and National Debt: Do we need a Change in Politics or a Different Economic System?" cf. : http://www.eea.europa.eu/events/economic-crisis-climate-change-and

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dificuldade foi ficando nítida nas primeiras experiências de escrita realizadas a

partir do trabalho de pesquisa.

Nas primeiras ocasiões em que a formalização ou objetivação da pesquisa

foi exigida de maneira sistematizada tendo em vista mediações institucionais –

seleção para ingresso no Mestrado; solicitação de financiamento à FAPESP;

exame de qualificação; e passagem ao Doutorado –, experimentei uma inquietante

sensação de descompasso: os textos produzidos, a despeito de bem sucedidos

em relação a seus fins objetivos, logo após sua conclusão, pareciam obsoletos em

relação às novas conformações que o objeto recém descrito adquiria. Um

problema que se mostrava ainda mais grave e, justamente por isso, de

enfrentamento inadiável, uma vez que se propunha a problematização e o estudo

de um acontecimento contemporâneo e parecia que não se compartilhava de seu

tempo.

Esta dificuldade somente foi superada quando as características que

impunham problemas para a condução da pesquisa, e que, então, podiam ser

percebidas como problemas da pesquisa – ou seja, como uma incapacidade da

pesquisa –, passaram a ser tratadas como problemas de pesquisa. E,

consequentemente, a serem problematizados. Tornando-se os principais

materiais para investigação. Assim, para compartilhar da contemporaneidade do

objeto, de seu tempo de existência e de transformação – sua duração – a primeira

atitude, portanto, foi a conversão daquilo que parecia ser um limite da pesquisa –

e que, consequentemente, tornava evidente limites de percepção do pesquisador

– em ponto de partida para a investigação.

Esta importante passagem informou o deslocamento de perspectiva para

aquilo que parecia instável e que se transformava; para as zonas em que o

entendimento não era óbvio; para as situações que articulavam realidades que

escapavam ao sentido das estruturas lógicas já constituídas e a partir das quais o

pensamento se projetava. Foi assim que tentei forjar o que chamei do método de

perseguição: uma investigação etnográfica que partia de situações reais e que

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seguia rastros dos acontecimentos que, demarcando um antes e um depois em

relação à evolução de um processo ou de uma relação, traziam novos elementos

à composição dos problemas investigados e do campo de investigação. A

elaboração deste método remete ao procedimento que precisou ser constituído

para que fosse possível acompanhar o processo de individuação do objeto da

pesquisa; e correspondia também a uma apropriação bastante livre da proposta

de Filosofia de Ocasião, tal como elaborada por Günther Anders (2010), adaptada

para informar uma Sociologia de Ocasião a serviço de uma Sociologia da

Tecnologia.

É certo que há muitas diferenças entra as preocupações e mesmo

problemas com os quais o filósofo procurava lidar e aqueles que eram o objeto

desta pesquisa. Assim como, em relação ao contexto e à própria ocasião na qual e

sobre a qual o pensamento dele se projetava. E, ainda, entre o escopo e a prática

da Filosofia e da Sociologia. No entanto, sua formulação sobre o método – “algo

que, à primeira vista deverá parecer uma monstruosidade, um híbrido entre a

metafísica e o jornalismo” (p. 22) – empregado para tentar superar “a

incapacidade de nossa alma de permanecer up to date, atualizada com a nossa

produção” (p. 30), me parecia um tanto útil na minha tentativa de conciliar o

movimento do pensamento com tempo dos acontecimentos contemporâneos a

ele. Ou seja, na tentativa de superar a obsolescência do próprio pensamento em

relação àquilo que se propunha a pensar.

Anders estava preocupado em superar o que chama de “desnível

prometéico, a crescente a-sincronização entre o homem e o mundo de seus

produtos” (p. 30). Estava preocupado sobretudo em fazer sentido diante de uma

realidade que se transformava de maneira acelerada. De forma que as

idiossincrasias e rigores disciplinares importavam menos do que o efeito que o

pensamento de sua filosofia de ocasião poderia produzir na direção de seus

objetivos. E, a respeito da indagação sobre se o que faz é ou não filosofia,

apresenta uma definição ao mesmo tempo simples e potente, que de certa forma

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encarna a monstruosidade de seu método:

Não importa muito se o tomate é considerado “fruta” ou “legume”, já que, de todo modo, é um alimento. Quem verdadeiramente faz filosofia persiste em sua obra mesmo quando, num momento de seu trabalho, não sabe mais se já ultrapassou a fronteira determinada para sua especificidade particular (…) Mas, por isso mesmo, parece-lhe inútil se dedicar a considerações de principio que determinem se esta ou aquela observação ainda tem ou não validade como “filosofia” e para qual autor. As próprias coisas são determinantes. (…) O que importa é somente o que se leva para a casa depois do excursus, do percurso. Se serve como alimento ou não. (p. 28)

O encontro com a proposição de Anders consolidou a intuição de que a

pesquisa deveria ser conduzida entorno dos próprios desdobramentos de seu

objeto, e na busca por acontecimentos que tornavam visíveis os conflitos e

contradições que desafiavam o entendimento já estabelecido a respeito das

relações de força que o estruturavam. Além disso, fornecia uma boa maneira de

resolver o problema da mobilização de fontes e de referências oriundas não

apenas de distintas áreas do conhecimento, como também de distintas naturezas

– como narrativas e textos jornalísticos, corporativos, militantes e, também,

daqueles produzidos para blogs, listas de e-mail e outras plataformas de

publicação e de compartilhamento na internet. Afinal, mais do que uma coerência

disciplinar do saber institucional, o importante era que “tivesse nutrientes”, no

caso, que as formulações sociológicas ajudassem na compreensão da natureza

das transformações em curso, que tornassem os processo estudados inteligíveis.

Devido ao grau acelerado das mudanças e das variações do objeto, e da

necessidade de ir atrás dos dados, seguindo seus desdobramentos, indícios e as

tendências que anunciavam, a investigação se assemelhava a uma perseguição.

Afinal, era preciso, por exemplo, seguir rastros apontados em blog; ou um link

compartilhado em um comentário a um texto; se inscrever em listas de e-mail e

fóruns de comunidades de colaboração; ou mesmo ter de acompanhar trajetórias

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profissionais de algumas pessoas, que, muitas vezes, se confundiam com suas

trajetórias pessoais. Enfim, a escolha do termo perseguição derivava, portanto, do

interesse de enfatizar o aspecto de ir atrás do sentido dos processos que se

buscava o entendimento, assim como, da necessidade de ter que se embrenhar

por terrenos improváveis e aparentemente completamente disparatados daquele

de que deveria ser o campo da pesquisa. E de fazer isso com agilidade, sob o

risco de que o entendimento se tornasse obsoleto antes mesmo que pudesse

informar o próximo passo a ser dado ou a direção que a pesquisa deveria seguir.

O primeiro acontecimento a disparar um processo de perseguição, foi o

anúncio de um acordo de cooperação para interoperabilidade entre os sistemas

operacionais Windows e GNU/Linux39 assinado por duas empresas. Em

novembro de 2006, a MICROSOFT assinou um acordo de cooperação com uma

das maiores e mais importantes empresas desenvolvedoras de software de código

fonte aberto, a NOVELL40, estabelecendo cooperação em dois níveis: no campo

da propriedade intelectual, liberando entre si algumas patentes e licenças de seus

produtos para, no campo do desenvolvimento, trabalharem juntas na

interoperabilidade dos dois sistemas operacionais que até hoje rivalizavam

politicamente.

A justificativa era a demanda de clientes de ambas empresas, que

desejavam maior interação entre os dois sistemas operacionais e entre seus

respectivos aplicativos. Tal acordo foi anunciado como uma nova era, já que a

formalização dessa colaboração atestava que a MICROSOFT estava aderindo ao

Linux. O que era motivo de comemoração – pelo menos a NOVELL comemorava

–, pois, como dizia na ocasião uma carta aberta assinada conjuntamente pelas

duas empresas para anunciar o acordo41: “a Microsoft está afirmando que o Linux

39 Um conjunto de links para reportagens sobre esse acordo, bem como textos em blogs e outras formas de intervenção que repercutem o sentido político desse acordo, estão reunidos no Anexo WK-12.

40 Cf.: http://www.novell.com/home/ .41 Carta conjunta da Novell e da Microsoft para a comunidade Open Source :

http://www.microsoft.com/about/legal/en/us/IntellectualProperty/IPLicensing/customercovenant/msnovellcollab/open_letter.aspx . No dia 10 de maio de 2007, foi publicada a informação de que a Microsoft

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é uma parte importante da infra-estrutura de TI [tecnologia da informação]42”.

Este acontecimento, estranho à primeira vista, ressoava com as

inquietações que derivavam da sensação de descompasso entre a reflexão

sociológica e a evolução da realidade do objeto investigado. Por isso, seus

elementos forneciam uma via para superar o que parecia limitar a reflexão. E para

explicar essa articulação, é necessário retomar alguns aspectos da trajetória

dessa pesquisa iniciada em 2005 como uma pesquisa de Mestrado, que passou a

contar com apoio da FAPESP no final de 2006, foi convertida em pesquisa de

Doutorado, após exame de qualificação, em agosto de 2007, e teve seu

financiamento renovado pela FAPESP, na modalidade de Doutorado Direto, em

novembro de 2008.

No início, meu principal interesse era o de explorar o sentido das

implicações técnicas e das possibilidades políticas da liberdade proposta e

inaugurada pelo Software Livre. Basicamente, percebia dois aspectos ou

dimensões principais dessa questão:

Havia um aspecto dessa liberdade possível de ser percebido e

experimentado na própria relação com a tecnologia, ou seja, na relação de uso

com computadores e com outros objetos técnicos que podiam ser programados e

utilizados a partir do software livre. Sendo várias as implicações políticas dessa

outra relação de uso: privacidade/controle sobre dados processados;

conhecimento sobre os processos que a máquina executava; um interessante

ciclo de aprendizagem disparado pela necessidade de fazer funcionar e de

correção de erros e de falhas; e a possibilidade do estabelecimento de relações de

também negociava acordos para o desenvolvimento de interoperabilidade com a RedHat, outra empresa gigante do ramo do Open Source, mas que esta reagia de uma outra maneira: http://www.noticiaslinux.com.br/nl1179105308.html . Em julho de 2011, o acordo entre MICROSOFT E NOVELL foi renovado por mais 4 anos, numa extensão de 100 milhões de dólares, que atende a uma forte resposta por parte dos clientes: https://www.suse.com/company/press/2011/7/microsoft-and-suse-renew-successful-interoperability-agreement.html .

42 Interessante pensar o poder e o papel de afirmação da realidade conferido à Microsoft (uma corporação), no que remete à tese de Michel Foucault (2004) sobre o mercado como instância máxima de veridicção – definidor do que é verdadeiro e real.

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vizinhança e de cooperação com outros usuários para aprender a usar e a manter

o sistema funcionando.

E havia também, compondo as dimensões principais dessa questão, um

aspecto de resistência às políticas de propriedade intelectual, ou mesmo de

re-existência – para tomar emprestada a subversão conceitual operada por Félix

Guattari (1995) para liberar o conceito de resistência de sua carga de negação, e

destacar o aspecto de criação de novos modos de existência e de novas práticas

sociais – que ficavam evidente através da abertura do código ao invés do

segredo/fechamento do software proprietário, e do compartilhamento do

conhecimento que informava a constituição de um meio comum que evoluía sob

outra lógica e outra direção ao invés da apropriação exclusiva e privatista.

Inicialmente, então, prevalecia uma percepção de que o software livre

constituía-se como uma prática tecnológica menor e marginal que contrariava a

lógica capitalista ao subverter o sentido e a prática da propriedade intelectual.

Sendo esta a raiz de seu potencial político e também de seu diferencial e de suas

vantagens técnicas.

Contudo, a partir de 2006/2007 essa chave interpretativa, sem perder esse

seu sentido original, paradoxalmente, passou a não fazer mais muito sentido.

Apesar dos potenciais de liberdade citados acima continuarem a ser observáveis

e, sobretudo, praticados e experimentados, parecia não ser mais possível estudar

o fenômeno do software livre sem levar em conta que cada vez mais ele atingia

sucesso comercial e, principalmente, industrial. De forma que era necessário

também perguntar: como podia um regime de apropriação aberto e compartilhado

fornecer um novo modelo de produção de valor para o capitalismo informacional?

Quais implicações e consequências para essa forma de liberdade de sua

conversão em mercado, e em matéria-prima e meio de produção para o mercado?

A universidade, nas atividades do Programa de Pós-Graduação em

Sociologia, foi um interessante laboratório para o tratamento sociológico dessa

questão. Na interlocução tanto com colegas quanto com professores, foi possível

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notar uma certa dificuldade em entender e mesmo em aceitar outras formas de

entendimento para a suposta sinergia entre software livre e capitalismo que não

através da chave do aumento da mais-valia relativa – como o software livre exime

o pagamento de licenças de uso, implica na diminuição dos custos da produção.

Sendo essa a raiz do interesse do mercado.

Nessa época, as experiências de empresas como IBM e Sun Microsystems

estavam mais do que consolidadas. Já fazia anos que haviam criado um potente

modelo de venda de serviços associados a softwares que tinham seus códigos

fontes disponibilizados livremente e que eram capazes de incorporar melhorias

produzidas pelos usuários, ou de desenvolvê-las a partir de feedbacks fornecidos

pelos usuários. Assim como já haviam entendido há muito tempo que era certo o

retorno no investimento do desenvolvimento do kernel43 Linux como um

investimento na expansão de um ecossistema open source. Seja através de

doações à Linux Foundation e a outras fundações responsáveis pelo

desenvolvimento comunitário de aplicativos e de plataformas, ou alocando

funcionários diretamente no desenvolvimento de partes do kernel44.

Contudo, apesar desse esquema de produção e desse tipo de relação não

perder sua força e, ao contrário, continuar evoluindo e ganhando cada vez mais

importância, havia algo de novo: um novo tipo de relacionamento e de interesse

do mercado sobre o software livre e sobre a dinâmica imanente a suas redes de

produção compartilhada e colaborativa. E esse novo sentido, difícil de ser

agarrado pela pesquisa sociológica, parecia escapar até mesmo à percepção de

programadores e de ativistas vinculados ao movimento.

43 Kernel em inglês significa núcleo, e sua definição mais comum é a de componente principal do sistema operacional de um computador. Trata-se da estrutura que conecta a execução dos aplicativos e processamento real de dados, e que gerencia os recursos do sistema. É apresentado também como a ponte entre o hardware e o software.

44 Um interessante exemplo do sucesso da relação entre grandes empresas e o softwre livre pode ser visto na tabela apresentada por Yochai Benkler (2005, p.72), republicada aqui como a FIGURA 4, que apresenta a evolução do lucro da IBM a partir de seus produtos open source, comparando-os com as receitas advindas de royalties de propriedade intelectual no ano de 2002.

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Entre 2004 e 2006, através da realização de uma certa etnografia45 entre

programadores ativistas e simpatizantes do software livre da UNICAMP, que se

articulavam em torno de grupos e redes de difusão do uso de software livre e de

sua filosofia46, pude notar que entre eles – com raríssimas e pontuais exceções –

a aproximação/incorporação do software livre pelo mercado e pela indústria não

era percebida como contraditória. Talvez até pelo fato de todos ali além de serem

ativistas também se considerem profissionais ou, mesmo que ainda sendo

estudantes, almejassem a profissionalização e, por isso, já operavam

antecipadamente sob uma lógica profissional. Dessa forma, viam com bons olhos

a possibilidade de encontrarem empregos sem ter que abandonar sua ideologia

de liberdade.

Mesmo os ativistas mais politizados, aqueles que se filiavam à FSF, por

exemplo, e possuíam um discurso muito afinado com seus evangelizadores47,

costumavam afirmar como benéfica a aproximação com o mercado e a

incorporação do software livre no mundo dos negócios. O entendimento era que

empresas produzindo software livre expandiam o universo do software livre, pois o

resultado da produção implicava em mais código livre disponível para a

comunidade e, além disso, a opção de empresas por negócios baseados em

45 Relativizo a utilização do termo etnografia, pois os dados trabalhados aqui não foram produzidos através de atividades realizadas de maneira muito sistematizada, estruturada, nem totalmente informada aos interlocutores. Contudo, os dados foram produzidos a partir de experiências em que participei ao lado dos interlocutores, ou a partir de atividades públicas que acompanhei. Em alguns casos, os dados referem-se a uma interlocução que se aproveita de relações de amizade e da convivência proporcionadas pela vida universitária; em outros, da minha participação no próprio movimento a favor da adoção do software livre na UNICAMP e também em movimentos sociais que se relacionavam com essa temática, como o de Rádio Livre e o de Cultura Digital. Nesse sentido, minha participação na Rádio Muda (cf.: http://muda.radiolivre.org ), uma rádio livre localizada há quase 30 anos no campus da UNICAMP, proporcionou encontros valiosos, pois se tratava de um movimento conexo ao do SL, para o qual convergiam ativistas do software livre que demonstravam interesse em explorar as dimensões políticas para além das questões estritamente tecnológicas.

46 Refiro-me aqui ao Grupo Pró-Software Livre que, na época citada, era bastante ativo no fomento da adoção de software livre por parte das unidades da UNICAMP, realizando diversas atividades de formação aberta, com forte enfase nos aspectos filosóficos do software livre. Atualmente, apesar da mudança quase que completa de seus integrantes em relação ao período ao qual me refiro, este grupo continua ativo: http://www.students.ic.unicamp.br/~gpsl/wiki/index.php/Main/Contato .

47 Cf. : http://www.gnu.org/people/speakers.en.html .

71

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software livre legitimava o movimento como um todo, inclusive incentivado que

mais programadores aderissem ao movimento.

Esse tipo de posicionamento era compartilhado até mesmo por Richard

Stallman, como pude conferir em sua passagem pela UNICAMP em 2009 para a

realização de uma conferência48. Em uma fala de apresentação a essa

conferência ocorreu um fato um tanto sintomático: um dos patrocinadores do

evento – um ex-aluno, que participava ativamente do grupo/rede que citei

anteriormente e que hoje é sócio de uma importante empresa de sistemas

embarcados49 – fez questão de destacar a importância de se optar no mercado de

trabalho por empresas que baseiam seus modelos de negócio no desenvolvimento

de software livre. E encerrou sua breve intervenção instando os estudantes

interessados em estágios a procurá-lo ao fim da conferência. Esta fala na

apresentação de uma conferência sobre as relações entre o movimento software

livre e o sistema operacional GNU/Linux, a ser proferida pelo criador do conceito e

do movimento software livre, foi recebido com naturalidade, causando apenas

reações favoráveis ou, no máximo, de indiferença em uma plateia de mais de 300

pessoas que lotavam dois auditórios do Centro de Convenções da UNICAMP.

Ao mesmo tempo em que ideia de que o aproveitamento econômico por

parte do mercado trazia, em contrapartida, benefícios para a comunidade era

bastante difundida e aceita pelos programadores e pelos ativistas, e pouco

problematizada pelos sociólogos, no período em que acompanhei e participei das

atividades e das discussões desse grupo da UNICAMP, e também de outros

grupos e redes50, percebi que os programadores que mais se destacavam como

48 A convite da Professora Islene Garcia, do Instituto de Computação, Richard Stallman realizou uma conferência no dia 22 de junho de 2009: http://www.ic.unicamp.br/~islene/mc039/stallman.html . Nessa ocasião, junto com Rafael Diniz e Paulo Tavares realizei a transmissão da conferência pela internet via streaming (Cf. http://orelha.radiolivre.org ). Além disso, tive a oportunidade de hospedar Stallman em minha casa, de colaborar com a programação de sua agenda de atividades na cidade de Campinas, e de realizar uma entrevista de quase 2 horas de duração na Rádio Muda. Alguns materiais produzidos nessa ocasião estão disponíveis no Arquivo “Stallman em CPS 2009” e no ANEXO WK-11.

49 Cf. http://profusion.mobi/ .50 Aqui, refiro-me ao trabalho realizado entre 2004 e 2006, para o Ministério da Cultura, integrando uma

equipe de pesquisadores responsável por pensar e por implementar ações de Cultura Digital junto ao

72

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articuladores dessas redes, destacavam-se em função não só de suas habilidades

de programação (fator de fato mais importante), mas também de suas habilidades

de articulação em rede e de mobilização de redes. No caso dos ativistas da

UNICAMP, era interessante notar que, invariavelmente, acabavam sendo

contratados por grandes empresas como IBM51, RedHat e NOKIA.

O fluxo de alguns desses programadores para o Instituto Nokia de

Tecnologia (INdT) de Recife-PE, um centro de desenvolvimento de inovação da

Nokia que possui outras 3 sedes no Brasil – Manaus (a principal), São Paulo e

Brasília (sendo esta última voltada exclusivamente para articulação política) –

chamou minha atenção. Fiquei interessado em saber o que levava a NOKIA, na

ocasião líder mundial no mercado de tecnologias móveis e de mobilidade, a se

interessar pelo open source. Seguindo este interesse, passei a buscar as

conexões entre esta empresa e projetos open source com os quais ela se

vinculava ou se aproximava.

Neste momento, percebi que para acompanhar aquilo que buscava, não

seria possível focar a pesquisa em um local, como, por exemplo, o INdT.

Tampouco no acompanhamento da trajetória de um programador ou de um grupo

de programadores. Afinal, foi ficando claro que seria justamente no

acompanhamento da composição de redes a partir do delineamento das conexões

entre empresa, projetos e comunidades open source que eu conseguiria entender

o que ocorria de novo. Traçando e seguindo a composição dessas redes cheguei

projeto dos Pontos de Cultura (cf.: http://www.cultura.gov.br/culturaviva/category/cultura-e-cidadania/cultura-digital/). Nessa ocasião, fiquei responsável pela coordenação da pesquisa e da implementação de nossas ações juntos aos Pontos de Cultura da região Norte do país, liderando uma equipe de 5 pessoas. Para uma descrição da formação dessa rede, que em seus primórdios era chamada de “Articuladores”, ver o item “Formando um grupo de articuladores” em (FREIRE, FOINA & FONSECA, 2005). Para um histórico das atividades da Ação de Cultura Digital do Ministério da Cultura na região Norte, ver o item 5.12.2. do Produto I – Remix da Cultura Digital (2009, p. 305).

51 Em 2003 a IBM instalou o Linux Technology Center (LTC), um laboratório para o desenvolvimento de software livre dentro da universidade, Cf.: http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/centro-de-tecnologia-linux-da-ibm-ser%C3%A1-montado-no-ic-0 .

73

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até a comunidade Maemo52. E a partir da relação entre a empresa e esta

comunidade começou a ser possível delinear o que se passava e, sobretudo, a

identificar tendências que poderiam apontar a direção para onde esse tipo de

relação evoluiria ou para quais direções possuía potencial para evoluir.

Pude perceber, então, que o interesse da empresa não se resumia à

incorporação do software livre para redução de custos da produção, nem ao

modelo de venda de serviços associados. Havia algo de novo, e era o modo como

o software livre era incorporado na área de criação, numa experiência voltada para

a aceleração do processo de inovação. Ademais, os esforços de produção open

source da NOKIA se direcionavam para áreas que emergiam como estratégicas,

como no desenvolvimento de serviços, de aplicativos e de interfaces para

sistemas embarcados. Tecnologias que estavam diretamente relacionadas com

um novo mercado que na ocasião se abria ou, talvez seja mais preciso dizer,

estourava: o dos smartphones. No qual apareciam fortes concorrentes, que

traziam importantes inovações provenientes de outras campos de produção e de

outros seguimentos do mercado.

Em suma, o interesse da NOKIA se projetava sobre as redes abertas de

colaboração pois estas desenvolviam inovação com mais velocidade do que redes

fechadas. Além disso, a colaboração com uma comunidade estava sendo

estabelecida para o desenvolvimento de novos produtos e num arranjo de

produção em que a empresa entregava à comunidade o controle da produção e

abria mão da propriedade sobre o código produzido.

Passei então a seguir essa trilha e a acompanhar as estratégias utilizadas

para mobilizar e gerir redes de colaboração, seja para selecionar desenvolvedores

para serem contratados ou para retribuir ou estimular contribuições voluntárias,

em um arranjo que era open source até certo ponto, pois combinava

desenvolvimento compartilhado e segredo, tecnologias abertas e fechadas, e que

parecia informar um novo modelo de apropriação de trabalho, e até mesmo de um

52 Cf.: http://maemo.org/intro/ .

74

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novo tipo de trabalho: realizado em rede e de forma dividual.

Em janeiro de 2008, me deparei com um outro acontecimento que

amplificava a problematização, e confirmava a proficuidade daquilo que havia sido

selecionado como objeto de investigação ainda sob a forma de tendência: a

aquisição da TROLLTECH pela NOKIA, num negócio de aproximadamente 155

milhões de dólares53. A TROLLTECH, uma empresa norueguesa, era responsável

pelo desenvolvimento da tecnologia Qt, um poderoso framework multiplataforma

muito utilizado para o desenvolvimento de interfaces gráficas, facilmente

adaptáveis a diferentes plataformas que, através de seu licenciamento duplo (dual

license)54, era incorporado em dispositivos de diferentes fabricantes. Devido as

vantagens técnicas oferecidas – portabilidade para diferentes plataformas sem a

necessidade de reescrever o código – era considerada uma tecnologia chave

dentro do campo das tecnologias móveis, e também para o sucesso do open

source nessa indústria.

A concretização desse negócio demarcava uma radicalização na opção da

NOKIA pelo open source, e fazia ver de que maneira o open source também podia

ser incorporado nas estratégias de competição de uma empresa global. Muitas

das primeiras reações ao anúncio do negócio, indagavam se tratar de um

movimento para enfraquecer competidores que usam a tecnologia Qt,

especialmente a Motorola55 – que na época era um dos grandes concorrentes no

53 Um conjunto de links que informam e abordam a realização desse negócio, bem como repercutem seu sentido, pode ser acessado através do ANEXO WK-13.

54 O licenciamento duplo a partir de licenças livres é uma estratégia de licenciamento possível quando uma entidade ou indivíduo é proprietário integral do copyright. Neste arranjo, além de lançar uma versão livre, regulada pela GPL, por exemplo, como é o caso da plataforma Qt, é lançada uma versão do mesmo código sob uma licença comercial, proprietária. Assim, o indivíduo ou empresa interessado em desenvolver alguma derivação desse código, e que não quiser compartilhar suas criações nos termos da licença aberta, pode comprar a licença comercial, e publicar sua versão numa licença proprietária. Uma explicação ao mesmo tempo simples e didática pode ser encontrada no texto “Dual-licensing as a business model”, de Elena Blanco disponível em: http://www.oss-atch.ac.uk/resources/duallicence2 . A página da Wikipédia em inglês sobre multi-licenciamento traz uma valiosa relação de referências sobre este modo de licenciamento, Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Multi-licensing .

55 Vide comentários 4, 9 e 12 para o texto “Gnomes, trolls and the maemo lands”, publicado, um dia após o anúncio da aquisição da TROLLTECH, em blog mantido por um então funcionário da NOKIA que se

75

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mercado. Ou para permitir negociações com empresas que não rivalizavam

diretamente, mas desenvolviam tecnologias e aplicativos de interesse da NOKIA,

como era o caso da ADOBE, SKYPE e GOOGLE.

Por parte da comunidade do software livre, houve uma preocupação de que

a manobra implicasse no fim do licenciamento aberto, numa espécie de

colonização que se apropriaria de tudo aquilo que fora desenvolvido

coletivamente, podendo ainda ter como consequência tanto a suspensão do

desenvolvimento aberto, ou a realização de um certo tipo de sabotagem, através

de alterações no código para torná-lo ineficiente e prejudicar os concorrentes que

o utilizavam.

Interessante notar que desde o anúncio que tornou público o interesse na

realização da aquisição56, a NOKIA se esforçava para afastar esse tipo de

possibilidade. Para deixar claro que o desenvolvimento open source da tecnologia

Qt era considerado estratégico, lançou uma carta aberta para comunidade57,

através da qual se comprometia em manter o licenciamento aberto e em se tornar

um patrocinador do projeto KDE58, um importante projeto que baseava seu

desenvolvimento na tecnologia Qt.

Continuei acompanhando as evoluções da relação entre a comunidade

Maemo e a NOKIA, e também da linhagem tecnológica que se baseava na

tecnologia produzida conjuntamente59. As mudanças foram várias:

Em 2010, o projeto Maemo se fundiu com o projeto Moblin, que era

dedicava, entre outras atribuições, a fazer a interface e a mediação entre empresa e comunidade, apresentando-se como um amante da liberdade e advogado do open source: http://flors.wordpress.com/2008/01/29/gnomes-trolls-and-the-maemo-lands/ .

56 Apesar do anúncio da aquisição ter sido realizado em janeiro, o negócio só foi completado em junho, após a aprovação pelas instituições econômicas europeias que regulam transações desse tipo.

57 Esta carta intitulava-se “Open letter to KDE and the Open Source community - Joint announcement” e não se encontra mais disponível no site da NOKIA nem da DIGIA (empresa que atualmente é proprietária e responsável pelo desenvolvimento da tecnologia Qt, para onde apontam os antigos links do site da TROLLTECH). No entanto, é possível acessar essa carta através de um site australiano que reúne fóruns sobre tecnologia e internet: http://forums.whirlpool.net.au/archive/907457 .

58 Cf.: http://www.kde.org/ .59 Sobretudo os três últimos exemplares da chamada Nseries: N900, N950 e N9. Cf.:

http://en.wikipedia.org/wiki/Nokia_Nseries .

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coordenado pela Linux Foundation e pela INTEL, dando origem ao projeto

MeeGo60 que, por sua vez, reunia uma nova comunidade. Em 2011, após o

lançamento comercial do primeiro dispositivo baseado na plataforma MeeGo, e a

despeito da excelente receptividade obtida – sobretudo entre críticos, estudiosos e

técnicos –, a NOKIA, em meio ao agravamento de sua perda de mercado para a

SAMSUNG, sobretudo devido ao sucesso da plataforma Android do GOOGLE, e

para o iPhone da APPLE, abandonou seu desenvolvimento.

Nesse momento, sob coordenação da Linux Foundation, foi criado o projeto

Tizen61, contando com apoio de importantes fabricantes de dispositivos como a

SAMSUNG, que passou a buscar alternativas para sua dependência em relação

ao sistema Android. Este projeto aproveitava o legado do projeto MeeGo, e

propunha a sua continuação sob nova direção.

Com o intuito de estabelecer uma estrutura de colaboração mais propensa

a funcionar de baixo para cima, numa tentativa clara de superar aquilo que era

avaliado como um excesso de dependência que havia em relação à NOKIA,

também foi criado o projeto o MER62 que, a seu modo, também continuava o

legado do projeto MeeGo.

Em 2012, diante da eminente extinção de toda a divisão de

desenvolvimento MeeGo na NOKIA, e também da divisão que se dedicava ao

desenvolvimento da tecnologia Qt – que havia sido vendida, sem a revelação do

valor do negócio, para outra empresa finlandesa, a DIGIA –, alguns funcionários

se uniram e criaram uma startup chamada JOLLA63.

Esta empresa ainda prepara o lançamento de seus primeiros produtos, mas

já causa um certo alvoroço no mercado e grandes expectativas na comunidade

com o lançamento de seu sistema operacional, o Sailfish64. Com desenvolvimento

60 Cf.: https://meego.com/ .61 Cf.: https://www.tizen.org/ .62 Cf.: http://merproject.org/ .63 Cf.: http://jolla.com/ .64 O lançamento foi realizado no dia 21 de novembro de 2012 e pode ser visto, na íntegra, através de um

vídeo postado na página principal de seu site, o qual possui uma interessante característica: não possuí

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baseado na Finlândia, mas com a divisão da operação econômica baseada em

Hong Kong, já é possível ver, nessa experiência recente, alguns desdobramentos

do que acima chamamos de virada geopolítica. Principalmente da importância do

mercado chinês, para o qual praticamente voltam-se todas as expectativas de

negócios, produção física e de captação de recursos da JOLLA.

Ao longo dos anos de 2008 e 2009, realizei a pesquisa sobre o modo de

relacionamento da NOKIA com a comunidade MAEMO, que é apresentada no

terceiro capítulo. Nos anos seguintes, acompanhei a evolução dessa relação e do

sucesso comercial dos produtos desenvolvidos, sempre com a expectativa de ver

se um produto que incorporou radicalmente o open source como metodologia de

produção seria competitivo ou mesmo se venceria a competição no mercado.

Não foi esse o caso. Até porque, ficou patente que o sucesso comercial de

produtos tecnológicos não é consequência exclusiva de seu potencial tecnológico,

ou seja, de seu valor técnico. Mas de um complexo conjunto de relações

comerciais e de marketing, e mesmo de controle e de acesso a mercados. A

opção que a NOKIA fez pela incorporação de software da MICROSOFT foi,

inclusive, devido à necessidade de uma maior penetração no mercado dos EUA, e

não pela ineficiência técnica da plataforma MeeGo.

Contudo, não deixa de ser interessante notar que a multiplicidade de

experiências que derivam umas das outras, ou que se aproveitam dos resultados

de experiências anteriores, mesmo em projetos coordenados por empresas rivais,

ou por projetos comunitários, só é possível devido às características de abertura e

de liberdade do software livre. Tais experiências suscitam interessantes

indagações sobre o modo como um trabalho comunitário, ou mesmo trabalho de

liberdade, pode ser aproveitado e reaproveitado. Assim como, do papel das redes

de colaboração que já foram mobilizadas e que ainda podem ser mobilizadas, e

que precisam ser avaliadas como valor agregado a essas tecnologias

conteúdos estáticos, mas é informado pela agregação de conteúdo postado em mídias sociais, como twitter e facebook. Link direto para o vídeo: http://youtu.be/bdLUJZR078k .

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desenvolvidas de maneira aberta, pois representam potencial de evolução técnico,

de invenção e de inovação.

A partir de 2010, o foco da pesquisa voltou-se para outras direções que

serviam para contrastar a experiência observada a partir da relação entre NOKIA e

comunidades de compartilhamento de desenvolvimento de software livre, e

proporcionavam a ampliação do escopo de problematização, trazendo para o

espectro as implicações técnicas e políticas do software livre para contextos

próprios dos países, povos e realidades locais do Sul Global.

Foram duas as frentes. Primeiro, intensifiquei uma relação de cooperação

estabelecida entre 2007 e 2008 com um povo indígena, os Xavante de Wederã 65,

que haviam sido contemplados em um edital do Ministério da Cultura dentro do

Programa Cultura Viva, para executar um convênio junto à rede dos Ponto de

Cultura. Em abril de 2008, eu havia participado de uma reunião na aldeia66 que

fora organizada para marcar o início dos trabalhos do Ponto de Cultura Apow'ê e

para formar um conselho de parcerias para auxiliar na execução das atividades

programadas para o Ponto de Cultura. Nessa reunião, fui convidado para

colaborar com a instalação de um laboratório para edição audiovisual. Este convite

desencadeou a realização de uma série de oficinas, cursos e eventos, que foram

realizados tanto na UNICAMP, em unidades do SESC-SP, quanto na própria

Aldeia.

Esta experiência, que não foi realizada exclusivamente como um

experimento para a coleta de dados para esta pesquisa e que, portanto,

ultrapassou o escopo do que tradicionalmente é realizado como pesquisa de

campo, foi muito útil para o entendimento das possibilidades abertas pela

liberdade do SL, e de como essa experiência se transforma e, de certa forma, se

65 O povo Xavante, que se auto denomina Awu'ê Uptabi, da família linguística Jê, é um dos 238 povos indígenas que ainda habitam o Brasil. Contabilizam uma população total de aproximadamente 15.000 pessoas e estão divididos em 10 Terras Indígenas localizadas no estado do Mato Grosso. A aldeia Wederã localiza-se na Terra indígena Pimentel Barbosa: http://ti.socioambiental.org/pt-br/#!/pt-br/terras-indigenas/3821 .

66 Cf.: http://wedera.blogspot.com.br/2008/09/ponto-de-cultura-aldeia-weder.html .

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amplifica, ao entrar em contato com uma realidade completamente diferente

daquela de seu contexto de origem, mas que também é confrontada pelo

imperativo da mediação técnica.

Digo que as atividades não foram realizadas como pesquisa de campo por

dois motivos. Primeiro, pois a relação de conhecimento estabelecida teve como

eixos a parceria e a colaboração. Dessa forma, as atividades não foram nem

planejadas nem realizadas para serem pesquisadas, ou para fornecerem material

para análise. As atividades possuíam objetivos próprios e até mesmo maiores e

mais complexos do que os da pesquisa. Segundo, que desde a primeira vez que

estive na aldeia, antes de ser convidado para colaborar com o projeto local, fui

informado e alertado de que não havia o menor interesse por parte da comunidade

da aldeia de ser transformada em objeto de estudo.

Paulo Cipassé Xavante, que então era o Cacique da Aldeia Wederã, foi

taxativo: perguntou se eu era antropólogo e demonstrou de maneira inequívoca

que não haveria espaço para a realização de qualquer tipo de pesquisa realizada

na velha chave na qual o pesquisador vem de fora, acessa conhecimentos locais,

realiza experimentos que interessam prioritariamente a sua pesquisa, retorna para

seu local de origem (a universidade), produz sua reflexão sem diálogo com a

comunidade, e não compartilha, ou não devolve, os resultados à comunidade.

Tampouco se tratava apenas da exigência de alguma contrapartida em troca da

possibilidade de realizar uma pesquisa sobre a comunidade67. Não, o que se

afirmava era o desejo e a disposição de estabelecer um outro tipo de relação de

conhecimento, baseada na reciprocidade e no diálogo. Uma proposta de

aprendizado e de troca mútua, uma proposta de pensar e fazer junto. E aqui, junto

aparece tanto no sentido de o estrangeiro e o nativo, partindo de suas diferenças

culturais específicas trabalharem juntos, explorando as possibilidades de

67 Essa posição incisiva e radical de recusa de um certo modo de produção de conhecimento que relega aos interlocutores indígenas de pesquisas antropológicas a posição subalterna de “objeto de pesquisa” também aparece no texto “Pesquisador e Pesquisado” de Hiparidi Top'tiro A'wuê Xavante como uma “Outra apresentação” ao livro “Boleiros do Cerrado” de Fernando Luiz Brito Vianna (2008).

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reciprocidade e complementaridade entre suas diferenças; quanto no sentido das

atividades de pensar e de fazer serem realizadas de maneira integrada, ou seja,

obtendo resultados concretos e aplicados na Aldeia.

Após a primeira viagem em 2008, estive outras 4 vezes na aldeia Wederã

entre 2010 e 2011. Duas delas com recursos provenientes da reserva técnica da

FAPESP e com o objetivo de realizar atividades vinculadas a pesquisa: em junho

de 2010 realizamos a instalação do computador no laboratório e duas oficinas

(montagem do computador e edição de vídeo)68, e em agosto de 2011 realizei uma

visita para avaliar o que havia sido feito neste primeiro ano de funcionamento do

laboratório. Além dessas duas atividades na Aldeia Wederã, foram realizadas

outras duas em Campinas: uma oficina de edição de vídeo, em 2009, na

UNICAMP; e, no ano seguinte, um evento realizado junto com a unidade de

Campinas do SESC-SP69 e outra série de oficinas na UNICAMP.

No final de 2009, passei também a acompanhar a evolução de um processo

disparado no Equador por um decreto presidencial publicado em 2008. O decreto

101470 instituía a adoção do software livre em toda a infraestrutura da

administração pública, e fundamentava a opção estratégica pelo software livre

como instrumento de promoção de desenvolvimento e de soberania tecnológica. A

experiência equatoriana havia sido indicada, em entrevista, por Richard Stallman

(2009), como uma das experiências de políticas públicas mais radicais em termos

de adesão e de apoio ao software livre que ele havia presenciado em suas

viagens pelo mundo71. Pois além do decreto, previa um plano maciço de migração

68 Ver imagens dessa oficina na seção “Galeria de Imagens da Oficina realizada em junho de 2010” do ANEXO WK-27.

69 Cf.: “Pensando/Fazendo Junto : A contemporaneidade dos Povos Tradicionais” https://cteme.sarava.org/Main/PFJ .

70 Uma cópia do decreto está anexada na seção 6.1 do capítulo 6 [MATERIAIS-ANEXOS], no Arquivo C: Dossiê Ecuador: Caderno de Campo.

71 Richard Stallman dedica boa parte de seu tempo a viagens para realização de conferências de divulgação do movimento software livre. No site da FSF é possível conferir o roteiro percorrido e acompanhar os trajetos futuros, Cf.: http://www.fsf.org/events/ . Como exemplo da abrangência praticamente global de sua atuação, somente no ano de 2012 Stallman visitou os seguintes países: Brasil, México, Finlândia, Islândia, Itália, Espanha, França, Bélgica, Reino Unido, Peru, Colômbia, Venezuela, Suíça, Alemanha, Argentina, Tunísia, Bósnia e Herzegóvina, Croácia, Eslovênia, Cingapura, Austrália, Portugal, Índia e

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para sistemas livres a ser realizado pela recém-criada (no mesmo decreto 1014)

Sub-Secretaria de Tecnologia da Informação72, vinculada ao Ministério do

Planejamento.

O interesse pela experiência equatoriana consolidou-se com o convite feito

pelo professor Laymert Garcia dos Santos, para que escrevêssemos juntos um

texto para uma publicação equatoriana que buscava refletir e problematizar o

sentido político da Constituição que havia sido referendada pela população em

2008 após um rico processo de concepção e de escrita que contou com ampla

participação social. Ficamos incumbidos de analisar os artigos que estabelecem

os parâmetros para o desenvolvimento tecnocientífico73. E o cruzamento entre os

princípios estabelecidos nesses artigos e o conteúdo prático do decreto 1014,

possibilitava a aproximação do software livre com conceitos aparentemente

disparatados e oriundos de uma matriz indígena de pensamento, como o de

Pachamama e o de Sumak Kawsay. Estes conceitos, que respectivamente

significam mãe terra e bem viver, são conceitos que perpassam transversalmente

praticamente toda a Constituição Equatoriana, aparecendo como fundamentos de

onde a política deve partir e para onde o desenvolvimento deve apontar. Um outro

modelo de desenvolvimento, obviamente74.

Em outubro de 2011, realizei uma viagem de 14 dias para o Equador. Em

Quito, participei de um encontro sobre Cultura Livre promovido pela UNESCO e

pela FLACSO75, e realizei uma série de entrevistas buscando reconstituir o

processo de criação da Sub-Secretaria de Informática, analisar os impactos e

Rússia. Alguns desses países como Brasil, Espanha, França e Índia foram visitados mais de uma vez. E ainda é preciso considerar as várias apresentações realizadas dentro dos EUA, em diferentes cidades. Sam Willians (2010, p. 65) relatando um encontro que teve com Stallman no ano 2000, afirma que o criador do SL “havia passado apenas 12 dos últimos 115 dias nos EUA”.

72 Cf.: http://www.informatica.gov.ec/ .73 O texto “Tecnología, ancestralidad, soberanía y produccíon de futuro” foi publicado no livro

“Soberanías”, de 2010, organizado por Alberto Acosta e Esperanza Martínez.74 Para um exemplo de utilização desses conceitos para uma crítica ao desenvolvimento de matriz

euro-americana ver “Save the planet from capitalism” (Morales, 2008) e “A renovação da crítica ao desenvolvimento e o Bem Viver como alternativa” ( Gudynas & Acosta, 2012).

75 Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, Sede Ecuador: http://www.flacso.org.ec/portal/ .

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efeitos do decreto 1014 e também das possibilidades de encontro do software livre

com os conceitos políticos locais, para averiguar se podíamos pensar ou falar

mesmo de novos modelos de desenvolvimento, e para avaliar até onde ia o

encontro da liberdade do SL com as experiências locais de liberdade.

Tanto neste caso, assim como no caso da experiência realizada junto com

os Xavante de Wederã, passou a ser possível avaliar essa diferença entre os

modos de apropriação do potencial de liberdade do SL no contexto dos países do

Norte e no contexto dos países do Sul. A reflexão frente a essas últimas

experiências sugeria que a liberdade proporcionada pelo software livre se

amplificava e mesmo se radicalizava em contato com demandas e com a

realidade local desses países. Mesmo quando pareciam inverter o sentido da

liberdade do SL tal como formulada em seu contexto original, como no caso da

liberdade de não pagar por licenças de uso ou por royalties. O sentido de

gratuidade que os ativistas do SL procuram em evitar para fortalecer o sentido de

liberdade, é na América do Sul um dos principais fatores que fortalecem a difusão

do SL. E, portanto, precisava ser pensado a partir da chave da liberdade também,

e não como algo contraditório a ela, ou que a enfraquece.

Foi, então, através de um caminho não-linear e por vezes surpreendente

que o SL foi delimitado como objeto desta pesquisa. Foi delimitado como objeto ao

mesmo tempo em que atuou como objeto disparador de relações e de

interconexões entre redes que informaram a trajetória, o próprio campo, o escopo

e a abrangência da pesquisa.

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2. LIBERDADE E ABERTURA

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FIGURA 02: «Political Overlaps» Diagrama de Hung Chao-Kuei, FSF (2001)76

76 O diagrama de Hung Chao-Kuei foi produzido para a FSF para representar graficamente as diferenças e sobreposições entre as diversas licenças de SL e de OS. FONTE IMG: http://www.gnu.org/philosophy/categories.html .

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2.1 A LIBERDADE DO SOFTWARE LIVRE (FREEDOM AS IN FREE SOFTWARE)

Há um enunciado muito difundido entre os ativistas, militantes,

simpatizantes e praticantes do SL. Um texto curto que reúne um pequeno conjunto

de princípios que, juntos, funcionam como instrução para definir, e como

referência para balizar, o que é um software de tipo livre. Este conjunto de

princípios delimita um campo de agência: estabelece o que um programa qualquer

pode ou não fazer para que seja considerado livre. Apesar de constituir um

enunciado escrito não compõe um documento em si e, por isso, precisa ser

acessado através de outros textos e falas que o mobilizam77. É conhecido como

“as quatro liberdades essenciais do SL”, ou, de maneira simplificada, apenas

como as 4 liberdades.

Richard Stallman78, o criador do enunciado, costuma fazer questão de

iniciar qualquer de seus discursos públicos, entrevistas e mesmo conversas

informais sobre SL com a apresentação das 4 liberdades. Também recorre ao

enunciado sempre que um interlocutor dá sinais de não ter entendido o conceito

do SL; quando o interlocutor o confunde, por exemplo, com o conceito de OS; ou

quando o interlocutor se refere ao SL de maneira inapropriada. Mesmo que soe

redundante, e por mais desagradável que possa vir a ser, Stallman aposta nesse

caminho pois considera ser o único que possa assegurar que o sentido político

original do SL seja transmitido junto com a divulgação do SL enquanto um

conceito político ou enquanto tecnologia.

Neste capítulo, respeitando a prática política do criador do conceito de SL –

que é também um importante articulador do movimento SL e principal figura

77 O exemplo mais importante é provavelmente o documento da FSF no qual é apresentada sua versão oficial do que é SL, “A definição de Software Livre”, cuja última versão – trata-se de um texto que é constantemente atualizado – é do ano de 2010, e a tradução para português do Brasil é de 2012. Cf. : http://www.gnu.org/philosophy/free-sw.pt-br.html.

78 Para arquivo sobre Richard Stallman consulte: Anexo WK-11.

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associada à defesa do SL e à sua propagação no mundo – parto aqui também da

apresentação destes 4 princípios. O objetivo deste item é caracterizar a noção de

liberdade segundo a prática e a narrativa política própria do SL na tentativa de

forjar uma definição autóctone do conceito de liberdade tal como formulada pelo

movimento SL.

As quatro liberdades essenciais do SL são:

• A liberdade de executar o programa, para qualquer propósito

(liberdade 0).

• A liberdade de estudar como o programa funciona, e

adaptá-lo às suas necessidades (liberdade 1). Para tanto,

acesso ao código-fonte é um pré-requisito.

• A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa

ajudar ao próximo79 (liberdade 2).

• A liberdade de distribuir cópias de suas versões modificadas

a outros (liberdade 3). Desta forma, você pode dar a toda

comunidade a chance de beneficiar de suas mudanças. Para

tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito.

Basicamente, e a partir de uma abordagem estritamente prática, os

princípios expressos acima permitem que se afirme que um software é livre

quando o usuário pode executá-lo para qualquer fim, estudar seu funcionamento,

79 Aqui, acerca da tradução de neighbor por próximo, cabe assinalar que há uma outra tradução possível, que permite que se demarque um outro tipo de relação de colaboração implícita na liberdade de redistribuir cópias. Refirmo ao uso do termo vizinho. Se por um lado, o emprego do termo próximo remete a um outro potencial, um outro abstrato – que ademais possui forte conotação religiosa – e que na prática significa qualquer outra pessoa com a qual se compartilha uma condição (humana) abstrata, por outro, o termo vizinho remete a um tipo diverso de relação de alteridade, a qual é definida pelo compartilhamento não de uma condição abstrata, mas pelo estabelecimento de relações diretas de convivialidade, reciprocidade e compartilhamento. Por ora, manterei o texto tal como traduzido oficialmente pela FSF. O termo nuançado será aplicado quando for necessário ou for propício diferenciar os dois tipos de relação que destaco aqui.

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alterar este funcionamento, compartilhar as alterações e distribuir versões

idênticas ou modificadas de seu código. Do que podemos depreender que um

software é livre quando não restringe as liberdades do usuário: quando não limita

sua autonomia e sua capacidade de controle sobre os processos computacionais

mediados por este software, e quando não limita as possibilidades de distribuição

e do compartilhamento de seu código.

No entanto, as 4 liberdades, como já foi dito, são apenas princípios –

princípios éticos, como gostam de afirmar os ativistas e filósofos do SL – que, por

si só, não garantem que a liberdade do SL será praticada ou, mais importante,

respeitada. Para que estes princípios tivessem um efeito prático, foi necessário a

criação de uma licença de distribuição que os protegesse e que os promovesse: a

licença GNU/GPL80 – cujo funcionamento será analisado com mais detalhes, no

próximo item deste capítulo.

Considero útil, para o entendimento da liberdade proposta e defendida pelo

SL e, também, para o entendimento de sua razão de existência, que nos voltemos

para o contexto histórico original de sua emergência, de sua criação e de sua

afirmação. Para tanto, proponho uma breve reconstituição do estado da arte das

tecnologias de computação contrastado ao estado da arte do enclausuramento do

conhecimento no momento iminentemente anterior à criação do SL. Uma

reconstituição da evolução técnica da computação e da criação de regimes de

apropriação adequados para serem aplicados sobre os novos campos de valor

abertos pela evolução técnica.

Estes dois movimentos precisam ser observados a partir de suas

interações, complementariedades e, sobretudo, contradições. Afinal, a criação do

80 A esse respeito, Steven Weber (2004, p.48) afirma que: “[U]m sistema social ou regime de propriedade intelectual iniciado com essas 4 liberdades precisava de restrições e estruturas adicionais para assegurar que ele permaneceria livre. Caso Stallman simplesmente colocasse o software em domínio público e permitisse que qualquer um fizesse o que quisesse com ele, alguém poderia pegar o código e usá-lo para criar outra peça de software e em seguida poderia publicar como um produto proprietário, sem mostrar o código fonte. Se assim fosse, a próxima geração de usuários não teria as liberdades que Stallman queria que eles tivessem.”

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SL nada mais é que uma resposta a estas contradições. E aqui, obviamente parto

do princípio que sua afirmação de liberdade remete a um movimento no sentido

contrário, o qual se busca evitar. Ou seja, é disparada como reação a algum

movimento que busca negar, anular, cercear ou eliminar essa liberdade.

Não à toa Steven Weber em seu estudo seminal sobre o “sucesso do Open

Source“ (2004), afirma que:

A narrativa do programador não é aquela do trabalhador que gradualmente vem tomando controle [sobre os meios]; mas aquela do artesão de quem o controle e a autonomia [sobre os meios] foi tomado81.

A demarcação do ponto de partida do SL como uma resposta a um

movimento que se busca evitar – a espoliação dos meios de trabalho do

programador – é importante para que se evite a falsa ideia, ou percepção bastante

comum e incorreta, que tenta naturalizar o fundamento político do SL como uma

consequência natural da evolução da Internet e das tecnologias digitais, que

seriam essencialmente liberadoras e democráticas quando, na realidade, trata-se

justamente do contrário: a criação do SL explicita um conflito que é latente à

evolução dessas tecnologias e imanente a sua aplicação como força produtiva e a

seu aproveitamento econômico. Entendemos a criação do SL, portanto, como a

explicitação do conflito original da absorção da produção de software como fonte

de produção de valor e da delimitação de um mercado de trabalho para a

atividade de programação.

Matteo Pasquinelli (2012, p.53) chama de “digitalismo” essa ideologia

fundamentada em um certo fetiche pelo digital que tenta operar uma transposição

automática dos regimes de liberdade próprios do ambiente digital para o que se

pode chamar de mundo-offline. Uma transposição um tanto matreira é preciso

81 Cf.: Steven Weber (2004, 25): “The narrative of the programmer is not that of the worker who is gradually given control; it is that of the craftsperson from whom control and autonomy were taken away”. Ver também: “Free Software and Political Economy” (Chopra & Dexter 2008, 1-35) .

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ressaltar, uma vez que, na prática, reduz a liberdade do usuário ao engajamento

voluntário em formas mais ou menos dissimuladas de trabalho gratuito (Terranova,

2004). Operando assim uma inversão do sentido político original da colaboração

como liberdade, ao promover a colaboração e a produção colaborativa de

conhecimento somente sob formas e meios que são passíveis de serem

explorados como matéria-prima disponível e sem-dono, sobre a qual projetam-se

diferentes modelos de negócio baseados em acesso livre a conteúdos produzidos

gratuitamente através de meios privados. Tal cenário, o qual nos últimos anos tem

se intensificado82, favorece apenas a difusão das tecnologias digitais

acompanhadas de um “sistema social” – para empregar uma expressão precisa de

Stallman (2009) – baseado na separação entre usuários e produtores, e em

práticas de produção e consumo, que, ademais, em muitos de seus aspectos

restringem liberdades e contrariam a filosofia política do SL.

Obviamente há uma clara relação entre a evolução da internet e a do SL. E

de fato pode-se mesmo falar que o SL dependeu para sua criação e evolução das

estruturas físicas e das práticas de comunicação e de troca de conhecimento

proporcionadas pela internet. No entanto, é fundamental destacar que foi antes na

direção de tentar evitar aquilo que permitiria a colonização total da internet, e sua

conversão ainda mais extrema em um meio de controle social e de espoliação – o

enclausuramento do conhecimento; a consolidação do modelo de produção,

circulação e comercialização do software proprietário; e a perda de autonomia e

controle sobre os meios por parte do usuário – que o SL e o movimento SL foi

criado.

Como se trata de uma liberdade experimentada e condicionada pela

existência e pelo uso de software, e limitada pelo processo de transformação do

software em mercadoria, considero necessário, para a caracterização tanto dessa

82 A título de exemplo, faço referência aos esforços recentes empreendidos na direção da implementação de leis que criminalizam práticas de compartilhamento de conteúdo, ou estabelecem diretrizes para que os provedores de serviço retenham dados de utilização dos usuários de seus serviços, como no caso da França e a lei Hadopi de 2010; dos EUA e os projetos PIPA e SOPA (2011); do Brasil com o Projeto de Lei Azeredo (2008).

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forma particular de liberdade (nova forma de liberdade), quanto do movimento que

a impede de ser praticada – o enclausuramento –, o entendimento da evolução da

relação de uso dos computadores e da relação de exploração capitalista da

produção e da distribuição de software. E acredito que elas possam ser

apresentadas ao mesmo tempo, pois a evolução da primeira está diretamente

relacionada com o surgimento das condições de possibilidade da segunda. No

entanto, de maneira alguma pretendo, ao estabelecer essa relação entre evolução

da relação de uso e a aplicação do enclausuramento, naturalizar a transformação

do software em mercadoria – processo que alguns autores chamam de

commodification (Chopra and Dexter, 2007; Mackenzie, 2006; Boyle, 2008). Muito

menos é minha intenção afirmar que a única via possível para a indústria do

software era o enclausuramento do conhecimento praticado pelo modelo do

software proprietário. Não obstante, o que se busca é mostrar que os esforços de

conversão do software em mercadoria só foram possíveis devido aos avanços

técnicos da tecnologia computacional. Dessa forma, nossa análise busca sempre

o reconhecimento de conflitos precipitados pelos novos modelos de negócio que

se projetam sobre os novos campos de trabalho e de criação de valor abertos pela

evolução técnica.

Para reconstituir esse processo de evolução técnica, recorro a um

importante pensador e ativista do movimento SL, o historiador e advogado Eben

Moglen83, que trabalhou como programador dos 13 anos até o fim de seus estudos

universitários (tendo trabalhado entre 1979 e 1984 para a IBM), cuja produção

teórica e reflexão política, a despeito de sua densidade, originalidade e qualidade,

ainda é pouco explorada pela teoria social dedicada ao tema. Segundo Moglen

(1999, p. 1), inicialmente, o termo software correspondia às partes do computador

que podiam ser alteradas livremente, diferentemente do hardware, constituído de

partes imutáveis, que funcionavam de acordo com o modo como haviam sido

83 Para acesso a sua produção atual e afiliações ver: http://emoglen.law.columbia.edu/ . Para uma descrição de sua trajetória pessoal e profissional ver: “Affidavit of Eben Moglen on Progress Software vs. MySQL AB Preliminary Injunction Hearing” em: http://www.gnu.org/press/mysql-affidavit.html .

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fabricadas:

O primeiro software consistia na configuração dos plugs de cabos ou dos seletores nos painéis exteriores de um dispositivo eletrônico, mas assim que meios linguísticos de alterar o comportamento dos computadores foram desenvolvidos, “software” passou a denotar as expressões em uma linguagem mais ou menos legível por humanos que tanto descrevia quanto controlava o comportamento da máquina84.

Esta passagem do software da fase dos cabos, plugs e seletores para a

fase dos “meios linguísticos85” capazes de serem lidos e escrito por humanos, e

armazenados e processados por máquinas, implicou uma verdadeira mudança de

estado da computação. A qual se intensificou ainda mais com o aumento da

capacidade de armazenamento de memória por parte dos computadores e com o

aprofundamento do processo de digitalização. A principal transformação, foi a

possibilidade de separação entre hardware e software, isto é, o desenvolvimento

de linguagens capazes de serem transcritas para operarem diferentes arquiteturas

de processamento. Esta separação permitiu que o hardware desenvolvido por

uma empresa pudesse processar e operar a partir do software desenvolvido por

outra, e que a produção, comercialização e distribuição de software pudesse

constituir um mercado em si.

Nos primeiros tempos em que o software passou a ser escrito, pode-se

afirmar que inicialmente ele era livre, ou quase livre: apesar de serem propriedade

84 “The first software amounted to the plug configuration of cables or switches on the outside panels of an eletronic device, but as soon as linguistic means of altering computer behavior had been developed, “software” mostly denoted the expressions in more or less human-readable language that both described and controlled machine behavior.” Para visualização de imagens históricas dos computadores no período citado por Moglen, incluindo alguns modelos que são citados mais adiante no texto, conslutar o ANEXO WK-18.

85 A essa noção de meios linguísticos, cabe referência a expressão proposta pelo físico e artista plástico belga Etienne Delacroix (ver ANEXO WK-20) de que o software seria – no dialeto que Etienne praticava – um “objeto técnico no linguagem” (comunicação pessoal, 2006). O que importa destacar aqui é o que se refere à materialidade desse objeto técnico, a relação entre linguagem, disparação (Simondon apud Deleuze, 2006, pp. 117-121) e o controle de um processo e o novo campo de ação e de criação que esta materialidade informa. A esse respeito, ver também Mackenzie (2006).

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das empresas que financiavam seu desenvolvimento, que na ocasião se

confundiam com as empresas que desenvolviam o hardware, os programadores

podiam compartilhar os códigos livremente e sem nenhuma restrição. Acima de

tudo, não era interessante para essas empresas cercearem de alguma maneira o

compartilhamento do software, afinal, “o valor estava no hardware” (Moglen, 2007:

p. 2).

Para melhor compreender esta relação, vale a pena recorrer novamente a

uma passagem de Eben Moglen (1999, p. 11), dessa vez a respeito do estado da

arte da indústria da computação nesse momento histórico:

O estado da arte da industria da computação durante os anos 1960 e 1970, quando as normas básicas da programação sofisticada foram estabelecidas, ocultou a tensão implícita nesta situação. Naquele período, o hardware era caro. Cada vez mais os computadores eram grandes e complexas coleções de máquinas, e o negócio de projetar e construir uma tal variedade de máquinas de uso geral era dominada, para não dizer monopolizada, por uma empresa. A IBM dava seu software. Para ser mais preciso, ela possuía os programas que seus empregados escreviam, e registrava (copyrighted) o código fonte. Mas, ela também distribuía os programas – incluindo o código fonte – para seus clientes sem nenhuma cobrança adicional, e os encorajava a fazer e a compartilhar os incrementos e as adaptações destes programas que distribuía. Para um fabricante de hardware que dominava o mercado, esta estratégia fazia sentido: melhores programas vendiam mais computadores, onde a capacidade de lucro do negócio residia86.

Ainda segundo Moglen, o software era “quase livre” (almost free) pelo

86 “The state of the art of the computer industry throughtout the 1960s and 1970s, when the groundnorms of sophisticated computer programming were established, concealed the tension implicit in this situation. In that period, hardware was expensive. Computers were increasingly large and complex collections of machines, and the business of designing and building such an array of machines for general use was dominated, not to say monopolized, by one firm. IBM gave away its software. To be sure, it owned the programs its employees wrote, and it copyrighted the source code. But it also distributed the programs – including source code – to its custumers at no additional charge, and encouraged them to make and share improvements or adaptations of the programs thus distributed. For a dominante hardware manufacturer, this strategy made sense: better programs sold more computers, which is where the profitability of the business rested.”

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simples fato de que o “direito de excluir outros (…) era praticamente sem

importância, ou mesmo indesejável, no coração do mercado de software (software

business)87” (p. 12). De fato, o software era propriedade da IBM, o que certamente

implicava em limites para os usuários. No entanto, estes limites não eram

percebidos ou não possuíam grandes implicações práticas uma vez que o

software não custava nada para ser adquirido, e os termos nos quais era fornecido

não só permitiam como encorajavam a experimentação, a modificação, o

incremento e o compartilhamento de códigos produzidos pelos usuários. De modo

que o autor pode mesmo afirmar que:

o software dos mainframes eram desenvolvidos cooperativamente pela principal fabricante de hardware e seus usuários tecnicamente sofisticados, empregando os recursos distribuídos do fabricante para propagar os incrementos resultantes através da comunidade de usuários88(p. 11).

Levando em conta o que podemos chamar de estágio de desenvolvimento

das forças produtivas e observando seu modo de evolução, podemos perceber

que enquanto não houve um potencial explícito para a exploração comercial da

produção de software, estabeleceu-se uma relação permissiva com os usuários.

As empresas eram proprietárias dos códigos, mas adotavam uma postura de

laissez-faire que já reconhecia e se aproveitava da capacidade produtiva dos

usuários para o desenvolvimento e aprimoramento tecnológico, ou seja, do

aproveitamento e da incorporação do uso como elemento da produção.

Por outro lado, era do próprio interesse dos usuários compartilhar suas

adaptações, correções e incrementos para evitar trabalho redundante. A questão

de evitar a redundância aparece como central aqui, pois o tempo do

87 “The right to exclude others, onde of the most important “sticks in the bundle” of property rights (…), was practically unimportant, or even undesirable, at the heart of the software business.”

88 “[B]ut in practice mainframe software was cooperatively developed by the dominant hardware manufacturer and its technically-sofistcated users, employing the manufacturer's distribution resources to propagate the resulting improvments throught the user community.” (p.11)

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processamento computacional era um recurso escasso e muito caro89. É preciso

ter em mente que quando falamos de computadores em 1955, por exemplo, ou

ainda nos anos 1960, estamos falando de máquinas completamente diferentes

das atuais, as quais muitas vezes ocupavam salas e até mesmo prédios inteiros.

Steven Weber (2004, 21) afirma que “a primeira geração dos computadores

modernos era estranha, cara, de manutenção complicada, e não muito potente”90.

A IBM cedia seu primeiro modelo comercial, o 701, através de um contrato de

leasing, e seus primeiros clientes restringiam-se ao Departamento de Defesa dos

EUA, e empresas que prestavam serviço para o Departamento de Defesa. Em

1953, um modelo comercial derivado do 701, o 705 era vendido por, valores da

época, U$1.600.000,0091.

Samir Chopra e Scott D. Dexter (2007, 6) citam dois exemplos

interessantes relativos a esse período, nos quais usuários se juntaram para

colaborar no desenvolvimento dos estágios iniciais de tecnologias que eram de

interesse comum, através de uma prática que Steven Weber, utilizando um jargão

mais atual, chama de “colaboração pré-competitiva”. Em 1954, as empresas

Douglas Aircraft, North American Aviation, Ramo-Wooldridge e The RAND

Corporation criaram o PACT – “Projeto para o Avanço das Técnicas de Escrita de

Código92” –, cujo nome/sigla remete, em inglês, à palavra pacto. O PACT foi um

esforço compartilhado e integrado à produção da IBM para o desenvolvimento de

um compilador93 que, posteriormente, foi lançado para o IBM 704, ou seja, foi

incorporado e aplicado a outros produtos da IBM.

No ano seguinte, em 1955, na cidade de Los Angeles (EUA), foi fundado o

89 Steve Weber (2004, pp. 23-25) traz uma interessante descrição das condições materiais que tornavam o tempo de processamento um bem escasso.

90 “The early generation of modern computers was awkward, expensive, tricky to maintain, and not very powerful.”

91 Em valores atuais, segundo o dispositivo de cálculo de inflação do Bureau of Labor Statistics do Departamento do Trabalho dos EUA, o preço do IBM 705 seria equivalente a U$ 13.799.550,56. Cf.: http://www.bls.gov/data/inflation_calculator.htm .

92 Em inglês: Project for the Advancement of Coding Techniques. 93 Por uma definição um tanto simples e ilustrativa, podemos dizer que compiladores são programas que

traduzem o código fonte escrito por programadores em código que o computador é capaz de executar.

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primeiro grupo de usuários de computador, a Sociedade SHARE, que reunia

usuários do modelo IBM 701. É interessante notar que o nome/sigla remete, em

inglês, à palavra compartilhar, e que, posteriormente, o nome adquiriu o sentido de

“Sociedade para Ajudar a Aliviar o Esforço Redundante”94. Diante do árduo

trabalho de atualização das instalações desenvolvidas no IBM 701 para o novo

IBM 704, este grupo de usuários se juntou em torno da ideia de que “compartilhar

habilidades e experiências era melhor do que fazer tudo sozinho”.

Ainda segundo Chopra e Dexter (p.6), a fundação do grupo SHARE foi

como uma benção para IBM na medida em que “acelerou a aceitação de seus

equipamentos e igualmente ajudou nas vendas do 704”95. Em contrapartida, o

grupo passou a opinar sobre a agenda técnica da empresa, que, devido aos

benefícios trazidos por essa colaboração externa, não tinha outra escolha a não

ser acatar a influencia direta do grupo em suas decisões.

Além desses dois casos, os mesmos autores citam também outro caso

paradigmático, o da empresa DEC e seu computador PDP-1, que era vendido

acompanhado de seus sistemas completos, sobre os quais encorajava

modificações por parte dos usuários. Como a DEC que não tinha condições arcar

com todos os custos do desenvolvimento de programas para suas máquinas,

deixava seus usuários utilizarem e desenvolverem o software livremente. Os

PDP-1 foram distribuídos sobretudo em Universidades, fator que contribui

bastante para seu desenvolvimento permanecesse na vanguarda das inovações

técnicas. As comunidades de usuários formadas ao redor do desenvolvimento de

programas para o PDP foram de grande importância para consolidar o que

chamamos hoje de Cultura Hacker (Levy, 2010; Sterling, 1992).

O PDP-1 ficou conhecido como o primeiro minicomputador. Segundo Steve

Levy “era tão compacto que seu conjunto completo não era maior do que três

geladeiras” (2010, p.41). Sendo menos complexos em sua operação do que os

94 Em inglês: Society to Help Allieviate Redundant Effort. Ver também: http://www.share.org/ .95 “[I]t accelerated the acceptance of its equipament and likely helped sales of the 704.”

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mainframes da IBM, permitiam uma outra relação de uso, que não dependia de

hierarquia rígida instituída pela IBM, a qual implicava no controle e na limitação do

acesso aos computadores, estimulando, dessa forma, a experimentação e a

exploração de novos potenciais, e a criação de novos usos.

O fator distintivo da contribuição da cultura hacker a este cenário de

disseminada colaboração entre usuários e de participação no desenvolvimento

tecnológico, é o acréscimo de uma característica bastante peculiar, a qual

transcende o objetivo de superar a redundância de esforço computacional.

Trata-se de um aspecto lúdico que, em inglês, pode ser chamado de playfulness

ou de play-drive (Söderberg, 2008: pp. 156-186), e que produz interessantes

alterações na relação de trabalho e de produção envolvendo a atividade de

programação, constituindo-se mesmo como resistência à alienação. Chopra e

Dexter (2007, p. 9) destacam a importância dessa relação não-alienada de

produção afirmando que essas primeiras culturas hackers e o movimento SL

contemporâneo fazem parte de “uma narrativa contínua da tomada de controle da

tecnologia e da preservação da autonomia dos usuários” 96

No final dos anos 1960, dois acontecimentos marcam a evolução técnica do

software, e outros dois acontecimentos marcam a evolução de seu processo de

transformação em mercadoria, respectivamente: a criação da ARPAnet e do UNIX

em 1969; e, a proposta de implementação de proteção de marca registrada para a

linguagem TRAC, e o processo anti-truste movido contra a IBM pela CONTROL

DATA CORPORATION, ambos em 1968.

O processo movido contra a IBM acarretou no fenômeno do “unbundling”,

que obrigou a IBM a separar suas divisões comerciais de software e hardware, e

abriu o caminho para que outras empresas desenvolvessem software para rodar

no hardware da IBM. Em relação a linguagem TRAC, refiro-me ao manifesto de

Calvin Mooers defendendo a necessidade da criação de algum meio legal para a

96 “Early hacker culture and the contemporary free software movement are thus part of a narrative continuum about taking control of technology and preserving user autonomy.”.

100

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proteger a linguagem TRAC, desenvolvida pelo Rockford Research Institute, de

modificações produzidas por seus usuários. A justificativa era a necessidade de

poder garantir um padrão de qualidade para essa linguagem97.

Em um artigo publicado no jornal Communications of the Association of

Computing Machinery (CACM), Mooers afirma que:

Uma base adequada para o desenvolvimento e a comercialização de software proprietário é urgente, particularmente diante das capacidades duvidosas dos métodos de direitos autorais, patentes e segredos de negócios quando aplicados ao software98.

O que interessa para nossa discussão aqui é a afirmação da ineficiência

dos dispositivos de propriedade intelectual para o fomento do desenvolvimento e

da comercialização de software proprietário, além da clara e direta manifestação

favorável a consolidação de um mercado e de uma industria de software. No

entanto, como veremos mais adiante, a ineficiência destes dispositivos estava

diretamente ligada ao cenário de colaboração generalizada. E, portanto, será

necessário combater a colaboração, ou minar suas bases materiais, para que um

regime de software proprietário eficiente possa ser implementado a partir dos anos

1980.

Quanto à ARPAnet e o UNIX, estes acontecimentos foram fundamentais

para a criação das bases materiais que, posteriormente, informariam a criação do

SL. A ARPAnet originou a criação da internet, e inicialmente constituía uma rede

de computadores que interligava o Departamento de Defesa dos EUA99 com

97 È importante destacar que as primeiras reações a essa proposta foram no sentido de afirmar que as melhores e mais bem sucedidas linguagens de programação da época se beneficiava dos inputs recebidos dos usuários. Chopra e Dexter (2007, p. 7) citam a reação do professor da Universidade de Michigam, Bernie Galler, que destacava o sucesso da linguagem SNOBOL, a qual havia se beneficiado com contribuições signigicativas realizadas por “jovens irreprimíveis” nas universidades.

98 “An adequate basis for proprietary software development and marketing is urgently needed particularly in view of the doubtful capabilities of copyright, patent or “trade secret” methods when applied to software.”

99 Há um mito que o impulso original para a constituição da ARPAnet era a criação de um sistema de informação capaz de operar mesmo diante de um ataque nuclear a um de seus núcleos, por isso a opção por uma estrutura horizontal e descentralizada. Obviamente, sendo um projeto coordenado pelo

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Universidades e Laboratórios de Pesquisa, sobretudo da Califórnia e da região de

Boston. A ARPAnet interessa nesse processo não só pela infraestrutura física de

comunicação que permitia que usuários e desenvolvedores colaborassem mesmo

à distância, mas também pela cultura de compartilhamento e de colaboração que

floresceu entre seus usuários.

Analisando os desdobramentos e consequências para a cultura hacker da

criação da “primeira rede de computadores transcontinental e de alta velocidade”,

Eric Raymond (2000a) afirma que:

[A ARPAnet] permitiu a pesquisadores de todas as partes que trocassem informações com velocidade e flexibilidade sem precedentes, dando um enorme impulso ao trabalho colaborativo, aumentando tanto o ritmo quanto a intensidade do progresso tecnológico. Mas a ARPAnet também fez outra coisa. Suas estradas eletrônicas reuniram hackers de todas as partes dos EUA em uma massa crítica; ao invés de permanecerem isolados em pequenos grupos, cada qual desenvolvendo suas próprias e efêmeras culturas locais, eles descobriram (ou re-inventaram) a si mesmos como uma tribo em rede (networked tribe).

Já o UNIX foi um sistema operacional desenvolvido por dois pesquisadores

do Bell Labs logo após o fracasso de um grandioso projeto que envolvia outras

duas importantes instituições – o MIT e a GE –, cujo objetivo era a criação de um

sistema avançado baseado no conceito de time-sharing, capaz de otimizar o

tempo do processamento computacional e de atender a solicitações de vários

usuários para o processamento simultâneo de vários programas. Este projeto, o

MULTICS, fracassou. E dois pesquisadores do Bell Labs, Ken Thompson and

Dennis Ritchie, decidiram aproveitar a energia empreendida no projeto fracassado

e, principalmente, as lições extraídas deste fracasso, para criar um sistema que

fosse baseado numa ideia de simplicidade, e voltado para atender as expectativas

Departamento de Defesa e em pleno auge da Guerra Fria, muitas aplicações militares foram desenvolvidas. Mesmo assim, Katie Hafner (1998, p. 10) aponta que o “o projeto incorporava as mais pacíficas intenções – conectar computadores em laboratórios científicos por todo o país de modo que os pesquisadores pudessem compartilhar recursos computacionais”.

102

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e necessidades de programadores em relação ao ato de programar.

Nesse sentido, Steven Weber (2004, p. 24) chega a falar que as motivações

que por traz da iniciativa do UNIX não eram somente técnicas. Ao longo dos anos

1960, diante da consolidação dos mainframes da IBM, o trabalho de programação

havia sido submetido aos paradigmas da produção industrial fordista baseada na

divisão do trabalho, até mesmo como uma forma de aumentar o controle sobre o

trabalho100 dos programadores. Dessa forma, as atividades de operação dos

computadores e de programação haviam sido separados em esquemas rígidos.

Além de um sistema operacional voltado estruturado de maneira mais próxima do

que seriam as expectativas dos programadores, o UNIX foi inicialmente

desenvolvido sem nenhum direcionamento objetivo para alguma aplicação

comercial. Dessa forma, seu ritmo de evolução e a direção de sua evolução

técnica privilegiou, desde seu início, a evolução da tecnicidade, o que, ao longo

dos anos, foi responsável pela adesão crescente de programadores a esse

sistema.

No entanto, o fator determinante na história do UNIX ocorreu alguns anos

antes de sua criação. Em 1956, AT&T – empresa proprietária do BELL LABS –,

com o intuito de encerrar de maneira pacífica uma ação anti-truste que vinha

enfrentando desde 1949, assinou com o Departamento de Justiça dos EUA um

acordo judicial (Consent Decree), no qual se comprometia a não operar em

nenhum outro mercado que não fosse de telefonia e comunicação, e a licenciar

suas patentes para empresas concorrentes101. Este acordo de 1956 fez com que

100 A evolução acelerada dos computadores fez como que, desde o início da computação, o trabalho de programação fosse muito valorizado, trazendo como consequência a dificuldade dos gestores de controlar trabalho e enquadrar os trabalhadores em esquemas rígidos de produção. A seguinte passagem de Weber (2004, pp. 24-35) ilustra bem a caracterização deste cenário: “The mid-1960s had brought a sea change in the culture and organization of computer programming work, a change that was not welcomed by many programmers.As computers moved into the mainstream of business operations (at least for large companies) over the course of the 1960s, the demand for programmers grew rapidly. Many managers were uncomfortable with the power programmers held as a result. The stereotype of programmers at the time was not that different from the hacker stereotype of today: free-wheeling, independent, research oriented to the point of playfulness, and not particularly concerned with narrow business concerns.”

101 Para uma reflexão sobre o papel dessa restrição legal à atuação da AT&T em outros mercados que não o de telefonia e telégrafos e sua relação com o surgimento do SL ver: “The Unix revolution—thank you,

103

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os advogados da empresa adotassem uma postura bastante conservadora em

relação a atuação da empresa e de suas subsidiárias em novos mercados. Dessa

forma, a orientação em relação ao UNIX foi a de licenciá-lo sem cobrança de

royalties e sem suporte ou correções de bugs para evitar qualquer possibilidade

de caracterização de que a empresa estaria atuando no mercado de software e

computadores.

Este regime de distribuição do UNIX aliado a suas qualidades técnicas –

sobretudo seu potencial de portabilidade, ou seja, de ser adaptado a diferentes

plataformas e arquiteturas de processamento de dados – fez com que o UNIX, ao

longo dos anos 1970, fosse adotado por inúmeras universidades e centros de

pesquisa. Como a empresa que o desenvolveu não prestava suporte nem corrigia

seus erros, os usuários passaram a compartilhar correções e também

incrementos, no que acabou informando uma rica cultura de colaboração e de

criação compartilhada.

No final dos anos 1970, diante do evidente potencial de mercado que o

UNIX representava, a AT&T passou a tentar reverter a condição estabelecida pelo

consent decree de 1956, e a partir de sua versão 7, o UNIX passou a não ser mais

distribuído com o código fonte (Weber, 2004: 36-39). Neste mesmo período, entra

pela primeira vez na cena da história uma personagem que posteriormente

ganharia muita notoriedade. É de 1976, a “carta aberta aos hobbystas” , de autoria

de Bill Gates que, pela primeira vez comparou o ato de compartilhar código com o

roubo102. É certo que o ataque de Gates não era direcionado às redes constituídas

em torno do UNIX, mas, como demonstram Dexter e Chopra (2007: 18), sua

Uncle Sam?”. Cf.: http://arstechnica.com/tech-policy/2011/07/should-we-thank-for-feds-for-the-success-of-unix/ .

102 Em suas próprias palavras: “As the majority of hobbyists must be aware, most of you steal your software”. Steve Levy (2010, pp. 227-248) dedica um capítulo inteiro para a discussão dos motivos que levaram Gates a escrever esta carta e de seus efeitos, que demonstram a fragilidade da ética hacker diante do novo contexto do software proprietário. A página da Wikipédia em inglês sobre a carta, além de uma boa contextualização do momento em que ela foi publicada, traz referências sobre as reações a ela e uma lista das revistas em que ela foi publicada, cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Open_Letter_to_Hobbyists . Para acessar a carta original, endereçada ao Homebrew Computer Club, ver: http://www.digibarn.com/collections/newsletters/homebrew/V2_01/index.html.

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intervenção:

foi um movimento a favor da criação de escassez no crescente mercado de software para computadores pessoais, com sua carta sugerindo que [o software] somente poderia ser uma mercadoria comercializável se as práticas predominantes de desenvolvimento compartilhado e o compartilhamento irrestrito de código fossem esmagadas (squashed)103.

Ao longo dos anos 1980, e no início dos anos 1990, devido a disputas em

torno de produtos derivados do UNIX, agravadas pela permissividade da licença

de distribuição do BSD104 – que permitia que um produto derivado de seu código

aberto fosse publicado como software proprietário – a estrutura de colaboração e

de criação compartilhada do UNIX foi colocada em cheque. No entanto, seu papel

em formar os elementos essenciais de uma cultura de colaboração assim como os

mecanismos primitivos para o compartilhamento de software e para a criação

distribuída e descentralizada já haviam marcado toda uma geração de

programadores e consolidado o que se entende por ética hacker.

No início dos anos 1980 a evolução tecnológica implicou na queda brusca

do preço do hardware e na passagem da computação dos mainframes para os

computadores pessoais. Esta passagem significou a separação definitiva entre

hardware e software – o fenômeno conhecido como unbundling – e fez surgir um

novo tipo de usuário, o usuário-final. Segundo Chenwei Zhu (2011: 55):

[m]uitos desses novos usuários possuíam pouco ou nenhum conhecimento de programação, e eles não precisavam possuí-lo. Para esses usuários não-sofisticados, o que eles precisavam mais

103“Bill Gates’s intervention with the Homebrew Computer Club was a move toward creating scarcity in the ballooning software market for personal computers, with his letter suggesting software could be a marketable commodity only if the prevalent practices of shared development and unrestrained code sharing were squashed”.

104 A Berkley Software Distribution foi a mais importante das distribuições livres do UNIX. Sua licença de distribuição é considerada bastante permissiva pois não inclui nenhum dispositivo viral, ou seja, permite que um produto derivado possa ser publicado por uma licença diferente, inclusive uma licença fechada e proprietária.

105

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era de um software que funcionasse do que um que pudessem modificar, de forma que eles eram propriamente usuários-finais (end users). Esta é uma mudança crucial pois na antiga comunidade hacker não havia uma clara distinção entre programadores e usuários, i.e., todos eram de fato ou potencialmente co-desenvolvedores. Nesta nova situação, um novo grupo de usuários-finais havia sido criado e eles apenas consumiam software. O software proprietário prospera sobre este “emburrecimento” (dumbing down105) da cultura computacional pois ele cria um mercado onde há consumidores interessados em pagar por software pronto (readymade software), porém menos curiosos e interessados na tecnologia por baixo destes softwares106.

Neste mesmo momento, outro fator contribui fundamentalmente para a

ascensão da industria do software proprietário e para que ela se tornasse a

norma para a produção de software. Refiro-me aqui à modificação na lei de

Direitos Autorais dos EUA que passou a incluir o software como um de seus

objetos, consolidada com a aprovação pelo congresso dos EUA do Copyright Act

que havia sido proposta em 1976 (Zhu, 2011: 55).

O efeito direto dessas mudanças sobre a comunidade hacker – ou às redes

de colaboração e compartilhamento de código – foi sua desintegração (Levy,

2010). Muitos programadores foram contratados para trabalhar em empresas

recém-criadas e estas obrigavam seus funcionários a assinarem termos de sigilo e

de não compartilhamento de código (nondisclosure agreement) – sendo o caso

mais emblemático o da comunidade de hackers do Laboratório de Inteligência

Artificial do MIT.

105 A essa ideia de “emburrecimento” é interessante remeter a afirmação de Gilbert Simondon (2001, p. 250) de que “os objetos técnicos que produzem mais alienação são também aqueles que são destinados a utilizadores ignorantes”.

106 “Many of these new users possessed little or no programming knowledge at all and they did not have to. For these non-sophisticated users, what they need was workable software more than modifiable software and they were properly end-users. This is a crucial shift because in the older hacking community there was no clear distinction between programmers and users, i.e., everyone is actually or potentially a co-developer. In the new situation, a new group of end-users was created and they only consume software. Proprietary software thrives on the “dumbing down” of computer culture, because it creates a market where there are consumers more willing to pay for readymade software but less curious and inquisitive about the technology beneath it.”

106

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Richard Stallman (1999) viu esta passagem como um colapso da

comunidade hacker, como sua verdadeira desintegração: de uma hora para outra,

a comunidade hacker ficou “despovoada” e, ao mesmo tempo, impedida de existir

como uma comunidade cooperativa. A passagem para um regime de produção

balizado pelo software proprietário e não pela ética hacker implicava na perda do

que considerava o fundamentado da sociabilidade hacker: a possibilidade de

compartilhamento de código entre vizinhos.

O entendimento da proibição do compartilhamento como quebra de

sociabilidade precisa ser processada para além de uma questão estritamente

técnica ou tecnológica. Ou mesmo como decorrente de um interesse meramente

instrumental, ou seja, voltado a somente à realidade computacional, ao trabalho

dos programadores e à prática hacker. Trata-se antes do ponto alto da intuição

política de Stallman, que o fez capaz de antecipar os efeitos e reflexos do

enclausuramento do código para todo o sistema social e o instigou a criar o

conceito e o movimento do software livre. Na medida em que foi sendo cercado

por todos os lados por acordos de sigilo e de não compartilhamento

(nondisclosure agreements), seja para usar programas, para desenvolver

programas, e mesmo para trabalhar como programador, e na medida em que foi

vendo seus vizinhos deixando a comunidade e quebrando com a corrente da

colaboração, Stallman conseguiu transpor o horizonte imediato de suas redes de

relações e processar a transformação que ocorria como uma passagem para um

sistema social em que a sociedade abre mão e perde o controle sobre sua própria

computação. As consequências vislumbradas eram tão graves, que esta

passagem foi vista não só como perda de liberdade, mas como impossibilidade de

liberdade uma vez que não só os programadores ficavam impedidos de

compartilhar softwares, mas a sociedade ficava impedida de participar e de

influenciar no desenvolvimento tecnológico, que passava a ser objeto exclusivo de

empresas e, portanto, condicionado aos interesses de mercado e à lógica do

lucro.

107

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A negatividade do novo cenário derivava não só pelo fato de que a

comunidade hacker havia sido desintegrada, mas principalmente pelo fato de que

não seria possível voltar ao que era antes. Stallman se vê, então, diante de um

“difícil dilema moral”: aderir ao software proprietário; desistir da programação; ou

fazer alguma coisa para reverter esse cenário.

Como já havia sofrido na pele os efeitos da restrição de acesso ao código

fonte de um programa e a consequente perda de controle e de agência na

utilização de uma máquina – no célebre episódio da impressora no AI Lab do MIT

(Willians 2010, pp. 1-12) – , e considerava uma grave falha ética contribuir com

aquilo que via como um sistema injusto e anti-social, aderir ao software

proprietário não era uma opção.

Desistir da programação era algo um tanto impensável ou, no mínimo, um

tanto improvável, para uma pessoa que se autodefine como um “natural born

programmer107” (Stallman, 2009).

Mas o que poderia um indivíduo fazer sozinho diante de um inimigo tão

grande e poderoso? Stallman decidiu começar a desenvolver um sistema

operacional livre, afinal, o sistema operacional é o software fundamental para que

se possa usar um computador, sendo, assim, uma condição para que pudesse ser

constituído um ecossistema livre sobre o qual uma comunidade de

compartilhamento e colaboração pudesse ser recriada e florescer. Dessa forma, e

com esse intuito, criou o projeto GNU108.

O nome GNU não possui nenhuma relação com o mamífero quadrupede

107 Stallman se auto identificou como um “natural born programmer” na entrevista que realizei com ele na Rádio Muda (ver Stallman, 2009) , e ofereceu a seguinte definição para essa condição, na conferência que havia proferido na UNICAMP um dia antes, quando explicava os danos que o software proprietário causava na educação: “Os natural born programmers entre os 10 e 13 anos são fascinados por programas e querem saber como os programas funcionam, porque fazem aquilo. Se estudam em uma escola em que se utiliza software proprietário, o professor não pode lhes mostrar como o software funciona, não pode lhes indicar o código fonte. Eles não precisam ser ensinados a programar, mas precisam ter as condições para aprender a programar, ou seja, poder estudar, ler e escrever código.”

108 O projeto GNU foi apresentado pela primeira vez em setembro de 1983, e seu desenvolvimento teve início no ano seguinte, 1984. Cf.: http://www.gnu.org/gnu/initial-announcement.en.html .

108

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que habita a Savana Africana em manadas numerosas109. Trata-se de um

acrônimo recursivo que significa: GNU não é o UNIX (em inglês, GNU is Not Unix).

A utilização de um acrônimo recursivo segue uma longa tradição da criação de

nomes da comunidade hacker, e a referência negativa ao UNIX remete ao fato do

GNU ter sido desenvolvido a partir do UNIX110, sendo compatível com esse

sistema, mas constituindo um outro sistema. A compatibilidade com o UNIX foi

uma escolha estratégica para poder aproveitar a ampla base de usuários do UNIX

e, também, para permitir que o trabalho de desenvolvimento distribuído pudesse

ser integrado com mais facilidade e, até certo ponto, para que fosse viável

(Stallman, 1985):

Eu encontrei muitos programadores interessados em contribuir com parte de seu tempo de trabalho para o GNU. Para a maioria dos projetos, este trabalho distribuído e em tempo parcial seria bem difícil de coordenar; as partes escritas independentemente uma das outras não funcionariam juntas. Mas para a tarefa particular de substituir o UNIX, este problema não existe. Um sistema Unix completo contém centenas de programas utilitários, cada um documentado separadamente. A maioria das especificações de interface são garantidas pela compatibilidade com o Unix. Se cada contribuidor puder escrever um substituto compatível para um único utilitário do Unix, e conseguir que ele trabalhe corretamente no lugar do original em um sistema Unix, então estes utilitários irão funcionar corretamente quando colocados juntos.

A opção de iniciar o desenvolvimento de um sistema completo e livre

mudaria completamente a vida de Stallman – e, sem exageros, mudaria também

completamente a indústria do software. Alguns anos após iniciar o projeto GNU,

Stallman largaria seu emprego no AI Lab do MIT e criaria uma fundação sem fins

lucrativos, a FSF. A opção de abandonar o emprego para se dedicar totalmente ao

projeto GNU teve como motivação evitar qualquer possibilidade do MIT impedir

109 Apesar do “sistema social” em manada dos gnus também depender fortemente da coletividade e da solidariedade para enfrentar leões e outros predadores, permitindo assim que estes vivam e se reproduzam.

110 Uma explicação mais detalhada do porquê desta opção pode ser encontrada no “GNU's Bulletin” Volume 1 No. 1 de Fevereiro de 1986, página 9. Cf.: http://www.gnu.org/bulletins/bull1.txt .

109

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que compartilhasse o código do sistema GNU (Stallman, 1999). A criação da FSF

apareceu, então, como alternativa para viabilizar o desenvolvimento do sistema

GNU, para distribuir os softwares GNU e, também, para fortalecer politicamente a

luta pela defesa do SL.

Foi nesse contexto que foi criada a definição de SL que contém o germe do

enunciado das 4 liberdades essenciais do SL. A primeira publicação ocorreu no

primeiro boletim informativo da FSF, de fevereiro de 1986, em um texto que

apresenta o que era a FSF e que continha a seguinte formulação111:

A palavra livre [free] em nosso nome não se refere ao preço112; se refere à liberdade. Primeiro, a liberdade de copiar um programa e redistribuí-lo para seus vizinhos, de forma que eles, assim como você, possam utilizá-lo. Segundo, a liberdade de modificar o programa, de forma que você possa controlá-lo ao invés de ser controlado por ele; para isso, o código fonte deve estar disponível para você113.

Na medida em que o projeto evoluiu, foi ficando claro que era necessário

criar algum mecanismo de proteção para os softwares desenvolvidos. A simples

publicação dos códigos em domínio público, ou seja, sem qualquer restrição ao

uso, à distribuição e ao desenvolvimento derivado, não era suficiente, pois deixava

aberta a possibilidade dos códigos serem incorporados em softwares proprietários.

Disponibilizados em domínio público, indivíduos e empresas – mal-intencionados,

na acepção de Stallman – poderiam se aproveitar da liberdade do software para

criar produtos derivados que não seriam livres, ou seja, que não permitiriam que a

mesma liberdade fosse garantida e aproveitada por outros usuários.

Esta vulnerabilidade demonstrava que não seria suficiente somente uma

111 Cf.: http://www.gnu.org/bulletins/bull1.txt .112 Em inglês o termo free pode tanto significar livre quanto gratuito, por isso essa ressalva, que perde o

sentido quando o termo é traduzido para o português, é feita.113 “The word "free" in our name does not refer to price; it refers to freedom. First, the freedom to copy a

program and redistribute it to your neighbors, so that they can use it as well as you. Second, the freedom to change a program, so that you can control it instead of it controlling you; for this, the source code must be made available to you.”

110

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ética voltada para a colaboração e o compartilhamento, e uma filosofia política

fundamentada no conceito de liberdade. Seria necessário a criação de algum

mecanismo que pudesse ser aplicado para a proteção da liberdade do software e

do trabalho de liberdade das redes de colaboração e compartilhamento que os

produziram.

Apesar da extensão da aplicabilidade dos direitos autorais para o software

ter sido um dos fatores preponderantes e responsáveis pela possibilidade de

ascensão e consolidação do modelo de produção do software proprietário e, num

primeiro momento, ter sido considerado por Stallman uma blasfêmia (Levy apud

Zhu, 2011: 56), seria através de um uso esperto e não convencional destes

direitos que, alguns anos adiante, uma resposta eficiente e exequível seria criada

e aplicada. Resposta esta que chega a ser considerada por alguns analistas como

o grande e verdadeiro hack do movimento (Delanda, 2001)

Chenwei Zhu (2011: 58-67) mostra que desde 1981 com a criação da

“comuna114 de compartilhamento de software EMACS” já havia a tentativa de

emplacar uma dinâmica próxima do share-alike, ou seja, uma dinâmica que

determinava que o desenvolvimento derivado deveria ser compartilhado da

mesma forma e nos mesmos termos que o código original havia sido

compartilhado. Contudo, esta dinâmica ainda estava baseada apenas em

princípios e um incidente ocorrido dois anos depois de sua criação demonstraria

sua fraqueza. Christopher Kelty (2008: 180-206) descreve e trata deste incidente,

que envolveu o fechamento do código de uma versão derivada do EMACS, o

GOSMACS, e, em seguida, a venda deste software a uma empresa. Kelty destaca

que este incidente ocorreu no exato momento em que ficava evidente que a

aplicação de direitos autorais sobrepujaria o uso dos segredos de negócio como

modelo de negócio do software proprietário.

Este incidente precipitou uma disputa entre Stallman e James Gosling, o

114 Rafael Evangelista (2010, p. 41, nota 22) afirma que o uso do termo comuna apesar de ter sido utilizado por Stallman no início do desenvolvimento do EMACS foi, ao longo dos anos, substituído pelo termo comunidade (community), hoje o termo mais popular para designar grupos de usuários e desenvolvedores.

111

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criador do GOSMACS, e esta disputa fez como que Stallman se familiarizasse e

conhecesse de maneira ampla a lei de direitos autoriais. A partir daí, Stallman

criou a primeira licença que já aplicava o conceito de copyleft, a GNU EGPL115,

que em 1989 seria modificada para poder ser aplicada para qualquer software

livre, dando origem à licença GNU GPL. O conceito de copyleft pode ser

considerado como a grande conquista política do movimento software livre pois

constitui-se como uma resposta construída a partir da lógica do inimigo para

subverter essa lógica. É certo que, por um lado, a GNU GPL também implica em

restrições. Porém, as restrições são aplicadas no sentido de impedir que

liberdades sejam violadas.

Como já mostramos, um regime teoricamente mais livre de distribuição, o

domínio público, o qual não impõe nenhuma restrição a qualquer forma de

distribuição subsequente ou derivada, havia se mostrado ineficiente, pois permitia

que a liberdade de um usuário suprimisse a liberdade de outros. Com o intuito de

criar um mecanismo efetivamente capaz de proteger a liberdade dos usuários, foi

preciso criar uma forma de restrição à privatização do código livre. Uma nova

forma de restrição que, baseada e amparada nos direitos autorais, impedia a

privatização do código publicado como livre e de seus usos derivados, que

permaneceriam, obrigatoriamente, livres.

O copyleft tal como aplicado pela GNU/GPL é dotado de uma característica

que acabou tendo um efeito para além da proteção do software livre. Essa

característica denominada de virótica, diz respeito à exigência de que qualquer

desenvolvimento derivado de um software livre licenciado sob os termos da

GNU/GPL, ou qualquer software que incorpore este software, ou parte deste

software, deve ser licenciado pela mesma licença e nos mesmos termos. Dessa

forma, além de proteger a liberdade do usuário, esta característica estabeleceu as

bases para expansão do conjunto de códigos livres e, consequentemente, do

115 A primeira versão da GNU EGPL (GNU EMACS General Public License) foi publicado no ano de 1985, e sofreu modificações em 1987 e 1988. O texto da última versão pode ser acessado em: http://www.cogsci.indiana.edu/pub/COPYING e também nos anexos da Tese de Chenwei Zhu (2011).

112

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próprio movimento do software livre.

Amparados por uma licença dotada de valor legal e de capacidade de

aplicação (enforceability) – que seria testada e comprovada somente mais adiante,

na virada dos anos 1990 para os anos 2000116 – os princípios éticos e filosóficos

da liberdade do SL puderam evoluir e se consolidar. Em 1996, as 4 liberdades

essenciais do SL foram publicadas sob a forma que atualmente conhecemos.

Analisando as 4 liberdades, podemos perceber que as duas primeiras

liberdades visam defender liberdades individuais, liberdades que podem ser

experimentadas na relação direta entre um indivíduo e o computador. No caso, a

liberdade de que o usuário use o programa para qualquer fim, que possa estudar

seu funcionamento e alterá-lo para atender seus interesses e necessidades. As

outras duas liberdades, visam defender liberdades coletivas, liberdades que são

essenciais para que as prática da cooperação e da criação compartilhada sejam

possíveis. É importante destacar que para que essas liberdades sejam exequíveis,

o acesso ao código fonte é uma pré-condição. No entanto, o acesso ao código

fonte não é sinônimo de liberdade – e aqui reside um importante ponto de

diferença em relação ao conceito de Open Source, que será apresentado com

mair detalhes na terceira parte deste capítulo.

Para que a liberdade 1 e a liberdade 3 sejam praticadas, é necessário

conhecimento técnico de programação. Porém, o respeito a essas duas liberdades

não diz respeito apenas aos programadores, pois os usuários finais podem tirar

proveito da liberdade dos programadores através das outras duas liberdades. Sem

contar que um usuário sem conhecimento técnico de programação pode sempre

pedir ou contratar um programador para tirar proveito dessas liberdades.

Dessa forma, é interessante notar que há uma relação clara entre liberdade

individual e liberdade coletiva. Podemos mesmo dizer que há uma relação de

dependência entre elas, pois caso alguma das 4 liberdades seja desrespeitada, o

116 Ase Stiller (2011) oferece uma visão sobre os principais processos e disputas envolvendo a GNU/GPL que, ao longo dos últimos anos, vem consolidando a capacidade de aplicação legal da licença. Esta questão será abordada como mais detalhes no próximo item deste capítulo.

113

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software não pode ser considerado um software livre. Essa articulação é

considerada fundamental e, por isso, liberdades individuais e coletivas são

inseparáveis e mutuamente dependentes, pois são a base da constituição do

ecossistema do SL – do fundo comum de códigos disponíveis para criação

compartilhada – e, ao mesmo tempo, da prática social de cooperação e de

solidariedade que o movimento SL busca resgatar das comunidades hackers do

período da computação pré-software proprietário.

A liberdade do software livre pode ser definida portanto, a partir da trajetória

de sua afirmação e da luta pela sua defesa, como uma liberdade associada ao ato

de compartilhar códigos e softwares, e à capacidade de controlar o processo

computacional, seja para aplicá-lo para qualquer uso específico (usar para

qualquer fim), seja para alterá-lo e incrementá-lo (fazê-lo funcionar melhor ou com

uma nova função).

Além dessas características, a liberdade do SL é portadora de um potencial

político de superação de um tipo específico de alienação, que não se resume à

posse ou propriedade sobre os meios, e que “se traduz pela ruptura entre o

conhecimento técnico e as condições do exercício do uso117” dos meios, como

afirma Gilbert Simondon (2001: 250). Ou seja, é portadora do potencial de

informar o que o filósofo francês chama de uma verdadeira “cultura técnica”, que

decorre da integração e continuidade entre o pensamento humano e a natureza

própria da realidade técnica, a tecnicidade.

Um último comentário se faz necessário a respeito da sempre presente

tentativa de se evitar o sentido de gratuidade que aparece implícito na ideia do

software livre e que é mesmo a justificativa para a criação do conceito de open

source. Justificativa feita através de enunciados como: “uma questão de liberdade,

não de preço” e “livre como em liberdade de expressão e não como em cerveja

grátis118”. Apesar de ser plenamente compreensível a necessidade de afirmar que

117 “L'aliénation du travailleur se traduit par la rupture entre le savoir technique et l'exercice des conditions d'utilisation.”

118 A tradução faz como que este segundo enunciado perca seu sentido, sua versão original, em inglês, é a

114

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o sentido de liberdade do SL não é redutível a ideia de que o software livre é um

software que para ser acessado e utilizado não é necessário que se pague, ou

seja, o conceito de software livre não pode ser reduzido ao de software grátis, é

preciso destacar que há um potencial de liberdade na gratuidade. E que este

potencial é uma implicação, uma consequência, e não um imperativo do SL.

O software livre não é necessariamente gratuito, pois é possível distribuí-lo

livremente e com garantias às liberdades dos usuários e, ao mesmo tempo, cobrar

por esse software – seja por seu desenvolvimento, ou por sua distribuição. No

entanto, como não se pode proibir a distribuição livre deste software mesmo que

se venda este software, então, no limite, não é necessário pagar para obtê-lo. De

forma que, como uma consequência da liberdade de uso, de distribuição e de

re-distribuição, todo software livre é passível de ser obtido de maneira gratuita.

Destaco essa questão, pois, como mostraremos com mais detalhes na seção 4.1,

no contexto de países do Terceiro Mundo, proponho que o sentido de gratuidade –

o qual, como apontei, muitas vezes se busca evitar para que o sentido original da

liberdade do SL não se perca – seja percebido como liberdade de não pagar.

Esta proposta consiste no processamento da gratuidade como vetor para a

adoção do SL, através de arranjos que não só não abandonam os princípios e

ideais de liberdade do SL como, em alguns casos, os amplificam ao expô-los a

realidades e contextos que dependem da gratuidade para poderem acessar a

tecnologia, e que fazem a liberdade do SL encontrarem com outras liberdades.

seguinte: “free as in free speech not as in free beer”.

115

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2.2 CONSEQUENCIAS NÃO-INTENCIONAIS I: GNU/GPL

Se você aponta [sua vela] para o Norte, o vento te leva para algum lugar mais ou menos ao Norte, quer você queira ou não.

Richard Stallman119

O filósofo mexicano, radicado nos EUA, Manuel Delanda apresentou em

2001, no Instituto de Estudos Avançados de Princeton120, em Nova Jersey, um

texto intitulado “Open Source: Um Movimento em Busca de uma Filosofia121”. Na

época em que realizou esta apresentação, o SL ganhava notoriedade política por

passar a ser considerado uma alternativa viável ao monopólio de mercado da

Microsoft, que até então parecia ser imbatível. Da mesma maneira, seu modo de

produção – considerado como anárquico e caótico – surpreendia a muitos pela

alta qualidade dos resultados alcançados por seus produtos e pela agilidade de

seus processos.

Após sua apresentação em Princeton, este texto de Manuel Delanda foi

publicado apenas na internet. Não se trata de um texto muito conhecido. Na

verdade, o texto é muito pouco citado pelos estudiosos do tema. O autor, que

possui uma respeitável obra que explora as interseções entre filosofia, arte e

tecnologia, possui apenas uma outra publicação que aborda o tema122. Um texto

ainda mais curto, publicado alguns meses antes e que já contém o esboço da

formulação que analisamos aqui. Fora isso, em 2004, tratou mais uma vez do

assunto, em uma entrevista para uma estação de rádio dinamarquesa,

mobilizando-o para explicar a abordagem de sua prática filosófica, a qual

119 “If you head North, you wind up somewhere more or less to the North, whether you wanted to or not.” Cf.: http://en.wikiquote.org/wiki/Richard_Stallman .

120 Cf.: http://www.ias.edu/ . 121 “Open Source: A Moviment in Search of a Philosophy” :

http://www.cddc.vt.edu/host/delanda/pages/opensource.htm .122 Cf.: Manuel DeLanda, ‘The Politics of Software: The Case for Open Source’ in Dissent Magazine, New

York: Foundation for the Study of Independent Social Ideas, Fall 2001

116

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apresentou como uma espécie de filosofia-hacker123. Depois disso, não publicou

mais nada sobre o assunto.

Chama atenção nesse texto o modo como Delanda rejeita tanto a filosofia

do SL quanto a do OS através da desconstrução de alguns conceitos e

enunciados dos líderes mais proeminentes de cada um dos movimentos,

respectivamente, Richard Stallman e Eric Raymond, chegando até a afirmar que o

que interessa na análise filosófica do movimento é que “a baixa qualidade de suas

filosofias é totalmente irrelevante para o sucesso do movimento”. Tratando SL e

OS como um só movimento, afirma que as conquistas do SL são consequências

pragmáticas não-intencionais de um movimento coletivo e dotado de capacidade

de auto-evolução. Aplicando a teoria econômica dos custos transacionais – que

também será a base de um importante texto de Yochai Benkler (2005) – analisa

dois elementos que pertencem tanto ao universo do SL quando do OS, cujos

efeitos são, na sua leitura, o segredo do sucesso do SL enquanto modo de

produção: a criação da licença GNU/GPL, que informou um ambiente institucional

propício ao desenvolvimento colaborativo; e a criação do paradigma de produção

do LINUX, que informou uma estrutura de governança para a produção.

Num primeiro momento, é um pouco difícil concordar com o fundamento da

afirmação de Delanda, de que o “movimento open source” estaria em busca de

uma filosofia não pela ausência de uma filosofia, mas pelo fato de que suas várias

filosofias – que oscilariam entre uma “filosofia moral a priori” e uma tentativa de

“filosofia pragmática” extraída etnograficamente das próprias práticas dos hackers

– quando contrastadas “com a alta qualidade dos softwares produzidos, (…) são

rasas e frágeis” (p.1). Além disso, são um tanto questionáveis algumas de suas

123 Segundo um comentário a respeito deste programa de rádio (o qual não tive acesso) publicado por Tom Tyler em um site que reúne uma bibliografia comentada de Delanda, esta abordagem de “filosofia-hacker” derivaria da seguinte condição: “diferente de acadêmicos de carreira aos quais é requerida a especialização, ele [Delanda] é capaz de pesquisar em diferentes disciplinas e, por isso, é capaz de criar conexões entre diferentes campos”. Cf.: Michael Cristophersen and Manuel DeLanda, 'Hackerfilosoffen Manuel DeLanda' Danish Broadcasting Corporation (DR), 22-23.05.2004 (in Danish and English). Para referência do comentário: http://www.cddc.vt.edu/host/delanda/

117

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proposições como, por exemplo, em relação à criação da GNU/GPL, de que

“pode-se perfeitamente imaginar outro hacker guiado por considerações mais

pragmáticas [que as de Stallman] propondo basicamente a mesma ideia”.

Contudo, apesar de se tratar de um texto de um não-especialista, que,

ademais, parece ignorar ou até mesmo desprezar a questão da liberdade –

reduzindo-a a uma questão subjetiva associada à prática hacker de querer

desenvolver código de qualidade124 – sua proposta de analisar o que chama de

sucesso do movimento open source não pelas “ações intencionais de seus

principais protagonistas, ações que são informadas por filosofias específicas, mas

por suas consequências coletivas não-intencionais” mostra-se instigante e

profícua. De forma que acredito que esta proposta possa nos ajudar a entender a

relação entre tecnicidade e política inaugurada pelo SL e o modo próprio da

evolução dessa relação: como algo que extrapola o efeito de uma ação política

original, e que engloba a tecnologia e o ambiente – ou ecossistema – associado a

ela como participantes ativos do processo político.

No que concerne a esta parte deste capítulo da Tese, abordaremos os

aspectos da discussão proposta por Delanda a respeito da criação e do

funcionamento da licença GNU/GPL. Deixaremos para explorar os aspectos

relativos a criação do Linux na próxima parte desta seção.

A GNU/GPL é uma licença de tipo copyleft baseada nos direitos autorais

que traduz para uma linguagem jurídica e contratual os princípios das 4

liberdades, fazendo a lógica dos direitos autorais funcionar a favor da proteção da

criação e da circulação de conhecimento dentro do regime do SL. Este aspecto é

importante: o copyleft não ocorre como uma negação dos direitos autorais.

Podemos afirmar que se trata de uma reversão do modo como os direitos autorais

são aplicados: ao invés de restringir a cópia e o compartilhamento por parte dos

usuários, o copyleft assegura que os usuários tenham o direito de copiar e de

compartilhar o software licenciado sob seus termos.

124 E nesse sentido Manuel Delanda nem percebe como se aproxima da filosofia do OS.

118

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É necessário destacar a diferença entre “reversão de alguns efeitos de sua

aplicação convencional” de uma verdadeira “negação dos direitos autorais” pois,

na verdade, a GNU/GPL depende das leis de direitos autorais tanto para sua

existência quanto para sua eficácia. Como pode ser observado no item 5 da seção

“Termos e condições para cópia, distribuição e modificação125” da versão 2.0 da

licença GNU/GPL, através da seguinte formulação:

Você não é obrigado a aceitar esta Licença já que não a assinou. No entanto, nada mais o dará permissão para modificar ou distribuir o Programa ou obras derivadas deste. Estas ações são proibidas por lei caso você não aceite esta Licença. Desta forma, ao modificar ou distribuir o Programa (ou qualquer obra derivada do Programa), você estará indicando sua total aceitação desta Licença para fazê-los, e todos os seus termos e condições para copiar, distribuir ou modificar o Programa, ou obras baseados nele126.

Ainda no preambulo desta licença, encontramos a seguinte formulação que

apresenta a base de sua sustentação e de seu funcionamento:

Nós protegemos seus direitos em dois passos: (1) com copyright do software e (2) com a oferta desta licença, que lhe dá permissão legal para copiar, distribuir e/ou modificar o software.

Nesse sentido, pode-se mesmo advogar que, portanto, a GNU/GPL acaba

legitimando a lógica e o sistema dos direitos autorais e expandindo sua aplicação

e sua aplicabilidade. O que pode até mesmo parecer um contrassenso. Contudo,

não se pode afirmar que o enclausuramento do conhecimento associado às

práticas do software proprietário, com a implicação da proibição e do impedimento

ao compartilhamento de código, seja uma decorrência da aplicação dos direitos

autorais ao software. Como mostramos na seção 2.1, a consolidação do modelo

125 «TERMS AND CONDITIONS FOR COPYING, DISTRIBUTION AND MODIFICATION»: http:// www.gnu.org/licenses/gpl-2.0.html .

126 Para a tradução da licença para o português do Brasil ver: http://www.magnux.org/doc/GPL-pt_BR.txt . Para a versão original em inglês ver: http://www.gnu.org/licenses/gpl-2.0.html .

119

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de produção do software proprietário depende da correlação de fatores

econômicos, tecnológicos e, sobretudo, políticos. Ademais, como mostramos

também, a publicação dos softwares no domínio público ou em um esquema

comunal/comunitário dependente somente de princípios éticos mostrou-se frágil,

ineficiente e, principalmente, insuficiente para garantir a liberdade do software e da

prática do compartilhamento. Dessa forma, acredito que é mais potente entender a

criação da GNU/GPL como um hack político, como uma reversão e mesmo como

uma inversão do sentido de aplicação majoritária e hegemônica do copyright que

aproveita a lógica do copyright e do sistema social constituído para aplicá-lo,

fazendo-a funcionar em um outro sentido. Um hack político, portanto, pois uma

resposta na lógica do inimigo que subverte a linguagem da apropriação para

limitar a apropriação: não se trata de contrariar o sistema de direitos autorais, mas

fazê-lo funcionar a seu favor, limitando-o.

Se o sistema de copyright se consolidou como um sistema de restrições à

cópia e à distribuição impostas ao usuário baseadas na exclusividade destes

direitos ao autor127, a GNU/GPL consolidou um conjunto de regras para garantir o

direito de cópia e de distribuição ao usuário, usando seu poder (legal) de restrição

para impedir infrações a estes direitos. Dessa forma, transforma o sentido da

aplicação do copyright, revertendo seu efeito majoritário e hegemônico, tornando-o

em um instrumento de proteção e de promoção de cópia e de distribuição de

software que, amparado nesse arranjo, se torna livre.

Nesse sentido, é válido retomar o argumento de Delanda (2001) para

aproveitar sua explicação deste arranjo que combina o aproveitamento do

copyright para a reversão do sentido de sua aplicação:

Os termos do acordo de licença são espertamente128 projetados para excluir aproveitadores (free-raiders), ao forçar todos que

127 E aqui é preciso destacar que a figura do “autor” na maioria das vezes é meramente simbólica e funcional, uma vez que os principais detentores de copyrights são empresas, às quais os programadores cedem seus direitos por meio do contrato de trabalho.

128 Esta ideia de um uso esperto dos direitos autorais também aparece de maneira forte em Kelty (2008).

120

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utilizarem código previamente distribuído como open source a abrirem qualquer contribuição que for feita [a partir deste código]. Este efeito não é atingido pela abolição da propriedade intelectual, cada contribuidor possui o direito autoral de qualquer peça de código que desenvolveu, mas pela alteração do modo como os direitos de exclusão são aplicados129.

Mais adiante em seu texto, mobilizando o pensamento de David McGowan

(2001: 147), Manuel Delanda descreve como se dá o funcionamento do copyright

através do modo específico que a GNU/GPL o mobiliza:

O sistema da GNU/GPL se baseia na atribuição de direitos de propriedade (copyright) a um autor que é, então, capaz de conceder direitos não-exclusivos e transferíveis aos membros da comunidade, sujeitos às limitações impostas pelos princípios da comunidade. Esta estrutura proporciona aos usuários subsequentes do código protegido por direitos autorais a capacidade de passar adiante as restrições que incorporam os princípios do open source, resultando na disseminação destes princípios na mesma proporção da distribuição do código. O direito de excluir não é abandonado; no entanto, este modelo garante ao detentor do direito a capacidade de impor aqueles princípios [os princípios do open source] através de uma ação por infração caso necessário.130

O fato da GNU/GPL não só proteger a distribuição livre de código, como

também estimular que códigos sejam publicados sob seus termos, é um aspecto

importante e fundamental de seu sucesso e de sua especificidade. Isto ocorre por

ela exigir e obrigar que qualquer produção derivada de um código licenciado por

ela, adote a mesma licença para sua distribuição subsequente – no que costuma

129 “The terms of the license agreement are cleverly designed to exclude free-raiders, by forcing everyone who uses previously open-source code into opening whatever contributions he or she makes. This effect is not achieved by abolishing intellectual property, each contributor owns the copyrights of whatever piece of code he or she has developed, but by altering the way in which the rights of exclusion are deployed.”

130“The GNU GPL system rests on the assignment of property rights (copyright) in an author, who is then able to grant nonexclusive, transferable rights to community members, subject to limitations that enforce community tenets. This structure gives subsequent users of the copyrighted code the ability to pass along restrictions that embody open-source tenets, resulting in the dissemination of the tenets in proportion to the distribution of the code. The right to exclude is not abandoned; however, this model gives the rights-holder the ability to enforce those tenets through an infringement action if necessary.”

121

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ser chamado de efeito virótico.

Pela complementariedade entre os princípios políticos e a aplicação de um

instrumento jurídico portador de valor legal (capacidade de ser imposto através de

uma ação por infração; e dotado de poder de jurisprudência131), a GNU/GPL

estabelece uma relação de recursividade (Kelty, 2008; Perdersen, 2010) entre

estes princípios (políticos) e a prática (sócio-técnica) que pretendem defender, na

qual o avanço de um reforça e fortalece a expansão do outro. Nas palavras de

McGowan mobilizadas por Delanda: “a disseminação dos princípios [do SL] ocorre

na mesma proporção da distribuição do código”.

Ainda acompanhando o pensamento de Delanda, podemos perceber que:

(...) a originalidade da GPL é a de ao invés de ativamente explorar o direito de excluir como ele é explorado pelas licenças convencionais, este direito é realizado como método de forçar a adesão às normas incorporadas pela licença. (…) Dessa forma, a licença se torna um instrumento legal para construção de uma comunidade (preservando e propagando normas que até então pertenciam apenas a uma pequena comunidade, permitindo que ela cresça e se estabilize), para além de seus objetivos mais imediatos de manter o software aberto e de servir como meio para alocar crédito para contribuições particulares.132

Essa característica virótica – principalmente o emprego deste termo – já foi

usada como uma maneira de depreciar o SL, e mesmo como uma maneira de

enfraquecer a adesão à utilização da GPL. A expressão já aparece no Jargon

File133, em sua versão 2.2.1 de 15 de dezembro de 1990, sob a forma do verbete 131A esse respeito, a página da Wikipedia dedicada à GNU/GPL e escrita em inglês traz uma relação das

disputas mais significativas, Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/GNU_General_Public_License#Legal_status.

132 “the originality of the GPL is that rather than actively exploiting the right to exclude, as it is done in conventional licenses, this right is held "in reserve as a method of enforcing adherence to the norms embodied in the license". In this way, the license becomes a legal instrument for community-building (preserving and propagating the norms of a once small community allowing it to grow and stabilize) in addition to its more immediate goals of keeping the software open and of serving as a means to allocate credit for particular contributions.”. A citação interna é referente a David McGowan (2001).

133 O Jargon File é uma coleção de gírias e termos utilizados por hackers coletadas desde os anos 1970. A versão que cito aqui, foi organizada e mantida por Eric Raymond. Cf: http://catb.org/esr/jargon/oldversions/jarg221.txt . A última versão do Jargon File, número 4.4.8 é de

122

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“General Public Virus”. Ou seja, logo após o lançamento de sua primeira versão,

que ocorreu em 1989134. Em 2001, Craig Mundie, então vice presidente sênior da

Microsoft, chegou a afirmar que o aspecto viral da GNU/GPL constituía “uma

ameaça à propriedade intelectual de qualquer organização que a utilize”135, em um

discurso em que defende o modelo do software proprietário como único modelo

viável para o desenvolvimento de software comercial, e mesmo como único

modelo viável para a produção criativa de software – alegando inclusive que o

modelo do open source seria um modelo datado, ultrapassado, que foi útil e

adequado à realidade da industria da computação na era dos mainframes.

Por outro lado, desenvolvedores que defendiam o modelo de licenciamento

do BSD – o qual permitia qualquer tipo de utilização derivada, inclusive o

fechamento do código em um produto proprietário, exigindo somente a referência

a autoria do código aproveitado – utilizavam a expressão no sentido de que a GPL

infectava os códigos que entravam em contato com os códigos licenciados por ela.

Numa alusão direta aos códigos licenciados pela licença BSD que, incorporados

em novos projetos, passaram a ser licenciados pela GPL136, e, também, numa

tentativa de afirmar que a licença BSD era mais livre, justamente por não impor

nenhuma restrição a seus usuários137.

No entanto, concordo com o argumento de Delanda (2001), de que:

Mesmo que essa caracterização soe insultante para Stallman, na verdade ela é desprovida de qualquer conotação negativa se aceitarmos o papel da licença em propagar e aplicar normas

outubro de 2004.134 Cf.: http://www.gnu.org/licenses/gpl-1.0.html .135 "This viral aspect of the GPL poses a threat to the intellectual property of any organization making use of

it.”. The Commercial Software Model, apresentação realizada na The New York University Stern School of Business em 03/05/2011, cf.: http://www.microsoft.com/en-us/news/exec/craig/05-03sharedsource.aspx .

136 A esse respeito, é interessante notar que este efeito por parte da GPL não é diferente de nenhuma outra utilização de código BSD em software proprietários que, por sua vez, também passam a distribuir a obra modificada – ou mesmo a mesma peça de código – sob outra licença.

137 Nesse sentido é válido recomendar a leitura do texto “Liberdade ou Poder?” no qual Richard Stallman e Bradley M. Kuhn, destacam o caráter coletivo da liberdade e justificam a necessidade de impor restrições sobre o poder individual para garanti-la. Cf.: http://www.gnu.org/philosophy/freedom-or-power.html .

123

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comunitárias138.

Nesse sentido, é interessante guardar que a GPL é fundamental não só

para garantir e manter o software livre; além de limitar a apropriação e impedir que

o código seja fechado em um produto ou obra derivada proprietária, ela informa

um domínio comum compartilhado e compartilhável. A GPL favorece uma estrutura

para a produção baseada no compartilhamento ao garantir uma proteção legal

para a prática do compartilhamento. E dessa forma, como consequência

não-intencional do intuito de proteger a liberdade do software e da prática do

compartilhamento, forneceu a infraestrutura institucional que possibilitou o

surgimento e o desenvolvimento de um ecossistema livre e aberto para a

produção de código, que se expande na medida em que o código é compartilhado.

Porém, as consequências não-intencionais não param por aí, pois a

estrutura institucional criada pelas licenças copyleft acabou por favorecer também

o surgimento de novos modelos de negócios, uma vez que o copyleft se mostrou

mais eficiente para promover a inovação e a criação da produção de software em

meio à informação digital.

Nesse ponto, é interessante retomar dois enunciados apresentados

anteriormente. Primeiro, o de Calvin Mooers (Dexter e Chopra, 2007: 9), que em

1968 ao clamar por “uma base adequada para o desenvolvimento e a

comercialização de software proprietário” afirmou que os métodos dos direitos

autorais, patentes e segredos de negócios demonstravam uma “capacidade

duvidosa” para fornecer esta base. Segundo, o de Stewart Brand (1987: 202), de

que a “informação quer ser livre pois tem se tornado cada vez mais barata para

que se distribua, copie e recombine – muito barata para ser medida”.

Estes dois enunciados são importantes pois permitem a visualização de um

aspecto fundamental da informação digital, que é sua capacidade de replicação e

de reprodução sem diferença sensível entre original e cópia. Tal característica a

138 “Although this characterization sounds insulting to Stallman, it is in fact devoid of any negative connotations if one accepts the role of the license in propagating and enforcing community norms.”

124

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torna barata demais para que o custo de sua reprodução seja calculada, ao

mesmo tempo, que torna praticamente impossível o controle sobre sua circulação.

O copyright convencional depende para sua realização econômica que essa

circulação generalizada e descontrolada seja evitada, e pode mesmo ser

considerado como um dispositivo que tenta forçar este controle, inclusive

criminalizando quaisquer práticas que fujam a seus termos139. Ou seja, a

realização econômica do modelo de negócio do copyright convencional depende

da negação do que, amparados pelo célebre enunciado de Stwart Brand,

podemos chamar de uma tendência imanente da informação digital em se

propagar de maneira descontrolada – Information wants to be free. O copyleft, por

sua vez, mostra-se mais próximo ou adequado a essa tendência. E, além de não

precisar e nem buscar contrariá-la, ainda a potencializa, pois permite que junto

com o código informacional seja propagado o conhecimento associado a ele,

conhecimento esse que é fundamental para a exploração de seus potenciais de

aplicação e para a exploração de seus potenciais de evolução.

Essa relação negativa entre o copyright com o que podemos chamar de

tendência imanente da informação ainda possui uma outra implicação, a qual na

acepção de Laymert Garcia dos Santos (2007) expressa um “paradoxo da

propriedade intelectual”, que ocorre por esse “mecanismo criado para proteger [e

139 A esse respeito, é importante fazer a ressalva de que as práticas comumente chamadas de pirataria, as quais são criminalizadas e combatidas, por vezes são exploradas de maneira positiva, no sentido de consolidar tecnologias proprietárias como o padrão tecnológico de um mercado e mesmo como “uniforme da percepção”, ou seja, como padrão de linguagem tecnológica. Sendo o caso mais emblemático o da Microsoft que estimulou ou tolerou a pirataria do Microsoft Windows em mercados emergentes, para, após a conquista da hegemonia dos usuários, buscar tirar algum proveito econômico. Esta prática chegou a ser comparada com a do traficante que oferece num primeiro momento doses gratuitas de uma droga, para em seguida explorar comercialmente o viciado. O sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, na ocasião em que presidia o ITI chegou a ser processado pela Microsoft por estabelecer essa relação (cf.: http://www.softwarelivre.gov.br/noticias/processosergio). Na conferência realizada por Stallman na UNICAMP em 2009, ele abordou essa estratégia de conquista de mercado explorando os sentidos do trocadilho entre os termos dumping e doping. Os efeitos mais nocivos dessas estratégias de dumping são sem duvidas os praticados junto a instituições educacionais, como é o caso da UNICAMP, que possui um programa através do qual a Microsoft oferece seus produtos a preços muito abaixo dos praticados pelo mercado e mesmo gratuitamente para os estudantes.

125

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favorecer] a invenção tornar-se um obstáculo a ela140”. A raiz deste paradoxo no

que concerne a aplicação de copyright sobre software, é que esta aplicação

aliada a um regime de não compartilhamento do código-fonte, ou seja, do

enclausuramento do conhecimento, acaba por retardar os avanços da pesquisa e,

consequentemente, do conhecimento em geral, uma vez que a circulação do

conhecimento é restringida e limitada a terceiros.

As implicações deste paradoxo sobre a produção de software são ainda

mais graves no que concerne a aplicação de patentes. Mobilizando o pensamento

de Paul David, Laymert Garcia dos Santos afirma que (David apud Santos, 2007:

47):

Os sistemas de software são exemplos típicos da criação de funcionalidades complexas através de um processo de inovação tecnológica que é incremental e cumulativo, com “efeitos técnicos” novos realizados através da recombinação de numerosas invenções de subcomponentes já existentes, isto é, as sub-rotinas informacionais. Tal processo implica num extraordinário grau de complementaridade entre as contribuições inventivas, e isso se reflete na ênfase na modularidade da arquitetura do sistema de software.

Na sequência, Garcia dos Santos (2007: 47-48) desdobra a reflexão de

David para apresentar de maneira precisa as implicações do enclausuramento do

conhecimento para a produção de software:

sendo “máquinas implementadas como texto”, os softwares não são inteiramente criados, mas antes se constituem como recombinações de informações digitais que já existiam em outras configurações. Isso significa que sua invenção não só depende de, e é complementar a, outras invenções de mesma ordem, mas também que a criação de software é intrinsecamente incremental e coletiva, tanto no espaço quanto no tempo (…) os “atributos especiais do software” fazem com que ele nunca seja um produto acabado, mas sim um verdadeiro work in progress cuja natureza

140 Para dados complementares sobre os paradoxos e mesmo limites da lógica da Propriedade Intelectual ver ANEXO WK-21.

126

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processual se corporifica particularmente na modulação, isto é na sua capacidade de ir se inventando em sintonia com o fluxo de inputs que recebe na interação com outras máquinas e outros seres humanos, sob a forma de informações, ou seja, de diferenças que fazem a diferença. Em suma: a invenção de um software só se cristaliza e se “completa” graças a uma violência arbitrária que impede a continuidade das operações de recombinação e de modulação. Nesse sentido, quando se barra a possibilidade de outros criadores, consumidores e usuários desenvolverem as virtualidades dos componentes de um programa que ainda não foram atualizadas, o que se veta é muito mais do que o acesso a algo “dado”, o que fica comprometido é o próprio devir de um conhecimento que não pode se formular e se concretizar.

Não-intencional, mas fruto de uma intuição política aguçada e dotada de

forte potencial de antecipação, e de uma percepção mais próxima e sintonizada à

tecnicidade do meio informacional – ou seja, de um pensamento que conseguiu

fluir junto com a natureza do meio – o copyleft tal como consolidado sobretudo

pela GNU/GPL mostra-se, portanto, mais propício para favorecer não só a criação

e a evolução de softwares e do conhecimento associado a eles, mostra-se mais

propício para fazer como que a propriedade intelectual cumpra sua função, aquela

que justifica sua existência: a de fazer o conhecimento circular, ser difundido e

evoluir.

A validade legal da GNU/GPL e a capacidade de sua aplicação

(enforcement) são temas que já foram e continuam sendo bastante debatidos e

até mesmo questionados (Wacha, 2005; Lotan, 2010; Gomulkiewicz, 2011; Stiller,

2011; Meeker, 2012). Por outro lado, a GNU/GPL já foi testada, em diferentes

aspectos e situações, em cortes dos EUA, da Europa e também em outros países.

E nesse ponto, é interessante destacar um outro fator que também é

fundamental para o entendimento do papel operado pela licença GNU/GPL como

instrumento de regulação, e do papel da FSF como mantenedora desta licença.

Como afirma, em uma perspectiva crítica que busca afirmar a ineficiência da GPL,

Karni Lotan (2010: 3):

127

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A FSF, praticamente como um legislador, possui tanto as ferramentas quando o respaldo público (public standing) para implementar modificações caso a GPL não seja mais socialmente ótima [em sua aplicação] e se outra abordagem puder aliviar suas ineficiências e ainda estar em consonância com a manutenção dos objetivos subjacentes à GPL141.

Devido à ampla adoção da GPL – e Clark D. Asay (2008: 266-267, nota 7),

fala de algo entre 65% e 75% de todos os softwares livres e open source – a FSF

desfruta, portanto, de uma posição privilegiada para lidar com as transformações

do mercado e mesmo para enfrentá-las. Este fator, também uma consequência

não-intencional do modo como foi criada, pois fruto de um sucesso que não se

poderia prever, pôde ser observado recentemente com o processo de revisão da

GPL e do lançamento de sua terceira versão da GPL, conhecida como GPLv3142,

ocorrido em 2007. O que interessa neste processo é que as modificações e

ajustes introduzidos pela GPLv3 visam adequar a GNU/GPL às novas realidades

tecnológicas e às novas práticas de mercado, e visam evitar a exploração de

certas brechas que, ao longo dos anos, foram encontradas e passaram a ser

exploradas em detrimento das liberdades do SL e também da integridade e da

vitalidade de seu ecossistema.

As principais alterações foram: modificação de alguns termos empregados

como, por exemplo, o termo distribuição, para evitar que variações do sentido

destes termos em diferentes países não afetassem os efeitos da licença – num

esforço claro de internacionalização da licença, até então muito ligada à

linguagem da lei de direitos autorais dos EUA; e a inclusão de provisões voltadas

para combater a utilização de DRM e os efeitos da aplicação de patentes de

software.

141 “The FSF, almost akin to a legislator, has both the tools and the public standing to implement changes if the GPL were not to be socially optimal and if another approach could alleviate its inefficiencies and still be consonant with maintaining the underlying goals of the GPL.”

142 Cf.: http://www.gnu.org/licenses/gpl-3.0.html .

128

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Clark D. Asay (2008) oferece uma reflexão detalhada e pertinente tanto dos

novos recursos da GPLv3 quando dos possíveis efeitos para o movimento SL

como um todo, inclusive indagando a possibilidade de que, como consequência

das novas características, as diferenças entre o OS e o SL se amplifiquem e

mesmo que ocorra uma balcanização do movimento e de projetos a partir da

ocorrência de forks. Não cabe aqui uma análise profunda de cada nova

especificidade introduzida nesta versão, o que interessa é destacar o modo como

ela aborda e enfrenta as duas principais ameaças à liberdade do SL, do

compartilhamento de código e dos usuários. Em ambos os casos, a estratégia

adotada não se resume a uma negação simples, à proibição das novas práticas e

das condutas consideradas nocivas. Ou seja, o enfrentamento não se resume à

negação simples e direta do DRM e das patentes, afinal, o objetivo é produzir uma

resposta pragmaticamente efetiva e, radicalizando o sentido da característica

virótica da licença, produzir uma alteração no campo do adversário.

Em relação ao DRM, a GPLv3 visa claramente combater a ameaça invasiva

dos chamados “para-copyrights”143, que são extensões dos direitos autoriais

propostas e garantidas pelo Digital Millenium Copyright Act144 e por tratados da

OMPI145, que permitem a aplicação de meios técnicos para evitar violações de

copyrights.

Dessa forma, sua terceira seção declara que os programas distribuídos sob

a GPLv3 não podem ser considerados parte de nenhuma medida técnica para

garantir as obrigações legais estabelecidas no artigo 11 do tratado de copyright da

OMPI de 1996, ou de qualquer lei semelhante. Em seguida, afirma que a

distribuição de software licenciado pela GPLv3 implica, à parte que distribui o

código, a renúncia do poder de proibir que o usuário burle, subverta ou contorne

“medidas tecnológicas” que o impeçam de exercer os direitos contidos na licença

143 Para uma posição clara e precisa da FSF a respeito dos DRM ver: “Opinion on Digital Restrictions Management 1”, Cf.: http://gplv3.fsf.org/drm-dd2.pdf .

144 Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Digital_Millennium_Copyright_Act .145 WIPO Copyright Treaty art. 11, Dec. 20, 1996, S. Treaty Doc. No. 105-17, 36 I.L.M. 65, cf.:

http://www.wipo.int/treaties/en/ip/wct/trtdocs_wo033.html

129

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(Asay, 2008: 275).

Além disso, a primeira seção, que define os atributos do código fonte, inclui

a figura de “código fonte correspondente”, e menciona que seja distribuído o

código fonte necessário para a instalação, operação e modificação de qualquer

programa distribuído sob seus termos (Asay, 2008: 275). E a sexta seção inclui

uma medida que visa combater o fenômeno conhecido como tivoization146, que

consiste justamente na incorporação de software livre em hardwares que possuem

restrições de acesso ao código e que possuem proteções digitais que impedem

seu funcionamento caso o código seja alterado. Nesse sentido, esta seção da

GPLv3 assegura que o usuário tenha o direito de executar versões modificadas

em aparelhos que contenham proteções a esse tipo de modificação exigindo que

qualquer chave ou encriptação necessária para rodar a versão modificada seja

distribuída junto com o código – o que acaba por invalidar a própria estrutura de

proteção. Definindo, para isso, a figura de “user product” e “informação de

instalação” (Asay, 2008: 275-276).

Interessante destacar que estas proposições anti-DRM acompanham o

movimento contrário, ou seja, o movimento adverso que buscam evitar e anular; e

também se estendem para além do software. Nas palavras de Clark D. Asay

(2008: 279):

A seção anti-DRM da GPLv3 aumenta a propensão viral do software [livre], i.e., software licenciado pela GPLv3 não só “infecta” outros softwares mas possui potencial de infectar o hardware sobre o qual ele roda assim como conteúdo com copyright registrado por terceiros147.

Em relação às provisões endereçadas às patentes de software, é preciso

destacar que esta constitui uma das mais complexas e ameaçadoras questões 146 Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Tivoization e também:

http://www.fsf.org/blogs/licensing/gplv3-lockdown.147 “GPLv3’s anti-DRM section increases the software’s viral proclivity, i.e., GPLv3’ed software not only

“infects” other software, but has the potential to infect the hardware upon which it runs and third-party copyrighted content, too.”

130

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políticas do universo do SL. As patentes sobre software constituem um matéria

controversa desde que passaram a ser aplicadas, no início dos anos 1980 (Asay,

2008: 286). Tratam-se de patentes que se aplicam à algorítimos, formulas e

expressões matemáticas, cuja legitimidade é questionável, entre outros motivos,

pelo fato de que podem mesmo ser consideradas como a concessão de um

monopólio de uso sobre um campo que se confunde com a própria linguagem

humana148.

Ao mesmo tempo que, ao longo dos últimos anos, as empresas que

patrocinam e se envolvem com o SL, passaram acumular grandes números de

patentes através de desenvolvimento próprio e de aquisição de patentes de

terceiros, elas mantiveram uma certa postura de tolerar o desenvolvimento de SL

em áreas que coincidiam com suas patentes. Asay (2008: 287) afirma, porém, que

a GPLv3 se posiciona de modo a resguardar o SL para além da “boa vontade”

destas empresas que (ainda) não utilizam as patentes contra o SL, mas continuam

a acumulá-las e que, portanto, podem eventualmente vir a usá-las contra o SL.

Além disso, as provisões sobre patentes da nova versão da licença visam abordar

e enfrentar os efeitos de um importante aspecto do acordo assinado em novembro

de 2006 entre Microsoft e Novell149, o qual certifica aos clientes da Novell que eles

não estarão sujeitos a processos por infração de patentes da Microsoft.

Este tipo de acordo acaba criando uma divisão no universo e na

comunidade do SL, a qual é caracterizada no texto da licença como

“discriminatória150”, foi considerada nas discussões preparatórias para a redação

da licença como uma verdadeira “proprietarização” (proprietization) do software,

uma vez que os usuários podem se sentir ameaçados e impelidos a pagar para

um distribuidor (no caso a Novell, mas o objetivo da GPLv3 é se precaver ante a

148 O filme “Patent Absurdity” de Luca Lucarini (2010) aborda de maneira ao mesmo tempo didática e conceitualmente consistente essa questão. Cf.: http://patentabsurdity.com/ .

149 Este é o mesmo acordo foi abordado no item 1.2, pp. 60-62, quando descrevi os acontecimentos que chamaram atenção, no início da pesquisa, para as novas conformações nas relações entre o SL e o mercado. Dados complementares também foram coletados no ANEXO WK-12.

150 Cf.: GPLv3 seção 11: http:// www.gnu.org/licenses/gpl-3.0.html .

131

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possibilidade que outros acordos do mesmo tipo venham a ser praticados no

futuro) para se sentirem livres de eventuais processos por infração de patentes. O

que, com efeito, implicaria na necessidade de pagar para usar o software; sem

contar que o cliente Novell só fica isento de processos através do acordo

Microsoft-Novell se não re-distribuir cópias do software que adquiriu da Novell

(FSF, 2007b: 23-27).

Para abordar as ameaças das patentes como um todo, as provisões

voltadas para as patentes na GPLv3 determinam que ao licenciar um código que

também é objeto de patente sobre essa licença, o distribuidor garanta a todos

eventuais destinatários deste software uma licença de patente que permita a ele

exercer as liberdades defendidas pela GPLv3. Na prática, se uma empresa

distribui software que contenha patentes sob a GPLv3, ela não poderá processar

nenhum usuário por infração de patentes.

No que concerne ao acordo Microsoft-Novell e seus efeitos, Asay destaca

que a GPLv3 busca tornar este acordo inofensivo e impossibilitar que futuramente

acordos similares sejam assinados. O quinto parágrafo da seção 11 aborda

diretamente a questão da “discriminação dos clientes”, que consiste na atribuição

de direitos a um grupo específico de usuários/clientes, no caso, o direito de não

ser acusado de infração de patentes. Este parágrafo, então, estabelece que, os

direitos são automaticamente estendidos a todos os outros usuários.

Se este quinto parágrafo está endereçado para a empresa detentora de

patentes, o sétimo parágrafo volta-se para empresa que ficaria em posição

análoga a da Novell, estabelecendo que uma empresa não poderá distribui

software cobertos pela GPLv3 caso entre em acordo com uma terceira parte com

o objetivo de receber uma licença discriminatória de patente para os clientes do

software que distribui. Como esta provisão impediria a Novell de distribuir o

sistema GNU/Linux, e como a provisão do quinto parágrafo já dá conta de anular o

efeito do acordo Microsoft-Novell, o sétimo parágrafo estabelece que sua

disposição é válida somente para acordos assinados após 28 de março de 2007,

132

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num movimento que, segundo Asay (2008: p.290), “soa como uma opção tática”.

A respeito da GPLv3 é preciso esclarecer que suas novas disposições não

invalidam nem substituem automaticamente as disposições das versões

anteriores151 da GNU/GPL. Ou seja, a GPLv2 continua válida e, a não ser que o

detentor dos direitos autorais atualize a versão da licença de distribuição para a

GPLv3, tudo segue como antes, inclusive sujeito às novas práticas e condutas

consideradas nocivas. O que implica na co-existência observada atualmente entre

as duas licenças, que proporciona que relações mais ou menos permissivas sejam

estabelecidas com e através do software livre. Sendo o caso emblemático do

kernel Linux, um das tecnologias mais importantes do universo do SL, que não foi

atualizado para a versão 3.

Tendo mostrado os efeitos positivos da criação da GNU/GPL como

consequências não-intencionais que informaram um ambiente institucional mais

eficiente para gerir e alocar o conhecimento associado à produção de software,

cabe observar um aspecto importante. É pelo sucesso da GNU/GPL ter ocorrido

não como consequência direta da intenção política que motivou sua criação, mas

por consequências sócio-técnicas de seu processo de evolução, que podemos

tentar captar e entender as condições de possibilidades para que movimentos

portadores de ideias e práticas que, em alguns aspectos são incompatíveis e

mesmo contraditórias, como os movimentos a favor do Free Software e do Open

Source, podem se apoiar e co-evoluir compartilhando de um mesmo ecossistema.

Ou seja, a perspectiva fornecida pelo quadro das consequências não-intencionais

nos ajudam a ver a base sócio-técnica que sustenta e que comporta a

ambiguidade política entre aberto e livre como algo que está além da dimensão

política e no limite da dimensão técnica.

Por fim, o quadro conceitual fornecido pela leitura das “consequências

não-intencionais” segue válido por oferecer o que se pode chamar de uma

151 A atualização automática para a GPLv3 só ocorre nos casos em que o programa tiver sido licenciado com a opção da atualização automática, no caso, contendo a expressão: “licenciado pela GPLv2 ou qualquer versão posterior”. Cf.: http://www.gnu.org/licenses/gpl-faq.html#VersionTwoOrLater .

133

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perspectiva imanente do próprio movimento do processo evolutivo do SL, uma

perspectiva que se aproxima da dinâmica que informa sua vitalidade e seu

potencial de evolução, o qual deriva do encontro entre potenciais propriamente

técnicos com uma disputa propriamente política.

A seguir, buscaremos explorar essa perspectiva para entender o método de

produção inaugurado pelo Linux e o modo como sua novidade proporcionou a

criação de novos modelos de negócios.

134

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2.3 CONSEQUÊNCIAS NÃO-INTENCIONAIS II: O ECOSSISTEMA DO LINUX E A EMERGÊNCIA DO OPEN SOURCE

O que vi ao meu redor era uma comunidade que havia desenvolvido o mais eficaz método de desenvolvimento de software de todos os tempos e não sabia disso!

Eric Raymond152

Na seção anterior apresentamos uma leitura de Manuel Delanda (2001)

sobre o sucesso do movimento software livre como o resultado de consequências

não-intencionais de seus principais articuladores para apresentar os efeitos da

criação da GNU/GPL, a licença que, em suas palavras, criou um “ambiente

institucional” propício para a produção em rede do SL. Contudo, acredito que o

conceito introduzido por Delanda se aplica de maneira talvez mais adequada e

mais profunda ao processo de criação do Linux.

Nesta seção, pretendo apresentar brevemente alguns aspectos da trajetória

de criação do Linux recuperando as características que foram fundamentais para

informar a sua grande inovação: um método de desenvolvimento baseado em

criação e aferição distribuída e potencialmente global. Em seguida, mostro como a

consolidação dessas relações de produção passam a representar vantagens

econômicas que são logo aproveitadas por empresas em modelos de negócios

que incorporam noções de propriedade compartilhada e de colaboração em rede

com comunidades de desenvolvimento. Neste momento, ocorre a criação do

conceito de Open Source.

A criação do Linux remete ao ano de 1991 e é decorrência de um projeto

152 “What I saw around me was a community that had evolved the most effective software-development method ever and didn't know it” Revenge of the Hackers. Cf.: http://www.catb.org/esr/writings/homesteading/hacker-revenge/ar01s03.html .

135

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pessoal e despretensioso de um estudante finlandês de Ciência da Computação,

na ocasião possuindo apenas 21 anos e desfrutando do generoso sistema de bem

estar social da Finlândia que, além de não cobrar pelo curso universitário, ainda

fornece subsídios financeiros para que os estudantes dediquem-se a seus

estudos. Seu nome era Linus Torvalds e seu objetivo original não era muito

ambicioso, tendo sido apresentado em seu lançamento como não mais que um

hobby153. A meta de Torvalds era a de fazer funcionar, em uma máquina que

acabara de adquirir, um sistema de tipo UNIX, sistema pelo qual desenvolvera

grande interesse após realizar um curso na Universidade. Não havia nenhuma

motivação política por trás de seu projeto, nem reflexão sobre as implicações que

o mesmo poderia acarretar. Mais importante, não havia nenhum grande plano por

trás de seu projeto a não ser, como já disse, fazer um sistema tipo UNIX funcionar

na arquitetura de sistema do computador que havia adquirido. Em uma entrevista

com forte conotação pessoal concedida em 1999, quando o Linux já havia

despontado como uma tecnologia robusta e eficiente e Torvalds chamava atenção

do mundo sendo mesmo considerado o líder de uma revolução, ao ser perguntado

sobre qual mensagem gostaria de passar para os leitores, Torvalds é categórico

ao afirmar:

O Linux não começou como uma mensagem para as massas. Diferente de Richard Stallman, eu não tenho mesmo uma mensagem. Ele possui uma e pode levá-la adiante para sempre. Eu sou apenas um engenheiro. [Portanto] deixe-me ver: Faça as coisas direito! Faça-as com o coração! O que mais poderia sugerir... ?154

153 No e-mail em que comunicou o início do projeto, definiu da seguinte forma: “somente um hobby, não será grande e profissional como o GNU”. (just a hobby, won’t be big and professional like gnu). Cf.: http://www.ufrgs.br/soft-livre-edu/3-mensagens-de-linus/ .

154 “Linux didn't start out as a message to the masses. Unlike Richard Stallman, I really don't have a message. He has one and can go on about it forever. I'm just an engineer. Let's see: Do things well! Do them with heart! What other strategies can I come up with...?” Interview: Linus Torvalds – A conversation with the man himself. Marjorie Richardson, Nov 01, 1999. Linux Journal. Cf.: http://www.linuxjournal.com/article/3655?page=0,0

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Como na ocasião em que criou o Linux uma licença UNIX custava por volta

de cinco mil dólares, o que a tornava uma opção impraticável, Linus passou a

utilizar o sistema Minix, um sistema baseado no UNIX desenvolvido para fins

educacionais155. Porém, este sistema apesar de disponibilizar os códigos fontes,

possuía licenças que não permitiam que um usuário implementasse de maneira

ampla suas melhorias. Sem encontrar um programa adequado e capaz de realizar

aquilo que desejava, passou a desenvolver o programa que necessitava.

Após dedicar-se com afinco durante alguns meses a seu projeto, Torvalds

decidiu compartilhar a versão 0.1 de seu sistema com um grupo de usuários do

sistema Minix. Explicando os motivos que o levaram a compartilhar o código sem

cobrar por isso, Torvalds explica que, por diferentes motivos, não estava

interessado em dinheiro. Primeiro, sentia que dessa forma ele estaria se inserindo

na antiga tradição de cientistas e de acadêmicos que trabalham a partir das bases

fornecidas pelos predecessores – fazendo inclusive alusão ao célebre enunciado

de Newton, do apoio sobre “os ombros de gigantes”. Além disso, afirma que não

fazia sentido cobrar de pessoas que potencialmente poderiam ajudá-lo a aprimorar

seu trabalho. E era esse o motivo principal de sua escolha: Linus estava

interessado no feedback dos usuários (Torvalds e Diamond, 2001: 94). Na

descrição dos fundamentos de sua escolha pelo compartilhamento podemos ver

um importante traço de sua personalidade, o qual exerceria importante influência

na criação do conceito de open source e, de certa forma, seria eleito como uma de

suas características distintivas em relação ao software livre: seu pragmatismo.

Desde o início, a busca e a opção por vantagens práticas aparece como o

principal valor que guia o projeto Linux.

Num primeiro momento, para proteger o desenvolvimento compartilhado de

seu projeto, a versão 0.01 do Linux foi publicada sob uma licença, também escrita

por Torvalds, altamente restritiva que impedia qualquer tipo de comercialização do

155 “The Birth of Linux” in: Linus Torvalds: A Very Brief and Completely Unauthorized Biography. The Linux Information Project, 2004. Cf.: http://www.linfo.org/linus.html.

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código e exigia que qualquer desenvolvimento derivado tivesse o código fonte

publicado156. A partir da versão 0.12, a GPLv2 passou a ser a licença de

distribuição do Linux157.

A versão 0.12 do Linux também implementava algumas inovações técnicas

que, segundo Torvalds, impulsionaram sua adoção por novos usuários. Algumas

destas inovações, como a solução Page-to-disk158, que permite um melhor

gerenciamento e aproveitamento da memória RAM, não estavam disponíveis para

o sistema Minix, de forma que novos usuários, de várias partes do mundo,

passaram a utilizar o Linux por suas vantagens técnicas. Este também foi o

momento em que o próprio Torvalds abandonou a utilização do Minix como

principal ambiente de desenvolvimento e o Linux passou a ser seu próprio

ambiente de desenvolvimento, o que foi considerado um grande passo em sua

evolução (Torvalds e Diamond, 2001: 90-92).

Inicialmente projetado como um sistema operacional, a grande contribuição

técnica do Linux foi a implementação de um kernel compatível o sistema GNU.

Quando Richard Stallman iniciou o projeto GNU em 1985, como mostramos

anteriormente, seu objetivo era a implementação de um sistema operacional livre

completo. Se na segunda década dos anos 1980, este projeto já havia logrado

atingir grande parte de seus objetivos, tendo desenvolvido ferramentas que

inclusive foram fundamentais para o desenvolvimento do Linux, como o

compilador GCC159, no início dos anos 1990, o projeto GNU ainda não havia

concluído o desenvolvimento de seu kernel. Nesse ponto, é interessante notar que

a escolha do projeto GNU era por um projeto baseado numa estrutura chamada

156 Os primeiros termos de licenciamento do Linux foram os seguintes: “Você pode usar o sistema operacional gratuitamente, desde que você não o venda, e se você fizer qualquer modificação ou aprimoramento você deve disponibilizá-los a todos na forma de código fonte (como algo oposto aos binários que são inacessíveis). Se você não concorda com essas regras, você não tem o direito de copiar o código ou de fazer qualquer coisa com ele” (Torvalds e Diamond, 2001: 94). Para o texto integral da licença ver nota de lançamento da versão 0.01: https://www.kernel.org/pub/linux/kernel/Historic/old-versions/RELNOTES-0.01 .

157 Cf.: https://www.kernel.org/pub/linux/kernel/Historic/old-versions/RELNOTES-0.12 .158 Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Paging .159 Cf.: http://gcc.gnu.org/ .

138

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de microkernel, enquanto o Linux utiliza a estrutura de kernel monolítico. Não cabe

aqui uma discussão mais profunda sobre as diferenças entre os dois tipos de

estrutura. O que interessa é que a escolha de Torvalds por esta estrutura foi objeto

de uma intensa discussão (flame) entre o então jovem estudante e o criador do

projeto Minix, o Prof. Dr. Andrew Tanenbaum, que chegou a vaticinar: “O Linux é

obsoleto!” – no que se tornou um acontecimento histórico bastante conhecido que

repercute até hoje160. Essa questão interessa, pois, se conceitualmente a escolha

de Torvalds podia até mesmo ser obsoleta, ela se mostrou muito mais eficaz para

atender às necessidades pragmáticas de estudantes e hobbystas que não tinham

condições de comprar computadores muito sofisticados e desejavam implementar

e explorar o novo sistema. Eficaz do ponto de vista técnico, esta escolha também

acabou tendo importantes consequências políticas, pois proporcionou finalmente a

possibilidade de conclusão de um sistema operacional livre completo, o que

alterou completamente a abrangência, o campo de possibilidades e os rumos do

movimento software livre.

Apesar do sucesso técnico do Linux e de sua implicação para a conclusão

do sistema operacional livre almejado pelo projeto GNU, a grande inovação do

Linux ocorreu no modo como a produção era organizada e gerida. Amparado e

protegido pelas garantias institucionais proporcionadas pela GNU/GPL e por seu

efeito recursivo, e podendo contar com o início da difusão e da popularização da

internet para além das Universidades e das Instituições de Pesquisa, o método de

produção do Linux pôde radicalizar um velho mandamento da filosofia UNIX que

diz: “faça funcionar, depois faça funcionar mais rápido161”.

Além disso, o pragmatismo supostamente apolítico162 com que Torvalds

160 A página da Wikipédia dedicada a este acontecimento oferece uma interessante reconstituição e contextualização dos fatos, trazendo apontamentos para as mensagens originais: h ttp://pt.wikipedia.org/wiki/Debate_entre_Tanenbaum_e_Torvalds .

161 “Make it run first, then make it work fast.” (Raymond, 2003)162 A ideia de que Linus Torvalds e o movimento Open Source estariam associados a uma prática apolítica,

ou que busca ao máximo evitar a relação com a política formal, aparece constantemente em entrevistas como um traço distintivo e característico do Open Source em relação ao Software Livre. Além de funcionar muito bem para polarizar Linus Torvalds e Richard Stallman. A esta noção, geralmente

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conduzia o desenvolvimento – que a cada nova versão passava a contar com

dezenas de novos colaboradores – favoreceu o estabelecimento de uma

meritocracia e de uma objetividade prática que podem ser resumidas no famoso

axioma: “Falar é fácil. Mostre-me o código!163”. Este enunciado, bastante direto e

pouco polido, deixa claro que o objetivo maior é o desenvolvimento de código e

que a eficiência da produção depende de objetividade. Não há tempo a ser

perdido com propostas irrealizáveis e discussões que não sejam técnicas –

discussões políticas, por exemplo. Por outro lado, também é possível notar uma

forte ressonância entre este enunciado e um dos elementos da ética hacker

compilada por Steven Levy (2010: 31): “Hackers devem ser julgados por seus

hacks164”.

Para entender porque o Linux inaugura um método de desenvolvimento de

software que é mais eficiente e os motivos que nos levam a afirmar esta como sua

grande e mais importante contribuição e inovação sócio-técnica, considero

pertinente recorrer a uma passagem, talvez um pouco longa, de um texto seminal

escrito por Eric Raymond: A Catedral e o Bazar (1997).

O recurso mais importante do Linux, entretanto, não era técnico, mas sociológico. Até o desenvolvimento do Linux, todos acreditavam que qualquer software tão complexo quanto um sistema operacional precisava ser desenvolvido de um modo cuidadosamente coordenado por um grupo de pessoas relativamente pequeno e fortemente unido (tightly-knit). Este modelo era e ainda é típico tanto das catedrais do software comercial quanto às grandes catedrais construídas pela FSF nos anos 1980; e também dos projetos FreeBSD/NetBSD/OpenBSD que desmembraram do 386BSD, a adaptação original dos Jolitzes.165

associa-se a ideia de pragmatismo, que visa destacar uma abordagem “estritamente técnica”. 163 “Talk is cheap. Show me the code!” Cf.: http://en.wikiquote.org/wiki/Linus_Torvalds e

http://lkml.org/lkml/2000/8/25/132 .164 “Hackers should be judged by their hacking, not bogus criteria such as degrees, age, race, or position.”165 “The most important feature of Linux, however, was not technical but sociological. Until the Linux

development, everyone believed that any software as complex as an operating system had to be developed in a carefully coordinated way by a relatively small, tightly-knit group of people. This model was and still is typical of both commercial software and the great free-software cathedrals built by the Free Software

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O Linux evoluiu de uma maneira completamente diferente. Desde praticamente seu início, ele foi, ao contrário, hackeado ocasionalmente por um número grande de voluntários que se auto-coordenavam através da internet. A qualidade era mantida não por padrões rígidos ou por autocracia, mas pela estratégia ingenuamente simples de publicar toda semana e colher feedback de centenas de usuários em alguns dias, criando um tipo de rápida seleção Darwiniana a partir das mutações introduzidas pelos desenvolvedores. Para o espanto de quase todos, isso funcionou muito bem.166

Este texto de Raymond – um dos textos que é apreciado por Manuel

Delanda e considerado como “filosofia de baixa qualidade” – foi de fundamental

importância para a consolidação do Open Source enquanto conceito político,

método de produção e modelo de negócio. Além disso, exerceu importante

influência sobre os próprios programadores e hackers do Open Source,

ajudando-os a elaborar conceitualmente uma representação da especificidade e

da novidade das práticas materiais que haviam criado coletivamente, cuja

eficiência era cada vez mais notória devido à qualidade dos softwares

produzidos167. Com sua antropologia incidental168, Raymond não só havia

fornecido uma linguagem para o entendimento do modo de produção do Linux,

como havia fornecido uma linguagem para sua estruturação e evolução como um

ecossistema.

A noção de ecossistema é fundamental para o entendimento do sucesso do

Linux e, a partir de sua surpreendente experiência, passa a ganhar cada vez mais

Foundation in the 1980s; also of the freeBSD/netBSD/OpenBSD projects that spun off from the Jolitzes' original 386BSD port.”

166 “Linux evolved in a completely different way. From nearly the beginning, it was rather casually hacked on by huge numbers of volunteers coordinating only through the Internet. Quality was maintained not by rigid standards or autocracy but by the naively simple strategy of releasing every week and getting feedback from hundreds of users within days, creating a sort of rapid Darwinian selection on the mutations introduced by developers. To the amazement of almost everyone, this worked quite well.”

167 A esse respeito ver “A incorporação do regime público/científico e os novos modelos de negócios”, em Carlotto e Ortellado (2011), sobretudo pela leitura feita sobre o processo de abertura do código do software Netscape..

168 Em seu repositório de textos, a primeira – e talvez mais importante seção – é apresentada como “Open Source and Hacker Anthropology”. Cf.: http://www.catb.org/esr/writings/ .

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importância estratégica para todos os players da indústria baseada em TI169. Nesta

abordagem, a produção de uma tecnologia se estende para além do

desenvolvimento do código em si, englobando outras cadeias da produção como a

circulação, o consumo, as aplicações, os serviços e mesmo o estabelecimento de

uma cultura associada a ela. Trata-se de uma perspectiva integrada que incorpora

os aspectos de produção da produção e que depende da consolidação de um

meio e de uma linguagem propícios para favorecer sua realização e que sejam

portadores de potencial de evolução.

A leitura de Raymond projetava um forte viés evolucionista sobre os

processos analisados e era informada por uma perspectiva centrada na ideia da

constituição de um ecossistema que se auto-regulava e portador de grande

potencial de evolução devido à sua dinâmica particular170. Nesse sentido, não

eram as intenções ou motivações dos contribuidores de código, tampouco um

projeto global que orientava e conduzia o desenvolvimento. O que guiava a

evolução deste modo de produção era a qualidade funcional e as vantagens

práticas inscritas nos códigos, que eram produzidas a partir do encontro entre os

códigos e as contingências do ambiente.

Contudo, o mais interessante neste processo e seu grande diferencial, era o

modo como a qualidade técnica do código era atingida através de um processo

comparável a uma seleção natural, na qual os desenvolvedores submetem uma

modificação, correção ou incremento e este é avaliado e testado por outros

desenvolvedores, num processo impessoal e guiado por valores estritamente

pragmáticos. Os melhores códigos, ou seja, os que apresentam e representam

169 Como deixa clara a leitura de Stephen Elop ao assumir a Nokia em 2011, em meio a uma grande crise pela perda não só da liderança do mercado de smartphones, mas de uma imensa fatia do mercado para Google e Apple, referindo-se ao cenário de competição como uma “guerra de ecossistemas”: “Nossos competidores não estão tomando nossa participação no mercado com dispositivos; eles estão tomando nossa participação no mercado com todo um ecossistema”. (Our competitors aren’t taking our market share with devices; they are taking our market share with an entire ecosystem) Para dados complementares sobre a guerra de ecossistemas em relação à Nokia ver ANEXO WK-03.

170 A respeito da relação entre o método de produção do Linux e o evolucionismo, e para uma análise evolucionista do método de produção do Linux ver: Kuwabara (2000). Para uma outra perspectiva sobre o modo como redes evoluem, se difundem e subvertem a ordem ver: Almeida (2009)

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vantagens práticas – os que se adaptam melhor ao ambiente – são escolhidos. E

é através do acúmulo das contribuições oriundas de fontes diversas e dispersas,

testadas e avaliadas entre pares, que a tecnicidade do sistema evolui.

Num primeiro momento, a seleção dos códigos submetidos por qualquer

contribuidor é feita por membros da comunidade que são escolhidos para

exercerem esse papel de seleção por sua comprovada capacidade técnica,

demonstrada anteriormente pelos códigos que desenvolveram, tornando-se

mantenedores de setores específicos do desenvolvimento. Cada um destes

mantenedores de partes específicas reportam suas escolhas ao mantenedor geral,

a quem cabe a última palavra para a incorporação ou remoção de um código ao

projeto geral. Este papel de mantenedor geral, desde o início do projeto e até hoje

fica a cargo do próprios Linus Torvalds que, por esse motivo, se declara o “ditador

benevolente do planeta Linux”.

Yochai Benkler (2005), um importante pensador das novas conformações

econômicas e de produção de riqueza proporcionadas pelas redes de cooperação

da Internet, para se referir ao tipo de produção inaugurado pelo Linux – o qual se

esforça em mostrar que se aplica a outros campos da produção de informação e

de cultura – apresenta o conceito de produção entre pares, ou colaborativa,

baseada em commons. Sua análise econômica baseada no conceito de custos

transacionais mostra que um modelo como esse de produção é mais eficiente

economicamente na identificação e alocação de criatividade humana e para a

distribuição dos produtos deste trabalho (p.178). E quando surge um modelo de

produção que se mostra mais eficiente, ele tende superar os modelos anteriores.

Benkler fala de um comportamento social produtivo que é recursivo, ou seja,

implica na expansão da rede de relações que o sustenta. E afirma que na

expansão da rede reside a comprovação de sua eficiência.

Como mostramos na seção anterior, o modo de gestão da propriedade do

conhecimento do SL resolve o que foi apresentado como um paradoxo da

propriedade intelectual que, ao invés de favorecer a produção de invenção, passa

143

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a dificulta-la. Se a indústria de TI depende da produção de invenção e de inovação

para produzir valor e para competir e um novo modelo de produção aparece como

mais eficiente para produzir inovação, a partir da análise de Benkler não é difícil

entender porquê, a partir da segunda metade dos anos 1990, e poucos anos após

o lançamento da primeira versão estável do Linux (ocorrido em 1994), inúmeras

empresas, incluindo algumas das maiores, como a IBM – que em 2000 já previa

investimentos de dois bilhões de dólares em Linux – passaram a adotá-lo

enquanto tecnologia e plataforma para venda de serviços associados.

Nesse momento, há uma inflexão na trajetória do SL: se o movimento

original que havia disparado sua criação e impulsionado sua difusão e adoção

havia sido um movimento a favor da liberdade e em defesa da liberdade, com a

consolidação técnica do Linux, o impulso na difusão da adoção do SL passava ser

a superioridade da capacidade técnica de seus produtos e as vantagens

competitivas proporcionadas por seu método de produção – o qual dependia

totalmente da segurança institucional das licenças livres (GPL). Para muitos

programadores que aderiam ao movimento interessados pela superioridade

técnica, os quais colaboravam com a evolução do Linux e com a criação de

programas para operar a partir dessa plataforma, esse interesse de grandes

empresas pelo SL e a aproximação entre empresas e redes de colaboração era

mais do que um fato positivo: representava uma grande oportunidade.

Foi em meio a esse contexto que o conceito de Open Source foi criado,

como um esforço para levar o SL ao mainstream do mundo corporativo. A

justificativa da necessidade de criação de um novo conceito era que o termo

software livre, além de ser – nas palavras do criador do novo conceito –

“carregado de ideologia”, era ineficiente para descrever e transmitir a principal

característica do que consideravam ser o fator determinante da “cultura”

inaugurada pelo Linux. Refiro-me aqui às ideias de Eric Raymond, que afirma que

o fator preponderante do sucesso do Linux havia sido a criação de uma “máquina

social que maximizava a velocidade das interações entre pares”, sendo a revisão

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descentralizada realizada por pares sobre os códigos produzidos em rede o

aspecto preponderante desta experiência171. Leitura esta que se aproxima

bastante do axioma que ficou conhecido como Lei de Linus: “dá-me olhos

suficientes e seu bug será solucionado”172.

É claro que há a justificativa clássica que é apresentada em primeiro lugar

no manisfesto que lançou o conceito de OS – “Goodbye, 'free software'; hello,

'open source'173” – acerca da ambiguidade do termo free que, em inglês pode se

referir tanto a livre quanto a gratuito. Porém, não se tratava somente de tentar

evitar a ambiguidade entre os dois sentidos, afinal, ambos os sentidos

atrapalhavam os objetivos da ocasião, tanto o de gratuidade quanto o de liberdade

e, portanto, o termo free era um termo a ser superado. O objetivo principal da

criação do OS era a aproximação com o mundo corporativo, que não tinha

interesse em uma produção livre ou em programadores livres, nem em produtos

gratuitos. Nas palavras de Raymond (1998):

[O] termo [free] causa nervosismo em muitos tipos corporativos. Enquanto ele intrinsecamente não me incomoda nem um pouco, nós agora temos um interesse pragmático em converter esses caras [os do mundo corporativo] e não em empinar nossos narizes para eles. Há agora uma oportunidade de nós podermos efetuar uma séria conquista no mainstream do mundo dos negócios sem comprometer nossos ideais e o comprometimento com a excelência técnica – então é tempo de se reposicionar. Nós precisamos de um novo e melhor rótulo (label)174.

171 As citações foram extraídas do vídeo de uma apresentação realizada em Novembro de 2012, no evento Agile Culture Conference 2012, intitulada “Culture-hacking the Open-Source Movement”. Cf.: http://www.infoq.com/presentations/Culture-hacking-Open-Sourcee .

172 “Give me enough eyeballs and your bug will be solved”.173 Este manifesto foi publicado pela primeira vez em 8 de fevereiro de 1998:

http://www.catb.org/~esr/open-source.html.

174 “[T]he term makes a lot of corporate types nervous. While this does not intrinsically bother me in the least, we now have a pragmatic interest in converting these people rather than thumbing our noses at them. There's now a chance we can make serious gains in the mainstream business world without compromising our ideals and commitment to technical excellence -- so it's time to reposition. We need a new and better label.”

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Mais que um novo rótulo para tornar o SL aceitável pelo Mercado, a criação

do conceito de Open Source teve um efeito importante para consolidar uma nova

linguagem e um novo conjunto de valores associados à pratica de produção

colaborativa para o desenvolvimento de software. Raymond chega mesmo a falar

em um hack cultural através de uma ação sobre o “mapa linguístico” da

comunidade, ou seja, uma intervenção operada sobre a linguagem desta

comunidade alterando sua cultura. Em seu entendimento, uma cultura é definida

por uma linguagem compartilhada, de forma que a alteração de certos dispositivos

dessa linguagem pode exercer influência e até mesmo controle sobre essa

cultura175.

A nova linguagem inaugurada pelo Open Source ensejava uma mudança

cultural e o resultado era o favorecimento da aproximação das redes de

colaboração com o Mercado. Redes e Mercado passavam a compartilhar uma

linguagem comum – a linguagem do OS como metodologia mais ágil e eficiente

para desenvolver código – e toda questão acerca da liberdade podia então ser

descartada como uma “bagagem ideológica” desnecessária. Dessa forma,

podemos enxergar o reverso do efeito do OS, o de garantir para o Mercado que a

comunidade compartilharia de seus valores: que a comunidade assumiria a

aceleração da produção de código como principal objetivo de seu movimento.

A ampla adesão tanto das redes de colaboração quanto das empresas ao

novo conceito de OS implicou numa transformação do sentido do trabalho

associado às práticas de SL e OS. Se, num primeiro momento, pode-se ver

claramente um esforço para liberar o trabalho – que no processo de transformação

em mercadoria (commodification) sob o regime do software proprietário é

espoliado de seus meios e separado de seus produtos –, a partir do OS, o

trabalho de desenvolvimento de software passa a ser objeto de outras formas de

175 A esse respeito ver vídeo da palestra “On the Hacking Culture and Agile” proferida por Eric Raymond na coferência “Agile Culture Conference 2012” realizada em Boston (EUA) em 2012: Cf.: http://www.infoq.com/interviews/raymond-culture-con .

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transformação em mercadoria (commodification) que não passam

necessariamente pela apropriação do código. Como aponta de maneira sagaz

Adrian Mackenzie (2001) em uma formulação que é apresentada ainda sob a

forma de indagação, na conclusão de um artigo no qual problematiza a oscilação e

ambiguidade do OS entre o estatuto de de ferramenta e de mercadoria:

Abertura e acessibilidade como valores em si mesmos resistem a normas dominantes de propriedade, mas eles também facilitam a formação de forças de trabalho auto-reguladas focadas na produção de software. As maneiras pelas quais o open source tem sido absorvido no capitalismo high-tech sugere fortemente que a transformação do software em mercadoria (commodification) não é necessariamente ligado aos direitos de propriedade176.

Dessa problematização é possível extrairmos dois pontos significativos das

transformações que o advento e a aplicação do conceito de OS implicam sobre o

universo do SL que, agora, passa a ser universo do SL e do OS: primeiro, que as

mudanças culturais de que fala Raymond, são mudanças essencialmente

políticas, pois produzem transformações no modo como a produção colaborativa

se estrutura e no modo como seus produtos são apropriados; segundo, que na

tentativa de evitar o sentido de gratuidade do software, o OS favorece a formação

de um regime de produção que se aproveita do trabalho compartilhado como

trabalho grátis, trabalho que não será remunerado para ser efetuado mas que

produzirá valor dentro de um regime de acumulação. Dando origem a um regime

de trabalho que radicaliza e realiza o velho lema do Toyotismo, na qual não

existem mais trabalhadores, apenas colaboradores177.

A esse respeito, é válido levantar a consideração de que uma nova forma

176 “Openness and accessibility as values in themselves resist the dominant norms of property, but they also facilitate the formation of auto-regulating labour force focused on the production of software. The ways in which open source are being absorbed into high-tech capitalism strongly suggest that commodication is not necessarily linked to property rights.”

177 Nesse sentido é válido a referência à formulação do sociólogo Ricardo Antunes acerca da nova condição do “infoproletário”, o qual “não se rebela” justamente por não ser “um trabalhador”, mas “um 'colaborador'” Cf. Entrevista à Christian Carvalho Cruz, O E. de São Paulo, 11 de outubro de 2009: https://e.sarava.org/Zow .

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de apropriação implica em uma nova forma de alienação, ainda que esta apareça

de uma forma não-evidente e mesmo revestida de liberdade. A alienação

produzida pelas novas formas de apropriação, deverá ser investigada pelos

conflitos precipitados por este novo modo de produção. E este será o objeto do

terceiro capítulo.

Por fim, cabe uma reflexão acerca do caráter e da disposição apolítica do

Open Source. Se analisarmos a função de Linus Torvalds, tanto no que concerne

a palavra final da seleção dos códigos submetidos pelas redes de colaboração

descentralizada, quanto no papel de mobilizar, unificar e garantir a coesão destas

redes em torno de um pragmatismo que se apresenta como “estritamente técnico”,

seu trabalho é eminentemente político. Ademais, o projeto Linux desempenha

ainda o papel de “mediação de mundos” na conexão do SL com o Mercado,

estabelecendo pontes entre o SL e o software proprietário, e criando uma

linguagem de legitimidade para esse tipo de relação. Como pode ser visto no texto

que apresenta a missão da Linux Foundation, no qual a necessidade de se

“aproximar” do software proprietário é apresentada como requisito para que o

software open source se mantenha aberto e seja difundido:

Para o Linux manter-se aberto e atingir a maior ubiquidade possível, serviços importantes devem ser providos, incluindo a proteção legal, padronização, promoção e colaboração. A Fundação Linux foi fundada para ajudar a diminuir a distância entre o open source e plataformas proprietárias, enquanto sustenta a abertura, liberdade de escolha e superioridade técnica inerentes ao software open source178.

Como vemos, no pragmatismo do OS afirma-se que não se toma uma

posição política por sua linguagem excluir qualquer conotação de crítica ou de

178 “For Linux to remain open and attain the greatest ubiquity possible, important services must be provided, including legal protection, standardization, promotion and collaboration. The Linux Foundation has been founded to help close the gap between open source and proprietary platforms, while sustaining the openness, freedom of choice and technical superiority inherent in open source software” Cf.: https://wiki.linuxfoundation.org/en/About .

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expressão de contradição em relação à apropriação capitalista. No entanto, como

não considerar político o alinhamento com o Mercado, ainda mais quando vemos

todo esforço de construção de linguagem e de transformação cultural que sustenta

esta posição?

Vemos, portanto, que uma posição supostamente apolítica só é possível na

medida em que esse posicionamento se alinha com o campo político hegemônico

ou majoritário, compartilhando com este certos princípios e diretrizes. O que fica

evidente diante da escolha de valores como praticidade, eficiência e velocidade

como fundamentos de sua prática sócio-técnica, na qual a inovação toma o lugar

da liberdade como aspecto central da produção.

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2.4 TERRA INCOGNITA: AMBIGUIDADE E CONTRADIÇÃO

Mas a FSF nunca foi a única iniciativa na área. Sempre existiu uma força mais silenciosa, menos confrontadora e mais amigável em relação ao mercado na cultura hacker.

Eric Raymond179

A Nokia pode fazer uma coisa e também pode fazer o oposto, até mesmo simultaneamente.

Quim Gil180

Ter acesso ao código fonte não é tudo.Richard Stallman181

Se desde sua criação enquanto conceito e estratégia de liberdade no início

dos anos 1980182 o SL vinculou de maneira inédita e surpreendente técnica e

política, é somente quando é percebido como metodologia de produção eficiente e

como modelo de negócio inovador, na ocasião da criação do conceito de OS, que

ganha notoriedade e publicização (Raymond, 1997; Stallman, 2002). Esta

condição paradoxal – estratégia de liberdade cuja propagação se amplifica na

medida em que se torna um bom negócio – intensifica uma margem de

contradição que sempre esteve presente no espectro do SL a qual, ao mesmo

tempo, impulsiona e ameaça seu desenvolvimento e a expansão de sua luta por

179 “But the FSF was never the only game in town. There was always a quieter, less confrontational and more market-friendly strain in the hacker culture. (Raymond, 2002)

180 “Nokia can do one thing and can also do the opposite, even simultaneously.” Texto extraído do blog de Quim Gil, que durante anos trabalhou como homem-ponte da comunicação entre Nokia e a comunidade open source Maemo, em um debate travado acerca do sentido e das consequências da aquisição da empresa Trolltech – desenvolvedora da tecnologia Qt, uma importante tecnologia open source – pela Nokia. O texto citado foi extraído comentário número 5: http://flors.wordpress.com/2008/01/29/gnomes-trolls-and-the-maemo-lands/#comments

181 (Stallman, 2003: 6)182 Consideramos que e o e-mail de Stallman, em 1983, lançando o projeto GNU pode ser tomado como o

marco da criação do SL: “Initial GNU Project Announcement”, 27/09/1983, Cf.: http://www.gnu.org/gnu/initial-announcement.en.html#f1

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liberdade.

Esta margem de contradição advém da situação peculiar do SL ter, num

primeiro momento, confrontado o Mercado para garantir a possibilidade de

liberdade em meio à informação e, posteriormente, se aliado ao Mercado para

expandir sua liberdade. Com a criação do OS, esta margem de contradição é

intensificada pela possibilidade de que um mesmo conjunto de códigos possa ser

considerado, ao mesmo tempo, como livre e como aberto. Esta possibilidade de

sobreposição de classificações decorrentes da ambiguidade entre liberdade e

abertura interessa e produz seus efeitos na medida em que implica uma

sobreposição de diferentes perspectivas políticas183. Possibilitando que um mesmo

conjunto de códigos possa ser conectado com diferentes sistemas sociais e com

diferentes redes de relações. Fazendo emergir um território que é, ao mesmo

tempo, de conflito e de criação, de liberdade e de captura, cuja principal marca

característica é a ocorrência de confusão, ambiguidade e indistinção – Terra

Incognita.

Esta disposição de forças fornece as condições para a ocorrência de um

encontro estranho através do qual liberdade e apropriação podem convergir de

maneira virtuosa e sinergética. Através deste encontro podemos observar a

ocorrência simultânea sobre um mesmo conjunto de códigos, tanto da efetuação

de um movimento de liberdade e de evidente expansão do meio comum, quanto

um movimento que opera, a partir desse meio comum, regimes de apropriação

que, eventualmente, podem implicar na retração ou na predação deste meio.

O ano de 1998 é chave para a definição desta disposição de forças, pois é

quando o conceito de open source é criado com a proposta e sob a justificativa de

evitar o duplo sentido que o termo free porta em inglês, o de livre e de gratuito

183Como afirma Richard Stallman em texto que pontua as implicações na utilização de um novo conceito par a descrever o SL: “Palavras diferentes, transmitem ideias diferentes. (…) A diferença fundamental entre os dois movimentos está em seus valores, suas maneiras de encarar o mundo” (Stallman, 2002: p.57) (“Different words convey different ideas (…) The fundamental difference between the two movements is in their values, their ways of looking at the world”).

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(Raymond, 1998). Como mostramos na seção anterior, nessa ocasião, sobretudo

pela capacidade de performance do kernel Linux, o SL passou a ser considerado

uma opção tecnológica mais eficiente e capaz de competir no mercado. Dessa

forma, com a criação do novo conceito buscava-se, por um lado, diminuir o temor

e a rejeição de possíveis clientes e de empresas prestadoras de serviço diante da

proposta de um modelo de negócio baseado em um produto gratuito. Por outro,

buscava-se consolidar o software livre como uma metodologia de desenvolvimento

de software. Para isso, era necessário desassociar o software livre da forte

conotação política imbuída no termo liberdade, afinal, no mundo dos negócios

apenas os negócios interessam. Era preciso, portanto, reduzir a proposta do

software livre de um movimento social tecnopolítico – no sentido de que sua ação

política não pode se realizar descolada de sua dimensão ou devir tecnológico –

para uma metodologia de desenvolvimento de tecnologia.

O conceito de open source remete pois à característica técnica principal do

software livre: a garantia de acesso irrestrito ao código fonte como condição de

possibilidade para seu compartilhamento. A escolha da valorização da dimensão

técnica em detrimento da dimensão política – que o novo regime procura evitar a

todo custo – remete a uma outra maneira de lidar com a questão do impacto da

propriedade intelectual sobre o trabalho de desenvolvimento de software. E

remete também a uma outra maneira de lidar com as consequências políticas da

relação entre apropriação capitalista e informação. Portanto, apesar da insistente

tentativa de afirmação do open source como um movimento afastado de qualquer

conotação política, sua diferença em relação ao software livre é eminentemente

política.

Contudo, a iniciativa da criação do OS não atinge o software livre no nível

do código, colocando-se apenas em relação ao sentido social da produção. E é

justamente essa diferença de sentido que possibilitará o estabelecimento de

diferentes relações com o mercado – da atualização de diferentes relações sociais

através do código – algumas delas sendo contraditórias e inconciliáveis em

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relação às propostas contidas e defendidas pelo SL.

Do ponto de vista técnico, no nível do código, a diferença entre os dois

registros políticos é imperceptível; é nula. O que significa dizer que um mesmo

código pode ser compatível com ambos os regimes184. Por essa razão, OS e SL

são comumente tomados como a mesma coisa, e até mesmo como um

movimento só. Este entendimento relega as diferenças políticas que tratamos de

destacar aqui como relativas ou decorrentes a uma questão de identidade entre

sub-grupos dentro de um mesmo campo. Acreditamos que não se trata somente

disso e consideramos muito mais produtivo levar a sério e radicalizar o sentido

dessas diferenças para tornar visíveis os efeitos que elas produzem sobre as

práticas dos desenvolvedores e sobre a dinâmica de reprodução e da expansão

do meio comum que compartilham.

Acredito que haja uma diferença um pouco mais óbvia, no sentido de poder

ser identificada e descrita em relação ao sentido político dessas práticas: o OS

orienta-se para a dimensão técnica, enfatizando a aceleração do desenvolvimento

tecnológico; o SL orienta-se para a dimensão política, enfatizando a defesa da

liberdade (Evangelista, 2010). Ao mesmo tempo há também a ocorrência de

confusão entre esses diferentes sentidos políticos, que fica evidente até mesmo

na escrita, quando os termos aparecem como sinônimos, ou seja, quando há

indiferença entre a utilização de um ou de outro, a ponto de haver até uma sigla

que os justapõe: FOSS – Free and Open Source Software185.

Na busca pela definição das diferenças entre os dois movimentos, é válido

recorrer a posição oficial da Free Software Foundation (FSF, 1998), que traz a

184 Na verdade, como destaca Stallman (2009) um mesmo conjunto de códigos também pode ao mesmo tempo um software livre e um software proprietário. Nesse sentido, interessam as implicações que concernem à prática do dual license, que será analisada mais adiante no capítulo 3. Por ora esta ocorrência simultânea entre software livre e software proprietário não interessa e não é abordada a fundo, pois, nesse caso, a variação entre um regime e outro não ocorre da mesma forma como entre SL e OS, uma vez que a diferença de cada regime permanece inequívoca.

185 O termo FOSS ainda possui sub-variações, podendo incluir um L para demarcar que free não é grátis, mas livre (de libre, como em francês e em espanhol), formando FLOSS. E este L pode aparecer entre parênteses, F(L)OSS, ou separado por uma barra, F/LOSS.

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seguinte definição:

A diferença fundamental entre os dois movimentos está em seus valores, suas maneiras de encarar o mundo. Para o movimento Open Source, a questão se um software deveria ser open source é uma questão prática, e não uma questão ética. Como uma pessoa colocou, “Open Source é uma metodologia de desenvolvimento; Software Livre é um movimento social”. Para o movimento Open Source, software não-livre é uma solução [técnica] inadequada (sub-optimal solution). Para o movimento Software Livre, software não-livre é um problema social e o software livre é a solução186.

Definição esta que é desdobrada e, de certa forma resolvida, mais adiante,

no mesmo texto:

Nós discordamos dos princípios básicos, mas mais ou menos concordamos em relação às recomendações práticas. De forma que nós podemos e de fato trabalhamos juntos em muitos projetos. Nós não temos o movimento Open Source como um inimigo. O inimigo é o software proprietário.187

Contudo, desde o início, o que caracteriza o conceito de SL, aquilo que

constitui mesmo a sua razão de existência, é justamente a politização de uma

questão técnica. Sua inovação política, é conseguir inscrever a política na técnica

e forjar uma linguagem técnica para a política. Em seu registro, o acesso ao

código fonte é o mínimo irredutível defendido através de um dispositivo legal, um

meio comum e uma ética. Respectivamente: a licença GPL, o sistema GNU e as 4

liberdades – que definem e fundamentam filosófica e politicamente o conceito de

software livre188. 186 “The fundamental difference between the two movements is in their values, their ways of looking at the

world. For the Open Source movement, the issue of whether software should be open source is a practical question, not an ethical one. As one person put it, “Open source is a development methodology; free software is a social movement.” For the Open Source movement, non-free software is a suboptimal solution. For the Free Software movement, non-free software is a social problem and free software is the solution.”

187 “We disagree on the basic principles, but agree more or less on the practical recommendations. So we can and do work together on many specific projects. We don't think of the Open Source movement as an enemy. The enemy is proprietary software.”

188 Para uma transcrição das 4 liberdades, ver item 2.1 página 82 e, também, ANEXO WK-05.

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O acesso ao código fonte aparece em duas das 4 liberdades essenciais do

SL como condição de liberdade. Em comparação aos princípios do OS, é como se

o software livre colocasse o acesso ao código fonte como o início ou parte do

processo, como meio; enquanto o OS o toma como um fim, como um objetivo.

Porém, há um ponto em que ambas perspectivas se encontram: no efeito virótico

das licenças que protegem a abertura dos códigos abertos e obrigam a abertura

subsequente de códigos derivados destes. E, ainda, no modo como ambos os

movimentos se definem a partir das licenças que consideram compatíveis com

seus princípios e fundamentos.

Ambos os movimentos possuem suas definições oficiais que são

publicizadas e respaldadas por suas respectivas instituições mantenedoras, a FSF

do lado do SL, e a OSI189 do lado do OS. Analisando as diferenças entre as

definições oficiais de cada um dos conceitos fornecida por essas duas instituições,

Clark D. Asay (2008: 272) aponta que:

Apesar da definição da OSI possuir dez condições para a certificação [de um software como open source], comparado com a definição das quatro liberdades da FSF para o software livre, existe muita sobreposição entre as duas definições. A liberdade número 2 da FSF (liberdade de redistribuir) cobre a condição 1 da definição da OSI. A condição 2 da definição da OSI, acesso ao código fonte, é a pré-condição para duas liberdades da FSF. A liberdade número 3 da definição da FSF (liberdade para aprimorar o programa e liberar publicamente) é essencialmente equivalente à condição 3 da definição da OSI. A condição 4 na definição da OSI relativa à proteção da integridade do autor, mesmo que não esteja explicitamente delineada como uma das liberdades da FSF, é explicitamente permitida pelo documento de definição da FSF desde que esta condição não bloqueie substancialmente a liberdade dos usuários de liberar versões modificadas. (…) E enquanto a FSF não discute explicitamente as condições 5 e 6 da OSI (não discriminação contra pessoas ou grupos ou contra campos de empreendimento), tais condições parecem implícitas na própria definição de liberdade da FSF. Outras condições da definição da OSI, incluindo [as condições] 7, 8 e 9, provaram ser de pouca importância prática em termos de licenciamento e do

189 Cf.: http://opensource.org/ .

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desenvolvimento FOSS. A condição 10 da definição de open source, a qual requer que a licença seja tecnologicamente neutra, também gerou (spawned) pouca controvérsia até agora190.

Os parâmetros pragmáticos para a diferenciação entre os dois registros –

aberto e livre – dependem, portanto, das licenças utilizadas para a gestão e

regulação da circulação dos códigos. Contudo, na maioria dos casos, as mesmas

licenças que indicam que um software é livre também podem indicar que o

software é aberto. Tanto a FSF quanto a OSI apresentam em seus respectivos

sites uma lista das licenças que certificam como licenças que qualificam um

software como livre e como aberto. A FSF apresenta ainda uma lista das licenças

que ela não aprova como licenças de software livre, e que, portanto, não

qualificam um software como livre.

A esse respeito, mais uma vez considero válido recuperar a pesquisa

acerca das implicações das diferenças e o trabalho de comparação entre os

conjuntos de licenças da FSF e da OSI empreendido por Clark D. Asay (2008:

272):

Apenas três das licenças desaprovadas pela FSF aparecem na lista de licenças aprovadas pela OSI: a Original Artistic License, a Apple Public Source License v. 1.2, e a Reciprocal Public License191.

190 “Although the OSI definition has ten conditions for OSI certification compared to the FSF’s four freedoms for free software, much overlap exists between the two definitions. The FSF’s freedom 2 (freedom to redistribute) covers condition 1 of the OSI’s definition. Condition 2 of the OSI’s definition, access to source code, is a precondition for two of the FSF’s freedoms. Freedom 3 of the FSF’s definition (freedom to improve the program and release to public) is essentially equivalent to condition 3 of the OSI’s definition. Condition 4 in the OSI’s definition relating to protecting authors’ integrity, while not explicitly delineated as one of the FSF’s freedoms, is explicitly allowed for in the FSF’s definition document if such a condition does not substantively block users’ freedom to release modified versions. And while the FSF does not explicitly discuss the OSI’s conditions 5 and 6 (no discrimination against persons or groups or against fields of endeavor), such conditions seem implicit in the FSF’s very definition of freedom. Other conditions of the OSI definition, including 7, 8, and 9, have proven to be of little practical importance in terms of licensing and FOSS development. Condition 10 of the [open source definition], requiring that the license be technology-neutral, has also spawned little controversy until now.”

191 “Only three of the FSF’s disapproved licenses appear in the OSI’s list of approved licenses: the Original Artistic License, the Apple Public Source License v. 1.2, and the Reciprocal Public License.” Na tradução apresentada acima os nomes das licenças foram mantidos na forma original para evitar confusões e para garantir seu valor como referência para outras pesquisas.

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Recuperando as explicações oficiais oferecidas pela FSF a respeito da da

desaprovação destas licenças, Asay continua:

A FSF desaprova a Original Artistic License porque ela é muito vaga, e, portanto, proporciona uma certa margem de manobra para que desenvolvedores restrinjam a liberdade dos usuários. Desaprova a versão 1.2 da Apple Public Source License pois qualquer versão modificada do software implantada dentro de uma empresa (organization) deve ser publicado, o que restringe a liberdade do usuário de usar o software privadamente. E desaprova a Reciprocal Public License porque: “1) põe limites nos preços cobrados para uma cópia inicial; 2) requer notificação do desenvolvedor original para publicação de uma versão modificada; 3) requer a publicação de qualquer versão modificada que uma empresa (an organization) use, mesmo privadamente.192”

Se há, portanto, algumas diferenças que são possíveis de serem apontadas

de maneiras inequívocas, ou seja, casos de incompatibilidade que são evidentes a

ponto de ser possível afirmar: “é open source mas não é software livre”. E, ainda,

que esta diferença é fruto de relações mais permissivas com a restrição da

liberdade dos usuários. Então, nesses casos, o problema da diferenciação e da

classificação das práticas associadas a cada conceito está resolvido.

Um outro exemplo interessante de diferenciação inequívoca que é

eminentemente política, diz respeito à incorporação de blocos de códigos

fechados em meio a códigos abertos e à utilização de códigos abertos atrelados a

tecnologias que restringem liberdades. Digo que a diferenciação é eminentemente

política pois relativa estritamente ao posicionamento e à classificação dentro do

campo formado pelo SL e pelo OS. Os códigos dos exemplos citados podem estar

todos licenciados por GPL e, portanto, podem ser utilizados em projetos relativos 192 “The FSF disapproves of the Original Artistic License because it is too vague, and therefore provides

some leeway for developers to restrict users’ freedom. It disapproves of v. 1.2 of the Apple Public Source License because any modified version of the software “deployed” within an organization must be published, which restricts the user’s freedom to privately use the software. The FSF disapproves of the Reciprocal Public License because “1) [i]t puts limits on prices charged for an initial copy[,] 2) [i]t requires notification of the original developer for publication of a modified version[, and] 3) [i]t requires publication of any modified version that an organization uses, even privately.””

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aos dois campos. No entanto, aparecem associados a práticas que não permitem

que sejam classificados como SL.

A incorporação dos chamados blobs binários193 ocorre na maioria das vezes

em duas situações: na própria estrutura do kernel Linux194 junto com os drivers de

dispositivos e periféricos, ou de softwares associados a eles – justificada pela

necessidade de acompanhar os lançamentos da indústria do hardware que seria

estratégica para se atingir o maior número possível de usuários –, e em sistemas

desenvolvidos para dispositivos específicos, cujo hardware é proprietário

(fechado) e seu desenvolvimento, bem como serviços vendidos aos usuários, é

controlado por empresas, como no caso dos projetos Maemo, Symbian, MeeGo e

Android, em que software livre e open source são incorporados em estruturas

compostas que os misturam a software proprietário, e a tecnologias fechadas e

que praticam restrição.

Algumas distribuições195 como a gNewSense196 optam por utilizar versões

livres do kernel Linux, ou seja, rejeitando e retirando todos os códigos proprietários

que foram incorporados na versão oficial do kernel. Nesse sentido há também o

projeto Linux Libre197, encabeçado pela FSFLA198, que além de manter um

repositório com uma versão livre do kernel Linux, ainda promove campanhas de

politização dessa questão199.

A distribuição Ubuntu200 é um exemplo de distribuição não-livre (non-free

distribution) pois combina drivers, softwares proprietários e blobs binários em sua

193 Cf.: http://pt.wikipedia.org/wiki/Binary_blob .194 Uma definição da função do kernel foi apresentada na página 63, nota 43. Para uma analise do modo de

existência do kernel Linux ver “Kernel: code in time and space” (Mackenzie, 2006: 67-90)195 Para uma lista distribuições certificadas pela FSF como desprovidas de qualquer tipo de software

proprietário consultar: http://www.gnu.org/distros/ .196 Cf.: http://www.gnewsense.org/ . 197 O termo libre é utilizado muitas vezes para evitar a ambiguidade com o sentido de gratuito que o termo

free também possui em inglês e também para enfatizar que se trata de liberdade, free as in freedom. 198 Cf. : http:// www.fsfla.org/svnwiki/selibre/linux-libre/index.en.html . 199 Como se pode ver nesta apresentação de Alexandre Oliva que é membro da diretoria da FSFLA, da qual

também é um dos fundadores e principais representantes: http://www.lsd.ic.unicamp.br/~oliva/fsfla/Linux-libre.en.pdf .

200 Cf.: http://www.ubuntu.com/ .

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distribuição do sistema operacional GNU/Linux. Além disso, em 2012 inovou

introduzindo uma tecnologia considerada por Stallman (2012) como um “Spyware”

que vincula as buscas locais do usuário realizadas na sua própria plataforma

(quando, por exemplo, procura um arquivo em suas pastas) com produtos

vendidos on-line pela Amazon201, os quais são oferecidos para que o usuário

efetue a compra através de um canal integrado à área de trabalho de sua estação.

Stallman considera essa aplicação como vigilância e controle chamando o

programa que realiza essa busca de software espião (spyware), pois em seu

funcionamento uma informação introduzida pelo usuário em seu próprio

computador é enviada ao servidor da Canonical202 – empresa mantenedora do

Ubuntu – que por sua vez se conecta com a o servidor da Amazon para efetuar o

cruzamento de dados e oferecer o produto ao usuário/cliente. Por outro lado, o

Ubuntu também oferece uma versão totalmente livre, na qual os drivers e

softwares proprietários são retirados, o que demonstra grande entendimento sobre

o campo político e da dinâmica das redes do SL e soa como uma tentativa de

amenizar os efeitos da intensificação da aproximação com o mundo proprietário.

Tanto nos casos das distribuições que rejeitam a composição misturada

(mixed) entre software livre e proprietário, quanto a que a tolera, a diferenciação

entre os registros livre e aberto fica mais fácil, até mesmo no que concerne esta

inscrição no nível do código – pois uns são associados aos blobs e outros não, por

exemplo. As que aceitam a convivência com código fechado, não podem ser

chamadas de SL, pois restringem a liberdade dos usuários, são, portanto, OS. As

que não aceitam, são software livre – pelos motivos contrários203.

Se prestarmos atenção às quatro liberdades fundamentais do software livre,

201 Cf.: http://www.amazon.com/ .202 Cf.: http://www.canonical.com/ . 203 Na entrevista que realizei com Richard Stallman (2009), duas vezes tentei realizar uma pergunta a

respeito das implicações políticas do tipo de colaboração entre empresa e comunidade tal qual a estabelecida pela NOKIA nos projetos Maemo e MeeGo, em ambas as ocasiões ele se recusou a responder, inclusive interrompendo a pergunta, alegando que se tratava de OS e ele estava ali para falar sobre SL.

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veremos que o acesso ao código fonte é uma condição para que duas das

liberdades sejam atingidas, é, portanto, um meio para a garantia de liberdades, e

não uma finalidade da liberdade, muito menos sinônimo de liberdade. Dessa

forma, o open source pode ser visto como uma iniciativa que despolitiza o modo

de produção do software livre, pois tira a liberdade do escopo, e enfatiza apenas

seus aspectos relativos à eficácia técnica, a uma maior velocidade do

desenvolvimento dos códigos e, consequentemente, de sua evolução técnica.

Além disso, é sempre dentro do regime do OS que se observam as

experiências que ou infringem os princípios do SL, ou os subvertem. Em relação

às licenças, são licenças como a CDDL204 da Sun Microsystems, que garantem

acesso ao código fonte, mas permitem publicações de versões derivadas em

regime fechado. Assim como quando o SL é incorporado para o desenvolvimento

de máquinas fechadas, como no caso dos smartphones da Nokia que analisamos

no capítulo 3, cujo sistema operacional e muitos aplicativos são abertos mas

operam sobre um hardware fechado e portador de dispositivos lógicos que

restringem a liberdade dos usuários, como o DRM.

Localizo estas experiências no limite da ambiguidade entre liberdade e

capitalismo, pois ocorrem somente no contexto de competição capitalista, no qual

o segredo e a restrição de acesso à informações técnicas se justificam para

possibilitar algum tipo de vantagem competitiva e comercial. Portanto, em

contextos em que a liberdade, e mesmo a evolução técnica, ficam em segundo

plano em relação à competição, ao lucro e à acumulação de capital.

No entanto, apesar de mostrarmos que é possível uma diferenciação e

mesmo separação política entre projetos conduzidos a partir de princípios mais

próximos do SL ou do OS, como um mesmo conjunto de códigos pode estar

presente em ambos os projetos, a ambiguidade e sobreposição de categorias não

é anulada. De forma que, na prática, produz-se o efeito de uma sobreposição das

definições conceituais: apesar das distinções políticas um mesmo conjunto de

204 Cf.: http://opensource.org/licenses/CDDL-1.0 .

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códigos pode ser, ao mesmo tempo, livre e aberto.

Esta sobreposição de definições conceituais – representada graficamente

através do diagrama de Hung Chao-Kuei205 (FIGURA 02, p.87) – informa uma

sobreposição também política, que desloca o problema da diferenciação entre os

dois registros para o que pode ser chamado, a partir de Adrian Mackenzie (2006),

de vizinhança de relações do código. Esta vizinhança constitui-se pela rede de

relações sociais estabelecidas e atualizadas ao redor, em conjunto, e através do

código em seu processo de execução. Esta perspectiva baseia-se numa

abordagem do software como “objeto e processo social” (p.1) e do código “como

prática e como material” (p.3) busca tornar visível a relação necessária do

processo de execução do software com os contextos e as relações sociais nas

quais e junto com as quais este processo se realiza, atualizando-os.

Nesse sentido, cabe recuperar outra importante noção mobilizada por

Mackenzie (2001, pp. 546-547), a partir do trabalho de Susan Leigh Star e Karen

Ruhleder (1996), de que uma ferramenta adquire sua propriedade de ferramenta

quando colocada em prática. Ou seja, quando remetida a um contexto social de

execução e também de produção, quando tomada como práticas in situ:

Uma ferramenta não é somente algo (a thing) com atributos pré-determinados e congelados no tempo – mas algo se torna uma ferramenta na prática, para alguém, quando conectada a alguma atividade particular... A ferramenta emerge in situ206.

Considero as noções de “vizinhança de relações” e de “práticas in situ”

bastante úteis para ajudar a resolver o problema da identificação e demarcação

dos conflitos e contradições comportadas e proporcionadas pela ambiguidade

entre SL e OS a partir da margem de contradição inerente ao SL. É na zona de

indeterminação informada pela ocorrência de ambiguidade e de contradição que

205 Cf.: http://people.ofset.org/~ckhung/index.en.php .206 “A tool is not just a thing with pre-given attributes frozen in time—but a thing becomes a tool in practice,

for someone, when connected to some particular activity. ... The tool emerges in situ”

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se cria as condições para que uma experiência de liberdade deixe aberta a

possibilidade de apropriação capitalista, e, em contrapartida, uma ação de

apropriação capitalista deixe aberta a possibilidade de uma experiência de

liberdade. Sim, trata-se de uma via de mão dupla, e isso precisa ser destacado,

ainda que não seja uma via de mão dupla necessariamente equivalente.

É, portanto, através da zona de indiferença, de sobreposição e de confusão

informada pela possibilidade de um mesmo código poder ser livre ou aberto e

através dessa diferença externa a ele, mas que se atualiza através dele, que

aquilo que foi desenvolvido como trabalho de liberdade pode ser inserido em um

contexto de restrição de liberdade e, pela mesma via, um conjunto de códigos

desenvolvidos dentro de um regime explícito de apropriação e aplicada a

tecnologias que produzem restrições, pode ser aproveitado em um projeto de

liberdade.

A abertura do código fonte e a prática do compartilhamento de código sob a

única restrição de que este código seja fechado e seu compartilhamento impedido

em sua distribuição e na distribuição de obras derivadas desse código, é o que

permite a ocorrência dessa relação ambígua que, de certa forma, anula o conflito

entre liberdade e apropriação. Se a apropriação capitalista quando forjou suas

primeiras técnicas de apropriação sobre o software impedia a liberdade por fechar

o código – transformando ele em mercadoria e separando-o do trabalho e de seu

processo produtivo – implicava em um conflito entre liberdade e apropriação, na

medida em que são forjadas técnicas de apropriação open source, uma

apropriação sem propriedade consegue evitar a transformação do código em

mercadoria, deslocando sua captura para outras etapas ou dimensões da

produção de valor. O que dá sentido à formulação de Stallman utilizada como

epígrafe a esta seção, “ter acesso ao código fonte não é tudo”. Afinal, mesmo com

acesso ao código fonte, uma empresa pode controlar a produção e direcioná-la

para fins que podem acarretar a restrição de liberdades – como veremos no

capítulo 3.

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Contudo, o que interessa aqui, é que esta anulação de conflito não ocorre

somente no sentido de converter o trabalho de liberdade em trabalho apropriado,

mas também de garantir que a efetuação de alguma liberdade seja sempre

possível a partir dos códigos produzidos com trabalho apropriado ou vinculados a

tecnologias que produzem restrição. Portanto, a ambiguidade entre os termos

liberdade e abertura é condição necessária para que haja apropriação de valor

sobre o trabalho em rede, e, ao mesmo tempo, também é condição de liberdade.

Por um lado, vemos que a estratégia de liberdade do SL, projetada para

primeira onda de apropriação direcionada para o universo do software, mostra-se

capaz de enfrentar mesmo as novas formas de mercadoria (commodification) e

novas formas de apropriação produzidas pelo capital. Pois mesmo quando este se

projeta sobre o SL, para ser eficaz, precisa respeitar um mínimo de liberdade

através do qual o SL pode fluir mesmo assim.

No entanto, essa perspectiva e esta estratégia, que dá conta do que se

passa com o código, precisa ser amplificada com uma perspectiva crítica das

relações e dos contextos no qual o código livre é inserido. Afinal, se a apropriação

não se realiza sobre o código, se realiza em outra parte do processo207. De forma

que é preciso ficar atento, então, às práticas sociais e econômicas por meio das

quais os projetos de liberdade e abertura se associam, numa perspectiva que vá

além do código e que analise se há propagação de cooperação e difusão de

conhecimento, ou de competição e acumulação travestida de inovação.

207 Maria Carlotto e Pablo Ortellado (2011) apontam para “tendências notáveis de degradação do processo colaborativo de produção de software” na medida em que empresas acabam “transferindo a mercantilização e a competição econômica para o setor de serviços”.

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3. TÉCNICAS DE APROPRIAÇÃO:TRABALHO, VALOR

E REDES DE INOVAÇÃO

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FIGURA 03: «Community Involvement Diagram» (JAAKSI, 2008)208

208 Todas as imagens que aparecem neste capítulo foram extraídas de slides produzidos para apresentarem ideias, conceitos e propostas de produção da NOKIA em eventos públicos de diferentes finalidades (simpósio empresarial, encontro comunitário, conferência científica). Estas apresentações foram realizadas sobretudo por Ari Jaaksi e Quim Gil, então funcionários da empresa. Em seguida, circularam através de recomendações em blogs, agregadores públicos de notícias como o slashdot, microblogs como twitter, ou disponibilizados para serem baixados a partir de sites que oferecem o serviço de publicação de apresentações em slides, como o slideshare.

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3.1 COMO SE GANHA DINHEIRO COM SOFTWARE LIVRE?

O objetivo desse capítulo é realizar uma análise das relações de trabalho, de

compartilhamento e de apropriação estabelecidas entre empresas e comunidades

a partir do software livre e através do open source, tomando o open source como

linguagem, método de produção e modelo de negócio. Realizo um estudo de caso

sobre o desenvolvimento de um sistema operacional baseado no Linux para uma

linhagem de computadores móveis da NOKIA, buscando indicar e descrever a

ocorrência do aproveitamento econômico de um tipo de trabalho disperso, diluído

e quase imperceptível. Um trabalho de inovação realizado em rede e por uma

rede, o qual conecta e atravessa indivíduos, grupos e coletividades que interagem

e produzem informação, tecnologia e conhecimento.

Acompanhei este processo desde 2008, estimulado pela curiosidade em

torno de um negócio: a aquisição da empresa norueguesa TROLLTECH pela

finlandesa NOKIA. Uma transação de 155 milhões de dólares209 pelos copyrights

comerciais, pelo know-how e pela liderança (condução) do desenvolvimento da

plataforma Qt, uma tecnologia open source de desenvolvimento de interfaces

gráficas (GUI) que possuía grande potencial para ser aplicada no desenvolvimento

de sistemas embarcados multiplataforma.

Esta operação representou um importante movimento na direção da adoção

de uma estratégia open source por parte da NOKIA em um contexto e em um

momento de risco, pois realizada na ocasião em que o mercado, no qual a NOKIA

ocupava a liderança absoluta de operações, se tornava mais complexo e

competitivo para seus negócios devido à entrada novos players (APPLE e

GOOGLE) e do lançamento comercial de novos dispositivos no mercado – como o

209Cf.: http://arstechnica.com/information-technology/2008/01/nokia-buys-trolltech-will-become-a-patron-of-kde/ . Para informações complementares e outras indicações de materiais que repercutem esse acontecimento, consultar o ANEXO WK-13.

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iPhone e aqueles baseados no sistema operacional Android, sobretudo os da

SAMSUNG.

Antes de abordar diretamente este caso e seus desdobramentos, considero

necessário reconstituir alguns aspectos importantes da evolução da relação entre

software livre e mercado. Considero pertinente como ponto de partida uma

questão com a qual é bem provável que todos os entusiastas, defensores,

estudiosos e militantes do software livre já tenham se deparado pelo menos

alguma vez. Uma questão que é muito comum de ser evocada diante dos

primeiros contatos com os conceitos e os produtos do software livre, e que parece

acompanhar o SL desde sua criação, uma vez que desde o manifesto GNU,

Richard Stallman (1985) já se preocupava em responder a uma formulação

bastante próxima.

Quando o software livre é apresentado a alguém pela primeira vez é muito

comum que, após a apresentação das implicações da liberdade para o acesso e o

uso do código fonte, do funcionamento das redes de cooperação, e do potencial

do desenvolvimento técnico através da colaboração originar tecnologias cada vez

mais robustas e eficazes, não é nada raro o interlocutor, ainda não familiarizado

com o tema e a abrangência de suas implicações, devolver o seguinte enunciado,

muitas vezes acompanhado de uma expressão de espanto ou de surpresa:

Mas... e como se ganha dinheiro com isso aí se é de graça... se não é preciso pagar pelos programas210?!

Não deixa de ser interessante notar em relação a esse ponto, que o

espanto expressado neste enunciado seja causado por uma certa naturalização

da ideia da propriedade e, também, de uma certa supremacia da propriedade

210 A formulação toma a seguinte forma no Manifesto GNU: "Os programadores não irão morrer de fome?". Rafael Evangelista (2010: 138-139) traz uma interessante análise de como a resposta de Stallman, apesar de apontar que uma “outra organização do modelo de negócios em torno do software” surgirá a partir do software livre, não especifica as bases dessa outra organização. E, ainda, destaca que Stallman admite a possibilidade de perda de valor do trabalho do programador, e aposta na banalização da atividade de programação, a qual, é importante destacar, não é vislumbrada como algo negativo.

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sobre o trabalho, contida na percepção que considera mais óbvia e mais lógica, a

relação entre o software proprietário e a remuneração dos programadores que o

desenvolveram. Ou seja, uma naturalização da relação do trabalho alienado, que

fica evidente pois o produto do trabalho é tomado como algo naturalmente

produzido para ser alienado. E que, por isso, aparece como um regime de trabalho

e de produção mais próximo do real ao ser portador de uma lógica – ou sentido

social – mais inteligível do que o produto de um trabalho que não é separado de

seu processo social de produção.

No Brasil, por volta de 2003, questões como a contida neste enunciado

eram recorrentes. Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, o uso de

computadores ainda estava muito associado ao uso da plataforma Windows da

MICROSOFT, e o cenário de distribuição do acesso às tecnologias digitais

marcado pela exclusão ou fronteira digital211. A este arranjo sócio-técnico

correspondia uma economia-política que consolidava um padrão tecnológico

proprietário que cobrava pelo acesso, restringia a circulação do conhecimento, e

informava uma relação de uso de tipo usuário-consumidor. No plano político, este

tipo de relação não pressupõe uma relação de conhecimento sobre o

funcionamento do computador e sobre quais processos são executados durante

este funcionamento. Implica uma escolha por uma suposta eficiência do

funcionamento do aparelho em detrimento do controle, comando, autonomia e

liberdade que se tem sobre e através deste processo. Um dos segredos do

sucesso do Windows era que o usuário podia simplesmente usar o computador,

sem ter de se preocupar com a parte operacional, que sempre podia ser resolvida

por uma terceira parte. Como consequência do código fonte ser fechado, o

conhecimento passa a ser raro e, em alguns casos, até mesmo impossível.

Dessa forma, a difusão da ideia do software como mais um objeto de

consumo disponível na paisagem capitalista do mercado, foi acompanhada

também pela difusão da imagem do programador como o nerd que

211 Para informações complementares consultar o ANEXO WK-24.

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invariavelmente ficaria rico e poderoso – vide o célebre enunciado “nerd today,

boss tomorrow” – em virtude de dominar esse conhecimento raro e cada vez mais

valorizado212.

Diante desse cenário, não era de se estranhar que os conceitos e métodos

do software livre, ao proporcionarem outras práticas de uso, de interação com a

tecnologia e de produção de conhecimento, contrariavam a percepção comum.

Como afirma Christopher Kelty (2008), esta práticas diferentes pareciam “violar a

lógica econômica e os princípios da posse privada e da autonomia individual”. Daí

também o espanto de perceber que ao invés de um gênio e uma empresa global

impulsionando o desenvolvimento técnico, tínhamos redes que praticavam uma

colaboração impessoal e descentralizada, que congregavam milhares de

programadores ao redor do mundo, muitos deles atuando voluntariamente e por

prazer. E ao invés de um produto fechado e baseado numa estratégia centralizada

e secreta, um novo ambiente informacional cujo potencial se confundia com a

capacidade cognitiva e energética das próprias redes de inteligência que o

informavam.

A raiz desse espanto ou estranhamento acredito que possa ser encontrada

na ambiguidade entre as ideias de liberdade e gratuidade. Menos pela questão de

nome decorrente dos sentidos possíveis do termo free em inglês (grátis e livre),

trata-se de uma questão pragmática, uma questão técnica: aquilo que se pode

fazer com um código livre regulado por licenças livres.

A implicação deste regime legal de licenciamento é que o lançamento do

código implica na possibilidade dele ser usado para qualquer fim e de ser

compartilhado sem restrições desde que replique este regime adotando a mesma

licença em suas versões futuras e derivadas. Dessa forma, mesmo que alguém

tenha o direito de cobrar por seu desenvolvimento e por sua distribuição, não

212A autoria do enunciado citado entre parênteses é atribuída a Bill Gates, o fundador da Microsoft, considerado no final dos anos 1990 como o homem mais rico do mundo e, para muitos, o mais inteligente também. Seu nome era, na ocasião e em menor escala até hoje, tomado como sinônimo de gênio. E a ele atribuía-se a responsabilidade pela revolução tecnológica causada pela popularização dos computadores pessoais e mesmo do avanço computacional daquela década.

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poderá impedir seu uso e seu compartilhamento.

Contudo, se não se pode impedir o uso e o compartilhamento, não é

obrigatório pagar pelo acesso. E se não é obrigatório pagar pelo acesso, não de

se estranhar que a primeira pergunta que geralmente é suscitada é: por que,

então, alguém pagará?

A ambiguidade livre-gratuito somente se realiza, no entanto, justamente

pela ocorrência do contrário da ideia contida nessa questão: pois que, mesmo não

sendo necessário pagar, enormes mercados se abrem interessados em pagar. Ou

seja, mesmo estando todos os códigos disponíveis, não se trata de apenas poder

usar, mas de saber usar e de fazer funcionar. Assim, como já foi mostrado com

bastante pertinência por Eric Raymond (1997), paga-se pelo know-how e por

serviços associados: instalação, customização, desenvolvimento de novos

códigos, suporte, manutenção, entre outras atividades que podem complementar,

corrigir, desenvolver e adaptar o código a um uso específico ou a uma

necessidade particular.

No entanto, enquanto o software livre ainda se aproximava de um público

maior ao começar a se tornar conhecido e, por que não, popular, sendo assimilado

e apreendido como comum, já era uma realidade muito instigante para várias

empresas. Yochai Benkler (2006), em seu importante livro “The Wealth of the

Networks” invoca um forte exemplo de um novo modelo de negócio que, nessa

mesma época, surgia em torno de um regime de não-exclusividade sobre o

código.

Como podemos ver na tabela abaixo, extraída de seu texto que acabo de

citar, já em 2003 a IBM lucrara dois bilhões de dólares com “serviços relacionados

ao Linux”. Mais do que o dobro do que lucrou através de licenciamento,

transferência e royalties de propriedade intelectual. Apenas 4 anos após começar

a praticar esse tipo de negócio, e logo depois de acumular, nos 10 anos

anteriores, a incrível marca de 29.000 patentes registradas, que garantiu a IBM o

posto de maior produtora de patentes do mundo (2006: 46-47).

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FIGURA 04: «Selected IBM Revenues, 2000-2003» (BENKLER, 2006)

Fica evidente, portanto, que o enunciado recorrente sobre como ganhar

dinheiro com software livre não fazia muito sentido para corporações que,

utilizando a terminologia de Benkler, conseguiam estabelecer uma profícua

relação de complementaridade e até mesmo de simbiose com as redes de

produção do software livre.

Diante disso, podemos concluir que, na verdade, o enunciado do espanto

expressa um certo descompasso entre a cultura e a técnica, ou, talvez com mais

precisão, entre a cultura e a economia política de um emergente novo modo de

produção. Este descompasso será analisado adiante, e o interesse é interrogar:

em que medida ele é, no mínimo, funcional para esta nova economia política? Que

tipos de conflito este descompasso informa e enseja?

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Benkler chama essa relação de complementar, se não simbiótica, pois

informa que neste ano de 2003, a IBM, em contrapartida, investiu mais de um

bilhão de dólares contratando desenvolvedores de software livre, alocando alguns

deles no desenvolvimento do kernel do Linux; outros, em projetos até mesmo fora

de seus domínios, mas estratégicos para seus negócios; e doando patentes para

FSF213.

O termo simbiose é forte, pois implica numa inter-relação de caráter

obrigatória, que pode acarretar especializações funcionais entre as espécies

envolvidas. No caso de Benkler, considero que a ideia de complementaridade ou

simbiose é levantada para mostrar que a IBM não estaria apenas se alimentando

das redes, mas também contribuindo para expansão de seu ecossistema. Esse

ponto é central, pois é justamente nessa relação de expansão/contração do

comum que procuraremos identificar as zonas de conflito e a prática de

acumulação por espoliação realizada sobre – para utilizar a terminologia deste

autor – a riqueza das redes.

Voltando ao enunciado sobre “ganhar dinheiro com software livre”, talvez

ele estivesse mais direcionado para aqueles que desenvolvem os códigos, ou

seja, para o trabalho; e buscasse perguntar: por que os programadores

trabalhariam de graça para desenvolver programas que geram lucros bilionários

para grandes empresas?

Nessa linha, a conversa ficaria, de fato, muito mais interessante. Pois não

estaria questionando o potencial da inteligência e da esperteza do sistema

capitalista em se apropriar de riquezas produzidas coletivamente ou sobre bens e

meios comuns – algo que, ademais, é próprio do capitalismo e que está

relacionado com sua emergência/criação, com suas raízes, como podemos ver

desde os escritos clássicos de Marx sobre a acumulação original, e também com

sua reprodução, como podemos ver nos estudos recentes de David Harvey sobre

213 Cf.: Stephen Shankland, IBM Offers 500 Patents for Open-Source Use, CNET News.com, Jan. 10, 2005, http://www.news.com/2100-7344_3-5524680.html.

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acumulação por espoliação (2003, 2007). Ao contrário, o questionamento seria

endereçado à adesão e à associação das redes com práticas que historicamente

vão em outra direção em relação à colaboração e ao compartilhamento. Ou seja,

um questionamento dos motivos e mesmo das condições que levam uma forma

cooperativista de produção continuar existindo dessa forma apesar de seu

estrondoso aproveitamento capitalista – que necessariamente é

anti-cooperativista, pois baseado na competição.

Por que as pessoas trabalham de graça? Essa seria a questão de fundo,

colocada de maneira direta. Uma resposta possível é que elas atendem a outras

motivações que não a econômica, ou atendem a outras motivações econômicas

não mais baseadas na lógica do trabalho, mas na lógica do investimento e da

valorização do capital humano (Lopéz-Ruiz, 2007). Uma lógica em que a

experiência social e a própria existência individual é mediada pela forma e pela

lógica do capital, ou seja, uma experiência social e individual experimentada e

vivida enquanto capital – capital de si.

Não à toa, entender o que motiva e mobiliza as pessoas trabalharem de

graça é hoje setor estratégico de qualquer empresa que lida com informação no

mundo digital – sendo inclusive um promissor campo profissional para cientistas

sociais (os mais espertos e antenados, obviamente). E motivar e mobilizar

pessoas para trabalharem de graça constitui parte fundamental daquilo que

informa esse novo tipo de linha de produção, ou melhor, rede de produção.

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3.2 APROPRIAÇÃO 2.0: APROPRIAÇÃO SEM PROPRIEDADE

Os primeiros modelos negócio associados ao SL e que suscitaram o

surgimento do OS, constituem-se na venda de serviços associados. Ou seja, o

que se vende é o desenvolvimento, a instalação, adaptação e a manutenção dos

programas e não os programas em si. Uma implicação comum a esses modelos

de negócio é que não é necessariamente o desenvolvedor que irá lucrar com o

aproveitamento econômico de um programa.

No entanto, empresas grandes como a IBM e a Sun Microsystems,

perceberam que também se ganha quando outros estão ganhando com os

programas que foram compartilhados socialmente. Os programas e as linguagens

que são adotados com grande intensidade passam a ser referências e modelos

para outros projetos, o que consequentemente permite ao projeto original a

possibilidade de aproveitar produtos derivados que resultam de redes de produção

externas a seus domínios; sem contar a proeminência de ser a tendência ou de se

tornar o padrão industrial e, consequentemente, de poder influenciar e pautar os

rumos do desenvolvimento de certa linhagem técnica – o que acarreta uma

enorme vantagem competitiva.

Dessa forma, este arranjo produtivo depende da conciliação, ou da sintonia,

dos interesses de redes de colaboração livre com os interesses de empresas

privadas. Neste arranjo, a apropriação sobre o trabalho produzido fora de relações

de trabalho explícitas e fora do domínio direto das empresas ocorre sobre 4 tipos

de atividades: correção de erros; evolução técnica pelo aprimoramento dos

potenciais do código; adaptação para novos usos (customização para

necessidades específicas); e expansão do número de usuários.

Contudo, neste tipo de arranjo, o tipo de relação estabelecida com as redes

ainda era algo distante. A relação era baseada numa certa reciprocidade –

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presente sobretudo no respeito às licenças livres e abertas, principalmente a

licença GPL –, mas não se estabelecia uma continuidade direta entre empresas e

redes: as empresas podiam aproveitar os resultados dos trabalhos derivados e do

trabalho livre realizado anteriormente desde que respeitando as licenças, o que

em contrapartida implicava na obrigação de compartilharem os resultados de sua

própria produção.

A passagem para um novo modelo pode ser notada quando as empresas

passam a estabelecer zonas de continuidade com as redes. No caso que

analisaremos, além de uma maneira particular de estabelecer esse tipo de

continuidade, observamos uma nova nuance: a participação das redes de

colaboração no processo produtivo não é mais somente no que pode ser

aproveitado daquilo que já foi produzido, nem o de testar, corrigir e implementar o

que já foi desenvolvido, mas o de assumir algumas das atividades mais caras à

produção contemporânea de informação: criação, invenção, inovação e

distribuição (formação de consumidores e criação de mercados).

As estratégias empreendidas pela NOKIA entre 2005 e 2011 em parceria

com as comunidades Maemo e MeeGo oferecem um excelente material para essa

investigação, pois nestas experiências a aplicação das práticas do software livre

ocorreu numa das mais disputadas frentes tecnológicas, que possui um dos

maiores potenciais de crescimento de mercado: a dos computadores móveis e dos

sistemas embarcados. Chamo de computadores móveis o campo formado pela

fusão de computadores com a telefonia celular, representados hoje pelos

aparelhos que são chamados de smartphones, e também os tablets. Essa escolha

tem como objetivo evidenciar que, apesar das limitações de uso que os

fabricantes impõe a estes aparelhos, eles não deixam de ser computadores

potencialmente de uso genérico214.

Com o sucesso e a grande difusão dos smartphones, a empresa finlandesa,

214 Para maiores informações sobre as restrições de uso impostas a esses aparelhos e como essas restrições afetam e condicionam as relações de uso, bem como seu desenvolvimento técnico, ver a campanha da FSF: “iBad” cf. : http://www.fsf.org/news/ibad_launch

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tradicional líder mundial do mercado de telefones celulares, começou a perder

espaço. Principalmente depois do lançamento do iPhone, que passou a possibilitar

outros tipos de interação social através do celular, e, mais recentemente, do

Android, sistema operacional multiplataforma desenvolvido a partir do Linux pelo

GOOGLE, que é mais barato que o iPhone e oferece grande integração com os

serviços web que esta empresa já oferecia.

É interessante notar, então, que como estratégia para recuperar sua

participação no mercado, ou seja, como estratégia para amplificar sua

competitividade, a NOKIA, em duas frentes diferentes optou por relacionar-se com

o software livre, adotando estratégias open source. Um delas, consistiu no

processo de abertura do código do sistema operacional Symbian215. A outra, que

nos interessa mais – pois fornece o material que nesse capítulo analisaremos –

consistiu na criação do projeto/comunidade Maemo216, que depois de alguns anos,

em uma parceria com a INTEL, foi integrado ao projeto/comunidade MeeGo217.

Quanto ao Symbian é interessante apontar que a abertura do código foi

realizada pouco tempo antes do anúncio do abandono do seu desenvolvimento,

pois a plataforma mostrou-se insuficiente para competir com as novas

necessidades impostas pelos adversários. A abertura do código pôde funcionar,

então, como meio para que os aparelhos que a utilizam – e no final de 2010 o

Symbian era utilizado por 44,6% dos smartphones do mundo218 – continuassem

contando com atualizações produzidas por seus próprios usuários.

Quanto à criação dos projetos/comunidades Maemo e MeeGo, o que

interessa é que há uma atuação direta da empresa na articulação e na ativação de

uma rede que funcionará para mobilizar colaboradores e para fazer a tradução e a

215 Para outras referências sobre esse processo de abertura do código do sistema operacional Symbian, consultar o ANEXO WK-08, com destaque para o diagrama “What happens to my Idea?” e a para o link “Sobre o processo de aproveitamento de idéias: Symbian Ideas”.

216 Cf. http://maemo.org/community/ .217 Cf.: https://meego.com/ .218 Cf.: http://www.gartner.com/newsroom/id/1466313 (Ver “Table 2”) . No final do ano de 2012, a

participação de mercado do Symbian era de 16,9%: http://www.gartner.com/newsroom/id/2237315 (ver “Table 2”).

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transferência do que é produzido nas redes livres e abertas de colaboração para

as redes internas de produção da NOKIA. Um trabalho em rede que ativa uma

rede de colaboração e estabelece um circuito que entrega conhecimento e

informação produzidos fora da linha de produção da empresa para dentro da linha

de produção da empresa, realizados através de um regime de trabalho que em

certos aspectos é formatado para não ser percebido como trabalho.

No funcionamento deste tipo de rede, entendo que a relação da produção

de valor a partir da informação ocorre sem a necessidade de uma relação de

propriedade exclusiva sobre o código, o que nos coloca diante do instigante e

bastante estranho – pelo menos conceitualmente – modo de operação em que há

uma espécie de apropriação sem propriedade.

Esse tipo de produção, baseado no estabelecimento de continuidade com

uma comunidade aberta e externa à empresa e no compartilhamento de código,

foi declarado e utilizado como estratégia de retomada de competitividade e

capacidade de inovação. Recentemente, porém, na tentativa de superar uma

grande crise resultante do avanço principalmente do sistema operacional Android

– que talvez tenha sido mais ágil no aproveitamento da inteligência das redes em

seu desenvolvimento –, a NOKIA, logo após o lançamento do modelo N9, que foi

muito elogiado tanto por seu sistema operacional, o MeeGo, quanto por seu

design, acabou de certa forma surpreendendo a todos e lançando uma versão

deste aparelho com o sistema operacional Windows Phone 7, inaugurando a linha

Lumia. Num movimento que incluiu o abandono da estratégia centrada no open

source para uma aliança com a MICORSOFT – uma empresa que durante anos

simbolizou justamente tudo aquilo que poderia ser o oposto do software livre e do

open source.

Cabe analisar, em relação a esta virada de estratégia e à aliança com a

MICROSOFT, que ela foi justificada por razões mais econômicas do que

propriamente técnicas, no que alguns analistas consideraram como uma

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decorrência da pequena participação da NOKIA no mercado dos EUA219, que

poderia ser revertida por uma aliança estratégica com uma empresa com forte

influência sobre este mercado e com forte identificação com esse mercado. Fora

isso, no que concerne o rápido retorno e passagem ao software proprietário,

pode-se notar uma grande flexibilidade do hardware da NOKIA em sua adaptação

tanto a sistemas abertos quanto fechados.

Por outro lado, os desenvolvimentos relativos à plataforma MeeGo não

foram abandonados e continuam sendo realizados em um espectro de certa forma

até mais amplo de cooperação em três frentes. Contando com grandes empresas

associadas a um consórcio sob liderança da Linux Foundation, que deu origem ao

projeto Tizen220. Através de uma startup chamada JOLLA, formada por

ex-funcionários de divisão MeeGo da NOKIA, que no final de 2012 lançaram o

sistema operacional Sailfish221 e projetam suas operações econômicas quase que

totalmente ao mercado Chinês. E no projeto Mer222 (sigla que deriva de “Maemo

Reconstructed”) que possui um caráter exclusivamente comunitário tendo inclusive

como objetivo de reparar e reconstruir o projeto MeeGo223 livrando-se de seus

erros de gestão – falta de transparência e pouca flexibilidade – ao mesmo tempo

que trabalha em conjunto com projetos como o Tizen e que é aberto a ser

adaptado em outros projetos, como o Sailfish.

Ademais, mesmo com o abandono do desenvolvimento desta plataforma

pela NOKIA, o que interessa aqui não é analisar a eficácia econômica da adoção

do software livre como modelo de produção, mas de como se deu a incorporação

219 O BLOG de TI Technowizz apresenta um estudo realizado por Neil Shah intitulado “NOKIA: Not a King In America!!!” que mostra que entre 2006 e 2009, a participação da NOKIA no mercado da América do Norte caiu de 15,91% para 8,06%, sua menor participação em comparação as outras regiões do mundo. Cf.: http://technowizz.wordpress.com/2010/01/26/nokia-not-a-king-in-america/

220Cf.:http://www.dailytech.com/Resurgent+Meego+Renamed+Tizen+Sponsored+by+Linux+Master+Group/article22861.htm

221 Cf.: https://sailfishos.org/ .222 Cf.: http://merproject.org/ .223 Numa mensagem à lista de e-mail da comunidade MeeGo um dos líderes da nova comunidade Mer

anuncia: “precisamos de uma comunidade que transcenda a mera marca MeeGo, Maemo, Moblin e a, agora, Tizen”, cf.: http://lists.meego.com/pipermail/meego-dev/2011-October/484215.html .

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de suas práticas de desenvolvimento na linha de produção de pesquisa,

desenvolvimento e inovação de uma empresa. E, também, como foi possível

conciliar o trabalho de colaboração em rede e o regime de conhecimento

compartilhado com o desenvolvimento de uma tecnologia fechada e voltada para

gerar acumulação privada.

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3.3 TRABALHO EM REDE, TRABALHO DE REDE: INOVAÇÃO

A estratégia open source da NOKIA precisa ser entendida como uma

incorporação do open source enquanto metodologia de pesquisa e

desenvolvimento (P & D) e, principalmente, de produção de inovação. A NOKIA

não se limitou a abrir o código fonte de um determinado projeto a uma

comunidade, copiar o código produzido por ela e retomar sua produção em um

regime fechado, numa espécie de fork (Comino & Manenti, 2007). Tampouco se

resumiu a aproveitar uma base tecnológica open source já desenvolvida,

adaptando de maneira privada a seus interesses através de seus funcionários e

dentro de seus domínios. Com efeito, significou realmente entregar a produção a

uma comunidade abrindo mão da propriedade exclusiva sobre o código.

Joachin Henkel (2008: 1) destaca que muitas empresas já adotaram o

sistema operacional Linux e outros tipos de software open source e, mais

importante, sua abordagem de desenvolvimento e seu método de produção. Em

seguida, afirma com precisão quais são as implicações para as relações de

produção:

Contrariamente a ênfase tradicional colocada na proteção da propriedade intelectual, esta abordagem implica em tornar o desenvolvimento disponível publicamente, sem garantias contratuais de obter alguma contrapartida de volta.

Então, ao invés de proprietária do código, a empresa precisa praticar outra

estratégia de controle sobre o que é produzido. No diagrama abaixo, temos um

exemplo de como essa estratégia se aproxima do controle sobre o mapa de uma

rede. Como um todo, o diagrama apresenta um circuito de circulação de

informação, que evidencia o caminho que faz com que os projetos virtuosos, as

soluções, e mesmo o trabalho técnico de precisão desenvolvido nas zonas livres e

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abertas da produção colaborativa passem preferencialmente e necessariamente

pela linha interna de P & D da NOKIA.

FIGURA 05: «Inside-Out Roadmap» (JAAKSI, 2008)

Podemos identificar neste diagrama 3 zonas distintas: no alto, representada

por uma linha azul, identificada por desenvolvimento interno, uma zona fechada,

de acesso restrito em diferentes níveis aos funcionários diretos e associados da

NOKIA; abaixo, representada por uma linha cinza, a zona aberta do

desenvolvimento upstream; e no centro, representado por uma linha laranja, uma

zona intermediária, chamada de desenvolvimento aberto.

Os fluxos que partem ou atravessam (retornando) a zona interna e a zona

do upstream encontram-se na zona intermediária, que recebe o nome de aberta

por permitir a comunicação entre dois regimes diferentes. Por baixo, o upstream

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entra com um grande aporte de informação que, como no caso da plataforma Qt, e

mesmo do kernel do Linux, fornece os próprios pontos de partida do

desenvolvimento geral – como se pode ver no movimento representado no

diagrama por um seta, um tanto fálica diga-se de passagem, de contorno verde,

que engloba o upstream e o projeta para a zona aberta, impulsionando a

produção. No caso da plataforma Maemo, os projetos que figuram no upstream

são, entre outros: Mozilla, Debian, Linux.

Nesse encontro, formam-se três roadmaps, e a comunidade passa atuar

como mediadora e, por que não, tradutora, entre o upstream e a zona interna, uma

vez que o roadmap do software de código aberto é conduzido na zona interna da

produção.

É na zona interna que são criados também as intensões gerais do projeto,

que serão divulgadas amplamente na direção do upstream, preferencialmente

sendo divulgadas em diversas frentes, para que sejam multiplicadas as

possibilidades de fontes de colaboração. Assim como é na zona interna que é

criada a visão geral do projeto, que informará diretamente o roadmap do

desenvolvimento do código, na zona intermediária, pela comunidade.

Compartilhadas, num espectro mais amplo, as intenções, e, num espectro de mais

proximidade, as visões, a zona interna pode construir, sempre com a proeminência

de quem modula o ritmo de produção, em conjunto com a zona intermediária, ou

seja, com a comunidade, um plano de lançamento de versões dos códigos, que,

na prática, significa a publicação e compartilhamento do código produzido.

Em seguida, em movimentos de dentro para fora e de fora para dentro,

privilegiando o contato com a zona intermediária, ou seja, atingindo a zona do

upstream apenas de maneira secundária, ocorre um movimento que é

representado graficamente no diagrama por um conjunto de setas que se cruzam

através de um movimento sucessivo que vai de cima para baixo e de baixo para

cima, que acabam por informar o lançamento do código novo em sua versão

Alpha – uma primeira versão, ainda de desenvolvimento.

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Na continuação desse processo, há uma intensificação das interações entre

zona interna e zona intermediária que processam as contribuições vindas do

upstream e corrigem os bugs encontrados nos testes realizados por usários da

comunidade. Estas interações possibilitam o lançamento de uma versão Beta do

código – a última antes do lançamento da versão final. Na fase Beta, o upstream

ainda é mobilizado, pois ainda são necessários testes para encontrar bugs e

falhas de funcionamento, que precisam ser encontrados e solucionados para

tornar o código estável em seu funcionamento e passível de ser lançado

comercialmente.

O movimento que marca o lançamento da versão final é representado de

uma maneira interessante: uma seta mais grossa atravessa com ênfase o

diagrama, num movimento que parece representar a síntese dos fluxos que vem

de cima e de baixo, respectivamente, de dentro e de fora, marcando o lançamento

desse código no encontro deste com a comunidade. Ou seja, deixando claro que o

lançamento da versão final é feito em conjunto com a comunidade. Como o código

é aberto e o processo tende a evoluir durante a relação de uso, e a evoluir mais

quanto mais for utilizado, o diagrama não se encerra, por isso aponta para uma

continuidade.

A captura sobre o 'fresh upstream code' é uma captura realizada direto da

fonte, do fundo comum das redes de colaboração que constitui o próprio meio do

ecossistema de evolução (material e simbólica) dessas redes. Através de relações

de colaboração que implicam “ausência de garantias contratuais de qualquer tipo

de contrapartida” (Henkel, 2008: 1) estabelece-se uma certa continuidade entre

zonas abertas e fechadas de desenvolvimento. Numa função desempenhada pela

comunidade constituída justamente para mediar essa relação e concentrar os

interesses fechados e os abertos.

Esta continuidade entre zonas externas e que podem possuir interesses

contraditórios, no entanto, deve estabelecer relações de tipo sinergética, que

devem beneficiar os dois lados da relação: aquilo que ficará aberto e o que ficará

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fechado. E deve também determinar que essa relação seja benéfica para a

reprodução de ambos, e, portanto, para a expansão do meio comum.

Como se pode ver na formulação de um então vice presidente da Nokia, o

valor do upstream é central, e para isso é preciso cuidar da relação, para que,

literalmente, não se perca o acesso à fonte :

Nós vemos [o] upstream como a base da nossa plataforma industrial para dispositivos baseados em Linux. Upstream é a onde a coisa realmente acontece. Alinhe-se com o upstream. Compartilhe planos. Nada de forks. Retribua. Ignore o upstream e você perde!224

Como não há garantia contratual para nenhum dos termos da relação, é

preciso manter uma certa sintonia. Como no caso o principal interessado é a

empresa, ela precisar saber cuidar da relação com a comunidade: entendê-la para

saber retribuir por sua colaboração, e mantê-la estimulada para que trabalhe. Para

isso, é preciso estabelecer uma relação de proximidade, de alinhamento:

manter-se próximo; acompanhar seus movimentos; compartilhar suas conquistas;

mapear seus desejos.

Esse trabalho de comunicação, que pode mesmo ser entendido no sentido

cibernético do termo, ou seja, de transmissão, controle e comando de informação,

é realizado pelo trabalho de rede do acoplamento entre comunidade e empresa.

Modulando essa relação, há trabalhadores empenhados explicitamente na tarefa

de mobilizar e servir os desenvolvedores, de criar consensos, conciliar interesses

e estabelecer objetivos comuns. Em suma, de forjar e, tão importante quanto,

afirmar a convergência. Profissionais oriundos do marketing, da antropologia e do

jornalismo, que se empenham na elaboração e na difusão de uma linguagem

comum, uma linguagem de convergência.

Por outro lado, é muito importante a participação dos desenvolvedores

224 Trecho extraído do post “OSiM News -- What's up with Maemo?” publicado no blog do então vice-presidente de operações open source da Nokia, Ari jaaksi, realizado em seu blog no dia 16 de setembro de 2008. Cf. : http://jaaksi.blogspot.com/ .

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borderliner, ou seja aqueles que participam ativamente de comunidades open

source e trabalham dentro de uma empresa e atribuem legitimidade ao

aproveitamento de código open source pela empresa, além de possuírem o

conhecimento das dinâmicas internas dessas comunidades e de compartilharem –

Henkel (2008) utiliza a expressão revelar – os códigos que empresa desenvolve

internamente.

É sobre um amplo espectro de atividades de modulagem de informação que

o trabalho será aproveitado: coordenar e direcionar ações; responder e

encaminhar dúvidas; debater e rebater as contradições; mapear insatisfações;

identificar erros na linguagem do compartilhamento. Atividades que fazem parte da

abordagem open source com o objetivo de manter o controle sobre o que está

sendo aberto, estabelecer controle sobre o que já estava aberto e, mais

importante, informar uma dinâmica que encarregue às próprias redes

selecionarem e conferirem credibilidade ao que deve ser incorporado e

aproveitado, bem como de organizarem seu próprio trabalho. Como podemos ver

no diagrama abaixo, cujo sugestivo título apresenta esse movimento de

passagem, de transferência e de seleção em uma linguagem evolutiva.

Sobre este diagrama, é interessante notar que aquilo que chamei de uma

certa continuidade ainda há pouco, implica, na verdade – ao menos em sua

representação gráfica –, em uma certa descontinuidade. Há uma alusão a uma

sobreposição de domínios entre comunidade e empresa, representada pela zona

central, marcada em azul claro, onde há o encontro dos componentes open

source comuns e os “binários essenciais” da NOKIA – códigos proprietários

fechados.

Porém, a sobreposição ocorre, ou parece resultar, dentro dos domínios da

empresa – até porque, como os binários essenciais são fechados e proprietários,

apenas ela pode efetuar a coordenação e interação entre eles e os códigos

abertos. Nessa representação, a continuidade dá lugar a uma espécie de ligação

que informa um fluxo em sentido único, representado por uma seta em azul

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escuro, que vai da comunidade à empresa, levando as inovações para dentro da

NOKIA através de uma interface (um fórum) que é representada por um conjunto

que fica com uma parte dentro e outra fora dos domínios da empresa. Ocupando

uma posição análoga a de outros parceiros comerciais, e da plataforma de

serviços comerciais da própria empresa225.

FIGURA 06: «The best of breed gets promoted» (Gil, 2008)

Neste diagrama, a comunidade aparece como um espaço que sintetiza

todos os tipos de variações de código: de hacks ao desenvolvimento de aplicativos

open source de terceiros. A seleção é realizada no fórum, onde todas as

inovações são apresentadas e expostas à apreciação. Da qual resulta a escolha e

a promoção do melhor do que foi produzido – e a expressão “the best of breed”

poderia até mesmo ser traduzido como o melhor da raça –, que é, então,

225 OVI é o nome da plataforma de negócios online da NOKIA, cf.: http://store.ovi.com/ .

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incorporado no código oficial e em seus futuros lançamentos.

O resultado final da composição híbrida entre código aberto e código

proprietário na estrutura das tecnologias da NOKIA desenvolvidas dentro deste

regime de colaboração pode ser vista em outro diagrama, que é apresentado

abaixo (na próxima página).

Além da explicação de que um sistema “100% open source não é um

objetivo em si”, podemos ver neste diagrama que há uma clara diferenciação entre

o software proprietário, representado pela cor azul, e o software de código fonte

aberto, representado pela cor verde. Diferenciação que, entretanto, fica confusa

quando vemos que verde e azul se misturam em certas áreas, justamente para

permitir que o uso do open source possa ser conciliado com software proprietário

da NOKIA e de terceiros.

Nessa conciliação, partes estratégicas do controle do dispositivo são

mantidas no modo proprietário, sem que o usuário ou o

desenvolvedor-colaborador possa acessar, conhecer o funcionamento ou

modificá-lo. Dessa forma, por exemplo, sem acesso ao código que controla a parte

de telefonia (modem GSM), nenhuma outra utilização que não as programadas e

estabelecidas pela NOKIA é possível.

Para entender esse modo de operação, que permite a inter-relação entre

diferentes fluxos produtivos, oriundos de um registro aberto e de um registro

fechado, é preciso entender o papel operado pelo o acesso ao código fonte, por

sua condição de abertura.

O open source implica em uma relação com o código que, como já

dissemos, não é de propriedade. O significado prático da abertura é que

necessariamente não haverá controle sobre alguma parte do processo em algum

momento de seu desenrolar. A abertura implica, portanto, um certo descontrole e,

também, em um certo desconhecimento dos desdobramentos possíveis.

Aparentemente, ao se abrir se dá mais do que se pode receber. No entanto, há

sempre um potencial de retribuição por essa entrega. A retribuição de algo valioso,

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algo que também pode ser apropriado de maneira direta, pois também

disponibilizado de maneira aberta, ou seja, implicando descontrole para a terceira

parte que o produziu.

FIGURA 7: «Where Open Source is deployed?» (Gil, 2008)

Apostamos em nossa investigação que os novos fundamentos da produção

e, consequentemente, da apropriação, baseiam-se na combinação de controle de

tipo know-how (Buckminster Fuller, 1984) com antecipação de inovações

tecnológicas – que se traduzem em vantagem de tempo em relação aos outros

competidores. Ou seja, na capacidade de saber fazer uma certa informação

funcionar para seus interesses sem ter que impedir o acesso de outros a ela pela

capacidade de saber fazer essa informação funcionar antes que outros

competidores também se apropriem dela (e produzam suas aplicações e

inovações).

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E este último fator é importante, sobretudo para a problematização das

implicações desse tipo de associação sobre o sentido político da liberdade, pois

torna evidente um cruzamento entre colaboração e competição. Assim como o fato

de que mesmo não havendo um regime definitivo e explícito de propriedade –

inclusive sobre o trabalho – há um tipo novo de apropriação, afinal, o processo

produtivo ainda encontra-se inscrito, pautado e orientado para um regime de

acumulação de capital.

O caso do sistema Android pode ser considerado emblemático da

estratégia baseada no controle sobre o código para a realização do valor através

da antecipação. Em um artigo provador, Jonathan Corbet, um importante e

reconhecido mantenedor do kernel do Linux226, caracteriza o modelo de

desenvolvimento do Android como um modelo de tipo “walled garden”, expressão

que podemos traduzir por jardim murado227. Em sua abordagem open source, o

GOOGLE mantém total controle sobre o código-base do lançamento, dessa forma,

ninguém fora da empresa pode ver o código antes do lançamento e, portanto,

acrescentar modificações ou adaptar a suas necessidades de uso (liberdade

número 1, das liberdades essenciais do software livre)228. De forma que Corbet

pode mesmo concluir que: “se não há comunidade em torno do código, não há

invenção compartilhada”. Ou seja, o GOOGLE não está compartilhando suas

inovações: controla o processo final de inovação e, consequentemente, se

apropria com exclusividade da inovação que, apesar de não contar diretamente

com a contribuição da comunidade, conta com a comunidade como matéria-prima

e como fonte de inovação.

226 A Linux Foundation produziu uma série de entrevista com 30 dos mais importantes mantenedores do kernel Linux (desenvolvedores responsáveis por gerir e cuidar do desenvolvimento de partes específicas do kernel), intitulada 30 desenvolvedores em 30 semanas. Jonathan Corbet foi um deles, o de número 24: https://www.linux.com/news/special-feature/linux-developers .

227Esta interessante discussão apesar de não conclusiva – dado o frescor do debate – foi elaborada para o site LWN.net no texto publica em 06 de junho de 2011 : “Android, Fork and Control”, Cf. : http://lwn.net/Articles/446297/ .

228 Para uma discussão sobre as 4 liberdades e suas implicações ver item 2.1 do capítulo 2. Para dados complementares ver ANEXO WK-05.

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Esta opção, ainda segundo o mesmo analista, talvez tenha sido necessária

para dar um foco mercadológico para o projeto, uma vez que os processos de

decisão dentro de uma comunidade não costumam atender a um prazo, tendem a

demorar o que for necessário para que se atinja certo ponto de evolução técnica.

Esta temporalidade é incompatível com o ritmo dos negócios e, portanto, o

GOOGLE foi obrigado a fazer um fork do kernel Linux.

No entanto, é preciso destacar que, devido a essa escolha por atrasar o

compartilhamento, o GOOGLE ganha a vantagem de escolher quem será o

primeiro a receber esse código, podendo assim privilegiar algum dos parceiros

que fabricam os hardware que utilizam o sistema Android – HTC, SAMSUNG,

SONY-ERICKSON, entre outros. O primeiro a acessar o código, poderá adaptar

com mais rapidez e lançar uma versão mais nova antes e mais adaptada a seu

dispositivo, implicando numa vantagem competitiva em relação aos demais.

Analisando esse modelo de desenvolvimento, e realizando uma avaliação a

respeito do Android ser ou não um software livre, Richard Stallman (2011) aponta

que o controle total sobre o rumo da evolução do código – representado pelo não

compartilhamento de versões em estágio bruto de desenvolvimento – é uma

demonstração de que o Android não é livre. Recuperando o argumento da

empresa, que alega que ainda não lançou a versão 3 de seu sistema operacional

pois o código ainda está instável e repleto de bugs, Stallman afirma que a decisão

de lançar ou não, independente do estado do desenvolvimento deve sempre ser

da comunidade, e que mesmo que o sistema ainda esteja repleto de bugs, alguns

usuários – hackers e tinkerers229 – podem se interessar em utilizá-los mesmo

assim, desenvolvendo ou não suas adaptações e soluções particulares230.

Esse caso mais recente do Android, que também está presente, com suas

229 Tinkerer é um termo cada vez mais utilizado para se referir a uma disposição, curiosidade e interesse pela experimentação e exploração de novas funcionalidades em dispositivos técnicos, as vezes, de maneira não muito habilidosa ou informada por uma consolidada habilidade técnica.

230 O artigo “Is Android free software?” foi publicado pelo jornal britânico The Guardian no dia 19 de setembro de 2011. Cf. : http://www.guardian.co.uk/technology/2011/sep/19/android-free-software-stallman .

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nuances, nas tecnologias desenvolvidas pela NOKIA, expressa a necessidade da

co-existência de zonas abertas e de zonas fechadas nesse tipo de produção que

supostamente estaria incorporando as práticas do software livre para que os

interesses capitalistas sejam atendidos. Contudo, os próprios exemplos mostram

que ocorre uma incorporação parcial e incompleta de práticas do software livre,

pois, na verdade, o que ocorre é a incorporação da prática de abertura do código

fonte, assim como de algumas estruturas, linguagens e práticas de

compartilhamento de conhecimento e de produção colaborativa, que são

imanentes e constituintes de redes colaborativas e . Dessa forma, podemos ver

que, por um lado, há um limite para a incorporação/colonização do software livre

e, por outro, que este limite é resolvido através da linguagem e do método de

produção do open source. Este limite expressa uma contradição própria da

produção de valor a partir da informação: o conhecimento precisa ser livre para

que a produção possa fluir, para que a técnica evolua, para que o

desenvolvimento técnico progrida; no entanto, em algum ponto é preciso restringir

o acesso ao conhecimento, fechar o código fonte, não compartilhá-lo, para que a

apropriação capitalista possa se realizar.

É preciso destacar que este fechamento pode ser realizado através de

alguma artimanha ou subterfúgio, o que não necessariamente implica no

não-compartilhamento do código fonte. Pode ser praticado através do atraso ou

demora no compartilhamento do código, ou na vinculação desse código a alguma

tecnologia de restrição sobre algum uso ou funcionalidade do aparelho, como no

caso dos DRM – mecanismos digitais de restrição que limitam o funcionamento

físico do hardware do dispositivo. Em ambos os casos, criam-se zonas ou

relações de escassez e de descontrole, que dificultam ou impedem que o

desenvolvimento comunitário se aproprie e compartilhe das inovações produzidas

pelas empresas, ou que torna o usuário dependente ou refém de alguma espécie

de taxa, ou pedágio, para que ative, atualize ou execute uma função de um

dispositivo que, na maioria das vezes, é um bem privado que ele comprou.

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A solução para restrição de acesso sem propriedade, ou seja, da

conciliação do open source com tecnologias de restrição é uma das disputas que

suscitou a criação de uma nova versão da licença GPL, sua terceira versão, a

GPLv3, e que, como abordamos no capítulo 2, faz com que cada vez mais os

conflito se desloquem para zonas mais obscuras de relacionamento entre o

software e o hardware, principalmente como no caso da aplicação dos DRM, ou

do deslocamento da atividade computacional para o provimento de serviços

executados a partir de servidores de terceiros como no caso das tecnologias

identificadas como SaaS231 ou como computação em núvem (cloud computing).

Assim, diante de um cenário em que vai se tornando cada vez mais

explícita e clara a articulação estranha entre abertura e fechamento, colaboração e

competição, e também da substituição da liberdade pelo controle, cabe indagar:

como as empresas conseguem continuar mobilizando trabalho voluntário?

Ou, partindo de um outro viés para problematizar a mesma relação: como

que diante das novas estratégias de captura sobre as inovações do trabalho

comum não há uma reação contrária ou, ao menos, a formulação de algum tipo de

oposição, ou expressão de conflito?

231 A sigla SaaS remete a Software as a Service, ou seja, a um tipo de computação que é realizada através de um serviço e não através de um software. Na verdade, obviamente a atividade de computação é realizada por um software, no entanto, este não se encontra no computador do usuário, mas é acessado pela internet e é executado a partir de um servidor externo, por isso, recebe o nome de serviço, pois é uma atividade de computação realizada por uma terceira parte. Richard Stallman (2010) aborda este tipo de serviço como uma nova forma de alienação/perda do controle sobre a atividade de computação

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3.4 VALOR COMO EFEITO COLATERAL, TRABALHO DIVIDUAL E ESPOLIAÇÃO DO COMUM COMO LIBERDADE

Nós queríamos nos integrar com comunidades vibrantes para assegurar que o sub-sistema selecionado continuaria se desenvolvendo adiante no tempo. Quando mais ativa a comunidade, melhor232.

Ari Jaaksi

Uma característica importante de ser considerada em qualquer tentativa de

caracterização do trabalho realizado pelas redes de colaboração é a de que se

trata de um tipo de trabalho que não é percebido como trabalho, e que funcionará

melhor e produzirá mais quanto menos parecer com trabalho. Acontece que não

estamos tratando de atividades dispendidas em um tempo determinado que serve

como referência e base de cálculo para que sejam remuneradas, nem de

atividades totalmente mobilizadas para fins específicos, e sim de atividades cujas

formas ficam algo entre a vida e o trabalho, muitas vezes confundindo-as.

No entanto, para uma melhor compreensão, nossa percepção precisa até

mesmo desassociar-se da noção de trabalho e, principalmente, da noção de

indivíduo para que acompanhemos a formatação deste modo de produção. Afinal,

o trabalho em rede é um trabalho dividual, disperso, distribuído e residual. Um

trabalho diluído não só entre indivíduos, mas também através dos indivíduos.

A noção de trabalho dividual aparece aqui inspirada na utilização que Gilles

Deleuze (1992) faz do termo em sua descrição do que chama Sociedades do

Controle, descrição formatada em oposição, mas ao mesmo tempo em

continuidade, ao conceito de Sociedades Disciplinares, tal como trabalhado por

Michel Foucault em seu clássico Vigiar e Punir. A partir da leitura de Deleuze é

232 (Jaaksi, 2006: 3) “We wanted to integrate ourselves with vibrant communities to ensure that the selected subsystem would develop further over time. The more active the community, the better.”

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possível definir a diferença que informa esta oposição como uma passagem de um

tipo de sociedade para o outro, através da passagem de um tipo de coerção social

que modula corpos através de determinações do espaço, para uma que modula

fluxos através do controle informacional sobre o ambiente. Há uma diferença no

modo como o indivíduo é abordado por essa segunda lógica, a qual quebra com o

próprio sentido da noção de indivíduo – “aquele que não se divide” – pois a

abordagem do controle ocorre através da dimensão infra-individual.

Se praticamente toda ação social gera um rastro informacional que pode

ser capturado digitalmente, armazenado em um banco de dados e processado

através de técnicas de data mining, não se trata mais de moldar o espaço para

disciplinarizar o corpo. O controle não incide sobre o corpo do indivíduo. O

controle incide sobre os fluxos de informação gerados por populações de corpos

em movimento apreendidos enquanto informação (genética, financeira, cultural),

atravessando e sendo atravessados por outros fluxos de informação. O mesmo

indivíduo, ou melhor, certos aspectos ou rastros de sua individuação, podem,

portanto, pertencer a grupos estatísticos diferentes, dependendo daquilo que

interessar ao corte de seleção.

No que concerne nosso objeto de pesquisa, é interessante recorrer às

palavras de Tim O'Reilly (2005) acerca do que se convencionou chamar de Web

2.0, que seria uma segunda era dos negócios na internet, numa clara e direta

referência ao colapso do que se chamava new economy e que ficou marcado

como o a bolha da internet233, período iniciado em 1997 e cujo clímax – o estouro

– ocorreu em 2000. Alguns conceitos apresentados por O'Reilly a respeito da

arquitetura de participação forjada no que chama de Web 2.0 são pertinente para

que entendamos um modelo de negócio cujos métodos de aproveitamento do

trabalho de rede realizado em rede foram diretamente inspirados nas práticas de

produção de conhecimento do open source:

233 Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Dot-com_bubble .

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Somente uma pequena porcentagem dos usuários se dará ao trabalho de acrescentar valor ao seu aplicativo através de meios explícitos, diretos. Portanto, empresas Web 2.0 apresentam dispositivos inclusivos para agregar dados dos usuários, construindo valor como efeito colateral do uso ordinário da aplicação. (...) Elas constroem sistemas que ficam melhores quanto mais as pessoas os usam .

As palavras do Guia do Open Business234 também são reveladoras:

Se você puder encontrar uma maneira de controlar, modular e conduzir (harnessing235) os dados que são jogados fora cotidianamente por um usuário, isto aumentará suas chances de hospedar um serviço de conteúdo bem sucedido. Exigir muito trabalho dos usuários produzirá o efeito contrário.

O que interessa aqui é a ideia do aproveitamento de resíduos, rastros e

restos da ação do usuário para a construção de valor como efeito colateral. Além

disso, é importante destacar a importância da arquitetura de processamento de

informação, que pode extrair informação e, portanto, valor, do processamento em

tempo real de um conjunto enorme de interações entre pessoas, entre pessoas e

dados, e entre dados produzidos a partir dessas interações, que podem informar

perfis de comportamento a partir do processamento da memória do uso, ou seja,

da reação e da escolha das pessoas diante de uma informação.

Na tentativa de estabelecer um fórmula para o cálculo econômico do valor

produzido em rede, Rishab Ayer Gosh (2005: 153-168) cria o conceito de

234 Este documento, “The Icommons Open Business Guide”, foi produzido pela organização iCOMMONS (cf.: http://icommons.org/ ), uma organização voltada para a “adoção de ferramentas, práticas e modelos que facilitem a participação universal nos domínios culturais e de conhecimento”, que se articula em torno em um conceito de “Cultura Livre” de forte inspiração no Creative Commons. O documento foi acessado originalmente por volta de 2007 a partir de um link que não se encontra mais acessível. Como a tentativa de encontrar o mesmo documento não obteve sucesso, disponibilizo uma cópia deste documento na plataforma wiki da tese, na seção LEAKS.

235 O verbo em inglês to harness, que aparece citado aqui em duas ocasiões em sua forma gerúndio, harnessing, é traduzido como “controlar, modular e conduzir”, inspirado no sentido da aplicação de uma de suas traduções diretas possíveis, a de encabrestar. Ou seja, submeter um cavalo colocando-o sob o cabresto, em seguida assumindo as rédeas e modulando seu movimento, extraindo com destreza o máximo possível de sua potência.

198

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“cooking-pot markets”, para designar um modelo de economia não monetária de

transações implícitas na internet. Enuncia que se deve levar em conta o cálculo

racional do quanto o colaborador avalia que ele ganha ao dispender sua força de

trabalho ao estabelecer uma relação de colaboração e de compartilhamento de

algum produto de seu trabalho. É preciso ver que em muito casos, ele pode sair

ganhando nessa troca, como quando ele encontra uma informação precisa em um

link no instante em que nem procurava, mas distraía-se interagindo em uma rede

social como o Facebook. Nas palavras de Gosh:

O princípio básico desse modelo é que o acesso a uma vasta coleção de recursos diversos – pessoas, bens, ou informação – é mais valioso para as pessoas participando desse sistema do que o custo do próprio trabalho dessas pessoas236.

A imagem dos cooking-pot de Gosh parte de uma analogia a uma

“hipotética panela tribal” na qual membros de uma tribo compartilham seus

produtos nessa panela comum em “uma troca implícita por um produto final de

maior valor”. Ou seja, inserem diferentes alimentos em um caldeirão como, por

exemplo, batatas, cenouras, carne etc., dando origem a um produto que será

compartilhado entre todos e cujo valor individual de cada porção é maior do que

se cada investidor realizasse o valor individual de seu produto. Dessa forma, a

troca entre os indivíduos não ocorre através de um paradigma de equivalência,

mas o de complementariedade. E o ganho estaria nas propriedades produzidas

pelo encontro das diferenças de cada produto, no caso, no caldo.

A partir de uma outra perspectiva, poderíamos descrever esse valor

produzido pela complementariedade entre diferenças específicas como sinergia.

Buckminster Fuller (1985: 13-16) define o conceito de sinergia como um

comportamento integral e agregado presente em sistemas que não pode ser

236 “The basic principle of this model is that access to a vast collection of diverse resources – people, goods, or information – is more valuable to people participating in this system than the cost of their own work” (p. 154)

199

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previsto pelo comportamento individual de qualquer um de seus componentes

quando abordados isoladamente por resultar de resoluções produzidas pelas

interações e associações realizadas entre seus componentes. Um valor que é

maior do que a simples expressão da soma dos trabalhos individuais que se

engajaram em seu processo de constituição, assim como a força de tração

(tensile strength) de uma liga de aço é superior a capacidade individual de cada

material que a compõe.

Numa perspectiva crítica, Dmytri Kleiner e Brian Wyrick (2007), definem os

modelos de negócio baseados no aproveitamento do trabalho das redes, como um

modo de produção baseado na capacidade de conduzir, controlar e modular

(harnessing) a inteligência coletiva. E destacam os aspectos negativos que

contrariam o próprio movimento de evolução e impulso evolutivo da internet por

fortalecer estruturas que centralizam a propriedade dos meios de

compartilhamento e da própria atividade de compartilhamento de informação,

aniquilando o potencial da produção p2p descentralizada.

Dessa forma, apesar de baseados no estabelecimento de uma certa

relação de reciprocidade com a reconhecida inteligência dos sistemas de redes,

estes modelos centralizadores, justamente por centralizarem e controlarem a

colaboração difusa, colocam em risco a própria imanência desse sistema: a rede

de inteligência distribuída que depende de descentralização. Pois, o

processamento de informação descentralizado e distribuído constitui o cerne das

redes: a descentralização é a própria inteligência das redes. A definição que estes

autores oferecem para o conceito de produção web 2.0 é bastante direta e

precisa:

Web 2.0 é o boom de investimento na Internet 2.0. Web 2.0 é um modelo de negócio que significa: captura privada de valor criado comunitariamente.

Apesar de estar interessado na produção de software, que é muito diferente

200

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da produção de conteúdo multimídia, é interessante guardar algumas das noções

aplicadas à Web 2.0, pois elas oferecem descrições sobre alguns modos de

funcionamento que são fundamentais para que se compreenda a própria rede

como, ao mesmo tempo, trabalho de rede (network) e como rede que trabalha

(networking). E, também, de como a noção de trabalho individual e as relações de

trabalho se transformam quando pensadas a partir dessa perspectiva.

Além disso, a estrutura e o modelo de comunicação da web 2.0 são

instrumentos fundamentais para a colaboração na produção de software livre, pois

quando não fornecem os próprios meios através dos quais a produção é realizada

– como no caso de fóruns, listas e comunidades de discussão –, fornecem a

linguagem para a organização e para a participação nessa produção – mesmo

quando esta ocorre ambientes fechados e internos das empresas. Não obstante,

constituem também os meios onde atividades complementares ao trabalho são

transformadas em atividades cotidianas – como no caso dos blogs, do uso de

plataformas de interação social como Twitter e Facebook. Meios que também são

fundamentais para a difusão do uso de serviços e de produtos, para a construção

de uma imagem pública favorável à colaboração e para a prospecção de novos

usuários.

Um comentário num blog; um bug report; a submissão de um patch; uma

ideia compartilhada num fórum; um download; uma crítica ou um insight

compartilhado em uma lista de e-mail ou em um canal de IRC; um clique em um

link e um não-clique em um outro link, ao lado daquele link, que aparecia em

primeiro lugar no resultado da busca: como considerar, avaliar e medir tais

atividades como trabalho? Como remunerar tais atividades que, mesmo realizadas

de maneira dispersa e até mesmo residual, são parte importantíssima da linha de

produção? Como classificar o tipo de apropriação que se efetua sobre estas

atividades?

Se olharmos para o mapa da rede, não se trata de indivíduos trabalhando

em conjunto, de maneira ordenada, como em uma linha de montagem ou em uma

201

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produção distribuída. Mas, de uma ampla trama: uma rede que trabalha de

maneira difusa baseada no interesse e desejo de colaborar e que aproveitando até

mesmo o menor rastro de um movimento qualquer capaz de produzir uma

diferença que faça uma diferença. Assim, talvez seja possível entender o

caráter dividual e mesmo transindividual (Combes, 1999) desse tipo trabalho –

aquele originado pela articulação e mobilização de algo menor que o indivíduo e,

ao mesmo tempo, de algo que está além do indivíduo e que é portador de caráter

coletivo – através da sua complementaridade a um trabalho de rede realizado por

sistemas informacionais, logística e gestão, para que diferenças sejam extraídas e

convertidas em valor. Um trabalho efetuado através de uma complementaridade

entre humanos e máquinas – através de acoplamentos em rede237.

A noção de trabalho dividual, de trabalho em rede e de valor construído

como efeito colateral coloca alguns desafios para o pensamento sobre a produção

de valor e sobre as relações de trabalho (luta de classes) dentro do regime

contemporâneo de produção de valor e acumulação capitalista baseado na

produção de informação.

A questão da remuneração do trabalho nos interessa por remeter a uma

questão importante do valor trabalho e por retomar, por outra via, uma discussão

proposta pelo movimento operaísta italiano do final dos anos 1960, que foi

resgatado e revisitado recentemente dentro de discussões acerca do potencial

emancipador dos commons e do trabalho disperso e dividual realizado em rede.

Na Itália, em 1969, como indicam Bernard Aspe e Muriel Combes (1998),

organizou-se um movimento que reivindicava salário igual para todos. A base

crítica da reivindicação era de que combater o valor trabalho era combater a

ordem capitalista em suas raízes. O salário, antes de efetuar uma retribuição pela

realização de uma certa quantidade de tempo de uma atividade produtiva, era

considerado como um mecanismo de distribuição da riqueza socialmente

237 A ação ou condição de acoplamento, refere a uma disposição em que há complementaridade entre humano e máquina para a performance de alguma função ou mesmo como modalidade de individuação. Sobre o conceito de acoplamento, ver Gilbert Simondon (2001: 134-168).

202

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produzida que, garantido pelos poderes e leis (monopólio do uso da força) do

Estado, disponibilizava os frutos da produção social ao Capital. A base do

entendimento é que toda a riqueza é produzida socialmente, e o atrelamento do

salário ao valor do trabalho é a garantia e ao mesmo tempo a própria base da

expropriação social, da alienação do trabalho e do trabalho abstrato.

A renda garantida (revenu garanti) seria, então, esse salário igual para

todos, uma retribuição pela participação na produção da riqueza social, uma

participação concebida num espectro mais amplo, pois não se resumia somente à

soma de tudo o que era produzido nas fábricas, incluindo também aquilo que é

produzido por todos e também é aproveitado na produção: o trabalho doméstico, o

trabalho de reprodução das forças do trabalho, a produção de valores coletivos e

da própria linguagem etc.

Esse tipo de pensamento volta a ganhar força diante das novas condições

de trabalho e de produção após a desindustrialização e a virada cibernética

quando, preferencialmente no mundo euro-americano a produção passa a

depender cada vez mais de conhecimento e se fundamentar em processos

tecnológicos e informacionais, comunicativos e de aprendizagem coletivos. No que

vários autores chamam de trabalho imaterial.

Este recorte geopolítico e a provincialização (Walsh, 2011) deste

pensamento, ou seja, o ato de remetê-lo a seu contexto original para apontar sua

particularidade e destituir sua universalidade, precisam ser feitos. Afinal, penso a

partir do Brasil, que ainda é fortemente um exportador de commodities, e um lugar

onde o trabalho abstrato ainda é empregado em massa, sobretudo em setores da

produção em que a exploração intensa de força de trabalho é muito mais barata

do que a automatização, como, por exemplo, no caso do corte da cana de açúcar

(Lima, 2011). No resto do mundo chamado de emergente ou em desenvolvimento,

observamos o mesmo fenômeno, que impede que corroboremos com todas as

aplicações da ideia de “trabalho imaterial” (Gorz, 2005; Hard & Negri, 2005),

principalmente o que concerne a centralidade desse tipo de trabalho na oposição

203

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contemporânea ao capital, e em seu potencial emancipador.

Apesar dessas ressalvas, algumas noções trabalhadas a partir do conceito

de trabalho imaterial, são bastante pertinentes. Maurizio Lazzarato (2006: 134)

chega a falar que trata-se de um estágio da evolução das relações de produção do

capitalismo em que se espera que os trabalhadores tornem-se “sujeitos ativos” na

coordenação das várias atividades de produção, ao invés de serem sujeitados a

elas. Ou seja, o estágio em que teríamos chegado a um ponto onde:

um processo coletivo de aprendizado tornou-se o coração da produtividade, pois não se trata mais de achar diferentes modos de compor, organizar ou ocupar postos de trabalho (job functions) já existentes, mas o de buscar/criar novos arranjos para a produção.

Ou seja, não basta apenas participar ativamente da produção, é preciso se

engajar na própria produção da produção; na criação do arranjo produtivo no qual

sua força de trabalho e mesmo sua energia vital será empregada, investida e

explorada. Nesta relação de produção, a cultura e o conhecimento passam a ser a

base da produção, e a materialidade da informação, que dá origem a bens cuja

fruição não exige exclusividade, ou seja, bens não-rivais (Simon e Vieira, 2008),

torna mais difícil a delimitação e a definição do que é propriedade.

A partir deste cenário, autores como Richard Barbrook (2000; Barbrook &

Schultz, 1997), extrapolando num certo otimismo – apesar de produzirem uma

reflexão bastante crítica e pertinente à Ideologia da Califórnia – em relação ao

potencial emancipador dessas relações de produção, chegam até a falar de um

novo tipo de comunismo – cibercomunismo – a partir da noção de que os

trabalhadores são convertidos em “artesãos digitais”, ou seja, um reencontro do

trabalho com os meios de produção, uma vez que os meios são culturais,

informacionais e cognitivos.

Há também a correlação de uma certa ideia de abundância e de

superação/emancipação da condição de exploração associada ao fim do regime

204

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industrial de trabalho, e, nesse sentido, a proposta de renda garantida volta a

ressoar com força. Muriel Combes e Bernard Aspe diante do “devir imaterial do

trabalho” afirmam que:

se a fonte do sobrevalor não é mais uma certa quantidade de força de trabalho despendida durante uma certa quantidade de tempo (sendo a jornada de trabalho a unidade de medida), mas a inteligência como qualidade social, e, de modo mais geral, uma atitude “genérica” de reagir face ao imprevisto e de se comunicar, não podemos mais medir a remuneração pelo tempo individualmente trabalhado. É necessário (S'impose) [então], uma divisão da riqueza produzida entre todos, de tal forma que cada um possa viver decentemente. Se a vida, o pensamento e os afetos de todos são investidos como tais na produção, se a exploração agora é difusa (…), cada um pode e deve reivindicar sua parte da riqueza socialmente produzida.

No entanto, não se pode deixar de notar um duplo viés na proposta de

renda garantida, tal como indicada por Muriel Combes e por Bernard Aspe, pois,

por um lado, tal arranjo liberaria a força criativa coletiva do general intellect (Virno,

2001) para criar livremente ou aderir livremente às frentes de produção de riqueza

que desejar. Por outro, consolidaria esquemas de apropriação sobre o comum tais

quais os praticados hoje em dia através da “coexistência em simbiose” entre a

forma-mercadoria e práticas de colaboração (Terranova, 2004), os quais são

apresentados e problematizados nesse texto, aos quais os produtores ficariam

livres para escolher e aderir ao projeto com o qual desejassem colaborar.

Se pensarmos o valor trabalho a partir de Marx, tomando o valor como

trabalho roubado, mais-valor produzido pelo trabalho e subtraído dele, a

remuneração seria resultado tanto da resistência dos trabalhadores (luta de

classes) quanto do cálculo do mínimo que o capital precisa conceder para que o

trabalho continue vivo, ou seja, para a reposição da força de trabalho necessária

para que o sistema continue funcionando (reprodução social).

A explicação do valor extraído do trabalho tal como enunciada acima,

205

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expressa uma relação de contradição e, como bem enquadra Matteo Pasquinelli

(2008), é por si só expressão de conflito. A pertinência e mesmo justificativa para a

utilização do conceito de trabalho para explicar a produção de valor a partir da

produção colaborativa em rede, cujas bases materiais são o meio informacional e

o conhecimento, é justamente essa: a de orientar a percepção para os conflitos e

as contradições suscitados pelas conformações desse novo modo de produção.

Em outras palavras, é uma tentativa explicita de fazer ver e afirmar o conflito.

Contudo, se o sistema funciona sem necessitar ser re-alimentado

diretamente pelo capital, e sem que haja pressão ou demanda para que ele

reproduza as forças produtivas, como o sistema é re-alimentado?

Se, por um lado, boa parte da produção é realizada por um tipo de trabalho

que não parece trabalho, ou há uma grande parte do processo de produção que

não pode ser contabilizada/medida como trabalho, talvez possamos falar de algo

que se aproxima do que Marx descreve quando fala de acumulação primitiva e

que David Harvey (2003), atualizando análises de Rosa Luxemburgo e de Hannah

Arendt para aplicá-las a uma crítica do novo imperialismo derivado do

neoliberalismo, chama de acumulação por espoliação.

A clássica explicação de Marx238 empregada para explicar a origem do

capital, explicita, acima de tudo, o surgimento e a consolidação de um novo

conjunto de relações sociais que informarão as condições para que o capital se

desenvolva e evolua. O capital não existe por si só, precisa ser criado e sua

criação é resultado de um processo histórico. Sua primeira etapa, seu primeiro ato

– e Marx chega a falar em pecado original – é efetuado sobre a terra, como uma

riqueza que não foi produzida pelo homem e que passa a estar disponível como

fonte de riqueza para o processo de acumulação do capital. E sua consequência é

a desagregação e diluição dos modos de vida, de produção e de socialidade que

se atrelavam a ela.

Como aponta David Harvey (2003: 121), “a descrição que Marx faz da

238 Capítulo XXIV do Livro I do Capital.

206

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acumulação primitiva revela uma ampla gama de processos”, e elenca alguns

deles:

a mercadificação e a privatização da terra e expulsão violenta de populações camponesas; a conversão de várias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em direitos exclusivos de propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a mercadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas (autóctones) de produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos (inclusive de recursos naturais); a monetização da troca e a taxação, particularmente da terra; o comércio de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última análise o sistema de crédito como meios radicais de acumulação primitiva.

A pertinência da aplicação contemporânea deste conceito possui uma raiz

dupla.

Primeiro, como forma de adequar o entendimento do movimento do capital

a uma força imanente a sua própria reprodução, uma necessidade permanente de

se relacionar com modos de produção não-capitalistas – para utilizar uma

expressão de Rosa Luxemburgo – ou da necessidade sempre presente do

capitalismo produzir um “outro” ou um “exterior”, para alimentar sua expansão e

para conseguir manter sua capacidade de reprodução e de produção de valor.

Harvey (p.119) mobiliza uma interessante passagem de Hannah Arendt que, ao

explicar como uma crise de sobrevalorização impulsionou a burguesia inglesa

para uma nova forma de imperialismo nas últimas décadas do século XIX, alega

que:

Os burgueses perceberam, pela primeira vez, que o pecado original do simples roubo, que séculos antes tornara possível “a acumulação do capital” (Marx) e dera início a toda a acumulação ulterior, tinha eventualmente de se repetir para que o motor da acumulação não morresse de repente.

207

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Segundo, para sua aplicação no entendimento de novas formas de

apropriação que operam, em seu modo de procedimento e em suas implicações

sociais, de maneira análoga ao que se pode chamar de acumulação primitiva. No

caso, remetendo à apropriação realizada sobre certos aspectos das novas

atividades metabólicas entre humanos e o meio informacional digital. Resultando,

assim como no caso da acumulação original, a desconfiguração e desvinculação

entre meio e suas relações originais.

Como já apontavam em 2007, com instigante perspicácia, Dmytri Kleiner e

Brian Wyrick (2007), as novas práticas econômicas que se projetavam sobre o

trabalho não percebido como trabalho das redes forjam novas formas de

apropriação que colocavam em risco a própria fonte do valor que espoliavam. Esta

fonte de valor, a inteligência das redes, dependiam de uma estrutura

descentralizada, horizontal e aberta, que a partir dos novos modelos de negócios

web 2.0 e também do capitalismo open source passavam a ser substituídos por

estruturas centralizadas, altamente verticais e privadas. Num processo que, não

gratuitamente, chamam de Info-enclosure 2.0 (Info-enclausuramento ou

Info-cercamento – 2.0).

Aqui, faz-se uma aposta no potencial do conceito e da descrição de Marx

para além de uma aplicação histórica que se refere ao período de formação do

capitalismo, sua fase pré-industrial. Suas descrições sobre o modo de operação

do cercamento das terras comunais – a separação do trabalho e dos meios, do

povo e da terra, e sua consequente expulsão para as cidades para a integração na

industrialização como força de trabalho abstrata – que acompanhou a legitimação

e a regulamentação de um novo tipo de propriedade e de um novo tipo de trabalho

que informaram o capital como linguagem mediadora de um nova estrutura social.

O conceito de acumulação primitiva é interessante aqui, pois ajuda a destacar que

se trata de uma etapa de criação de um novo modo de se apropriar daquelas que

emergem como novas fontes de riqueza.

Para designar o modo de apropriação sobre o conhecimento e sobre a

208

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informação e a subsequente transformação das relações de produção

estabelecidas com os meios produzidos coletivamente, consideramos adequado

utilizar o conceito de acumulação por espoliação. Afinal, a apropriação sobre a

informação não pode ser realizada a não ser que por uma operação muito

semelhante, apesar da diferença de natureza das duas realidades, ao que foi o

roubo sobre a terra: o cercamento.

Acontece que tanto no século XVIII na Inglaterra, cenário e época descrita

por Marx, quanto agora, trata-se de uma apropriação sobre um meio comum e da

inscrição de um novo modo de organização social. Há, obviamente, uma diferença

entre a ocorrência original e a atual em relação à consolidação da forma trabalho,

ou seja, da delimitação de um certo conjunto de atividades e habilidades como

trabalho passível de ser vendido e, principalmente, de regimes de conduta que

respeitem e promovam essa delimitação. Porém, não podemos deixar de perceber

uma semelhança muito forte em relação a fase pré-trabalho, ou seja, quando este

ainda estava sendo delimitado e as condições dessa delimitação sendo criadas.

Minha hipótese é que ainda estamos presenciando a fase de espoliação direta

sobre os meios. No que corroboro e mais uma vez retomo o argumento de Steven

Weber (2001: 25):

A narrativa do programador não é aquela do trabalhador que gradualmente vem tomando controle [sobre os meios]; mas aquela do artesão de quem o controle e a autonomia [sobre os meios] foi tomado239.

Do programador de que fala Weber, estendemos a todos os usuários, que

cada vez mais migram e aderem em massa a serviços privados que se apropriam

de todos os dados que estes produzem e dos dados produzidos pelo seu uso,

limitando as possibilidades de interação a um conjunto bastante restrito de

239Cf.: Steven Weber (2004: 25): “The narrative of the programmer is not that of the worker who is gradually given control; it is that of the craftsperson from whom control and autonomy were taken away”. Ver também: “Free Software and Political Economy” (Chopra & Dexter 2008, 1-35) .

209

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práticas e condutas que são impostas unilateralmente e aceitas praticamente sem

questionamento apesar de serem pertinentes e favoráveis somente para aqueles

que controlam esses meios. O caso mais emblemático desse tipo de meio privado

que se apropria sobre todos os aspectos da interação limitada e condicionada dos

usuários é sem dúvidas o Facebook que no início de 2013 já concentrava mais de

um bilhão de usuários, sendo aproximadamente 65 milhões destes miseráveis

provenientes do Brasil – que já é o segundo país com maior número de

usuários240.

Ademais, é possível tecer fortes analogias entre as descrições que Marx

(2004: 47-61) faz das leis que proibiam e combatiam a vadiagem, a resistência à

adesão ao trabalho e a sabotagem com as tentativas de aprovação de leis, em

diversos, países que: proíbem práticas P2P sob a alegação de combate à

pirataria; defendem a retenção de dados dos usuários sob a desculpa de criar

mecanismos para identificação de pedófilos e terroristas; impõe penas mais duras

e severas para quem desrespeita direitos autorais do que para quem pratica um

homicídio241; e que sistematicamente classifica os hackers como criminosos.

Outro importante aspecto também carregado fortemente de analogias entre

os dois períodos históricos comparados aqui é o emprego do termo commons para

descrever, explicar e nomear as novas forças produtivas e novas fontes de

riquezas. A experiência que ressoa com mais força neste caso é com certeza o da

licença Creative Commons242, criada com o objetivo de aplicar ao campo da arte,

da cultura e do mercado cultural os princípios do copyleft criado pelo software

livre. Trata-se, portanto, de uma licença que permite diferentes níveis e graus de

240 Cf.: “Um terço dos brasileiros tem Facebook: País se torna o 2º em número de usuários”, reportagem de Mariana Congo, 23 de janeiro de 2013, O Estado de São Paulo: http://blogs.estadao.com.br/radar-tecnologico/2013/01/23/um-terco-dos-brasileiros-tem-facebook-pais-se-torna-o-2o-em-numero-de-usuarios/ .

241 Como no recente e célebre caso do suicídio do ativista Aaron Swartz que estava sendo processado e correndo o risco de uma pena de 35 anos de prisão e multa de 1 milhão de dólares por baixar e compartilhar 4,8 milhões de artigos acadêmicos da base Jstor, que cobra pelo acesso a esses artigos, mesmo os que já se encontram em domínio público. Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Aaron_Swartz .

242 Cf. : http://creativecommons.org/ .

210

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compartilhamento e de re-utilização para bens culturais e informacionais, ao

mesmo tempo em que reserva alguns direitos ao autor243. Foi criada como uma

iniciativa na direção de proteger a possibilidade de compartilhamento e de

produção coletiva desses bens na era digital, atualizando e superando limitações

impostas pelo regime de direitos autorais.

Um aspecto interessante por trás dessa licença, que é precisamente o que

nos interessa aqui, é o modo como a informação e o conhecimento produzido pelo

trabalho em rede e através da internet são concebidos como uma espécie de

fundo comum cuja integridade precisa ser protegida ao mesmo tempo que o livre

acesso e o compartilhamento precisam ser proporcionados. No entanto, a eficácia

e os efeitos dessa licença precisam ser analisados, pois são bastante reveladores

acerca dos processos que descrevemos aqui e que pretendemos caracterizar

dentro do movimento de acumulação por espoliação.

Apesar de ser uma iniciativa interessante que cria possibilidades mais

inteligentes e mais adequadas à materialidade da informação e a dificuldade de

controlar sua distribuição e circulação – Information wants to be free –, as licenças

CC estão longe de ser um ponto final no debate ou de ser a solução mais

adequada para o problema da propriedade sobre a informação. Até porque, como

mostra Dmytri Kleiner (2012: 174), em um outro texto bastante pertinente e

incisivo, estas licenças ao criarem “categorias e subcategorias” dentro do espectro

de usos que permitem, servem muito bem para a efetuação de modelos de

negócios que se adequam “de modo que práticas como o compartilhamento de

arquivos e a remixagem possam coexistir no âmbito do regime de propriedade”

(Kleiner, 2012: 174).

Kleiner e outros autores como Florian Cramer (2012) e Benjamin Mako Hill

(2005) acabam mostrando que as licenças CC ao invés de reservar direitos aos

243 O slogan das licenças CC é “alguns direitos reservados”, em um trocadilho com o a descrição comum que acompanha os direitos autorais tradicionais: “todos direitos reservados”. Se compararmos com as licenças de tipo copyleft, nas quais o CC se inspira, é possível ver a diferença de posicionamento político, pois o trocadilho do copyleft, a começar pelo próprio termo, já indica que este vai mais longe na crítica aos direitos autorais: “todos os direitos revertidos” (all rights reversed).

211

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usuários, como fazem as licenças do software livre, reservam os direitos, ainda

que flexibilizados e comportando algumas possibilidades de compartilhamento,

aos autores. Com severa perda e até mesmo inversão do sentido original do

software livre que impedindo o autor excluir direitos dos usuários aproxima de fato

a condição de usuário da de produtor. Por esses motivos, Kleiner (2010) considera

que, na verdade, essas licenças configuram uma ação anti-commons, uma vez

que acabam por expandir o escopo da cultura privada sobre o commons, ao invés

de fortalecer e expandir o commons sobre a cultura da propriedade – como,

diga-se de passagem, efetua o software livre.

De forma que, de maneira geral, apesar da ideia de commons ser retomada

no contexto atual como uma referência a terras de propriedade comunal

compartilhadas para a produção, como sinônimo de propriedade compartilhada ou

até mesmo de não-propriedade, a pertinência da aplicação deste conceito hoje

aparece mais ligada a imagem de um commons como território sendo espoliado,

como campo de disputas e de conquistas, e de consequente desagregação social.

Diante de tudo o que foi dito, continuamos vagando por um território um

tanto indefinido. Ao mesmo tempo que podemos vislumbrar campos de produção

que fogem e não se enquadram à lógica capitalista, vemos também a formatação

de novos “aparelhos de captura”, de modelos de negócios eficazes a esse novo

contexto, aos novos meios e que são capazes de modular a energia e a atividade

criativa social para uma produção subordinada a seus interesses. Novas formas

de apropriação que são capazes de se efetuar mesmo sobre práticas realizadas e

percebidas como liberdade e sem a necessidade de formas explicitas de

propriedade.

Cabe, então, investigar quais novas formas de alienação estas novas

formas de apropriação produzem, assim como quais novas formas de conflito

emergem em meio a esses processos e ao modo pelo qual o trabalho engaja e

adere a essas novas formas de produzir valor.

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3.5 UM CASE DE SUCESSO, RASTROS DE UM CONFLITO

Sigo um link publicado em um comentário endereçado a um texto de um blog,

chego ao site da revista Business Week244. Uma reportagem intitulada “Nokia:

Linux needs to learn business” recupera os principais enunciados de uma fala,

realizada em Berlim, durante a Handset World Conference245 (2008), de Ari Jaaksi,

então vice-presidente de software da Nokia e chefe de suas operações open

source.

Ao se dirigir ao público da conferência, composto sobretudo de pessoas

ligadas ao mercado de computadores móveis, referindo-se aos desenvolvedores

open source como eles (they), Jaaksi fala em nome de uma empresa. Em outras

ocasiões, como em seu próprio blog, que reúne anotações aleatórias

principalmente sobre seu trabalho246, o termo pode ser outro, denotando que a

relação pode ser de uma qualidade diferente.

Leio um texto que reporta uma fala de um executivo realizada em um

evento corporativo, direcionada a uma comunidade de colaboradores. Chego até

ele através dos rastros de discussões que repercutem seu sentido político no blog

pessoal de outro funcionário de uma importante corporação.

Estou diante da enunciação de um modelo de negócio ou estou diante da

enunciação de um conflito?

O subtítulo da reportagem da Business Week, explicita o que é preciso

aprender – ou a ordem a acatar –, diz que os desenvolvedores open source que

almejarem mercado na indústria da mobilidade precisam aprender leis de

negócios, incluindo DRM247.

244 O texto ao qual me refiro foi publicado no dia 12 de junho de 2008, cf. : http://www.businessweek.com/globalbiz/content/jun2008/gb20080612_288518.htm .

245 Cf. : http://www.handsetsworld.com .246 “Random notes. Mostly about my work.” É o subtítulo de seu blog: http://jaaksi.blogspot.com.br/ 247 “Open-source developers targeting the mobile space need to learn business rules including digital rights

management, Nokia's software chief has claimed.”

213

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Ou seja, trata-se de aceitar o DRM, de conciliar o open source com ele.

Segundo o próprio Jaaksi e com suas próprias aspas a comunidade open

source precisaria ser “educada” a respeito do modo de funcionamento da mobile

industry, uma vez que a indústria ainda não abandonou alguns de seus modelos

de negócio antigos. E com a intenção de educar os desenvolvedores open source

nesse sentido, informa as regras de negócios que precisam ser obedecidas: DRM,

direitos de propriedade intelectual, SIM locks, e modelos de negócios

subsidiados248.

A repercussão da fala de Jaaksi me leva até seu blog pessoal,

indispensável ferramenta de trabalho. Descubro que ele é um ferrenho defensor

do open source como método de produção; é um entusiasta da agilidade e

vitalidade que a abertura e a visibilidade deste tipo de processo de produção

oferece; e é também um dos responsáveis pela radicalização da incorporação do

open source nas linhas de pesquisa e desenvolvimento de inovações da Nokia.

Jaaksi foi, portanto, um dos responsáveis pela adoção do open source

como estratégia de desenvolvimento de um sistema operacional para

smartphones capaz de competir com o iPhone da APPLE, que resultou no

lançamento do primeiro smartphone open source baseado em Linux, o NOKIA

N900, lançado no mercado em novembro de 2009249. E ocupou a chefia destas

operações até outubro de 2010250, quando se transferiu para a HP/PALM para

assumir o comando do desenvolvimento do sistema operacional webOS251,

também open source, que estava sendo adaptado para rodar no HP TouchPad,

que deveria competir no mercado de tablets252 .

248“We want to educate open source developers. There are certain business rules they need to obey, such as DRM, IPR, SIM locks and subsidised business models.”

249Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Nokia_N900 .250Em mais um post de seu blog, Jaaksi comunica sua transferência e lista algumas de suas conquistas no

comando das operações open source da Nokia: http://jaaksi.blogspot.com/2010_11_01_archive.html 251 Em fevereiro de 2013 a HP vendeu o sistema webOS para para empresa sul-coreana LG, que pretende

integra-lo a sua linha de smart TVs: http://www.webosnation.com/lg-purchasing-hps-webos-division-licensing-webos-smart-tvs . Para dados complementares sobre o sistema webOS ver ANEXO WK-23.

252 Deveria, pois após apenas 49 dias de seu lançamento, em julho de 2011, o TouchPad foi descontinuado:

214

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Jaaksi sabe muito bem que defender uma certa educação dos

desenvolvedores para aceitarem e compreenderem a importância do DRM e de

direitos de propriedade intelectual contraria alguns aspectos da filosofia open

source, pois exige que certos códigos sejam distribuídos de maneira fechada, ou

associados à tecnologias fechadas. Sabe também que a adoção de DRM e da

convivência entre código aberto e fechado contrariam ainda mais a filosofia do

software livre, pois o termo fechado aqui significa mais do que não permitir o

acesso ao código fonte, significa perda de controle sobre o funcionamento dos

dispositivos. Ou seja, restrição da liberdade dos usuários.

Porém, o que está em jogo é a formatação de um modelo de negócio

baseado numa cooperação avançada entre uma empresa mundial e redes de

colaboração; um modo de produção baseado na articulação colaborativa entre

empresa e indivíduos livres engajados em rede, e no livre acesso ao

conhecimento produzido coletivamente; um modelo de apropriação privada

realizado sobre um trabalho realizado em rede, que resulta em produtos

compartilhados livremente e que informam a constituição de um meio comum.

Contudo, essa proposta de conciliação entre abertura e restrição, que

radicaliza o modelo open source de desenvolvimento de software, e que contraria

o principal objetivo do software livre, a liberdade do usuário, abre algum campo de

conflito? Qual a reação dos que percebem o software livre não como tecnologia,

nem como modelo de produção, mas como prática e condição de liberdade?

Defendendo a aplicação deste modelo, Jaaksi argumenta pragmaticamente,

através de um exemplo direto, empregado com a intenção de simplificar e esgotar

a problematização:

Por que precisamos de carros fechados? Nós precisamos de carros fechados.

Ao menos não se pode alegar que sua pragmática não seja bastante

http://www.tomshardware.com/news/webos-failure-by-design-hp-touchpad-palm-voodoopc,13261.html .

215

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sincera. Basta acompanhar a continuação de seu argumento:

Como uma indústria, nós planejamos usar tecnologias open source, mas ainda não estamos prontos para jogar com suas regras [as do open source]; mas isso precisa funcionar para o outro lado [para o open source] também253.

É bastante direta também. Indica que mesmo as empresas mais inovadoras

e avançadas tecnologicamente – como era definitivamente a imagem que a Nokia

se esforçava em construir ao se associar ao open source, e não seria um absurdo

falar que tiveram êxito nesse esforço –, não podem abrir mão de certas estratégias

de produção arcaicas que mobilizam dispositivos técnicos e legais de restrição ao

acesso livre ao conhecimento para que haja controle sobre a produção e sobre

seus produtos. E, mais importante, para que seja possível a realização da

apropriação privada, concentrada e excludente de seu retorno comercial.

Estamos diante, novamente, da contradição da economia política da

informação: o conhecimento precisa ser livre para que a produção possa fluir, para

que a tecnologia evolua, para que o desenvolvimento técnico progrida; no entanto,

em algum ponto é preciso restringir o acesso ao conhecimento, fechar o código

fonte, não compartilhá-lo, interromper a colaboração, para que a apropriação

capitalista possa se realizar.

Encontrei a reportagem da revista Business Week seguindo um comentário

postado em um blog chamado Flors, que oferece um trocadilho que mistura a

palavra flor em espanhol e a sigla FLOSS (free/libre open source software). O

comentário estava endereçado a um texto intitulado “Are you good at serving

developers?”, que divulgava, ilustrado pela imagem de um tenista efetuando o

movimento de saque – o movimento de colocar a bola em jogo (em inglês este

movimento é chamado de service) –, uma chamada de recrutamento para o cargo

de gerente de produção na NOKIA, para atuar em projetos junto à comunidade

253 “As an industry, we plan to use open source technologies but we are not yet ready to play by their rule; but this needs to work the otherway round too”.

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Maemo.

Este texto informava que a missão do gerente a ser recrutado era

ambiciosa, e ao mesmo tempo também desafiadora e repleta de diversão254. O

candidato ao posto precisaria trazer 'apenas' a criatividade e o pragmatismo

necessários para satisfazer desenvolvedores profissionais e hobistas (amadores);

e, com o apoio da infraestrutura de desenvolvimento da NOKIA poderia

certamente fazer a diferença255.

Havia quatro comentários nesta página direcionados ao conteúdo do texto

postado – um número relativamente baixo se comparado com os outros textos do

blog que costumam receber entre 20 e 30 reações e, em alguns casos, chegam a

receber mais de 100. Os primeiros dois dos quatro comentários dirigiam-se ao

conteúdo do texto. Os outros dois, repercutiam o segundo comentário.

O primeiro, expressava positividade em relação à oportunidade de trabalho:

seu autor, frequentador assíduo do blog – o que podia ser conferido por outros

comentários publicados em resposta a outros textos – lamentava não poder se

candidatar, se pudesse, não pensaria duas vezes.

Já o segundo, acrescentava um viés importante ao debate que se formava,

fazendo uma verdadeira diferença ao expressar um outro ponto de vista. Era

anônimo, e, apesar de lacônico, também era bastante pragmático e direto, e por

que não, sincero. Indicava o link para a reportagem da Business Week e

acrescentava apenas outras duas palavras, ambas com todas as letras em

maiúsculo:

FUCK YOU!

O terceiro, era uma resposta do próprio autor do blog, endereçada a este

254 Cf. http://flors.wordpress.com/2008/06/11/are-you-good-at-serving-developers/ .255 “You can make a difference, supported by the Nokia developer infrastructure. You _only_ will need to

bring the creativity and pragmatism required to satisfy developers, professionals or hobbyists, with Linux and open source background or else, with mobile experience or not.”

217

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segundo comentário. Talvez numa tentativa de evitar um debate mais polêmico

diante de uma posição adversa manifestada de modo ríspido e explícito, essa

resposta não trazia nada além de dois links: um para uma resposta que o próprio

Jaaksi já havia formulado diante da reação negativa, manifestada em outros

fóruns, que a reportagem provocou em ativistas do software livre256; e outro para

um texto de sua autoria publicado no fórum da comunidade Maemo, o qual

resumia os benefícios que a Nokia já produziu para desenvolvimento open source,

enaltecendo-os257.

O quarto comentário, o último que foi postado, demonstra de maneira

interessante como a linha de atuação da NOKIA encontra ressonância entre

membros da comunidade: programadores (developers) amadores e profissionais,

consumidores e entusiastas258, articulados através do que se convencionou

chamar de redes sociais, que formalmente não estão vinculados à NOKIA – não

trabalham para a NOKIA – mas que mesmo assim compartilham inteligência,

conhecimento e atenção na produção de software livre e de software open source

que é incorporado no desenvolvimento de seus produtos e serviços – produzem

valor para a NOKIA.

O usuário H-Kachal, também frequentador assíduo e colaborador do blog,

apenas dois dias após a publicação da reportagem da Business Week,

assimilando suas palavras de ordem, afirma:

O idiota que escreveu o comentário número 2, está, obviamente, necessitando ser “educado”259.

Um pouco mais de um ano depois desse diálogo, em agosto de 2009, um

novo post no mesmo blog anuncia o lançamento da quinta versão do sistema

256 Cf. http://jaaksi.blogspot.com/2008/06/some-learning-to-do.html .257 Cf.http://www.internettablettalk.com/forums/showpost.php?p=191862&postcount=31 .258 Um bom exemplo de adesão voluntária e entusiasmada de consumidores que justamente por isso passam

a, de certa forma, trabalhar para a Nokia, ou, contribuir para o fortalecimento de suas redes de colaboração, é o seguinte blog : http://blog.Nokiabr.com.br/2009/10/Nokia-camp-2009-perfeito.html

259“The idiot who wrote comment no. 2 is obviously in need of ‘education’ in manners.”

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operacional Maemo e do aparelho N900, um computador móvel que faz chamadas

telefônicas260. O título do anuncio é mais que sugestivo, endereça o texto aos

“amantes de liberdade do software” (software freedom lovers).

No meio do texto, uma imagem bastante instigante estampa um terminal de

comando operando sobre da nova versão do sistema Maemo instalado no

dispositivo N900. O objetivo da imagem, assim como do título, é deixar claro e

evidente que se trata do lançamento de um potente e belo smartphone open

source que roda a partir e em conformidade com o sistema GNU/Linux, por isso,

no terminal de comando é possível ver alguns comandos sendo acionados.

Logado como um usuário sem privilégios, representado pelo símbolo de

posicionamento “$”, o comando “jailbreak Maemo 5” é executado e recebe uma

resposta negativa, “not found”. Em seguida, como que uma segunda tentativa, o

comando “sudo gainroot” é executado e recebe uma resposta positiva: “Root shell

enabled”. Na sequencia, aparece a versão do kernel Linux sendo utilizada. O

usuário agora adquire agora o status de superusuário, ou usuário raiz – root – que

podemos constatar pelo posicionamento a partir do símbolo “#”. Por fim, uma

mensagem aparece digitada:

Hello World! Tux & friends wanna play w/ you!

O comando jailbreak é necessário somente em sistemas fechados, ou seja,

sistemas cuja configuração original, tal como disponibilizada pela empresa que

fabrica o aparelho, não permite que o usuário altere certas características de seu

sistema operacional, mesmo sendo este sistema parte operante de um dispositivo

que é um bem privado deste usuário. As principais alterações a serem evitadas

são: trocar o sistema operacional e desabilitar dispositivos de restrição como os

DRM. Sendo assim, não é à toa que a tradução dos termos desse comando para o

português significa: fuga da cadeia. Já o comando sudo gainroot permite que um

260 Cf.: http://flors.wordpress.com/2009/08/27/software-freedom-lovers-here-comes-maemo-5/ .

219

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usuário comum (no sentido dos privilégios de acesso que ele possui em relação

ao sistema) adquira o status do usuário raiz, ou seja, do usuário principal –

também chamado de superusuário. Com este status o usuário adquire a

capacidade de alterar e configurar qualquer parte do sistema, adquire a

capacidade de executar qualquer ação dentro do sistema.

Quanto a mensagem que aparece digitada, ela remete diretamente ao

universo Linux: Tux é o nome do pinguim que o mascote e símbolo deste projeto,

e a chamada “play” é inequívoca em deixar clara a ideia de que liberdade e

abertura aqui significam que o usuário pode se envolver com a comunidade (tux &

friends) para trabalhar-jogar, até mesmo brincar, com o sistema.

Como um todo, a imagem é bastante precisa em relação a seu objetivo

político: indicar que o sistema Maemo 5 e o N900 comportam uma capacidade

diferenciada de agencia, incomum diante dos outros aparelhos disponíveis no

mercado – principalmente o iPhone da APPLE. Além disso, visa passar a ideia de

que a experiência do usuário será próxima à experiência obtida em qualquer

sistema GNU/Linux. A imagem também é bastante direta em relação ao

público-alvo. É necessário um certo conhecimento para decifrá-la, não muito

complexo nem muito sofisticado, mas o suficiente para um corte de seleção que

englobe usuários com algum conhecimento técnico, desenvolvedores e hackers.

O texto do post, como um todo, é carregado de uma forte verve emocional e

motivadora. Sua primeira frase já diz que o autor sente fazendo parte de um

acontecimento histórico, o qual considera ser histórico também para todo “amante

da liberdade do software”. Também traz muitas especificações técnicas, como o

tipo de processador, as principais bibliotecas, os kits de desenvolvimento etc.

Porém, o ponto alto é sem dúvida o texto que aparece logo após a imagem que

acabamos de descrever. Este parágrafo é tão revelador do sentido político da

mensagem que o autor pretende transmitir que merece ser transcrito

integralmente:

220

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Exatamente. Se liberdade é sua preocupação, então você não precisa “destravar” (unlock) ou “fugir da cadeia” (jailbreak) [com o] Maemo 5. De instalar uma aplicativo a adquirir acesso [como] root, é você quem decide. Nós confiamos em você e, afinal, o aparelho é seu. A Nokia também confia na comunidade open source em geral e na comunidade Maemo particularmente [no que concerne] a ajudar a levar os usuários casuais através do caminho da experiência. O N900 pode ser um novo e bem sucedido ponto de entrada para uma nova onda de usuários e desenvolvedores open source261.

Entendo que os argumentos apresentados aqui podem ser analisados em

três partes. Primeiro, há um destaque enfático ao aspecto da liberdade, pela fato

do sistema ser entregue da fábrica “sem travas”. Em seguida, fortalece-se a

dimensão que há uma relação de confiança da empresa em relação ao usuário, e

da empresa em relação à comunidade open source. Não deixa de ser interessante

que tanto a liberdade comportada pelo aparelho como a relação de confiança

apareçam como que uma espécie de concessão da empresa, afinal, ao invés de

entregar um aparelho fechado e repleto de travas, como o fazem todos os

concorrentes no mercado, a empresa, por confiar nos usuários e na comunidade

open source, entrega um aparelho aberto. Com o qual o usuário pode fazer o que

quiser, afinal, ele é seu dono. No que não deixa de ser uma inversão do sentido

real, afinal, a liberdade aparece praticamente como um ganho em termos de

praticidade – “você não precisa destravar” –, enquanto o grave modelo de

restrição de liberdade praticado pelas outras empresas – o qual necessita até

mesmo da criação de novas disposições legais para impedir que uma pessoa seja

proibida de utilizar um bem privado seu de acordo com sua própria vontade e com

intuito de aproveitar melhor o seu bem262 – é naturalizado: se a NOKIA não

confiasse nos usuários e na comunidade, tudo leva a crer que também lançaria

261 “Exactly. If freedom is your concern then you don’t need to “unlock” or “jailbreak” Maemo 5. From installing an application to getting root access, it’s you who decide. We trust you, and at the end it’s your device. Nokia also trusts the open source community in general and the Maemo community particularly helping in getting casual users through the experience path. The N900 might just be a new and successful entry point for a new wave of open source users and developers.”

262 Cf.:https://www.eff.org/press/mentions/2009/5/2 .

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produtos fechados.

Por fim, os dois aspectos mais interessante. É declarado um papel para a

comunidade open source e para comunidade Maemo além da colaboração com o

desenvolvimento de código: o de apoiar e conduzir a experiência de novos

usuários ainda não familiarizados com o sistema GNU/Linux. E projeta-se a

possibilidade e o desejo de que a nova combinação entre Maemo 5 e N900 seja

“um novo ponto de entrada para uma nova onda de usuários e desenvolvedores

open source”, no que denota o interesse na mobilização de um mercado de

consumidores capazes de se engajarem na produção. Ainda aqui, é muito

interessante que não fique claro se esse “novo ponto de entrada” é na direção do

universo do open source como um todo, ou a partir do universo do open source na

direção da comunidade Maemo e, consequentemente, da NOKIA. Como veremos

a seguir, a falta de clareza nesse e em outros casos é um feature (recurso) e não

um bug.

Se no outro post que comentamos acima, acerca da divulgação de um

posto de trabalho junto à comunidade Maemo, apenas 4 comentários foram

publicados em reação ao texto original. O post que ora analisamos agregou muito

mais reações. Ao todo, foram 117 comentários diretos, 8 respostas do autor do

texto e outras 24 referências à postagem em outros blogs e publicações. Dos

comentários e respostas, 124 foram realizados num período de 10 dias – apenas o

último comentário foi feito alguns dias depois. Sendo os primeiros 61 comentários,

foram realizados no mesmo dia da postagem original do texto.

Considero a análise destes comentários bastante profícua para demarcar

os conflitos políticos que a colaboração da Nokia com a comunidade Maemo

suscita a partir do lançamento de seu produto mais ambicioso e também para

caracterizar o papel do autor do texto, Quim Gil, não só como um gestor e

mobilizador da produção aberta de uma comunidade de desenvolvimento open

source, mas como um verdadeiro administrador de fronteiras263. Dos 117

263 A importância de Quim Gil para o projeto Nokia-Maemo é tão grande, que em uma apresentação

222

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comentários diretos, 30 tratam de questões políticas. Das 8 respostas que autor

publicou, 7 voltam-se a estes comentários políticos. De forma que foi possível

selecionar 37 comentários, de um universo de 125, que abordam, disputam e

negociam diretamente os aspectos políticos do “acontecimento histórico”

apresentado pelo texto. O restante dos comentários engloba três tipos de

mensagens: de cunho técnico e indiferente em relação ao sentido político; de

celebração ou congratulações à NOKIA e à comunidade Maemo pelo lançamento

divulgado; e, em menor quantidade, contendo perguntas sobre a compatibilidade

do aparelho com sistemas operacionais proprietários e sobre disponibilidade e

data de lançamento em diferentes países como México e Irlanda.

O que chama atenção em relação a estes comentários políticos, é que

muitas vezes o ponto de vista que expõe uma contradição é respondido por um

outro usuário que, na maioria das vezes, não possui nenhuma relação formal com

a NOKIA. O que demonstra como valores do mercado são incorporados e

introjetados pela comunidade. A maior parte destes comentários busca responder

ao questionamento político com uma resposta técnica, como caso do

questionamento pela não inclusão do suporte ao formato OGG Vorbis para

arquivos de áudio na disposição original do sistema Maemo, ou seja, no sistema

tal como ele é configurado para ser entregue de fábrica. Essa não é uma questão

menor, pois questiona o apoio da empresa a formatos livres para arquivos de

mídia, aspecto considerado fundamental para a promoção de um ambiente

realmente favorável ao software livre e à cultura livre e para a definição de um

posicionamento claro em relação às patentes de software.

O que proponho a seguir é uma reconstituição dos debates suscitados pelo

texto publicado que visa apreender os principais aspectos em disputa e visa extrair

o sentido dos conflitos demarcados por eles. Não faço uma análise integral dos

comentários, não relato nem analiso todos os aspectos levantados por eles,

intitulada “Maemo Community : who, what, why and how” (Lima, 2009), um desenvolvedor brasileiro envolvido com a comunidade desde seu início, aponta como um dos marcos de sua evolução e consolidação a contratação de Gil.

223

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atenho-me aos aspectos que considero mais significativos e pertinentes para a

discussão que fazemos neste capítulo.

O usuário Onkar publica no mesmo dia da postagem do texto um

comentário (número 15), dizendo-se “triste por não ver suporte para vorbis/ogg”.

No entanto, conclui afirmando que todo os outros aspectos do aparelho o

agradaram. Logo em seguida, o usuário nate (comentário 16), tentando neutralizar

a inconsistência identificada no cometário anterior, responde dizendo que deve ser

“trivial” instalar o suporte a este formato através de plugins do Gstreamer264. A

esse comentário, o usuário Timo (comentário 24) rebate dizendo que não se trata

de uma questão de “trivialidade”, mas de buscar o sentido do fato da NOKIA ter,

deliberadamente excluído o suporte ao formato em questão do pacote base do

Gstreamer ao invés de “mostrar liderança apoiando algo que faz todo o universo

do software livre mais viável e um melhor lugar para todos”. Acrescenta que,

apesar de considerar que o dispositivo sendo lançado “parece incrível”, espera ver

alguma evolução em relação à questão dos formatos livres e abertos para

arquivos de mídia, os quais considera mais importantes que a mera inclusão de

alguns softwares livres, pois o “mundo digital” já se encontra bastante

desordenado pela ação de empresas que, restringindo as possibilidades de uso de

uma tecnologia, buscam apenas interesses privados e renda a partir de royalties.

A este comentário, que aprofunda o aspecto político de uma escolha técnica

e realiza uma crítica direta a conduta da NOKIA, o usuário Aleksey (comentário

25), mesmo sem aparentar possuir alguma relação formal com a empresa ou

mesmo com a comunidade Maemo, antes de propriamente responder às questões

levantadas, tenta deslegitimar os argumentos expressados: “É fácil balbuciar na

web sobre software livre etc”. E, de maneira contundente, apresenta seu

argumento: “mas a verdade é que a Nokia apenas não pode incluir codecs que

talvez possuam patentes submarinas (…) Eles [a Nokia] provavelmente

264 Gstreamer é um framework de desenvolvimento de aplicações multimídia utilizado pelo sistema operacional Maemo. Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/GStreamer .

224

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examinaram 'um pouco' o assunto” – usando aspas para dar um tom de ironia. Por

fim, tenta encerrar a discussão: “É triste mas é verdade. E [é] muita realidade265”.

Mas a discussão não se encerra tão fácil. O usuário Nicola Larosa, no comentário

seguinte (26), afirma categoricamente que não se importa quais sejam as razões

para o sistema não suportar o formato livre, trata-se de uma quebra de confiança.

Este usuário se apresenta como um antigo usuário do sistema Maemo, tendo

adquirido dois aparelhos que funcionavam com este sistema e relata que a

demanda pela inclusão do suporte aos formatos Ogg vem sendo apresentada há

alguns anos.

Este debate pontual acaba, mas a discussão acerca da liberdade é

aprofundado por outros comentadores e, mais adiante, outros comentadores

retomaram a questão da inclusão do suporte ao formato Ogg Vorbis.

No comentário de número 28, o usuário r, afirma que o N900 aparenta ser

uma “bela peça de hardware”, e coloca algumas questões acerca da “liberdade de

software” pedindo para que o autor do texto esclareça “quanta liberdade o

dispositivo exatamente permitirá”. Pergunta se o usuário poderá construir

aplicações e incrementos a partir do código, aplicar ao sistema e o dispositivo

continuará funcionando. Explica que não se refere a aspectos da interface gráfica,

mas às funcionalidades do hardware e da capacidade telefônica do aparelho.

Contextualiza sua pergunta dizendo que Nokia possui um infeliz histórico de

oferecer seus produtos como “abertos e livres” e entregar dispositivos repletos de

códigos fechados e em formatos binários, além de drivers e componentes

proprietários sem os quais o dispositivo perde funcionalidades essenciais e

básicas como gerenciamento de bateria. O que impede que ele seja realmente

programável.

Demonstrando participar e conhecer a comunidade Maemo, o usuário r

neste mesmo comentário ainda acrescenta um ponto importante: afirma que essa

questão acerca da inclusão de código não-livre impedindo a exploração de

265 Aqui é empregada uma expressão de difícil tradução: “It is sad but true. And much reality”.

225

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funcionalidades de um dispositivo já havia sido apresentado como um bug report à

comunidade Maemo e foi dado como resolvido sem uma resolução verdadeira e

satisfatória266. Em seguida, afirma que a seção “Por quê dos pacotes fechados267”

no wiki da comunidade Maemo indica que nada mudou em relação a situação

reportada dois anos antes. Do que ele entende que se pode esperar que a mesma

não mudará em um futuro previsível devido a razões estratégicas268. Termina

dizendo que se esses aspectos forem de fato resolvidos em relação ao Maemo 5 e

ao N900 ele provavelmente comprará um dispositivo desse para ele. Caso

contrário, sugere que a Nokia (e ele usa o termo you) deveria ser um pouco mais

honesta em suas comunicações com o mundo open source, e conclui: “vocês

construíram a partir do trabalho deles, eles merecem isso”.

Alguns comentários adiante (número 36), após alguns comentários que

celebram o lançamento (comentário 29), oferecem ajuda para tradução do sistema

operacional para outras línguas (comentário 30), e que debatem aspectos técnicos

(comentários 31-34), o usuário Mickey corrobora os argumentos do comentário

que acabamos de analisar, dizendo que “como alguém que entende uma

plataforma como a combinação de software e de hardware”, não vê o N900

levando adiante nenhum avanço em relação à liberdade no âmbito do hardware. E

justifica dizendo que em lançamentos anteriores, o desenvolvedor interessado em

reconfigurar ou alterar o sistema precisava abrir mão de aspectos básicos de

funcionalidade – como gerenciamento de energia e conexão Wi-fi.

A este comentário, segue uma longa sequência de comentários que

celebram o lançamento e debatem aspectos técnicos até que, o de número 60,

feito pelo usuário Jonathan, que se declara um early adopter de modelos

266 Nesse ponto, o usuário oferece um link para esse bug report, o qual foi apresentado como um belo e bem circunstanciado argumento, que suscitou uma discussão bastante parecida com a que analisamos aqui e que envolveu 15 comentários: https://bugs.maemo.org/show_bug.cgi?id=1584 .

267 Cf.: http://wiki.maemo.org/Why_the_closed_packages .268 Nesse ponto ele remete ao aspecto apresentado na seção citada como “Differentiation” o qual contém a

seguinte explicação: A Nokia pretende obter vantagem competitiva em certas áreas através da manutenção do software relativo a elas fechado. (“Nokia wants to gain competitive advantage in certain areas by keeping the related software closed.”)

226

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anteriores que operam a partir do sistema operacional Maemo, questiona a

descontinuidade na estratégia de lançamento de produtos da Nokia que não

permite que aparelhos antigos sejam atualizados pelo sistema novo – o que na

prática força um consumidor a renovar constantemente seus aparelhos. O

comentário seguinte (61), de Hans J. Koch, corrobora com essa critica e diz que

expressa os motivos para que ele aguarde até a que Nokia “entenda o que open

source significa” antes de decidir comprar um aparelho dela.

O comentário de número 62, inaugura uma importante participação no

debate, do desenvolvedor finlandês e membro do Partido Pirata da Finlândia,

Mikko Rauhala269. Respondendo a um dos primeiros comentários publicados, o do

usuário Aleksy (comentário 25), afirma que acharia mais plausível o argumento de

que a Nokia estaria tentando evitar os problemas das patentes submarinas com a

escolha de não incluir o suporte ao formato OGG Vorbis, não fizesse a Nokia um

lobby tão forte a favor das patentes de software. De forma que considera que a

empresa joga um jogo duplo, pois possui uma considerável culpa no problema que

utiliza como desculpa para se sentir insegura em relação a certas tecnologias e

formatos abertos e, com essa justificativa, adotar padrões fechados.

Antes da primeira resposta de Quim Gil aos questionamentos levantados,

dois comentários chamam atenção. O usuário nona (comentário 65) queixa-se da

falta de autonomia da comunidade Maemo cujas decisões, na sua opinião, não

parecem basear-se no mérito técnico, mas apenas seguir “caprichos” (whims) e

interesses de negócio da Nokia. Em seguida, afirma que “voltará ao Maemo” o dia

que outros dispositivos além dos da Nokia forem capazes de executar este

sistema e que uma comunidade real tenha se desenvolvido, pois “dado o estado

das coisas a Nokia (e por extensão a comunidade Maemo) perderam minha

confiança”.

Numa outra direção, o usuário Alex (comentário 72) busca ressaltar a

importância do papel desempenhado pela Nokia em trazer o Linux para o mercado

269 Cf.: http://mjr.iki.fi/ .

227

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mobile – que então já assistia a avassaladora entrada do iPhone na cena. E clama

aos outros leitores e comentadores: “Caras, é duro impulsionar o Linux e outras

tecnologias FOSS em dispositivos para consumidores e ao mesmo tempo

oferecer o tanto de liberdade ao dispositivo e ao software como a Nokia faz 270”.

Depois, respondendo aos que se importam com a liberdade do software, afirma

que acredita que faz sentido que mostrem seu apoio comprando e usando o

aparelho anunciado devido a seus “recursos, poder e capacidade”. E conclui: “No

fim das contas, não esqueçam que há empresas tentando trazer o Linux para o

mainstream e isso é um sinal de alívio e felicidade para muitos de nós. Vamos

tentar ajudá-las da maneira que pudermos271.”

Após essa que podemos chamar de primeira rodada de comentários, a qual

congregou mais de 50 pessoas diferentes expressando seus pontos de vista, e

que foi realizada no período de um dia, o autor da postagem original que gerou

todos os comentários se manifesta (comentário 74). Primeiro, agradece a todo o

feedback recebido – sim, todas os comentários trazem, em algum grau,

informação relevante que podem ser aplicadas no desenvolvimento do sistema ou

mesmo no aprimoramento da comunicação pública e comunitária. Em seguida,

escolhe quatro temas e responde de maneira geral, ou seja, sem direcionar a um

ou outro comentador.

Nos três primeiros comentários tenta minimizar as críticas quanto à falta de

liberdade, ou a suposta confusão que a Nokia cria ao anunciar um produto com

restrições e código proprietário como livre. E oferece uma explicação que é

recorrente. Está presente em outros textos e discussões do wiki da comunidade

Maemo, em outros textos de seu blog, e também pode ser conferido na imagem

apresentada na página 191 (FIGURA 7) que foi extraída de uma apresentação em

nome da Nokia realizada em um evento técnico. Esta explicação é clara e direta e

seu sentido será analisado mais adiante:

270 “Guys, it’s tough to push Linux and other FOSS technologies to consumer devices and at the same time offer as much freedom to the device and software as Nokia does.”

271

228

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Ninguém afirma que o Maemo é um sistema operacional mobile 100% livre e que o N900 é um dispositivo mobile 100% livre. Eu afirmo que [o sistema operacional Maemo] atualmente é a mais interessante combinação para um amante da liberdade do software graças a seu padrão que segue a estrutura Linux, a possibilidade de modificar a plataforma e acessar até o nível raiz (access to the root). A porcentagem [que é mantida fechada] ajuda a Nokia a ter um modelo de negócios sustentável e a atingir apelo ao consumidor. Se 100% livre é seu objetivo, Maemo 5 e N900 é um bom ponto de partida272.

A respeito do padrão OGG Vorbis, remete, através de um link, a uma

discussão interna já realizada pela comunidade Maemo sobre o tema, e diz que o

assunto “é complicado” – e não vai muito além disso. Reforça o aspecto prático de

que é possível instalar o suporte ao OGG Vorbis através de “um clique”, ao

mesmo tempo que reconhece que há uma grande diferença entre ter que instalar

e já vir com o suporte instalado de fábrica – demonstrando, como sempre,

entender o outro lado. Sobre outros sistemas operacionais serem instalados,

afirma que a Nokia (we) encoraja as tentativas, e que uma das “belezas do

Maemo é que você pode se livrar dele se quiser”.

O último tema de seu comentário é sobre a questão das patentes.

Demonstrando pouco interesse no que considera um assunto ultrapassado, pede

que a comunidade reavalie este “meme”273, uma vez que já faz bastante tempo

que a estratégia de propriedade intelectual da Nokia é amigável ao software e aos

desenvolvedores open source. E cita os exemplos da abertura do código do

Symbian, do re-licenciamento da plataforma Qt e, agora, do Maemo inserido em

272 “Nobody claims Maemo is the 100% free mobile OS and the N900 is the 100% free mobile device. I claim is currently the most interesting combination for a free software lover thanks to its standard Linux stack, possibility to modify the platform and access to the root. The % closed helps Nokia getting a sustainable business model and reaching consumer appeal. If 100% freedom is your goal Maemo 5 and N900 is a good starting point.”

273 O conceito de meme é utilizado correntemente para designar objetos linguísticos, simbólicos e culturais que se espalham exponencialmente entre pessoas e através de redes sociais, geralmente associados a uma ideia de futilidade e efemeridade. No caso, o autor visa atribuir o sentido de uma ideia que já não faz muito mais sentido, mas segue se reproduzindo e se expandido como que dotada de uma força própria.

229

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uma plataforma de alto nível.

Este comentário em tom depreciativo, que tenta minimizar a importância

dessa discussão e tenta dar o assunto como encerrado, desperta uma sequencia

interessante de reações, as quais são, num primeiro momento prontamente

respondidas de volta, como que num esforço de tentar apagar um foco de incêndio

antes que ele se alastre a ponto de se tornar incontrolável.

Mikko Rauhala (comentário 79) decide então aceitar a provocação de

“revisar o meme sobre patentes”, e faz uma interessante análise da postura dúbia

da empresa que, por um lado, desenvolve e utiliza software livre, por outro,

emprega software proprietário associado ao software livre, até mesmo no

“badalado” (hyped) Open Maemo – que deveria ser o símbolo da política open

source da Nokia. Em seguida, afirma que a Nokia se comporta de maneira hostil

no que que concerne a patentes, inclusive relatando que no Fórum Europeu

dedicado ao tema das patentes de software, a empresa ameaçou a Polônia,

dizendo que fechariam uma planta que possui naquele país caso seus

representantes não se posicionassem de acordo com seus interesses no

Conselho de Ministros. Por fim, diz que o único aspecto positivo que conhece da

postura da Nokia é sua promessa de que não processaria por infração de patentes

ninguém que utilizasse a versão oficial do kernel Linux tal como distribuída pelo

kernel.org, sendo que poderia declinar da promessa em várias circunstâncias.

A resposta de Quim Gil vem na sequência (comentário 80) e, como em

outras vezes, tenta evitar o confronto direto, colocando o assunto como

ultrapassado ou já resolvido. Escolhendo e aproveitando uma referência que

Mikko Rauhala faz a um amigo que era advogado da Nokia e se demitiu em

virtude de considerar a estratégia de propriedade intelectual agressiva, danosa e

contrária a seus valores pessoais274, Gil diz que Rauhala está falando de 2004 e

que, na ocasião, já estávamos em 2009. Nesse meio tempo, o open source havia

sido colocado no centro da estratégia de software da Nokia, como era possível ver

274 Cf.: “Personal life: No Nokia”, http://liw.iki.fi/liw/log/2004-12.html#20041208b .

230

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através do apoio ao desenvolvimento do Linux, na conversão do Symbian para o

open source, e no modo como a empresa estava conduzindo o desenvolvimento

da plataforma Qt. Ao mesmo tempo que reconhece: “Claro que a companhia

continua a jogar o jogo da propriedade intelectual, mas nisso ela não é diferente

de nenhuma outra companhia275”.

Em seguida pede por provas de que a Nokia aplicou seus direitos de

propriedade intelectual para a algum projeto de software livre. E termina com uma

passagem que também merece ser citada integralmente:

A Nokia é uma grande corporação que tenta fazer grandes negócios. A agenda dela talvez não se encaixe sempre em sua agenda. Eu penso que isso é óbvio para todos. Eu estou apenas tentando apontar que atualmente a estratégia open source da Nokia é realmente bastante benéfica para a comunidade open source. Mesmo se ela possui 2 ou 3 aspectos que você não concorde276.

O debate se intensifica a partir daí. Rauhala (comentários 81 e 83)

argumenta que não se trata do quanto a Nokia aplica seus direitos de propriedade

intelectual sobre projetos de software livre, mas do que ela faz para fortalecer esse

sistema como um todo. E que, a despeito das contribuições que a Nokia

efetivamente faz ao open source, essa postura favorável ao sistema de

propriedade intelectual é destrutiva e prejudicial para desenvolvedores

independentes e pequenas empresas.

Gil responde prontamente (comentário 84), informando que a Nokia possui

uma estratégia baseada em propriedade intelectual e outra baseada no open

source, e que tenta fazer o seu melhor nas duas. Em seguida afirma que não está

apresentando o Maemo 5 e N900 como uma panaceia para o povo do software

livre, mas que acredita que esta combinação “se tornará a melhor opção

275 “Of course the company keeps playing the IPR game but this is no different with any other company.”276 “Nokia is a big corporation that tries to make big business. Its agenda might not always fit your agenda.

I think this is obvious to everyone. I’m just trying to point out that currently Nokia’s open source strategy is actually quite beneficial to the open source community. Even if it has 2 or 3 things you disagree with.”

231

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disponível quando for lançada”. No que Rauhala também responde prontamente

(comentário 85), alegando que o título do texto, em sua concepção, é então um

tanto desonesto para apresentar um produto com liberdades bastante limitadas.

No entanto, pondera: “mas eu suponho que alguns de vocês tenham padrões de

liberdade suficientemente baixos de forma que [o título] não soe desonesto”.

Um usuário assíduo do blog que, no entanto, se identifica apenas por um

codinome, The Badger, entra na discussão retomando e questionando algumas

respostas endereçadas por Quim Gil à Mikko Rauhala (comentário 87). O cerne de

sua argumentação é o papel desempenhado pela Nokia em relação ao sistema de

propriedade intelectual como um todo e ao modo como mobiliza seus esforços

open source para legitimar suas posições dúbias em relação a patentes. E ele

afirma o seguinte:

É precisamente a incerteza sobre as políticas corporativas que alimentam a desconfiança em empresas como a Nokia. Embora você queira que todos acompanhem a mão esquerda do mágico, não é adequado para algumas pessoas ver [o que faz] a mão direita. E para essas pessoas é adequado também lembrar ao primeiro grupo o quadro completo. Claro, um dispositivo relativamente aberto é um ganho para quem quer rodar Linux em um telefone, mas poucas pessoas tem na tecnologia seu único fator motivacional quando pagam dinheiro para uma companhia277.

Apesar de não concordar com a ideia de que apenas poucos estão

interessados somente na tecnologia para se motivarem a comprar um produto de

uma empresa, pois acredito que o grande número de comentários que celebram o

lançamento do Maemo 5 bem como as reações espontâneas em defesa do

arranjo entre empresa e comunidade atestam justamente o contrário, considero

pertinente sobretudo sua imagem das “duas mãos do mágico”. Afinal, a todo

momento, é como se Quim Gil insistisse para que não se olhasse para “outra

277 “ It is precisely uncertainty about corporate policies which feeds mistrust of companies like Nokia. Although you would have everyone follow the magician’s left hand, it’s not only appropriate for some people to watch the right hand, it’s also appropriate for those people to remind the first group about the bigger picture. Sure, a relatively open device is a net gain for people who want to run Linux on a phone, but few people have technology as their sole motivating factor when paying a company money.”

232

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mão”, sob o risco do efeito da magia não se concretizar. Alegando sempre que o

efeito será benéfico, vantajoso, e por isso não se deve questionar o que a “outra

mão” faz.

No restante de seu argumento, The Badger, expande o escopo das críticas

ao referir-se a participação da Nokia em um consórcio que forneceu as estruturas

de vigilância para que o governo do Irã controlasse e vigiasse as trocas de

informações de toda a internet no país. Fato que teve severos efeitos durante os

protestos ocorridos durante a eleição presidencial de 2009278.

Quando as pessoas mencionam patentes de software ou – ampliando o escopo – os vários escândalos relativos a vigilância que a Nokia trouxe para si mesma, isso talvez torne seu emprego frustrante. E você ainda pode alegar que nada disso tem a ver com tablets de internet, Maemo, Linux e o que mais for, mas nem todos vivem em um espaço unidimensional onde inquietações [desse tipo] não interessam. [Entretanto] essas outras inquietações afetam mesmo aqueles que se importam somente com Linux em um telefone: se a empresa é capaz de fazer decisões estratégicas sórdidas sobre, digamos, vender e promover equipamentos de vigilância, é preciso saber sobre a integridade da empresa em sua completude279.

A resposta de Quim Gil não tarda a vir e, mais uma vez, evita o debate

direto dos pontos mais polêmicos. Questiona o anonimato do interlocutor, dizendo

que ele se esconde atrás de uma “máscara virtual”. Recomenda que encaminhe

suas críticas sobre as operações suspeitas da Nokia direto para os canais de

comunicação da empresa. Em seguida, oferece uma valiosa leitura da Nokia como

“simplesmente uma entidade econômica”, em relação a qual, caso você não goste

dela, basta que não compre seus produtos e não trabalhe para ela. Esse ponto é

278 A esse respeito ver: https://cteme.sarava.org/Main/Ira2009 . 279 “It may make your job frustrating when people mention software patents or – widening the aperture – the

various surveillance-related scandals Nokia has brought upon itself, and you may complain that it has nothing to do with Internet tablets, Maemo, Linux or whatever, but not everyone lives in a one-dimensional space where other concerns don’t matter. And those other concerns even inform those who only care about Linux on a phone: if the company is capable of making nasty strategic decisions about, say, selling or promoting surveillance equipment, one has to wonder about the company’s integrity across the board.”

233

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interessante, pois em outros momentos a Nokia aparece como amiga e parceira

da comunidade open source, ou ainda como “nós” e não apenas como uma

“entidade econômica” abstrata e distante.

Ainda no dia seguinte após a publicação do texto, mais dois comentários. O

usuário horst lederhosen (comentário 91) se dirige a Rauhala dizendo: “Primeiro,

tente aceitar que o mundo é imperfeito. Agora, uma vez que você tenha aceitado

isso, é lógico que o que realmente importa é a direção da mudança – se em

direção a algo melhor ou pior”. Seu argumento é interessante, pois é um exemplar

autêntico do tipo chamado de pragmático, que supostamente é mais realista em

relação a argumentos idealistas e políticos. Ele assume que a “direção da

mudança” – uma vez que porcentagem de celulares Nokia rodando Linux é cada

vez maior – é claramente correta. E se a mudança não é rápida ou se ainda não é

completa, é porque os usuários precisam de experiência de uso seguramente

suave e, portanto, esta deve ser a prioridade número um do projeto. Por fim,

conclui estabelecendo uma escala de prioridades:

Enquanto não houver fortes evidências de que os usuários acreditam que liberdade é mais importante do que uma experiência de uso tipo a do iPhone, com loja de aplicativos com travas, adicionar liberdade ao produto será sempre um objetivo secundário280.

Rauhala (comentário 92) destaca um ponto realmente interessante nessa

resposta. Aponta que seu interlocutor está dando como certo que o sistema

Maemo não poderia oferecer a experiência de uso suave que ele mesmo coloca

como essencial e ser livre ao mesmo tempo. E questiona a ideia recorrente de que

as concessões que a Nokia exige para que seu modelo de negócios seja

“sustentável” são válidas a título de serem um bom ponto de partida. Lembrando

que desde 2006 esse argumento vem sendo repetido em outros projetos, o que

280 “Until there is strong evidence that users believe that freedom is more important than iphoney user experience with locked-in appstore, adding freedom to the product is always a secondary goal.”

234

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deixa claro que este seria um padrão estrutural do tipo de colaboração que a

empresa propõe e, mais importante, que a empresa comporta.

No dia seguinte – dois dias após a publicação do texto – o usuário Lucifer!

(comentário 93), demonstrando grande empolgação com os kits de

desenvolvimento disponibilizados junto com o sistema operacional, dá apoio ao

posicionamento expresso por Quim Gil no comentário 74, citando seu segundo

parágrafo (que também aparece citado aqui entre as páginas 215), escrevendo

logo embaixo: “Concordo 100%.”

Mais um dia, e os questionamentos reaparecem. O usuário Anton

(comentário 94) questiona a postura da Nokia apontando a importância do papel

da indecisão e da incerteza em seus posicionamentos. E é taxativo em afirmar que

“se parte do sistema é fechado, então o sistema não é aberto”. Enquanto o

desenvolvedor português Rui Seabra (comentário 102) pregunta, de maneira

bastante educada, como que drivers fechados podem contribuir para o aumento

de vendas da Nokia. Dizendo que até entende a necessidade de aplicativos

proprietários e fechados, mas que drivers abertos são uma necessidade, inclusive

para que aplicativos livres possam ser desenvolvidos.

Quim Gil está lá pronto para responder novamente (comentário 104),

dizendo diretamente à Anton que, independente do quanto ambos consideram que

o sistema Maemo é aberto ou fechado, a verdade que a Nokia tem contribuído

com grandes quantidades de “fresh code” em áreas chave do Linux. Além disso,

graças aos investimentos no sistema Maemo, muitos desenvolvedores estão

trabalhando, dentro e fora da Nokia, desenvolvendo software livre. Por fim, termina

dizendo que considera que estes benefícios provavelmente atingem o software

que seu interlocutor está usando naquele exato momento. Para Rui Seabra, a

resposta é mais direta e um pouco irônica. Exime a responsabilidade da Nokia

afirmando que os drivers são em sua maioria de outros fabricantes. E sugere ao

interlocutor que, caso ele tenha um bom plano de negócios baseado e software

livre para oferecer a essas companhias, elas provavelmente vão aceitar. E termina

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dizendo que reconhece que esta não é uma equação simples.

Em seguida, escreve um paragrafo não direcionado a nenhum interlocutor.

Esta é sua última participação no debate:

Maemo tem sido sempre clara dizendo que software livre é um meio, e não um fim, para desenvolver produtos de consumo inovadores. Maemo não pretende lançar software 100% livre rodando sobre um hardware 100% livre. Há outros projetos tentando atingir este objetivo de modo sustentável e eles na verdade se beneficiam de uma porcentagem do trabalho que o Maemo está realizando ao publicar Linux e tecnologias free desktop para o mainstream281.

Diante dessa resposta, Rui Seabra perde um pouco a compostura e

abandona o tom cordial e educado de seu primeiro e-mail. Publica três

comentários (106, 106 e 107) na sequência resgatando outros argumentos

apresentados por Gil em outras respostas. Diz que não importa quanto Gil tente

revestir de açúcar suas respostas, a Nokia pratica um dos lobbies mais fortes a

favor de patentes de software na União Europeia. E aponta para a seção do wiki

da comunidade Maemo que apresenta os motivos para a utilização de software

proprietário, dizendo que há muitos insultos e muita bobagem (bullshit) nessas

explicações. No outro comentário, afirma que sem as liberdades dos usuários,

levar o Linux para o mainstream é sem sentido. E refuta o argumento da

necessidade de drivers proprietários dizendo que é fácil colocar a culpa em

terceiros uma vez que, no limite, quem os escolheu foi a Nokia. Seu último

comentário questiona a capacidade técnica do sistema de gerenciamento de

energia empregado pela Nokia, dizendo que ele é de baixa qualidade. Algumas

pessoas contra argumentam. A conversa caminha nessa direção e logo em

seguida vai perdendo força. Quim Gil não responde a nenhum de seus pontos. E

281 “Maemo has been always clear saying that free software is a means, and not an end, to develop innovative consumer products. Maemo doesn’t aim to release 100% free software running on top of 100% free hardware. There are other projects trying to reach that goal in a sustainable way, that actually also benefit from a % of the work Maemo is doing pushing Linux and the free desktop technologies to the mainstream.”

236

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Seabra leva a discussão para seu blog pessoal, onde a conversa evolui e se

desdobra em quase 40 comentários282.

Em meio a toda essa discussão, muitos comentários eram feitos totalmente

alheios ao que se discutia. A maioria deles, como já disse, celebrando o

lançamento, declarando interesse em adquirir um aparelho e parabenizando a

Nokia e a comunidade Maemo. Dando a entender que para muitos estas

discussões políticas simplesmente não interessam ou, no mínimo, interessam

menos que os recursos e possibilidades oferecidas pelo novo aparelho. Quim Gil

ainda responde a uma questão técnica, sobre o comando adequado para um

usuário conseguir se registrar como root no sistema. Um outro usuário, Edward

Borland (comentário 122) agradece a paciência e a respostas de Gil ao longo do

debate, demonstrando que há realmente perspectivas opostas dentro da

comunidade software livre e open source, algumas delas sem muito interesse em

confrontar o mercado.

A recuperação desse debate que, apesar de longo ocorreu em um intervalo

de poucos dias, permite que pontuemos de maneira simples o conflito demarcado

pelos vários aspectos levantados por diferentes interlocutores. Apesar do

lançamento da Nokia ser apresentado como um produto histórico para amantes da

liberdade de software, quando instados a definirem se o dispositivo é livre ou não,

a empresa afirma que ele não é 100% livre, partindo do pressuposto que é

possível ser “um pouco livre”, “mais livre”, ou “80% livre”. No entanto, para a

Nokia, isso não significa que o dispositivo seja fechado, pois seu argumento é de

que o dispositivo é “o mais aberto possível” ou “o melhor que pode ser encontrado

no mercado”. Ou seja, não se trata de uma tecnologia livre nem proprietário,

trata-se de algo diferente: “mais aberto”.

Outra declaração é bastante reveladora e ajuda a compreender a estrutura

por trás da estratégia open source da Nokia: “software livre é um meio, e não um

fim, para o desenvolvimento de produtos de consumo inovadores”. Ou seja, a

282 Cf.: http://blog.1407.org/2009/09/01/nokias-free-software-bullshit-and-insults-in-maemo/ .

237

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liberdade não interessa como liberdade, apenas como motor de inovação.

Estes dois aspectos são importantes, pois a todo momento a necessidade

de fechar o sistema em algum momento é apresentada como uma espécie de

condição que deve ser feita para que se obtenha um sistema e um dispositivo

“mais livre”. Ou seja, é apresentado como uma concessão necessária para

impulsionar o trabalho da Nokia. Nesse caso, trata-se então de um apoio da

comunidade open source para o trabalho da Nokia, um apoio de uma comunidade

de cooperação para uma empresa global que, apesar de sua atual crise, ainda

continua vendendo mais de um milhão de aparelhos por dia em todo o mundo e

estampando sua logomarca em um de cada três aparelhos vendidos283.

Por outro lado, apesar de ninguém ser obrigado a participar da comunidade

que colabora com a empresa, por outro, o número de críticos a esse esquema é

significativamente menor do que o número de pessoas que se entusiasmam e

aceitam as restrições impostas para que o modelo de negócio open source da

Nokia seja sustentável para ela. Do que é possível perceber que o argumento de

um “bom ponto de partida” para levar o Linux para dentro da indústria mobile

ressoa e é aceito por muitos colaboradores.

Neste caso, opta-se por um pouco mais de liberdade e um pouco mais de

transparência em relação a outros fabricantes de dispositivos, sempre como a

ideia de que se trata de abrir uma brecha para levar a liberdade para dentro do

Mercado. No entanto, diante da adesão voluntária e mesmo submissão coletiva à

restrições estrategicamente inseridas para que, a despeito do sistema operacional

livre, a empresa possa manter controle total sobre o desenvolvimento e sobre

certos aspectos da configuração do hardware, esta abertura na fronteira entre o

livre e o fechado acaba funcionando mais para o lado contrário. Ou seja, ao invés

de levar a liberdade para a indústria mobile, permite que o mercado colonize a

liberdade e extraia valor daquilo que foi produzido como liberdade e do próprio

movimento que anima as redes que se constituem na busca por liberdade.

283 Cf.: http://www.hs.fi/english/article/Knock+Knock+Nokias+Heavy+Fall/1135260596609 .

238

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3.6 CAPITAL HUMANO, LIBERDADE E SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Ainda há pouco, afirmamos que uma das dificuldades para a identificação,

medição e caracterização da atividade produtiva que deriva da interação social em

rede como trabalho era a de conseguir demarcar a diferença entre trabalho e vida.

Esta confusão, porém, pode indicar dois tipos bastante distintos de relação de

engajamento na produção de valor.

Uma delas vai no sentido de uma produção não alienada, uma produção

dos meios que não está descolada da sua utilização, voltada, portanto, para a

produção de valores de uso, para a evolução técnica (Simondon, 2001), para a

expansão de relações sociais e do meio comum que elas informam. E, ainda,

dotada de um importante potencial de resistência à alienação do trabalho

(Söderberg, 2008).

A outra, é aquela que se enquadra nas explicações fornecidas pela crítica a

teoria do capital humano, em que a vida é mobilizada para uma produção abstrata,

em um movimento em que a própria experiência de vida é colonizada pela

reprodução do capital e convertida em capital passível de ser investido, valorizado

e de render. Nessa chave de percepção, todas as relações sociais passam a ser

quantificáveis, a própria existência passa a ser percebida como produção de

capital e volta-se para essa valorização de si (López-Ruiz, 2007).

O problema que levantamos nesta seção do capítulo é que esses dois tipos

de engajamento, apesar da brutal diferença de suas respectivas naturezas, não

são necessariamente excludentes. São contraditórios. Porém, não excludentes.

No entanto, se concordamos com a afirmação de Bernard Aspe e Muriel

Combes (1998) de que não é fácil saber quando se está dentro ou fora do regime

de trabalho, talvez devêssemos prestar atenção nos movimentos de passagem,

aqueles que incorrem em ambiguidades, ou justamente quando há incerteza de

239

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onde se está, e para onde se vai. É justamente no limite entre chamar e não

chamar de trabalho e nas passagens sinergéticas entre esses dois regimes que

ocorre essa nova forma de trabalho do trabalho em rede, em atividades que não

parecem trabalho e em atividades que são realizadas por prazer. Assim como

naquilo que não é reconhecido como trabalho e que complementa o trabalho:

como quando se espera o engajamento duplo de um desenvolvedor de software

em comunidades de colaboração. Ou quando participar de uma comunidade é

pre-requisito ou uma vantagem para obter um posto de trabalho formal em uma

empresa.

FIGURA 08: «Duplo Engajamento: Trabalho-Vida» (Jaaksi, 2007)

Penso que a investigação do estilo de vida que se projeta, se associa, e se

difunde como continuidade do trabalho de desenvolvimento de software,

incluindo suas vertentes de desenvolvimento de código, de design de sistemas, e

de invenção, poderia ser bastante profícua. Quais mundos possíveis são

oferecidos para para este pequeno conjunto de desenvolvedores que acaba

240

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compondo um tipo de elite dentre os programadores e que praticamente formam

uma outra classe e que é capaz de atravessar diferentes redes, cruzar fronteiras,

de transitar entre o dentro e o fora?

Rafael Evangelista (2010: 149-167) oferece uma interessante análise de

como o a lógica do capital humano é introjetada e cada vez mais propagada no

universo do open source, num movimento que, de certa forma, efetua a

conciliação da ética hacker com a ética do empreendedor. Um bom exemplo que

sua etnografia traz é o modo como a imagem do conceito de escritório do Google

como um local divertido para que propicie a ocorrência de boas ideias, no qual o

trabalhador tem supostamente mais liberdade para criar por ter a liberdade para

escolher se vai trabalhar no jardim ou em um lounge, bem como se vai interromper

uma tarefa para espairecer jogando uma partida de bilhar.

Se o hacker é movido por desejo e por prazer, o trabalho também precisa

ser prazeroso – ou, ao menos, aparentar ser prazeroso. E é na construção dessa

imagem de trabalho prazeroso e de sucesso obtido através do reconhecimento

dentro de grandes comunidades internacionais que cada vez mais se consolida

uma linguagem de mobilização para o trabalho em rede. No entanto, esta

mobilização não visa a expansão das redes e do fundo de conhecimento comum

que compartilham. Visam a produção de valor para ser apropriado dentro de

regimes de acumulação capitalista.

Sendo assim, Evangelista também aponta um outro importante efeito. A

motivação para a participação em projetos de desenvolvimento comunitário e

colaborativo também sofre uma inflexão. Não mais como um ato orientado para

construir uma alternativa ao mundo proprietário ou orientado para algum sentido

de liberdade, mas como um investimento para adquirir novas habilidades, obter

reconhecimento e acumular contatos. De um trabalho de liberdade a um meio para

obtenção de sucesso pessoal – valorização de capital humano –, eis o resultado

da conversão da tecnopolítica do software livre para uma tecnocracia que se

alimenta do open source.

241

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Nesse sentido, a pesquisa de Joachim Henkel (2008) é precisa, pois indica

que a relação entre empresas e comunidades é feita por indivíduos que acabam

desempenhando um papel duplo, trabalhando tanto para a empresa quanto para a

comunidade. A função é regular a entrada e a saída. É fazer os fluxos produtivos

de fora valorizarem a produção interna. No entanto, esse tipo de posição

borderliner que apesar de ambígua e provavelmente super-explorada devido ao

seu duplo engajamento, não é para todos. Ela precisa ser complementada por um

outro tipo de trabalho realizado de uma maneira um tanto precária que ocorre sob

duas formas: como uma tentativa de chamar atenção e divulgar seu talento ou

como formação ou atualização profissional que, como mostramos, em ambos os

casos introjetando a ideia de que se trata de um investimento que trará benefícios

futuros; ou na forma do sub-emprego terceirizado, desvalorizado e

superexplorado, muitas vezes realizado em outros países.

Em relação ao trabalho precário como investimento, ele ocorre na

participação das listas de e-mail, no provimento de contribuições diretas ao código

efetuadas a partir de meios próprios de trabalho e se caracteriza por um constante

ir atrás, ou seja, uma posição de dependência de informações internas do projeto

que são compartilhadas seletivamente, as quais ele deve sempre estar buscando

para conseguir acompanhar o ritmo e participar. Nesse caso, quanto mais ele

conseguir se antecipar mais será bem sucedido. Ou, ainda, através da

participação em concursos e disputas por prêmios para a criação de um logo para

a comunidade284, para a criação de aplicativos285 e também na disputa por

investimentos da Nokia no desenvolvimento de um serviço ou ideia através de um

programa permanente que se voltava para os mercados emergentes286. Considero

interessante acerca do modelo de distribuição de prêmios que apesar de alguns

deles serem de quantias consideráveis, 50.000 dólares no caso dos aplicativos, e

até 1 milhão de dólares no caso do investimento em desenvolvimento da NOKIA,

284 Cf.: http://flors.wordpress.com/2008/06/18/call-for-artists-maemoorg-logo-contest/ .285 Cf.: http://flors.wordpress.com/2010/06/03/50-000-for-the-best-maemo-qt-nokia-n900-apps-and-more/.286 Cf.: http://callingallinnovators.com/ .

242

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apenas uma ou algumas poucas propostas podem ser contempladas, sendo que

muitas outras serão produzidas e, ao não serem contempladas no prêmio, não

receberão nenhum remuneração. Ao mesmo tempo que poderão ser aproveitadas

na produção, afinal, o código é livre. Outro aspecto, é que o prêmio serve como

uma maneira de consolidar uma mudança de rumo no desenvolvimento, de forçar

o deslocamento da atenção da comunidade para algum aspecto que é estratégico

para a NOKIA. No caso, o concurso a que me refiro, é para aplicativos baseados

na tecnologia Qt e todo o desenvolvimento do Maemo 5 havia sido desenvolvido a

partir de outra tecnologia, a GTK. Trata-se, portanto, de uma maneira sutil de

redirecionar o desenvolvimento e o interesse comunitário, fazendo com que ele

queira passar a explorar e aplicar as potencialidades da tecnologia Qt.

Em relação ao trabalho terceirizado e superexplorado, é válido destacar que

somente após o colapso das operações open source da Nokia algumas narrativas

sobre o processo de colaboração empresa-comunidade começaram a ser

produzidas e publicadas. É como se somente com o esgotamento da possibilidade

de reprodução desse arranjo, algumas características fundamentais para seu

funcionamento pudessem ser enfim reveladas. O que denota que os paradigmas

de organização aberta287, assim como nos modelos de negócio open source que

precisam sempre fechar a produção em algum ponto, não podem compartilhar

tudo sobre seus métodos. Durante o período em que realizei minha pesquisa,

entre 2008 e 2011, não vi nenhuma menção negativa aos métodos de trabalho

realizados em conjunto com a Nokia. A partir do final de 2012, mais de um ano

após o fechamento das operações open source da Nokia, é que algumas vozes

dissonantes começaram a falar.

Numa dessas narrativas que propõe uma reconstituição da história da

relação Nokia-Mameo/MeeGo (Kurri, 2012), o autor do texto, um jornalista

finlandês que desfrutava de uma certa proximidade com funcionário da Nokia e

membros da comunidade MeeGo, entrevistou 10 pessoas, que preferiram

287 Cf.: http://flors.wordpress.com/2008/05/04/the-paradigm-of-the-open-organization/

243

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manter-se anônimas. Nestes relatos aparecem descrições de um arranjo produtivo

baseado sobretudo em sub-contratos, ou seja, na entrega de parte da produção e

do desenvolvimento para outras empresas, muitas delas localizadas na Índia, na

China e no Japão. Esta opção é apontada como uma alternativa para evitar

processos burocráticos. E, além disso, traz os benefícios para quem contrata da

flexibilização das relações de trabalho. Não deixa de ser Interessante que a

reflexão dos ex-funcionários finlandeses acerca das implicações desses

sub-contratos refira-se somente à baixa qualidade do código e não a qualquer

aspecto político ou social. Na narrativa que Sampsa Kurri produz, a alocação de

trabalhadores despreparados, mal remunerados e com péssimas condições de

trabalho, ao longo do tempo, produziram resultados que prejudicaram a qualidade

dos produtos.

No caso do trabalho comunitário feito como investimento ou mobilizado a

através da sedução de prêmios e possibilidades de trabalho, Matteo Pasquinelli

(2008) classifica essa categoria de trabalhadores de precariado, numa alusão a

condição de constante precariedade que caracteriza as relações de trabalho com

as quais se engajam e as formas de vida que experimentam, na qual os meios –

criatividade, linguagem, conhecimentos, contatos – são sempre deles, mas nunca

o suficiente para que não dependam de uma empresa ou instância externa que

dita o ritmo e lhes faz trabalhar mais do que o necessário.

Esta proposição de Pasquinelli pode ser amplificada pela leitura que Dmytri

Kleiner (2011) faz dos efeitos da vinculação do trabalho colaborativo do software

livre, da cultura livre e de redes livres com o financiamento de empresas

capitalistas privadas. Este vínculo entre colaboração, produção de valor e

reprodução do capital esgota qualquer potencial emancipador pois estas

atividades realizadas sob o signo da liberdade só são sustentáveis na medida em

que servirem os interesses do capital. Em suas palavras: “O financiamento

capitalista significa que somente o capital pode permanecer livre288”.

288 “Capitalist financing meant that only capital could remain free”. Cf.:

244

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O hacker se converte em empreendedor e quanto melhor conseguir

combinar capacidade de desenvolvimento de código com a capacidade de

articular e mobilizar redes maior será seu prestígio tanto dentro das redes de livre

colaboração quanto perante às empresas que se projetam para a captura e o

aproveitamento do valor produzido por essas redes através de relações de

colaboração. Se esta posição é para poucos e depende da separação entre uma

zona fechada e uma zona aberta, cabe indagar como e porque as redes abertas

continuam aderindo a esses arranjos, uma vez que fica cada vez mais evidente

que contrariam práticas e princípios do software livre. A quem serve a inovação

produzida nesse tipo de trabalho?

Ninguém adere a uma comunidade contra a própria vontade. A própria ideia

de comunidade pressupõe alguma comunhão, algo em comum. Não à toa uma

das imagens preferidas para descrever os novos arranjos de produção social é a

dos commons, territórios cujos recursos são compartilhados e a relação de posse

é determinada por uma relação de uso e não por um direito de propriedade

abstrato e externo.

Nesse sentido, Bernard Aspe e Muriel Combes são taxativos, não

conseguem conceber como uma economia do imaterial ou da informação pode

funcionar sem suscitar uma nova forma de servidão voluntária.

Etienne de La Boétie, num texto escrito no século XVI, o “Discurso sobre a

Servidão Voluntária”, interessado no funcionamento e no sentido da submissão

social, no porquê as pessoas aceitavam a condição de súditos de um Rei, ou

aceitam a obedecer contra elas, define dois tipos de submissão. Uma submissão

que é imposta pela força, na qual há um conflito entre no mínimo duas partes,

sendo que a perdedora é obrigada a submeter-se; e, outra, na qual a submissão é

uma escolha, como que o resultado do cálculo de que é melhor abrir mão de sua

liberdade por alguma compensação que a submissão proverá.

http://www.furtherfield.org/features/interviews/interview-dmytri-kleiner-authour-telekommunist-manifesto .

245

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Qual seria, então, essa compensação que justamente quando os commons

oferecem uma linguagem que aponta para a possibilidade de entendimento e de

compartilhamento de recursos essenciais, que possibilita a criação e o

estabelecimento de novas práticas sociais e a constituição de um meio comum,

faz com que indivíduos e redes optem pela adesão e pela sujeição?

Trata-se então de saber como é forjada uma apropriação soft, tão suave,

quase imperceptível, que pode até ser sentida e experimentada como liberdade.

246

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3.7 ESTRANHA SÍNTESE, IMPENSÁVEL CONJUNÇÃO, INOMINÁVEL REALIDADE

O antropólogo Pierre Clastres (1982: 113-116) em uma leitura sobre o

clássico “Discurso da Servidão Voluntária”, escrito no século XVI pelo filósofo

francês Etienne de La Boétie, escreve o texto “Liberdade, Mau Encontro,

Inominável”, no qual tenta entender o que leva um homem livre a escolher a

alienação. Na concepção de La Boétie, o homem é “o único nascido de verdade

para viver francamente”, no que Clastres complementa: “ele [o homem], por

natureza, é um ser-para-a-liberdade”. De forma que a perda da liberdade exerce

seus efeitos “no próprio plano da natureza humana”, dando origem a um “homem

desnaturado”.

O homem desnaturado “existe na decadência por que perdeu a liberdade,

existe na alienação porque deve obedecer”. No entanto, obedecem “não forçados

e constrangidos, não sob o efeito do terror, não por medo da morte, mas

voluntariamente”. Obedecem, portanto, “porque tem vontade de obedecer,

encontram-se na servidão porque a desejam”. No que Clastres chega então a uma

formulação interessante:

Essa é no entanto, a nova maneira como o homem se apresenta: desnaturado, mas ainda livre, porque escolhe a alienação. Estranha síntese, impensável conjunção, inominável realidade. A desnaturação (…) engendra um homem novo, de tal modo que nele a vontade de liberdade dá lugar a vontade de servidão. A desnaturação faz com que a vontade mude de sentido, ela orienta-se para um sentido contrário.

Na minha tentativa de entender a diferença entre open source e free

software, segui a trilha de Adrian Mackenzie (2006) e busquei observar as

relações de vizinhança estabelecidas pelos códigos e seus contextos de produção

247

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e execução. Se no nível do código podemos considerar um mesmo conjunto de

códigos tanto como livre quanto como aberto devido à compatibilidade e até

mesmo coincidência de suas licenças, quando remetemos os códigos ao contexto

em que ele é executado, ou seja, expandindo o campo de percepção e

estendendo o código à sua vizinhança de relações sociais – processos de

associação que ele dispara ou nos quais se insere –, podemos observar quais

relações políticas são atualizadas. Nessa atualização é possível ver a própria

transformação do sentido político do trabalho de desenvolvimento de software

livre.

A ocorrência dessa sobreposição política cria as condições para que aquilo

que é produzido pelas redes e o próprio meio comum que esta produção informa

sejam apropriados e colonizados, ao mesmo tempo que resguardam uma brecha

para que a liberdade sempre possa se efetuar.

Se observarmos as quatro liberdades essenciais do software livre (vide item

2.1 do capítulo 2) veremos porque acesso ao código fonte não é tudo, mas

pré-condição para liberdade; o início da problematização, não a solução dos

problemas. Stallman afirma que o acesso ao código fonte não é tudo, em relação

ao pressuposto do open source, para reforçar as 4 liberdades do software livre,

que são totalmente anuladas quando um software livre é, por exemplo, embarcado

em um dispositivo que possui DRM. E, também, para reforçar que, no limite, se

trata de defender a liberdade e de promover a cooperação, a solidariedade social,

de “tornar o mundo um lugar melhor”.

A partir da perseguição da experiência da Nokia que aqui foi exposta, na

qual o chefe de suas operações open source fala aberta e explicitamente da

aceitação e convivência do open source com o DRM, quando observamos a

conexão do código com sua vizinhança, entendemos o enunciado de Stallman.

Pois estamos diante da projeção de um modo de produção que converte aquilo

que era para ser, ou que ao menos poderia ser, trabalho de liberdade – o

desenvolvimento de software, sistemas e máquinas que não restringem a

248

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liberdade do usuário, e portanto proporcionam liberdade – em um trabalho que

produz restrição de liberdade.

Como já apontamos, os modelos de negócio open source precisam

necessariamente fechar o processo em algum momento. Em algum ponto a

produção precisa ser travada, para que uma exclusividade e/ ou uma vantagem

competitiva possa ser produzida e um valor extraído. E isso fica claro na imagem

abaixo, que encerra uma apresentação em powerpoint que visa instigar o leitor –

que sempre pode ser um colaborador em potencial –, caso ele queira saber mais

sobre o assunto, a participar de um encontro da comunidade Maemo.

FIGURA 09: «Follow me, I got the key» (JAAKSI, 2008)

A imagem traz duas mulheres, uma branca e outra negra, e um homem

branco, que da rua olham através de uma pequena janela incrustada na parte

superior de uma porta fechada, o que se passa dentro de um galpão.

249

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Considero esta imagem bastante significativa, pois informa as habilidades

básicas para o novo modo de produção: curiosidade, disposição, disponibilidade,

mobilidade – no sentido de poder e saber estar e se colocar no lugar certo e na

hora certa – e também a importância da diversidade cultural e étnica e, acima de

tudo, de entusiasmo para ir atrás. Além disso, a imagem também permite a

visualização da existência de diferentes graus de abertura, afinal, ela não é para

todos: não é qualquer um que consegue entrar ou saber o que se passa do lado

de dentro. É preciso ficar nas pontas dos pés para conseguir enxergar. A abertura,

portanto, mesmo que se reconheça e que conserve seu potencial de entrada e

saída, acaba funcionando mais como entrada, possibilidade de conexão, de

captura: funciona para fazer o que está fora entrar, de maneira seletiva. Não é

tudo nem todos que conseguem entrar.

A partir da análise da experiência da NOKIA que aqui foi exposta, vimos que

a eficácia de um modelo de apropriação baseado numa relação mais flexível com

a propriedade do código necessita de algumas zonas fechadas, ou da convivência

do tecnologias livres com mecanismos de restrição e com tecnologias fechadas e

proprietárias.

A liberdade não pode ser confundida com a ausência de propriedade

expressa sobre o código ou parte do código, ou pela apropriação sem propriedade

praticada pela NOKIA. A efetuação do lucro, renda ou valor, ocorre não sobre o

código que foi desenvolvido e ao qual o acesso é aberto e livre. É preciso no

entanto processar o sentido desse acesso ao código como garantia e condição

para que se possa contar com o trabalho alheio de maneira gratuita.

Nesse sentido, é pertinente a constatação de Mateo Pasquinelli (2008) de

que todo negócio baseado em bens imateriais possui uma contrapartida material,

justamente onde e quando a apropriação e a restrição de liberdade se efetuam.

Contudo, como ficamos diante das seguintes constatações: apropriação

sem propriedade, apropriação de trabalho sem conflito, exploração vivida como

liberdade em um processo em que a adesão é voluntária? É realmente complicado

250

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conseguir descrever e entender a estranha síntese, impensável conjunção e

inominável realidade que faz com que no momento em que as redes de

colaboração possuem todas as condições para produzir tecnologia livre e de

acordo com seus próprios interesses, e no momento em que o planeta e a própria

humanidade dependem do desenvolvimento de tecnologias que revertam o ciclo

de destruição que ameaça as condições ecológicas de continuidade da vida, a

única linguagem política queparece mobilizar os desenvolvedores é no sentido de

produzir inovação. Uma inovação inócua, pois aplicada somente a novos produtos

e serviços totalmente inseridos na lógica do consumo e voltadas para a criação de

novos modos de servidão.

Porém, a partir das expressões de conflito mapeadas na análise das

controvérsias suscitadas pelo lançamento do sistema Maemo 5 (seção 3.5 deste

capítulo) e da proposta de método derivada do conceito de vizinhança de relações

de Mackenzie, acredito que é possível, ao menos, entender para onde a

contradição se desloca, onde ela ocorre.

Se a contradição não emerge dentro daquilo que estamos enxergando

como “modo de produção” talvez seja porque não estejamos enxergando o “modo

de produção” em sua completude; ou num espectro de relações suficiente para

abarcar toda a extensão de sua rede. Encarando o problema sob uma perspectiva

“unidimensional” – para utilizar um termo nativo, empregado por um comentador

anônimo do blog do funcionário da Nokia e membro da comunidade Maemo289 – e

restrita, ou seja, somente abarcando a produção de código, não conseguimos dar

conta de todas as “contrapartidas materiais” às quais se refere Pasquinelli e que

ao mesmo tempo complementam e possibilitam a realização econômica da

produção de código.

O conflito aparece quando a liberdade do software livre se sobrepõe a

alguma outra liberdade. Como quando o consumo de banda larga através de

smartphones que rodam com software livre drena recursos de continentes inteiros

289Cf.: http://flors.wordpress.com/2009/08/27/software-freedom-lovers-here-comes-maemo-5/#comment-1767

251

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e inseridos em contextos em que faltam tanto a contraparte cultural e educacional

necessária para operar e processar as informações acessadas, quanto pela falta

de condição técnica, pois as condições de acesso são péssimas se comparadas

com a de países como Japão e Finlândia – países produtores e exportadores de

tecnologia – e proporcionalmente muito mais caras.

FIGURA 10: «SailfishOS Girls: Unlinke?» Barcelona, 2013290.

O conflito aparece quando tecnologias livres são empregadas para o

rastreamento, vigilância e controle da comunicação de uma população, tanto em

290 Para fonte e referências sobre a imagem ver: http://cteme.sarava.org/Main/Jolla .

252

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democracias quando em regimes autoritários291.

O conflito aparece quando é no corpo de uma mulher que o código se

inscreve para que uma nova tecnologia open source seja promovida. No caso,

ainda acompanhada do slogan “Unlike”, que pode ser traduzido por: contrário,

diferente, distinto, diverso, dissemelhante, não parecido... resta saber a quê.

291 O exemplo já citado do consórcio entre Nokia e Siemens que forneceu tecnologias de vigilância, rastreamento e controle do tráfego de dados da internet para o Irã, em um contrato de 619 milhões de dólares, torna-se ainda mais interessante quando, para se defender, as empresas alegam que forneceram equipamentos desenvolvidos dentro do conceito de “interceptação legal”, que são utilizados “por muitas, se não todas” companhias de Telecom do Ocidente, para combater terrorismo, pedofilia e outros crimes e fraudes cometidos online. Cf.: https://cteme.sarava.org/Main/Ira2009 .

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4. SOFTWARE LIVRENA AMÉRICA DO SUL

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FIGURA 11: «Armazém de computadores obsoletos da UFAM», Manaus, 2005

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4.1 A LIBERDADE DE NÃO PAGAR COMO SOBERANIA TECNOLÓGICA

Eu lembro da primeira reunião que nós fizemos, na Granja do Torto, em que eu entendia absolutamente nada da linguagem que esse pessoal decidia, e houve uma tensão imensa entre aqueles que defendiam a adoção no Brasil do software livre e aqueles que achavam que nós deveríamos fazer a mesmice de sempre, ficar do mesmo jeito, comprando, pagando a inteligência dos outros e, graças a Deus, prevaleceu no nosso país a questão e a decisão do software livre. Nós tínhamos que escolher: ou nós íamos para a cozinha preparar o prato que nós queríamos comer, com os temperos que nós queríamos colocar e dar um gosto brasileiro na comida, ou nós iríamos comer aquilo que a Microsoft queria vender para a gente. Prevaleceu, simplesmente, a ideia da liberdade.

Luiz Inácio Lula da Silva292

Este capítulo trata do processo de incorporação do Software Livre na

América do Sul privilegiando as experiências realizadas no Brasil e no Equador,

que são abordadas a partir de escalas diferentes. O objetivo é analisar as

experiências que mobilizam o software livre em projetos, apesar da diferença de

escala das abordagens, de soberania tecnológica e cultural. No caso do Brasil, a

análise é realizada a partir do relato de uma experiência local na qual o software

livre é articulado a uma estratégia de sobrevivência e desenvolvimento de uma

cultura tradicional. No caso do Equador, a análise é realizada a partir de um

decreto presidencial e, portanto, numa perspectiva do Estado. Em ambos os

casos, voltamo-nos a uma característica própria do software livre que aparece no

contexto sul-americano de uma maneira muito diferente de como aparece em seu

contexto original293: a possibilidade de acesso gratuito ao software devido à

292“Discurso do Presidente Lula no FISLv10”: http://softwarelivre.org/portal/fisl10/veja-escute-e-leia-na-integra-o-discurso-do-presidente-lula-no-fisl-10

293De certa forma, essa proposição pode ser expandida para todos os países do Terceiro Mundo, como comprova a experiência realizada na província de Kerala, na Índia (vide ANEXO WK-25). No entanto,

259

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liberdade do software livre.

Os ativistas mais radicais do software livre, desde o início de seu

movimento, buscam evitar que o sentido de gratuidade que o termo free comporta

na língua inglesa se sobressaia ao sentido de liberdade. E costumam defender a

ideia de que os benefícios e vantagens do software livre não consistem em uma

questão de preço, mas em uma questão de liberdade294.

Com efeito, a gratuidade não é um objetivo do software livre. Em sua

principal licença, a GNU/GPL, há a menção explícita à possibilidade e mesmo

direito a comercialização de cópias de um software. Tampouco é o software livre

um movimento que se opõe ao aproveitamento econômico de seus produtos. Ao

contrário, como mostramos nos capítulos anteriores, o software livre pode mesmo

tirar vantagens e se expandir através desse tipo de apropriação e, por isso, a

incentiva. E, em alguns casos, a exploração comercial – quando voltada para

fomentar a reprodução do trabalho e não a acumulação do capital – pode ser uma

liberdade em si mesma (Kleiner, 2006).

No entanto, o que pretendemos aqui é abordar um efeito possível da

liberdade número dois das quatro liberdades essenciais do software livre. Um

efeito que demarcamos como uma consequência e não um imperativo do software

livre.

A liberdade número dois está definida da seguinte forma:

• A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar seu vizinho (liberdade 2).

como não realizei pesquisa sobre outros contextos, e para evitar generalizações falsas e exageradas que, no limite, apenas enfraqueceriam a discussão, prefiro remeter a reflexão somente para o contexto de nosso sub-continente, pois, ademais, acredito que as experiências aqui possuem suas especificidades, e é na exploração delas que estou interessado.

294Em português chega até a ser difícil explicar essa controvérsia conceitual, pois em nossa língua não há ambiguidade entre livre e grátis. Há um famoso enunciado que ao mesmo tempo coloca e resolve a ambiguidade da seguinte forma: “free software” is a matter of liberty, not price. To understand the concept, you should think of “free” as in “free speech,” not as in “free beer”. Cf.: http://www.gnu.org/philosophy/free-sw.en.html .

260

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Este enunciado que, à primeira vista parece simples, possui importantes

implicações. É uma liberdade essencialmente coletiva, pois pressupõe o

compartilhamento e a cooperação. Contudo, ainda que não seja esse seu principal

objetivo, a liberdade de redistribuir cópias tem como consequência pragmática a

possibilidade de que não seja necessário pagar para utilizar um programa. E

proponho que esta possibilidade seja processada como liberdade de não pagar.

Faço essa proposta, pois entendo e defendo que a possibilidade de que os

programas sejam utilizados sem que seja necessário pagar por uma licença

desempenhou um papel fundamental na determinação do modo como o software

livre foi incorporado nas agendas políticas locais e evoluiu na América do Sul.

Além disso, permitiu que em relação ao software fosse revertido – ou, no mínimo,

abriu um potencial para a reversão de – um esquema dominação internacional que

foi desenhado e instalado no âmbito do fim da Guerra Fria e que foi impulsionado

pela primeira onda de globalização centrada no eixo euro-americano. Este

esquema configurou uma disposição de forças em que o conhecimento

tecnocientífico do Norte passou a ser protegido por dispositivos de propriedade

intelectual, e que pudessem ser aplicados de maneira legítima para a apropriação

informacional da biodiversidade e do conhecimento humano em suas diversas

formas, produtos e processos. A implicação geopolítica desse esquema foi a

exacerbação da diferença de condições entre os países do Norte e do Sul de

acessarem e de produzirem tecnologia, garantindo e favorecendo a primazia do

Norte sobre o Sul.

A partir da leitura de Vandana Shiva (2005: 320-322) podemos

compreender o processo de advento e aplicação de dispositivos de propriedade

intelectual como “o centro de um novo colonialismo”. Sob uma “reivindicação da

invenção”, de sua recompensa e de sua promoção (incentivo), “esconde-se o

objetivo real – o controle sobre a economia global”.

O software proprietário também pode ser visto pela mesma chave, ou seja,

como um dispositivo de colonização. Em ambos os casos, o efeito é duplo:

261

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coloniza o potencial de evolução do conhecimento humano ao impedir o acesso

ao código fonte e a exploração coletiva e compartilhada de seus potenciais;

implica numa colonização econômica, pois cria uma dependência em relação a

pequenos oligopólios globais baseados nos países do Norte, resultando em

gigantescos fluxos de recursos e riquezas que sangram as economias do Sul e

impedem que investimentos estratégicos sejam realizados para a criação das

bases de um desenvolvimento tecnológico local e que, consequentemente,

perpetuam a relação de dependência.

É, primeiramente, nesse sentido, de suas implicações geopolíticas, que

considero importante destacar que a gratuidade não deve ser vista como um fator

depreciativo em relação à liberdade. Obviamente, se o software livre tivesse sido

incorporado no Sul apenas como uma questão de economia de recursos, seus

efeitos não teriam a mesma importância. Por isso, pretendo mostrar aqui de que

forma gratuidade e liberdade se encontram de maneira positiva, ou seja, como a

gratuidade funciona como vetor de liberdade, e, assim, como liberdade de não

pagar.

Esta proposta será complementada com a análise realizada nos estudos de

caso apresentados a seguir. No primeiro, um povo indígena pode potencializar sua

apropriação tecnológica pela economia de recursos que seriam gastos com

licenças de uso, com um ganho direto em autonomia e no estabelecimento de

redes de colaboração e de conhecimento que impulsionam não o acesso ao

mundo do consumo das tecnologias, mas os aproximam do universo da produção

de conhecimento e de tecnologia e de uma apropriação adequada a suas

necessidades e anseios. No segundo, vemos um país que se reconstrói após o

desastre do neoliberalismo e passa a ter a perspectiva de produzir tecnologia.

De forma que acredito que nessas experiências de incorporação do

software livre na América do Sul, observamos uma radicalização e amplificação

das premissas do software livre, que vão além de seu conflito tecnopolítico

original, que possuem implicações geopolíticas e possibilidades ecológicas. E

262

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acredito que a gratuidade está no centro dessa articulação.

Diferente dos países do Norte, onde o acesso às tecnologias não era uma

questão política, pois a tecnologia é produzida nesses países, no Brasil, no

Equador e nos outros países da América do Sul, a questão tecnológica sempre foi

uma questão de falta e de atraso. Atraso este que não é simples decorrência de

algum tipo de inferioridade estrutural, mas de consequências estruturantes

decorrentes daquilo que, como acabamos de ver, nos fora reservado em um

sistema mundial por um modelo de desenvolvimento externo: voltado para

acompanhar e seguir os padrões e os modelos de desenvolvimento de fora, e

voltado para, a partir de dentro, desenvolver “o fora”. Ou seja, organizar e efetuar

as extração das riquezas do povo e da terra e entregá-la para os países centrais.

Dessa forma, no momento em que a digitalização começava a avançar num

plano mundial, e já dava mostras de que seus impactos seriam definitivos para a

economia, a política e a cultura, em grande parte do mundo, a principal questão

tecnológica era superar o que parecia ser a criação de uma nova fronteira que

acentuaria ainda mais as divisões do mundo: uma fronteira digital295.

Nesse sentido, é interessante ver que a liberdade número 2 do software

livre foi apropriada de uma maneira que certamente extrapolou seus objetivos

iniciais. A “liberdade de redistribuir cópias de forma que você possa ajudar o seu

vizinho” sempre que evocada e explicada por Richard Stallman, seu criador, ou

por outros ativistas do software livre, geralmente abarca o universo relacional de

um programador ou de uma comunidade específica, e, no máximo, de uma ideia

universalista da “comunidade software livre” ou “movimento software livre”

tomados como um todo abstrato e não-localizado.

Formatada para permitir uma prática social básica e fundamental para o

desenvolvimento coletivo dos programas – o compartilhamento e a cooperação –

a liberdade número 2 permite que os programas sejam copiados sem custos.

295O termo fronteira digital é mais utilizado na língua inglesa. Por aqui, prevalecia o uso da expressão exclusão digital, que seria uma situação análoga e decorrente da exclusão social. Para dados complementares consultar: ANEXO WK-24

263

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Possibilidade essa que, por aqui, significava economia de um enorme montante de

recursos públicos que anualmente eram investidos na renovação e aquisição de

licenças de uso de softwares proprietários. Porém, mais do que uma questão de

recursos não gastos, a liberdade de não pagar associada às outras liberdades do

software livre possibilitou a criação de uma nova linguagem para se pensar o

desenvolvimento tecnológico.

Se o primeiro fator a contar a favor do software livre era a possibilidade do

free significar grátis, o potencial do free enquanto livre não se apagara. O

potencial educacional e cultural foi logo reconhecido, assim como a possibilidade

de alavancar o desenvolvimento de uma indústria nacional. Aos poucos, a filosofia

do software livre foi sendo apreendida localmente e adaptando-se à retórica

política local, sendo incorporada por atores dos mais diferentes matizes

políticos296.

Em um discurso bastante livre e espontâneo realizado em 2009, durante o

FISL 10, em Porto Alegre, relembrando o dilema colocado pela opção pela adoção

do software livre no início de seu governo, o presidente Lula, bem a seu estilo,

sintetizou de maneira interessante essa articulação positiva entre liberdade e

gratuidade. Reconstituindo o processo de tomada de posição a favor do software

livre no início de seu primeiro governo, colocou a questão como uma escolha entre

a “mesmice de sempre, de ficar do mesmo jeito, continuar comprando, pagando

pela inteligência alheia” ou de pensarmos com nossas próprias cabeças. Em

seguida, no que demonstra o modo como o potencial de liberdade do software

livre é amplificado no encontro com o contexto político local, fala que opção da

adoção do software livre estava ligada à possibilidade de “re-inventar o que

precisava ser re-inventado”, dentro de um projeto do “país se re-encontrar consigo

296 A esse ponto, basta ver a mesa de abertura do Seminário “Software Livre no Congresso Nacional”, realizado em agosto de 2003: Senador José Sarney, Presidente do Congresso Nacional; Deputado João Paulo Cunha, Presidente da Câmara dos Deputados; Ministro José Dirceu, Casa Civil da Presidência da República; Ministro Gilberto Gil, Ministério da Cultura; Ministro Roberto Amaral, Ministério da Ciência e Tecnologia; Ministro Cristóvam Buarque; Miguel de Icaza, Presidente da Gnome Foundation; Richard Stallman, Presidente da Free Software Foundation.

264

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mesmo”.

A diferença proporcionada pelo software livre era percebida, então, como

uma oportunidade de não depender mais da liderança dos EUA e da Europa não

só em relação à aquisição e desenvolvimento de tecnologia, mas em uma

dimensão maior: não depender para elaborar um pensamento sobre o mundo e de

como o país e o povo podem se inserir e participar não de um mundo já dado e

dominado, mas de um mundo em formação. Portanto, uma oportunidade de

soberania e de criação297.

É preciso pontuar, no entanto, que para que nossa análise seja efetiva, não

basta que analisemos apenas os discursos oficiais dos políticos. Até porque, a fala

que tomo como referência foi proferida no penúltimo ano do governo Lula, num

tom de auto-reconhecimento de conquistas e que também identifica sagazmente

questões de soberania e de desenvolvimento que são urgentes. Contudo, a

mesma voz que discursa nessa direção, em outros momentos e em outros fóruns,

pode celebrar ideias que vão em uma direção totalmente contrária. Como, por

exemplo, na defesa de um modelo de desenvolvimento baseado na expansão da

fronteira agrícola para produção e exportação de commodities, cuja expressão de

sucesso é a quebra de recordes de venda de automóveis que depende de

incentivos fiscais para ser atingida e que implica em gigantescos montantes de

remessas de lucro para o exterior298.

Por outro lado, na prática, apesar do grande incentivo político, o Brasil não

conseguiu aprovar uma lei que estabelecesse a prioridade na adoção do software

livre por entidades públicas e governamentais em nível federal, estadual e

municipal. O projeto de lei que traz essas propostas, o PL 2269/1999299, foi

proposto em 1999, já recebeu várias propostas de emendas e de alteração

através de 6 outros projetos de leis. Desde 2011 o projeto encontra-se

297 Ver: “Discurso do Presidente Lula no FISLv10”, no ANEXO WK-19.298 A esse respeito, dos limites desse modelo de desenvolvimento que apontam seu esgotamento ver: “Outros

valores, além do frenesi do consumo”, entrevista de Eduardo Viveiros de Castro (2012). Cf.: http://www.outraspalavras.net/2012/09/20/outros-valores-alem-do-frenesi-de-consumo .

299 Cf.: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=17879 .

265

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encaminhado para ser votado, mas ainda não entrou na pauta de votação. Além

disso, através do parecer da relatoria300, no caso realizado pela Deputada Luiza

Erundina, é possível identificar a existência de margens de manobras e de

brechas suficientes para os efeitos das propostas sejam dribladas e neutralizadas.

Como na substituição da “obrigatoriedade” por uma “preferência” que, para ser

efetivada, ainda precisa se comprovar mais barata e mais adequadas “às

necessidades da organização”, critério um tanto vago. De forma que, ainda que se

reconheça alguma intenção em defender uma posição favorável ao software livre,

a proposta acaba por evitar uma posição radical – que é necessária e a mais

adequada, em minha leitura – e por estabelecer parâmetros que permitem a

flexibilização e a neutralização da proposta.

E isso pode ser visto principalmente no que concerne à recusa em definir

uma posição favorável aos formatos abertos de documento, a opção pelo padrão

ODF301. A proposta feita pelo Deputado Paulo Teixeira (PL 3.070/08) é flexibilizada

de modo a não “incluir padrões tecnológicos”, dando a entender que é preciso

respeitar uma certa neutralidade para que a proposta não seja restritiva o que, na

prática, favorece somente os interesses da uma empresa estrangeira (Microsoft)

cujo padrão é justamente o que impõe restrições.

Por fim, acerca deste projeto de lei, é interessante ver como a

procrastinação democrática acaba favorecendo um posicionamento dúbio que

evita um enfrentamento explícito e a tomada de uma posição inequívoca. O

governo pode, então, apoiar e adotar software livre em todos os setores em que

possui autonomia e controle direto (vide o documento “Guia Livre - Referência de

Migração para Software livre302”), ao mesmo tempo que não bate de frente com o

300 Cf.: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=776289&filename=PRL+1+CCTCI+%3D%3E+PL+2269/1999

301 “Com relação à adoção de formatos padronizados, tal como o sugerido ODF, entendemos que a Lei não deve incluir parâmetros tecnológicos de modo tão específico e preferimos remeter seu detalhamento à regulamentação. Acatamos, pois, o princípio, na forma do Substitutivo, admitindo que o texto permaneça suficientemente flexível para recepcionar a adoção de formatos abertos de maior disseminação ou mais apropriados para determinadas aplicações”

302 Cf.: http://www.governoeletronico.gov.br/acoes-e-projetos/guia-livre .

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mercado, inclusive permanecendo cliente dele – provavelmente o maior. Ao não

encaminhar o projeto para votação, abre-se a possibilidade de desfiguração de

suas propostas originais através da inclusão de brechas como as que acabamos

de identificar. Além disso, cria-se uma situação de indecisão que comporta

múltiplas relações políticas, ou seja, engajamento promíscuo com todos os lados

em disputa. Por um lado, não se assume o ônus político de contrariar uma

demanda do movimento software livre e da sociedade civil com a não aprovação

do projeto. Por outro, não se explicita uma posição conflituosa com o capital

internacional que depende do mercado de compras públicas baseado no software

proprietário.

Contudo, mesmo reconhecendo que há uma distância grande entre

discurso e prática, o valor da referência a enunciados como o de Lula é

justamente mostrar o tipo de material político que o software livre mobiliza na

América do Sul. Ademais, para não ser injusto, são inegáveis as conquistas do

software livre realizadas em seu governo no que concerne a exploração de seu

potencial cultural e educacional através das experiências dos Pontos de Cultura,

do Projeto GESAC, das Casas Brasil, Telecentros BR, Portal do Software Público

Brasileiro. Assim como na recuperação de empresas estatais como SERPRO e

DATAPREV que depois de anos de retração e sucateamento voltaram a

desempenhar um importante papel de desenvolvimento.

Em um panorama geral da América do Sul, as experiências de Brasil e de

Venezuela são as principais referências. Se o Brasil se destaca pela qualidade e

mobilização de um movimento social bastante ativo, e por um apoio político do

governo que mesmo não tendo sido implementando enquanto lei, como

mostramos, e que sofre com "a carência de uma maneira mais eficaz de

direcionar o uso de Software Livre no governo" (Machado et al., 2010), obteve

grandes conquistas, a Venezuela foi o primeiro país a estabelecer de maneira

clara uma opção estratégica pelo software livre, através do decreto presidencial

número 3.390 de 23 de dezembro de 2004. Quando analisamos as propostas e

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projetos de adoção estratégica do software livre no Equador, vemos claramente a

importância e a influência dessas duas experiências.

Em todas essas experiências, a noção de Soberania toma uma forma muito

parecida – vide a “Declaração de Caracas” (FSFLA, 2009303) – a qual podemos

definir como contendo e enfatizando os seguintes aspectos: autonomia

tecnológica; confiabilidade e estabilidade; segurança; economia de recursos;

desenvolvimento da indústria nacional.

Por autonomia tecnológica podemos entender a superação da condição de

dependência que, na maioria das vezes, se referia à dependência em relação a

uma empresa, a Microsoft. No seminário “O Software Livre e o Desenvolvimento

do Brasil” organizado em parceira pelo Senado e a Câmara dos Deputados em

agosto de 2003, o então Ministro da Ciência, Roberto Amaral, afirmou que o país

gastava 1 bilhão de dólares por ano com a Microsoft, entre aquisições e

renovações de licenças. Enquanto Marcelo Branco projetava que a indústria

brasileira de software movimentava 3,5 bilhões de dólares por ano enquanto

pagava 1,2 bilhões em royalties – o que representava o dobro do orçamento do

Ministério de Ciência e Tecnologia.

A questão da confiabilidade e da estabilidade remete à possibilidade dos

governos não dependerem exclusivamente de um provedor de serviço para

adaptarem, corrigirem e desenvolverem alguma funcionalidade de um software e

também ampliarem as possibilidade de auditabilidade dos sistemas. Se o código é

proprietário, apenas a empresa que detém os direitos e o segredo do código pode

acessá-lo e efetuar essas operações. De forma que o cliente fica refém do preço

que a empresa quiser cobrar e da disponibilidade da empresa em realizar o

serviço. Se o código é livre qualquer empresa pode assumir um serviço

implementado por uma outra empresa, o que permite não só a busca por preços

mais justos pelo serviço, quanto quebra com a relação de dependência do

produtor original. Além disso, aproveita-se a possibilidade de acessar os

303 Cf.: http://www.fsfla.org/ikiwiki/anuncio/2009-07-declaracion-de-caracas.pt.html .

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benefícios produzidos pela rede de usuários do mesmo software, ou seja, se

alguma implementação for produzida por outro usuário a mesma pode ser

aproveitada sem custos. Padrões abertos tendem a ser mais estáveis no que

concerne a aplicação de serviços não muito específicos, na medida em que são

utilizados e testados em diferentes contextos, expostos a diferentes inputs e

podendo se beneficiar pelo desenvolvimento compartilhado.

Em relação à questão da segurança, se setores estratégicos de um país

dependem de software proprietário para operar seus sistemas e sua infraestrutura,

não podem saber o conjunto completo das operações realizadas por esses

softwares: se há algum tipo de back-door aberta, se há a operação de algum

software de espionagem e de coleta de dados, se há a restrição proposital em

alguma funcionalidade ou mesmo se há dispositivos programados para sabotar e

bloquear alguma função em caso de necessidade. Mais que uma questão de

privacidade, trata-se de uma questão de segurança nacional. Nesse sentido, cabe

a referência ao “Plano de Migração para Software Livre” do Exército Brasileiro, de

2007, que apresenta a consolidação da opção pela adoção do software livre, que

é apresentada com uma consideração definitiva e que visa obter índice máximo de

sua utilização e aplicação em todas as unidades do Exército em todos os escalões

(EB, 2007)304.

A economia de recursos é, como sustento nesse capítulo, o benefício mais

evidente e o que costuma ser apresentado como um dos primeiros aspectos em

qualquer proposta e discussão. Baseando-me novamente no seminário “Software

Livre e o Desenvolvimento do Brasil” através do relato de Leonardo Lemes (2003)

– um dos raros documentos que tratam desse seminário que considero portador

de grande importância histórica – o então Ministro Roberto Amaral afirmou que no

304 A esse respeito é válido conferir uma reportagem de Ricardo César para o jornal Valor Econômico, em 2005, intitulada “Forças Armadas adotam software livre”, que apresenta números do processo de migração do Exército para o software livre desde o início dessa iniciativa em 2004. A reportagem pode ser acessada pelo site da SERPRO: http://www4.serpro.gov.br/noticias-antigas/noticias-2005-1/20050617_02 .

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setor de software no período entre 1993 e 2002, “as remessas ao exterior por

conta de direitos autorais superaram os 5,7 bilhões de dólares”. E destaca que a

taxa de crescimento dessas remessas “foram assombrosas”: de 72 milhões de

dólares em 1993, para mais de 1 bilhão de dólares nos últimos quatro anos do

período. E pontua que, em contrapartida, nos anos de 2001 e 2002, as receitas

provenientes do exterior pelo pagamento de direitos autorais de software haviam

alcançado o valor anual de 100 milhões de dólares. De forma que podemos ver

que, além do gasto excessivo e majoritariamente desnecessário, há a implicação

de danos para o cálculo da balança comercial.

No que se refere ao favorecimento a uma industria nacional, ainda que não

tenha dados precisos para fundamentar uma análise mais profunda e que possa

fornecer indicadores concretos, os próprios planos e programas de migração

abrem um amplo campo para a atuação de empresas de software seja através de

serviços de migração de sistemas, ou pelas novas demandas de serviço que a

infraestrutura baseada em software livre irá oferecer. A título de projeção, e a partir

do cálculo dos gastos do ano de 2003 no Brasil, se os gastos de 1,2 bilhões de

dólares em royalties fossem aplicados para a migração para o sistema livre a para

o desenvolvimento de novos programas e serviços, isso significaria um aumento

de 42% do mercado nacional. Por fim, dois aspectos precisam ser

destacados a respeito da experiência sul-americana de adoção do software livre e

o modo como esta se potencializa pela liberdade de não pagar: as implicações

culturais e as possibilidades de elaboração de novos modelos de

desenvolvimento, as quais considero como possibilidades ecológicas.

No campo cultural talvez estejam os aspectos mais valiosos da adoção do

software livre, os quais a longo prazo trarão mais benefícios e que mais podem

contribuir para a expansão da liberdade. O simples uso de software livre, no

sentido de ser aplicado para efetuar as mesmas tarefas que são efetuadas com

software proprietário, sobretudo em relação as novas práticas e estruturas de

redes centralizadas em serviços privados, de interação vigiada, controlada, restrita

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e voltada para o consumo, não implica em muitas diferenças culturais

significativas. No entanto, haverá sempre o potencial do engajamento em uma

rede de conhecimento, de colaboração e de compartilhamento. Haverá sempre a

possibilidade do aprendizado sobre os processos internos do computador e sobre

as estruturas do programa. A adoção e popularização do software livre propiciam o

desenvolvimento de uma outra cultura técnica, na qual a relação de uso de

computadores não se resume ao consumo de um serviço ou ao manejo de um

produto fechado e acabado.

Além disso, se tomarmos a diversidade cultural como uma característica

presente em todos os países de nosso Continente, o software livre aparece como

opção mais adequada do que a escolha entre uma ou duas linguagens

hegemônicas. Numa analogia, poderíamos dizer que o software livre é em si

mesmo um tipo de diversidade cultural da tecnologia, e suas diferentes versões e

customizações específicas podem fazer mais sentidos em alguns contextos que

outros, favorecendo uma multiplicidade de apropriações tecnológicas. A isso,

soma-se sua plasticidade inerente, ou seja, a possibilidade de ser adaptado para

usos específicos, que pode ser visto como uma abertura mais propícia a diferentes

inputs culturais. Sendo o mais evidente a possibilidade de tradução de sistemas

para línguas minoritárias (Caminati, 2012).

Em relação aos novos modelos de desenvolvimento, o que interessa aqui é

indicar que diante do contexto de crise do capitalismo financeiro e de esgotamento

ecológico da expansão da acumulação do capital, fica cada mais evidente que a

propriedade intelectual não só não é capaz de alavancar o desenvolvimento, como

pode ainda implicar no impedimento da criação de soluções para esse problema.

Como podemos ver no argumento de Konstantinos Karachalios (Karachalios &

Ernest, 2010), que durante anos trabalhou como diretor do Escritório Europeu de

Patentes (EPO). Em 2010, em evento realizado no Brasil, Karachalios afirmou que

“em tempos de mudanças climáticas”, o modelo europeu não pode mais sequer

271

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ser considerado como desenvolvimento305.

Se o modelo ocidental não pode ser mais considerado como

desenvolvimento, entendo que, assim como em relação a questão da diversidade

cultural, a opção pelo software livre comporta um potencial a ser descoberto e

explorado através do cruzamento com conceitos políticos locais como

Pachamama e Sumak Kawsay (bem viver), que apontam para uma relação mais

equilibrada com o meio e para a substituição do paradigma do crescimento e da

acumulação pelo da suficiência. Nesse sentido, os princípios do bem viver podem

ser aproximados de um conceito de bem funcionar para que seja capaz o

superação da ideia de inovação, cuja única função atual é justificar a

intensificação da acumulação do capital, de regimes de espoliação e promover

uma aceleração do desenvolvimento tecnológico que conduz para o esgotamento

ambiental.

O que procuramos mostrar aqui, e que a partir de diferentes escalas e

contextos pretendemos aprofundar através dos dois estudos de caso a seguir, é

que na América do Sul, a dimensão tecnopolítica do software livre foi atualizada a

partir das condições e características locais, e produziu formas de engajamento

com estratégias de desenvolvimento baseadas em: economia de recursos

públicos que antes eram gastos com o pagamento de royalties e de licenças de

uso; aplicação em políticas públicas de promoção de diversidade cultural e de

inclusão social; e estímulo à pesquisa, desenvolvimento e inovação para criação

de um mercado e uma indústria nacional de tecnologia e cultura capacitada a

atuar internacionalmente. Políticas que foram incorporadas como políticas de

Estado, num processo que já dura mais de 10 anos com notáveis realizações,

305 “Um problema contemporâneo é que em tempos das ameaças de mudanças climáticas fica cada vez menos evidente o que se deve entender por 'desenvolvimento'. Apesar do intenso proselitismo (missionizing) ideológico a seu favor, é cada vez mais claro, entretanto, que o paradigma da trilha ocidental para o desenvolvimento é claramente um não-caminho. E é preciso apenas um lápis e um pedaço de papel para descobrir em poucos minutos que a multiplicação do “total do número de pessoas na Terra versus Recursos usados per capita no Ocidente” simplesmente não equivale com o que o planeta pode oferecer”

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apesar da forte resistência enfrentada – através de tentativa de criminalização,

associação com pirataria e com terrorismo – e com muito ainda a conquistar.

Essa experiência sul-americana proporciona, portanto, uma perspectiva

interessante para o entendimento do sentido político do software livre ao oferecer

a possibilidade da contextualização de sua problemática num panorama

geopolítico, através do qual a questão pode ser ampliada para uma reflexão sobre

a função da propriedade intelectual no estabelecimento e manutenção de uma

desigual distribuição internacional tanto dos meios de produção quanto da riqueza

social produzida a partir de informação e de conhecimento. Assim como aponta

para novas possibilidades de desenvolvimento, cada vez mais prementes, e que

permitem a contextualização em um panorama ecológico que conecta a

informação à terra.

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4.2 ESTUDO DE CASO I: COLABORAÇÃO WEDERÃ – COMO LIDAR COM O WARADZÚ

Este item traz o relato de uma experiência realizada entre os anos de 2009

e 2011 através da qual, inicialmente sozinho e ao longo do processo em parceria

com mais duas pessoas, participei de um projeto para a instalação de uma

laboratório de edição audiovisual em software livre em uma escola que funciona

em uma Aldeia Indígena. Além da instalação do laboratório, este projeto abrangeu

também a realização de oficinas de formação, de eventos de divulgação cultural e

do registro filmado de um ritual que durou aproximadamente 10 meses.

O objetivo dessa seção é processar o sentido dessa experiência visando

oferecer uma perspectiva particular e localizada de uma experiência de

apropriação tecnológica na qual o software livre forneceu ao mesmo tempo o

conceito e a base material. O intuito é o de refletir acerca da especificidade do

papel do software livre nesse contexto: qual a diferença efetiva que ele

proporcionou e em que sentido sua liberdade foi apreendida. Começo com um

relato da trajetória que me levou a essa experiência e, em seguida, descrevo as

atividades realizadas. Por fim, desenvolvo a reflexão sobre o papel do software

livre em relação aos resultados alcançados ao longo do processo.

Antes, é preciso apenas um breve comentário acerca do modo como o

termo colaboração é utilizado aqui. Se no capitulo anterior, a relação de

colaboração aparecia por vezes em um registro invertido, ou seja, funcionando e

pendendo de maneira desequilibrada para um dos termos da relação, aqui a

relação de colaboração denota de fato uma articulação voltada para um objetivo

inequivocamente comum. Dessa forma, a escolha do termo é feita como uma

referência ao sentido original de produção colaborativa tal como mobilizada no

processo de criação do conceito de software livre. Além disso, visa também

demarcar que não se trata de uma atividade realizada como pesquisa para essa

tese, o que, mais adiante, será desenvolvido como uma questão política em

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relação à produção de conhecimento e em relação à hierarquia entre diferentes

epistemologias e formas de saberes.

No início de 2008 fui convidado a participar de uma reunião em uma aldeia

Xavante localizada na Terra Indígena Pimental Barbosa, que fica entre os

municípios de Canarana e Ribeirão Cascalheira, no Oeste do Mato Grosso306.

Nesta reunião, o conselho tradicional da Aldeia, o Warã, receberia um grupo de

pessoas de fora – um grupo de waradzú (estrangeiros) – para discutir propostas

para a execução de um projeto de Ponto de Cultura, para o qual acabavam de

receber, após quase três anos de espera, os recursos relativos ao convênio . Este

grupo seria reunido para compor o que chamavam de conselho externo, criado

para apoiar tecnicamente e fomentar com ideias a execução das atividades.

O Ponto de Cultura Apow'ê foi um dos primeiros projetos de Pontos de

Cultura sob responsabilidade de uma associação indígena, foi contemplado no

segundo edital desse programa do Ministério da Cultura, quando ainda não

haviam editais específicos para populações tradicionais. O escopo principal do

projeto era o trabalho com tecnologias de registro e de produção audiovisual

aplicado a projetos de memória cujo objetivo era produzir registros dos

conhecimentos tradicionais e de relatos dos conhecimentos dos mais velhos – os

anciãos, alguns deles nascidos ainda antes do contato definitivo ou pacificação do

brancos – tendo em vista o estabelecimento de uma interlocução com as futuras

gerações do povo Awu'ê Uptabi. A escolha dessa área de atuação decorria da

uma experiência prévia de trabalho com a produção de vídeos e filmes, iniciada

nos anos 1990 com apoio da antropóloga Laura Graham (LEAL, 2012).

Para formar este conselho externo, foram escolhidas e convidadas pessoas

de diferentes áreas de atuação – biologia, comunicação, pedagogia, educação

física, sociologia, saúde pública – e com diferentes tipos de experiência no

trabalho com povos indígenas, em contextos não-urbanos e com povos

tradicionais. Em uma composição que primava pela diversidade de abordagens e

306Cf.: http://ti.socioambiental.org/pt-br/#!/pt-br/terras-indigenas/3821 .

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de práticas de conhecimentos.

Fui convidado para fazer parte deste grupo devido a uma interlocução

iniciada em 2005. Nesta ocasião, eu trabalhava junto ao Ministério da Cultura

coordenando as atividades de implementação da Ação Cultura Digital para os

Pontos de Cultura da região Norte do país. Como no primeiro edital poucas

entidades da região Norte se candidataram e foram aprovadas, parte do meu

trabalho era divulgar a possibilidade de participação de grupos dessa região nos

próximos editais e, se preciso, apoiar tecnicamente a concepção das propostas.

Dessa forma, fui procurado por Sônia Maria C. Oliveira, uma colaboradora da

Associação Aliança dos Povos do Roncador – organização jurídica criada pelos

moradores da Aldeia Wederã para gerar projetos de desenvolvimento –, que

estava elaborando o projeto que seria enviado para concorrer no edital.

Inicialmente, Sônia, que havia sido alertada da abertura do edital por um amigo

que temos em comum, o jornalista e ativista ambiental José Arnaldo de Oliveira,

demonstrou interesse em participar do edital, mas tinha dúvidas se poderia uma

Associação Indígena se candidatar, se seria possível executar o projeto em uma

aldeia indígena, e perguntou em relação ao local para instalação dos

equipamentos digitais que o edital previa entregar: “Será que aceitam sala de

chão de terra batida e palha?”

Para alguém na minha posição, o contato de Sônia era um presente, pois

expandia o campo de atuação do programa e permitia que a proposta de

descentralização da produção cultural e dos recursos para a cultura contida no

projeto dos Pontos de Cultura fosse radicalizada. Além disso, também seria uma

experiência fascinante e repleta de aprendizado para mim, pois poderia realizar

algumas das atividades de formação que vinhamos realizando em contextos

urbanos da Amazônia em uma aldeia indígena.

O projeto foi produzido e contou com a sorte de uma prorrogação do prazo

para as inscrições. Como estava viajando para realizar atividades relativas a

outras frentes do meu trabalho, nem pude ajudar muito com elaboração da

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proposta. Lembro-me de ter colocado Sônia e Arnaldo em contato com o

coordenador de um outro Ponto de Cultura do Mato Grosso – Márcio Pielke, do

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lucas do Rio Verde – e de levantar as

especificações técnicas e preços para a aquisição de painéis para captação de

energia solar – a luz elétrica somente chegaria na aldeia no segundo semestre de

2011, através do programa Luz para Todos.

Em outubro de 2005, o projeto foi aprovado. As atividades estavam

previstas para começar assim que os recursos do convênio fossem repassados,

porém, a burocracia governamental fez como que a assinatura do convênio

demorasse mais de um ano e o início dos repasses demorasse mais um. De forma

que o projeto só pode iniciar efetivamente suas atividades no primeiro semestre de

2008.

Quando a notícia da aprovação do projeto foi divulgada, Sônia escreveu um

e-mail dizendo que havia comunicado ao Warã que Arnaldo e eu havíamos

colaborado bastante com a elaboração da proposta e contou o que tínhamos feito.

Gratos pela ajuda e felizes pela notícia da aprovação, pediram para Sônia que nos

convidasse para ir para Aldeia, para que pudessem agradecer pessoalmente; e

que isso deveria ser feito como a primeira atividade do Ponto de Cultura. Fiquei

muito feliz e lisonjeado com o convite. Agradeci, e disse que teria o maior prazer

em ir à Aldeia e em continuar apoiando no que fosse possível. Porém, confesso

que achei que se tratava de uma formalidade; mais um gesto do que uma

proposta efetiva. Mesmo assim, para mim, já era mais do que o suficiente e já me

sentia recompensado.

Na virada do ano de 2005 para 2006 a equipe na qual eu trabalhava no

Ministério da Cultura foi complemente desfigurada. Nosso esquema de trabalho

era bastante precário. O contrato era através de um instituto de pesquisa307 que

havia formalizado um convênio com o Ministério e operava a partir de recursos do

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Chegamos a

307Tratava-se do Instituto de Pesquisa em Tecnologia e Inovação – IPTI. Cf.: http://www.ipti.org.br/ .

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trabalhar em mais de 80 pessoas espalhadas por todos as regiões do Brasil,

realizando pesquisas, planejamento e executando a implementação dos

programas e atividades da Ação Cultura Digital. Havíamos sido contratados como

bolsistas, uma estratégia comum para evitar o pagamento de direitos trabalhistas

e não gerar vínculo empregatício. Ganhávamos relativamente bem, é verdade. No

entanto, o contrato era temporário, apenas 10 meses, e quando terminou haveria

um período de no mínimo de 3 ou 4 meses em que os interessados em continuar

trabalhando precisariam trabalhar ainda mais, para demonstrar seu interesse e

sua capacidade, sem ganhar nada. Neste momento, apesar de gostar muito do

que fazia, principalmente as viagens que realizava na região Norte – do Acre ao

Amapá, foram várias – decidi seguir outro caminho. E passei a me dedicar à

minha pesquisa de Mestrado, que havia sido iniciada neste mesmo ano de 2005.

No primeiro semestre de 2007, recebi um e-mail de Sônia divulgando a

exibição, em um canal de TV aberta, de um filme308 que retratava a história de líder

Xavante que emprestava o nome ao Ponto de Cultura da Aldeia Wederã.

Refiro-me ao líder Apow'ê, que chegou a ser relativamente conhecido entre os

brancos como Apoena, e sua estratégia de liberdade que, como veremos mais

adiante, possuía uma relação direta com as atividades que eu viria a desenvolver

na aldeia.

Como fazia mais de um ano que não trocava e-mails com Sônia e, também,

que havia me afastado do trabalho junto aos Pontos de Cultura, respondi a Sônia,

por pura curiosidade, perguntando sobre como iam as atividades do Ponto de

Cultura: se haviam adquirido os computadores, instalado os painéis de energia

solar, realizado oficinas. Para minha surpresa, a resposta trouxe a notícia que os

recursos ainda não haviam sido repassados, pois sempre era preciso enviar mais

um documento para atender às exigências do convênio. Alguns desses

documentos eram impossíveis de serem fornecidos como, por exemplo, um

certificado de que a sede do projeto não possuía dívidas de IPTU.

308 Estratégia Xavante ( 86' / 2007) Direção: Belisário Franca, Produção: IDETI e Giros.

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Mesmo afastado há mais de um ano do antigo trabalho, ainda conhecia

alguns procedimentos internos e algumas pessoas que continuaram trabalhando

no Ministério. Inconformado com a situação, ainda mais devido ao fato de que no

ano de 2007 os Pontos de Cultura já eram uma realidade consolidada e bastante

propagandeada como uma grande conquista e uma inovação do Ministério da

Cultura, capitalizada politicamente por muitos, passei a ajudar, à distância, no

rastreamento dos documentos necessários para a resolução das pendências e, o

que era mais importante, a identificação do gestor responsável pela condução do

processo. Essa situação se alongou durante alguns meses. No segundo semestre

parecia que tudo estava encaminhado, era só aguardar o repasse e, mais uma

vez, ficamos esperando.

Em Abril de 2008 fui surpreendido com um e-mail que, além de dizer que os

recursos haviam sido finalmente repassados, trazia o convite para a realização de

uma reunião na Aldeia, na qual pretendiam reunir pessoas que haviam ajudado a

elaborar o projeto e outras que poderiam ajudar na sua execução. Na verdade,

tratava-se do convite feito em 2005 que ainda estava valendo e só agora, mais de

dois anos depois, poderia ser concretizado.

Em maio de 2008, embarquei em um ônibus em Campinas-SP e fui até

Barra do Garças-MT. De lá, uma van levou um grupo de 4 pessoas que

integrariam o conselho externo até Nova Xavantina-MT. No dia seguinte, seguimos

para a Aldeia Wederã.

A reunião durou 2 dias e foi conduzida por Paulo Cipassé Xavante, na

ocasião cacique da Aldeia, num formato bastante semelhante ao Warã, com

conversas realizadas em círculo e com oradores se revezando no exercício da

fala. No primeiro dia, em um dado momento fui chamado a falar. Antes de

qualquer outra coisa, queriam que eu explicasse o que era Software Livre e por

que o edital colocava seu uso como obrigatório309. Antes, explicaram que o

309A obrigatoriedade do uso de SL no primeiro edital dos Pontos de Cultura em 2004 foi uma grande conquista dos pesquisadores/implementadores que se articulavam em torno da Cultura Digital dentro do Ministério da Cultura. A despeito de sua importância histórica, infelizmente esse acontecimento

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objetivo do projeto era equipar a escola que havia sido construída recentemente

na aldeia com um laboratório de edição audiovisual, e perguntaram se era

possível fazer com software livre e qual seria a diferença de sua utilização.

Minha fala foi sendo traduzida quase que simultaneamente. Na medida em

que o tradutor a re-transmitia, mesmo sem saber exatamente o que estava sendo

repassado, era possível ver sinais de concordância através da reação expressada

ao assimilarem o conteúdo da tradução da minha fala e de minhas propostas.

Alguns comentários eram proferidos simultaneamente à tradução, enfatizando

algum aspecto importante ou marcando uma posição. Obviamente eu não entedia

o conteúdo dessas manifestações, porém a entonação e a repetição dos termos

passava essa impressão.

Algumas palavras eram compreensíveis, pois não eram traduzidas:

“computador, projeto, ponto de cultura, software livre, computador, Caminati,

Unicamp, software livre, ponto de cultura, ministério, computador, Caminati,

software livre...”. Ao final da tradução, após um rápido debate e reações que

pareciam bastante claras e diretas de um entendimento praticamente consensual,

me devolveram um novo convite, desta vez para que eu os auxiliasse na adoção

do Software Livre no Ponto de Cultura e na Aldeia e para que realizasse oficinas

de edição de vídeo.

Confesso que fiquei surpreso com o convite e, mais ainda, com o fato de,

aparentemente, terem se convencido e optado tão rápido pelo SL. Num primeiro

momento, achei que não fazia muita diferença para eles já que os computadores

eram uma novidade na aldeia. Depois, achei que era pela questão da economia

de recursos. Anteriormente, com ajuda de um outro colaborador waradzú, haviam

previsto para a instalação do laboratório a aquisição de uma ilha de edição da

Apple que, em valores da época, custaria mais do que dez mil reais. Eu havia dito

encontra-se muito mal documentado. Além da obrigatoriedade do uso de software livre (que aparece expressa no parágrafo 7 do edital), o conhecimento prévio e a proposição de atividades vinculadas ao uso de Software Livre aparece como critério de valor na seleção das propostas concorrentes no edital, vide o Edital No 02/2004.

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que utilizando software livre, por não precisar pagar pelas licenças, seria possível

comprar um computador equivalente, ou até melhor, por menos da metade

daquele preço. A diferença economizada poderia ser aplicada na aquisição de

uma câmera, ou ainda, em atividades de formação.

É claro que esses argumentos eram interessantes e sedutores, a liberdade

de não pagar, como argumentei na seção anterior, tende a ser sempre um fator

decisivo no contexto brasileiro. Porém, aos poucos, fui entendendo que tanto o

interesse pela apropriação das tecnologias de produção e reprodução de imagem,

quanto a instalação do laboratório na Aldeia – entre outros projetos que já haviam

realizado, estavam realizando e planejavam realizar – estavam inseridos numa

estratégia maior, a partir da qual orientavam suas decisões atuais e processavam

os resultados das experiências.

Essa estratégia era a estratégia de liberdade traçada pelo cacique Apow'ê,

a qual eu havia tomado contato pela primeira vez através do filme “Estratégia

Xavante”, exibido em um festival realizado na UNICAMP310. Apow'ê é considerado

o líder da pacificação dos brancos, foi ele quem negociou o contato definitivo entre

seu povo e o SPI no final da década de 1940, quando viu que o avanço da

fronteira Oeste era inevitável e que a estratégia de guerra não era mais suficiente

para evitar este avanço de fronteira que colocava em risco a continuidade do povo

Xavante, de seu território e de seu modo de vida. Nos anos 1950, Apow'ê

recebeu o antropólogo americano David Maybury-Lewis, o primeiro a realizar uma

etnografia sobre este povo, que deu origem ao clássico da Antropologia “A

Sociedade Xavante” (Maybury-Lewis, 1984).

No final dos anos 1970, preocupado com a degeneração ambiental e do

modo de vida tradicional pela intensificação do contato com a cultura e a

economia waradzú, Apow'ê elaborou uma estratégia para proteger seu povo e sua

cultura. Orientado por seus sonhos, e antecipando-se ao pior cenário possível que

310“Nós e os Outros: Semana do Índio no Cinema” (2008): http://www.ifch.unicamp.br/cpei/eventos.htm .

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poderia decorrer da expansão modernizadora-colonizadora ao Oeste311, enviou 8

de seus netos para estudar em cidades de São Paulo e de Goiás. O objetivo era

que aprendessem a língua e os modos de vida dos waradzú para que, quando se

tornassem adultos tivessem condições de liderar os Xavante para que

continuassem a ser Awu'ê Uptabi, ou seja, povo verdadeiro – povo de verdade312.

Alguns destes jovens chegaram a ficar até 10 anos na cidade, e quando

concluíram sua formação na cultura externa – como se referem atualmente a essa

experiência – foram fundamentais para a luta pela demarcação dos territórios

Xavante nos anos 1980, tiveram participação destacada nos movimentos políticos

realizados durante a constituinte para a consolidação dos direitos dos povos

indígenas do Brasil e hoje são líderes em diferentes aldeias.

A estratégia de Apow'ê era bastante interessante: para continuarem sendo

verdadeiros, precisavam conhecer a cultura que os acossava e os ameaçava. Era

preciso saber como o inimigo convertido em vizinho pensava, quais eram seus

valores, como se relacionava com o mundo, era preciso saber operar em sua

lógica para que fosse possível lidar com ele e para conseguir processar de

maneira positiva a transformação inerente e inevitável decorrente da opção da via

pelo contato pacífico.

O que mais chama atenção nesse processo, é que não se trata de uma

tentativa de “inclusão” no mundo dos brancos, mas da continuação de um

processo de conhecer para enfrentar, da elaboração e execução de uma

estratégia de liberdade e de autonomia em relação a uma convivência imposta e

311Paulo Tavares (2012) em sua analise do papel da construção de Brasília na expansão da fronteira Oeste como parte do projeto de modernização do Brasil, oferece uma interessante problematização do modo como nosso processo de modernização implica e, de certa forma, continua o processo de colonização do território. O historiador norte-americano Seth Garfield (2001) oferece uma análise aprofundada e bastante rica da relação política entre os Xavante e o Estado Brasileiro no processo de expansão de fronteira durante o período que vai de 1937 a 1988 e, portanto, englobando desde o Estado Novo até o período de redemocratização da constituinte.

312A denominação Xavante é uma denominação externa, a qual foi assimilada e é aceita até hoje. No entanto, a denominação que utilizam para se referir a si mesmos é Awu'ê Uptabi. Quando se referem a outros povos indígenas, podem utilizar o termo Awu'ê. O termo Xavante, só é utilizado quando tratam com brancos, com waradzú.

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incontornável. Uma resistência ao avanço do waradzú que passava pelo

conhecimento profundo do mundo e da cultura waradzú.

Se a língua e a escrita foram as primeiras tecnologias apreendidas, assim

que reconheceram a importância política do vídeo, perceberam a necessidade de

conhecer suas técnicas, o funcionamento de suas máquinas, e de produzir seus

próprios vídeos313.

Partindo de um pensamento estratégico, já sabiam que o contato da cultura

tradicional com as tecnologias brancas sempre produz transformações, e

entenderam que se possuíssem conhecimento sobre as tecnologias poderiam

direcionar ou conduzir esta transformação com maior margem de agência. De

forma que buscaram e continuam buscando se apropriar de diferentes tecnologias

– sendo as de vídeo apenas uma entre elas – como estratégia de preservação e,

principalmente, desenvolvimento de sua cultura tradicional diante da condição

contemporânea que enfrentam de convivência cada vez mais intensa com a

cultura e objetos dos waradzú, que são portadoras de inúmeros potenciais, mas

cujos efeitos nocivos e negativos precisam ser neutralizados e revertidos.

Atualmente, o uso de tecnologias não se resume numa mediação para fora.

Celulares, máquinas fotográficas digitais e aparelhos de MP3 portáteis, além de

TVs e rádios, já são objetos comuns na paisagem das aldeias. DVDs circulam

entre aldeias de diferentes Terras Indígenas Xavante com registros de festas e

rituais, e as diferenças do modo como cada grupo executa essas ações é

comparada e discutida. Há um circuito de circulação e de troca de gravações de

músicas em MP3 e de fotos digitais, e já há até mesmos casos de pirataria, pois

alguns desses registros chegam a ser vendidos, sem autorização, por camelôs em

Canarana, inclusive para outros povos indígenas do Parque do Xingu e para um

ou outro waradzú. Esta presença só tende a se intensificar pois a rede de energia

313Samuel Leal (2012) realizou como pesquisa de Mestrado junto ao IFCS/UFRJ um estudo sobre a trajetória da apreensão de tecnologias de produção de vídeo entre os Xavante de Wederã e do modo como o modo de produção de imagens é territorializado como parte da cultura local. Este trabalho decorre diretamente da experiência relatada aqui, pois foi a partir de sua participação em uma oficina de edição de vídeo que não só teve a ideia de realizar esse estudo, como foi convidado pelo cacique da Aldeia a realizá-lo.

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elétrica acaba de ser instalada, o que faz com que os conhecimentos relativos ao

manejo dessas tecnologias e dos processos produtivos que elas disparam – das

habilidades que são a contrapartida humana a seu funcionamento (Strathern,

1999a) – se tornem ainda mais valiosos.

Como resultado dessa reunião inaugural do Ponto de Cultura, fiquei

incumbido de formular uma proposta de oficina. Num primeiro momento,

propuseram que a oficina fosse realizada na Aldeia. Porém, ainda bastante

impressionado com o filme sobre o sonho de Apow'ê pensei que poderia ser

interessante realizar essa oficina na UNICAMP, de modo que além dos trabalhos

relativos à edição de vídeo, a viagem também proporcionasse uma oportunidade

para que os participantes conhecessem o cotidiano de uma Universidade. Além

disso, após a decisão em respeitar os termos do edital dos Pontos de Cultura e

optar por uma estrutura baseada em software livre para o laboratório, havia

recursos disponíveis para essa atividade. A sugestão foi aceita. Essa escolha

acabou tendo um papel fundamental para que compreendessem um importante

aspecto do software livre, o qual, mais adiante, desenvolverei como um dos

diferenciais dessa experiência: o potencial do estabelecimento de redes de

conhecimento.

Contudo, em 2008, a comunicação com a Aldeia ainda era um tanto difícil. A

internet via satélite provia uma banda de comunicação muito baixa que

inviabilizava a comunicação por voz, os e-mails demoravam muito para ser

respondidos e eles também estava realizando outras atividades do Ponto de

Cultura314. Além disso, essa colaboração – que exigia bastante dedicação da

minha parte – não fazia parte de meus planos iniciais de pesquisa para o

Doutorado. De forma que era feita de maneira precária, somente quando era

possível.

Em setembro uma proposta foi formulada, enviada e aprovada. Um grupo

com quatro pessoas viria para Campinas-SP e ficaria por duas semanas.

314Cf.: http://wedera.blogspot.com.br/2008/09/trilha-interpretativa-trilha-do-saber.html .

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Realizaríamos atividades na UNICAMP e também em São Paulo-SP – visitando

produtoras e cineastas mais experientes. Porém, não foi possível viabilizar até o

fim do ano. No início de 2009 retomamos o diálogo. No primeiro semestre realizei

a compra dos equipamentos para o laboratório: um computador desktop com dois

monitores, no-break e um laptop. Na aldeia já possuíam duas câmeras, sendo

uma delas de uso profissional.

A oficina começaria com a própria configuração do equipamento, com a

instalação do sistema operacional, dos programas que seriam utilizados para

edição, e a montagem e desmontagem do equipamento. Em seguida, nos

dedicaríamos às técnicas de edição de vídeo. Após essas atividades, o grupo

voltaria para a Aldeia com os equipamentos e realizaria a instalação eles mesmos.

O objetivo era de que eles conseguissem ter o máximo de autonomia possível

para operar o laboratório. Aqui, já era possível ver uma contribuição própria da

cultura técnica associada ao software livre. Ao invés de um conhecimento

especializado, uma noção global de todas as partes que compõe o sistema que

operariam, assim como a apresentação do funcionamento do computador como

caracterizada por uma plasticidade participativa, ou seja, aberta ao diálogo e

dependente de uma interação ativa.

Já havia se passado um ano da realização da reunião na Aldeia, e ainda

não havíamos conseguido concluir o que seria apenas a primeira atividade. Diante

das dificuldades, várias vezes achei que haviam desistido. Porém, sempre que

conversava com Sônia Maria C. Oliveira, ela me dizia para ter paciência como o

“tempo awu'ê” – uma temporalidade diferente da nossa, guiada por outros

referenciais como o sonho e sem muito apego pela objetividade, um tempo que dá

voltas e no qual as coisas acontecem quando tem que acontecer. Confesso que

achava essa explicação um pouco esotérica, mas como tinha muito interesse em

ver o que o software livre poderia acrescentar a estratégia de liberdade

inaugurada pelo sonho de Apow'ê e tinha grande vontade de retribuir o modo

como havia sido recebido na Aldeia, passei a deixar as coisas seguirem seu

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tempo.

A oficina foi finalmente marcada para outubro. Cipassé, então o cacique da

Aldeia, sua filha Clara Rêwai'õ Idioriê, então com 13 anos, e Leandro Parinai'á,

atualmente o cacique da Aldeia, formaram o grupo escolhido para participar das

atividades. Como disse, o objetivo desta oficina na UNICAMP era o de apresentar

as técnicas e recursos básicos de edição de vídeo em software livre, ensinar as

operações básicas de montagem e uso do computador que seria a estação de

edição de vídeo, e entregar os equipamentos que haviam sido comprados em São

Paulo para que eles levassem e instalassem na Escola da Aldeia. Contudo, talvez

como o primeiro e necessário aprendizado do uso do sistema GNU/Linux, algo

deu errado, e a instalação do sistema misteriosamente não funcionou. Ou melhor,

a instalação até que procedia normalmente e parecia ser bem sucedida, porém, o

sistema não bootava [carregava] – o que era ainda mais grave.

Diante de um problema mais complexo do que eu conseguia resolver

sozinho, precisei pedir ajuda a um vizinho315. Na verdade, mobilizei outras quatro

pessoas na tentativa de instalar o sistema, e tentamos instalar 4 distribuições

diferentes do sistema GNU/Linux316. Sem obter sucesso em nenhum dos

processos, e sem conseguir identificar com precisão qual era o limite – mesmo

com muita pesquisa e acionando outros vizinhos –, tivemos que utilizar outra

máquina com características parecidas para que a oficina fosse realizada.

Este processo, por um lado frustrante, acabou sendo interessante, pois

permitiu que a equipe Xavante acompanhasse os acontecimentos e observasse a

315Como apresentei no item 2.1 do capítulo 2, utilizo o termo vizinho para descrever relações diretas de convivialidade, reciprocidade e compartilhamento. Uma espécie de aliança estabelecida através da troca de bens, conhecimento ou qualquer tipo de apoio. Esta definição inspira-se na pesquisa de Augusto de Arruda Postigo (2010) realizada junto a seringueiros da Reserva Extrativista do Alto do Juruá e sua descrição das redes de vizinhança de carne, que se constituem no limite entre a generosidade e o interesse estratégico, e que são fundamentais para a reprodução social desta população e do meio em que vivem, com importantes desdobramentos ecológicos.

316Ubuntu Studio, uma versão customizada do Ubuntu 9.04 para edição multimídia, cf.: http://ubuntustudio.org/ ; Ubuntu versão 9.10, cf.: http://www.ubuntu.com/ ; Fedora versão 12, cf.: http://fedoraproject.org/ ; e Slackware nas versões 13 e na versão Current, a versão ainda em desenvolvimento, ou seja, que ainda não atingiu uma certa estabilidade, cf.: http://www.slackware.com/ .

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reação dos waradzú diante dos limites que suas próprias tecnologias impõe a eles.

E, o mais importante, o modo como que eles superavam ou tentavam superar

esses limites: como resolviam seus problemas.

No começo, obviamente, desconfiaram da minha capacidade individual,

mas, aos poucos, foram percebendo que realmente havia algo de estranho

acontecendo e, sobretudo, que era normal que isso acontecesse. Porém, o mais

valioso como aprendizado foi a oportunidade de observarem o funcionamento de

uma rede de conhecimento. Ou seja, quando o conhecimento individual não foi

suficiente, uma rede de conhecimento foi ativada e os participantes dessa rede

trabalhavam juntos, um complementando e potencializando o conhecimento do

outro. A ecologia cognitiva do software livre é baseada nesse tipo de

agenciamento e de compartilhamento, e propícia a propagar esse tipo de

agenciamento e de compartilhamento. Estivéssemos utilizando software

proprietário, acredito que ao invés de uma noção da tecnologia associada a um

conhecimento processual, partiríamos de uma noção baseada na ideia de

produtos. De forma que, diante de uma situação semelhante, nos restaria exigir a

garantia ou a reposição do produto, no máximo, contrataríamos um

técnico-especialista, com o qual não estabeleceríamos nenhuma relação de

conhecimento e compartilhamento.

Após o fracasso na tentativa de solucionar os problemas através de

configurações de software, partimos para o hardware. Todas as suspeitas

apontavam para a placa mãe: quando o sistema travava no boot, havia uma

mensagem de que parecia indicar que o driver da placa mãe não conseguia

controlar a comunicação com os discos de memória. Trocamos a placa mãe, nada

mudou.

A esta altura, este computador, seguindo uma tradição própria do mundo do

software livre e da cultura geek, já havia sido batizado. Recebera um nome em

alusão ao computador que o substitui na oficina. Este computador, patrimônio da

UNICAMP na ocasião alocado no Laboratório de Fotografia do CACH, atualmente

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alocado no Laboratório de Cartografia do CERES, chamava-se Tora. Nome

adquirido por possuir um HD de 1 terabyte (coisa ainda rara em 2007, quando foi

montado). Tora era, então, uma derivação de tera e também uma alusão jocosa à

sua potência e capacidade. O que seria levado para aldeia, como seria instalado

de maneira idêntica, tornou-se Uiwede, que significa tora na língua Xavante.

Acontece que Uiwede é também o nome de um de seus rituais mais importantes,

na verdade um jogo, no qual dois grupos competem em uma corrida em que os

praticantes revezam o carregamento de uma tora maciça de buriti, que chega a

pesar até 80 kg. A ironia é que o Uiwede digital estava cada vez mais parecido

com a tora de buriti, pois não funcionava a não ser para ser carregado sobre os

ombros de um lado para o outro, inclusive, em uma ida até a Santa Ifigênia,

quando efetuamos a troca da placa mãe, ocasião em que essa semelhança

depreciativa foi constatada pelo humor sempre ativo de Cipassé.

O computador foi então colocado de lado pois era preciso priorizar a oficina,

que, apesar do contratempo, acabou sendo muito bem sucedida, resultando na

produção de 3 vídeos. Contudo, a impossibilidade de instalar e configurar o

sistema, impedia que o plano original da instalação realizada na volta para a

Aldeia fosse concluído. O computador não foi levado, precisou ficar para ser

reparado.

Para a organização dessa oficina tive de pedir ajuda para outras pessoas317,

e isso também acabou tendo um efeito positivo. Duas delas acabaram se

envolvendo tanto com as atividades que, de certa forma, foram capturadas para a

rede de colaboração que eu havia estabelecido com Wederã. Aline Yuri

Hasegawa, cuidou de muitos aspectos da logística das atividades. Samuel Leal

Barquete, ficou responsável pelas oficinas de edição de vídeo a partir do programa

Cinelerra318. Após a oficina, ambos continuaram envolvidos com o projeto. Aline foi

317Aqui é preciso fazer uma menção muito especial a duas pessoas: Paulinha Saes, que de maneira insana emprestou seu carro por duas semanas para que conseguíssemos realizar todos nossos trabalhos; e Rafael Diniz, que esteve sempre a postos para prestar socorros técnicos.

318Cf.: http://cinelerra.org/.

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comigo à Aldeia no ano seguinte, para a instalação do laboratório; e Samuel, que

acabara de ser aprovado para o Programa de Mestrado em Antropologia do

IFCS/UFRJ, foi convidado e convencido por Cipassé a mudar o tema de sua

pesquisa e passar a estudar a experiência de produção de imagens Xavante e, a

partir dessa pesquisa, realizou outras viagens a Aldeia.

Todos as atividades, mesmo quando realizadas junto a outros objetivos

específicos, como no caso das pesquisas de campo de Samuel, eram remetidos

para o nosso “projeto”: os resultados eram compartilhados de forma que as

diferentes atividades informavam uma continuidade. Esse aspecto foi fundamental,

para que o laboratório da Aldeia seguisse ativo e funcionando.

No início de 2010, diante do iminente esgotamento das possibilidades da

minha rede local de vizinhança, ou da minha capacidade de mobilizá-la, bem

como de um certo esgotamento das minhas energias pessoais, recorri a uma

pequena oficina localizada em uma galeria de rua de Barão Geraldo (distrito de

Campinas-SP onde a UNICAMP localiza-se) para resolver a questão do Uiwede.

Esta oficina é a única que conheço319 que não só trabalha com software livre,

como também faz propaganda disso: os donos, dois irmãos, são usuários e

entusiastas do software livre. Deixei o Uiwede com um deles, expliquei o caso,

disse que instalaria o computador em uma aldeia indígena, e resumi dizendo que

o defeito era que o sistema não bootava. Minha demanda foi recebida com alegria,

pois mais que um serviço corriqueiro era um belo desafio, e, como confessou o

técnico, “é sempre mais gostoso resolver um problema no [GNU/]Linux”.

Em uma semana o problema foi solucionado. Após tentar as mesmas

coisas que havíamos tentado – diferentes distribuições, consultas a fóruns e listas

de e-mails, substituição de peças chave do computador – o técnico suspeitou que

o problema pudesse ser em algum periférico secundário – placa de som, placa de

vídeo, placa de captura – algo que ainda não havia sido cogitado antes. Em

319 Conheço poucas, é verdade. Até porque, por usar GNU/Linux, para reparos e consertos sou impelido ou a procurar a solução sozinho, através de documentação disponível na internet, ou recorro a amigos e vizinhos.

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poucas tentativas, descobriu que o sistema não funcionava somente quando a

placa de som estava conectada. Pesquisou, e descobriu que havia um bug “ainda

não resolvido” que impedia o funcionamento daquela série de placas no sistema

GNU/Linux. Como não houve necessidade de trocar nenhuma peça além da placa

de som – que era nova e foi trocada sem custos por uma de outra marca –, um

problema que perdurava por mais de 6 meses e chegou a colocar em risco a

instalação do laboratório na Aldeia foi resolvido por um serviço que custou apenas

50 reais.

Com Uiwede funcionando, sistema instalado e programas testados, a

estação estava pronta para ser instalada. Comuniquei ao Cacique Cipassé nossa

nova condição, e rimos juntos da simplicidade do problema. Propus enviar os

equipamentos pelo correio, e também me dispus a levar pessoalmente, para

concluir o que havíamos começado em novembro. Recebi o convite para levar

pessoalmente o computador à Aldeia.

Como já havia se passado algum tempo desde a oficina de Campinas,

Cipassé considerava que a instalação seria mais segura e eficaz se contasse com

a presença de alguém com mais experiência, pois apesar dos participantes terem

aprendido a montar o computador, não haviam podido praticar desde então e,

portanto, talvez não conseguissem obter sucesso na instalação.

De fato, o aprendizado técnico exige um certo tipo de repetição, a

experiência de por em prática um conhecimento, pois sempre que este é posto em

prática se depara e se sujeita a contingências diferentes, fazendo com que, e

exigindo que, memória e percepção evoluam até que um conhecimento ainda

estranho sobre a modulação e manipulação de um certo funcionamento ou

potencial de funcionamento de um objeto ou instrumento técnico se consolide

como uma habilidade: um conjunto de conhecimentos técnicos associados a um

meio que pode ser acionado para acionar um meio técnico. Este processo

imanente a todo processo técnico, é um processo informacional: de produção das

informações necessárias para uma operação técnica, tanto no nível da operação

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direta do objeto técnico, quanto no nível da modulação do processo técnico que

esta operação dispara e engendra. Ou seja, sua abertura e relação com o meio.

A definição da data da viagem ficou em aberto, e posteriormente foi

marcada para junho para aproveitar uma ocasião em que estaria em

Brasília-DF320. Não fiz a viagem, nem realizei as atividades de instalação do

laboratório sozinho. Estava acompanhado de Aline Hasegawa, que já havia

colaborado com as atividades realizadas na oficina de 2009, e que liderou oficinas

e sistematizou em um pequeno manual bilíngue com as instruções básicas para

montar e ligar o computador que, em agosto de 2011, na última visita que fiz à

Aldeia, continuava pregado na parede do laboratório servindo como referência.

A chegada dos equipamentos à Aldeia foi muito festejada por todos,

chegamos no fim da tarde, descarregamos a carga na Escola Indígena onde o

laboratório seria instalado, e logo já era hora da realização do Warã, que acontece

diariamente no centro da Aldeia, na forma de uma roda, onde todos os assuntos

relativos à vida coletiva são abordados e discutidos em uma conversa que é

conduzida, mas não controlada, pelo Cacique. O Warã é ao mesmo tempo o lugar

e a ocasião em que as decisões importantes são tomadas, o onde e o quando as

coisas são postas em seus devidos lugares e formalizadas como públicas. Os

equipamentos, eu e minha parceira de viagem, também foram temas dos debates

deste Warã que participamos no dia em que chegamos, do qual também foram

objeto de suas deliberações.

Fiquei sabendo, por exemplo, que haviam ficado muito preocupados com a

demora na instalação dos equipamentos. Circulara na Aldeia a notícia de que

algum problema havia acontecido, que algo não estava dando certo, e como nem

mesmo nós que supostamente deveríamos conseguir explicar os motivos

conseguíamos, só podiam ser espíritos contrários à chegada dos equipamentos à

Aldeia.

320O motivo da ida à Brasília foi minha participação na Comissão de Avaliação do Edital "Prêmio Tuxaua Cultura Viva 2010", da Secretaria de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura, como representante da sociedade civil.

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Quando souberam que dias antes, em Brasília, eu havia torcido gravemente

o joelho e que, por isso, quase havia adiado a ida à Aldeia, disseram que não

havia dúvidas quanto a ação contrária ao nosso projeto: dessa vez o alvo tinha

sido eu. Entretanto, como mesmo assim, ambos os obstáculos haviam sido

superados, era sinal de que os espíritos que queriam que o laboratório fosse

instalado eram mais fortes, eram eles que devíamos escutar e seguir, pois já

haviam agido favoravelmente, evitando danos ainda mais graves – a mim e ao

computador. Fui objeto de várias piadas e motivo de risadas, disseram que eu

havia corrido risco de vida, no entanto, também reconheceram minha coragem e,

em retribuição, ofereceram um tratamento para o meu joelho machucado.

Esta descrição não pode ser recebida como mera alegoria. Precisa ser

entendida como uma evidência de que a experiência que realizamos é remetida a

um projeto estratégico mais antigo, que é central na vida Xavante e é fonte e

objeto de inúmeros conflitos. Trata-se da estratégia de processamento da relação

da cultura tradicional Xavante com a cultura waradzú, a cultura de fora. A opção

pela via conciliadora com os waradzú nunca foi um consenso. Ocasionou muitos

conflitos e separações. A feitiçaria e a atuação de espíritos e parentes já mortos

são elementos muito importantes da linguagem política dos Xavante. Como a

apropriação de objetos técnicos e de conhecimentos externos estão inseridos

nesse contexto político conflituoso, nossa experiência não fica incólume a ela, se

relaciona com estes mesmos elementos321.

No Warã também foi decidido que a mesma oficina que havia sido oferecida

na Unicamp deveria ser oferecida para outros jovens que não puderam estar lá. E

que era fundamental ensinarmos como montar e desmontar o computador, para

321Para um entendimento desse contexto político oriundo do contato definitivo com a cultura waradzú e do papel da feitiçaria ver Pablo Nacer (2004). Não se trata de um trabalho acadêmico nem de um estudo etnológico, mas de um texto escrito dentro de um projeto de colaboração semelhante ao realizado para instalar o laboratório, guardadas suas devidas diferenças. Considero este livro importante, pois o autor explicita de uma maneira bastante rica o processo de produção do livro em sua primeira parte, e na segunda elabora uma narrativa sobre a história de vida de Apow'ê baseada em depoimentos de seus 3 filhos que habitam Wederã. Pablo Nacer, um waradzú de São Paulo, também sofreu um acidente a caminho da aldeia, e este recebeu uma explicação semelhante ao meu.

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que não dependessem sempre da nossa presença para realizar essa tarefa. No

primeiro dia de oficina, não havia combustível para alimentar o gerador de energia

elétrica, então, montamos o computador e apresentamos os recursos da câmera.

São poucos os que falam o português em Wederã, menos ainda os que o

falam com desenvoltura. No entanto, havia ali o suficiente para a comunicação

mínima necessária, e para que eles eventualmente perguntassem algo que não

sabiam ou não haviam entendido.

Os equipamentos foram desmontados, e assim foram dispostos sobre uma

das mesas da escola. Aos poucos, fomos encaixando as peças e explicando a

função de cada uma. A partir dessas explicações, os nomes das peças e

equipamentos foram sendo traduzidos, ou, para talvez dizer com mais precisão,

reescritos322: apreendidos, transportados de um mundo para serem inscritos em

outro .

O monitor, por exemplo, virou ihöpöre, que significa fino, espremido, em

alusão à sua própria forma. O mouse foi chamado de barata, já que entenderam

que sua aparência e comportamento eram mais próximos ao desse animal do que

com os de um rato. As caixas de som, foram chamadas de orelha, e assim por

diante. Os cabos receberam etiquetas que indicavam quais peças e entradas

conectavam. Após essa apresentação, um pequeno grupo de jovens da aldeia

montou, com muito cuidado, o computador e alguns dos equipamentos

complementares.

É preciso destacar que algumas pessoas da Aldeia, principalmente da

família do Cacique, e outros homens que viajam para fora, possuem notebooks,

máquinas fotográficas digitais, telefones celular e câmeras filmadoras. A Escola,

possui televisão e aparelho de DVD. De forma que quase todos ali no mínimo já

haviam visto um computador funcionando. No entanto, não costumam manipular

esses aparelhos e dispositivos da maneira proposta, o que implicava em

322Uso a expressão reescrita em referência ao conceito de rewriting de Peter Wiebel (2009), utilizado para contextos em que a ideia de transferência e tradução são agenciadas com o intuito do enriquecimento recíproco de culturas diferentes contrastadas.

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importantes consequências pedagógicas quanto à apreensão não mais só da

função dos aparelhos, mas principalmente do funcionamento, no sentido de suas

capacidades e possibilidades de adquirir funções e de como estes potenciais

podem ser explorados.

A atividade seguinte foi com a câmera na mão, etapa que já foi assumida

por eles mesmos, sob liderança de Clara e supervisão de Caimi Waiassé, um dos

pioneiros do cinema Xavante, que já possui mais de 15 anos de experiência com

vídeo.

Provocados a produzir registros em vídeo, o grupo de jovens saiu pela

aldeia captando momentos do cotidiano e coletando depoimentos sobre qual

deveria ser o sentido empregado para a utilização das tecnologias de imagem na

Aldeia. Apesar de num primeiro momento esta escolha não ter me deixado muito

contente, pois a formato de vídeo feito somente com entrevistas pode ser um tanto

limitado323 e eu acreditava (ou esperava) que outras visualidades poderiam ser

exploradas. No entanto, acabei por compreender que não se tratava apenas de

uma limitação ou condicionamento da percepção deles pelas imagens que

assistem na TV, esta escolha também dizia respeito à sua cultura. Como expressa

bem o Warã, os Xavante prezam muito o diálogo e o entendimento coletivo dos

membros da aldeia, e sempre que uma situação ou empreendimento diz respeito à

vida coletiva, este precisa ser apresentado e debatido pela coletividade. Como a

inserção destas tecnologias é um projeto que diz respeito a toda aldeia, os jovens

quando se perguntaram o que fazer nessa primeira experiência com vídeo,

acharam fundamental estender a pergunta a toda a aldeia, e já fizeram isso

através do vídeo.

Duas coisas importantes aconteceram durante a captação dessas imagens,

que posteriormente foram editadas em vídeo. Diferente do Warã onde falam

somente os homens adultos, no vídeo surgiram falas e a presença das mulheres –

323É claro que o limite da forma-entrevista depende do tipo de entrevista que é feita, aqui me refiro ao formato mais padrão, o do jornalismo televisivo. Para uma discussão sobre a relação de controle e descontrole sobre a informação produzida em uma entrevista ver Stella Senra (2010).

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algo que explicaram posteriormente que só foi possível por ter sido realizado por

jovens e crianças –, além disso, logo após algumas tomadas que foram realizadas

com uma certa ansiedade em experimentar o equipamento, os jovens se sentaram

calmamente em torno dos três anciões mais velhos da aldeia, e durante quase

uma hora, enquanto o sol se punha, coletaram suas impressões e, sobretudo,

instruções de como se apropriar positivamente destas tecnologias externas para o

fortalecimento e desenvolvimento da cultura Xavante.

Nos dias que se seguiram, o combustível para alimentar o gerador – o

petróleo, na gíria local – chegou e o laboratório pode finalmente ser acionado.

Últimos ajustes precisaram ser feitos, um no-break precisou ser descartado antes

de ser acionado – provavelmente quebrou durante o transporte rodoviário entre

Brasília-DF e Canarana-MT –, e a conexão com internet via satélite precisou ser

ativada. Quando fomos rodar o programa de edição de vídeo, o Cinelerra, mais

uma vez, algo deu errado: não conseguíamos sincronizar áudio e vídeo.

Através da internet, utilizando um programa de comunicação por texto,

consegui contactar um dos vizinhos que haviam ajudado nas configurações iniciais

de Uiwede, Rafael Diniz. Só que desta vez ele estava em Londres. Era um

problema simples de configuração do programa, da escolha do driver certo para

edição de áudio. Mais uma vez, o processo de resolução foi acompanhado pelos

participantes da oficina, e foi muito útil para que aprendessem a resolver os

problemas que eventualmente apareceriam. E, de fato, aprenderam, pois através

do Skype passaram a ativar a rede de colaboração que estabelecemos através do

projeto.

Apesar de dispormos de somente 3 dias de petróleo, o resultado da oficina

e da instalação foi muito satisfatório. Quatro jovens travaram seu primeiro contato

com a produção de um vídeo, puderam participar de todas as etapas de sua

elaboração, execução e edição. Um vídeo foi finalizado e exibido para toda a

aldeia. O laboratório foi instalado com sucesso e segue sendo utilizado e, mais

importante, funcionando até hoje.

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Além dos equipamentos instalados pelo Ponto de Cultura Apow'ê, a escola

conta com um terminal de 6 computadores, impressora, e acesso à internet via

satélite – instalados a partir de um projeto da Secretaria Estadual de Educação do

MT – que também funcionam com Software Livre.

Tão importante quanto a instalação bem sucedida do laboratório, foi o

desencadeamento de um processo de cooperação e de comunicação contínua

entre o laboratório e colaboradores waradzú. Devido às oficinas de montagem do

computador, nas ocasiões em que devido ao excesso de terra e de poeira ou

variações elétricas, o computador precisou passar por reparos, as pessoas da

Aldeia, puderam identificar o problema e buscar auxílio em Canarana-MT, cidade

mais próxima. Em outras ocasiões, problemas de configuração de sistema, de

atualização de software e de apoio para finalização de vídeos, através de skype

ou programas de chat, puderam acionar a rede de colaboração, para auxiliar na

realização da tarefa. Dessa forma, o problema não é resolvido para eles, mas

junto com eles. Desencadeando um processo de aprendizagem.

A última visita que fiz à Aldeia, foi em agosto de 2011 e durou 5 dias. O

objetivo era visitar o laboratório e avaliar seu funcionamento e tentar catalogar os

vídeos produzidos e músicas gravadas. Contudo, quando cheguei à Aldeia, fiquei

sabendo que uma etapa do ritual de iniciação dos jovens na vida adulta – o ritual

Danhono – estava ocorrendo, de forma que todas as pessoas da Aldeia Wederã

estavam na Aldeia Etheniritipá, que fica também fica na T.I. Pimentel Barbosa.

Dessa forma, tudo o que consegui fazer nessa viagem, foi uma visita de pouco

mais de uma hora ao laboratório. Nessa ocasião, apesar do pouco tempo, foi

suficiente para que eu corrigisse a instalação do programa de edição de vídeo,

atualizando para uma versão mais nova.

Para concluir, uma breve reflexão sobre a especificidade do papel do

software livre nesse processo.

No que concerne a produção de filmes e vídeos, a diferença não é muito

grande, ou significativa. Talvez, se o objetivo fosse apenas produzir vídeos bem

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feitos e acabados, a melhor opção não seria utilizar os softwares que utilizamos.

Pode ser que os resultados certamente seriam melhores do ponto de vista do

padrão hegemônico de qualidade, se tivéssemos utilizados os programas

proprietários utilizados pelos profissionais da produção.

Contudo, houve sim uma diferença pela adoção do software livre como

padrão para o laboratório. E esta foi percebida e se realizou no processo de

aprendizagem, no que podemos chamar de cultura técnica envolvida em sua

utilização, a qual fundamenta-se na colaboração e no compartilhamento.

Do ponto de vista estratégico, este processo de aprendizado e de

engajamento em rede acaba sendo muito mais produtivo e positivo, apesar de

aparentemente, ter um custo de tempo maior. Contudo, isso que pode ser

percebido como um custo de tempo, é na verdade a dimensão processual que foi

estabelecida e que, ao mesmo tempo, demandou e ofereceu as condições de

possibilidade para uma relação continuada. A cada vez que a rede de colaboração

que estabelecemos era ativada ela também se expandia e se fortalecia, pois as

relações através das quais ela se materializava, ficavam mais fortes. Aqui

refiro-me especificamente a laços afetivos e de amizade entre os participantes

envolvidos.

Ao longo desses 3 anos de colaboração, pude perceber que o interesse

inicial no software livre não foi inconsequente. Não suscitou muitos debates pois ia

ao encontro daquilo que eles buscavam: autonomia e conhecimento. E é nesse

sentido que percebo que nossa experiência se insere e continua a estratégia de

liberdade traçada no sonho de Apow'ê. Se o objetivo dessa estratégia era

conhecer o waradzú para superar a condição subalterna que o avanço de sua

fronteira econômica necessariamente implica, conhecer para reverter os efeitos

nocivos do contato com essa cultura, a obtenção de autonomia para a utilização e

gestão de tecnologias de informação e comunicação, bem como as experiências

de apreensão de conhecimento podem ser vistas por si só como experiências de

liberdade.

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Em um depoimento bastante contundente produzido por um dos anciãos da

Aldeia Wederã, um dos filhos de Apow'ê, Cidaneri Xavante, transcrito em uma

foto-reportagem publicada em uma revista produzida por um Ponto de Cultura do

Mato Grosso324, a função das parcerias e colaborações com os waradzú e a

seguinte:

Esses problemas, que o waradzú traz é que devem ser resolvidos em parceria com ele, é para isso que os projetos são desenvolvidos na aldeia na participação de todos. É preciso ter cuidado com o depredzú [dinheiro]. Cuidado, o depredzú pode impedir que vocês vejam as coisas do jeito que elas são.

Se os waradzú devem ser chamados a ajudar a resolver o problema que

eles trouxeram, o problema que são, e se nós que fomos chamados para trabalhar

com a questão específica dos computadores, não haveria outra possibilidade para

atender aquilo que esperavam a não ser pela mobilização do software livre. Que

no nível em que operamos, não estabeleceu uma relação mediada pelo depredzú,

mas pelo conhecimento e pela tecnicidade. Caso tivéssemos trabalhado com

software proprietário, teríamos amplificado o problema que enquanto waradzú

causamos e somos, isto é, aumentando e potencializando a relação de

dependência e de dominação, ao invés de minimamente tentar ajudar a resolver.

324A foto-reportagem é de Aila Oliveira Serpa e Thais Castro (2009).

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4.3 ESTUDO DE CASO II: SOFTWARE LIVRE NO EQUADOR

No dia 10 de abril de 2008, o presidente do Estado Plurinacional do

Equador, Rafael Correa, decretou que era interesse de seu governo alcançar

soberania e autonomia tecnológica, assim como uma significativa economia de

recursos públicos, e que o Software Livre (com suas iniciais em maiúsculo) é, em

muitas instâncias, um instrumento para alcançar esses objetivos.

O decreto 1014, em seu artigo número dois, define o que se entende por

Software Livre: programas de computação que se pode utilizar e distribuir sem

restrição alguma, que permitem acesso aos códigos fonte e que suas aplicações

podem ser melhoradas, desenvolvidas.

Este mesmo artigo ainda aponta que estes programas de computação – de

tipo livre – são portadores das seguintes liberdades:

A) Utilização do programa para qualquer propósito de uso comum;

B) Distribuição de cópias sem restrição alguma;

C) Estudo e modificação do programa (Requisito: acesso ao código fonte);

D) Publicação do programa melhorado (Requisito: acesso ao código fonte).

Neste mesmo decreto, ficou estabelecido que a Subsecretaria de

Informática – que em 2011 teve seu nome alterado para Subsecretaria de

Tecnologia da Informação – passava a funcionar junto à Secretaria Geral de

Administração, ficando encarregada de elaborar e executar planos, programas,

projetos, estratégias, políticas, projetos de leis e regras para o uso do Software

Livre dentro dos domínios da Administração Central. Ou seja, o decreto

estabelecia uma opção prioritária pela adoção do software livre e atribuía à

Subsecretaria de Informática a missão de conduzir esse processo, dotando-lhe,

inclusive, de poder de sanção.

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No mesmo ano de 2008, em setembro, um referendo popular aprovou uma

nova Carta Constitucional produzida através de uma assembleia constituinte que

contou com amplo apoio e participação popular. Esta carta trazia conceitos

políticos bastante inovadores que foram construídos a partir de forte base

intercultural, atribuindo direitos à natureza e sendo atravessada transversalmente

por conceitos oriundos de filosofias ancestrais (indígenas) como Pachamama e

Sumak Kawsay (Walsh, 2009)325.

Em junho de 2009, realizei uma entrevista com Richard Stallman em

Campinas-SP. Interessado em saber se Stallman via algo de diferente no modo

como o software livre se propagava e era apropriado nos países do Sul, perguntei

sobre experiências interessantes que ele havia presenciado em suas viagens.

Stallman já havia dito que as experiências eram muito variadas, que em alguns

lugares alguns aspectos eram mais apreciados que em outros. Em Kerala na

Índia, por exemplo, a questão da economia de recursos em licença era um

aspecto muito importante, pois se tratava de uma província muito pobre. Já na

China, o interesse se dirigia mais para a questão de segurança e controle sobre o

que faz o programa, uma vez que a liberdade individual não é um valor muito

respeitado por lá. Porém, quando lhe pedi para citar uma experiência que se

destacava entre as demais, sua resposta me surpreendeu:

Equador é o melhor exemplo que eu posso citar onde o governo ativamente promove o SL. O presidente Correa é realmente bom – e essa é apenas uma área na qual ele é realmente bom. Ele decidiu mudar o país para o SL, dentro do que é possível de ser feito em um país democrático. Pois você não pode simplesmente

325 Para entender a dimensão que tanto a nova constituição quanto o decreto pró-software livre representam, é preciso fazer um breve comentário, sobre a história recente deste país. Menos de uma década antes desse processo, em janeiro de 2000, como ápice da aplicação de diretrizes neoliberais, a economia completamente sucateada e saqueada foi dolarizada. Apenas 11 dias depois, o presidente responsável por esse ato foi deposto por uma revolta popular que conseguiu se manter no poder por apenas 4 horas. Foi deposta por uma junta militar que entregou o poder ao vice-presidente, que assumiu o comando e completou o mandato. A dolarização foi o resultado da quebra de instituições financeiras e de atos conduzidos pelo governo desrespeitando leis para proteger o sistema financeiro – ou seus principais sócios. Em menos de 6 meses, a economia do país encolheu em 30%. Como consequência, aproximadamente dois milhões de habitantes emigraram.

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proibir o software proprietário, isso é algo tão extremo que eu também não recomendaria. Não é bom fazer leis que a maioria das pessoas queiram quebrá-las, até mesmo contra algo do mal, como o software proprietário. E o que eles estão fazendo? As agências do governo já estão migrando seus sistemas para o SL, e há uma agência específica encarregada em migrar todas as agências para o SL. E eles tem requisitos específicos: você não está autorizado a instalar software proprietário, a menos que você consiga demonstrar uma necessidade muito clara. As agências devem mudar para o SL, e estão postando [divulgando] o progresso das várias agências. E agora eles estão começando a planejar o SL nas escolas públicas. Então isso é muito bom.

Em seguida, fez uma rápida, porém, precisa, comparação com a

experiência brasileira:

O Brasil teve uma política mais informal, que parcialmente migrou para o SL, mas não é uma política firme que aplica a todos os lugares. O governo brasileiro em alguma extensão mudou para o SL.

Além desse importante aspecto político, do estabelecimento, através de

decreto presidencial, da prioridade do uso de software livre em todos os

equipamentos públicos federais e do reconhecimento do valor estratégico dessa

opção, outros fatores chamam atenção na experiência equatoriana: a adoção do

padrão ODF como norma técnica e padrão obrigatório de todos os documentos

públicos em 2009326; uma definição de software livre muito próxima da definição de

software livre da Free Software Foundation (as 4 liberdades); e a relação explícita

estabelecida entre conhecimento tradicional (saberes ancestrales) e conhecimento

tecnocientífico nos artigos constitucionais que definem as diretrizes das políticas

tecnológicas327.

326 Cf.: http://www.informatica.gob.ec/component/content/article/65-historico-noticias-titulares/subsecretaria/362-subinfo-adopta-odf-para-intercambio-de-informacion

327 Refiro me aqui aos Artigos: 385, 386, 387, 388 da “Sección octav: Ciencia, tecnología, innovación y saberes ancestrales” do “Capítulo primero: Inclusión y equidad” do “RÉGIMEN DEL BUEN VIVIR”. Cf.: http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Ecuador/ecuador08.html .

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Instigado pelo relato de Stallman, passei a investigar o que ocorria no

Equador e tomei conhecimento das inovações instituídas pela Nova Constituição.

Como um todo, esse momento político chamava muito a atenção, e despertava

um forte sentimento de esperança (Garcia dos Santos & Caminati, 2010). Ao longo

de 2010, continuei tentando acompanhar os acontecimentos, mas era um tanto

difícil conseguir informações sobre o modo como o processo de fato evoluía. O

mais comum era se deparar com a imagens e narrativas muito próximas do que o

governo local propaga como “Revolução Cidadã”. Assim, em 2011, decidi realizar

uma viagem para conferir de perto e tentar avaliar em que medida havia realmente

algo de novo acontecendo, se havia uma apropriação específica do software livre.

Esta viagem não foi muito longa, durou 14 dias no total. Mas o tempo foi

suficiente para que eu participasse do “I Encontro de Cultura Livre do Ecuador”,

organizado pela FLACSO328 e pela UNESCO e realizasse uma série de 9

entrevistas com ativistas do software livre, desenvolvedores de software,

pesquisadores e membros do governo. Também pude conhecer a Subsecretaria

de Tecnologia da Informação, e a Diretoria do Ministério da Cultura responsável

pela área de políticas públicas para economia da cultura.

O Equador, como disse, é um país que passa por um processo de

refundação e de reconstrução desde a elaboração de sua nova Constituição. A

aplicação dos belos e avançados conceitos da carta magna suscitam conflitos com

as estruturas passadas e desafiam as próprias estruturas do Estado, as quais

precisam ser atualizadas para operarem adequadamente, como relatou Marcelo

Bonilla (2011)329 em entrevista, dizendo que a Nova Constituição traz metas muito

altas e muito avançadas e que estas se chocam com os resquícios de uma

mentalidade e uma estrutura colonial e neoliberal incrustrados na estrutura do

Estado. Apesar disso, ou talvez justamente por isso, o clima é de abertura e de

328 Cf.: http://www.flacso.org.ec/portal/ .329 Professor Doutor do Instituto de Altos Estudios Nacionales - Universidad de Posgrado del Estado,

Escuela de Constitucionalismo y Derecho

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possibilidades. O que tornava ainda mais interessante ver o papel que o software

livre desempenhava nesse processo.

A participação no encontro sobre “Cultura Livre” realizado na FALCSO foi

fundamental para que eu pudesse mapear o espectro político ligado ao software

livre. Tendo participado de inúmeros encontros semelhantes no Brasil entre 2003 e

2009, era muito interessante como certos enunciados e articulações se repetiam.

É como se a reflexão política ligada aos campos da “Cultura Livre” e da “Cultura

Digital” não pudesse ir além de certos limites. Como, por exemplo, parecia ser o

caso da licença Creative Commons que, quase 10 anos depois de seu

lançamento, era apresentada por uma advogada colombiana como se fosse uma

grande novidade. No entanto, tratava-se de um já velho e consolidado discurso

sobre o novo cuja eficácia depende de uma certa aura de novidade, que, para

mim, não ia além de sua aparência. No entanto, para um primeiro contato, as

mesmas ideias de sempre seguiam funcionando – sobretudo para os estudantes

de Ciências Sociais da própria FLACSO, que pareciam bastante empolgados com

a novidade.

A participação nesse encontro foi muito importante para que conseguisse

estabelecer contatos para a realização da pesquisa. Antes de viajar, havia

contatado um membro da FSFLA de Quito, por intermédio de um membro desta

organização no Brasil. E essas duas pessoas haviam me colocado em contato

com a Subsecretaria de Tecnologia da Informação.

A primeira constatação foi a de que quando eu apresentava meu interesse

nas relações possíveis entre o software livre e os inovadores conceitos da

constituição para os ativistas do software livre e para as pessoas que trabalhavam

no governo, elas se surpreendiam e estranhavam. Não havia uma reflexão já

desenvolvida sobre o tema e a percepção da importância dessas inovações era

bastante limitada e descrente. Do outro lado, quando conversava com

pesquisadores que conheciam e trabalhavam com os novos conceitos políticos,

eles não conheciam muito sobre software livre. Nesse ponto, uma diferença

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favorável com relação à experiência brasileira, a qual conseguiu articular de

maneira muito mais profunda e profícua a relação entre tecnologia, cultura e

diversidade cultural.

Quando perguntei expressamente a dois ativistas sobre se viam alguma

relação entre a liberdade do software livre e ideia do sumak kawsay, o primeiro

respondeu:

Não. Felizmente o que está na constituição é algo bonito, mas até aí...

No que foi complementado por seu companheiro:

A respeito disso, do Sumak Kawsay, me parecem excelentes todas as leis que temos no Equador. Desde que começou a República, as leis no Equador provavelmente são as mais inovadoras do mundo, porque tivemos umas 30 constituições. Então sempre pomos o melhor: o direito das mulheres, o divórcio e o SL são leis excelentes, mas lamentavelmente não se cumprem. Nem em nenhum lugar do mundo! Não?Como se usam as leis? Os que estão no poder, usam as leis para exercer segundo seu critério pessoal.

Mais adiante retornarei a esse tema, pois apesar dessas constatações,

confio no potencial político dessa articulação. Por outro, lado essa constatação já

era importante, pois mostrava que os novos conceitos, apesar de presentes por

todos os lados – nas propagandas, nos slogans, nas leis, nos discursos –, não

eram apreendidos por todos e nem da mesma forma.

Entre 2010 e 2011, pesquisando pela internet, não encontrei nenhuma

pesquisa equatoriana de ciências sociais dedicada à experiência de seu país

acerca do software livre. Os textos que havia encontrado remetiam sempre para

duas pessoas: Rafael Bonifaz e Estaban Mendieta. Em seus blogs pessoais,

ambos reproduziam suas próprias narrativas sobre a origem do decreto 1014.

Eram também eles que apareciam numa foto intermediando uma conversa de

Richard Stallman com Rafael Correa. As entrevistas que realizei confirmaram

essas versões e reforçaram o papel de Mendieta na articulação pessoal e direta

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com o Presidente, além de sua participação na redação do texto-base do decreto.

Depois de alguns anos, Rafael Bonifaz publicou em seu blog um texto

intitulado “Um e-mail que mudou a minha vida330”. Neste texto, ele conta que em

2006 durante a campanha presidencial, decidiu escrever um e-mail para o único

dos 4 candidatos que considerava que poderia entender o que era o software livre.

Assim, escreveu a Rafael Correa. Após se apresentar como um engenheiro de

sistemas e ativista do movimento software livre equatoriano, perguntou:

Caso ganhe as eleições, você proporia algum plano referente ao uso de software livre no Estado?331

Em seguida, apresentou uma explicação que corrobora com nossa proposta

acerca do potencial político da liberdade de não pagar. Os argumentos são

apresentados de forma tão clara e num raciocínio tão bem construído que

transcrevo quase que integralmente a mensagem:

Para citar um exemplo, atualmente o município de Quito deve pagar à IBM um valor próximo de 200 mil dólares por ano para usar seu servidor de e-mail (…) Nós podemos oferecer uma solução similar, com um pouco de desenvolvimento de software e com o uso de software livre por um custo próximo de 20 mil dólares apenas uma vez. Depois, o município pode contratar para suporte nós mesmos ou qualquer outra empresa que conheça o tema. Não ficarão presos a nós.332

Com 200 mil por ano se pode fazer muito mais pelo benefício da comunidade ao invés de pagar pelo direito de uso de computadores. Isso é apenas de um servidor em um município. Imaginemos todas as licenças de Windows, Office e outros programas que usa o Estado. Quanto poderíamos poupar

330 Cf.: http://rafael.bonifaz.ec/blog/2008/12/un-correo-que-cambio-mi-vida/ .331 “De ganar usted las elecciones, propondría algún plan referente al uso del software libre en el estado?”332 “Para citar un ejemplo, actualmente el municipio de Quito debería pagar a IBM un valor cercano a los

$200 000 dólares por año para el uso de su servidor de correo electrónico y para que el alcalde pueda compartir su agenda con los concejales. Nosotros podemos ofrecer una solución similar, con un poco de desarrollo de software y el uso de software libre por un costo cercano a los $20 000 por una sola vez. De ahí el municipio puede contratarnos para soporte a nosotros o a cualquier otra empresa que conozca el tema. No se quedan atados a nosotros.”

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utilizando software livre[?] E o dinheiro gasto permaneceria. Formando profissionais nacionais, em lugar de pagar a multinacionais333.

Segundo Bonifaz, pouco tempo depois, foi procurado por Mendieta, que

trabalhava na equipe de Correa. A resposta dizia que, se Correa ganhasse, ele

abriria espaço para uma reunião. Rafael Correa foi eleito e antes que assumisse o

posto de presidente, cumpriu seu compromisso e recebeu Bonifaz e Stallman para

uma reunião.

Após o primeiro contato de Bonifaz, Mendieta relata que se interessou em

saber mais sobre o software livre e se convenceu que o tema era importante e

estratégico para o país. Poucos meses depois, ficou sabendo que Stallman viria

para Quito para realizar uma série de palestras e decidiu aproveitar a

oportunidade para promover a reunião. Convidou Rafael Correa para assistir

Stallman falando, mas o presidente eleito não tinha tempo disponível para isso.

Foi sozinho assistir Stallman. Ficou muito impressionado com o que viu e

conseguiu convencer a equipe de Correa que o encontro era muito importante.

Correa consentiu, disse que poderia agendar uma conversa de 10 minutos. De

maneira surpreendente, Stallman conseguiu capturar a atenção de todos. E os 10

minutos se transformaram em duas horas. Mendieta relata que Correa ficou muito

impressionado e simpatizou bastante com Stallman e, pela fala de Stallman na

entrevista que fiz, parece que o sentimento foi recíproco. Correa convidou-o,

então, para participar da posse de seu governo – convite que Stallman não pode

aceitar por outros compromisso – e se comprometeu a construir uma política

pública a favor do software livre.

Em abril de 2007, Correa gravou uma célebre mensagem televisiva à

333 “Con $200 000 al año se puede hacer mucho más por el beneficio de la comunidad en lugar de pagar un derecho de uso de computadoras. Esto es solo un servidor de un municipio. Imaginémonos el costo de todas las licencias de windows, office y otros programas que usa el estado. Cuanto nos podríamos ahorrar utilizando software libre y el dinero que se gaste se quedaría en formar profesionales nacionales, en lugar de pagar a multinacionales.”

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nação334. A qual, devido a seu valor histórico e ao seu grau de politização, também

transcrevo integralmente:

Vocês sabem que é chegada a hora da integração da América Latina em todos os aspectos, entre eles, os aspectos tecnológicos e o uso da tecnologia da informação.

Por isso é necessário que todos adotemos, tanto na esfera pública quando na esfera privada, o software livre. Dessa maneira garantiremos a soberania dos nossos Estados, dependeremos de nossas próprias forças, não de forças externas à região. Seremos produtores de tecnologia, não simplesmente consumidores. Seremos donos dos códigos fontes, e poderemos desenvolver muitos produtos que, com a articulação adequada de nossos esforços, poderão ser de utilidade para as empresas públicas e privadas da região.

Por isso, vamos todos utilizar software livre. O governo equatoriano já o estabeleceu como política de Governo e de Estado. Isto será um importante passo para a integração e, para que não dizer, para a libertação da América Latina.

Chama atenção nessa mensagem bastante politizada que não há menção

alguma à economia de recursos, ou seja, a possibilidade de gratuidade não

aparece como um fator importante nesse momento. Porém, tratando o tema como

uma questão de “integração e libertação” da América Latina, deixa evidente que o

software livre é mobilizado como um instrumento de conquista de soberania.

Ainda no ano de 2007, foi criada a Subsecretaria de Informática, e no início

do ano seguinte, foi publicado o decreto 1014.

Os ativistas do software livre com quem conversei indicaram que os efeitos

políticos do decreto foram muito significativos, chegando mesmo a ir além do

escopo do próprio decreto. O texto do documento determina instruções somente

para as entidades da administração pública central, ou seja, aos órgãos

diretamente ligados à presidência da república. No entanto, o decreto acabou

sendo assimilado como uma diretriz para que todos os órgãos públicos e ligados

334 Cf.: http://www.youtube.com/watch?v=59PyU_7iqaU .

307

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ao Estado migrassem para o software livre por um resultado composto por um

misto de medo – de ser sancionado por não cumprir o decreto – e de inercia – de

acompanhar o movimento do governo central sem muito questionamento ou

reflexão.

Outro fator importante, talvez mais determinante, é que o governo é o

principal cliente do mercado de software do Equador. Segundo Quiliro Ordoñez,

um dos ativistas que entrevistei – que além de ativista é um programador

profissional e dono de uma pequena empresa – o Estado responde por mais de

50% do mercado de software. De forma 'que, para atender às demandas deste

importante cliente, muitas empresas – inclusive algumas que haviam combatido a

ideia da preferência pelo software livre – passaram oferecer serviços em software

livre, segundo ele, “fechando bons negócios”. Aproveitando o momento, muitas

outras empresas foram criadas e o crescimento dessa indústria e desse mercado

hoje são significativos.

Como apontei no item 4.1, a migração para o software livre acaba criando

as bases para expansão e criação de mercados. A economia em recursos acaba

sendo revertida em investimentos em desenvolvimento de software. Dessa forma,

promoverem a manutenção desses recursos no pais e disparam um ciclo de

desenvolvimento, com criação de empresas e empregos.

Apesar de muitos fatos positivos, os ativistas do software livre mantinham

uma postura bastante crítica em relação ao decreto, dizendo que haviam muitas

brechas para que suas instruções fossem burladas. Nesse ponto, o argumento era

muito semelhante às criticas que podem ser feitas ao PL 2269/1999 no Brasil, pois

referem-se a uma definição muito subjetiva para as condições que permitem que a

preferência ao software livre não seja praticada. Ou seja, em relação aos casos

em que é permitido a aquisição de software proprietário.

O decreto estabelece que “se faculta o uso de software proprietário

unicamente quando não existir uma solução de software livre que supra as

necessidades requeridas”. E complementa com outras duas condições que são

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inegavelmente justificáveis: quando houver risco para segurança nacional, ou em

um projeto que se encontre em ponto de não-retorno.

O problema do enunciado destacado é em relação ao “quando não supra

as necessidades requeridas”, pois essa especificação é muito ampla e muito

vaga. Podendo ser mobilizada para se referir a um detalhe que não é realmente

essencial ou incontornável. Entretanto, consultando o documento da Subsecretaria

de Informática “Estrategia para la implantación de Software Libre en la

Administración Pública Central”, de janeiro de 2009, há a clara indicação que

estas exceções são apenas para “casos plenamente justificados e por tempo

determinado”.

Um último aspecto do decreto que é importante ser comentado, é a

prioridade que ele estabelece para a contratação dos serviços. Há uma prioridade

para empresas nacionais que é seguida de uma escala em que as empresas

regionais, isto é, da América Latina, tem prioridade frente as empresas de outros

continentes. Apesar de o Equador não ser um mercado muito grande, esta

preferência abre um campo de atuação para empresas brasileiras que, pelo que

pude constatar, ainda não foi muito explorado.

Passados quase dois anos de minha visita, o site da Subsecretaria de

Tecnologia da Informação dispõe uma quantidade considerável, e rica em

detalhes, de dados sobre o processo de migração. Além disso, há o

compartilhamento de documentos com planos e conceitos diretivos de ação de

migração e da adoção do software livre no país.

O processo de migração completa ainda não está concluído. E, obviamente,

chama atenção, na tabela que apresenta o “Estado de Migração 2013335”, o fato

que a maioria das estações de escritórios das 103 entidades do governo central

cobertas pela pesquisa ainda utilizem sistemas operacionais proprietários

combinados com suíte de escritório e browser livre. Porém, no que se refere aos

servidores e às linguagens de programação utilizadas, a maior parte das

335 Cf.: http://www.informatica.gob.ec/software-libre/estrategia-de-migracion/estado-de-migracion .

309

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entidades já aderiu ao software livre. Contudo, o governo – recentemente reeleito

– continua apoiando e demonstrando reconhecimento da importância estratégica

da política de adoção e migração para o software livre. Assim, entendo que

um julgamento da qualidade da experiência pela não realização da migração total

seria um tanto precipitado. Além disso, os aspectos relativos ao fomento de uma

indústria e um mercado nacional são bastante significativos, assim como da

importância que continua sendo dispensada para cursos de formação e

treinamento, e para o incentivo da adoção de software livre nas universidades.

A respeito da relação entre software livre e os conceitos de Pachamama e

Sumak Kawsay (bem viver), como disse, trata-se de uma formulação

experimental, a qual busca cruzar certos aspectos destes conceitos, oriundos de

epistemologias, contextos políticos e territórios bastante particulares, os quais

acredito que se encontram no tipo de relação que propõe, estabelecem e

comportam com o meio.

Aqui, acredito que é possível extrapolar o entendimento convencional sobre

o software livre pra abordá-lo como uma espécie de ecologia política do meio

informacional. Diferente dos conceitos e das práticas associadas ao open source,

que se voltam para aceleração do desenvolvimento tecnológico, confundindo e

reduzindo a evolução técnica em inovação tecnológica, o software livre

constitui-se como um conjunto de práticas, regras e princípios éticos associados a

uma condição de existência que depende de um tipo de relação com o meio

informacional. A manutenção dessa condição de existência – liberdade –, a qual

se baseia no compartilhamento de conhecimento para a plena realização dos

potenciais que a relação homem-meio comporta nesse registro é, ao mesmo

tempo, seu fundamento e seu objetivo principal.

O potencial de evolução técnica contido na prática do software livre ocorre

como externalidade positiva e é a evidência de sua eficácia ecológica, de sua

capacidade em explorar os potenciais da relação homem-meio de modo a produzir

a expansão das próprias condições materiais dessa relação, ou seja, produzindo

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expansão do meio. Chamo de externalidade positiva, pois o objetivo do software

livre é a garantia da condição de existência da relação com meio baseada na

liberdade e não o desenvolvimento de tecnologias superiores. A superioridade

técnica é uma consequência, pois o que importa mesmo, é a liberdade.

Para demonstrar as ressonâncias entre o que chamo de tipo de relação

com o meio proporcionada e definida pelo software livre, com o tipo de relação

com o meio proporcionada e definida pelo sumak kawsay, considero importante

recorrer a uma breve, mas bastante robusta, definição do conceito de sumak

kawsay produzida por Catherine Walsh:

[Sumak Kawsay] Buen vivir, traduzido rudemente como “bem-viver” ou bem-estar coletivo, é o conceito orientador da nova Constituição equatoriana, aprovada em referendo popular, em setembro de 2008.

Em seu sentido mais geral, buen vivir denota, organiza e constrói um sistema de conhecimento e vida baseado na comunhão dos homens com a natureza e na totalidade espacial-temporal-harmoniosa da existência. Ou seja, na inter-relação necessária entre seres, conhecimentos, lógicas e racionalidades de pensamento, ação, existência e vida.

Sua nova conceitualização enquanto política pública é em grande parte resultado da ação social, política e epistemológica do movimento indígena nas últimas duas décadas. É uma resposta à urgência de um novo contrato social radicalmente diferente, que apresente alternativas ao capitalismo e à “cultura da morte” do projeto neoliberal de desenvolvimento. Porém, mais do que uma declaração constitucional, buen vivir permite, como mostra claramente Alberto Acosta (2008), uma oportunidade de construir coletivamente um novo modelo de desenvolvimento. Baseia-se, de acordo com Eduardo Gudynas (2009), na geração de novos equilíbrios que incluem qualidade de vida, democratização do Estado e atenção a preocupações biocêntricas336.

Primeiramente, são dois os aspectos que me interessam nessa definição

produzida por Catherine Walsh (2010) o de “sistema de conhecimento e vida

336 (Walsh, 2010: 5-7)

311

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baseado na comunhão com a natureza” e o de “inter-relação necessária entre

seres, conhecimentos, lógicas e racionalidades de pensamento, ação, existência e

vida”. Além desses, me interessa a ideia de “uma resposta à urgência de um novo

contrato social radicalmente diferente, que apresente alternativas ao capitalismo e

à “cultura de morte” do projeto neoliberal de desenvolvimento”.

Acredito que esses aspectos destacados ressoam fortemente com as

características do software livre no que se refere ao conjunto de práticas e

disposições que ambos os conceitos ensejam e propõem. Além disso, o sumak

kawsay e o software livre compartilham o mesmo inimigo: o processo de avanço e

colonização do capital sobre territórios externos à sua lógica e aos seus domínios

– processo que é inerente e necessário para sua própria reprodução. Em ambos

os casos, a consolidação do desse avanço representa a possibilidade de

esgotamento de seus fundamentos e a ameaça da continuidade de suas práticas

– do tipo de relação que estabelecem com o meio, o qual é, ao mesmo tempo,

condição para a continuidade de existência desse meio.

Esta reflexão não é mais do que uma aposta. Trata-se de uma proposição

risco e um exercício de pensamento que tenta aproximar duas realidades

aparentemente disparatadas, mas que, quando aproximadas, conectam nas duas

pontas do limite do capitalismo contemporâneo: a ameaça que sua expansão

contínua representada pelo esgotamento climático e ambiental e pelo

enclausuramento do conhecimento. Trata-se de duas respostas a um mesmo

movimento. E acredito que ambas podem se potencializar ao se reconhecerem na

outra.

Entendo que tanto o sumak kawsay quanto o software livre representam,

como afirma Walsh a partir do pensamento de Alberto Acosta: “uma oportunidade

de construir coletivamente um novo modelo de desenvolvimento”. E acredito que,

em um mundo onde a vida depende cada vez mais da mediação de tecnologias

informacionais, um novo modelo de desenvolvimento depende de uma resolução

da relação estabelecida entre a informação e a terra. Por isso, o software livre e

312

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sua proposta de liberdade que, ademais, pode ser traduzida como uma espécie de

“bem funcionar” se pensada pela chave do sumak kawsay, é fundamental para

que criemos novos modos de vida que sigam os preceitos que este conceito

propõe. Assim como a proposta de suficiência e de vida integrada proposta pelo

sumak kawsay é plena de potenciais para politizar a relação que desenvolvedores

e usuários estabelecem com o sentido de inovação técnica.

313

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ANEXOS

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FIGURA 12: «Richard Stallman @ Rádio Muda» Campinas, 2009

STALLMAN EM CPS, 2009

1. Cronograma.........................................................3152. Entrevista na Rádio Muda..................................320

331

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1. CRONOGRAMA

No final do mês de maio de 2009, fiquei sabendo que Richard Stallman, o criador do conceito e fundador do movimento Software Livre, viria para a UNICAMP para realizar uma conferência337. Escrevi a um amigo que além de ser programador, membro ativo da comunidade SL da UNICAMP e um dedicado ativista à causa da liberdade (com quem nutro uma importante interlocução sobre minha pesquisa, e a quem sempre recorro quando preciso entender ou resolver algum problema técnico), se ele considerava viável que eu tentasse agendar uma entrevista com Stallman. O e-mail que trazia sua resposta era simples e objetivo, encaminhava uma mensagem que circulara na lista de e-mails do GPSL na qual os organizadores do evento que trazia Stallman procuravam alguém interessado em hospedá-lo, e sugeria que eu oferecesse o quarto que acabara de ficar vago em minha casa. Ele acreditava que não haveria melhor oportunidade para realizar a entrevista, além da hospedagem proporcionar que eu convivesse e conhecesse Stallman um pouco mais.

Através da mensagem encaminhada, fiquei sabendo que o ativista norte-americano prefere, em suas viagens pelo mundo, ao invés de hotéis, ficar hospedado na casa de outros ativistas do SL. Entendo que são dois os motivos: facilitar a logística que dos organizadores que o convidam para praticar seu ativismo e, consequentemente, potencializar sua participação em um número maior de atividades; e como uma maneira de fortalecer a solidariedade social, um dos valores mais importantes de sua ética e de seu ativismo.

Decidi entrar em contato com os organizadores da conferência, meu objetivo principal era tentar agendar a entrevista. Ofereci a hospedagem, mas acreditava que outras pessoas já haviam o feito, e que a questão já havia sido resolvida. Eu supunha que, entre os ativistas do SL, muitos teriam o interesse em hospedá-lo. Para minha surpresa, recebi uma resposta logo em seguida à minha proposta aceitando a oferta e informando que eu poderia tratar diretamente com Stallman a respeito da entrevista. Ao contrário da minha suposição, ninguém mais havia oferecido hospedagem. Alguns dias depois, pesquisando pela Internet após ser informado por amigos que talvez eu tivesse me metido em uma fria, descobri que Stallman possuía uma fama de ser um péssimo hóspede: arrogante, de difícil convivência e repleto de exigências. Confesso que fiquei um pouco preocupado, mas não podia declinar em minha oferta, até porque, imaginava que dela dependia a oportunidade de entrevistá-lo. Ofereci um quarto em minha casa. Acabei conseguindo agendar a entrevista, e, mais que isso, acabei me envolvendo na composição de sua agenda durante a estada em Campinas; realizando a transmissão de sua conferência pela internet; e tive a oportunidade de conviver e acompanhar Stallman durante quase 2 dias de intensas atividades.

Anexado a resposta que aceitava minha oferta de hospedagem, um documento formatado como um manual e escrito por Stallman em primeira pessoa trazia: “as informações essenciais para minha visita e para minha fala (speech)338”. Após a leitura deste documento, pude entender alguns dos motivos que alimentam sua fama de mal-hospede. Já havia escutado falar sobre este documento, assim como já havia escutado e lido muitas estórias e rumores sobre a personalidade esquisita, estranha e excêntrica. Uma imagem que

337Cf.: http://www.ic.unicamp.br/~islene/mc039/stallman.html. 338 Uma cópia deste documento está disponível no seguinte repositório: http://caminati.wiki.br/Main/Leaks .

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corresponde a uma certa ideia do hacker como um sujeito desajustado, fora dos padrões, anti-social. Este manual de hospedagem era um documento complexo, repleto de especificações sobre todos os aspectos relativos a sua viagem: desde como divulgar o conteúdo de sua palestra, a como apresentar os eventuais patrocinadores; de como emitir a passagem de sua viagem ou reembolsá-lo por isso, a como se certificar se hotel em que ele ficará hospedado possui ar condicionado. Apesar de complexo, o objetivo deste documento é simples: tornar a organização do evento mais fácil para o organizador e para o convidado, e tornar a hospedagem mais fácil para o anfitrião e para o hóspede. Ou seja, tornar os processos necessários para a realização dessas atividades mais ágeis e consumindo o mínimo de tempo e de energia possíveis.

Stallman dedica uma parte significativa de seu tempo viajando para divulgar e aprofundar a luta do SL. Estas viagens são geralmente curtas, de poucos dias. Em Campinas, nessa ocasião, ficou não mais que 41 horas. Antes, estava em João Pessoa-PB, participando do III ENSOL339, e antes disso, havia passado 7 dias no Equador. Depois de Campinas, seguiu para Porto Alegre-RS, onde participaria do FISL 10340, onde ficou até 27 ou 28 de junho. Em agosto do mesmo ano, Stallman retornou ao Brasil, para uma conferência na UnB, apenas dois meses após a data em que esteve em Campinas. Nesse meio tempo, já havia passado por: Espanha, França, Bolívia, Venezuela e Argentina341. Se imaginarmos que na maioria dessas viagens ele fique hospedado na casa de ativistas, e se em cada uma dessas ocasiões ele tiver de comunicar suas preferências ou necessidades, não será difícil calcular a quantidade de tempo que ele perderá realizando as mesmas tarefa.

Otimizar o tempo de processamento de uma tarefa e diminuir a redundância de trabalho são valores fundamentais tanto para um bom programa quanto para um bom programador. Ao invés de entender o manual de hospedagem de Stallman como um atestado de uma pessoa arrogante, preferi vê-lo como um programa que visa otimizar seu tempo e, por que não, também de quem o recebe. Um programa muito bem escrito por sinal, pois de fato fornece as informações essenciais para recebê-lo e para potencializar o aproveitamento de sua estada.

Felizmente, a experiência de recebê-lo mostrou-se bastante diferente dos boatos e comentários – um tanto apressados e preconceituosos – que circulam por blogs e listas de e-mail. Acredito que, no Brasil, tratar uma relação de hospedagem através de um manual impessoal e pragmático, seja um desafio para os fortes traços de personalismo de nossa cultura. Por outro lado, o humor de acentuado tom irônico e, no melhor estilo nerd, muitas vezes sem graça, que permeia o texto também pode ser um ponto que dificulta o entendimento do manual – afinal, a ironia é uma figura de linguagem que requer, para ser processada, um mínimo de inteligência nem sempre disponível a todos. Stallman não é a pessoa mais simpática e comunicativa do mundo e, de fato, é um pouco estranho. Contudo, a impressão que deixou foi de uma pessoa simples, reservada e bastante tolerante.

Após ler e, talvez seja mais preciso dizer, processar o manual de hospedagem, vi que havia informações sobre algumas de suas preferências e interesses para a realização de passeios e de atividades de não-trabalho, no qual ele declara especial interesse por dança tradicional342.

339 Cf.: http://2009.ensol.org.br 340 Cf.: http://fisl.softwarelivre.org/10/www/ .341P ara acompanhar e pesquisar o calendário de atividades de Stallman, ver: http://www.fsf.org/events/ .342 “If there is a chance to see folk dancing, I would probably enjoy that.”

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Entrei novamente em contato com os organizadores de sua visita à Campinas, descobri que ainda não haviam feito nenhuma programação especial, que provavelmente o levariam em uma churrascaria, mas que aceitavam sugestões.

A essa altura, além da hospedagem, eu já havia me comprometido a executar a transmissão da conferência por streaming343, e planejava realizar a entrevista com Stallman na Rádio Muda344. Mesmo correndo o risco de estar assumindo muitas responsabilidades, considerei pertinente propor uma atividade que poderia ser considerada tanto uma atividade de trabalho quando de lazer. Propus uma visita a Casa de Cultura Tainã, um dos projetos culturais mais relevantes do cenário brasileiro no que concerne o cruzamento de apropriação tecnológica sob os conceitos do SL com cultura tradicional, no caso, Cultura Negra e Afro-brasileira. A Tainã é um antigo projeto realizado em Campinas, que além de impactar o bairro e a região na qual está inserida, tendo transformado a vida de muitos jovens e crianças que viviam em situação de risco, também influenciou fortemente um dos mais importantes programas culturais já realizados no Brasil. O programa Cultura Viva, colocado em prática durante o celebrado Ministério da Cultura do governo Lula, liderado por Gilberto Gil.

Aproveitando a oportunidade histórica que um governo com alguma propensão e abertura às causas populares representou, a Casa de Cultura Tainã, através de um árduo e dedicado trabalho de articulação política, implementou um importante e inovador projeto de inclusão digital e de desenvolvimento social que deu origem a Rede Mocambos345. Uma rede presente em 15 estados brasileiros e que integra 80 comunidades, em sua maioria comunidades quilombolas346.

O que torna a experiência da Rede Mocambos tão especial é o modo como, por mais paradoxal que possa soar, seu projeto de “inclusão digital” não se baseia em nenhuma ideia de inclusão, ao contrário, trata-se de um projeto de construção de mundo a partir de seus próprios valores, história e ancestralidade. O valor da apropriação das tecnologias digitais de comunicação e informação não aparece como um fim em si, mas é apreendido como parte de uma estratégia voltada para a re-construção cultural da identidade quilombola, da re-conquista e de reconhecimento territorial, e da articulação de projetos de desenvolvimento baseados no conhecimento da terra e na valorização da relação entre os quilombolas e seus territórios. Ademais, as tecnologias de comunicação e informação são remetidas a uma perspectiva própria, que pode ser traduzida pelo seguinte enunciado: “o tambor é a primeira internet”. Este enunciado, que não deve ser entendido como uma metáfora347, é importante por denotar o modo como as tecnologias são apreendidas e territorializadas: numa perspectiva fundamentada na complementariedade e na potencialização da força de técnicas e de conhecimentos que informam a própria especificidade quilombola.

343 Obviamente a UNICAMP dispõe de um sistema de transmissão de conferências, porém, para tanto utilizam softwares proprietário e sistemas fechados, o que definitivamente não é aceito por Stallman. Junto com Paulo Tavares e Rafael Diniz, e utilizando a infraestrutura do Sistema Orelha de Streaming (cf.: http://orelha.radiolivre.org/ ), realizamos a transmissão do áudio e do vídeo utilizando somente sistemas, soluções e formatos livres. O registro dessa conferência pode ser acessado no ANEXO WK-11.

344Cf.: http://muda.radiolivre.org .345 Cf.: http://www.mocambos.org/ .346 Cf.: http://mapa.mocambos.net/. 347 O tambor é apresentado como efetivamente um instrumento de comunicação em uma reflexão de Gregory

Bateson (1952, p. 7) e também foi objeto da pesquisa de J.F. Carrington (1949).

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A visita à Tainã ficou agendada para depois da conferência na UNICAMP. Além de uma roda de conversa para apresentarem o projeto da Rede Mocambos e do estúdio musical de gravação equipado em SL para Stallman, haveria um jantar e, após o jantar, uma apresentação da Orquestra Tambores de Aço. No dia seguinte, terça-feria de manhã, realizei a entrevista com Stallman na Rádio Muda, cuja transcrição é apresentada na última seção deste arquivo. Logo após a entrevista, Stallman seguiu para o aeroporto, para a próxima escala de sua praticamente contínua peregrinação para a divulgação dos ideias políticos do SL e para a articulação de seu movimento.

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2. ENTREVISTA NA RÁDIO MUDA

A Rádio Muda é uma rádio livre que opera dentro do campus da UNICAMP desde a metade dos anos 1980. Inicialmente coordenada pelo DCE da UNICAMP, no início dos anos 1990 passou a ser gerida e mantida por um coletivo independente e livre, composto por estudantes, funcionários, professores da Universidade, militantes de movimentos sociais, e moradores da comunidade de Barão Geraldo e da cidade de Campinas. A rádio opera em frequência modulada, com baixa potência, sem concessão federal e integra o movimento de Rádio Livre, um movimento que surge com o questionamento ao modo como o Estado Brasileiro controla e gere o direito à comunicação; e que segue lutando por uma regulação mais democrática e plural do espectro radioelétrico e pela liberdade de expressão348. Trata-se de uma proposta de ação direta por desobediência civil amparada no artigo V da Constituição Federal de 1988; de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Internacional dos Direitos Humanos da ONU e o Pacto de São José da Costa Rica; e da legitimidade conferida por sua comunidade local e por amplos setores da sociedade civil que consideram a legislação atual acerca do tema arcaica, tecnicamente impraticável e insuficiente para corresponder à demanda social por comunicação349.

Esta postura de desobediência civil já resultou em 5 tentativas de fechamento da rádio por parte da Polícia Federal. Em duas delas, sempre em operações realizadas de madrugada e mobilizando forte aparato policial, os equipamentos da rádio foram apreendidos350. Nas visitas que ocorreram sob a luz do dia, inclusive no período legalmente adequado para esse tipo de ação, a mobilização pacífica de estudantes e da comunidade conseguiu impedir as operações policiais. Apesar disso, a rádio já realizou, e segue realizando inúmeros projetos educativos, culturais e mesmo de extensão universitária. Algumas destas atividades foram e são realizadas em parceria com a própria UNICAMP que mantém uma postura ambígua em relação à rádio: não a reconhece oficialmente, mas tolera suas atividades e apoia eventos de caráter científico351, educativo e comunitário.

Seu estúdio e base de transmissão fica localizado estrategicamente na praça central da Universidade, conhecida como Ciclo Básico, embaixo de uma caixa d'água de 46 metros de altura – que serve de plataforma para sua antena –, em frente à Biblioteca Central. Seus equipamentos de operação são semi-profissionais e funcionam no limite de uma certa precariedade, pois, para serem adquiridos e receberem manutenção, dependem de doações e de recursos arrecadados coletivamente, principalmente através da realização de festas e de eventos culturais. Dentro da proposta de liberdade da Rádio Muda, que possui forte

348 Sobre o cenário de repressão policial à radiodifusão não-autorizada na Brasil e uma reflexão sobre o rádio como prática espacial ver: “Political Noise: Radio as Spatial Practice” (Tavares, 2010). Cf.: https://cteme.sarava.org/Main/PoliticalNoise

349 A esse respeito ver “Deus e o Diabo nas Ondas do Ar”, vídeo produzido pela Rádio Muda, 2002, Brasil, Cor, 17 minutos: http://muda.radiolivre.org/site/site_antigo/videos/Deus_e_o_Diabo.mpg .

350 A esse respeito ver o texto “Manifesto” acerca da investida policial de 2009: http://muda.radiolivre.org/site/ .

351 Como, por exemplo, no ano de 2011 o seminário “Espectro, Comunicação e Sociedade”, realizado no âmbito dos Fóruns Permanentes da UNICAMP, organizados pela Coordenadoria Geral da UNICAMP, nesta edição organizado em conjunto com a Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários: http://preac.unicamp.br/esc .

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ressonância com a definição de Félix Guattari (1981) de “fazer falar vozes menores”, não existe um esquema rígido ou mesmo um padrão de fala que estruture os programas. Tampouco há uma separação clara entre os papeis de emissor e receptor, pois há sempre a possibilidade do ouvinte se tornar programador. Este modelo de comunicação não busca, portanto, estabelecer uma linguagem contra-hegemônica capaz de superar ou fazer frente aos meios de comunicação de massa, mas estabelecer uma linguagem de ruptura frente a relação de passividade contida na chave cidadão-consumidor-espectador-receptor ensejada pelos meios de comunicação oficiais. Constitui-se, portanto, como experiência de comunicação minoritária e como espaço e prática de liberdade.

Na visita de Stallman à Muda, um encontro entre duas liberdades. Uma questão de tempo, do tempo da política. Stallman interessado em saber qual a área de abrangência da transmissão, quantos ouvintes, se eles entenderiam inglês, preocupado em avaliar a eficácia do tempo despendido com aquela atividade. Demonstrou logo na primeira pergunta um certo descontentamento com o tempo da política da Muda: mais voltado para o aprofundamento da reflexão, do que para a comunicação objetiva; tempo aberto ao acontecimento, tempo subjetivo. De certa forma, a Rádio Muda não se preocupa com o efeito de suas mensagens, pois sua própria prática constitui em si mesma uma experiência de liberdade. As diferenças podem apontar incongruências, podem gerar conflitos. No caso, apontaram certo limites, expressos na impaciência de Stallman esperar a formulação de algumas perguntas e também na recusa em acompanhar qualquer reflexão que fugisse do espectro do que considera útil e eficaz para ser transmitido dentro de sua estratégia política. No geral, houve sintonia e, por que não, troca. Foi uma honra receber e entrevistar Stallman em nossos estúdios.

A entrevista foi filmada por Paulo Tavares, que também realizou algumas perguntas. E Aline Yuri Hasegawa efetuou a transcrição e tradução a partir desta filmagem. O texto da transcrição/tradução foi editado para adaptar a linguagem falada à forma-texto; e referências foram inseridas em notas de rodapé.

***

Campinas, 23 de junho de 2009

[Chegamos de táxi, o carro subiu no ciclo básico até a porta da rádio, Stallman já trazia toda sua bagagem, uma mala com roupas e um colchão inflável, logo após a entrevista seguiria para o aeroporto, onde embarcaria para Porto Alegre para participar da décima edição do FISL. A rádio estava fechada, realizaríamos o primeiro programa do dia, então, antes de começarmos a entrevista, tivemos que iniciar a operação da rádio ligando seus equipamentos e seu transmissor. O estúdio fica embaixo de uma caixa d'água, seu espaço possui um formato cilíndrico, as paredes contém cartazes, quadros, recados e pixações, um ambiente que pode mesmo parecer hostil e sujo, mas que não incomodou nosso convidado]

Richard Stallman: Parece bom...

Francisco A. Caminati: parece bom?

Ok... parece bom, espero que eles entendam inglês, ou você prefere que eu fale em

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espanhol?

Eu prefiro que você fale em inglês, porque eu acho que você...

Ok... mas o que as pessoas que estão escutando vão entender melhor?

Você sabe, como pôde ver ontem na conferência, há muita gente aqui que entende inglês, havia mais pessoas na sala em que se falava em inglês...

E poucas na sala onde foi projetada a tradução...

Sim! Também estamos transmitindo pela internet, então pode haver outras pessoas escutando em outros lugares. Em que formato é feita a transmissão?

Em Ogg Vorbis.

Bom. Porque eu falaria “não” se você usasse outros formatos352.

Eu sei. Foi o mesmo formato que nós utilizamos ontem, durante a transmissão da conferência.

Bom.

Agora estamos escutando Gilberto Gil e Jorge Ben353, você conhece Jorge Ben?

Jorge o quê?

Jorge Ben.

Não, eu não conheço esse nome [e olha a capa do disco]. Que peça é essa? Essa é a peça número dois?

Sim, chama-se “Nega”. Depois dessa música, nós começamos.

352 Ogg Vorbis é um formato livre para de encapsulamento de som que não possui nenhuma restrição de patentes (cf.: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ogg). Stallman não aceita que suas entrevistas e palestras que são transmitidas pela internet sejam feitas através de formatos proprietários ou que são objeto de patentes, como o formato MP3. Este foi o caso de uma palestra realizada em um importante evento realizado no MIT, em 2001, cuja transcrição foi publicada no livro CODE – Colaborative Ownership and the Digital Econoy (Ghosh, 2005), na qual sua fala é iniciada justamente com a explicação de sua opção. No dia anterior a essa entrevista, no Encontro realizado na Casa de Cultura Tainã (ver seção anterior), um conflito semelhante ocorreu, quando Stallman tento recusar assistir a projeção de um vídeo em formato flash, que seria projetado a partir do site da Rede Mocambos. No entanto, como mostramos anteriormente, ele acabou, por fim, assistindo ao filme, abrindo uma rara exceção. A FSF possui inclusive uma campanha para que seja difundido e adotado o uso do formato livre Ogg Vorbis intitulada “Play Ogg”: http://www.fsf.org/campaigns/playogg/en/ .

353 Gil & Jorge: Ogum, Xangô, 1975, 10 faixas, duplo, Philips Records, Brasil. Cf.: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gil_%26_Jorge:_Ogum,_Xang%C3%B4 .

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[Enquanto a música toca, Stallman segue operando seu computador portátil, provavelmente respondendo e-mails]

105.7 FM, FM livre, essa aqui é a Rádio Muda, uma rádio livre, e estamos aqui com Richard Stallman, “o cara” do SL, o criador do conceito de SL e uma pessoa que é devotada a lutar pela liberdade no ambiente da informação, no ambiente digital.

Olá, Richard, é um grande prazer tê-lo aqui conosco, tê-lo aqui neste espaço. Estamos aqui em uma estação de rádio livre, uma tradicional rádio livre brasileira e, ao contrário de nossa precariedade, como você pode ver pelos equipamentos muito velhos, somos uma das mais antigas rádios livres em atividade no Brasil.

Antes de começarmos a entrevista, gostaria de te contar sobre um acontecimento recente, para que você entenda um pouco do significado do “livre” em nossa experiência de rádio livre. No último mês de fevereiro [de 2009], tivemos a visita da Polícia Federal e eles apreenderam todos os nossos equipamentos, incluindo o transmissor FM, porque eles dizem que é um crime fazer rádio livre. Uma pequena rádio, com uma transmissão de alcance bem limitado. Eles dizem que isso é um crime e, por isso, eles vieram aqui e levaram todo nosso material. Mas como você disse ontem, consideramos um crime maior proibir as pessoas de se expressarem, de se organizarem em comunidade, de ativarem suas vizinhanças. Então nós estamos aqui fazendo nossa própria vizinhança e entendemos que não precisamos pedir permissão para ter nossa vida comunitária, para falar entre nós. Então nós achamos que devemos lutar por esses direitos, mesmo que precisemos desrespeitar as leis do governo.

Nos EUA, há um grande movimento para legalizar rádios de baixa potência, e ele parece ter sucesso. Por que vocês não lutam para legalizar essa rádio?

Legalizar? Nós não queremos fazer isso, nós não estamos tão interessados em legalizar esta rádio, porque aqui no Brasil, antes de legalizar nós precisaríamos de uma lei que fosse benéfica para o tipo de comunicação que nós fazemos. E as leis atuais de comunicação não nos interessam, pois foram feitas justamente para impedir que esse tipo de comunicação seja possível. Sem contar que, você sabe, as leis no Brasil funcionam apenas para manter os pobres em seu devido lugar. Elas só funcionam sobre os pobres, sobre... nós ainda não somos uma democracia plenamente desenvolvida, penso que o contexto é um pouco diferente aqui. É o mesmo contexto da Lei Azeredo, a lei que eles estão tentando implementar aqui para emplacar a retenção de dados dos usuários de internet. E no Brasil, nós podemos dizer que as leis elas servem mais para criar [tipificar] crimes do que para prover direitos aos cidadãos. As regulamentações não são pensadas para favorecer as práticas dos cidadãos ou dos usuários, as regras são criadas para tipificar práticas e condutas como crimes, para proibir o que o povo está fazendo. Então é por isso que não estamos interessados em legalizar essa rádio.

Bom, mas vamos começar a entrevista... Eu gostaria de fazer algumas perguntas a você, porque você está sempre viajando pelo mundo para disseminar a filosofia política do SL. Eu leio muito seus textos e num deles, escrito em 1998... escrito no momento em que criaram o conceito Open Source, você diz: agora é tempo para nós enfatizarmos

340

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o aspecto político do SL. Você diz que não estava mais interessado em desenvolver boas máquinas, mas que você estava interessado na liberdade...

Eu acho que não preciso estar aqui, você não está fazendo perguntas, está só fazendo um discurso...

Desculpa, é que eu preciso dizer isso para contextualizar o que eu quero perguntar...

Risos

Ele está aqui rindo da minha cara dizendo que eu não preciso dele se for para eu ficar falando sozinho, enfim... então eu vou parar com essa falação...

(Stallman toma a palavra)

Bem, eu expliquei melhor o que o SL significa. O que significa SL? SL é um software que respeita sua liberdade; e há 4 liberdades específicas, que todo usuário de um programa deseja ter: A liberdade zero é a liberdade de rodar o programa como você desejar.

A liberdade um é a liberdade de estudar o código fonte e mudá-lo para fazer o programa fazer aquilo que você quiser.

A liberdade dois é a liberdade de ajudar seu vizinho; essa é a liberdade de redistribuir cópias exatas do programa.

E a liberdade três é a liberdade de contribuir com sua comunidade; essa é a liberdade de distribuir cópias de sua versão modificada, se você as fez.

Agora, cada uma delas, literalmente, você precisa ter para que você possa fazer se você quiser, mas nenhuma delas é uma obrigação, nenhuma delas é um requisito. Você pode ter um programa livre, mas você não precisa rodá-lo se você não quiser. Você deve ser capaz de estudar e modificar o código fonte, de ter isso, mas se você só quiser usá-lo da maneira que você o conseguiu e nunca olhar ao código fonte, isso também está OK. Afinal, nem todos são programadores.

Você deve ser livre para distribuir cópias a outras pessoas, mas eu não diria que você tem o dever de sempre dar uma cópia sempre que alguém lhe pedir uma. Se um amigo pedir, será egoísmo não lhe dar uma cópia, então você provavelmente daria, mas não é um requisito. É uma liberdade. E também, se você fizer uma modificação, você não é obrigado a distribuir cópias, você deve se sentir livre para fazer isso, se você quiser. Então essas 3 liberdades significam que os usuários controlam o software, mas [de maneira], ao mesmo tempo, coletiva e individualmente. Porque o desenvolvimento geral do programa é determinado por usuários que se preocupam em se envolver, mas qualquer um que discordar com o que os demais estejam fazendo, é livre para modificar o programa e fazer o que ele quiser. Você não precisa seguir as referências de todo mundo.

Então, essa é a única maneira em que o software e a computação pode respeitar a liberdade

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das pessoas. Softwares proprietários comuns são software divididos e regrados. Eles mantêm os usuários divididos e desamparados. Você pode ver isso: eles proíbem a distribuição de cópias e isso é para manter as pessoas divididas. Eles não te deixam ter acesso ao código fonte, então isso mantem os usuários desamparados. Então é um tipo de sistema colonial, um tipo de colonização digital, que não deveria existir. Agora, eu venho pensando nestes termos políticos, desde o começo, desde que eu comecei este movimento em 1983, mas este não foi o início do SL. Haviam SL anteriormente, na década de 1950 e eu não o inventei, pois eu havia acabado de nascer. Mas na década de 70, eu me tornei parte do modo de vida do SL, que não era único naquela época.

Mas já se usava o termo Software Livre nessa época?

Não, eu não me lembro se nós usávamos ou não o termo SL na década de 70

E todos os softwares eram livres?

Não, não todos. Haviam softwares que eram livres e softwares que eram proprietários.

Mas o SL não era raro na década de 70, quando eu basicamente comecei a me tornar um programador. Havia muitos softwares proprietários, mas também havia muitos softwares livres, até mesmo sistemas operacionais livres existiam. Então, de certa forma, eu encontrei meu caminho até o maior SL, porque daquela maneira eu poderia mudá-lo no que eu quisesse e não apenas naquilo que eles me contrataram para mudar. Então eu comecei a amar o SL porque ele existia realmente. Porém, ele praticamente desapareceu ao longo dos anos 70. Por volta de 1978, SL era muito raro. O laboratório onde eu trabalhava era o único lugar que tinha isso. Na verdade, que tinha muito SL. Em outros lugares, talvez tinham um pouco de SL.

E, então, aquela comunidade morreu no início dos anos 80, e a perspectiva de continuar vivendo minha vida sob a colonização do software proprietário, sujeito a eles, era odiosa para mim porque eu tinha um padrão de comparação; pois eu havia vivido um modo de vida baseado no SL. Então, como normalmente acontece, algo é ameaçado para as pessoas começarem um movimento para proteger isso. E foi isso o que eu fiz. Eu comecei o movimento de SL. Eu disse: eu vou começar a desenvolver um novo tipo de sistema operacional livre, para tornar possível novamente que as pessoas usem seus computadores livremente.

Agora, o que aconteceu foi que, durante a década de 1990, basicamente nós tivemos sucesso em desenvolver um sistema e ele estava se difundindo, se espalhando. Era o sistema operacional GNU, que é usado juntamente com o programa Linux: a combinação de GNU + Linux. Mas ele começou a se espalhar entre techs354 que majoritariamente tinham valores de engenheiros. O que eles gostavam era um software poderoso, confiável, conveniente, eficiente. E eles também gostavam da ideia de que as pessoas lhe dessem cópias sem lhe cobrar dinheiro. Então eles poderiam obtê-lo barato.

354 Tech é um termo que deriva do termo técnico. Podemos apresentar como um termo nativo de auto-identificação utilizado por pessoas que, profissionais ou não, manejam e dominam programação e a configuração de computadores.

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Mas a maioria deles nunca havia pensado sobre a questão da liberdades, que o que foi o que me motivou para tornar o sistema existente, que organizei os esforços para fazer isso. Então, já naquela época eu me esforcei mais para escrever e falar sobre esse tema. Então, durante os anos 1990 houve uma disputa entre aqueles de nós que nos preocupávamos acerca da liberdade e solidariedade social e aqueles que apenas se preocupavam com valores de engenheiros, vantagens práticas e somente isso. Em 1998, esse segundo grupo escolheu o termo Open Source. Então, obviamente, eu não uso esse termo. Eu apenas o menciono para dizer que ele é uma ideia diferente com a qual eu não concordo.

Ontem você disse que essa diferença entre SL e OS, essa diferença não está inscrita no código.

Na verdade, não. Eu disse duas coisas. Duas coisas diferentes, e parece que você está misturando-as. O que eu disse em primeiro lugar foi que a diferença entre o software livre e o não livre não é uma questão do que diz o código, não é uma questão do faz o programa. É uma questão de qual sistema social é imposto aos usuários do programa. Se o sistema social do programa respeitar a liberdade e a solidariedade social, usando as 4 liberdades, então ele é um SL. Se você lançar o mesmo programa, mas sem liberdade, esse seria um software proprietário. Então, o mesmo programa pode ser SL ou pode ser software proprietário, e em algumas vezes o mesmo programa é lançado das duas maneiras ao mesmo tempo. Então, se você tiver a versão livre, você tem liberdade, mas a versão proprietária do mesmo software lhe rouba a liberdade.

Então liberdade como acesso ao código fonte é uma condição à liberdade, mas não é a liberdade ela mesma, somente isso...

É parte da liberdade que nós precisamos, mas não é a coisa toda, não é suficiente por si só, mas é absolutamente essencial, porque o código fonte lhe dá a liberdade número um, normalmente. Há algumas máquinas que são projetadas para que se você colocar um programa alterado, elas dizem: “softwares modificados não são permitidos” e então elas desligam, elas não funcionam de maneira alguma. Então, nesse caso, você pode ter o código fonte, mas você não tem a liberdade de usar sua versão modificada. Então isso não é bom o suficiente.

Mas quando você diz, que você está falando sobre SL e software não livre, você está incluindo o OS juntamente com o software proprietário, no sentido da liberdade ou não?

Não, eu apenas não quero usar o termo OS porque esse é termo usado para difundir outra filosofia que deliberadamente não levanta questões acerca da liberdade em termos éticos e políticos

Mas não há conflito [entre o SL e OS]?

Conflito em que nível? Nós estamos falando sobre uma série de programas ou nós estamos falando sobre uma filosofia? O grupo de programas que são OS é um pouco maior do que o grupo de programas que são SL. A maioria dos programas OS são SL, poucos não são. Mas eu não estou interessado nesse grupo particular. A única razão porque me interessa falar de OS é dizer por que eu discordo de sua filosofia. Vamos fazer essa entrevista sobre SL e

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liberdade porque eu acho que é um tópico que é importante. OS não é importante, a não ser no sentido de que ele distrai a atenção da liberdade.

OK, mas eu estou interessado nisso, porque você não vê nada ameaçando a liberdade do SL?

Há muitas coisas que ameaçam à liberdade dos usuários do SL. Em primeiro lugar, todo programa não livre ameaça a liberdade do usuário. Se você o usa, você desiste da sua liberdade para usá-lo, então é como uma armadilha. É a isca, a isca do programa são os recursos que este programa não-livre possa ter...

Há outras coisas também. Por exemplo: o governo brasileiro distribui um programa não livre para as pessoas declararem seus impostos. Isso é totalmente injusto, o governo está se opondo à liberdade do povo.

Deixe-me por em termos do movimento, do movimento SL, coisas que afetam o movimento SL, que ameaçam o movimento...

Eu acho melhor eu terminar de responder à questão sobre coisas que ameaçam nossa liberdade e então retornar a esta outra questão. As ameaças à nossa liberdade também incluem coisas como formatos secretos, por exemplo, tem um formato de vídeo chamado VC1, que é secreto. A única maneira de conseguir uma cópia é sob um acordo de sigilo (non-disclosure agreement), para conseguir uma cópia das especificações do formato. Na Itália, a televisão pública usa esse formato para distribuir ao público. Isso é um ultraje. É como publicar um livro em um alfabeto que as pessoas não podem ler, porque todos que souberem vão desvendar seus segredos. Isso deveria ser ilegal essa prática.

Então, outra ameaça vem nas patentes sobre ideias de softwares, técnicas de software e recursos de softwares. Em alguns países essas patentes são permitidas. E há centenas de milhares deles e é impossível escrever um programa grande sem implementar uma ideia que já tenha sido patenteada. Um programa grande combina milhares de ideias. Se 10% das ideias que as pessoas tem usam uma patente, então nós podemos esperar que, na média, o seu programa será proibido por centenas de patentes diferentes ao mesmo tempo. E haverá centenas de possibilidades diferentes de processos jurídicos contra você por ter escrito o programa, mesmo se você escreveu todo o programa você mesmo. E se você distribuir cópias para as pessoas usarem, elas também poderiam ser processadas, pelo programa que você deu para elas. Porque aquele programa contém a implementação de ideias patenteadas.

Outra ameaça vem dos Digital Restriction Managements, os DRM355. Essa é a prática de máquinas projetadas, em particular software, que se recusam a servir seus proprietários. Elas são projetadas para restringi-lo. Em particular, elas são projetadas para tentarem impedi-lo de fazer cópias, suas cópias, de trabalhos públicos. Isso, por si só, é injustiça, porque compartilhar cópias de trabalhos públicos deveria ser direito de todos. Compartilhar é bom! Combater o compartilhamento é ruim, é do mal (evil). De forma que compartilhar cópias de trabalhos públicos deve ser legalizado. E todas as tentativas de tentar impedir o povo de

355 Aqui Stallman utiliza uma descrição alternativa do sentido de DRM que, originariamente, refere-se a Digital Rights Managements. O sentido empregado por Stallman, remete à campanha Deffective by Design (Defeituoso por projeto): http://www.defectivebydesign.org/.

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compartilhar é uma injustiça. Eu estou falando de compartilhamentos não comerciais. Eu não me importo se há leis restringindo negócios de comercializarem e venderem cópias. Mas o compartilhamento não-comercial é um ato de amizade, e os governantes devem defender a liberdade de seus cidadãos a fazer isso.

Uma outra ameaça é que os hardware contenham especificações secretas e esse é um problema comum e sério. Várias peças de hardware em num computador não trabalham com SL e a razão é que nossa comunidade de desenvolvedores, mesmo eles sendo capazes e motivados, não conseguem descobrir qual a função que a peça executa, não conseguem saber seu modo de empleo [e aqui ele falou em espanhol]. Eles te vendem o produto, mas não te falam como usá-lo. Tudo o que eles fazem é dar-lhe um programa proprietário e dizer-lhe: “este programa vai utilizar o dispositivo”. Bem, se o modo de uso da peça é um segredo, nós não podemos escrever um programa para fazê-lo funcionar, a menos que possamos descobrir por experimentação.

Na verdade, mal podemos usá-lo...

Bem, não podemos utilizá-lo com liberdade! Então, com efeito, o que devemos fazer é rejeitar isso e não usar de modo algum. É uma situação ruim. Então há muitas ameaças à nossa liberdade. E algumas vezes estas ameaças são combinadas.

Agora, sobre a outra questão, coisas que podem minar nosso movimento, a principal coisa que enfraquece o movimento de SL é que a maioria dos usuários de computadores não se acostumaram a exigir liberdade. De fato, eles nem sequer pensaram sobre a questão; eles nunca ouviram sobre a ideia de que eles devem ser livres, que eles merecem ser livres! Porque ninguém nunca disse isso para eles. Eles apenas escutaram discussões acerca de software em termos de praticidade e de conveniência ou, então, em termos de falta de praticidade ou falta de conveniência. Então eles julgam pela eficiência, confiabilidade, recursos, preço... somente por aspectos práticas. Mas eles não perguntam: se eu usar este programa, o que ele faz com o meu modo de vida? Que tipo de vida ele impõe a mim ou ele me deixa ter? Que sistema social vem com esse programa? Essa é a pergunta que eles não perguntam. E essa é a questão central sobre a qual o movimento SL se constitui.

Então, sobre essa questão, as pessoas que promovem o OS estão impedindo nossos esforços, pois elas reforçam a prática de falar apenas sobre questões práticas. Eles apenas levantam as questões práticas e eles dizem algo que vem até o meio do caminho do que dizemos. Eles dizem: se os desenvolvedores deixarem os usuários estudarem e modificarem o software, e redistribuírem suas versões modificadas e assim por diante, eles defendem que que isso vai geralmente levar a softwares que são superiores do ponto de vista prático. E, se isso for verdade, eu acho que essa é uma razão extra para querer a liberdade. Porém, eles não vão tão longe quanto nós. Por exemplo, eles geralmente não condenam os DRM. De fato, há companhias que propõem “DRM Open Source” . Eles dizem que se os software DRM deixarem as pessoas estudarem o código fonte e distribuir versões modificadas, que isso vai permitir que estes dispositivos possam “trabalhar de maneira mais confiável”. Contudo, neste caso, se o trabalho do programa é nos restringir, e se ele trabalhar de maneira mais confiável, isso vai tornar nossa vida uma prisão confiável de onde não poderemos escapar. Então, de fato, isso é ruim, é do mal; não ébom. E a razão é que os usuários não tem controle sobre o programa, pois quando eles distribuem o programa, eles o fazem “TIVOized”. TIVOization é a prática em que eles constroem o programa de modo que se você instalar uma versão

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modificada, ele não rodará. Então, sim, nós todos podemos estudar o código fonte, propor versões modificadas, nós só não podemos usar nossas versões modificadas ao invés da versão deles. Então, qualquer um que propuser uma versão que nos restrinja de maneira mais eficiente, eles irão adotá-la e a usarão para nos restringir mais e de modo mais difícil de escaparmos.

Mas se nós quisermos mudar o programa de modo que nos possamos escapar da prisão, então nós não seremos capazes de rodá-lo. Então isso pode ser OS, mas não é SL, porque não é algo que nos deixa viver em liberdade.

Certo, muito interessante. Eu perguntei isso porque eu vejo muitas comunidades de desenvolvimento colaborativo, que são OS...

[Nesse momento Stallman balança a cabeça negativamente pois, mais uma vez, estou falando sobre open source.]

– me desculpe falar novamente de OS, mas eu estou interessado em como isso afeta o SL, em termos de seu próprio processo de...

[Minha intenção era perguntar se o estabelecimento de relações de colaboração entre comunidades e empresas para o desenvolvimento de aparelhos que combinam tecnologia fechada com SL, não afetam a própria dinâmica de constituição do movimento SL e sua evolução como um movimento em defesa da liberdade. Sobretudo para testar algumas hipóteses que eu já estava elaborando sobre o estudo de caso realizado sobre a Nokia e a comunidade Maemo]

No que concerne o desenvolvimento de um programa, enquanto o programa realmente for livre, de fato não há diferença entre o que as pessoas fazem em respeito às suas filosofias políticas. Quando nós temos projetos de software, nós os fazemos, basicamente, da mesma maneira que os apoiadores do OS o fazem e nós trabalhamos conjuntamente. Nós não excluímos pessoas de nosso desenvolvimento de software por causa de suas visões políticas, enquanto elas contribuírem, nós as aceitamos. E se suas contribuições são boas e feitas da maneira certa, nós a aceitamos. Mas os ativistas de SL, geralmente colocam coisas em seus software e dizem: “Nós fazemos isso pela liberdade. Nós defendemos sua liberdade.” Se uma pessoa discorda disso, bem, ele pode não querer participar e obviamente não precisa. Ao passo que pessoas com visão política associada ao OS provavelmente farão afirmações que rejeitam a ideia de liberdade. E eu não poria nenhum esforço para ajudá-los, mas ocasionalmente eu posso. Se eu achar um bug no programa deles, eu diria-lhes, o que é uma maneira de ajudar. Muitas pessoas acham que reclamar é um ataque, mas para nós, reclamações são o que precisamos. Nós precisamos desesperadamente que você reclame sobre qualquer coisa que não funcionar em nosso software. E, no projeto GNU, nossa política é que os desenvolvedores devem agradecer os usuários por cada reclamação específica e clara que receberem.

Bom, de agora em diante eu apenas falarei a respeito do SL. Eu gostaria de saber saber quais implicações das visões políticas do SL para o Terceiro Mundo, pois eu sei que você viaja muito à Índia, ao Brasil.. ontem você estava falando sobre o que está

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acontecendo no Peru com os indígenas356 que estão lutando pela Amazônia.. você também disse algo sobre o Equador. E, ontem, nós fomos à Casa de Cultura Tainã, e você escutou o TC falando que já fazem 10 anos que eles estão trabalhando sobretudo com as ideias políticas e a filosofia do SL, a filosofia GNU. De forma que eu gostaria de saber como você vê o SL neste contexto particular do Terceiro Mundo?

Bem, isso é diferente de lugar para lugar. Equador é o melhor exemplo que eu posso citar onde o governo ativamente promove o SL. O presidente Correa é realmente bom – e essa é apenas uma área na qual ele é realmente bom. Ele decidiu mudar o país para o SL, dentro do que é possível de ser feito em um país democrático. Pois você não pode simplesmente proibir o software proprietário, isso é algo tão extremo que eu também não recomendaria. Não é bom fazer leis que a maioria das pessoas queiram quebrá-las, até mesmo contra algo do mal, como o software proprietário. E o que eles estão fazendo? As agências do governo já estão migrando seus sistemas para o SL, e há uma agência específica encarregada em migrar todas as agências para o SL357. E eles tem requisitos específicos: você não está autorizado a instalar software proprietário, a menos que você consiga demonstrar uma necessidade muito clara. As agências devem mudar para o SL, e estão postando o progresso das várias agências. E agora eles estão começando a planejar o SL nas escolas públicas. Então isso é muito bom.

O Brasil teve uma política informal, que parcialmente migrou para o SL, mas não é uma política firme que aplica a todos os lugares. O governo brasileiro em alguma extensão mudou para o SL.

E para além de experiências governamentais? E a respeito de experiências locais?

Eu não as conheço.

Como as que vimos ontem, você normalmente não vai a lugares como o que fomos ontem [a Casa de Cultura Tainã]?

Bem, de vez em quando eu vou. Há alguns anos atrás, no Brasil, eu visitei os Telecentros, eu acho que foi em São Paulo e eu acho que isso era uma coisa boa também. Mas eu fui visitar um outro que era no Rio de Janeiro, que era dentro de uma biblioteca, e era um lugar de difícil acesso e o que eu notei foi que eles instalaram um sistema operacional livre – GNU+Linux – mas eles não disseram nada sobre isso. Eles não fizeram nada para ensinar as pessoas sobre sua própria liberdade, então isso não me pareceu muito bom. Então, as coisas variam. E, em alguns países, eles estão apenas colocando suas cabeças sob o solo e convidando a Microsoft a pisar em seus pescoços.

Essa universidade aqui faz isso.

Você diz que essa universidade é subserviente à Microsoft?

356 Na conferência do dia anterior, Stallman se referiu ao levante indígena contrário a alteração da constituição do Peru para permitir a intensa exploração econômica de áreas de floresta amazônica por empresas estrangeiras que ficou conhecido como Baguazo. Cf.: http://caminati.wiki.br/Main/Bagua .

357 A agência que Stallman se refere é a Subsecretaria de Tecnologias da Informação ligada ao Ministério do Planejamento: http://www.informatica.gob.ec/ .

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Totalmente.

Sim, há muitas universidades que são, que basicamente engatam com a Microsoft e eles promovem os produtos da Microsoft aos alunos. Isso é um ultraje absoluto e deveria parar! De fato, deveria haver protestos contra isso. A universidade... nenhuma escola deveria promover software cujo conhecimento é guardado do público. É isso o que o software proprietário é. Ele é oposto ao espírito da educação e qualquer escola que ensine, distribua ou promova softwares não-livre está atacando a educação. Isso deve parar. Então os estudantes devem se organizar para por um fim aos software proprietário em seus campus.

Nesta manhã, eu li uma mensagem de que em Cuba a Universidade de Ciências Informáticas acabou de fazer o plano para a migração completa para o SL. Eles já utilizam o SL para suas aulas de programação e agora eles migraram o servidor de e-mails e estão começando a migrar todos os computadores que os estudantes usam e qualquer um que use em outra aula. Mas eles tem um plano, então isso vai levar um tempo. Obviamente migrar qualquer universidade levará tempo, de outro modo você fará numa grande pressa e isso causa muitos problemas. Eu escutei falar sobre uma universidade no Brasil, cujo nome eu não me lembro mais, era algo como 8 anos atrás, que teve que migrar depressa. Porque eles não conseguiam manter os pagamentos das contas pelos softwares não-livre que eles estavam usando.

Mas você não precisa migrar depressa, está tudo bem se levar 5 anos, mas isso significa que você terá que tomar um grande passo a cada ano e então você chegará lá.

Mas então você não vê algo que é específico para esses países não centrais? Os países fora do mundo euro-americano? Porque eu estou interessado nos aspectos culturais dessas experiências...

[Stallman toma o microfone e começa a responder]

Isso é muito diferente em países diferentes. Por exemplo, na Índia tem um movimento SL muito forte... Bem, isso varia. É mais forte em alguns países, mas a maioria dos usuários usam Windows e nunca pensaram em outra coisa. Há muitas companhias de desenvolvimento de software e a maioria delas tem fortes relações com a Microsoft; e a Microsoft basicamente disse a elas: “Apoiem tudo o que nós queiramos”. E assim elas fazem. E o governo central, o governo federal, o governo da Índia não tem feito nada para apoiar o SL, mas vários Estados tem feito algo358.

O que contrasta com a China, onde de vez em quando alguém do governo fala algo sobre promover GNU/Linux, não pelo bem da liberdade, obviamente, porque o governo da China é um inimigo da liberdade em qualquer nível, mas pelo bem da... você poderia dizer: suficiência nacional e segurança nacional. Porque obviamente usar software proprietário em agências do governo ameaça a segurança nacional porque isso significa que as agências do governo não controlam seus próprios softwares. E usar software proprietário no exército é muito perigoso: e

358 A referência de Stallman à Índia é válida sobretudo à experiência do Estado de Kerala que desde 2005 realiza uma política de migração e de adoção de SL que vem sendo bastante reconhecida internacionalmente. Para referências de narrativas que apresentam a história do SL em Kerala e também para textos governamentais que apresentam os conceitos e objetivos da política de adoção de SL consultar ANEXO WK-25.

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se o desenvolvedor desse software proprietário estiver trabalhando para seu inimigo? Isso seria uma ótima oportunidade para te atacar. Então, por exemplo, eu me encontrei com alguém há uma semana atrás, do Exército Brasileiro, e esta pessoa disse disse o Exército Brasileiro mudou para o SL, o que é um ato sábio porque o Brasil não deveria ser vulnerável ao fato de ter Washington solicitando à Microsoft que desligue todos os sistemas do exército. Contudo, por muitos anos não houve nenhum movimento SL na China. Agora há um, mas não é tão grande. E então, considerando a África, na maioria dos países da África, os governantes estão totalmente aliados à Microsoft.

Onde você esteve lá?

Eu estive em muitos países lá na África, mas eu escuto sobre isso também. Por exemplo, o Egito mandou enviar um navio com um laptop por criança359 com Windows neles. E então Chile está distribuindo pequenos computadores...

Chile? Na América do Sul?

Sim. Está distribuindo computadores e oferece a opção de GNU/Linux ou Windows. Mas o resultado é que muitas pessoas escolhem o Windows, o que significa que esse projeto, basicamente, somente está aumentando a sujeição deste país. Então este é um projeto muito danoso. Os países variam tremendamente em suas políticas sobre o SL e até mesmo se eles tem um movimento SL.

Na Rússia há algumas pessoas interessadas em SL, mas dificilmente há algum movimento SL. O governo, de certa forma, está demandando o SL, mas obviamente por nenhuma razão considerando a liberdade de seus cidadãos.

Paradoxalmente em Cuba até alguns anos atrás havia quase nenhum interesse em SL. E a razão é que a Microsoft não pode processar ninguém em Cuba. Com efeito, os usuários de computadores em Cuba não podem pagar a Microsoft, mesmo se quiserem. Então, o resultado, é que todos estavam copiando o Windows e achavam que estava tudo bem. Não ocorreu a eles que eles estavam deliberadamente entregando seu país nas mãos da Microsoft, e colocando-o em perigo, em risco. Então, agora, o governo está apoiando o SL e esta começando o ativismo a favor do SL entre o povo também. Esse é um desenvolvimento muito recente. O movimento SL é muito mais forte no Brasil do que em Cuba, por exemplo.

[Paulo Tavares pede que a entrevista seja interrompida momentaneamente para trocar a fita da câmera. Alexandre Oliva360 chega para pegar a bagagem de Stallman. Uma música é executada, do mesmo disco que tocava anteriormente: Gil & Jorge. O microfone falha quando vou anunciar o intervalo na entrevista e a execução da música. Stallman dá risada e afirma, para Oliva, que também ri com a cena, que se trata de um verdadeiro “freakophone”, e comenta qualquer coisa a respeito de parecer que a rádio possui poucos ouvintes. Oliva

359 O “um computador por criança”, na sigla em inglês, OLPC, é um projeto criado por Nicholas Negroponte – um dos fundadores do MIT Media Lab – cujo objetivo é prover computadres portáteis, robustos, baratos, com baixo consumo de energia e com capacidade de conexão à internet para crianças pobres de todo o mundo. Cf.: http://one.laptop.org/.

360 Alexandre Oliva é um renomado programador vinculado à empresa Red Hat, desenvolvedor do compilador GCC, presidente da FSFLA, e um dos organizadores da visita de Stallman à Campinas-SP. Nessa ocasião, era ele que o levaria até o aeroporto para a continuação de sua viagem.

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discorda, dizendo que a rádio é bastante conhecida e querida pelos estudantes, e que quando ele estudou na UNICAMP, ele lembra que escutava a rádio para saber se deveria ir ou não ao Restaurante Universitário, pois se a comida do dia não estivesse boa, era comum as pessoas irem até a Rádio para protestar e alertar os colegas para não irem lá. Risos]

Parece que não temos muito tempo, então é melhor nós terminarmos...

Não, nós temos mais 15 minutos.

Ok.

Então, para encerrar, proponho que apontemos alguns temas para você e você fala livremente. Pode ser?

Ok, vamos lá!

Vamos lá, então!

[Nesse momento, Stallman apressa o andamento da programação, como que não vendo sentido em esperar o fim da execução da música]

Mas, antes, eu gostaria de saber um pouco sobre uma Secretaria de Crimes Cibernéticos criadas recentemente pelo presidente Obama...

Eu não sei o que falar sobre isso...

Ok, bom... então vamos continuar nossa conversa...

[A música termina, retomamos a conversa, antes uma chamada para os ouvintes]

Alô, alô, Rádio Muda no ar. Seguimos aqui nossa conversa com Richard Stallman, último bloco! Vamos lá!

[O microfone é entregue à Stallman]

Então, o que nós estávamos falando?

Paulo Tavares: Sobre sua visita a Cuba, você estava nos dando um parecer...

Sim, eu visitei Cuba um ano e meio atrás, ou dois anos e meio atrás, eu não me lembro...

E uma das coisas que eu fiz quando eu estava lá, foi que eu gravei a música Gantanamero, que é uma música-paródia que eu fiz a respeito da Prisão de Guantánamo361. Quando eu descobri o que a palavra Guantanamera significa, eu imediatamente pensei em escrever essa paródia, foi a única vez que eu escrevi uma paródia em espanhol. Então eu encontrei alguns músicos amadores em Cuba, mas eles eram muito bons e então a gravação parece muito

361 Para um vídeo de Stallman cantando sua versão de Guantanamera acompanhado por Tc no violão, durante o Encontro realizado na Casa de Cultura Tainã, ver ANEXO WK-11.

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boa. Eu espero que isso pressione de alguma forma [pelo fim da prisão de Guantánamo] e ajude a apoiar os direitos humanos.

De qualquer maneira, enquanto estive em Cuba, eu dei alguns discursos sobre SL. Um ocorreu em uma conferência internacional e eu fiquei maravilhado ao descobrir que, apesar de tudo, eles colocaram meu discurso na televisão nacional. Eu estava andando no centro de Havana com algumas pessoas e vi uma livraria. Decido entrar para ver os livros, e a pessoa que gerenciava disse que ela havia admirado meu discurso que ela havia visto pela televisão, e que, por isso, eu poderia pegar qualquer livro que eu quisesse. E eu nem sabia que eu havia estado na televisão!

Eu dei outro discurso na Universidade de Havana e, apesar de alguns estudantes terem achado a ideia [do SL] excitante, os professores, em geral, foram contra ela. Eles apenas pensaram que era bobo pensar nessas questões. E na Universidade de Ciências Informáticas, lá, havia muito mais entusiasmo, lá eles tinham uma Faculdade de SL e foi o diretor dessa faculdade quem me convidou, então eu disse que o trabalho dele não deveria existir, porque ter uma Faculdade de SL implica que as demais unidades da universidade não estão usando SL e somente eles estão usando SL, de forma que eles deveriam se livrar deste trabalho. Então agora ele está trabalhando nisso.

Eu também conheci alguém em Cuba que realmente me impressionou. Foi Osvaldo Payar, que é um dos líderes dissidentes. Osvaldo Payar começou, por volta de uma década atrás, ele começou um referendo para demandar voto de uma emenda na constituição de Cuba e de acordo com a constituição de Cuba, se você conseguir 10.000 assinaturas, provavelmente você conseguirá um referendo. Ele começou o referendo para coisas como liberdade de discurso e outros direitos humanos. E ele conseguiu 17.000 assinaturas de pessoas que, algumas delas agora estão na prisão por promoverem este referendo. Mas o referendo nunca foi levantado. Somente porque Cuba desafia EUA não significa que Cuba é um bom país em todos os aspectos, não se reconhece os direitos humanos básicos em Cuba e isso não é certo de forma alguma.

Eu digo isso ao mesmo tempo em que aprecio algumas coisas que o governo cubano alcançou, na saúde pública, na agricultura orgânica, mas os direitos humanos são maiores. E eu fiquei tremendamente impressionado pela força de caráter e pela força de vontade de Osvaldo Payar e o que ele fez. É muito mais difícil do que qualquer coisa que eu tenha feito, eu nunca tive que encarar esse tipo de ameaça pelo trabalho que eu faço.

Eu gostaria que você falasse um pouco sobre sua própria experiência de liberdade. Você falou, ainda há pouco, que as pessoas não ligam para a liberdade, porque provavelmente eles não escutaram falar sobre isso. Então eu gostaria de perguntar o que é a liberdade para você, quando você está usando seu computador? Algo que você experimenta, sua experiência de liberdade. E ontem você falou sobre natural born programmers, e eu gostaria que você falasse um pouco sobre isso, o que é um natural born programmers e eu imagino que você seja um natural born programmer.

Realmente, a pergunta mais interessante é: qual é minha experiência de não ter liberdade? Eu fico muito bravo quando eu percebo que minha liberdade está sendo restringida. Com efeito, eu aprendi e ensinei a mim mesmo a buscar um meio de lutar contra isso, em outras palavras, tentar transformar aquela raiva em ação. Porque muitas pessoas ficam muito bravas quando

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elas se sentem enganadas, mas a coisa importante é procurar fazer algo sobre isso, procurar uma maneira de reagir, preferencialmente mobilizando outros para reação. Então, essa é a sensação para mim.

Claro que as 4 liberdades que definem o SL, são 4 direitos humanos que você merece, mas existem outros, é apenas que estas são novas, poucas pessoas ouviram falar delas. Há muitas pessoas no mundo para estabelecerem e defenderem esses direitos humanos e algumas vezes eu descubro uma maneira de ajudar.

Então o que eu fiz foi: eu estava em uma área relativamente nova de atividade. Na década de 1970 realmente uma pequena porção de pessoas havia tocado num computador, até mesmo nos EUA uma pequena parte usavam. Mas eu estava quase vivendo minha vida em um computador. Então eu acabei podendo ver como era a realidade de um estado policial a partir de um computador, e, então, eu acabei podendo ver como era uma sociedade livre a partir de um computador. E naquele tempo a maioria das pessoas sequer havia olhado (glimpsed) para um computador. Então, eu estava preparado para reconhecer uma nova questão de liberdade, que agora afeta uma grande porção de pessoas, em vários países. E talvez em 20 anos isso vá afetar uma maior porção das pessoas na terra. Então, quando novos modos de vida aparecem, novas questões acerca da liberdade aparecem também. E foi o que eu fiz.

E a razão de eu estar vivendo aquela vida na computação é que eu era um natural born programmer. Para mim a programação era fascinante e eu era capaz de fazê-la, era tremendamente fácil. Eu tinha uma memória muito boa para detalhes de como um grande programa pareceria. Eu lembraria: bem, naquela parte trabalha desse jeito e a razão é que eu tentei fazer de outro jeito, ou alguém tentou fazer de outro jeito e levou a esse problema. Então eu sei que não é para tentar aquilo de novo, se a maneira corrente leva a outro problema, eu sei que eu tenho que achar um outro caminho para evitar todos os problemas que nós tivemos antes... E é isso o que precisa para você ser um programador muito bom: a lógica deve ser muito natural e é preciso ter uma boa memória. E ajuda também ser fascinado em construir coisas e, em particular, programas.

Então, há outros natural born programmer, trata-se de uma pequena fração de pessoas, mas devem ser uns milhares e não milhões. No entanto, a questão crucial é: o que você vai fazer com seu talento? Você vai usar seu talento somente para ganhar dinheiro? Ou você vai usar seu talento para tentar subjugar outras pessoas? Ou você vai usar seu talento para tentar libertar outras pessoas? Essa é a decisão que nós temos que tomar.

Nós ainda temos um minuto e eu gostaria que você falasse sobre qualquer coisa que você quiser. Isso aqui é uma Rádio Livre!

[Stallman rapidamente toma o microfone e começa a falar]

Leia alguns sites para mais informações. Há o gnu.org; há o fsf.org é a Free Software Foundation; e há o fsfla.org, Free Software Foundation of Latin America, cujo presidente mora aqui em Campinas. E você também deveria visitar deffectivebydesign.org que é uma campanha de protesto contra os DRM, contra dispositivos cuja funcionalidade é a de se recusar a funcionar.

Então, é isso. Feliz hacking (happy hacking), pessoal! Obrigado!

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Happy hacking! Muito obrigado, Richard Stallman!

E agora vou falar um pouco em português para que você sinta também um pouco de como nós falamos, vou botar um sonzinho de fundo, A Novela da Mulher do Malandro [programa que começaria após a entrevista] já adentra os estúdios...

Agradecimento especial ao André, do programa Dark Side of Pierot, que gentilmente cedeu seu horário para que nós pudéssemos trazer Richard Stallman; e a Sérgio Silva que também cedeu um terço de seu programa para a gente. Sérgio, entra que ainda não deu um terço, você já pode assumir a nave...

E é isso aí, muito boa tarde! Rádio Muda 105,7 FM Livre362. Nem legal, nem ilegal: Livre e Gostosa!

362 A frequência atual da Rádio Muda é 88,5 FM.

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