Aikido

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aiki do a procura da unidade georges stobbaerts

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Livro sobre o percurso do mestre Stobbaerts no mundo das artes marciais.

Transcript of Aikido

Page 1: Aikido

aiki doa p r o c u r a d a u n i d a d e

g e o r g e s s t o b b a e r t s

Page 2: Aikido
Page 3: Aikido

aiki doa p r o c u r a d a u n i d a d e

g e o r g e s s t o b b a e r t s

Page 4: Aikido

Shité:

Aité:

Georges Stobbaerts

Stéphan Goffin

Eric Begin

João de Almeida

José António Filho

Pedro Pinto

Manuel Guerreiro

Tradução:

Ilustração da capa:

Desenhos e Caligrafia:

Aguarela final:

Fotografias:

Projecto gráfico:

Coordenação de Produção:

Impressão:

Fátima Patriarca

Miguel Raposo

Georges Stobbaerts

Autor chinês

Paulo Andrade

Alexandra Paulino

Vera Bettencourt

Triacção - Publicidade, Arqui-

tectura e Promoções, Lda.

Guide, Artes Gráficas, Lda.

AIKIDO, A PROCURA DA UNIDADE

© Georges Stobbaerts, 2001

Edição com o apoio de:

Ten Chi International

1ª Edição — Julho de 2001

Lisboa — Portugal

Depósito Legal 167140/01

ISBN 972-95475-2-1

2

Page 5: Aikido

P re fá c i o 5

In t rodução 11

I O Gue r r e i r o 15

I I O Medo 17

I I I O A ik i Do — o ge s to do i n s t an te 19

I V O Kamae — Mig i Kamae 23

V Aborda r a p r á t i c a do A i k i Do 25

V I Para um ens ino mai s avançado. O Zen 33

V I I Ken Zen Ch i 3 5

V I I I Ac t i vo - Pa s s i vo 39

I X Ko Kyu 45

X A re sp i r a ção e a s ua u t i l i z a ção 47

X I Concen t r a ção 55

X I I A Ene rg i a C r i ado ra 61

X I I I Sen t i r 6 5

X I V No co ra ção da Té cn i c a 69

.1 I r im i Nage

.2 Ten Ch i Nage

X V Temos nó s ouv ido s ? 7 3

X V I O fu tu ro é da s c r i an ça s 7 5

X V I I A fo rma do mov imen to . Ma s qua l ? 8 1

X V I I I Os t r ê s mov imen to s 89

X I X A domes t i c a ção do Bú fa lo 95

XX Os e s c r i t o s do pa s s ado . O Budo 105

. 1 Takuan

. 2 Miyamoto Musa sh i

. 3 A a r t e de D ing

. 4 Hi s tó r i a ch ine sa da d ina s t i a Song

X X I O Mes t r e , a r t e s ão s em ob j e c to 117

G lo s s á r i o 121

B ib l i og ra f i a 129 3

índice

pág . pág .

Page 6: Aikido

Agradeço aos meus mestres e alunos que, em grande núme-

ro, quiseram interessar-se pelos meus projectos desde o ínicio da mi-

nha vinda para Portugal. Os seus encorajamentos, sugestões e cha-

madas de atenção permitiram que esta obra pudesse aprofundar o

ensina-mento e a Via do Budo.

Pela realização deste livro, e a esse título, quero agradecer

mais particularmente à Fátima Patriarca pelos seus preciosos conse-

lhos, sem nunca se poupar a esforços, dirigindo com competência a

tradução do livro, ao Jorge Trigo de Sousa pelas suas críticas esclare-

cidas, à Ana Oliveira e ao Miguel Raposo por me terem encorajado

na elaboração deste livro.

Georges Stobbaerts

4

Page 7: Aikido

I

Vistos de longe, o Oriente, o Budismo, o Yoga, o Zen, con-

têm valores e propõem experiências que lembram o Cristianismo, na-

quilo em que, precisamente, este é acusado de ter falhado: acompa-

nhar a evolução espiritual do homem.

Cristianismo também visto de longe, no tempo; o homem su-

posto ter de evoluir, como já terá evoluído, de animal para antropói-

de, de antropóide para ser primitivo ou selvagem, de selvagem para

bárbaro e civilizado, de civilizado para... para quê?

Expectativa sentida agora como vã, vazia de valores e de ob-

jectivos, mal-estar da civilização, diria Freud.

Mas as civilizações também se definem por aquilo que rejei-

tam, que odeiam, temem ou mesmo abominam. E o mesmo nas pes-

soas e nos grupos sociais, onde o comportamento é, em grande par-

te, determinado pela rejeição de valores considerados alheios, opos-

tos, rejeitáveis. Valores que mais são considerados como contravalo-

res, originados por entes malfazejos e geradores do pecado e da sub-

versão, conforme estejam em causa questões religiosas ou políticas.

Esta atitude, do culto da rejeição, melhora aparentemente a

coesão de civilizações, igrejas, ideologias políticas, ou simplesmente

de associações, clubes ou famílias; no seu incitamento à desconfian-

ça do outro, permite a recusa concreta e real do universalismo.

O exotismo é ainda um culto da rejeição. Não se procura a

compreensão de outros seres, reconhecendo neles semelhantes; pro-

cura-se, com superioridade, um teatro travesti ou um circo, diverti-

mento cómico inócuo ou jogo infantil.

Estes, digamos, contravalores, encerram porém aspectos que

contrariam a almejada coesão: exercem fascínio! Fascínio pelo des-

conhecido, pelo diferente, curiosidades que levam à exogamia inte-

lectual e afectiva. Como do homem para a mulher oculta, da mulher

para o homem esperado, do urbano perante o deserto ou do pro-

vinciano perante a cidade.

p

5

p r e f á c i o

Ao deixarmos esta torrente libertar-se, há quem pense que o outro

a vai utilizar contra si. Nessa altura, não só nos encerramos sobre

nós mesmos, como somos o primeiro a atacar.

in “Introdução”

Page 8: Aikido

e nos Estados Unidos.

No Ocidente pós-colonial desenvolvem-se movimentos uni-

versalistas, a que poderíamos chamar neo-humanistas. Esquece-se fa-

cilmente o passado, ou dele nunca se teve conhecimento, considera-

-se louvável tratar por igual todas as raças, todos os povos, classes e

valores. É o chão que facilita a transformação de qualquer valor ou

qualquer novidade em desporto, competição, espectáculo, seita reli-

giosa ou produto comercial.

Isto do lado material.

Do lado espiritual, o quase desaparecimento da espiritualida-

de num Ocidente cada vez mais rico, mais atemorizado, mais infeliz,

à deriva moral e afectiva.

II

Mas vejamos outros aspectos.

As artes marciais japonesas fazem parte duma cultura não oci-

dental mas não são japonesas de origem. Como o Mestre Stobbaerts

tem feito notar, a componente e origem chinesas e mesmo indiana

do Budo são decisivas para o seu desenvolvimento no Japão.

E o que é o Japão actual? Um sincretismo de Oriente antigo

e do Ocidente recente, resultado do enxerto do industrialismo oci-

dental no tronco japonês. A própria evolução do Budo, após a aber-

tura do Japão ao exterior, na segunda metade do século XIX, é con-

dicionada pela reacção aos valores e ideias ocidentais, que começam

a entrar, acompanhando a indústria, a técnica e o comércio.

As reformas do Mestre Jigoro Kano, criando o Judo a partir do

Jiu Jitsu, e do Mestre Funakochi, criador do Karaté moderno, são dis-

so exemplo. O extraordinário desenvolvimento do Kendo, integrado

no sistema de ensino desde a mais tenra idade, obrigatório para crian-

O homem move-se, quando pode e quando o deixam, na di-

recção do que pode ser o perigo e o abismo; nunca se sabe o que se

perde, ou se se perde alguma coisa, ignorando o proibido.

Mas abismo, qual abismo?

O perigo foi o Ocidente para o Islão, para os Chineses, para

os Japoneses, e os mesmos para o Ocidente; em nome desses “ini-

migos” cometeram-se não poucas barbaridades.

Onde é que existe, objectivamente, o perigo e a perdição?

Em grande parte é apenas um temor mental e afectivo, sem

raízes reais, fruto do desconhecimento, da desinformação, facilitado

pelas carências morais e físicas.

O Japão vem a propósito e a calhar como um bom exemplo.

Isolou-se durante mais de duas centenas de anos, considerou os es-

trangeiros como inferiores e bárbaros. No xintoísmo não há lugar pa-

ra os outros povos, salvo raras excepções, é uma religião para os ja-

poneses, tal como o judaísmo, também salvo raras excepções, é uma

religião para os judeus. Ao contrário do Budismo, do Cristianismo e,

de certa maneira, do Islamismo, que se consideram religiões univer-

sais.

Como é então possível, ou mesmo desejável, a prática de ar-

tes japonesas no Ocidente? Que significado pode ter a absorção du-

ma cultura milenária, de nós afastada e pouco conhecida, que até há

poucos anos se considerava superior e não passível de ser transmiti-

da a outros povos?

Diferentes circunstâncias movimentaram o Budo, Artes Marciais

Japonesas, para fora do Japão, dispersando-o por quase todo o mun-

do. Por um lado, o fascínio e a curiosidade por práticas, ainda miste-

riosas e envoltas numa aura de eficiência sem limites. Por outro lado,

o Japão, com intenções várias, intensificou essa divulgação na Europa

p

6

Page 9: Aikido

ças e adolescentes, é fruto duma deliberada reforma governamental.

São reacções contra a ginástica e o desporto ocidentais... de

que o Japão mais tarde se torna campeão em muitas modalidades!

Reacção também contra o poderio militar da Europa e dos

Estados Unidos, de que o Japão iria conhecer as funestas conse-

quências. Reacção contra as invasões ideológicas: cristianismo, de-

mocracia, e contra a entrada de produtos que se propunham alterar

o quotidiano japonês. O próprio xintoísmo, religião de japoneses pa-

ra japoneses, conhece uma reforma profunda e uma restauração sem

precedentes.

O impacto do Ocidente no Japão é então ainda maior que

quando dos “descobrimentos”: estudo exaustivo da perspectiva re-

nascentista europeia, absorção apressada da ciência e tecnologia oci-

dentais, revolução industrial tardia mas rápida, construção de navios

de grande porte e de aviões, introdução do cinema, curiosidade pe-

la literatura ocidental.

III

O Budo Japonês começa a ser conhecido e praticado na Europa

no início do século XX. Mas são praticantes isolados, não prolifera,

poucas escolas datam dessa altura. Em larga escala, só se desenvol-

ve na Europa e na América depois da segunda guerra mundial, in-

fluen-ciado pelos contactos em massa que este conflito provoca. O

exército americano iniciou treinos de Jiu Jitsu ainda nos anos qua-

renta, para melhor preparar os soldados para as longas batalhas do

Pacífico.

A pouco e pouco, são os guarda-costas, os polícias, os agen-

tes especiais, os arruaceiros, que vão usando cada vez mais o Karaté

e o Judo em substituição do Boxe e da Greco Romana. Durante a

guerra colonial dos anos 60/70 as nossas tropas aprenderam noções

elemen-tares de Jiu Jitsu, incluindo projecções, quedas enroladas e

placadas e “atemi”.

Nos jogos de 1964, o Judo já é um desporto olímpico. E lo-

go a seguir começam a ser criadas federações mundiais de diversas

artes marciais.

A partir dos anos 70, os filmes de “artes marciais”, leia-se

“porrada”, proliferam, primeiro chineses e mais tarde americanos, su-

cedâneo, em parte, dos filmes de capa e espada e dos western. Os

heróis modernos já não sabem Boxe ou Greco Romana, sabem Karaté,

Jiu Jitsu ou Aikido.

Por outro lado, o Japão adopta o sistema político e económi-

co do ocidente: parlamentos democraticamente eleitos, liberalização

económica, novas formas de gestão de empresas, separação de po-

de-res. Desenvolve o gosto pelo golfe, pelo futebol e outros despor-

tos, tornando-se exímio e mesmo campeão em alguns, o seu cinema

torna--se numa das principais cinematografias mundiais, em quanti-

dade e em qualidade.

As civilizações, como os povos, são assim o resultado do que

vai ficando das trocas que as cruzam.

As supostas genuinidades, particularismos, identidades, são

agora abaladas, como sempre. Mas hoje mais rapidamente, com os

novos meios de comunicação. Fica, porém, uma atitude mental e uma

assunção exterior de determinadas características herdadas, resulta-

do de quem não quer aceitar que muito mudou.

Os anos 50 assistem a um grande desenvolvimento do Yoga

e do Budismo Zen, nos Estados Unidos e na Europa. Figuras tão opos-

tas como Gandhi e Mao Tse Tung exercem grande fascínio. O maoís-

mo alastra na Europa, espécie de ricochete da acção dos ocidentais

p

7

Page 10: Aikido

ou mesmo anular esse ímpeto de recusa. Saber lutar sem destruir é

então uma grande conquista, repetida através da vida e dos séculos.

Saber ver no outro um igual, com os mesmos direitos, é ou-

tra grande conquista. Saber lutar como que jogando a vida, parar

quando necessário, diluir o eu até ao mínimo sem perder a identida-

de, são já passos duma evolução posterior, que muitos não arriscam

por a conside-rar perigosa. Arriscando, os gestos de luta e de morte

poderão assumir--se em gestos de compreensão, de amizade, de amor

no sentido lato.

Contrariando Mário de Sá Carneiro, posso ser o “eu” e o “ou-

tro”, num caminho não fácil mas promissor, com menos “tédio” do

que o do genial poeta a quem faltou o golpe de asa para ir mais além...

As artes marciais podem ensinar a disciplina do corpo e da

mente, eventualmente dois aspectos da mesma realidade, que per-

mite sentir-se parte do mundo sem nele se diluir, parte da sociedade

sem ficar anónimo, amigo ou amante sem deixar de contrariar.

Não há amor sem luta. No fluxo que circula entre seres todo

o ciclo tem altos e baixos, empatias e aversões, júbilos e sofrimentos.

Parar a meio do ciclo é catastrófico, repeti-lo infinitamente vai for-

mando a espiral que, assente na memória, temperada pela sensibili-

dade e empurrada pela coragem, se aproxima da plenitude que é o

gosto de repetir e rever, como num “kata” pessoal.

Perder o medo, um primeiro passo. Para continuar até pres-

sentir o prazer de se sentir dependente na independência. Aqui a uto-

pia não é apenas uma inatingível meta, é também um método, uma

atitude, uma relação, que ao assumir o poder ser, desvenda uma in-

suspeita (ou não) realidade, um conhecimento jorrante e permanen-

te dessa mesma realidade, na qual o próprio se inclui, agora com ou-

tros olhos, outros ouvidos, outras sensibilidades.

Para crer é preciso... crer!

Este livro ajuda, e um mestre também.

Marx e Lenine.

O Aikido é introduzido em Portugal por Mestre Georges

Stobbaerts, que acaba por se fixar no nosso país.

Funda o Dojo Budokan de Portugal e mais tarde o Dojo Ten

Chi, Honbu do Ten Chi Ryu, escola de artes marciais reconhecida pe-

la Dai Nippon Butoku Kai, de quem o Mestre é representante em

Portugal.

Patrocina e ensina diversas disciplinas Budo, bem como Yoga

e Zen, e cria o Tenchi Tessen, arte que embora baseada na tradição

do Japão bem pode ser considerada portuguesa.

No Japão ficaram palavras, gastronomia e costumes portu-

gueses.

IV

Shri Aurobindo, Yogi de formação oriental e ocidental, con-

si-dera que o pensamento e a filosofia da Grécia e Índia antigas eram

semelhantes e só divergiram a partir de Sócrates.

Assim as civilizações terão tido troncos comuns, mais tarde

divergentes, influenciaram-se, mutuamente ou não: acusaram-se por

vezes de serem subalternizadas ou destruídas por outras, com razão

ou não. Criaram mitos para explicar as suas origens divinas e exem-

plares, por contraste com as “outras” e os “outros”, com más ori-

gens ou mesmo sem origens.

O homem cresce e desenvolve-se em grande parte em luta

contra o exterior, sempre adverso, que o limita na sua infantil ambi-

ção de ser o único e o senhor do Universo. Ambição sempre frustra-

da pelos outros, que já cá estavam ou que vão chegando e importu-

nando.

É sinónimo de ser adulto e de ser civilizado o saber moderar

p

8

Page 11: Aikido

9

S e t e a m a r r a s à T é c n i c a , p e r d e s a V i a .

Page 12: Aikido

10

É na disponibilidade que a experiência do vazio se constrói.

Page 13: Aikido

O estudo em comum das Artes do Movimento faz parte da

utopia da escola Ten Chi International.

Aspiramos a que os problemas filosóficos, científicos e cultu-

rais, que este estudo em particular coloca, bem como os que ulte-

riormente venham a surgir, sejam tratados no espírito da mais ampla

tolerância. Tomámos igualmente consciência, no plano pedagógico,

da importância de definir a particularidade do nosso ensino.

Este estudo sobre o Aiki Do é uma fonte de documentação

que irá sendo publicada sob a égide de Ten Chi International.

A secção Aiki Do de Ten Chi International criará ”um colégio”

destinado à análise, aprofundamento e acompanhamento da peda-

gogia da escola.

Um das características-chave do Aiki Do é a que faz dele uma

Via. No que se refere ao alimento espiritual, cabe a cada um lançar

as sementes à terra, fazê-las crescer e colher os seus frutos.

Os critérios definidos e a descrição das etapas da progressão

deste estudo permitirão interpelar o praticante de uma maneira ob-

jectiva e imparcial. Apesar das dificuldades e dos obstáculos que a

prática levanta, carrearemos, lenta mas seguramente, elementos úteis

para a construção de um Budo que desejamos sereno.

Se, por falta de experiência, a nossa utopia a alguns parece

incerta, menos incerta se tornará na exacta medida do progresso que

cada um fizer. Impregnada de realismo humano e de esperança, ela

não se funda na demissão do Eu em proveito exclusivo das regras eco-

nómicas, antes se baseia na manifestação do Eu profundo e na igual-

dade intrínseca do Eu. Um Eu virgem, de onde sejam afastadas as ne-

fastas influências da violência, que é frequentemente o sintoma ac-

tual das Artes Marciais.

O espírito da prática deve estar imbuído de bondade, de to-

lerância e do espírito ”Do”, praticado por excelência na liberdade, is-

to é, no amor, numa procura do impecável. No mais íntimo de cada

homem, ferve uma torrente de bondade, calor e amor.

i

11

i n t r o d u ç ã o

As Leis Universais não pertencem

mais ao Oriente do que ao Ocidente.

O Sopro é de Todos...

Ai

significa

harmonia

Ki

energia,

respiração

Do

via,

caminho

Page 14: Aikido

universal. Evitando a mecanização do gesto, será mais fácil estabele-

cer uma ponte com o pensamento oriental. Uma autêntica Via pode

abrir-se, graças à realização da prática do Aiki Do.

Se se partir de um busca séria, liberta de um ego rei, a técni-

ca será um meio de fazer convergir em nós a nossa ”verdadeira na-

tureza interior”.

Uma única força pode provocar esta metamorfose: o amor.

É ele que dá a força, o entusiasmo, o interesse, sem o qual todo o es-

forço se dissolve em veleidade decepcionante.

Para viver esta abertura sobre o universo, que é uma expe-

riência, é preciso saber harmonizar o seu espírito com o seu projecto.

O Aiki Do não é o saber fazer de um acrobata susceptível de aperfei-

çoar a sua técnica. O Aiki Do põe em causa o praticante em todas as

suas virtualidades, explora todos os aspectos da sua personalidade.

O aikidoca2 deve combinar, simultaneamente, o equilíbrio cor-

poral do dançarino, a vigilância e a competência do guerreiro, a pre-

cisão do gesto do pintor, o rigor do médico ou do arquitecto, a pre-

sença de um grande homem do teatro, a visão interior do poeta e a

concentração de um yogi...!

Trata-se de um projecto ambicioso, mas estes são os primei-

ros passos para o questionamento da prática.

Tudo faremos para que este projecto signifique um pôr à pro-

va dos seus protagonistas, mas dentro de um clima de tolerância. Esta

prática consciente compromete muito mais do que o poderia fazer

por si só um arsenal técnico. Ela põe em acção o ser humano na sua

totalidade. Ela postula por princípio que nós temos em nós mesmos

todas as virtualidades que nos permitem ser os melhores portadores

da nossa arte e que nos é possível fazê-las emergir desde que encon-

tremos as vias de acesso ao nosso ser profundo.

Ao deixarmos esta torrente libertar-se, há quem pense que o

outro a vai utilizar contra si. Nessa altura, não só nos encerramos so-

bre nós mesmos, como somos os primeiros a atacar. Cada um vira as

costas à sua verdade. É preciso não esquecer que as Artes do

Movimento participam na obra de educação individual, colectiva e

permanente, sem a qual nenhuma evolução é possível e duradoura.

A Arte do Movimento, tal como a música, não visa apenas a procu-

ra da forma, ela é também comunicação, linguagem.

Esta linguagem pode ser imediatamente acessível à sensi-bi-

lidade, mas a partir do momento em que se intelectualiza, ela preci-

sa, como qualquer linguagem, de ser ensinada...

A raiz do verbo inglês to teach vem do gótico taiku, que

quer dizer signo (ainda hoje, a palavra token é utilizada neste senti-

do). A missão do ensino é observar aquilo que passa despercebido

aos demais. Ele é o intérprete dos signos1.

Os conselhos que dou para seguir um caminho como o ”nos-

so” estão longe de constituir um método. Representam antes a preo-

cu-pação de uma clarificação da escola. O meu propósito não é for-

necer uma visão exaustiva dos problemas do Aiki Do. Conheço de-

masiado bem a realidade do ensino para admitir que se possa apren-

der através de um livro. Aquilo que é vivo, sempre novo num ensino

oral, torna--se facilmente dogmático quando o fixamos por escrito.

Corre-se, aliás, o risco de nos darmos por satisfeitos com uma com-

preensão puramente intelectual, quando a única coisa que conta é a

experiência vivida. Identificando e distinguindo o essencial do aces-

sório, gostaria de contribuir para uma reflexão sobre a maneira de en-

sinar os programas técnicos (para as passagens dos graus).

Vivido do interior graças a uma experiência individual, o Aiki

Do renova o seu carácter fundamental e encontra a sua expressão

i

12

Page 15: Aikido

Graças à possibilidade que temos de conhecer a nossa pró-

pria realidade física e psíquica, a prática propõe o desenvolvimento

de um estado interior criativo.

Esta abordagem é essencialmente uma Via de despertar e de

conhecimento do Eu, uma procura do movimento que vai do interior

para o exterior, do centro para a periferia e que reúne todas as nos-

sas energias desordenadas ou dispersas numa única corrente de for-

ça (Ai Ki). Está fora de questão procurar para além de si uma técnica

exterior, feita de sistemas e de meios arbitrários. Trata-se antes de re-

velar as nossas potencialidades adormecidas ou ignoradas a fim de

descobrir a expressão que nos é própria.

A abordagem consciente desta prática requer uma disponi-

bilidade e a aplicação de energias para as quais raramente estamos

preparados e das quais dependem tanto a qualidade dos resultados

como o tempo necessário para os alcançar. Não é pois supérfluo fa-

zer inflectir os nossos prognósticos interiores através de uma reflexão

prévia, a fim de conciliar o nosso espírito com esta nova maneira de

proceder (e isto é tão válido para uma pessoa como para o dojo3).

1. Sybil Mohol Nagi, Introduction to the pedagogical sketchbook of Paul Klee, 1925.

2. Um aikidoca é alguém que possui vários anos de experiência.

3. Local onde se pratica uma Via (Cerimónia do Chá, Caligrafia, Aiki Do…)

i

13

Sei Katsu - A Vida

Page 16: Aikido

14

A imobilização no Budo: quem imobiliza, não se imobiliza. O olhar: a distância na vigilância.

Page 17: Aikido

A aprendizagem e o desenvolvimento da vida interior cruza-

ram--se frequentemente com a formação dos guerreiros e dos caça-

dores (no tempo em que os homens se batiam, de igual para igual,

com os animais ferozes).

O caminho do guerreiro e o do contemplativo parecem ser, à

primeira vista, completamente opostos. Mas um olhar mais atento

pode verificar que existe um ponto comum: um e outro vivem em es-

tado de alerta. Algo pode surgir do exterior para o combatente e al-

go do interior para o que medita e a ambos convém não falhar o que

pode advir. A vigilância do guerreiro faz dele alguém que está sem-

pre de atalaia, a do caçador alguém que ronda e persegue, e a do

contemplativo alguém que permanece desperto. Para estes homens,

destinados a viver na vigilância da atenção, o seu pior inimigo é ”o

medo”. Tudo começa, assim, pela aprendizagem deste confronto com

o terror, a angústia, a dúvida...

Na formação de um verdadeiro Mestre do Budo, tudo come-

ça também pelo encetar de um diálogo interior e pelo pôr termo à

representação de um mundo ilusório.

O objectivo desta aprendizagem é o domínio da junção da-

quelas atitudes. Este domínio permite transformar a visão do mundo

e a visão que se tem de si mesmo, para, enfim, dar os primeiros pas-

sos na Via ”que tem coração”.

Atravessar os obstáculos para lhes compreender a essência

permite encontrar a chave de todas as junções perceptivas e fazer a

experiência da realidade. Só uma preparação rigorosa pode dar hi-

póteses... A Via não pertence aos fracos. Os Mestres de Artes do Budo

ou do Zen são duros para com os seus discípulos. Mas alguns dos ca-

minhos que se consideram um ”Do” têm uma convicção comum:

”A formação espiritual não consiste em espalhar planos in-

clinados por todo o lado para fazer subir lesmas4.”

Com efeito, se o caminho é difícil, também é um ”caminho

de doçura”, o que não impede o vigor.

I

15

I o g u e r r e i r o

Page 18: Aikido

Existe a meditação Zen ou Dhyana que permite enfrentar o

inimigo interior e tomar consciência dos seus próprios demónios que

poderíamos designar em japonês por Makyo5. É um trilho cheio de

luz no qual pode abrir-se o Satori!

A Arte do Aiki Do, ligada a esta procura interior, pode de-

mons-trar, à sua maneira, o que pode ser um ”homem”.

4. Maurice Cocagnac, Le Zen, Mesnil-sur-l´Estrée, Plon/Mame, 1996, p. 134. MauriceCocagnac é dominicano e docente no Seminário sobre “Civilização Indiana eSânscrito” na Ecole des Hautes Etudes, Paris.

5. O termo Makyo vem de Ma, Akuma, que significa “diabo”, e de Kyo que signifi-ca “fenómeno, mundo dos objectos”. Ele corresponde, aproximadamente, a “fenómenos psíquicos”, ao conjunto de sensações e de fenómenos ilusórios (de-signadamente alucinações tanto visuais, como olfactivas; ou ainda de carácter pro-fético), que podem manifestar-se durante o Zazen. Medonhos ou atraentes, estesfenómenos não têm em si nada de “diabólico”, desde que o praticante os deixepassar e prossiga infatigavelmente o seu exercício. Para o Zen, Makyo é, em senti-do mais geral, o mundo da “consciência vulgar”. A verdadeira natureza dos fenó-menos só pode ser apreendida através de uma profunda iluminação. V. Dic-tionnai-re de la sagesse orientale, Paris, Robert Laffont, Bouquins, 1989, p. 346.

I

16

O um é o todo e o todo é um.

Page 19: Aikido

A primeira necessidade que se impõe a um praticante dese-

joso de mudar a sua abordagem é vencer o medo de ser posto em

causa, sobretudo por aquele que atingiu um grau (Dan).

É desagradável, por vezes, renunciar a um modo de pensar e

de agir alimentado por anos de hábito. Aquele que tomou a decisão

de tal renúncia agarra-se, conscientemente ou não, à sua construção

anterior, resistindo ao que pensa ser um desmantelamento. Para além

de uma pequena mudança da ”técnica” ou de algumas abordagens

novas, o medo domina-o. É justamente superando esta barreira e re-

considerando honestamente os diferentes comportamentos do espí-

rito e do corpo que se forjarão a intenção e o desejo de trabalho mais

decididos.

Para adquirir uma percepção das coisas tal como elas são é

preciso evitar estar permanentemente na defensiva, intelectualizan-

do perante as dificuldades, refutando ou argumentando. Quando en-

frentamos os obstáculos, o medo desaparece para dar lugar à urgência

de os resolver de imediato. Esconder-se ou fugir mais ou menos cons-

cientemente da realidade corresponde a agravar o mal que furtiva-

mente continua a atormentar-nos.

Tomar consciência do erro é o melhor trampolim para alguém

se agarrar, de forma duradoura, a uma busca do verdadeiro. O co-

nhecimento de uma verdade supõe, de algum modo, o erro prévio.

E o ser verdadeiramente sensível utiliza este erro em vez de perante

ele sucumbir. Nenhum defeito, nenhuma barreira aparentemente in-

transponível tem para ele valor de limite definitivo. Ele está em cons-

tante devir.

Mas este olhar sobre nós mesmos e sobre os nossos erros de-

ve sobretudo exercer-se no presente e não em relação a ideias ou a

uma erudição acumulada...

Um espírito sobrecarregado de passado está sempre em so-

frimento. Só a observação lúcida, franca e honesta do instante pre-

sente permite colocar-se na disposição de aprender. O espírito deve

II

17

II o m e d o

Page 20: Aikido

também estar liberto da rede de opiniões e de juízos de valor que o

mantêm num estado estático.

É preciso voltar a ser criança. Com o espírito puro, pode-se

de repente mudar de mentalidade, pode-se de súbito estar ”pronto”

quando o ontem deixou de pesar, quando o que se crê saber foi es-

quecido.

Se não somos amantes do belo e do verdadeiro, se não nos

sentimos atraídos para o ”alto”, se não temos curiosidade por todas

as manifestações da vida, que razão nos leva a comprometermo-nos

numa Via de ”questionamento” que só o amor justifica? Aquele que

não se põe ao serviço dos esplendores da natureza que nele dorme

na esperança de ser despertado, por que se haveria de lançar na Via

(Do) que apenas lhe traria, por aquele facto, desilusões?

O prazer é a motivação mais construtiva na conquista da Arte

do Movimento. Está completamente fora de causa encarar a nossa

prática como um dever. Não é possível educar o corpo e tornar os

seus membros ágeis se nenhum prazer resultar dessa actividade. Para

repetir incansavelmente um dado gesto em diferentes ritmos, é pre-

ciso que uma verdadeira paixão alimente a paciência. É preciso que

uma carga afectiva em contínua renovação — a do dojo é também a

do ambiente do curso — incite sempre a uma maior finura e subtile-

za.

Uma riqueza interior só se pode exprimir na Arte do Movimento

através de uma via corporal livre, sem constrangimentos, que não en-

trave nenhum gesto e dê uma total liberdade de acção.

II

18

O sopro é uma palavra à beira do silêncio.

Page 21: Aikido

O movimento do Aiki Do permite traduzir a ”beleza” da mes-

ma maneira que o movimento do pintor ou o do escultor. É, de cer-

ta forma, a eloquência do praticante. Ele desenha a linguagem que

assimilou, liberta uma Energia. Quando ele se encontra ajustado ao

seu projecto, a intervenção dá forma à expressão. Mas se um movi-

mento é ”violento”, esta mania tornar-se-á num obstáculo.

É raro um movimento falhar por causa da sua dificuldade. Ele

falha sobretudo ou porque não assimilámos a sensação que lhe cor-

responde, ou porque ele não está adaptado à realidade da ”forma de

ataque”. Os nossos desajeitamentos, manifestem-se eles em torno

da correcção ou da leveza, decorrem frequentemente da nossa igno-

rância quanto ao movimento correcto, da nossa impaciência, ou ain-

da do nosso mau equilíbrio corporal.

Um movimento com êxito deve combinar três critérios:

1. Responder à intenção que o guiava, o que implica um

perfeito conhecimento da forma de ataque e a atitude interior.

2. Estar em perfeita conformidade com a fisiologia do

praticante, fazendo agir os órgãos adequados: a aprendizagem do

gesto consiste em libertar um funcionamento natural e não em im-

por de fora um movimento ou uma atitude, por sedutora que seja.

Uma tal procura só pode ser fundada num total respeito do corpo.

3. O movimento deve procurar sempre realizar uma eco-

nomia de meios, isto é, accionar o menor número de elementos pos-

sível a fim de obter um determinado resultado. O movimento correcto

é pontual, não pode ceder nem aos automatismos, nem às precipi-

tações da mente que parasitam a acção.

Para cada forma de ataque existe um gesto exacto que res-

ponde de forma harmoniosa a todas estas exigências. Aquele que do-

mina cada um dos seus gestos, consciente do espaço no qual eles se

inscrevem e da estabilidade dos pontos de apoio que lhes conferem

a precisão desejada, esse poderá praticar com facilidade e à-vontade,

sem trair as suas intenções.

III

19

III o a i k i d o — o g e s t o d o i n s t a n t e

Page 22: Aikido

ta, o praticante pode responder melhor à questão ”que fazer” em vez

de se inquietar com o ”como vou eu fazer”. O problema não é, por

exemplo, ”como é que eu vou fazer funcionar o meu punho a fim de

conseguir um Ni Kyo7?”, mas sim ”que espécie de Energia, Ura ou

Omote, devo usar?” ou então ”qual o encadeamento que, de uma

maneira fluida, traduzirá melhor a alegria que dimana desta passa-

gem?”

Quando todos os gestos foram examinados lucidamente, cria-

se uma acção global que integra cada pequeno movimento exacto,

que activa antes de mais a energia interna, da qual decorre uma im-

pressão de facilidade e de evidência.

O que é verdade para o equilíbrio é-o igualmente para o mo-

vi-mento: um gesto não tem existência separada do todo e a inde-

pendên-cia das diferentes partes do nosso corpo é devida à sua soli-

dariedade. A evocação de uma ligação possível entre os movimentos

ou entre as partes do braço, por exemplo, faz com que os professo-

res de ”Budo” insistam na sua muito legítima obsessão relativamen-

te à ”rigidez”. ”O teu punho está rígido, não te preocupes com o teu

braço, deixa-o tranquilo, descontrai os teus ombros” é o erro tipo,

nascido do desconhecimento da Arte do Movimento. (Um parêntese

útil, a este respeito: o punho não é rígido, a não ser que se aperte a

pega ou caso a mão não esteja no eixo do braço. O punho, em si mes-

mo, é perfeitamente flexível. Basta sabê-lo utilizar).

Somos chamados a analisar gestos isoladamente, segundo o

lado direito ou esquerdo do ”Kamae”8, responsável pelas deslocações.

É necessário nunca perder de vista que cada gesto põe em jogo a to-

talidade do corpo, tanto no seu aspecto estático como dinâmico. Não

há deslocação por mínima que seja, mesmo a que é provocada ape-

nas pela articulação, que não arraste consigo a acção dos músculos

Também a aprendizagem do movimento é importante para os

que desejam eliminar definitivamente a sua insegurança e dominar o seu

medo de acção. Perante um movimento, são possíveis duas abordagens:

1. A abordagem analítica, que é uma decomposição do

movimento, uma concentração sobre o seu próprio mecanismo.

2. A abordagem espontânea, que resulta da nossa rela-

ção com o outro (Aité6). Ela é uma adaptação rápida à acção. Quando

sobre o tapete eu digo: ”reencontrar o espírito da criança” é desta

compreensão intuitiva do ”objectivo a atingir” que falo. Esta repre-

sentação imediata é aquela que permite o encadeamento rápido e

fluido dos mais variados movimentos e aquele em que o pensamen-

to deixa de poder dominar os acontecimentos.

No entanto, para restabelecer um gesto correcto, para ad-

quirir uma nova ”praxis”, o praticante adulto não pode passar sem a

aborda-gem analítica que decompõe o movimento, tal como não po-

de passar sem a sensação do movimento que deve ser analisado, vi-

sualizado, depois, sentido e ”vivido”.

A realização propriamente dita deixa, então, de ser ”pensa-

mento”. Ela passa a ser materialização daquilo que foi imaginado e

antecipado. À semelhança do karatéca que tenta prever os golpes

do adversário e colocar-se em função do acontecimento, o aikidoca

também deve antecipar o que vem (Sen no Sen), e, ao mesmo tem-

po, manter uma vigilância contínua (Zanshin).

Trata-se aqui de uma verdadeira ”ciência da antecipação” que

permite ao praticante libertar-se da consciência dos movimentos. A

imagem bem conhecida ”da centopeia que às tantas já não sabe qual

das patas avançar em primeiro lugar”, exemplificando a ausência des-

ta libertação, ensina-nos como podemos facilmente tornarmo-nos re-

féns deste tipo de ignorância. Com a atenção consciente assim liber-

III

20

Page 23: Aikido

mais poderosos que a sustêm e lhe dão uma liberdade de acção. De

igual modo, o fenómeno de cinestesia9 prova que toda e qualquer ac-

ção muscular referente a um lado do corpo tem repercussões idênti-

cas sobre o seu homólogo do lado oposto, o que reforça, aliás, a ideia

de uma simetria fundamental do corpo (conhecida desde há séculos

pelo Yoga).

A solidariedade dos movimentos deve-se igualmente à ori-

gem comum da Energia (Chi ou Ki10) que a todos alimenta sob for-

mas diversas. Devemos tomar consciência de uma realidade que é

particularmente esclarecedora: toda a força está concentrada num

ponto, num foco irradiante. É o nosso centro de gravidade situado

entre a terceira e a quinta vértebras lombares da coluna vertebral ou

cerca de 3 cm abaixo do umbigo (Seika Tanden11), impropriamente

traduzido por Hara/ventre.

É a partir deste ponto que surge toda a nossa Energia.

A procura de gestos correctos corresponde à busca das me-

lhores correntes de Energia, a partir deste ponto, que sejam suscep-

tíveis de fornecer às pontas dos dedos a sensibilidade e a força de que

eles precisam.

Mas o movimento nunca é unilateral, dirigido unicamente pa-

ra o exterior. Todo o gesto procede à combinação de duas forças con-

trárias, uma de expansão e outra de resistência à expansão, assumi-

das por dois grupos de músculos diferentes.

O equilíbrio geral do nosso corpo baseia-se na associação des-

tas duas dinâmicas cuja combinação assegura a perfeita harmonia

dos movimentos.

A cada força saída do nosso Centro (o ponto!) e dirigida pa-

ra o exterior corresponde uma força oposta que nos reconduz a nós

e evita a dispersão de energia. Quando o equilíbrio entre as forças

centrípetas e centrífugas se concretiza, isto é, quando o movimento

em vez de perturbar o equilíbrio estático, se integra num equilíbrio

dinâmico, os gestos podem então ser eficazes e autênticos.

Os braços, que são a própria expressão deste circuito de Energia

dirigida para a extremidade dos dedos, funcionam exactamente se-

gundo o modelo de forças opostas, de dinamismos contrários. Eles

estão em relação constante um com o outro. É preciso não esquecer

o papel dos braços, que não desempenham apenas o papel de força

pura (muscular). Eles são os transmissores de Energia. Fazer da mão ”Te

Katana”12 e do antebraço um segmento isolado é um grave erro. Nos

movimentos de Aiki Do, as mãos e os braços são sempre o resultado

manifesto das técnicas. Eles desempenham o papel de linha de trans-

missão, ligando as mãos ao corpo e levando-lhes a Energia necessá-

ria.

À esquerda como à direita, é o braço inteiro que deve inter-

vir na acção, apoiado por um dorso firme que actua como ponto de

apoio, articulado ligeiramente em torno dos ombros baixos, de um

cotovelo que transmite a Energia pela sua face exterior (meridiano do

coração13) e de um punho que o prolonga até à ponta dos dedos.

É indispensável que os músculos de apoio (em particular, os

do dorso) desempenhem o seu papel, libertando as extremidades de

toda a sobrecarga (libertando assim o Ki), dando-lhes a independên-

cia e leveza necessárias e conferindo ao braço uma flexibilidade até

então desconhecida. Os fisiologistas não conseguem entender-se

quanto às prioridades respectivas do braço e da mão nos movimen-

tos que lhes dizem igualmente respeito. Mas seja o impulso transmi-

tido do braço para a mão ou da mão para o braço, uma coisa importa

reter em todas as circunstâncias: é o braço que conduz sempre a mão

para o seu objectivo, e à mão cabe traçar do mais amplo ao mais pe-

III

21

Page 24: Aikido

queno de todos os movimentos.

6. A tradução literal de Aité é a mão que está perante mim. Este termo é também uti-lizado, na pedagogia do Aiki Do, para designar o parceiro.

7. Ni Kyo é uma técnica de imobilização.

8. O Kamae é a posição de guarda.

9. Cinestesia é o sentido pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos membros.

10. Chi ou Ki, respectivamente, do chinês e do japonês, significam, em ambos os casos,Energia.

11. Seika Tanden vem de Seika (local de nascimento, casa paterna) e de Tanden (bacia,“fontes de riqueza”, lugar de onde brota a Vida). Seika Tanden subentende a no-ção de recentragem, de equilíbrio físico e psíquico, de harmonia da potência. O ponto sobrepõe-se, sensivelmente, ao centro de gravidade.

12. Ou seja, fazer da mão Sabre.

13. Meridiano do coração, segundo a medicina tradicional chinesa.

III

22

Só o presente existe.

Page 25: Aikido

Penso ser útil compreender a etimologia do termo Kamae na

língua japonesa. Kamaeru significa preparar, construir, alcançar com

vigilância. No ideograma kanji há a ideia da união de uma estrutura

em madeira. Trata-se, portanto, de uma consolidação, de algo que

reconcilia diferentes elementos.

Kamae não é uma forma. É um estado de espírito que envol-

ve a Energia e a percepção.

Podemos resumir brevemente o Kamae a partir da postura

correcta em pé (Shizentai): as pernas afastadas a uma distância se-

me-lhante àquela em que se encontram os ombros. No caso de avan-

çarmos, deslizando o pé direito, que forma com o pé esquerdo um

triângulo (Sankaku-Tai) — pé esquerdo que constitui a sua base —,

estamos perante o Migi Hammi. No caso contrário, estamos perante

o Hidari Hammi. A posição de guarda em perfil é o Hammi no Kamae

do Aiki Do (em Iai Do, há formas de Kamae em que o corpo está de

frente, mas a posição de guarda fundamental do Sabre é o Migi

Hammi).

O lado esquerdo tem por natureza um carácter estático. O

movimento não está, porém, ausente: quer se trate de uma protec-

ção baixa (pontapé) ou de movimentos laterais, o lado esquerdo nun-

ca é passivo. Para encarar os gestos que lhe dizem respeito, convém

eviden-temente não perder de vista a necessidade de uma boa colo-

cação do corpo em geral e de um posicionamento apropriado dos

braços. Este raramente é satisfatório do lado esquerdo, muitas vezes

descaído, o que cria automaticamente um desequilíbrio.

É preciso portanto tonificar o lado esquerdo, endireitá-lo para

que ele transmita bem a força vinda do dorso, por intermédio do bra-

ço, até à ponta dos braços, até à ponta dos dedos. Sem braço, não há

mo-vimento eficaz, visto que não existe Energia activa. Além disso, as

possi-bilidades de expressão aumentam quando o braço esquerdo exer-

ce de baixo para cima um ”gesto de contrapeso” ao peso do braço di-

reito. Falei do lado esquerdo no caso do Migi Kamae para que os pra-

IV

23

IV o k a m a e — m i g i k a m a e

Page 26: Aikido

ticantes tomem consciência da globalidade dos movimentos em geral.

A imagem de todos os posicionamentos do corpo ou das

mãos, assim como das técnicas do Go Kyo, isto é, das técnicas base

do Aiki Do, e as próprias deslocações tornam-se evidentemente me-

ros gestos exteriores se eles não corresponderem a sensações preci-

sas: o gesto deve ser vivido do interior para poder ser previsto e tor-

nar-se um reflexo infalível.

Se, no caso deste Migi Kamae, o lado esquerdo representa a

espera (o aspecto ”integrado do trabalho”) — o braço aguarda ser

solicitado — em contrapartida, a mão e o braço direitos serão sem-

pre a expressão imediata de uma decisão consciente. O lado direito

será o reflexo instantâneo do nosso estado interior para criar (De Ai),

tal como o pincel exprime as visões pictóricas que habitam o pintor.

Lugar da nossa eloquência, o nosso lado direito é pois mais vulnerá-

vel às emoções que podemos sentir.

Atribuo uma grande importância ao Kamae e, bem entendi-

do, à posição do braço direito avançado, a este despertar de funções

muitas vezes adormecidas, que se revelam de uma riqueza e de uma

eficácia frequentemente inesperadas.

Digo sempre que o verdadeiro Kamae é a guarda sem guar-

da, é o estado de vigilância tranquila.

Podemos, a este título, lembrar os ensinamentos de um Mestre

Zen ao seu aluno. Depois de ter passado vários anos junto do seu

mestre, o discípulo, que se prepara para o deixar, pede-lhe uma men-

sagem. O mestre pega no seu pincel, num rolo de papel arroz e de-

senha de um só traço, o Kanji ”Atenção”. O aluno, embaraçado, pe-

de-lhe uma outra mensagem. De imediato, o mestre

retoma: ”Atenção”. Pela última vez, o discípulo renova o seu pedido.

O mestre, em silêncio, volta a desenhar: ”Atenção”…

IV

24

Ver a sua natureza no movimento.

Page 27: Aikido

No Aiki Do, a prática é muitas vezes entendida como um en-

carniçamento e uma soma de esforços fora do comum. Para ob-

ter ”uma Boa Técnica” são precisas horas de trabalho, à custa de uma

aprendizagem quase bárbara, que pretende dar ao praticante uma

segunda natureza...

Muitos praticantes de idade avançada vivem ainda sob este

regime de trabalho obstinado. Repetir indefinidamente os mesmos

movimentos, sem nunca abrandar as rédeas para galopar (caso o abor-

recimento destas repetições, sempre no mesmo sentido, não tiver, en-

tretanto, morto o desejo de continuar). A isto chamo eu perseverar

numa luta incansável ”contra a Arte do Movimento”.

Não se trata aqui de defender uma liberdade absoluta que

conduziria a fazer desaparecer os constrangimentos e a disciplina que

são o tributo consentido para atingir um certo grau de perfeição.

Trata-se sim de pôr em causa a concepção estereotipada do trabalho

em Aiki Do. Ora, o que é ”o trabalho” senão a actividade de uma

pessoa que age com sequência e coordenação a fim de produzir um

resultado útil?

As exigências do trabalho numa repetição de movimentos são

particulares a cada praticante, dependendo do nível e do estádio em

que ele se encontre (saber onde estás, a fim de saber para onde vais...).

Para uns, o que estará em causa será o questionamento das bases de-

masiado frágeis dos movimentos; outros considerarão um problema

particular que nunca terão ultrapassado; outros ainda penderão pa-

ra os Kata14... Estas disparidades tornam felizmente impossível uma

solução que se queira global, uma receita universal! E, no entan-

to, o papel da técnica tal como a necessidade de um trabalho inteli-

gente são os mesmos para todos, sejam quais forem o talento e a

competência de cada um.

Nascemos todos com uma capacidade criadora natural. Se to-

marmos a palavra grega technos, a verdadeira técnica é uma arte

que consiste em fazer com que nos tornemos nós mesmos, procu-

V

25

V a b o r d a r a p r á t i c a d o a i k i d o

Não é a técnica que representa o verdadeiro perigo

para a civilização, é a inércia das estruturas.

Page 28: Aikido

perior àquela que era a sua, o seu poder criador encontrará um cam-

po de expressão mais largo no Kokyu Nage15. A sua liberdade depen-

de dos seus poderes e é pelo domínio da sua visão global dos movi-

mentos que poderá revelar a espontaneidade e a riqueza interior.

Suprimir toda a dualidade entre meios técnicos e uma forma-

li-dade gestual eis o que é próprio da execução perfeita de um movi-

mento. A actividade pela qual pensamos o movimento ganha corpo

na activi-dade que a realiza! O valor de uma concepção testa-se nas

realidades da técnica e uma riqueza interior que não adquire forma

acaba por se esgotar. Ao contrário, uma subtileza de pensamento que

tem a possibi-lidade de se exprimir plenamente vai aprofundar-se de

forma contínua, criando de novo a necessidade de afinar os seus meios

de expressão.

Sabemos que o Aiki Do, como toda a actividade que põe em

jogo o corpo, requer um gasto de Energia seja sob a forma de ener-

gia muscular, seja sob a forma de atenção persistente. Ora, sendo a

nossa quantidade de Energia disponível limitada, devemos evitar o

desperdício provocado pela dispersão. A inquietação ou o nervosismo

decorrentes da insegurança de uma técnica mal assimilada vão pro-

vocar esta diminuição de Energia onde e quando ela era absoluta-

mente necessária para a execução correcta do movimento.

A técnica está longe de ser uma perda de Energia do ponto

de vista do número de horas que lhe deve ser consagrada. De facto,

ela é o meio de realizar, num prazo mais ou menos longo, uma eco-

nomia de trabalho considerável. É, pois, importante, orientar o inte-

resse dos alunos para as subtilezas da técnica, mostrando-lhes bem

que esta técnica é já uma arte e um trabalho estético e não mecâni-

co.

Isto significa que mesmo o trabalho enraizado ”num desejo

rando restaurar esta capacidade natural corrompida por um estudo

exagerado e mal concebido.

A uma chamada de atenção de um professor, ouvem-se por

vezes alguns alunos responder: ”Trabalhei muito!”. Uma pedagogia

elementar impede que se replique: ”Justamente, teria sido melhor

praticar menos, do que praticar tão mal!”.

Falhas como estas seriam certamente evitadas se uma técni-

ca inteligível fosse proposta ao aluno desde que este se mostre capaz

de levar a cabo um trabalho consciente.

A melhor técnica adaptada a cada um é aquela que desen-

volve as disposições naturais em vez de as combater (este género de

erro é cometido de boa fé, seja por ignorância, seja por falta de sen-

sibilidade).

A melhor técnica consiste em accionar meios físicos suscep-

tíveis de dar forma a sentimentos invisíveis: por um lado, através da

educação do seu corpo em função das leis da natureza e da fisiolo-

gia; por outro, através da assimilação consciente das exigências pró-

prias ao Aiki Do.

O praticante pode adquirir o que se chama uma ”técnica” no

sentido forte do termo, aquela que possui um estado de alma! Ela

não é um mecanismo ou um automatismo dominado à custa de um

constrangimento maior, alegadamente, necessário para a passagem

de grau... Técnica e interpretação da forma estão indissoluvelmente

ligadas (fundo + forma).

Um ataque é, por exemplo, o que informa, isto é, o que dá

forma a um poder técnico. Para tanto, é preciso que o pensamento

não esteja asfixiado por um jogo em que rivalizam parasitas e inter-

fe-rências de toda a espécie, uma das quais é o medo de fazer mal.

A partir do momento em que o praticante adquire uma precisão su-

V

26

Page 29: Aikido

de praticar” não deve ser a negação do prazer: ele é a fase do parto

preparada pela inspiração primeira que culmina com o sentimento de

plenitude do movimento. O prazer do movimento harmonioso ou

do movimento circular, como o Tai Sabaki16, ou mais tarde o Aiki Nage17,

é o prazer de uma justeza perfeitamente expressiva com o seu dei-

xar--se ir, o largar da mão, ou a capacidade para se abandonar ao mis-

tério do movimento, movimento que ”se faz por si só” no tempo

exacto e se apodera do nosso ser, apagada toda a vontade.

Sem prazer, regressamos a este trabalho triste e monótono

que decepciona porque nada cria e é fecundado apenas por um con-

trolo ilusório (Ni Kyo). Esta maneira de praticar cria mesmo um obs-

táculo à expressão interior, afastando-se da atitude lúcida e criativa

que caracteriza um trabalho consciente.

Como em todos os outros domínios da actividade humana, a

prática do Aiki Do desenrola-se em várias fases. As suas diferentes

componentes são as de qualquer estudo.

Poder-se-ia comparar o praticante a um computador. Tendo

em conta as suas capacidades, tentar-se-ia obter dele o melhor re-

sultado possível, porque esta prática ou este trabalho, organizados

em função de um resultado (cuja definição acima referimos), nada são,

se não se revelarem fecundos. De igual modo, quando se pratica, to-

do o prati-cante deveria ter constantemente presente estes princípios

de bom senso sem os quais o resultado corre o risco de ser muito de-

cepcionante.

A primeira necessidade que se impõe é ponderar a situação:

1. Avaliar o estado presente (sem informações coeren-

tes e suficientes, um computador não pode dar respostas).

2. O praticante que não sente nada em relação à sua

prática criará obstáculos ao progresso (isto acontece muito mais ve-

zes do que se pensa).

3. O professor deve ajudar, com doçura, os alunos a to-

marem consciência do material com que vão trabalhar, isto é, eles

próprios.

É impossível haver empenhamento numa nova prática na es-

perança de nela progredir, sem que quem o faz se conheça exacta-

mente, sem que veja claramente as compensações, as tensões e os

sinais do seu mal-estar. Estas dificuldades são frequentemente mal

percebidas ou mesmo completamente ignoradas. As suas causas per-

manecem obscuras e esta avaliação da situação não é muitas vezes

senão um sentimento difuso de mal-estar e de insegurança, ligado

ao temor e a uma prática anterior mal assimilada.

Uma ajuda externa é então preciosa para o praticante dese-

joso de entender claramente um determinado problema, distinguin-

do-o dos restantes. O diagnóstico do professor, ao ser mais fino do

que o sentimento intuitivo do aluno, permitir-lhe-á isolar estes pro-

blemas ao mesmo tempo que os liga ao estudo do movimento visto

na sua globalidade.

Identificadas, assim, as dificuldades, importa enfrentá-las, ten-

tando não se deixar possuir pela angústia que decorre de uma luci-

dez demasiado rápida acerca da sua própria realidade. É a partir

deste trampolim que tudo se inicia e que se poderá enfim começar a

pensar numa nova maneira de agir. A partir do momento em que o

praticante de Aiki Do toma consciência da situação, pode abandonar

o presente imediato e empregar a sua Energia em função do objec-

tivo visado: tal como o computador, as informações recolhidas só têm

sentido se forem orientadas para um resultado preciso.

Mas esta tomada de consciência das situações por parte do

praticante requer calma e silêncio interior. Nem a agitação, nem a in-

V

27

Page 30: Aikido

desejo e bloqueia de novo a situação.

É a descoberta desta distância que constitui o motor da prá-

tica e que faz dela um processo de aperfeiçoamento por aproxima-

ções sucessivas. Esta retroacção, para empregar um termo apropria-

do aos objectos cibernéticos, torna-se possível pela observação do mo-

vimento, que é o elemento essencial desta tomada de consciência, e

que pode ser reforçada pela escuta do Mestre... Mas as informações

sensoriais apreendidas pelo sistema proprioceptivo18 permitem igual-

mente com-parar a desadequação entre uma imagem mental e a sen-

sação realmen-te percebida (os movimentos em espiral, de que são

exemplo as técnicas de Aiki Do: Irimi Nage, Kaiten Nage, Kokyu Nage

e Aiki Nage).

Se existe diminuição de energia, haverá certamente, um tal

fosso.

Só então se pode começar a fase de programação que é a ba-

se de trabalho do aprendiz aikidoca. O computador, de que se espe-

ra o resultado, deve organizar um pedido, cujas etapas são claramente

estabelecidas e escalonadas no tempo.

Uma grande parte do caminho já se encontra percorrida quan-

do o praticante, lúcido em relação a si mesmo, acciona de forma me-

tódica os meios adaptados ao objectivo que persegue. Cada aluno

tem o seu próprio ritmo e uma maneira igualmente própria de abor-

dar a sua prática. Ele é o único a conhecer a dinâmica das suas per-

cepções e do seu comportamento real. Mas ainda aqui, a sensibilida-

de de cada um, a sua liberdade de acção não estão em contradição

com a lógica dos movimentos. Harmonizar o seu corpo, como se diz

muitas vezes no tatami19, é uma acção prévia necessária. A prepara-

ção física no trabalho é portanto fundamental. Infelizmente fazemos

enormes erros nos exer-cícios preliminares da prática, que deveriam

quietação permitirão alguma vez precisar, de forma saudável, o pro-

jecto de uma prática correcta.

Qual é o meu objectivo? O que é que procuro? Eis algumas

questões que estão longe de ser questões resolvidas por tantos pra-

ticantes alienados pela rotina ou mal orientados.

A prática não se justifica senão em função de um objec-

tivo preciso. Será que se pode saber o que se encontra se não

se sabe o que se procura?

É impossível avaliar os seus progressos num caminho (Do) a

partir de acções vagas e ambíguas. Também não basta saber o que

se quer; é preciso ainda decidir exactamente qual o resultado que se

pretende obter, o que exige tomar partido e colocar a fasquia a uma

determinada altura pessoal, e examinar, com sensatez, o que se po-

de e quer atingir.

Decidir-se a agir por si só é coisa difícil. É, no contacto com o

professor, que o aluno, ao descobrir que não sabe ainda realmente o

que quer, conseguirá conceber e formular a sua pesquisa.

É evidente que o praticante cujo único desejo é transpirar e

quanto à sua técnica, ”passa”, não poderá obter resultados muito

subtis.

Se ele não se entregar por inteiro ao que experimenta, ou se

ele não tiver decidido ainda firmemente um objectivo, a comparação

entre o resultado obtido e a sua primeira e vaga intenção não será fe-

cunda. A escuta não poderá desempenhar a sua função crítica, isto

é, comparar o resultado e o objectivo procurado.

Com efeito, a fase seguinte consiste em tomar consciência do

fosso que subsiste entre o desejo e a realidade. A adequação perfei-

ta entre o projecto e a sua concretização é algo impossível: ela signi-

ficaria que o praticante teria atingido um topo, o que esgota todo o

V

28

Page 31: Aikido

ser antecedidos de descon-tracção e de um condicionamento corpo-

ral adequado. O praticante deveria concentrar-se (Dharana20), verifi-

car a liberdade da sua respiração, assegurando-se assim do seu bom

equilíbrio em termos de posturas: eixo vertical; firmeza dos pontos de

apoio; boa fixação no solo; braços relaxados, independentes para dei-

xar passar a Energia até à ponta dos dedos; ombros baixos; corpo em

vigília, punhos flexíveis, percebidos como o resultado do pensamen-

to e da Energia. O sentimento de inutilidade e de perda de tempo

desta tomada de consciência frequen-temente associada a esta veri-

ficação desaparecerá logo que o praticante tome consciência da sua

necessidade e da sua eficácia absolutas.

Uma tal preparação pode durar apenas alguns segundos co-

mo pode exigir mais tempo, tudo dependendo da integração da sua

prática.

Eis-nos, enfim, chegados à fase mais longa da prática, aque-

la que corresponde à prática do movimento correcto. É aqui que

tem sentido a procura da qualidade e da justeza de um movimento.

Uma técnica bem escolhida trata o problema em profundi-

dade, o problema em si, como se poderia dizer. É preciso também es-

colher, e de forma judiciosa, a forma de ataque. É preciso evitar trans-

formar um curso numa sucessão de técnicas que correm o risco de ”des-

gastar e esvaziar” o conteúdo destas mesmas técnicas e também de

esgotar o prazer...

Quaisquer que sejam as soluções escolhidas, o exercício de-

ve, em todo o caso, incidir sobre um único problema, a fim de ser

realmente profícuo. Compreende-se aqui a necessidade de uma ava-

liação lúcida, analisando separadamente cada uma das dificuldades

encontradas pelo praticante. Pode ser útil criar uma nova imagem

mental à qual o praticante tentará fazer corresponder o que sente.

Então, e só então, a repetição pode desempenhar o papel que

é o seu. Ela já não constitui a própria essência do trabalho, antes per-

mite a aquisição de sensações reflexas.

Estamos longe do Uchikomi21 que se faz demasiadas vezes de

uma maneira ”automatizada”, e, contudo, a dificuldade na concre-

ti-zação de um gesto fica a dever-se mais à opacidade de uma ima-

gem mental do que a uma incapacidade mecânica.

A repetição deve ser, portanto, consciente e obedecer a um

funcionamento correcto. Ela não deve ser cega e mecânica em mo-

vi-mentos mais ou menos exactos. É ela que, reforçando a sugestão,

cria uma nova via cerebral. Uma acção assinalada fixa-se na memó-

ria, torna-se mais rápida e fácil e cada vez menos pesada para o es-

pírito. É assim que uma vez a atenção liberta, esta pode virar-se para

os elementos primordiais da prática: estilo não pensado (que envol-

ve a noção de silêncio interior, ligado à disponibilidade e à consciên-

cia), sensação ou contacto correcto com os parceiros. Além disso, a

repetição permite ao praticante adquirir uma segurança e uma con-

fiança que o tornam menos dependente de circunstâncias exteriores.

Ela corres-ponde igualmente a reconhecer uma forma e a aperfeiçoar

esta ou aquela técnica e a conduzi-la a um estádio de perfeição... É

sobre uma experiência ”sentida” que outras podem criar raízes. Chamo

a isto a ”referência interior”.

Da mesma maneira que um curso não pode começar sem con-

centração, ele não deverá acabar num estado de fadiga: o espírito

deve estar ainda suficientemente lúcido para tirar a conclusão e as li-

ções do trabalho empreendido. Isto é muito importante, porque es-

ta análise permitirá uma maior motivação para os cursos seguintes:

haverá um optimismo justificado que fará acreditar no valor da prá-

tica realizada.

V

29

Page 32: Aikido

A partir de um certo nível, o exercício técnico, enquanto tal,

pode desaparecer, sendo substituído por um Geiko23 livre e será o

próprio facto de praticar livremente que vai recriar e alimentar de no-

vo a intensidade do vivido a um outro nível, que será o sustentáculo

da técnica.

Contudo, é sempre essencial, mesmo a um nível elevado, con-

servar um contacto frequente com a técnica pura (as bases, por exem-

plo), a fim de poder, se necessário for, retomar um exercício destina-

do a refrescar uma sensação. A isto chamo regressar regular-mente

às ”raízes da competência”, a fim de evitar este desmazelo insensí-

vel que estraga tantas qualidades.

É indispensável nunca suprimir o papel da atenção e das suas

funções conscientes. Ao criar automatismos, é preciso evitar cortar as

vias que ligam ao cérebro director, caso contrário, estamos perante o

praticante estilo ”Rambo”. Uma tal privação de fontes novas conduz

seguramente a uma degenerescência da Via (Do).

Na Índia, diz-se: ”Aquele que deve percorrer cem mil consi-

dera noventa mil como a metade.”

Quanto mais alguém progride na sua técnica e no domínio da

sua arte, mais cuida das suas qualidades interiores.

Considera-se frequentemente o início do ensino o mais duro.

Na verdade, são ”os últimos mil” que são os mais duros. É um traba-

lho incessante (até à morte) se se quer ser verdadeiramente autênti-

co.

Por fim, quando se tiverem explorado todas as possibilidades

técnicas e quando a habilidade tiver sido dominada, a prática passa a

fazer-se de uma maneira menos metódica. O Aiki Do conduzirá o es-

tudante à ”realização de si mesmo”.

A prática far-nos-á tomar consciência de nós mesmos, porque

Em caso algum a fadiga deve levar a melhor e restituir à prá-

tica o carácter mecânico de que nos tentamos desfazer na nossa es-

cola.

A fadiga muscular leva o organismo a fazer trabalhar múscu-

los inadequados ao trabalho requerido, o que se traduz inevitavel-

mente por uma perda de qualidade e pelo aparecimento de falsos

problemas que teimamos inutilmente em querer resolver. É pois im-

portante assegurar sempre um bom encaminhamento da Energia (Ki),

em particular em direcção às mãos. É esta economia da energia que

torna, no essencial, uma técnica correcta.

Se a prática conduz à consciência de si (que é fonte de cal-

ma), ela acaba por se reflectir seguramente na beleza dos movimen-

tos. É o momento de utilizar durante os cursos o que normalmente

será difícil realizar na vida ”stressante” do quotidiano.

É no dojo que se podem reunir as condições favoráveis à li-

vre circulação da Energia e à eliminação das tensões. A boa organi-

zação no domínio da postura da cabeça e da coluna vertebral, o cen-

tramento no Hara22 e a respiração que descansa, a polarização da

atenção numa acção instantânea, a aceitação deste aqui e agora são

o melhor meio de cortarmos com as nossas preocupações e inquie-

tações.

É preciso também não esquecer que o progresso, seja ele téc-

nico ou interior, é a motivação essencial (muito mais do que as gra-

duações). Isto exige evidentemente um certo nível de maturação e

manifesta-se por vezes quando menos se espera.

A ausência aparente de progresso não corresponde a uma es-

tagnação definitiva e é preciso, sem perder a coragem, aceitar passar

por zonas de obscuridade e de contradição, que correspondem a uma

germinação silenciosa.

V

30

Page 33: Aikido

seremos confrontados com os problemas da nossa mente. Perante os

obstáculos com que deparamos na estrada da vida (no tatami ou fo-

ra dele), este conhecimento é o penhor da permanência e da estabi-

lidade das nossas aquisições.

Ao longo deste percurso, é a tensão dirigida para um objec-

tivo que dá o máximo de alegria, procurando por vezes o que os psi-

cólogos chamam ”as experiências superiores”. O praticante torna-se

então aikidoca (termo que designa no Japão o praticante confirma-

do e que é aquele que anulou completamente a distância entre con-

cepção e realização).

Quando o esquecimento do Eu passa a ser total, quando o

praticante se integra no acontecimento instantâneo e ao mesmo tem-

po conserva uma vigilância do espírito, então a Arte do Aiki Do po-

de revelar toda a sua dimensão: ele torna-se a Via real, em que se su-

pera a técnica.14. Kata significa literalmente forma, conjunto de movimentos codificados onde se es-tuda a essência de uma Arte.

15. Kokyu Nage é a técnica de Aiki Do baseada na noção de respiração/movimento.

16. Tai-Sabaki é, a um primeiro nível, a aprendizagem da espiral.

17. Aiki Nage é um estudo sobre o registo da harmonia.

18. Trata-se de uma informação que provém do corpo e que fornece elementos sobre omovimento, a atitude, o equilíbrio, etc.

19. O tatami, na sua forma clássica, é formado por esteiras constituídas por palha dearroz, cozidas e reunidas, de maneira a formar módulos de 1, 95 metros por 0, 95metros. Elementos que faziam parte do mobiliário tradicional da aristocracia deKyoto no século XV, eles eram dispostos segundo uma simbologia que representavaum labirinto iniciático (Mandala – Do). Hoje, os Budos utilizam tatamis especiais,frequentemente, fabricados a partir de matéria sintética, e envolvidos por uma for-te cobertura, a fim de amortecer os eventuais choques provocados pelos movimen-tos de projecção.

20. Dharana é um termo sânscrito. O sentido desta palavra é incompletamente dadopela tradução: concentração.

21. Repetição de um mesmo movimento.

22. Noção de centro que não faz obrigatoriamente referência à geometria.

23. Trata-se de uma prática em que a concentração desempenha papel fundamental.

V

31

Encontrar a energia na consciência plena.

Page 34: Aikido

32

Presença, espírito e alma. As aves do lago sobrevoam-no sem deixar rasto.

Page 35: Aikido

Dizemos no Zen que a prática de uma arte pode ser um meio

de ”formar a mente e de a pôr em contacto com a realidade última”.

Aquele que projecta e aquele que cai não são duas entidades

opostas, mas uma única e mesma realidade. Aquele que projecta não

deveria ter consciência de si. Este estado só se obtém quando o pra-

ti-cante se desembaraçou do seu ego e quando ele e a sua técnica se

fundem. Há nesta habilidade técnica qualquer coisa de ordem muito

diferente, que nenhum estudo metodológico do Aiki Do pode ofere-

cer.

Esta qualquer coisa de ordem muito diferente é o que se cha-

ma a “intuição”. Mas não se trata de uma intuição vulgar. No Yoga,

esta intuição designa-se pelo termo “prajnâ”, que é uma intuição

que capta ao mesmo tempo a totalidade e a individualidade das coi-

sas. Esta definição ultrapassa os limites do ego. De um ponto de vis-

ta lógico, corresponde à síntese da afirmação e da negação; de um

ponto de vista metafísico, é saber por intuição que o devir é o ser e

que o ser é o devir...

É uma intuição, que pode surgir de forma súbita; quem vê

que zero é o infinito e que o infinito é zero, vê que isto não constitui

uma indicação simbólica ou matemática, mas antes um facto da ex-

periência, resultado de uma percepção directa. A prática da Arte do

Movimento pode levar a descobrir, sem meditação de qualquer es-

pécie, a essência sem fundo e sem forma, ou melhor ainda, a sua

identificação com a realidade última.

Segundo os Mestres Zen, o Zen consiste em ver a sua própria

natureza. Esta é a expressão mais significativa da abordagem. De fac-

to, o Zen significa dirigir os nossos esforços e representá-los na nos-

sa consciência.

Mas isto é uma outra história.

VI

33

VIp a r a u m e n s i n o m a i s a v a n ç a d o — o z e n

Page 36: Aikido

34

A sabedoria não se obtém por mérito de uma conduta moral, mas pela maneira como o corpo e o espírito permanecem na consciência do ser.

Page 37: Aikido

Durante demasiado tempo, no Ocidente, deu-se pouca im-

portância à experiência e à busca interior em detrimento do intelec-

to.

É na compreensão da aparente oposição do preceito do Budo

— Ken Zen Ichi Nio (Sabre e meditação formam uma unidade) — que

se pode descobrir a harmonia.

Ao criar por vezes um efeito de espelho, as oposições reve-

lam insuspeitados contornos da nossa personalidade. Se, perante eles,

nos refugiamos invariavelmente num comportamento dogmático, o

medo é proporcional à nossa rigidez. Em contrapartida, se desenvol-

vermos a comunicação com nós mesmos e com os outros, é plausí-

vel que descubramos soluções adequadas, que nos permitam adap-

tar a novas situações. Este processo servirá, indirectamente, a inicia-

ção ao Aiki Do. Num plano completamente diferente, a vocação pri-

meira de um dogma religioso não é propriamente a de servir o ego

ou os interesses ligados a um grupo étnico particular. Seja como for,

o Aiki Do não é uma prática religiosa, xintoísta ou outra.

A perspicácia e uma acuidade trabalhada assiduamente pou-

parão ao aluno ou ao professor cair no marasmo de um esoterismo

mal assimilado.

A prática do Aiki Do é uma abertura ao Universo.

Por diversas razões, verifiquei que os japoneses controlam me-

lhor esta atitude reflexa que consiste em obedecer à hierarquia sem

nela aparentemente reflectir demasiado.

Esta evolução das mentalidades nem sempre é bem seguida

nas Artes Marciais. Muitas vezes, confrontado com perguntas sem

resposta ou repleto de respostas pouco credíveis, permaneci incré-

dulo e perplexo.

A prática de uma Via exige o empenhamento total do Ser,

uma dose de autenticidade e o sentido da justa medida. Simular um

empenhamento é alterar os tempos de certas respostas.

Um empenhamento pressupõe a existência de princípios e de

VII

35

VII k e n z e n i c h i

Page 38: Aikido

meus alunos... Mas foi preciso predispor-me a aceitar a experiência

pessoal dos meus alunos e deixar que essa experiência ocupasse um

lugar central nas preocupações da minha vida particular. Escutava, ob-

servava, estando tanto quanto possível cada vez mais presente.

Dialogando com eles, esforçava-me, com os que o desejavam, por tor-

nar claros os seus problemas.

Partindo do mais íntimo de mim mesmo e com a penetração

de que era capaz, investiguei, estudei, examinei a natureza e o im-

pacte destes problemas, totalmente empenhado nesta busca. Durante

estes anos, fui-me apercebendo pouco a pouco de que se tratava, de

facto, de uma pesquisa, de uma investigação, acerca da dimensão da

expe-riência do Zen na Arte do Movimento, através do Budo japo-

nês e do Yoga. Não sou intelectual, não elaborei uma ciência do mo-

vimento, antes me integrei no movimento, vivendo-o ao fio dos dias.

Devo muito a todos os meus alunos, dos mais recalcitrantes

aos melhores — mas haverá melhores? — porque me interpelaram.

A eles devo o ter sido obrigado a procurar, a procurar sempre mais, a

começar por vezes tudo de novo e, deste modo, a evoluir.

Não valeria mais convidar os interessados a transpor o limiar

das técnicas e oferecer definições aparentes, sem delas fazer méto-

dos, dado que toda a prática vivida no coração conduz naturalmente

à via da unidade, e portanto à da clareza luminosa do ser?

Não se pode falar desta ”claridade unificadora do ser”, senão

para dizer que ela se exprime sob a forma de uma abertura e do dom

de Si, uma vez que o ego, lugar de todos os medos, dos constrangi-

mentos, do racional e das inúmeras retracções do homem moderno,

desapareceu para dar lugar à emergência do ser. O Aiki Do, como to-

da a sabedoria, é uma aplicação da Energia fundamental do Universo.

Todo o ensino pressupõe etapas, graus, numa progressão que requer

uma disciplina funcional em relação aos objectivos que se visam. A

obediência servil e destituída de sentido nunca constituiu um mode-

lo a seguir. Inspirar uma obediência absurda, a fim de obter benefí-

cios de ordem social ou monetária, é o atributo de uma espécie de

inte-ligência perversa.

Para resolver de forma duradoura um problema técnico ou

mental, é preciso compreender o ”porquê”. Ao esforço de anos de

procura por parte de um indivíduo que percorre a Via com autentici-

dade e devoção correspondem respostas que um Mestre assinalará

no momento certo. O silêncio que corresponde a uma condescen-

dência de quem se pretende omnisciente é uma caricatura que o tem-

po se encarrega, aliás, de desestabilizar.

Estas observações, que pude fazer ao longo das minhas via-

gens ao Japão, permaneciam interiores e raramente se exprimiam em

palavras, dada a distância inviolável que separava o Mestre do seu

aluno. E, no entanto, um certo optimismo fundamental levava-me a

acreditar que, num céu carregado de nuvens, a mais pequena nesga

de céu azul era uma promessa...

Quando a minha confiança e o meu discernimento se forta-

le-ceram, a necessidade de ver claro, de compreender, tornou-se ir-

re-sistível. Encontros fortuitos e decisivos permitiram-me, então, abrir

os olhos e, ao mesmo tempo, trabalhar sobre mim mesmo a fim de

explorar todos os arcanos, à maneira de uma evidência lógica, como

uma Via de conhecimento inesgotável. Para citar o poeta Kabir: ”Aquilo

que eu procurava veio ao meu encontro e transformou-se no Eu a

que eu chamava Outro.”

De descoberta em descoberta, passando por todos os ques-

tio-namentos, a minha vida tornou-se uma apaixonante e intermi-

nável procura. Iniciada comigo mesmo, ela prossegue agora com os

VII

36

Page 39: Aikido

tempo, em que o objectivo a atingir não é propriamente ganhar umas

tantas coisas, nem mesmo um combate. O importante nesta aborda-

gem é chegar ao momento em que a mutação sobrevem, a maior

parte das vezes de forma inesperada. É o movimento que faz nascer

o outro movimento, é criar toda uma vida em que o homem se tor-

na senhor de si próprio.

É por isso que a Prática é tão importante e tão bela.

a potência do tao

O príncipe maravilha-se perante tanta habilidade; mas

não se apercebe do seu fundamento, nem do seu alcance.

Ding lembra-lho: a habilidade não é nada; ela pode

mesmo provocar uma admiração indevida, tão superficial co-

mo a da destreza, a do golpe de força, a do show. A verda-

deira habilidade exprime a realidade profunda; ela é, assim,

uma arte. A beleza resulta da sua relação com o real.

A arte não é senão unidade e harmonia no Tao. Não

se admira a destreza por si mesma, mas pelo que ela revela.

Inseparável da beleza, o seu valor decorre de nos fazer sentir

e pressentir Aquilo que existe e faz existir. O Tao confere à ar-

te a sua potência, ultrapassando toda e qualquer arte.

Claude Larre e Elisabeth Rochat de la Vallée

De vide en vide. Zhuangzi – La conduite de la vie

Paris, Desclée de Brower, 1995.

VII

37

Page 40: Aikido

38

Calma e vigilância.

Page 41: Aikido

A experiência quotidiana leva por vezes a aprofundar fenó-

menos sobre os quais pouco teríamos reflectido se a realidade não

no-lo obrigasse a fazer. É o problema da passividade, isto é, da des-

contracção, problema ao qual, nas Artes Marciais, se atribui gran-de

importância. Mas as observações diárias da pedagogia vêem nele al-

go mais do que um ponto importante!

Um número inimaginável de praticantes estão de tal manei-

ra contraídos (a maior parte sem o saberem) que alguns nem sequer

são capazes de separar os braços do corpo ou de desbloquear as an-

cas. Estes praticantes terão evidentemente enormes dificuldades em

executar as mais simples técnicas do Go Kyo. Certos defeitos, mes-

mo entre os mais antigos, podem atenuar-se ou desaparecer graças

a um trabalho apropriado. Mas nenhum verdadeiro equilíbrio, ne-

nhum movimento harmonioso, em suma, nenhum progresso real po-

dem ser realizados enquanto o praticante permanecer crispado,

ignorando o que possa ser um comportamento descontraído, isto é,

disponível.

Ora, a disponibilidade (distendida) é uma necessidade abso-

luta!

No praticante que atinge um certo grau, o movimento é be-

lo porque o gesto vai buscar a sua fonte aos recônditos da sua alma

seguindo esquemas interiores — e nunca recebidos do exterior, por

imitação ou submissão a estereótipos. Todas as formas “de ataque”,

todas as respostas ao ataque, todas as impulsões do corpo devem

partir de dentro. Mas, partindo de dentro, a Energia (Ki) que se ele-

va do nosso íntimo desloca-se ao longo de uma rede de nervos e mús-

culos. Esta Energia é portanto particularmente sensível a todas as con-

tracções desta rede energética e aos obstáculos provenientes das com-

pensações no domínio das posturas.

Sempre que um praticante vive uma crispação geral — o que

é, repito-o, um facto corrente— está fora de causa qualquer hipóte-

se de expressão; o seu movimento bloqueia-se, fecha-se a qualquer

VIII

39

VIII a c t i v o — p a s s i v o

Page 42: Aikido

são. Poderíamos ler estas últimas linhas de uma forma subjacente: is-

to é, aquilo que é válido em relação a um praticante é igualmente vá-

lido em termos da harmonia entre Aité e Shité21. A dança clássica, pa-

ra citar um exemplo mais comum, é o modelo perfeito de uma arte

do movimento em que nada é possível nem na moleza nem na ten-

são.

Certos “pesos pesados” do Budo resistirão a aceitar esta apro-

xi-mação à dança. Contudo a Arte do Aiki Do está bem perto dela e,

evidentemente, muito mais do que eles o imaginam.

Se o Aiki Do não se orienta para a competição ou não se su-

bordina à “razão do mais forte”, também não podemos conceber um

acrobata a efectuar um “salto perigoso” com o corpo tenso...

A nossa prática requer as qualidades que no dançarino dão

uma tão grande impressão de harmonia e fluidez... Não lhe reduzin-

do o alcance, é a descontracção a melhor garantia do dinamismo tão

necessário à prática.

A descontracção é um estado que se adquire: não se pode

estar descontraído no momento, no instante da prática, quando anos

de um estudo crispado nos afastaram deste equilíbrio feito de tonici-

dade e de disponibilidade.

Do mesmo modo, para um praticante que adquiriu consciên-

cia dos seus problemas e que os tenta solucionar, assimilando, com

maior ou menor convicção e ardor, os princípios já evocados de equi-

líbrio corporal, de abordagem interior no estudo do movimento e na

percepção das sensações, importa desenvolver uma abordagem a lon-

go prazo que, só ela, lhe permitirá realizar, no inesperado de um ata-

que, este instantâneo da descontracção.

A primeira etapa nesta via é antes de mais uma tomada de

consciência: cada um deve descobrir o que é, o mesmo é dizer, apren-

per-cepção sensorial. Um único músculo contraído (ou mais?) basta para

des-regular a prazo tanto as suas faculdades físicas como a sua sen-

sibilidade.

Daí a importância da descontracção, não no sentido em que

eu lhe atribuiria um lugar particular, na medida em que para isso es-

tou sensibilizado, mas no sentido em que ela é muito frequentemente

o problema crucial tanto dos novos como dos mais antigos... Sem ela,

não há respiração, nem concentração, nem beleza do gesto (há por-

tanto um “Ki” geral disperso).

Em que consiste, na prática da nossa Escola, esta descon-trac-

ção ideal?

Antes de mais, ela não é um estado de passividade (como se

ouve dizer) ou de moleza, mas ao contrário um estado perfeitamen-

te dinâmico (activo) que resulta de uma justa tonicidade da postura.

Ela é uma disponibilidade física e mental capaz de tornar to-

da a acção fluida e harmoniosa.

Muitos alunos confundem leveza com moleza, firmeza com

crispação, porque não conhecem os gestos e a organização espacial

susceptíveis de produzir uma Energia ou uma determinada acção, per-

manecendo ao mesmo tempo relaxado.

O nosso estado ideal deve ser tónico e descontraído e não

tenso e relaxado. Um movimento descontraído não pode ser nun-

ca relaxado, porque ele reclama constantemente uma Energia reno-

vada e posta em movimento contínuo (por exemplo, respostas a for-

mas de ataques sucessivas). Ora, para que haja Energia, é preciso que

haja tensão correcta entre os contrários. É a oposição correcta de mas-

sas musculares que dá o tónus ligado à distensão e permite a ausên-

cia de crispações. A grande dificuldade reside, portanto, em conciliar

harmoniosamente os dois factores inseparáveis: tonicidade e disten-

VIII

40

Page 43: Aikido

der a sentir os hábitos inconscientes do seu trabalho.

Numerosos praticantes, não se dando conta do seu estado de

contracção, atribuem as suas deficiências na prática do Aiki Do a um

conjunto de problemas técnicos que, à luz da realidade, pouco ou na-

da têm a ver com eles.

Esta inconsciência é ainda mais impressionante naqueles cu-

jo tónus é fraco e que não têm a coragem de pôr em causa o que fa-

zem.

Importa em primeiro lugar que o praticante se situe na “ca-

tegoria do seu temperamento”, que pode ir da dos hipotónicos à dos

hipertónicos. Cada um tem sempre uma dominante de tensão ou de

inércia, que deve saber gerir. O justo meio é bastante raro: um, o hi-

potónico, terá mais necessidade de fazer apelo à sua energia muscu-

lar, enquanto o outro deverá procurar distender-se. Quaisquer que se-

jam as tendências, é preciso, à partida, libertar-se do condicionamento

de toda a abordagem parcial e crispada, de toda a precipitação na

forma de agir (lançar-se, por exemplo, numa técnica com velocida-

de).

Aprender a descontracção é, em primeiro lugar, deixar falar

o corpo. Ora, quando um praticante trata de pôr em causa os seus

hábitos e decide conscientemente o que quer fazer, ele é muitas ve-

zes exageradamente tónico, ao ponto de viver num certo desequilí-

brio a este nível. A focalização do seu espírito, o facto de ter de fixar

a sua atenção num gesto, de tomar consciência de uma compensa-

ção ou de uma sobrecarga muscular, cria frequentemente um exce-

dente de tensões, uma atitude algo demasiado rígida e aplicada.

É um inconveniente passageiro que desaparece rapidamente

se procurarmos respeitar o ritmo tensão-distensão e não nos crispar-

mos, intelectual e fisicamente, sobre sensações fragmentárias e sis-

temáticas. Mais perturbante ainda — porque mais difundido e me-

nos passageiro — é o estado de espírito que consiste em exercer uma

vontade de ferro, em querer a todo o custo submeter-se a um mo-

delo pedagógico.

Esta tensão bem intencionada, dirigida ao resultado, é um

grande obstáculo ao êxito. Diz-se, muitas vezes, nas Artes do Budo,

“quanto mais procuras a eficácia, menos a encontras”. De facto, ape-

nas um certo vazio interior permite estar à escuta do instante vivido.

Esta vontade exagerada desemboca na ideia de sucesso e fracasso,

na antecipação de um juízo feito por outrem (designadamente pelo

próprio professor!), que, invariavelmente, cria crispação e an-gústia.

Aquele que não consegue, qual criança, abandonar-se sem cálculo e

premeditação à simples alegria das suas descobertas, fecha--se a uma

verdadeira descontracção...

Há um outro estado de espírito a rejeitar se se aspira à des-

con-tracção — e esta nota fará talvez sorrir alguns, tanto mais quan-

to ela pode parecer imprópria (ou incongruente). É o problema da

“cara de pau” (mau humor). Da mesma maneira que não se pode

praticar sem um mínimo de saúde, aquele que não tem “bom hu-

mor” verá anulados todos os seus esforços...

Quando os traços do rosto estão crispados pelo desconten-

ta-mento interior, o resto do corpo segue esta inclinação nefasta. Nada

vale tanto como o esboço de um sorriso para distender todo o corpo

e induzir um estado de espírito positivo. E, isto, tanto em relação a si

mesmo como em relação aos praticantes com quem trabalha...

Digo muitas vezes “tende o semi-sorriso de Buda”. Sem um

mínimo de abertura e de criatividade, em suma, sem Energia interior,

o tónus corporal necessário à descontracção estará ausente, afasta-

do por um ar carrancudo destruidor.

VIII

41

Page 44: Aikido

ções. Sempre que se faz trabalhar um grupo de músculos, todos os

outros devem permanecer livres e distendidos. Se se ergue o braço,

apenas devem agir os respectivos músculos, mas tudo o resto, inclu-

sive o cotovelo, o punho e os dedos devem permanecer completa-

mente flexíveis. Em resumo, é preciso saber agir com um tónus liga-

do à acção desejada, mas que não se repercuta sobre o conjunto do

corpo.

Os pugilistas dão-nos um exemplo impressionante (é caso pa-

ra o dizer!) desta independência muscular. Os seus golpes têm uma

eficácia que está directamente ligada à descontracção e à elasticida-

de do resto do corpo.

A nossa independência muscular permite-nos economizar a

Energia (Ki), ao utilizar, para um movimento, apenas os músculos ade-

quados; o nosso tónus vê-se reforçado e ficamos então na posse de

uma “sobrepotência” que nos garante, de forma permanente, uma

segurança próxima do famoso “Haragei”22.

Devemos igualmente saber dosear a nossa descontracção se-

gundo as necessidades do momento. É muito importante avaliar, con-

forme o exercício em causa, que grau de tonicidade e de des-con-

tracção devemos atingir. Por exemplo: no Kokyu Ho, é em função do

parceiro e das nuances da sua pega que devemos mobilizar uma maior

ou menor energia ou mantê-la em reserva.

O nosso tipo de acção é função de uma Energia correcta —

ela nem sempre será a mesma — e esta avaliação do esforço, que va-

ria de gesto para gesto, permite ao corpo responder às suas necessi-

dades e organizar-se.

Na música, acontece algo de semelhante. Conforme aquilo

que se toca, deve estar-se mais ou menos “envolvido” ao nível tóni-

co, e o excesso ou a falta de envolvimento podem ter consequências

Se a descontracção exige uma tal mudança de estado de es-

píri-to, ela necessita igualmente de uma preparação prática e corpo-

ral que mantenha o tónus e simultaneamente elimine as eventuais

tensões.

É frequentemente muito difícil dizer se a tensão do pratican-

te se deve ao seu desequilíbrio corporal ou se, ao contrário, é a sua

pre-disposição para uma excessiva contracção que está na origem de

um tal mal-estar físico.

É evidente que estas duas tendências, seja qual for aquela que

cria a outra, acabam por se alimentar mutuamente.

Também é importante, desde o início de um questionamen-

to profundo, trabalhar ao mesmo tempo a descontracção e a adop-

ção de novas condutas.

Do ponto de vista do corpo, é necessário aprender a colocar

devidamente as costas e o esqueleto, que dão “a forma” e a estru-

tura do corpo, indispensáveis a uma tonicidade mínima. Mas no seio

desta vigilância tónica, não se deve descurar a descontracção dos

membros, do plexo e dos músculos da cavidade torácica. A calma e

a amplitude da respiração, a liberdade dos gestos garantem-se atra-

vés do equilíbrio entre o tónus geral do corpo e a descontracção de

certos grupos musculares.

Uma parte importante deste treino consiste em aprender a

não desperdiçar o nosso tónus onde ele é inútil, mas sim a concen-

trá-lo na parte do corpo que se prende com a nossa acção, servindo-

nos unicamente dos músculos destinados ao próprio movimento, sem

fazer intervir outros. Dou frequentemente o exemplo da “mola de

roupa”. Quando a queremos abrir com os dois dedos, porque have-

mos de crispar a maxila inferior ou outra parte do corpo. Outro exem-

plo: quando pegamos no Sabre ou no Bokken, são inúteis as crispa-

VIII

42

Page 45: Aikido

fatais sobre a expressão. O mesmo se passa com o estado de espíri-

to ao longo de uma prática já avançada. É preciso deixar fazer, nada

provocar, nem querer, mas sentir-se “agido”, como se a acção obe-

decesse a uma pulsão do subconsciente. A descontracção, estado

criativo por excelência para o Aiki Nage, torna-se então senhora nes-

te menor investimento da Energia.

Nem sempre é assim, evidentemente. Consoante os ataques,

é necessário ter em conta diferentes elementos:

1. Há o elemento rítmico

2. A força mais velocidade (cara aos mecanicistas) ...

É preciso, então, apelar a uma espécie de organização dinâ-

mica, a uma concentração de vigor, a um tónus muito vigilante, que

de qualquer modo nunca excluem a descontracção permanente, a

qual é um estado de fundo indispensável a toda a acção. A prática

séria e bem conduzida de um relaxamento no plano psicológico po-

de revelar-se de enorme ajuda para os que têm dificuldade em de-

sinvestir as suas tensões do seu conteúdo emocional, e não conse-

guem, portanto, atingir através de simples tomadas de consciência o

estado de descon-tracção que procuram. Mas o relaxamento tem ou-

tras implicações muito fecundas.

Ele favorece, em particular, um estado de consciência supe-

rior, um meio termo entre a vigília e o sono, desenvolvendo conside-

ravel-mente o nosso poder criador.

Chegar a um tal domínio da descontracção, na consciência,

é já fonte de bem-estar.

Mas nada é comparável ao facto de realizar esta descontrac-

ção na execução de um movimento, isto é, quando os progressos na

aprendizagem do Aiki Do foram suficientemente levados até um cer-

to grau. Quem tiver a coragem de fazer o esforço necessário para

atingir um tal estado será recompensado muito para além da suas es-

peranças e dar-se-á conta das suas repercussões em todos os domí-

nios.

Uma distensão física e mental, bem realizada, não só nos apro-

xima dos seres e das coisas, como atenua ao mesmo tempo os efei-

tos nefastos dos ruídos e das excitações parasitárias e desvita-lizado-

ras. Com ela, não só a prática do Aiki Do ganha em sensibilidade, is-

to é, ganha uma consciência mais desperta, como a própria alma en-

tra numa espécie de vibração que poderia assemelhar-se a uma sim-

patia fundamental com todo o ser criado. Parece que a naturalidade,

enfim reconquistada desde o feliz estado da infância, dá a preciosa

certeza de dispor de uma Energia que se poderá aplicar onde se qui-

ser, acumular ou fazer desaparecer com um perfeito controlo desde

que a nossa respiração, inseparável da descontracção, não levante

obstáculos.

Se temos um bom Shizei (a boa atitude na descontracção), o

trabalho seguinte é: Ko Kyu:

Haku (Ko) Expirar

Suu (Kyu) Inspirar

21. Para Aité, ver nota 6, p. 22.Shité é a pessoa que tem a iniciativa na execução do movimento.

22. Fala-se de Haragei quando um homem possui o domínio da sua Arte: calmo e sere-no em todas as circunstâncias. É um estado de maturidade em que a sensibilidadee a Energia encontram todas as possibilidades a qualquer momento.

VIII

43

Page 46: Aikido

44

Gyô: arte de provocar acção do adversário, levando-o a um terre-

no desfavorável, obrigando-o a agir, forçando-o a ser autor da

sua própria derrota.

Kusa: o espírito subtil, a erva que oscila ao vento, a flexibilidade

do junco, a maleabilidade do espírito que conhece o desprendi-

mento; acção contida, perpetuada até ao limite.

Page 47: Aikido

A respiração é a encruzilhada em que se reconciliam as acti-

vidades fisiológicas, psicológicas e espirituais. O laço, a corres-pon-

dência rigorosa entre a actividade mental e a função respiratória é um

dos dados importantes do Budo em geral e do Aiki Do em particular.

A ciência da respiração, conhecida na Índia sob o nome de Pranayama,

e as técnicas de Yoga (Asana) deveriam interessar os praticantes, não

apenas para a flexibilidade e para o conhecimento do corpo. Mas sa-

bendo também que todas as funções dos órgãos do corpo são pre-

cedidas pela da respiração, existe sempre uma ligação entre a respi-

ração e o espírito nas suas funções respectivas. A respi-ração, quan-

do todas as funções dos órgãos estão suspensas, realiza a concen-

tração do espírito sobre um único objecto.

Existe sempre uma ligação entre a respiração e os estados

mentais. Isto permite entender que, ao ritmar a sua respiração de for-

ma cada vez mais lenta, seja possível penetrar em estados de cons-

ciência outros que os do estado de vigília.

O ritmo da respiração obtém-se através de uma harmoniza-

ção dos três movimentos: inspiração, expiração e retenção.

Tal como os batimentos do coração, o ciclo respiratório é uma

manifestação inconsciente da vida. Não há ser vivo que não respire,

a ponto de o ”sopro” ser, por vezes, assimilado à vida.

Mas, exactamente porque se trata de uma actividade vital que

não é possível dispensar, a nossa respiração acontece sem que nela

pensemos.

Infelizmente, parece termos perdido sem o saber a esponta-

neidade duma respiração absolutamente ”normal”, que devia ser a

dos nossos longínquos antepassados, e que observamos nos bebés,

nos animais e durante o nosso sono.

Por consequência, quando respiramos de maneira antinatu-

ral, ao invés da lógica do nosso corpo, não temos geralmente disso

consciência.

A respiração defeituosa é tanto mais dissimulada, quanto não

IX

45

IX k o k y o

Page 48: Aikido

nos apercebemos dela a não ser em casos de perturbações excepcio-

nais e fugidias, em que intervêm a emoção ou o esforço exagerado.

Ora, ela condiciona sempre o nosso comportamento e a nossa ma-

neira de praticar o Aiki Do, para o melhor e para o pior! Não pode-

mos, pois, ser-lhe insensíveis. Devemos, pelo contrário, aprender a

utilizá-la e a todo o momento conciliarmo-nos com ela.

Numerosas e variadas técnicas milenárias foram elaboradas

muito especialmente na Índia, no estudo do Yoga, e no Taoísmo chi-

nês.

Desde há milénios, diferentes tradições elaboraram técnicas

variadas, designadamente no estudo do Yoga (Pranayama). Frequen-

temente estas técnicas têm implicações que ultrapassam de longe o

quadro da aprendizagem de uma boa respiração. Neste trabalho, o

nosso objectivo não é analisar a fundo a respiração ou explicar como

deve ser praticada, porque, do meu ponto de vista, isso deve ser trans-

mitido directa e particularmente de professor a aluno.

Mas, nestas reflexões, podemos trazer à luz a influência ca-

pital que ela tem nos praticantes — sem que a maior parte das vezes

eles se dêem conta disso. E mostrar, em consequência, o lugar que

ela poderia assumir no ensino do Aiki Do.

Precisemos, desde já, que descontracção e respiração são ab-

solutamente indissociáveis, e que não podemos ocupar-nos de uma

sem passar pela outra.

Alguns praticantes de Aiki Do sentirão mais os inconvenien-

tes de uma tensão excessiva, outros os de uma respiração difícil, mas

qualquer que seja o ponto defeituoso para o qual a sua sensibilidade

particular os alerte, eles deverão, a fim de esperar melhorias, ter em

conta o duplo aspecto de um problema de que não percebem senão

uma parte.

IX

46

I

Page 49: Aikido

O estudo do sopro Ki começa pela compreensão do meca-

nismo da nossa respiração. Depois, uma vez assimilado, a respiração

torna-se Sopro e dá-nos Energia, harmonia e paz. Ele é factor de pro-

gresso na arte que praticamos, ao permitir unir o ser, ligando o cor-

po ao espírito, visando uma outra consciência.

Neste capítulo, estudaremos apenas a influência da respira-

ção e o seu mecanismo de base.

A prática dos exercícios respiratórios, sejam do Yoga ou do

Budo, deve ser precedida da obtenção de um ritmo mental harmo-

nioso e equilibrado na via quotidiana. Só então, com menor risco,

exercícios superiores de respiração poderão ser aplicados com a má-

xima sabedoria...

Os múltiplos ginásios em que hoje se pratica o Aiki Do e as

Artes Marciais são muitas vezes frequentados por pessoas que na sua

grande maioria vêm à procura de potência e força. Vão trabalhar du-

ro e forjar o seu corpo no combate, adquirirão títulos, obterão talvez

vitórias passageiras. Mas para o praticante que escolheu uma Via, é

algo diferente. A abordagem do Aiki Do é outra coisa. Em primeiro

lugar, não é uma construção intelectual, nem um discurso filosófico

frequentemente nebuloso, frequentemente confuso!

E, no entanto, a Arte do Aiki Do, se for bem ensinada, per-

mite descobrir a arquitectura subtil do corpo humano e, deste modo,

remontar à sua fonte.

Mas antes de continuar as reflexões sobre a respiração, que-

ria dar a palavra a Itsuo Tsuda23, deixá-lo explicar os seus primeiros

passos com o Mestre Ueshiba:

Quando comecei o Aiki Do por volta de 1960, aprendi sob a

direcção de professores, discípulos de Mestre Ueshiba, a fazer exer-

cícios de ginástica antes de começar a parte técnica.

Um destes exercícios consistia em rodar sobre cada um dos

pés alternadamente, descrevendo círculos através da deslocação. A

utilidade deste exercício, segundo a explicação dada, era a de permi-

X

47

X a r e s p i r a ç ã o e a s u a u t i l i z a ç ã o

A vida explica-se pela circulação dos sopros —

é um grande princípio, que a arte do Aiki Do deveria aprofundar.

Page 50: Aikido

Qual era a diferença essencial, segundo o que me foi dado ob-

servar, entre Mestre Ueshiba e os seus alunos? Os seus alunos, salvo

talvez algumas excepções, eram fascinados pelo poder do Mestre e

seguiam-no a fim de adquirir esse poder, a fim de se tornarem cada

vez mais fortes. Eles conseguiram chegar, em geral, ao Aiki Do de

Consolidação, cuja fórmula consiste em consolidar-se a si mesmo, atra-

vés da procura incessante do reforço dos pontos fracos. Fortificar os

pulsos e baixar o centro de gravidade. Procurar intensificar o Ki, au-

mentar a eficácia.

O Aiki Do de Mestre Ueshiba parecia-me ser completamente

diferente: era o Aiki Do de Conciliação, de comunhão com o Universo24.

Eu sentia um despojamento completo na sua personalidade, no seu

comportamento e na sua técnica. Ele era tão inatingível como um fe-

nómeno natural. Ele era inatacável como o ar e quem quer que o ata-

casse era arrastado no seu turbilhão.

Ele afastava-se dos humanos. Ele próprio o dizia. Uma tal de-

claração poderia ser compatível com a Via do Amor? Compreendi que

o Amor de que ele falava não se situava ao nível da afeição pessoal,

porque, no contacto que com ele tive, tinha sido absorvido numa di-

mensão sem medida à escala humana.

Uma tal concepção do Aiki Do é, evidentemente, inacessível

ao comum dos mortais. É infinitamente mais fácil explicar a Consoli-

dação. Ainda que se compreenda e aceite o Aiki Do como via de co-

munhão com o Universo, num plano meramente espiritual, é mais ló-

gico, de qualquer modo, dá-lo a entender em termos acessíveis a to-

da a gente e com a promessa acrescida da eficácia.

Ao primeiro confronto com as dificuldades reais, o espírito ce-

de o lugar à agressividade mesquinha.

À força de observar as pessoas praticar, acabei por sentir em

tir baixar o centro de gravidade do nosso corpo de maneira a que es-

tivéssemos em equilíbrio em todas as circunstâncias. A explicação pa-

recia-me muito lógica. Todas as perturbações por que passamos na

vida corrente provêm do facto de o nosso centro de gravidade estar

colocado demasiado alto. O sangue sobe à cabeça e perdemos a lu-

cidez. Levados pelos impulsos do momento, cometemos erros.

Tendo aceite a explicação, treinava-me neste exercício. Fazia

uma volta sobre um pé, em seguida, sobre o outro. Um, dois, três,

quatro, eu fazia círculos sem perder o equilíbrio, ao mesmo tempo

que me deslocava.

Um dia em que realizava este exercício, ouvi uma voz que,

embora muito gentil, não deixava margem para dúvidas sobre o con-

teúdo do que ela significava: “Assim, vai ter vertigens”.

Virei-me e vi Mestre Ueshiba que me olhava. Fiquei pregado

ao chão sem saber o que dizer. Esta palavra do Mestre teve em mim

um impacte terrível.

Eu tinha acreditado, até então, na uniformidade do ensino.

Quer se tratasse do Mestre ou de um pequeno professor, devia haver

uma doutrina imutável, uma prática determinada uma vez por todas.

O facto de o Mestre desaprovar o que eu tinha aprendido dos seus

discípulos directos constituía um caso de consciência muito grave.

Era preciso repor tudo em causa.

Levei muitos anos antes de compreender e sentir que o Aiki

Do de Mestre Ueshiba era muito diferente do dos seus discípulos.

Seria preciso acrescentar ainda que cada um dos seus alunos o prati-

cava à sua maneira, segundo a sua motivação pessoal, segundo a

sua abertura de espírito.

De qualquer modo, havia entre o Mestre Ueshiba e os seus

alunos uma distância tão grande que era difícil de ultrapassar.

X

48

Page 51: Aikido

filigrana o que levou cada um ao seu exercício. Há tantos Aiki Do

quantos os praticantes, tal como existem tantos grafismos quantos

os escribas. O que é terrível é que a motivação inicial, íntima e sub-

consciente, permanece frequentemente imutável, apesar da prática.

Raros são os que reconhecem a estreiteza da sua visão e introduzem

uma mudança radical na sua atitude.

Este foi, contudo, o caso de Mestre Ueshiba. Ele dizia que es-

tava no seu primeiro ano de Aiki Do. Eu sentia que a sua evolução

nunca desembocava num fim.

Mulheres que querem saber se a prática do Aiki Do as fará

emagrecer, rapazes que o querem aprender na condição de o pode-

rem utilizar ao fim de três meses nas suas zaragatas, estes são refle-

xos dos costumes dos nossos dias.

No que diz respeito à primeira parte da sessão, parte que pre-

cede o treino técnico, conheci várias concepções e, consequen-te-

mente, várias denominações. Ela era apelidada ora de “exercício pre-

paratório”, ora de “ginástica Ai Ki”, mas o Mestre Ueshiba nunca lhe

deu qualquer nome.

À primeira vista, todas as interpretações se assemelhavam

mais ou menos e os principiantes aceitavam-nas indistintamente co-

mo uma espécie de aquecimento. Foi por um trabalho contínuo de

observações e de comparações que acabei por sentir a importância

que o Mestre atribuía a esta prática.

Quando, de tempos a tempos, o Mestre Ueshiba chegava atra-

sado para a sessão das seis e meia, o seu substituto tinha concluído

esta parte e dizia: “Terminámos o exercício preparatório”.

Sempre que isto acontecia, era a vez de o Mestre fazer ex-

plodir a sua cólera numa voz tonitruante: “Qual exercício preparató-

rio? Nunca houve tal coisa”.

E, no entanto, ele jamais lhe deu um nome, e o outro estava

convencido de que se tratava exactamente de um exercício prepara-

tório, preliminar à técnica que era para este último a coisa principal.

Porque é que nunca houve nome? É difícil de compreender a

um espírito ocidental, porque, para este, a primeira coisa a fazer, quan-

do tem algo a preconizar, é dar-lhe um nome, colar-lhe uma etique-

ta. A coisa não existe enquanto não tiver denominação.

À falta de melhor, baptizei-a provisoriamente de prática res-

piratória, tendo por detrás toda a ressonância que a escolha deste no-

me possa suscitar.

É verdade que, nesta prática, nem tudo cabe no mesmo sa-

co. Existem também exercícios que podem passar por serem de aque-

ci-mento, como aqueles que se aplicam aos pés, aos dedos dos pés,

às plantas dos pés e aos tornozelos.

Há outros que estão carregados de significações profundas e

que merecem, por consequência, algumas explicações.

De outro modo, todos estes gestos se tornariam uma agita-

ção de marionetas25.

X

49

Page 52: Aikido

empurrando para cima o diafragma, cuja parte superior se levanta e

os flancos se retraem, arrastando consigo o fecho das costelas e per-

mitindo o expulsar do ar pelos pulmões.

Basta observar os alunos num dojo, para nos darmos conta de

que a respiração instintiva habitual é raramente ampla. Ela é, ao con-

trário, reduzida, não permitindo senão um afastamento das costelas

e um jogo muscular (diafragmático e abdominal) limitados e não as-

segu-rando senão um mínimo de ventilação da parte central dos pul-

mões.

Sempre que praticamos, os condicionamentos coercivos im-

postos ao nosso corpo, as nossas más posturas, a restrição do espaço

fecham-nos nesta respiração reduzida, que permite, certamente, as-

segurar trocas gasosas indispensáveis à nossa vida, mas cujos efeitos,

a mais ou menos longo prazo, ser-nos-ão prejudiciais tanto no plano

físico como no psíquico.

Com efeito, nesta respiração reduzida, a capacidade pulmo-

nar não é utilizada no seu máximo, o que significa que a base e a par-

te superior dos pulmões, não sendo praticamente ventiladas, os vasos

sanguíneos, as vísceras, os músculos e o cérebro, irrigados por um san-

gue insuficientemente oxigenado, acumulam as toxinas e funcionam

mal. O próprio mecanismo muscular respiratório atrofia-se pouco a

pouco, acentuando os erros da postura, fixando os efeitos de ten-

são muscular e nervosa, que agem, por sua vez, sobre o sistema sim-

pático, o qual reage através de tensões sobre o plexo solar, que trans-

forma em angústia a ansiedade psíquica original... e o círculo fecha-

se.

Quer isto dizer que, para assegurar uma boa saúde, devería-

mos respirar sempre no máximo da nossa capacidade pulmonar e so-

bre-oxigenar o nosso sangue em permanência? Na prática, isto não

Nota elementar sobre

o funcionamento respiratório

A respiração, no seu acto instintivo, vital para o ser humano,

é executado em dois tempos: a inspiração, ao longo da qual, o ar pe-

netra nos brônquios que o filtram e o enviam para os pulmões onde

se encontram os alvéolos pulmonares que dele extraem o oxigénio e

o enviam, sob a forma de sangue oxigenado, para o coração que se

encarrega de o distribuir, através do sistema arterial, por todo o cor-

po; e a expiração que consiste em expulsar o gás carbónico extraído

pelos pulmões do sangue viciado pelos detritos de combustão, re-

gressado ao coração através do sistema venoso.

Os cursos primários da nossa infância familiarizaram-nos com

a dupla rede circulatória do sangue carregado de oxigénio em ver-

melho e do sangue carregado de gás carbónico em azul. O coração

e os pulmões, intermediários obrigatórios, neles figuravam destaca-

dos.

Quanto ao mecanismo que preside a estas trocas gasosas e

circulatórias, não temos, em geral, senão uma ideia muito vaga.

Contudo, ele põe em acção um dos músculos mais potentes do cor-

po (que trabalha tanto ou até mais do que o coração): o diafragma,

espécie de cúpula que cobre o abdómen e cujos movimentos de vai-

vém, de cima para baixo e de baixo para cima, são condicionados pe-

la alternância tensão-distensão dos músculos abdominais.

Durante a inspiração: a cúpula do diafragma baixa e as suas

superfícies laterais alargam-se, os músculos abdominais distendem-

-se, o abdómen dilata-se, as costelas afastam-se, permitindo aos pul-

mões encherem-se de ar.

Durante a expiração: os músculos abdominais contraem-se,

X

50

Page 53: Aikido

seria possível: o mecanismo muscular respiratório fatigar-se-ia de-

pressa e uma excessiva entrada de oxigénio provocaria um desgaste

rápido dos órgãos por oxidação.

Sem querer fazer da respiração habitual uma tarefa discipli-

nar, os praticantes de Aiki Do, antes de falarem da Energia ”Ki”, de-

veriam praticar regularmente técnicas respiratórias, para melhorarem

as trocas gasosas (uma maior quantidade de oxigénio no sangue, uma

maior quantidade de gás carbónico expulso), permitindo à base e à

parte superior dos pulmões funcionar e, simultaneamente, reduzir as

tensões musculares e nervosas de todo o nosso corpo e corrigir as

posturas defeituosas.

Uma maneira muito simples de reeducar a respiração instin-

tiva consiste em praticar pelo menos duas vezes por dia (ao levantar

e ao deitar) uma série de respirações voluntárias profundas e lentas,

de tal modo que os três níveis dos pulmões (base, meio e cimo) se-

jam profundamente ventilados e permitam trocas gasosas máximas,

assegurando, assim, um forte acréscimo da taxa de oxigénio sanguí-

neo distribuído por todo o organismo e, em particular, no cérebro

(grande consumidor de oxigénio), cujo funcionamento ao nível do

néo-cortex (sede das faculdades intelectuais) e do rinencéfalo (sede

das emoções) se verá melhorado. Esta sobreoxigenação cerebral, agin-

do por intermédio do hipotálamo sobre a hipófise, melhora igual-

mente o funcionamento endócrino.

Ao mesmo tempo, os movimentos de fluxo e refluxo do dia-

fragma, lentos, regulares, profundos, asseguram uma massagem das

vísceras abdominais, cujas funções de depuração e de transformação

são facilitadas. A mais longa duração dos movimentos respiratórios e

das trocas gasosas reduz a velocidade da circulação sanguínea e des-

cansa o coração, desacelerando os seus batimentos.

Esta respiração voluntária, profunda e lenta pode ser pratica-

da durante ”o cerimonial”. A prazo, ela influi sobre a respiração ins-

tintiva habitual, que será mais completa e menos rápida.

Princípios de base

da reeducação respiratória

Todo o praticante de Aiki Do, antes de pensar num trabalho

mais subtil, deveria conhecer os princípios básicos da reeducação res-

piratória.

a) A inspiração e a expiração devem fazer-se pelo nariz.

Na inspiração: os pêlos que revestem a mucosa nasal retêm

as poeiras e a passagem pelo canal nasal aquece o ar antes da sua

chegada aos brônquios. Acresce que o muco segregado pela muco-

sa tem a propriedade de matar certos micróbios.

Na expiração: o sopro pelo nariz permite travar muito mais

subtilmente do que a boca o faria a quantidade de ar expulso.

Na inspiração e expiração nasais, o ar reunido à passagem age

como uma massagem sobre as células nervosas que estão em relação

com os centros simpáticos.

Note-se que, para os Yogi, o papel de cada narina tem a sua

importância ao nível da absorção e da expulsão da Energia vital (Ki)

contida no ar.

b) O ritmo deve ser lento para permitir uma melhoria da cir-

culação sanguínea, uma desaceleração da ”bomba” cardíaca, uma

massagem mais profunda das vísceras e do plexo solar.

c) A respiração deve fazer-se aos três níveis: abdominal (ven-

tilação da base dos pulmões), torácica (ventilação do meio dos pul-

mões), clavicular (ventilação da parte superior dos pulmões), favore-

cendo assim o livre jogo do diafragma, a massagem das vísceras e o

X

51

Page 54: Aikido

aluno e deve visar também o anti-stress. A prática, como vimos, é tam-

bém distensão, em movimentos conscientes, controlados, permi-tin-

do que o aluno se recentre, se ponha à escuta do seu corpo, sinta uma

forma de ataque e o aceite para lhe fazer frente. A tomada de cons-

ciência da descontracção e a da respiração inauguram a confiança.

Segundo Karlfried Dürkheim, a falta mais corrente, cometida

em respiração, é não respirar a partir do seu centro, mas de demasia-

do alto. Daí resulta que um trabalho muscular do peito se substitui ao

trabalho inconsciente do diafragma. E, assim, se instala uma respira-

ção saída do ”eu” contrária ao ritmo de uma respiração saída do Ser

autên-tico. Sempre que a respiração falsa se tranforma num hábito,

ela entrava o devir de uma pessoa27.

O diafragma participa no jogo ritmado da respiração que nos

liga ao Universo...

O praticante de Aiki Do ignora frequentemente que a beleza

dos seus movimentos, que devem vir do mais íntimo do seu ser, é fun-

ção da sua calma e da correcta utilização do seu sopro. O praticante

cujo ritmo respiratório não é amplo e distendido não pode aspirar à

naturalidade nas deslocações.

Quando se fala de um belo movimento, diz-se que nele há ”Ki”.

Poder-se-ia dizer também: ”Este movimento tem Sopro”.

A respiração não é apenas uma exigência técnica, sem a qual,

de um ponto de vista do corpo, não se pode estar ”colocado”. Ela é,

antes de mais, tal como a descontracção, necessidade na Arte do

Movimento.

Sempre que nos exprimimos através do nosso corpo, somos

tributários da nossa respiração, a meio caminho do consciente e do

subconsciente, do baixo e do alto do corpo, do físico e do espiritual.

Se a respiração é interior, profunda e calma, ela é a fonte de uma

descongestionamento do plexo solar.

d) A duração da expiração deve ser dupla da da inspiração,

o que é o caso na respiração instintiva do corpo em repouso.

Ao procurar conservar na respiração voluntária a relação 2 pa-

ra 1, permite-se aos músculos abdominais, nesta fase dinâmica que

é a expiração, expulsar ao máximo o ar viciado dos pulmões.

e) Deve observar-se um tempo de paragem com os pulmões

cheios e um tempo de paragem com os pulmões vazios:

• no fim da inspiração, a paragem permite aos alvéolos pul-

monares desenvolverem-se e encherem-se de ar, no máximo da sua

capacidade, a fim de extrair o máximo de oxigénio;

• no fim da expiração, a paragem permite o repouso do dia-

fragma.

f) O corpo deve estar em perfeito equilíbrio em torno de uma

coluna vertebral o mais direita possível, e os ombros baixos.

A simetria dos dois lados do corpo em relação ao eixo central

assegura um mesmo trabalho e um mesmo efeito benéfico para ca-

da pulmão e cada músculo gémeo.

g) O espírito deve concentrar-se sobre cada fase respiratória

e acompanhar os seus efeitos: por um lado, a concentração sobre a

tarefa permite realizá-la melhor; por outro lado, a acção do pensa-

mento sobre os centros de aprendizagem inconsciente do cérebro fa-

vorece a aquisição de novos automatismos; por último, ao fazer isto,

não pensamos mais nas preocupações quotidianas e, pouco a pou-

co, chegamos a eliminá-las e a aproximarmo-nos do vazio mental que

coloca o corpo e o espírito em repouso26.

Nesta reflexão sobre a respiração de base, será preciso não

esquecer que a sessão de Aiki Do deve privilegiar a recentragem do

X

52

Page 55: Aikido

Energia Vital inesgotável. Dizia o Mestre Ueshiba: ”Para aquele que

compreende o princípio essencial do Aiki Do, o Universo está nele; eu

sou o Universo”.

E este princípio essencial é o Sopro.

Se, ao contrário, a respiração é curta, mal colocada ou inibi-

da, ela não só perturba o metabolismo, como paralisa o movimento,

bloqueia a relação entre o baixo e o alto do corpo e priva-nos, por-

tanto, de uma comunicação real com a riqueza criativa do nosso in-

consciente.

Ora, é este estado privilegiado que vivemos em certos mo-

men-tos da prática, sempre que abandonamos o domínio do ”fazer”,

para experimentarmos o do ”deixar fazer”...

23. Itsuo Tsuda, de nacionalidade japonesa, fundou, em Paris, a ”escola da respiração”.Integrou-se perfeitamente na cultura ocidental. Foi aluno de Marcel Granet, cujacultura chinesa aprofundou. Por várias vezes, nomeadamente em Marrocos ondeentão eu ensinava, troquei impressões com ele sobre o problema da divulgação dasArtes Marciais (Budo) fora do Japão. Itsuo Tsuda conseguiu, a meu ver, a ponte en-tre o Oriente e o Ocidente, o que é muito raro.

24. Também eu senti isto, depois da morte do Mestre Ueshiba. Decidi, pois, abandonara organização Aikikai, em 1969.

25. Itsuo Tsuda, La science du particulier, Paris, Le Courrier du Livre, 1976, pp.125-126

26. Para ir mais longe na respiração, v.,designadamente, Georges Stobbaerts, Hatha-Yoga, Centro do Livro Brasileiro, 1977; Recueil de satsang, Lisboa, ed. do autor,1978/1988; Étude sur l’origine des énergies, Lisboa, ed. do autor, 1979; O Soprodo Espírito, Lisboa, ed. do autor, 1982; Yoga — Noções elementares, nº3, OPranayama, Lisboa, ed. do autor, 1987.

27. Karlfried Dürkheim, Hara. Centre vital de l’homme, Paris, Le Courrier du Livre,1974, pp.154-178.

X

53

A percepção do Ki suscita e reclama uma qualidade

de atenção particular que sai dos nossos automatismos

tanto na sessão de Aiki Do como no quotidiano.

Esta presença no instante é um dos melhores cami-

nhos para a qualidade da nossa concentração. II

Page 56: Aikido

54

Longe da especulação intelectual, a importância da experiência directa.

Page 57: Aikido

Uma das consequências imediatas da descontracção e da res-

piração correcta é permitir-nos aceder à concentração.

Da mesma maneira que a descontracção é, como vimos, mui-

tas vezes confundida com um relaxamento geral, a concentração é

indevidamente assimilada a um paroxismo de atenção, a uma vigi-

lância interior sem falha, que não são, de facto, senão crispação do

pen-samento (morder o cérebro com os dentes!). Descontracção e

con-centração, longe de serem moleza do corpo e crispação do espí-

rito, são dois estados inseparáveis, que envolvem por inteiro o indiví-

duo. A concentração é, antes de mais, disponibilidade, abertura em

relação a si mesmo e em relação ao exterior, um movimento de Energia

insuspeitada. A expressão de um movimento é uma força dirigida do

interior para o exterior, um movimento de Energia vindo do mais fun-

do de nós mesmos, que procuramos traduzir. Caso o caminho da co-

municação connosco esteja bloqueado, não há descarga possível pa-

ra esta Energia que se transforma então em tensão e crispação.

Se não existem técnicas pré-fabricadas que possam conduzir

à concentração, há, no entanto, tomadas de consciência físicas e psí-

qui-cas que a ela facilitam o acesso. Sabemos, por o termos visto mui-

tas vezes, que se o corpo se verga às exigências da imaginação, em

contra-partida, o seu equilíbrio, a "centração" permanente são a con-

dição do bom funcionamento do espírito. A concentração, directa-

mente ligada ao estado criativo, por exemplo, num movimento de

Kokyu Nage, é antes de mais este retorno a si, sem o qual um bom

praticante não poderia exprimir senão movimentos superficiais. É pre-

ciso não esquecer que um movimento mesmo Ni Kyo liberta uma

emoção que pode ser nervosa, agressiva, vazia, etc., e deixa também

àquele que o sofre um mal-estar e que não passa despercebido a um

olhar atento...

É aqui que se separam as escolas! Uma será a da Consolidação

e outra a da Conciliação.

A concentração deve, portanto, ser objecto de uma aborda-

XI

55

XI c o n c e n t r a ç ã o

Seria preciso parar o saber.

Saber parar seria a salvação

Lao Tsé28

Page 58: Aikido

não permitem nem retoque, nem remorso, exigem de nós um inves-

timento e uma disponibilidade totais, que não podem basear-se se-

não na nossa concentração no sentido físico do termo. (E isto, pou-

cos o compreendem!).

A valorização do Seika Tanden não é pura fantasia.

O ventre é o estado mais primitivo da evolução na estrutura

do corpo humano. Ele é origem da vida (no ventre) e da reprodução,

o lugar de junção do alto de do baixo, da direita e da esquerda, o pon-

to de partida dos nossos braços e das nossas pernas. Não se diz "aguen-

tar-se nas cruzes", ou "fazer das tripas coração"? Ora estas locu-ções

tendem a indicar a importância atribuída a esta região do corpo.

Pensar com o abdómen significa baixar o diafragma para dei-

xar o campo livre ao funcionamento correcto dos órgãos do tórax e

conser-var assim o corpo firme e convenientemente disponível para a

acção.

Antes de estar familiarizado com esta concentração física, é

muitas vezes útil despertar esta região abdominal que facilmente es-

capa ao nosso controlo conscientemuitas vezes por razões de edu-

cação...

Podemos, por exemplo, solicitar a musculatura da nossa ba-

cia, exercitarmo-nos alternadamente em contracções e relaxamentos

que apuram a sensação. Da mesma maneira, é eficaz praticar um li-

geiro movimento de anteriorização dos quadris (não com um blo-

queio, exagerado!), como quando de uma entrada, por exemplo, em

Koshi Nage, a fim de favorecer a base de sustentação e dar às pernas

uma descontracção suplementar, que permite aceder mais livremen-

te à consciência abdominal.

Certas imagens mentais podem ser muito úteis ao principian-

te que aprende a concentrar-se. Assim, quando imaginamos o nosso

gem privilegiada por parte dos aikidocas.

Concentrar-se é, antes de mais, regressar ao centro do corpo

e aí se enraizar, em vez de andar ao sabor do jogo de forças diver-

gentes e contraditórias.

O Seika Tanden ou Kikaï Tanden (impropriamente traduzido

por Hara), de que falam os Mestres de Budo, é o ponto crucial do nos-

so corpo. Ele é o centro vital onde se concentra o Ki, a Energia cós-

mica, e de onde ela se expande por todo o corpo. Nós ocidentais po-

demos relacionar esta Energia ao Sopro. Em latim, a energia é alma

ou anima, que vem do grego anemos, que significa "o vento". Em

grego, anemos corresponde ainda a psico, que vem de psyché que

significa "respirar". O Sopro é também espírito: em latim spiritus e

em grego pneuma. Mas aqui estamos perante o Sopro Divino como

no Génesis: "Então Jeová Deus modelou o homem com a argila da

terra, insuflou pelas suas narinas um sopro de vida e o homem tor-

nou-se num ser vivo". É o Ki com maiúsculas.

O Seika Tanden, situado no ponto de junção do sacro-lom-

bar, coincide com o centro de gravidade. Este ponto não é um órgão

preciso que se possa situar anatomicamente. É o lugar físico onde se

concentra a nossa força, onde se baseia a nossa estabilidade. Estar

"colocado" é estar no Haragei, com o seu centro, concentrum. Quan-

do conseguimos verdadeiramente chegar a esta concentração na sua

acepção literal, o que implica estarmos descontraídos, assentes nu-

ma postura correcta e com a nossa respiração colocada, detemos, en-

tão, uma força muito superior àquela que possuímos em tempo nor-

mal.

Em vez de sermos apenas um intelecto todo poderoso, tor-

namo-nos um ser integral, o que nos abre a via de progressos ilimi-

tados. É por isso que o Aiki Do e todo o Budo, Artes do instante, que

XI

56

Page 59: Aikido

corpo semelhante a uma esfera, em que as distâncias entre alto e bai-

xo, frente e trás, direita e esquerda seriam mínimas e em que cada

ponto do corpo estaria ligado a um ponto central, estamos no bom

caminho de virmos a centrar-nos sobre o "ponto". Contribuem igual-

mente para a concentração as imagens pelas quais sentimos toda a

Energia do "alto" (Céu) percorrer, descer no corpo para o umbigo,

ou ainda aquela outra sensação de caminhar sobre as mãos, isto é,

fazer perder à cabeça o seu papel de chefia... Vi, na Índia do Sul, uma

escola de Kalaripayat29 que pratica habilmente este exercício mental.

Todas estas imagens são ricas de sugestões... e põem cobro ao vaga-

bundear da mente.

Mas a concentração não é apenas uma realidade física; é tam-

bém uma atitude mental e não basta tomar consciência do seu cor-

po ou viver este sentimento de estar centrado em Seika Tanden. A

verdadeira concentração exige também do aikidoca uma mudança

de espírito que não se efectua num instante, mas ao longo de todo

um trabalho sobre o tapete e fora do dojo!

Ela adquire-se através da nossa prática, em cada movimento,

até à identificação completa: cada "presença" tem uma sensação ver-

dadeiramente vivida, cada minuto de disponibilidade activa ao servi-

ço de uma busca particular, cada retorno a nós mesmos são um ins-

tante de verdadeira concentração que criamos. Quando muitos ou-

tros instantes semelhantes vierem juntar-se-lhe postas e repostas à

prova que foram todas as distrações correntes então, cria-se em nós

uma real possibilidade de concentração instantânea, uma força que

nos permite "aguentar" sem sermos submersos pelas emoções exte-

rio-res30. Importa, como sugeri, criar em nós um clima de amor de on-

de estejam excluídos o nervosismo, a impaciência, as contestações

palavrosas, seja connosco ou com os outros, que são os maiores obs-

táculos ao nascimento da concentração, porque eles fecham-nos à

realidade vivida.

A aprendizagem da concentração deve permitir o reencontro

consigo mesmo em todas as circunstâncias e não ser tributário das

emoções provocadas por um resultado, um julgamento, um momento

a advir. É por isso que todo o trabalho do Aiki Do com o Jô ou o

Bokken é um caminho que visa atingir o estado de concentração, ca-

minho em ponteado, feito de todos estes instantes vividos, onde nos

entregamos por completo, onde procuramos reduzir sempre cada vez

mais a parte acidental no gesto e a sua precipitação muitas vezes ner-

vosa, a fim de nos tornarmos verdadeiramente disponíveis.

Todos estes exercícios de "centração" física e de localização

da atenção têm uma mesma finalidade que se exprime ao mesmo

tempo de maneira muito pontual e de maneira quase intemporal.

Com efeito, a concentração é ao mesmo tempo este estado instan-

tâneo em que o praticante se reencontra a si mesmo e a capacidade

que ele tem de se abstrair dos acontecimentos e das situações.

A concentração, por um lado, vive-se, por outro, aprende-se.

A concentração — estes momentos de unidade interior, on-

de nos sentimos viver até ao limite de nós mesmos, numa unificação

completa do organismo — a todos diz respeito.

Tal como o actor, o músico ou o calígrafo, que dependem da

sua concentração, o praticante de Budo deve estar concentrado no

instante da criação, e nunca pode voltar atrás. Quando um começa

a tocar, ou o outro projecta o seu pincel no papel, dá-se um momento

único e em que ambos não podem mais tergiversar.

Para o aikidoca, é o momento da recepção, De Ai a que cha-

mo "o estado de De Ai", o momento único do "encontro", da for-

ma de ataque, o espaço harmonioso do encontro, em que tudo se

XI

57

Page 60: Aikido

decide.

A concentração é este estado privilegiado que, se não garante

a riqueza da inspiração, favorece-a e permite que ela desabroche. A

concentração é a imagem do tempo concentrado; ela é o resultado

instantâneo de todo o trabalho anterior, de todos os esforços do pra-

ticante. Ela é a única coisa que perdura quando todo o traço desta

preparação desapareceu. É demasiado tarde para alterar, naquele ins-

tan-te decisivo, o que foi feito, isto é, para renegar o seu próprio tra-

balho.

No estado de concentração encontra-se condensado o pas-

sado do seu estudo. Já não é necessário fazer apelo à memória, ir pro-

curar elementos de técnica, visto que tudo lá está, tudo é presente.

A concentração é portanto também esta possibilidade de

abandonar a mente, de confiar no que é, a fim de coincidir totalmente

com a acção, e viver o instante presente. Para chegar a este estado

óptimo em que estamos concentrados, é preciso, nunca será demais

repeti-lo, estar liberto de toda a preocupação, tanto em relação ao

resultado, como em relação ao juízo de outrem.

Esta sensação de disponibilidade, de total receptividade à cria-

tividade do instante, constitui o estado ideal para o qual deveria ten-

der todo o praticante consciente de ser um mensageiro do Sopro...

Aquele que, ao longo do seu trabalho de aprendizagem, foi

suficientemente paciente para aprender a concentrar-se torna-se ca-

paz, em dois segundos e quaisquer que sejam as circunstâncias, de

se "re-unir" para poder exprimir, no instante, a própria essência do

movimen-to. Sempre que se acede a um tal sentimento de liberdade

interior, a prática torna-se, sem esforço, fonte permanente de alegria

e de criação.

É então possível falar sem impostura da nossa Arte.

28. Lao Tsé, em português, ou ainda Lao-Tseu, na norma francesa, e Lao-Tzu, na ingle-sa. Mas Laozi, na transcrição oficial chinesa, Pinyin.

29. Considero o Kalaripayat e outras artes de que desconheço o nome, os antepassa-dos das Artes do Judo, Aiki Do, Karaté, Kung Fu, Tai Chi, etc. Nascido na Índia, hámais de 3 500 anos, é ainda desconhecido na Europa, embora alguns ocidentais te-nham tentado fazê-lo conhecer, por vezes, de forma desajeitada. O Kalaripayat (omelhor conhecido) tem a riqueza de uma grande tradição, tanto no combate e namedicina, como ainda no método de meditação e de evolução espiritual.

30. É desolador ver, por vezes, num tapete, praticantes avançados e muito bons execu-tantes perderem-se neste género de situação.

XI

58

Page 61: Aikido

XI

59

a concentração no estudo do yoga

Ekagrata: modalidade da consciência que conduz a

Dharana (estado de concentração).

Viyasa (in Yoga Sutra, I, 1) classifica, da forma seguinte,

as modalidades da consciência (ou "planos mentais", chitta

bhiumi): 1. instável (kshipta); 2. confusa, obscura (mûdha); 3.

estável e instável (vikshipta); 4. fixa sobre um único ponto (eka-

gra); 5. completamente controlada (nirodha).

Destas modalidades, as duas primeiras são comuns a

todos os homens, porque, do ponto de vista indiano, a via psí-

quico-mental e dinâmica é, habitualmente, confusa. A

ter-ceira modalidade da consciência, vikshipta, obtém-se fi-

xando "ocasional e provisoriamente" o espírito, através do

exercício da atenção (por exemplo, num esforço de memória

ou quando de um problema matemático, etc.); mas ela é pas-

sageira e de nada serve para a libertação (mukti), visto não ter

sido obtida por meio do Yoga. Apenas as duas últimas mo-

dalidades acima enunciadas são estados de Yoga, isto é, pro-

vocados pela medita-ção (Dhyana).

Mircea Eliade

Téchniques du Yoga

Gallimard, 1975

Ter o seu espírito consigo.

III

Page 62: Aikido

60

À mínima discriminação, céu e terra ficam a distância infinita...

Page 63: Aikido

O praticante tem por missão fazer viver o espírito do Ai Ki,

mas para traduzir os sentimentos que este estado de espírito repre-

senta é preciso ainda conhecê-lo! Consolidação ou Conciliação?

Devo dizer que, na Arte do Movimento (Ai Ki), isto pode ser ainda

mais profundo...

Cada fase da prática deveria ser virada para o"Momento Úni-

co", aquele em que o praticante, confiante nas suas possibilidades,

libertará os seus movimentos tal como os sente. O ensino num dojo

deveria, pois, contribuir para fazer do praticante um "ser total", que

sabe traduzir a sua mensagem com clareza e sensibilidade. Ora, jus-

tamente, parece que este objectivo último é muitas vezes esquecido

no ensino, mesmo quando se diz "superior".

Aí, procura-se sobretudo a performance, a eficácia, a aquisi-

ção de velocidade, etc… Enveredar por novos horizontes provoca ho-

je desprezo ou desconfiança... O aluno pouco se envolve na sua abor-

dagem. Ele contenta-se em copiar, passivamente e com zelo, o seu

professor, sem manter a liberdade de comparar com outras concep-

ções e sem assumir pessoalmente opções firmes quanto à sua in-

terpretação da Via (Aqui, separo-me, pela prática no tapete, deste en-

tendimento).

O período teoria/prática está desfasado. (Neste preciso caso,

chamo teoria à leitura de textos que podem ajudar realmente e não

à leitura que nos leva à especulação intelectual, que nada tem a ver

com a prática).

Como espantarmo-nos hoje que, após uma formação de duas

ou três horas por semana (sem reflexão), prática que considero exí-

gua, alguns praticantes "Dan" não façam senão cursos ou apresen-

tação de movimentos muitas vezes decepcionantes, onde pouco re-

cebemos em troca da nossa presença: de tempos a tempos, há uma

execução perfeitamente correcta (Ghi) e, por vezes, uma verdadeira

exibição pessoal em que o praticante esquece o espírito (Shin) para

se transformar em vedeta. Os mais novos são frequentemente ví-

XII

61

XII a e n e r g i a c r i a d o r a

Page 64: Aikido

verá ser esquecido.

Todos os recursos da Arte do Movimento não podem revelar-

se a não ser que o praticante experimente emocional e fisicamente

aquilo que pratica (Atenção. Aqui, quando falo de emoção, alguns

podem equivocar-se... No semi-sorriso de Buda, havia uma emoção...).

Tornar vivo um movimento, é repor o Ki no lugar que é o seu!

Os praticantes são obrigados a envolver-se intimamente na ac-

ção. Nem todos o conseguem, devido, muitas vezes, a factores psi-

cológicos. Mas os factores nem sempre são psicológicos. O equilíbrio

do corpo, o élan que lhe deve ser imprimido, a respiração que não es-

tá de acordo com o centro podem ser outras tantas causas. No teatro

e na música, os laços entre a vida interior e a expressão do corpo tor-

naram-se evidentes para os pedagogos. Não vejo porque é que as es-

colas de Aiki Do, que se interessam pela formação interior, não have-

riam de compreender que existe frequentemente um problema de fun-

do que toca a formação total do indivíduo, o seu nível afectivo, inte-

lectual, cultural, a sua imaginação criadora, a sua possibilidade de vi-

brar fisicamente. Não é portanto apenas uma questão de conheci-

mento. É preciso, nelas, desenvolver uma força interior e uma

elasticidade que abriria o campo e daria fecundidade às técnicas e,

muito especialmente, às de Aiki Nage ou Kokyu Nage.

Mas o que, em minha opinião, deveria evoluir não era tanto a

aprendizagem do Go Kyo, mas o espírito dentro do qual ela se pro-

cessa.

Não se pode ajudar os principiantes em Aiki Do a tornarem-

-se futuros aikidocas sem mudar o espírito com que hoje são encara-

das as Artes ditas Marciais.

É preciso questionar a escala de valores "Shin – Tai – Ghi".

Com efeito, e antes de mais, é preciso desenvolver no principiante

timas de uma aflitiva dicotomia quando observam os mais antigos.

A precisão do gesto parece incompatível com a emoção real da be-

leza. Ora, como o sabemos e o esquecemos regularmente, o perfec-

cionismo sem alma é tão insatisfatório quanto o pathos sem escrú-

pulos... Isto não é, obviamente, uma regra geral. Existem, felizmen-

te, bons praticantes, assim como professores de grande qualidade,

que sabem captar a adesão de todos, porque acreditam na sua prá-

tica...

Não se trata aqui de exigir constantemente ao praticante um

"grande momento", que é, infelizmente, muito raro. Mas o aborre-

cimento que por vezes emana de um curso ou de uma prática pes-

soal também é infelizmente vulgar. Porventura, é, para o Aki Do, a

maneira de matar a sua Arte!

Também não devemos cair num estudo do Aiki Do à manei-

ra dos dojos japoneses, onde frequentemente os estrangeiros tal co-

mo os japoneses são estigmatizados pela secura do ensino. Em Aiki

Do, insisto, é necessário ter prazer em comunicar com os parceiros.

Nada é estereotipado em Aiki Do. Tal como "o Bom Mestre, que é

aquele que, ao repetir o Antigo, é capaz de nele descobrir o Novo",

o bom praticante é aquele que faz "reviver o Aiki Do", no sentido

forte, através da sua personalidade e da sua subjectividade.

Muitas vezes, aquilo a que chamo "a ausência do real" de-

corre da importância dada aos problemas técnicos que já deveriam

estar resolvidos: sem a postura correcta e, sobretudo, sem a presen-

ça de si mesmo, o praticante não pode jogar com o seu corpo e não

pode estar plenamente à vontade na sua mente.

Ocupar-se de uma escola de Aiki Do consistiria em dar ao alu-

no uma formação larga e aberta que lhe permitisse um dia praticar

com prazer, numa felicidade comunicativa e isto é o que nunca de-

XII

62

Page 65: Aikido

uma qualidade de presença efectiva perante a técnica que deve

corporizar.

É preciso que ele seja envolvido pela prática e que participe

activamente na sua realização.

Se a técnica fosse vivida de uma maneira fervorosa, ele lu-

craria pessoalmente, do ponto de vista do equilíbrio geral e, mais uma

vez, do ponto de vista do prazer da prática...

É preciso saber também que um bom praticante deve poder

ser ao mesmo tempo o anjo e o demónio, o fogo e o gelo...

Não nos devemos limitar apenas a certas técnicas e excluir

aquelas em relação às quais nos sentimos ultrapassados, não tanto

pelas dificuldades técnicas, como pelo seu conteúdo... É desejável que

cada um tente evoluir, abrir o seu campo interior na sequência de no-

vas experiências ou de novas tomadas de consciência. O pensamen-

to na Arte do Budo retira o seu alimento de várias fontes e o nosso

pensamento consciente não é senão uma parte mínima do processo

psíquico total.

Ele é insignificante relativamente à potência das nossas fon-

tes interiores, que são provavelmente o cadinho-mãe de que resulta

a nossa prática.

O intelecto propõe, mas não é ele que dispõe. Ele é um po-

der superficial, que flutua à superfície do inconsciente, e se a sua ac-

tividade é necessária para colocar questões, para determinar aproxi-

madamente onde se encontra a realidade da prática, ele não é esta

própria realidade.

A realidade da boa execução de um movimento só pode ser

captada quando o intelecto renuncia a todos os direitos sobre ela. Ela

exprime-se de forma caprichosa, segundo o seu próprio querer, que

não é o nosso, e que tem os seus próprios tempos.

Sempre que a propósito de um movimento se diz que uma

graça fez uma subtil intrusão no Aiki Do (o que é raro), não se trata

de uma criação do intelecto. A inspiração de um tal movimento está

longe de ser um privilégio, ela é uma possibilidade que existe laten-

te em cada um de nós.

É verdade que o movimento não pode ser estudado e insti-

gado, mas cada professor deveria conhecer as leis que o governam e

descobrir os caminhos que a ele conduzem.

Aquele que seguiu de forma respeitosa os passos da nature-

za, que elaborou uma técnica em que cada gesto é claro, em que ca-

da encadeamento obedece a uma lógica interna, animada do inte-

rior por uma verdade, aquele que, para além disso, conseguiu domar

o espartilho da vigilância intelectual, que conseguiu vencer a insegu-

rança e o medo e que a partir daí nada a grandes profundidades, on-

de já não há nem raciocínio nem análise, esse realiza, então, um fei-

to que pode permitir que, no Kokyu Nage, se manifeste a inspiração

de um novo sentido.

Um dia, destas águas profundas, pode brotar uma qualidade

inesperada, que agarra, revira e arrasta para um Universo desconhe-

cido, mas pressentido, que é o da inspiração criadora.

Um bom praticante, verdadeiramente "realizado", nunca é

senhor da inspiração. Ele não a possui. Nem mesmo o Mestre Ueshiba

a possuiu. Era a inspiração que o visitava!... Por vezes! Nada pode-

mos fazer para a provocar, nem para a reter. Ele mais não pode fazer

do que cuidar a casa deste hóspede passageiro, isto é, tornar-se o

mais dúctil instrumento da Natureza que nele habita.

É por isso que a maior qualidade que o praticante deve culti-

var é a disponibilidade interior.

Ela permite-lhe deixar-se penetrar, em todos os momentos,

XII

63

IV

Page 66: Aikido

64

“No verdadeiro Budo não há adversários nem inimigos, o verdadeiro Budo é estar em uníssono com o Universo.” (M. Ueshiba)

Page 67: Aikido

Em todos os cursos de Aiki Do dever-se-ia falar da Sensação

e da Sensação Consciente, dizer que esta última é baseada na aqui-

sição do movimento já estudado.

Sentir é também escutar.

A realidade no tapete é muitas vezes diferente. E, no entan-

to, "sentir" deveria ser, para o praticante, a sua preocupação per-

manente.

Para a maioria dos praticantes, o trabalho consiste em repe-

tir um mesmo movimento, eventualmente, em formas de ataque va-

riadas, a fim de adquirir automatismo técnico: segundo forças ou ve-

locidades diferentes. Ou, decompondo o movimento com lentidão...

Recomeça--se, assim, dia após dia, mas esquece-se que o tempo só

pode fazer amadurecer aquilo que foi fecundado. Dizer "isso virá com

o tempo" equivale, frequentemente, a reconhecer, de forma mais ou

menos consciente, a esterilidade dos esforços empreendidos.

Parece evidente que esta maneira de trabalhar dificilmente

conduzirá à realização de transformações e aquisições duradouras.

Ela exige, ao contrário, um treino intensivo sem o qual muitas lacu-

nas reapareceriam e faz entrar o aikidoca num círculo infernal, uma

vez que a repetição e a prática são os únicos garantes da técnica.

Não se pode parar a repetição e praticar directamente, ou

mesmo ensinar, se não se repete... caso contrário as circunstâncias

exteriores assumem rapidamente proporções desmesuradas e nada

já é possível. Estes famosos dias em que "não se está em forma"! O

trabalho, longe de ser ocasião de aprofundamento e de procura, não

é mais do que um simples meio de conservar um estado, uma ne-

cessidade a fim de não regredir... E, no entanto, em nenhuma idade

se pode aceitar a fatalidade de não poder progredir: a evolução nun-

ca está fechada àquele que aceita interrogar-se sobre o seu próprio

método e sobre si mesmo.

É possível substituir a aprendizagem baseada na imitação e

na aproximação por uma abordagem que responda às necessidades

XIII

65

XIII s e n t i r

— Ju no Geiko31

— Tira os teus óculos!

— Mas não vejo nada quando pratico.

— Aqui, não se trata de ver, mas de sentir!

Page 68: Aikido

sensação não implica, sobretudo, o abandono do trabalho com dife-

rentes níveis de força ou de velocidade.

Mas ela permanece um elemento preliminar absolutamente

necessário a todo o tipo de trabalho, mesmo o mais técnico e o mais

intensivo. Não é paradoxal que no Aiki Do, em que se fala tantas ve-

zes de Sen no Sen32, de espaço, de globalidade, etc., se dê tão pouca

importância, no seu ensino, ao estudo das nossas próprias sensações?

O praticante deveria desenvolver uma imensa receptividade

sensorial, mas, além disso, deveria ter uma consciência afinada do seu

corpo que permitisse reconciliar o movimento e o seu mecanismo.

O ensino, em geral, parece, ao contrário, curiosamente sepa-

rado: fala-se, por um lado, do espírito e da atitude mental; fala-se, por

outro, do mecanismo, considerado este como a única via de aborda-

gem conveniente à técnica. Esta dicotomia leva a trabalhar separada-

mente a técnica e a mente, como se fossem ambas estranhas uma à

outra. Uma terceira via consiste num imperativo de realização que pas-

sa pela assimilação de sensações que são o elo de ligação entre o Aiki

Do e a velocidade, caso tal seja necessário.

É porque praticamos com o nosso corpo que a procura da sen-

sação pura é tão importante.

Em vez de incriminar, por sistema, a falta de trabalho ou o

"mau" trabalho sem precisar o que este termo significa, deveríamos

pôr o corpo em causa, sensorialmente, tanto na sua relação consigo

mesmo, como na sua relação com o parceiro ou com o seu Jô ou o

Bokken: tudo, o equilíbrio no domínio da postura, o gesto, a preci-

são..., pode e deve passar pelo admirável canal da sensação cons-

ciente, a fim de poder ser possuído. A sensação e a consciência de-

vem por todo o lado estar presentes.

Nenhuma parte do corpo pode permanecer estrangeira ao

profundas do praticante.

O seu princípio consiste em fazer incidir a atenção não sobre

o mero resultado exterior do trabalho, mas, partindo do interior, di-

rigir a atenção para a percepção da sensação física que permite atin-

gir aquele resultado. Não podemos adquirir realmente senão aquilo

que é "nosso", isto é, uma combinação de uma tomada de cons-

ciência e de uma experiência vivida (portanto praticada). Mais preci-

samente, uma ideia, uma sugestão só adquirem valor se elas forem

experimenta-das sensorialmente. Recordo-me de, no Dojo do Budokan

em Cascais, ter falado da espiral a uma das minhas alunas que tinha

a seu cargo o curso infantil. Aluna de grande sensibilidade, ela levou

as crianças para a praia do Guincho e, após todos terem procurado

e apanhado conchas, observaram os desenhos das diferentes espirais

nelas impres-sas. Depois, reproduziram a espiral com o seu corpo, até

que a sentiram verdadeiramente. Por fim, veio, em seguida, a de-

monstração da técnica.

Foi uma das mais belas classes de crianças que vi em Portugal.

Isto explica os mal entendidos do ensino, quando é pratica-

do sobre alunos enervados, por professores também eles enervados,

em que nem uns, nem outros estão em condições de dar, de receber

e de tratar correctamente as informações que lhes permanecem ex-

terio-res. A nossa abordagem, e muito especialmente na nossa esco-

la, consiste, na realidade, em tomar uma consciência íntima e aguda

daquilo que se sente num gesto ou em vários gestos combinados até

poder reencontrá-los e refazê-los sem a menor dúvida, através da sim-

ples evocação mental de uma forma instantânea de ataque e da sen-

sação obtida. A originalidade desta abordagem consiste na procura

aprofundada feita a partir do conjunto das sensações que entram em

jogo na elaboração da nossa técnica. Bem entendido, a procura da

XIII

66

Page 69: Aikido

campo da consciência, sem correr o risco de um dia ser a causa de in-

terferências e desordens que perturbariam o movimento. Talvez pos-

samos acomodar-nos a situações imperfeitas, mas apenas até um

certo nível. Um dia virá em que descobrimos, aquando de um pro-

blema particular, que nos faltam as respectivas sensações e que a sua

ausência era a razão de um bloqueio.

31. Ju no Geiko quer dizer praticar com leveza. No termo Geiko, há a noção de Renque significa trabalhar a matéria um pouco à maneira do oleiro que trabalha o seubarro (amassar); há a noção Shu que significa aprender; há ainda a noção Tan quesignifica martelar o ferro. Portanto, Ju no Geiko encerra noções profundas que dãopara reflectir. Na prática, trata-se de fortalecer a nossa disciplina, de purificar a nos-sa mente, tudo isto numa grande flexibilidade do espírito.

32. Sen é o futuro, antecipar, surpreender. Para as Artes Marciais, Sen é o estado de es-pírito que consiste em prever a acção do adversário e em o atacar antes dele. É to-mar a iniciativa.

XIII

67

V

Page 70: Aikido

68

Ser, conhecer e fazer confundem-se.

Page 71: Aikido

.1 Irimi Nage ou Yama-Biko-No-Michi

A voz de um eco na montanha

O essencial desta técnica é ser imperativamente praticada no

"instante". É preciso penetrar no adversário, de um só movimento!

Penetrar, como se se entrasse em colisão com ele e, no entanto, res-

peitando-o. O passo, deslizando sobre o lado (issoku, ângulo morto),

que permite também um posição de guarda de perfil, poderia evocar

a ideia do Sankaku Tobi do Karaté…, em que se entra em contacto

com o braço ou a tíbia de forma oblíqua a fim de desviar a força e de

a orientar na direcção oposta…

Mal entramos no ataque, encontramo-nos por detrás do Aité

(daí a ideia do eco). A entrada pode ser feita com pequena ou gran-

de amplitude. No Ken Jitsu, diz-se sempre: "Coloca-te longe do ad-

versário, ao mesmo tempo que te manténs perto dele." É o essencial

da Arte do Sabre. O princípio é de desviar tangencialmente a forma

XIV

69

XIV n o c o r a ç ã o d a t é c n i c a

de ataque, é de entrar no centro de Aité, criando um ângulo óptimo

para o envolver de uma maneira circular, um pouco como a sateliti-

zação do protão com o neutrão do átomo.

O ideograma chinês Iri exprime a ideia de entrar em casa, só,

ou quando se é convidado. Mi significa a criança no ventre da sua

mãe em toda a plenitude.

No Aiki Do é comprometer o seu próprio corpo no corpo do

adversário. A mesma noção existe no Irimi do Naginata.

Quando duas forças se deslocam em sentidos opostos

F2 —>

F1 <—

1+1 =

a força que delas resulta é a soma destas duas forças. Também utili-

za-mos o resultado destas duas forças, quando do cruzamento, mas

tudo isto no sentido de Sabaki. Sabemos que na origem desta pala-

vra há a ideia de "encontrar uma solução para um problema".

Page 72: Aikido

oriental é feito frequentemente com metáforas. Mas, aqui, cada um

faz a busca, a partir do seu nível…

Para mim, Irimi Nage é procurar um acordo, portanto, uma

harmonia, querendo isto dizer que a forma de ataque encontraria o

"vazio", por conseguinte, o Yang, o mesmo é dizer, a "não-forma".

Visto que se fala do Ki, entramos na Energética chinesa, em

que se baseiam os japoneses para explicar o Ki ou Chi. Sabemos que

a Energia, quanto mais ganha forma, mais é Yin; e, quanto menos for-

ma ganha, mais é Yang.

Quanto mais nós descermos na manifestação, mais a Energia

é Yin. Quanto menos manifesta a Energia for, mais ela é Yang. Quando

eu executo Irimi, sou Yang. Devo, portanto, manifestar o menos pos-

sível o meu movimento. O Yin encadear-se-á por si mesmo e a forma

será construída, segundo a minha inspiração. O eco na montanha é,

no fundo, este Yin subjacente, que ressoa em mim. (É o fio de ouro

que liga os parceiros, Aité e Shité).

A projecção mais não é do que a continuação da forma. A

queda nunca é a vitória para Shité. Aquele que cai deveria, normal-

mente, sentir uma vibração vivificadora, que reanime, por assim dizer,

as suas energias latentes. A partir de então é-lhe possível entrar em

ressonância com aquele que o projecta, dele aproveitar as correspon-

dências silenciosas, para desenvolver o Aiki Nage!

Mas, nos dias de hoje, quem escuta, e quem projecta?!…

Poder-se-ia considerar que, na técnica Irimi, corresponderia a anular

o efeito de um ataque, de modo a que este se vire contra o agressor

de forma dissuasora.

No Irimi, não há a ideia de ataque. E, no entanto, há a de en-

trar, de atravessar. Mas, na realidade, trata-se de resolver o conflito

do ataque de uma maneira harmoniosa. Há também a ideia de amor,

de não fazer senão um com o outro, para o "satelitizar".

É nesta técnica que se situam a raiz e a origem de toda a nossa arte.

Esta forma de trabalho impõe que se avance na direcção do

ataque, o que pode levar-nos a ceder ao medo, perante, por exem-

plo, um tsuki, ou perante um ataque com Sabre! Ela requer, para além

de um "saber-fazer", determinação…

A noção de Irimi é de apreensão difícil para um principiante,

porque ela repousa num reflexo que não é natural. Neste movimen-

to não há oposição (não há portanto competição). Opondo-nos, en-

tramos na dualidade. Se tal acontece, descemos ao mais baixo nível

do Aiki Do, àquele que o coloca ao nível das disciplinas de competi-

ção.

Uma das especificidades do Aiki Do é superar este estádio. O

verdadeiro Aiki Do, dizem os Mestres, situa-se antes do movimento;

o resto não é senão técnica…

Mesmo com uma boa técnica, o Irimi raramente é bem exe-

cutado, dada a enorme dificuldade em o definir exactamente. Irimi

não é qualquer coisa que se aprenda. É um "conhecimento" que

transparece através do movimento. Mestre Saito diz: "Vós projectais

o vosso Ki, o Ki do adversário retornará a vós como um eco, contu-

do, não recebereis o Ki do adversário, porque estais colocado atrás

dele".

Sabemos que as vias do Aiki Do são misteriosas, e o ensino

XIV

70

Page 73: Aikido

.2 Ten Chi Nage

O intervalo Céu-Terra, dir-

se-ia um fole

Esvaziado permanece ines-

gotável.

Accionado, não cessa de

soprar.

Mais vale permanecer no

Centro

Lao Tsé

Ten – Céu Chi – Terra Nague – Projecção

Poder-se-ia simbolizar Ten Chi como uma passagem da Terra

ao Céu, de um estado a outro estado, do mundo sensível ao mundo

supra sensível. No simbolismo da passagem e no carácter frequente-

mente perigoso desta passagem, que é o de todo o caminho iniciáti-

co, Ten Chi Nage pode identificar-se com o eixo do mundo (axis mun-

di) e designadamente com a sua escala. Nesta projecção, é preciso ter

uma grande noção da vertical, como mediador entre Terra/Céu. É o

Eu que liga estes dois mundos e impede que eles se dispersem.

O Aiki Do, como vimos, deve fazer passar uma mensagem

através dos movimentos, chamando a atenção para que o homem es-

tá entre o centro da Terra, que o atrai, o infinitamente pequeno, e o

Cosmos (Céu) que o aspira, o infinitamente grande. O homem, como

numerosas artes japonesas33, deve realizar o equilíbrio entre os dois.

Para melhor compreender a projecção (Kake) do Ten Chi Nage,

é preciso recordar as palavras do Mestre Kyundo Ozawa, quando fa-

lava da atitude correcta no Tiro ao Arco:

"... De uma extremidade do seu arco, o archeiro fura o Céu;

no outro extremo, fixado num fio de seda, está a Terra. Se se desen-

cadeia o lançamento com um violento esticão, corre-se o risco de ver

o fio partir. Então, o homem permanece entre o Céu e a Terra numa

posição intermédia que não oferece salvação34."

Muitas vezes, quando pratico esta projecção, sinto que não

estou pronto para a ensinar verdadeiramente. Não é fácil representar

no seu corpo o fio de seda esticado entre Terra e Céu e não o que-

brar, sobretudo se se quer este fio em espiral...

Esta linguagem pode parecer para alguns esotérica. E, no en-

tanto, estas imagens, para o praticante de Aiki Do, são muitas vezes

de uma grande ajuda. É a reflexão estimulada pelo sentir do corpo.

Como diz Henri Focillon, a forma não é mais do que uma visão do es-

pírito, uma especulação sobre a extensão, reduzida à inteligibilidade

geométrica, enquanto não vive na matéria. Ten Chi Nage existe ver-

da-deiramente se houver a passagem Terra/Céu e não um Kake que

tanto pode ser um Kubi Nage35 como um choque entre Terra e Céu.

Este movimento é de uma grande importância para desenvolver os

grandes princípios do Aiki Do.

No caso, por exemplo, de um ataque em Ryo Te Dori, en-

contrar o seu centro perfeito, tendo uma mão em Terra e a outra em

Céu, não é fácil, se não se tiverem compreendido os grandes princí-

pios.

A mão não se libertou senão depois de vários milhões

de anos de evolução.

Na prática do Ten Chi Nage, tal como na dos Kokyu Nage, pe-

netramos na magia do Aiki Do.

XIV

71

Page 74: Aikido

plícita, a "ter um belo movimento", porque este nunca dispensa a pro-

cura interior, a necessidade de "mergulhar em profundidade", as úni-

cas coisas capazes de fazer do movimento uma manifestação do Ser.

Queria antes mostrar como a verdadeira harmonia Terra/Céu é inse-

parável de um certo estado de espírito, como ela exige uma aborda-

gem fervorosa. E mostrar que um movimento não pode ser, no fun-

do, senão uma emergência do nosso interior, longe do ego, onde o

olhar dos outros não desvie a nossa consciência do seu objectivo pri-

meiro.

Escutemos antes Tao Te King (2):

Beleza, bondade, aspecto simples da harmonia.

Equilíbrio universal, lei geral do mundo.

Pulsação do Universo.

Vez à vez, Antes e Depois fazem-se sucessão e lugar.

Ressonância perfeita.

É uma técnica portadora do imaginário e que obriga, muito

particularmente, a criar em nós o vazio, para que o movimento não

encontre qualquer obstáculo — é, portanto, a intenção do gesto

Terra/Céu. Aqui, o nosso trabalho consiste em libertar o nosso Ki.

Aquilo que possuímos em nós mesmos não deve ser procurado fora.

O praticante deve estar centrado, disponível, tendo realizado a sua

unidade. Se tiver encontrado o ponto "correcto da projecção", po-

derá então projectar facilmente e sem esforço o seu parceiro. Utilizo

muitas vezes com os meus alunos a imagem evocativa do pintor. As

mãos e todo o corpo seriam um pincel e o movimento poderia ser ar-

gila, viva, pronta a ser modelada. A tela do artista é a projecção do

seu espaço interior, ela materializa uma ou várias imagens mentais e

os golpes do pincel (projecção do espírito) têm por função tornar a

sua paisagem interior tangível. Isto deveria afastar-se da Consolidação

para se aproximar da mensagem Beleza.

Seria necessário introduzir na pedagogia a ideia do par eficá-

cia/beleza. Talvez pudesse, então, desaparecer a concepção de uma

técnica que é um conjunto de mecanismos que pode ser, "acessoria-

mente", revestida de beleza...

Esta osmose com a harmonia, no trabalho do Aiki Do ou no

de uma técnica particular, encontra-se, aliás, perfeitamente adapta-

da a toda a prática consciente, uma vez que a aquisição de toda a

praxis, tal como a procura de uma eficácia óptima, baseiam-se am-

bas nas mesmas exigências de equilíbrio corporal e de concentração

mental.

O meu objectivo não é portanto ensinar aqui, de maneira ex-

33. De que é exemplo, Ikebana, a arte de arranjos florais.

34. V. Michel Martin, Kyudo, Paris, Amphora, 1990, p. 87.

35. Kubi é pescoço. Nage é projecção. Kubi Nage é uma projecção pelo pescoço.

XIV

72

VI

Page 75: Aikido

Pode parecer ridículo pedir a um aluno para escutar, para se

escutar a si mesmo e para escutar o seu corpo...

Sabemos, de experiência feita, quanto estamos por vezes afas-

tados dos comportamentos mais naturais.

Este papel da escuta é tão importante que seria por assim di-

zer útil transformá-lo numa espécie de "aviso" em cada classe. Poderia

ser "Escuta!" e chamar-nos-ia a atenção para a nossa presença es-

sencial. Considera-se a escuta, como um dado de base, como o sen-

tir de uma evidência, quando, na verdade, ela requer toda uma acti-

vidade interior e uma grande concentração.

Alguns julgam que escutam, mas ignoram "o que é a escu-

ta", nunca se tendo debruçado sobre a sua prática consciente. O Yoga

Nidra é, por exemplo, uma escuta total (escuta do som).

Escutar não é "ouvir" e menos ainda "entender"!

Toda a gente pode ouvir. É uma função passiva ligada à exis-

tência material do ouvido.

Escutar supõe uma afectividade auditiva que é, ao mesmo

tempo, passiva e activa: sente-se e reage-se.

Entender o interior ou o exterior vai ainda mais longe; é uma

inteligência auditiva activa, um "entendimento" que é comunhão,

conhecimento e criação.

A ausência de escuta desorganiza o movimento. É através do

ouvido que nos apercebemos se a nossa organização corporal é boa36.

Infelizmente a ideia de escuta total é, a maior parte das vezes, utópi-

ca, porque numerosos problemas técnicos vêm perturbá-la. Mas tam-

bém deve ser tomada em consideração a atitude daquele que "está

perante nós". Importa não esquecer também que o inimigo do ouvi-

do é o olho (!), que invade o seu território.

Segundo a organização da nossa hierarquia sensorial, a vista

é o mais poderoso, o mais rápido e o mais intelectual dos nossos cin-

co sentidos. Ele subordina todos os outros sentidos ao seu magisté-

rio.

XV

73

XV t e m o s n ó s o u v i d o s ?

Mas escutai que diabo!

Há muito que queria escrever uma homenagem à Alma.

Page 76: Aikido

Parece que quando o Mestre Ueshiba praticava, murmurava

sons. Não era um canto, era um som interior.

No silêncio, cria-se uma extensão do gesto. Qualquer coisa

nasce, que não tem necessariamente uma forma (Kokyu Nage? Aiki

Nage?). Está-se mais em contacto com uma força.

Sabemos também que quando praticamos podemos ver, ou-

vir e sentir, mas a nossa atenção não se fixa em parte alguma, não se-

gue nada em particular. A consciência deve abrir-se a si e aos outros.

Sem pensar em nada de preciso, tudo está presente, vivo, mais ainda

do que no estado habitual da nossa consciência, porque já não há

confusão. Devemos traduzir directamente o que vivemos. Aqui, é pre-

ciso, portanto, grande reflexão antes, porque o Ai Ki poderia trans-

formar-se em violência, porque as barreiras teriam cedido e a violên-

cia é a de um vulcão. Com a meditação e o estudo de uma reflexão

justa, os movimentos podem ser feitos com doçura e serem eficien-

tes.

No Kokyu Nage ou no Aiki Nage, estamos perante um mun-

do em que não se sentem os limites. Os gestos e os movimentos do

corpo já não são controlados pela vontade. Eles estão em harmonia

com o Universo.

Se é o ouvido que dita o músico, é o olho que dita a mão do

aikidoca. E, no entanto, o olho não deveria desempenhar para ele se-

não o papel de um informador que transporta rapidamente à sua in-

telecção a mensagem do movimento. Mas desde que a sua acção pre-

domine na situação, desde que permaneça atento ao que o rodeia,

ele prejudica de imediato o movimento. É, por isso, que certos exer-

cícios — com os olhos vendados — seriam desejáveis na prepara-

ção do Aiki Do, para que o olho abandone o seu posto de espia e

possa voltar- -se "para o interior". Os cursos de Aiki Do para cegos

são muito ricos como experiência.

De todo o modo a escuta, qualquer que ela seja, deve ser fei-

ta sobre um fundo de silêncio. É preciso, antes de mais, entrar num

estado de disponibilidade interior, ser capaz de se acalmar, de fazer

calar as nossas agitações e as nossas contestações, de relaxar o es-

partilho do nosso espírito. A qualidade da escuta verdadeira passa em

primeiro lugar pela possibilidade de poder "escutar o silêncio".

O movimento brota, então, como uma fonte viva e deixa de

ser qualquer coisa mais ou menos conseguida, produzida pela agita-

ção.

"Não feches a mão quando praticas.

O Cosmos permanecer-te-á fechado.

Se queres abrir-te ao mundo e ao Universo,

abre primeiro a tua mão."

Muitas vezes se disse que o Kiai do Aiki Do é silencioso. Creio

que é preciso compreendê-lo desta maneira. Numa prática intensa, o

corpo e o som reúnem-se. Durante a prática, ouvimos, frequente-

mente, alunos que emitem diferentes sons. Mas estes não estão ain-

da harmonizados. O som deveria vibrar... 36. Alfred Thomatis, L´Oreille et le langage, Paris, Editions du Seuil, 1978.

XV

74

VII

Page 77: Aikido

Tentei, nestas curtas reflexões, abrir as portas para que os fu-

turos praticantes possam explorar a riqueza da Arte do Movimento.

Mas se a lógica dos movimentos do Aiki Do a todos se impõe,

a descoberta que dela pode ser feita acomoda-se a vias muito varia-

das. O ensino que ministrei durante longos anos obriga-me a dizer

que o equilíbrio na postura correcta dirige-se tanto aos futuros pra-

ticantes como a nós mesmos. A abordagem pela qual proponho sen-

sibilizar os aikidocas adultos é-lhes, de alguma maneira, desadapta-

da. Tentarei, muito brevemente, sugerir os meios de ultrapassar uma

concepção do movimento, do equilíbrio nas técnicas de base ele-

mentares, sempre que os alunos são principiantes. A sua tenra ida-

de, o facto de começa-rem a aprendizagem do Aiki Do a partir do ze-

ro exigem uma reflexão particular.

Ainda aqui se impõe uma constatação que, infelizmente, é

preciso não esquecer. Um número relativamente elevado de crianças

abandonam a prática, por nunca terem tido a oportunidade de ex-

perimentar o prazer da execução dos movimentos. Que professor de

Budo nunca ouviu esta confissão ressentida: "Ah! Você pratica uma

Arte Marcial? Em tempos também eu o fiz. Quando era novo, prati-

quei Judo durante alguns anos, mas desisti. Havia demasiada com-

petição. Já não tenho idade, etc...".

Os esforços investidos não deram o prazer esperado!

Se certos métodos de ensino criam ilusões ao início, os pro-

ble-mas com que estes jovens deparam permanecem frequentemen-

te ignorados e só emergem à luz do dia quando, com a idade, os seus

bloqueios se revelam. Certas atitudes pedagógicas, longe de forne-

cerem os "bons meios" capazes de libertar o gesto e de entusiasmar

os jovens e as crianças — o que seria, só por si, um óptimo resultado

— provocam aversão não só em relação à prática, como em relação

ao Aiki Do em geral. Importa, pois, propor às crianças um ensino que

repouse sobre dados saudáveis e definitivos. Assim, os jovens aikido-

cas não apenas terão o desejo de continuar, como poderão fazê-lo

XVI

75

XVI o f u t u r o é d a s c r i a n ç a s

Page 78: Aikido

cola de Aiki Do transforma-se num jardim de infância...

Não se trata aqui de fazer da nossa escola um dojo de elite re-

servado às crianças mais dotadas, mas de evitar que ela adquira uma

vocação terapêutica que, de todo em todo, não tem.

É errado dizer de uma criança desajeitada e que não se sente

bem na sua pele: "Vou metê-lo no Aiki Do. Ele será mais forte!". A

verdade é que o Aiki Do pode, por vezes, acentuar bloqueios e pro-

vocar ainda mais perturbações.

Para além de um mínimo de estabilidade e de distensão antes

dos cursos técnicos, de tónus vital e de habilidade corporal (através

de exercícios apropriados), o jovem praticante começará a trabalhar

de uma maneira mais fina, de modo a que possa ser-lhe incutido es-

te gosto pela Arte do Movimento. A falta de motivação anda também

a par com um professor pouco competente... É preciso, pois, desde o

começo, evitar que se desenvolvam situações perversas, que a melhor

"pedagogia adulta" terá a máxima dificuldade em corrigir.

Seguros da plena participação da criança, só então é possível

considerar a abordagem do Aiki Do. O objectivo do ensino não é pre-

cipitar as passagens de cinto, que se transformam "na cenoura para

o burro".

É não fazer aquilo que comigo fizeram quando era jovem e

aprendia piano. Para que eu pudesse tocar, o mais rapidamente pos-

sível, uma "balada"...!, os diferentes professores que tive precipita-

ram sempre o começo, sem me falarem de uma técnica, sem me da-

rem cores atraentes à iniciação do piano e sobretudo sem me faze-

rem amar a música. Resultado, abandonei a prática demasiado ce-

do, o que hoje evidentemente lamento!

Um professor feliz por praticar, que goste do seu papel peda-

gó-gico, que ame verdadeiramente a Arte do Movimento, ainda que

sem terem de reconsiderar inteiramente a sua prática quando com

ela contactam na idade adulta.

O primeiro elemento a verificar, antes mesmo que uma crian-

ça comece, é conhecer as suas motivações e as suas aptidões. Disse,

a propósito das relações que unem o Mestre e o aluno, que, sem de-

sejo profundo, nada pode resultar.

Aquilo que é verdade para o adulto é-o ainda mais no caso

da criança.

Seria preciso prestar muita atenção às razões que presidem à

sua escolha. Uma criança lança-se, muito frequentemente, no Aiki Do

empurrada pelos seus pais que nele vêem a realização dos seus pró-

prios desejos recalcados (Karaté Kid!), ou ainda porque o consideram

bom para os estudos. Depois, à mínima falta, o Aiki Do servirá tam-

bém como um meio de a punir.

Todos estes mal-entendidos — e nem refiro outros — vêm ali-

mentar uma série de abandonos. Eles estão na origem de muitas si-

tuações bloqueadas de que não sabemos como sair, a tal ponto se

encontrando misturados desejos pervertidos e rebeliões inconscien-

tes. Apenas a atracção da criança ou a saudável sugestão dos pais

que não se implicam pessoalmente nesta proposta deveriam condu-

zir à escolha de uma disciplina adequada.

O Aiki Do é uma arte global e pontual, cujo estudo não po-

de ser considerado se a criança não manifesta desejo de aprender, a

curiosidade e o ardor necessários.

Muitos começos em falso, muitos fracassos latentes poderiam

ser evitados se fosse descoberta a tempo uma ausência de gosto real

pela Arte do Movimento.

Muitas vezes, por interesse, deixa-se arrastar esta situação:

para o professor, trata-se de mais um aluno!; para certos pais, a es-

XVI

76

Page 79: Aikido

não tenha atingido um grau de maturidade para dela fazer uma Via

espiritual, arrastará quase seguramente o aluno na sua senda, co-

municando-lhe o seu entusiasmo.

A aprendizagem do Aiki Do deveria dar à criança a impressão

de fazer a Arte do Movimento, antes mesmo de começar o estudo

real do Go Kyo...

Isto exige evidentemente uma criação real de movimento pre-

liminar, que envolve o contacto, o espaço, o tempo, etc. Se perante

a criança, o papel do Mestre consiste essencialmente em criar um cli-

ma de confiança que facilite os seus progressos (como, de resto, pa-

ra o adulto), com a criança, é o amor pelo Movimento de que o Aiki

Do não é senão uma das múltiplas formas que o professor deve so-

bretudo comunicar-lhe...

Desenvolver o seu gosto pela observação dos movimentos da

natureza, falar-lhe de uma maneira extremamente simples do cosmos

— da satelitização de um planeta — são imagens interessantes para

a futura execução dos seus movimentos. Tudo isto faz parte de um

projecto pedagógico a longo prazo, que cria um clima caloroso e dá

grandeza ao movimento. O som deveria ser também abordado na

execução dos movimentos. É um excelente meio para que a criança

possa fazer sair a sua voz, a faça nascer, a consolide. Tudo isto cons-

titui já forma de manifestar a personalidade de que terá necessidade

para a sua prática.

Praticar com música pode ser interessante para a descoberta

dos ritmos no movimento. Para tanto, o professor deverá conhecer

as incidências que certas músicas podem ter. A criança poderá abrir-

-se pouco a pouco a um universo imenso sem compartimentações ar-

tificiais. "Isto é o Aiki Do, isto é a Arte do Movimento, onde se situa

a fronteira?"

Os programas de passagem de graus são frequentemente pa-

ra a criança (tal como para o adulto) uma imposição rebarbativa e

mal compreendida. Não me parece honesto em relação à criança, pri-

vá- -la, a pretexto da sua liberdade, de conhecimentos técnicos de ba-

se que garantam o seu desenvolvimento.

Prazer e esforço não são incompatíveis, tal como o não são a

criatividade e o trabalho rigoroso. Ao contrário, quanto mais deixar-

mos à criança uma margem de espontaneidade, mais exigente com

ela poderemos ser, sempre que se trate de práticas pontuais, cuja ne-

ces-sidade lha faremos compreender. Mas o que importa é reforçar

sempre as motivações dos jovens praticantes, não os deixar cair nun-

ca numa atitude passiva.

As passagens de grau, as demonstrações públicas, etc., não

são suficientes para reforçar as motivações.

É preciso não esquecer de reforçar o prazer da prática e nun-

ca deixar que se instale a ansiedade relativamente a fazer bem ou a

fazer mal... Uma abordagem puramente negativa num exame de grau,

que consiste em não fazer faltas, é anti-Arte do Movimento.

Há outros meios, e menos "escolares", de testar as capaci-

dades de uma criança do que a de ser presente a um "Tribunal de

Cinturões Negros". Participar numa prática na Natureza, num mini-

estágio adaptado à sua idade, pode constituir um maior estímulo.

Seja como for, a única riqueza indefectível que podemos dar

aos alunos muito jovens, nos primeiros contactos com o tatami, an-

tes mesmo de serem abordados os problemas especificamente técni-

cos, é o amor pelo movimento, aspecto em que nunca será demais

insistir.

A diferença mais significativa entre a abordagem de um adul-

to e a de uma criança decorre do facto de esta não poder trabalhar

XVI

77

Page 80: Aikido

Vi um dia, num Estágio Internacional, um mau professor, mas

talvez um bom executante de técnicas, a querer exibir um aluno pro-

dígio. A fim de espantar os participantes pediu à criança para se de-

fender de um ataque com uma faca de talho, o que de imediato re-

cusei. Quais eram os objectivos? É tão difícil aprender bem como apren-

der mal. De facto, bastam esquemas claros e simples, bastam bons

modelos visuais para que a criança adopte sem problemas as suges-

tões propostas, caso o amor do Aiki Do e o desejo de imitar nela se-

jam muito vivos. Se a criança não pode compreender raciocínios de-

masiado abstractos, nem por isso ela é menos eminentemente lógi-

ca. É-o muito mais do que os adultos julgam. Ela está pronta a admi-

tir que é preciso respeitar certas evidências: uma pessoa é menos es-

tável desde que lhe falte uma perna; se não tem braço não poderá

agarrar com as suas mãos... Assim, a criança estará inteiramente de

acordo com a procura do seu equilíbrio corporal, desde que ela lhe

seja pro-posta de uma forma atractiva. Dar às crianças, desde o prin-

cípio, o tónus físico, estabilizá-las no seu equilíbrio, evita ter de corri-

gir, anos mais tarde, uma postura defeituosa e permite canalizar toda

a sua Energia (Ki) para o movimento e para aquisição de uma boa téc-

nica.

A preparação do Aiki Do pode ser rápida nas crianças muito

despertas e requerer, ao contrário, um certo tempo nas crianças que

habitam pior o seu corpo.

Mas qualquer que seja a dificuldade com que elas se deba-

tam, é facilitar toda a sua aprendizagem futura ajudá-las a perseverar

na procura do seu equilíbrio (noção importante que, no princípio da

aprendizagem, muitas vezes se esquece, na precipitação de lhes ensi-

nar as técnicas de base, por exemplo, Shio Nage, etc..., como se elas

ao início devessem fazer projecções sem equilíbrio). Importa não es-

sobre si mesma de forma consciente. O motor de todas as aquisições

de uma criança é a aprendizagem mimética, e o raciocínio é sempre

contra-indicado.

A quantidade de conselhos e de discursos com que podemos

sobrecarregar uma criança só servem para aliviar a boa consciência

do professor; eles em nada facilitam a compreensão pela criança. Esta

vive no instante e não pode, como o adulto, captar o funcionamen-

to geral de uma técnica, ainda que... tal não seja impossível.

Também é preciso fazê-la adquirir, sem que se dê conta, bons

hábitos na postura, sempre que executa uma técnica. A vertical, o cír-

culo, a espiral, os alongamentos, os contactos, tudo isto (como para

o adulto) leva-a a estabelecer, através do seu corpo, formas e atitu-

des interiores que vão permitir-lhe viver e sentir a harmonia, na ex-

pressão individual da ordem cósmica, de que nos falam muitas vezes

os Mestres de Budo.

Isto recorda-nos que o dojo é um lugar onde a atitude e a in-

tenção são primordiais. O dojo não é uma sala de desporto, de com-

bate, onde a agressividade e a violência são "Rei", lugar de egotis-

mo e de egoísmo que muitas vezes influencia as crianças. O local em

que elas praticam deve ser um lugar de harmonia.

Devemos escolher um bom pedagogo para a iniciação. Nem

todos servem. Parece-me, bem pelo contrário, que se deveria atribuir

uma importância particular à escolha do primeiro professor, porque lhe

competirá assegurar as fundações do edifício. Sem boa base, a casa

não se aguenta... A primeira direcção seguida pelo aluno marcá-lo-á

tanto mais quanto ele, confiante e cândido, mais não fez do que se-

guir a via que lhe era mostrada. Enquanto eles são jovens..., porque,

depois, muitas influências exteriores virão deformar o caminho do Aiki

Do.

XVI

78

Page 81: Aikido

quecer que o estudo das quedas é de primeira importância, mas sem

a compreensão do equilíbrio e dos desequilíbrios, a sua assimilação

será superficial.

Não existem receitas infalíveis para abordar a técnica propria-

mente dita. Jogos de equilíbrio e de desequilíbrio, com o Jô ou sem

o Jô, em que a criança pode mimar gestos mantendo o seu centro,

são um excelente exercício, porque, sem a preocupação de uma téc-

nica, ela será capaz de realizar gestos livres que correspondem à co-

locação exacta do corpo e aos movimentos requeridos. Ela não terá

assim qualquer problema em integrar com mais precisão uma técni-

ca... É então chegado o momento de ela aprender os principais mo-

vimentos. Podem existir movimentos simples e fragmentados que per-

mitem mantê-la sensível à simetria do seu corpo.

Desde que ela esteja suficientemente disponível para real-

mente praticar e comece a sentir o seu corpo de uma forma mais glo-

bal, poderá então seguir o modelo proposto pelo seu professor. O

mecanis-mo de aquisição encontra-se montado. Estão reunidos to-

dos os elemen-tos para subir passo a passo os escalões da dificuldade

de um movimento.

Ainda assim, o professor não deve esquecer que os exercícios

de estruturação técnicos não são tudo. A criança tem necessidade de

desenvolver livremente a sua criatividade pessoal e o Ju no Geiko é

para isso a melhor das aberturas: este exercício permite a adequação

sem a inibição e confere um carácter mais natural ao gesto. As crian-

ças poderão, então, após uma breve explicação, trabalhar em dife-

rentes ritmos: lento (Jo), médio (Ha) e rápido (Ku).

Deveria haver, em minha opinião, Kata para crianças, elimi-

nando certas técnicas que, ao início, não são necessárias (como, por

exemplo, San Kyo e Yon Kyo). Estes "mini-Kata" não deverão ser ne-

gligenciados, porque contribuirão para alimentar o interesse da crian-

ça pelo Aiki Do.

Será necessário que estas formas nunca sejam aborrecidas.

Muitas vezes desencorajam-se as crianças, ao serem postas a traba-

lhar formas para adultos... Nas Artes do Budo, estamos longe de res-

peitar as crianças e de confiar no seu gosto por este ou por aquele

movimento. Muitos professores contemporâneos poderiam debruçar-

se sobre esta questão e adaptar a sua sensibilidade à da nossa épo-

ca, que já nada tem a ver com o rigor dos jovens Samurais.

Para estes Kata pedagógicos, é preciso encontrar movimen-

tos suficientemente simples para que o aluno não se sinta "esgota-

do" e tenha prazer em praticar (o que é uma evidência pedagógica,

igualmen-te, para os mais velhos...), mas comportando, apesar de tu-

do, novas dificuldades que o estimulem e o mantenham desperto. É

importante que a criança se sinta feliz em vir ao dojo, para praticar e

"descobrir". Podemos afirmar que se ela estiver na posse de um bom

tónus corporal e se os seus progressos se fizerem a bom ritmo, de-

senvolvendo-se num clima de amor pelo Aiki Do, ela reúne todas as

hipóteses de se tornar um bom praticante.

A criança excepcionalmente dotada, se não pode em caso al-

gum ser tratada como um adulto, exige, contudo, mais atenção. O

professor que a tem a seu cargo deve procurar evitar dois erros cor-

rentes. Acontece que o professor, tendo ele próprio sofrido no estu-

do do Ai Ki, recusa inconscientemente que uma criança obtenha re-

sultados sem grande esforço (ainda que muitas vezes aquelas crian-

ças abandonem rapidamente a prática) e torna-se demasiado exigente

em pormenores que não são indispensáveis no início da aprendiza-

gem.

Outro escolho a evitar consiste, inversamente, em apropriar-

XVI

79

Page 82: Aikido

ça, deixarão de ser aceites mais tarde. Sempre que estas deficiências

não são corrigidas a tempo, ou sequer assinaladas, aquela que era

uma criança invulnerável ressente como uma profunda injustiça o fac-

to de ser criticada... E não aceitará reconquistar, por uma aprendiza-

gem longa e difícil, aquilo que pela facilidade lhe parecia devido.

De qualquer maneira, é preciso nunca perder de vista que na-

da está definitivamente adquirido antes da adolescência, momento

em que a criança começa a tomar consciência do que quer. Mas to-

das as dificuldades encontradas no decurso da formação das crianças

não devem fazer esquecer ao professor que o seu papel não é apenas

formar aikidocas. É igualmente o de permitir, a todos quantos, novos

e menos novos, tem o encargo de guiar, que se desenvolvam e en-

contrem na Arte do Aiki Do um meio de expressão e uma alegria de

viver.

-se da criança, em fazer dela o instrumento da sua própria glória. O

professor, orgulhoso de si mesmo e do seu aluno, apressa prematu-

ra-mente o seu desenvolvimento. Frequentemente, não pensando se-

não no seu dojo, ele não tem em conta outros dons que coabitam na

mesma criança.

O grande talento, na prática da Arte do Movimento, rara-

mente vem só. Para com estes jovens é necessário observar uma ex-

trema equidade.

Com efeito, estes alunos são dotados de capacidades dema-

siado precoces para que se possam determinar a si mesmos.

Eles estão como que desarmados e entregues à influência dos

seus professores. É preciso ter cuidado: ao querer fazer excessiva-

mente bem, pode transformar-se o trabalho do Aiki Do numa espé-

cie de escravatura. Uma criança em que se depositam esperanças

apercebe-se disso e compreende, de uma certa maneira, a sua situa-

ção privile-giada. Também convém, evidentemente, promovê-la para

que ela faça desabrochar os seus movimentos e ganhe confiança em

si mesma. Mas o essencial é dar-lhe bases sólidas, cuja ausência é de-

masiadas vezes disfarçada pela manifestação da sua habilidade.

Ora, estes fundamentos, que são as bases do Aiki Do, ser-lhe-

-ão ainda muito mais úteis do que a outros e, se tal for o caso, a sua

ausência será cruelmente sentida quando houver Randori com outros

praticantes, porque aquela criança será sempre tomada como um al-

vo...

Uma criança arrastada demasiado cedo pelo sucesso (cinto,

por exemplo) corre o risco de ficar nos limites do seu nível do mo-

mento e de se exibir (com a ajuda do professor), sem ter a ideia de

prosseguir o seu desenvolvimento, nem de progredir continuamen-

te. As imper-feições e insuficiências, que passam despercebidas à crian-

XVI

80

VIII

Page 83: Aikido

No tatami, ouve-se frequentemente afirmar: "Faz, não pen-

ses, deixa passar".

Também se diz: "Você tem uma bela forma!" Mas qual? O

corpo? A atitude?

A arte, segundo Heidegger, é "desvendamento da verdade

do Ser". De facto, preferiria dizer, como Maître Eckart —"deixar Ser".

A forma em Aiki Do é deixar aparecer aquilo que exige im-

periosamente passar à existência, aquilo que pede para nascer, reali-

zando-se pelo movimento ou pelo gesto, libertando a sua Energia,

para que este mesmo movimento ou gesto sejam testemunhos da

própria Energia que é a do Universo. Dando-lhes forma.

É preciso não esquecer também que a forma está em cons-

tante formação. Ela nunca é um traço, um contorno imóvel. E, es-

tando em movimento, ela move-nos, arrasta-nos nos seus ciclos.

Os orientais dizem que o belo "nasce da perfeição de formas

inexactas", que o belo só pode atingir a sua plenitude "através da

mão que treme". Paradoxo que mais não é do que aparente. De fac-

to, não pode haver simetria perfeita na natureza e toda a forma be-

la não pode estar senão em harmonia com a génese do mundo cria-

do. Perante toda a obra bela, nós teremos como que um sentimento

de inacabado, que não resulta, naturalmente, de uma falta de jeito,

de uma falta de "saber-fazer", mas, ao contrário, de uma suspensão

da duração, da criação de um tempo diferente daquele que cremos

viver, um tempo que só existe na obra de arte pelo seu ritmo.

Para compreender o que é o ritmo, nada melhor do que ver

correr. Nada existe de mais natural do que correr. E, no entanto, ob-

serve-se quem corre na rua. A maioria dá a impressão de o fazer sem

graça, de arrastar atrás de si, e com grande dificuldade, um saco mui-

to pesado. Veja-se, pelo contrário, correr um campeão ou ainda cor-

rer uma criança. É a corrida de um corpo sempre à frente de si mes-

mo, uma corrida feita de ligeiras rupturas e revivificando-se de saltos.

Estamos aqui nos antípodas da cadência — a do pêndulo do

XVII

81

XVIIa f o r m a d o m o v i m e n t o . m a s q u a l ?

A verdadeira vida dos que têm olhos

para ver e um coração para sentir.

Page 84: Aikido

uma forma?

Podemos deter-nos aqui, numa encruzilhada: a encruzilhada on-

de desaguam todas as estradas pelas quais se separarão aqueles que

atingem este ponto através de uma única estrada, a da vida cria-

dora.

Se digo, por exemplo, Shio Nage, evocamos directamente o

desenho das formas corporais e o traçado das linhas, que mesmo o

principiante reconhece facilmente...

Mas se digo o "movimento de Shio Nage", eis-nos mergu-

lhados em cheio na própria vida e já não sei onde se situam os limi-

tes... Assim, não uso frequentemente a palavra "movimento", a fim

de não me afastar demasiado por territórios da filosofia... cuja musa

não me compete servir, ainda que tenha muito a ver com o meu te-

ma.

Quando comecei a prática de Budo, do Judo, e isto muito an-

tes do Aiki Do ter sido introduzido na Europa, sempre que se falava

de "movimento", os alunos compreendiam-no, e com razão, como

uma "Expansão Universal". Hoje, alguma coisa se perdeu no ensino

e na "forma" também... Eu dizia, na época: "O movimento é como

uma dança cósmica, onde todas as vibrações da natureza, por mais

subtis que sejam, são percebidas, primeiro, intuitivamente, em segui-

da, conscientemente, para, depois, serem sentidas até ao seu frémi-

to". O "Movimento" é, portanto, ilimitado.

Um movimento belo, vindo de um "Sopro" que é concretiza-

do, recriado, torna-se por este facto uma sequência de formas e, fi-

nalmente, de fórmulas técnicas fixadas no Go Kyo.

O movimento de que vos falo está directamente ligado ao es-

paço, não apenas porque nele se move, mas porque ele é uma ex-

pansão directa e visível do espaço e das suas palpitações.

relógio, a dos soldados marchando a passo cadenciado.

Forma estética e ritmo, aliás a mesma palavra em grego, são

inseparáveis. E através do ritmo de uma música, de um poema, atra-

vés do ritmo criador de um simples bule de chá de época antiga, uni-

mo--nos ao próprio ritmo do mundo e, assim, à nossa respiração in-

terior.

O ritmo, diz Henri Maldiney, articula-se em instantes críticos,

que se resolvem uns nos outros, no decurso de uma interacção recí-

proca. Em cada um de nós, uma presença, constrangida até ao im-

possível e posta em situação de ser, aí se torna o que é na dor e no

salto. Exposta ao espaço, o ritmo iguala-a no Espaço tal como o faz

do seu presente o Tempo37.

Nos movimentos contínuos de Aiki Nage, há o ritmo, igua-

lando o espaço, através de uma sequência de rupturas (que são os

instantes críticos), que se verificam neles e sobre eles, a fim de criar

uma conti-nuidade de um novo espaço, conduzido pela beleza... O

Aiki Nage conduz-nos ao aberto que vai soltar a nossa própria liber-

dade.

O aberto de Rilke é "o puro, o maravilhamento que respira-

mos, que sabemos infinito e não cobiçamos".

Desta dinâmica, a forma poderia e deveria ser o melhor re-

flexo do ser.

A prática que só se entrega na e pela liberdade do aberto se-

rá em si mesma uma chave particularmente activa. O aberto é o ape-

lo à Unidade. Esta Unidade em Budo chamamo-la música do sopro,

ou se preferirem música ou sopro!

Não esqueçamos, uma vez mais, que o Do do Ai Ki é a arte por

excelência de dominar o corpo e todas as formas da vida pelo espírito.

Mas antes de me seguirem no Caminho, onde se desenvolve

XVII

82

Page 85: Aikido

A técnica está ligada ao espaço através do movimento mas

apenas quando este é escolhido, é eleito por aquele que o executa.

Há movimento sempre que há vida.

Há movimento correcto desde que haja renascimento de uma

certa forma de vida registada pela consciência e traduzida pelo cor-

po; há técnica sempre que lhe seja dado um invólucro formal para es-

ta tradução.

O Aiki Nage é uma liberdade.

Se a técnica é uma forma, o movimento existe antes da for-

ma. É uma libertação antes da reclusão voluntária na "forma".

A técnica é sólida; o movimento é fluido,

A técnica é vitória sobre o plano e sobre o espaço; o "movi-

mento" é possibilidade no plano e no espaço. Se vos digo que o

movimento é uma liberdade, a técnica é uma disciplina, é uma cap-

tação voluntária.

Podemos nela entrar ou dela sair quando o desejarmos.

Vemos que um não existe sem a outra, sempre que há cria-

ção... É preciso que um, o movimento, o livre, o indisciplinado seja

dominado e que a outra, a técnica, o formal, possa expandir-se.

Os dois estão, portanto, sempre reunidos. Mas hoje quem o

sabe ver? Não, seguramente, o grande público das Artes Marciais!

Em resumo, poderia dizer: "Um é liberdade, a outra uma tra-

dição"! O que era praticamente o mesmo. Na verdade, o que é uma

tradição senão uma disciplina mantida através dos tempos.

O Oriente soube conservar, através de certos mestres, a cons-

ciência do movimento. Cabe-nos a nós, ocidentais, conquistá-la! O

Ocidente — e isto generaliza-se, pouco a pouco, em todos os azi-

mutes — apenas manteve o desenvolvimento das formas e dos meios

e não a cultura mais profundamente intuitiva das bases e dos funda-

mentos que, no centro destas formas e destes meios, permitem reen-

contrar intacto o movimento inicial, fonte de toda a vida da forma

em movimento.

O problema da Escola do Movimento

Eis o dilema!

Como é que hoje o Aiki Do nos propõe esta liberdade (do mo-

vimento) a reconquistar e a reafirmar? Isto é, como procurar o senti-

do do movimento, na fonte profunda, para além do invólucro este-

reotipado dos Go Kyo, ditos "programas de graus", propostos pelas

escolas japonesas?

E, mais ainda, como educar o desenvolvimento e a expansão,

sem entrar em esoterismos, frequentemente mal assimilados e so-

bretudo mal interpretados?

Para aprender, é preciso escolher uma escola, sabendo que

racionalizar, tornar perceptível a outros, encerrar num estudo, limitar-

-se a um método é, para nós, um falso estado, uma falsa atitude.

Falso, ainda que seja necessário, porque apenas meio falso. Temos,

por vezes, que nos ater a esta situação, sem descurar, porém, que a

liberdade, sendo indispensável, necessita de ser adquirida e só o po-

de ser através do trabalho e da pesquisa e, para tanto, é necessária

uma base, é precisa uma ajuda, é preciso uma direcção.

Como diria Rilke numa das suas cartas a Rodin, aquilo que

procuramos junto de um Mestre não é apenas encontrar "mãos que

fazem a grandiosidade". Estas mãos que permitem a grandiosidade

a outros, fazem antes de mais a sua grandiosidade, através da sua

própria pesquisa e percorrendo o seu próprio caminho. E elas não se

pousam sobre o ombro daquele que humanamente procura a sua via,

a não ser para lhe dar uma direcção, uma indicação para se voltar pa-

XVII

83

Page 86: Aikido

— e sobretudo reencontrar-se a si mesmo.

Mas ele devia poder educar-se igualmente num dojo onde a

Arte do Movimento fosse também ela ensinada. É aqui que reside a

lacuna: o Aiki Do deve aprender-se através do ensino da "consciência

do movimento" e dos seus princípios, que sustentam a própria Arte

do Aiki Do!

Este trabalho consistirá em despertar o aluno para a Arte do

Movimento no seu próprio corpo, torná-lo consciente das suas rela-

ções com o espaço em que se move, reunir nele e através dele a vida

ritmada das sensações e das linhas imprecisas e fazer com que dele elas

brotem nas formas e expressões dadas ao seu corpo, animado pelo Ki.

É preciso aprender o "devir" para além do movimento, mas

isto é já uma outra história...

O dojo ideal seria aquele onde fosse possível encontrar, para-

lelamente à educação da forma, uma educação do espírito ou a for-

ça que o faz mover.

"No movimento tudo é nuance.

Sêde o eixo da roda e ignorai se os

raios giram"

No Kaiten Nage, a noção de "Roda", de centro imóvel, é im-

portante para compreender a sensação de Kaiten que se executa na

oposição de Aité.

É fácil declarar ou dizer num curso que "é preciso dominar es-

te mundo de oposições que são forças e ritmos esparsos e que é ne-

cessário canalizá-los numa direcção de não-oposição, a fim de reali-

zar uma forma a que chamamos Kaiten Nage". Seguramente, isto não

ra o "lado certo". Esta mão colocada sobre o ombro, esta pressão im-

perativa, esta insinuação, esta certeza não podem senão indicar o ca-

minho já percorrido.

Quem no-lo desdobrará sob os pés? Que outro ser, para além

de nós mesmos, nos dirá "é isto", "é por ali"?

Todas as escolas estão perante nós, tentam-nos, convidam-

nos, chegam mesmo a aspirar-nos por longos anos...

Mas ele, o principiante, isolado, para onde irá?

Onde aprender aquilo que outros experimentaram e desco-

briram antes dele? Será que uma escola é única? Não certamente! É

preciso descobrir uma escola em que o exemplo ligado ao ensino, a

dignidade unida à experiência, a grandiosidade junta ao conheci-men-

to possam ser propostos como modelo deste ambiente perfeito on-

de o ser que se procura deva poder reencontrar-se antes de, enfim,

se encontrar.

São precisos dojos dotados deste espírito e deste clima, mas

não nómadas, não errantes, fixados na ingerência e tornados viáveis

pela liberdade que largos meios financeiros lhes conferem38.

Vimos, quando destas reflexões, que o praticante é um ser li-

gado ao espaço, ao seu parceiro e que faz movimento. Vimos tam-

bém que antes de entrar no molde da técnica, é preciso que ele seja

terra maleável, terreno propício, que ele aprenda a conhecer, primei-

ro, a dominar, depois, quer este espaço, quer este movimento cria-

dor dos seus gestos reactivos.

É isto que, antes ou paralelamente a qualquer outro estudo,

ele deve encontrar sob a forma de ensino em todas as escolas, seja

qual for a sua tendência, e que o pode ajudar a praticar diferentes

formas. Pode pedir-se sempre de empréstimo e conhecer todas as

sensações, beber em todas as fontes — e abandoná-las em seguida

XVII

84

Page 87: Aikido

constituía uma educação! Uma educação, ou melhor dito, uma for-

ma-ção é ajudar a que seja possível captar sensações virgens, é con-

seguir torná-las flexíveis como se fossem tenros bambus.

Isto exige, por certo, um trabalho perseverante, ou talvez me-

lhor dito ainda, isto constitui um estado de ser, uma vigilância cons-

tante (Zanshin), sabendo que o ser se transforma naquilo que o pen-

samento lhe sugeriu.

O erro inicial é acreditar que num corpo tornado flexível, for-

tificado e dócil, respondendo bem ao que dele se exige, a imagina-

ção se reencontraria livre, fácil e intacta. Poderíamos pensar assim se,

no trabalho, não separássemos espírito e corpo, tal como o separa-

mos ao dizer "o peixe na água", quando deveríamos pensar "as va-

gas e a água".

Também acreditamos que um certo "estado de ser", artifi-

cialmente assumido no momento de um combate (competição) e de

que nos desfazemos com o Kimono, é suficiente para reencontrar o

clima particular de cada combate (real).

O olhar global — "aquele que tudo e nada vê", "aquele que

vê em toda a parte e em parte nenhuma" — constitui, de facto, uma

ajuda, e, no entanto, considero-o apenas "apoio exterior".

Sabemos, hoje, aquilo que Miyamoto Musashi sentiu intuiti-

va-mente: que os combates mais profundos do ser (e a psicanálise

ensinou--nos a disso tomar consciência) fazem aflorar ao nível do real

o que se encontra escondido no fundo do nosso inconsciente e cada

um de nós sabe que, ao ouvir por vezes o relato de um combate par-

ticular-mente bem descrito, ele pode evocar no praticante experi-

mentado uma reminiscência, uma sensação de reflexos vividos.

Tal perfume não é para nós uma parcela de vida esquecida

que renasce na sugestão de um odor?

E, no entanto, para compreender o movimento, será preciso

escavar ainda mais fundo!

Que significa Aiki Do ou Aiki Budo?

"Ai" significa, literalmente, "unir", conjunto, amor, etc.

"Ki" significa espírito, sopro, etc.

Mas analisemos este vocábulo de mais perto.

Trata-se aqui de pôr o espírito em sintonia com o dos outros

e com aquilo que o rodeia. É a verdadeira lei da harmonia que pode-

mos compreender facilmente, quando Mestre Ueshiba diz "eu mes-

mo sou o vazio", ou quando Lao Tsé, muito antes dele, dizia: "Aquele

que conseguir fazer de si mesmo um vazio em que os outros possam

penetrar livremente tornar-se-á senhor de todas as situações."

Para que haja estado de vazio, é preciso um espírito de aban-

dono, de que muito pouco se fala no Budo, porque ele poderia ser

mal interpretado. Uma vez que "Ai" quer dizer unir-se, tal correspon-

deria mais precisamente a "abandonar-se sem reticências, para se unir

no ataque". Significaria "dissolver-se no Universo" por uma osmose,

que é comunhão, e onde o ego é esquecido. Significaria um estado

de união com o ritmo Universal. Ser capaz de ver as coisas de forma

desinteressada.

Aqui, a dificuldade para o praticante do Movimento reside no

facto de que, para ele, entre a revelação e a realização se inserem a

aprendizagem, o aperfeiçoamento técnico, o trabalho... É durante es-

ta etapa tão longa que muitas vezes se perde a autêntica verdade, a

essência intacta na espontaneidade da prática, e que só alguns privi-

legiados guardam. É durante esta etapa que a exigência criadora der-

rotará os mais fracos. Alguns abandonarão, ainda que tenham pos-

sibilidades físicas de continuar a procura... Outros curvar-se-ão pe-

rante exigências mais fáceis, por exemplo, graus, títulos, ou mesmo

XVII

85

Page 88: Aikido

talvez inconscientemente.

O Mestre de Budo que deixa expandir a vida nas linhas do seu

corpo; o escritor que a faz correr através dos seus dedos até à cane-

ta; o pintor que a deixa deslizar até à ponta do seu pincel; o sábio e

todos aqueles que desempenham bem as suas tarefas, tal como o pra-

ticante de Sabre, que faz correr também a vida e não a morte, todos

eles sabem que, em última análise, a faculdade de reviver e a intuição

criadora, estes actos em que podemos tornar-nos outros que não nós

mesmos e capazes de nos abandonarmos, são obras inteiramente de-

sinteressadas.

O desinteresse mais despojado é talvez o do artista. Ainda os

há pelo mundo que vivem e morrem, por vezes silenciosos e desco-

nhecidos, a fim de que a sua arte subsista.

Posso afirmar-vos que as Artes do Budo dependem, à partida,

da Escola que deveria desenvolver a "Arte do Movimento em si", em

vez de a ir procurar no exterior de si: nos títulos, nos pequenos po-

deres ou na alegada "eficácia".

As Artes do Movimento poderiam encontrar-se entre seres cria-

dores, bem longe da má informação com que hoje deparamos neste

"meio", sem falar dos filmes de Hong Kong ou outros, bem longe de

quem atrai jovens para a violência, para deles fazer "super-homens",

e que abandonam, geralmente, alguns anos depois. Relativamente

aos que ficam, a maioria, após terem sido campeões ou vedetas, tor-

nam-se líderes de grupo e formam, por sua vez, uma motivação que,

infelizmente, não ultrapassa a técnica. "Eis que o círculo se fecha".

Sei que uma escola (dojo) que procura "a essência do movimento"

parecerá a alguns uma grande pretensão ou uma utopia. Contudo, a

incursão que fazemos através das nossas reflexões não constitui pro-

va de que uma abordagem como a nossa não atrairia outras motiva-

a busca da eficácia, que é também uma ilusão...

Ser capaz de se manter semelhante "no espírito do principi-

ante" é, para o verdadeiro praticante, o seu mais belo triunfo. A pes-

quisa técnica, comparável à temível experiência de viver, seca fre-

quentemente esta fonte. Se o praticante de Budo, na sua abor-da-

gem, possuir esta faculdade de se esquecer de si mesmo, se for ca-

paz de vivificar o seu caminho por uma permanente vigilância, ele

atingirá então esta dupla consciência que o torna senhor do espírito

a fim de se libertar numa forma, também ela dominada.

O que é, no fundo, uma técnica ou um movimento, caso o

seu objectivo não se torne apenas uma busca de eficácia, ou mesmo

de acrobacia e de perfomance, se não a liberdade de associar e dis-

sociar todas as partes do corpo, segundo a necessidade e os impera-

tivos do apelo criador?

Se, fazendo recuar os limites do tema, fôssemos todos até ao

fundo de nós mesmos, músicos, arquitectos, comediantes, homens

de negócios, engenheiros, muitos dos quais emparedados na luta pe-

lo dinheiro, místicos ou políticos, do mais leal ao mais cobarde, do

mais generoso ao mais cúpido, sentiríamos inconscientemente a nos-

talgia de um "paraíso perdido", ou de um tempo presente falhado...

de que nos afastam as nossas prudências, as nossas economias, as

nossas servidões, a nossa avidez. E este paraíso perdido não é o cli-

ma, as atitudes, as fachadas arquitecturais, as esculturas, os colori-

dos?

É aqui que eu peço um Dojo que não seja japonês, nem orien-

tal, nem ocidental: um Dojo Universal, que não se perca na pesqui-

sa, em que as técnicas de Budo sejam meios e não o objectivo, que

ganhe e amplifique o trabalho das faculdades criadoras e a intuição

do devir, cuja necessidade é sentida por um grande número de nós

XVII

86

Page 89: Aikido

ções? Mas nunca é de mais repetir que devemos encontrar em nós

este "mistério do movimento" e aperfeiçoá-lo. As reflexões que fa-

zemos não nos colocam contra os diversos métodos e não vêm pro-

por uma nova receita. Não afirmo que seja melhor ou o ideal a se-

guir... Mas, depois deste longo percurso, sinto-me na obrigação de

afirmar: a consciência do Movimento é a base; ela não é verdade

absoluta, mas necessidade fundamental. Há, nas Artes de Budo e nas

do Aiki Do, um brotar criador primitivo.

Maurice Béjart, numa altura em que praticava Zazen com

Taisen Deshimaru, disse-me que as "Artes Marciais eram a fonte da

Dança". É evidente que se alguma coisa existe de primitivo e puro,

fonte da materialização no espaço, essa coisa é a essência da arte ges-

tual, que possui a sua mais elevada expressão: o poder quase divino

de dar vida, de criar.

Nos nossos dojos, não está em causa um novo método, mas

uma atitude esquecida. Trata-se mais de reaprender do que de apren-

der.

Uma vez despertada a consciência do movimento, que cada

um reintegre os limites do estilo que escolheu (duro ou flexível).

Cada estilo, de Escola Antiga ou de Escola dita "Moderna",

de personalidade ou de diferente tendência, mais não é do que o

acentuar de um sentido preciso, porque nenhum de nós pode trans-

gredir esta lei que nos condena a atingir as coisas apenas de forma

fragmentária.

Só a mecanização é incompatível com esta base lógica, uma

vez que sendo o seu automatismo demasiado semelhante à máqui-

na, também ele é inconciliável com o movimento da vida.

"Praticando, é em Si que é preciso procurar a forma exterior". XVII

87

37. Henri Maldiney, Regard, parole, espace, Paris, Ed. L’Âge de l’Homme, 1973.

38. Hoje, as Artes Marciais são, frequentemente, ajudadas pelos poderes públicos, comgrandes meios financeiros. Uma vez que gerem a competição, limitam-se a escolhera expressão de uma forma exterior espectacular baseada na alegada eficácia.

IX

Gei Jyutsu - A Arte

Page 90: Aikido

88

A vida é uma sucessão de trocas.

Page 91: Aikido

O movimento tem aspectos muitos mais vastos e profundos

do que aqueles que nos são familiares. Estes estão rigidamente limi-

tados a considerações de tempo, de espaço, de causalidade. "Daqui

em diante – dizia Minkowski em Setembro de 1908 – os conceitos de

espaço e de tempo, considerados como autónomos, vão desvanecer-

-se como sombras e só se reconhecerá existência independente a uma

espécie de união entre os dois".

Existem outras categorias de movimentos. Cada uma delas

possui os seus caracteres específicos.

Leis, não apenas diferentes, mas por vezes opostas, regem os

diferentes modos ou domínios do movimento.

Elas são de três ordens, porque se aplicam a três categorias

de movimento.

Porque considero que os praticantes de Aiki Do devem apro-

fundar esta matéria, passarei a resumir muito brevemente estas três

categorias.

XVIII

89

XVIII o s t r ê s m o v i m e n t o s

A verdade só pode ser atingida através

da compreensão dos contrários.

Okakura-Kakuzo

"Movimento"

fundamental

"Movimentos" "Movimentos"

de deslocação de transformação

na Natureza da Natureza

(visíveis) (invisíveis)

Ao falar de "movimento", evocamos quase sempre a deslo-

cação de um objecto, de um ser vivo, de um engenho mecânico, de

uma vibração ou de uma onda no espaço e no tempo.

Page 92: Aikido

É a este nível espácio-temporal, visível e concreto, que se si-

tuam os gestos do corpo humano. E, por conseguinte, os dos movi-

mentos técnicos das Artes de Budo.

Mas o domínio dos "movimentos" de deslocação que acaba

de ser evocado está ligado a um dos estados mais profundos de que

ele é inseparável.

2. Os "movimentos" de transformação

da natureza

Encontramo-nos aqui num domínio mais profundo, menos

aparente, escapando às percepções sensoriais familiares. Ele situa-se

nas profundezas da matéria. O mundo quântico tem regras diferen-

tes das do mundo à nossa escala.

Tal investigação, ainda que sumária, obriga-nos a entrar um

pouco na física.

Ao longo de todos os "movimentos" de deslocação acima evo-

cados, os objectos móveis permanecem intactos à nossa vista. Se lan-

çarmos um balão de um ponto A em que nos encontramos para um

ponto B a várias dezenas de metros de distância, este balão perma-

necerá idêntico. A natureza do objecto móvel não se modifica.

Tudo se passa diferentemente no plano intra-atómico e intra-

-nuclear, no coração da matéria.

Ao nível electrónico, este "pseudo-corpúsculo" ocupa prati-

ca-mente toda a zona das suas revoluções em torno do núcleo do áto-

mo, ao longo de milhares de milhões de voltas por segundo e a sua

estrita individualidade parece apagar-se, como é patente na definição

que Louis de Broglie dá de corpúsculos.

O Mestre Ueshiba empregava frequentemente o termo "Katsu

Hayabi":

"Num instante, eu percebo e compreendo

O espírito do adversário.

Não existe tempo, nem espaço,

Apenas existe o Universo".

O Mestre Ueshiba simbolizava aqui as leis da física do Movimen-

to Universal, mas com a sua espiritualidade. A espiritualidade consis-

te na harmonização no homem e pelo homem das diferentes cate-

gorias de movimento, que fazem parte da sua natureza e da nature-

za pro-funda de todas as coisas.

1. "Movimentos" de deslocação

Os "movimentos" de deslocação são aqueles que nos são fa-

miliares. Vêmo-los e experimentamo-los de mil e uma maneiras na vi-

da quotidiana. Eles exprimem-se também nos nossos gestos.

A respiração, os batimentos do coração, a intensidade das

trocas intercelulares, a circulação do sangue, o ritmo da marcha, as

palavras, as emoções, os pensamentos, o vento, a chuva, a revolução

da terra em torno do sol, a trajectória de um avião, etc. são "movi-

mentos" de deslocação.

Este movimento é simbolizado, na física, pela deslocação, no

espaço, de um objecto móvel a partir de um ponto A até um ponto

B, durante um período de tempo T, a uma velocidade V.

As leis deste movimento e as dos objectos móveis, deslocan-

do-se no tempo e no espaço, foram definidas pela mecânica clássica.

XVIII

90

Page 93: Aikido

A este nível, portanto, o "objecto móvel" é já muito diferen-

te de um balão sólido.

É, enfim, ao nível intra-nuclear, que tudo muda. O núcleo não

é homogéneo. Ele compõe-se de todo um mundo.

Aqui, o movimento é muito diferente de tudo quanto nos é

familiar. O movimento como que se recolhe sobre si mesmo. Tudo se

passa numa centésima milionésima parte de um milímetro.

O movimento concentra-se num ponto ínfimo do espaço e

do tempo.

Impõe-se-nos, de imediato, uma verdade fundamental: a es-

te nível, o movimento caracteriza-se por uma transformação de

natureza que só aparentemente se mantém intacta.

Com efeito, os objectos móveis não permanecem intactos.

Eles estão, ao contrário, sujeitos a contínuas transformações.

O conhecimento da física no Ocidente evoluiu de forma ver-

tiginosa, e controversa, nos últimos cem anos. É no entanto aceite

que no interior da matéria haja quatro tipos de interacção ou forças:

a gravítica, a electromagnética, a forte e a fraca, e que todas elas se-

jam explicadas por trocas de "micro-matéria": gravitões, fotões, gluões,

etc., com intensidades e alcance muito variáveis, mas sempre expli-

cando o equilíbrio e a movimentação da matéria em termos de "tro-

ca da matéria".

Assim, a intensidade das trocas é mais importante do que

a individualidade dos elementos ligados entre si.

3. O "movimento" de criação pura, fun-

damental

A existência dum "movimento" fundamental foi intuitiva-

mente pressentido tanto pelos gregos, caso de Plotino, como pelos

indianos, no Bramanismo.

Plotino falava "de um movimento puro sem objecto móvel e

não distinto do motor que o anima".

A palavra "Brahma" dos indianos provém da raiz do sânscri-

to "Brih", criar. Muito curiosamente, este movimento de criação pu-

ra é entrevisto por numerosos físicos e matemáticos da época actual.

Citemos entre eles John Wheeler (EUA), David Bohm (Inglaterra),

Blokhintsev Ivananko (Rússia), Tournaire e Vigier (França).

Para além da dualidade das ondas e dos corpúsculos, para

além dos electrões, neutrões e dos múltiplos elementos constituintes

intra-nucleares, para além dos campos electromagnéticos e gravita-

cionais, situa-se a unidade de um campo não linear de criação pura.

A este nível, não existe objecto móvel, nem tempo, nem es-

paço, nem causalidade.

Trata-se de uma Realidade Última, espécie de presença eter-

na, intemporal, formando a essência profunda dos seres e das coisas.

O papel do homem seria o de exprimir, no tempo e no espa-

ço, na e pela matéria, este movimento de criação pura.

É a este nível que intervém o papel supremo da Arte do

Movimento, para não dizer o do Aiki Do, porque seria fechar a Arte

do Movimento numa única disciplina.

A expressão de um movimento não seria apenas física, mas

estaria subordinada a uma inspiração espiritual emanada do movi-

mento de criação sempre presente, porque contínua.

XVIII

91

Page 94: Aikido

tre a Arte do Movimento e a Espiritualidade.

Quando o Mestre Ueshiba intuitivamente disse "o Aiki Do exis-

te à imagem da Natureza", quem o compreendeu?

Acabámos de ver que tudo na natureza se resume ao movi-

mento. Acabámos igualmente de ver que a essência profunda da na-

tu-reza e da matéria mais não é do que movimento: movimento de

criação pura muito para além das nossas categorias de vida e de mor-

te.

A Via "Do" e o "Dharma" consistem na harmonização no ho-

mem e pelo homem das diferentes categorias de movimento, que fa-

zem parte tanto da sua natureza quanto da natureza profunda de to-

das as coisas.

Nesta perspectiva, o Universo é uma unidade indivisível e a

realidade essencial do homem engloba e domina todas as nossas opo-

sições de vida e de morte, de carne e de espírito (Corpo/Espírito).

Os mestres do Oriente, sejam eles do Yoga ou das Artes do

Budo, põem todos em evidência a importância do movimento no

Universo e no homem, não apenas nos campos físico e psicológico,

mas muito mais ainda no plano espiritual último, e a necessidade de

admitir o carácter sagrado da Arte do Movimento, no sentido univer-

sal, e no sentido em que "sagrado" é "ligado".

Todo o movimento, numa prática sincera e correcta, encon-

tra-se expresso, no ser humano, cuja complexidade de organização

celular, o aperfeiçoamento do sistema nervoso e a morfologia permi-

tem as expressões mais totais de todas as categorias do movimento

acima citadas.

Em resumo, trata-se de uma experiência em que se exprimem

o movimento e a vida na sua totalidade. Deste ponto de vista, a cons-

ciência separada do "Eu" revela-se como pertencendo ao domínio da

Uma tal perspectiva não deveria surpreender-nos. O efeito de

surpresa provém do facto de não termos ainda compreendido até que

ponto a essência da matéria é espiritual.

Isto pode, contudo, divergir de uma escola para outra... Mas

é importante sublinhar que a concepção de um "Movimento de cria-

ção pura" é actualmente partilhada por um número cada vez mais

impor-tante de cientistas de renome mundial39.

Arte e movimento?

Toda a matéria animada e inanimada, viva ou morta, todos

os seres e todas as coisas participam, sem o saber, nas três categorias

do movimento que foram sumariamente referidas.

E não só nelas participam, sem o saber, na intimidade pro-

funda quer da sua substância material, quer da sua consciência, co-

mo podem exprimir as três categorias do movimento.

É pois de admitir que a Arte do Movimento possa ir buscar a

sua fonte de inspiração muito para além dos limites determinados pe-

los movimentos de deslocação temporais e espaciais.

Pareceria plausível a existência, no homem, de um elo e de

uma harmonização das três categorias de movimento.

Isto exige uma grande abertura psicológica e espiritual. As

formas mais evoluídas da vida humana exprimiriam uma plenitude de

movimento criador tanto nos planos espirituais, como psicológicos e

físicos. Estes seriam, por exemplo, os elementos base da adequação

perfeita nas relações humanas de que falam os mestres Zen.

É por isso que poderiam existir relações infinitamente mais

profundas do que as que são geralmente admitidas ou entrevistas en-

XVIII

92

Page 95: Aikido

ilusão. Ela dissipa-se, não para mergulhar num aniquilamento, mas

para se abrir a um conhecimento mais profundo e unificador da rea-

lidade.

O praticante sensível a esta extraordinária comunhão pode

comunicar pela beleza dos seus gestos exteriores — exprimindo si-

multaneamente a sua disponibilidade interior — um sentido vivo de

valores sublimes, triunfando das barreiras da linguagem e das ideias

porque o gesto visível contém a união das diferentes possíveis lei-

turas da natureza das coisas.

Creio que, apesar de certas aparências, uma tal perspectiva

não é nem criação do espírito, nem uma "ontologização".

E, no entanto, é destas profundezas da Arte do Movimento

ou da do Aiki Do que emana uma inspiração interior. Pela sua ex-

pressão corporal, elas realizam uma síntese harmoniosa do espírito e

do corpo, dois aspectos de uma mesma realidade.

Como disse Morihei Ueshiba: "O Ai Ki tem uma forma sem a

ter. O Ai Ki é uma vida tendo forma, mas esta muda constantemen-

te: ela só se exprime pela mudança. Uma forma sem forma, eis uma

expressão poética que ilustra o que é o Universo."

XVIII

9339. Princeton, La gnose, Paris, Fayard, 1974.

X

Page 96: Aikido

94

Chamai a isto cana de bambú e ficareis prisioneiros do meu ardil. Recusai chamá-lo cana de bambú e caireis no erro. Que nome lhe dais!?

Page 97: Aikido

Muito cedo, a Índia, a China e o Japão deliciaram-se a repre-

sen-tar os passos da vida espiritual ou as etapas no caminho do des-

pertar, de que a domesticação do búfalo é um exemplo excepcional.

Aqui o búfalo selvagem simboliza a Energia, mas também a

verdadeira natureza do homem, o ser profundo, esta realidade que

já está presente nele mas que ainda não foi realizada em plenitude.

O búfalo pode ser uma vaca, um touro, um boi ou mesmo

um cavalo e até um elefante. As diferentes etapas da domesticação

só podem ser verdadeiramente compreendidas por quem as experi-

mentou. É preciso saber também que aquele que entre no Budo, ape-

nas pela porta da técnica, terminará o seu percurso, quase de certe-

za, num "parque de estacionamento".

Ao contrário, a porta do Budo convida-nos a passar a "porta

sem porta", tão vasta e transparente quanto um grande céu vazio.

Mas para a transpor é por vezes necessário ter um guia e seguir o seu

próprio bom senso.

Um velho provérbio chinês pode fazer-nos reflectir e mostrar

que, apesar do nosso conhecimento, temos ainda muito a aprender

com os antigos de todas as tradições, ao mesmo tempo que nos dá

uma lição de humildade:

"Aquele que não sabe

e que não sabe que não sabe… evita-o.

Aquele que não sabe

e que sabe que não sabe… educa-o.

Aquele que sabe

e que não sabe que sabe… desperta-o.

Aquele que sabe

e que sabe que sabe… segue-o."

Todo o praticante deveria colocar-se esta questão: "Quem

sou?". E ainda "O que sou?". Mas gostaria de acrescentar uma ou-

tra: "Onde estou?" no caminho que escolhi e conduz ao real…

XIX

95

XIX a d o m e s t i c a ç ã o d o b ú f a l o

Page 98: Aikido

curar?

Se já não sentimos a presença do búfalo, tal significa que nos

afastámos de nós mesmos, que são os nossos sentidos que nos con-

duzem, que caminhamos em direcção a encruzilhadas incertas….

O gosto por "tomar" e o medo de "largar" consomem-nos.

Pensar o bem e o mal dilacera-nos.

Num outro estádio, começamos, paulatinamente, a ver. As

Escrituras e os ensinamentos ajudam-nos a ter um pouco mais de com-

preensão. Começamos a ver os traços do búfalo, mas somos inca-pa-

zes de distinguir o que é do que não é. O espírito tem dificuldade em

discernir o verdadeiro do falso.

Estamos sempre perante uma porta. A técnica do Budo não

nos deixa entrever a outra porta.

Depois, pouco a pouco, começa o encontro — a domestica-

ção do búfalo — em que o praticante descobre, pela escuta, o seu ca-

minho, em que os sentidos se harmonizam. Percebemos, então, a ori-

gem das mil e uma coisas. Em todos os actos, sentimos que nada es-

tá separado. Mas o olhar não é ainda puro, nem dirigido de uma ma-

neira correcta. Ainda não descobrimos ou não compreendemos que

todos estamos unidos à origem.

Após um longo caminho, encontramos realmente o búfalo,

temo-lo agarrado. Mas, ainda atraído pelas solicitações do mundo ex-

terior, o búfalo é difícil de controlar. A sua natureza selvagem é difícil

de dominar e recusa a familiaridade. É necessário utilizar a corda pa-

ra que ele permaneça perto de nós.

Começamos, então, a domá-lo, sem prescindir do chicote e

da corda. Quando um pensamento vem, outro se segue, outro ain-

da… O turbilhão sem fim dos pensamentos cresce e arrasta-nos no

erro, temos ainda falta de clarividência interior. Ainda nos é necessá-

A porta da técnica está, infelizmente, reservada "àquele que

não sabe / e que não sabe que não sabe". Têm olhos e não vêm, di-

zia Cristo.

As etapas da via são, antes de mais, transformação. "Aquele

que sabe / e que não sabe que sabe" já deu um passo no caminho.

A luz está nele, como em todos nós, e um trabalho de maturação pro-

cessa-se no seu íntimo, sem que dele se aperceba. Ele deve trabalhar

com perseverança em todos os planos da consciência. É-lhe necessá-

rio dissipar tanto os mais densos como os mais subtis estados de cons-

ciência que lhe escondem esta luz interior que está presente no mais

profundo do seu ser e cuja existência ele ignora.

É preciso que se liberte de todas as cadeias e ultrapasse to-

dos os preconceitos. Longo trabalho! Aqui, o estudo não basta. O sa-

ber livresco não substitui a experiência, a única que nos pode con-

duzir a um verdadeiro conhecimento. Para que o ser integral possa

transformar--se, é indispensável a vivência pessoal, porque "ver é ver

e fazer é saber". É, então, necessário um guia qualificado a fim de

não enveredar por becos sem saída e de não confundir o dedo que

mostra a lua com a própria lua.

"Aquele que sabe / e que sabe que sabe" é o único qualifi-

cado para levar a cabo esta tarefa difícil. Tem a humildade e a indul-

gência necessárias. Adquiriu o domínio do seu corpo, do seu sopro,

dos seus pensamentos e das suas emoções. Está também em con-

tacto perma-nente com a fonte cósmica, ele irradia amor. Mas é pre-

ciso ainda estar pronto para o receber, estar disponível e solto, a fim

de ser permeável a um verdadeiro ensino.

Regressando à domesticação do búfalo, é necessário, em pri-

meiro lugar, procurar!

Se o búfalo nunca está longe, importa saber porque o pro-

XIX

96

Page 99: Aikido

ria maior vigilância. É o momento de segurar bem as rédeas, de dar

mais atenção à atenção, caso contrário o animal pode extraviar-se.

É chegado, enfim, o momento em que já não temos necessi-

dade de "tomar" nem medo de "largar". Não há retorno. O coração

enche-se de uma alegria desconhecida. O combate termina.

Deixando-se levar pelo búfalo, o domador reencontra a sua

verdadeira morada. Todos os ensinamentos desvelam uma realidade

única. Encontrámos a pérola em vagas perigosas. Quando se tem o

peixe, que importa a rede!

A lua eleva-se acima das nuvens!

Nada mais há! Nem chicote, nem corda, nem homem, nem

búfalo. É o vazio, é a abertura. A confusão esvai-se, nenhuma ideia

de perfeição a atingir existe, apenas permanece a serenidade. Que

importa que o "despertar" seja aqui ou além? Quando se esbate to-

da a dualidade, para onde dirigir o olhar?

Numa base sem questões, numa prática desinteressada, abri-

mos a porta ao mistério. Já nada encobre o desenvolvimento daqui-

lo que é. Basta contemplá-lo. Basta contemplar o que permanece, o

que se passa, sem lhe acrescentar um pensamento, sem se identifi-

car com o que acontece, desprendido de si.

Azul é a resposta do Céu, verde a dos prados. As estações

passam.

"O quotidiano meditado na sua viva profundidade,

o movimento do sabre pode tornar-se o instante em que ve-

jo."

O Budo é uma arte do instante, mas é preciso não confundir

"este instante" com os momentos privilegiados, porque estes não

passam de fulgor disperso. Na arte do Budo, aprendemos, pelo con-

trá-rio, a recolher um presente, uma presença naquilo que nos acon-

tece, ocasião única de ver aumentar o Espaço – a luz nua.

"Que maravilha!

Recolho a água,

Apanho lenha."

Bashô

Sejamos inteiros em cada acto, nele exprimindo o melhor de nós.

Ser na energia do acto, para além do projecto.

Se praticais uma técnica, lavai o vosso espírito. O que impor-

ta é a integração no acto.

Tudo se torna claro, em nós e no resto. Tudo se revela na cla-

ridade do presente actualizado.

Quando vos transformais em um, quando atingis a unidade,

eis que o milagre ocorre e tudo se torna vivo.

O grande milagre é a própria vida.

XIX

97

Page 100: Aikido

Eles não se conheceram

Ele não é ainda o seu Senhor

A sua cabeça majestosa é ornada de cornos esplêndidos

Ela é selvagem, violenta, indomada.

O Céu parece hostil, como ela.

Como domesticar esta besta magnífica e perigosa?

No entanto, o Homem deseja, do fundo da sua alma, capturá-la.

Então, usa de astúcia com ela, explorando a sua avidez

Oferece-lhe a sua erva preferida a fim de vencer a sua desconfiança;

Mas esconde a corda com que a amarrará.

Prepara também a chibata com que reprimirá os seus abusos.

O Animal, qual nuvem tempestuosa, está carregado de uma energia

obscura;

Ele é negro da cabeça à cauda.

O que é esta potência desembestada?

XIX

98

A domesticação do Búfalo

O tema da domesticação do búfalo serviu para ilustrar

as diferentes etapas da Via.

Que representa o Búfalo? Representa a nossa própria

natureza, a natureza da vigília. O homem simboliza o indiví-

duo, o ser humano; o boieiro, a parte do indivíduo que se vol-

ta para a sua natureza profunda, o seu ser interior; a corda e

a chibata são os meios hábeis, os diferentes métodos de tra-

balho que guiam a vigília. A ideia de domesticação implica a

de um longo trabalho, constante e quotidiano, efectuado com

uma grande e ininterrupta vigilância…

Houve várias versões deste tema, todas elas subli-

nhando o aspecto progressivo do caminho. Os desenhos ori-

ginais e res-pectivos comentários são atribuídos a Kakuan Shien

(Kuo-an, Shih-Yuan), Mestre Zen do século XII. Ele não foi, po-

rém, o primeiro a ilustrar graficamente os estádios sucessivos

do conhe-cimento segundo o Zen. Existem versões anteriores

de cinco e oito desenhos, em que o búfalo se torna cada vez

mais bran-co, representando o último desenho um simples cír-

culo. Tal significava que o conhecimento da Unidade – o mes-

mo é dizer, o apagamento das noções do "eu" e do "outro" –

era o fim últi-mo do Zen. Mas Kakuan acrescentou duas ima-

gens ao círculo para mostrar que o perfeito seguidor do Zen

vive no mundo quotidiano, junta-se aos outros homens com

total liberdade de espírito, e que a sua compaixão incita a se-

guir a via do Buda. Foi esta versão a mais largamente adop-

tada no Japão40.

40. V. Philip Kapleau, Les trois piliers du Zen, Paris, Stock, 1972, p. 284.Os desenhos a tinta da china aqui apresentados são nossos.

I

Page 101: Aikido

O Homem conseguiu

a sua aceitação

Agora a Vaca começa a seguir o homem,

Mas com que relutância!

Ele já não puxa a corda e a chibata repousa no seu ombro.

A Vaca ainda não volta para ele o seu olhar.

O lombo contraído trai o seu medo e os seus desejos de evasão.

O Homem deve permanecer atento.

Ela sofre o seu ascendente mas à menor fraqueza ela fugirá.

Contudo, este começo de submissão humanizou a sua inteligência

animal,

Toda a sua cabeça se tornou clara.

O Sol, ainda vermelho, aparece entre as nuvens.

Porque é que a Natureza e a Vaca se apaziguam juntamente?

IIIO Começo do Domínio

O Homem estabeleceu o contacto com o Animal,

Conseguiu passar uma corda pelas suas narinas.

Brandiu a chibata, com a qual ameaça, para se fazer obedecer.

Ele não deve abrandar a sua pressão,

A Besta, agora, deve submeter-se.

As nuvens tempestuosas desapareceram, a natureza parece apazi-

guar-se,

Entretanto, o Céu permanece ainda cinzento.

Embora ela se debata, sente já que, a gosto ou a contragosto, se-

guirá o Homem.

A sua sombria e feroz energia cede a uma sensação nova.

Esta sensação subtil vem do homem.

Ela transmite-se à Vaca pelo laço que a ele a liga.

O seu focinho negro torna-se mais claro.

O que é esta mancha branca?

XIX

99

II

Page 102: Aikido

A Vaca volta a cabeça

para o Homem

O Céu desanuviou-se;

A luz do Sol atravessa o ar límpido,

As próprias árvores distendem os seus ramos

Que se abandonam na claridade do dia.

A Vaca volta a sua cabeça para o Homem e olha-o com confiança,

A sua nascente afeição por ele

Já apaziguou largamente a sua tumultuosa vitalidade;

A sua cabeça, o seu peito, as suas patas dianteiras são brancas.

Mas o Homem permanece vigilante;

Há ainda muita violência no corpo do animal.

É prudente não o deixar livre,

Temendo que o instinto desperte.

Que poder é este que, no Homem, apazigua?

IV Obediência e Amizade

Resta muito pouca energia obscura no corpo da Vaca.

Já não é um laço material que a prende ao Homem,

Mas uma afeição temerosa.

Ele já não é apenas o seu Senhor, ela ama-o um pouco.

Ele, entretanto, permanece ainda atento,

Conservando a corda e a chibata.

Uma água cristalina desce da montanha

O seu doce orvalho atenua a claridade do Sol.

Como é que o invisível prende tanto quanto o visível?

XIX

100

V

Page 103: Aikido

A Vaca está apaziguada

O animal está apaziguado; só um ligeiro traço sombrio

Resta sobre o seu manto branco de pêlo sedoso.

O homem está seguro da sua fidelidade,

Abandonou os meios de constrição.

A energia furiosa da Vaca mudou-se em terna sensibilidade,

O homem toca flauta e

Ela saboreia profundamente esta harmonia desconhecida.

Tudo é doçura nela e em seu redor;

As árvores estão em flor e uma bruma perfumada estende-se sobre

o vale.

Como é estranho! O animal, o homem e a natureza

estão em harmonia.

VI Ainda que livre, a Vaca

permanece perto do homem

O homem já não se preocupa com ela,

Ela está conquistada e não mais o deixará.

Ela bebe em grandes tragos a água cristalina da fonte.

Ele contempla e admira a sua força pacífica.

Na erva florida, a sua brancura é como um lótus

Aberto sobre um lago calmo.

O Sol enrubesce no horizonte.

O Homem goza profundamente a beleza deste vale

E a sua própria serenidade.

O que está fora dele é como o que nele reside.

XIX

101

VII

Page 104: Aikido

Ele está só, o Sol ilumina-se

A Vaca voltará para ele

O tempo passou? Qual tempo?

As estrelas da manhã ainda cintilam, o Sol irrompe na montanha.

O Homem está numa solidão maravilhosa.

Entretanto, ele nunca deixou de estar só.

A Vaca é simbólica;

As coisas são UM e sempre o foram.

O Animal, fora dele, era hostil.

O desejo, o esforço, o sofrimento e o amor

Restabeleceram a Unidade do Homem.

Mas se dela tiver necessidade, a Vaca aparecerá,

Porque, doravante, o homem sabe quem é e do que precisa.

Para ele, nada mais a conquistar, parte alguma aonde ir,

O combate terminou. Já não há ganho nem perda.

Descerá ele de novo ao Vale?

Eles esquecem-se um do outro

mas não mais se deixam

Brumas violetas estendem mansamente os seus véus,

Algumas estrelas acendem-se no céu imóvel.

Já a lua se levanta, pálida num terno azul.

Um orvalho morno eleva-se da terra.

Tudo é Paz.

A Terra e o Céu apagam-se.

Banhados pela doçura da noite, o homem e a vaca

Estão ambos sós, na sua tranquila beatitude.

Mas eles já não podem estar separados.

Qual a palavra para descrever esta harmonia, esta felicidade íntima?

Onde está a Terra? Onde está o espaço? Onde está o Tempo?

XIX

102

VIII IX

Page 105: Aikido

Os Dois desapareceram

Estão onde nada é

Qual é este estado em que nada há do que chamamos alguma coi-

sa?

É o nada ou a plenitude?

Mas quem pode imaginar o nada?

E quem pode pensar a plenitude?

Porquê falar tanto, as palavras são cheias ou vazias?

O que é, É. O que não é, não pode Ser.

Porquê limitar a realidade à mesquinhez das nossas experiências

contraditórias?

A criança chora se não agarra o Céu na sua mão.

O Oceano é uma grande gota de água ou a gota de água um pe-

queno oceano?

Quando um e outra estão unidos,

Onde está um e onde está a outra?

Alguma vez foi de outra maneira?

Não fiquemos assim, partamos mais longe para o que

nunca deixámos de ser, para o que somos verdadeiramente.

XIX

103

X

Page 106: Aikido

104

A verdade não existe fora do nosso espírito. Porquê procurá-la noutro lugar?

Page 107: Aikido

Na tradição, as Artes Marciais, e isto desde há séculos (e não

apenas no Japão!), foram sempre praticadas em lugares propícios ao

despertar. Hoje, a maior parte dos praticantes agarrou-se à pele des-

tas artes e esqueceu a medula... A Arte do Movimento não consiste

de modo algum em perseguir um resultado exterior com um "belo

movi-mento". Trata-se antes de realizar "o belo movimento, em si

mesmo".

A descoberta do Movimento, que vai para além da forma, de-

corre indubitavelmente de uma meditação da prática...

Um olhar sobre o passado e designadamente sobre a estra-

tégia do combate dos Mestres de Sabre japoneses da época Tokugawa

(1603-1868) é importante para compreender a prática do Budo de

hoje. O Sabre, símbolo da cavalaria, foi para os samurais um meio de

aperfeiçoamento de "si mesmos". A Via do Sabre foi fortemente in-

fluenciada pelo budismo Zen e por aquilo que o grande Mestre Takuan

nos deixou. Isto é válido ainda nos dias de hoje. É um assunto que

merece a nossa reflexão.

Como sabemos, a Arte do Movimento tem uma enorme con-

vergência com as outras Artes. Quando aquela é estudada em pro-

fundidade, o praticante de Aiki Do descobrirá certamente similitudes

nas artes da música, da caligrafia, do teatro, etc. E, nelas, encontra-

rá uma grande riqueza de inspiração.

Como também sabemos, a abordagem do Aiki Do é antes de

mais um percurso interior e tenho sublinhado muitas vezes que to-

das as intenções técnicas devem ser profundamente sentidas pelo

prati-cante antes de serem concretizadas no tatami, o mesmo acon-

tecendo quando se trata de as transmitir.

Esta busca, por mais pessoal que seja, não pode ser feita só;

ela requer a troca. Ela reclama obrigatoriamente uma pedagogia que

se lhe adapte, um ensino no qual a relação de autoridade seja subs-

ti-tuída por um espírito de pesquisa e de colaboração fervorosa entre

o Mestre e o aluno.

XX

105

XXo s e s c r i t o s d o p a s s a d o — o b u d o

A rede de pesca serve para apanhar peixes.

Apanha o peixe e esquece a rede.

O laço serve para apanhar coelhos.

Apanha o coelho e esquece o laço.

As palavras servem para transmitir ideias.

Pega nas ideias e esquece as palavras. Chuang Tsé41

Page 108: Aikido

senciais se reencontram através de todas as outras disciplinas. Os tem-

pos mudaram. Mas os fundamentos, a ciência profunda dos movi-

mentos, do sopro, da Energia (Ki) são imutáveis. Os princípios (muitas

vezes transmitidos ainda secretamente) constituem a própria raiz das

Artes Marciais contemporâneas. O Sabre, que simboliza precisamen-

te uma arma de morte, está ligado a uma sabedoria profunda: a Via

do Sabre inclui em si mesma todas as abordagens da sabedoria e le-

va a sua expressão até ao Absoluto...

.1 Takuan

(Mestre Zen do século XII)

Takuan foi um grande Mestre Zen que influenciou a investi-

gação do célebre Miyamoto Musashi, de que veremos alguns excer-

tos da sua escola no próximo ponto.

Para o Mestre Takuan, aquilo que é mais importante na arte

do Budo é a aquisição, após um treino prolongado, da atitude men-

tal chamada "sabedoria imutável". Muitos praticantes de hoje deve-

riam meditar sobre estas poucas linhas plenas de uma grande expe-

riência do combate...

Imutável não significa rígido, pesado e sem vida como um ro-

chedo ou um pedaço de madeira. Significa o mais elevado grau de

mobilidade em torno de um centro imutável. A mente atinge então o

mais alto ponto de alacridade e pode dirigir a atenção para todo o la-

do em que aquela se torna necessária — à esquerda, à direita, em su-

ma, para todas as direcções requeridas. Quando a vossa atenção es-

tá fixa e mobilizada pelo Sabre com que o inimigo vos golpeia, per-

Na análise dos textos que vamos abordar, nunca poderemos

substituir a experiência directa de um ensino vivo. Tal como nenhu-

ma mensagem do passado poderá substituir a relação de um Mestre

com o seu aluno.

Os textos antigos não são mais do que balizas que permitirão

ajudar a desenvolver a motivação do praticante. Um texto que não

seja materializado numa prática real é uma miragem... porque só con-

ta Tada Ima, o que significa "apenas agora". Só conta o "instante

presente", aquele que na prática toca a "Realidade".

O estudo da estratégia na Arte do Combate não deve parar

na "astúcia", porque esta não faz apelo senão ao "ego limitado",

pois, como dizem os sábios do combate, "a verdadeira vitória reside

na ausência de conflito".

Mas isto exige um desprendimento do espírito, exige o "va-

zio": Shûnya42.

De facto, o Budo é o estudo da vida e da morte através de

uma prática física e mental. É o que nos afasta evidentemente da via

desportiva. Quem se situar no plano desta realidade, a da competi-

ção, não será senão uma pálida figura, não revelará frequentemente

mais do que um espírito estratégico... É por isso que, ao ler os textos

antigos, será necessário nunca esquecer o contexto da época — sé-

culos XVII e XVIII — ou a sua particularidade cultural, em que a es-

crita não obede-cia a uma lógica sistemática, nem a uma ciência pe-

dagógica.

Os autores escreviam de uma maneira intuitiva, servindo-se mui-

tas vezes, tal como o poeta, da assimilação dos fenómenos cósmicos...

É verdade que o espírito das Artes do Budo moderno é dife-

rente do das Artes do Budo antigas. O Budo é uma Via e, portanto,

uma disciplina, uma ciência, uma técnica cujos grandes princípios es-

XX

106

Page 109: Aikido

deis a primeira oportunidade de realizar o gesto seguinte. Hesitais,

pensais e, durante esta deliberação, o inimigo prepara-se para vos

abater. Trata--se de não lhe dar essa oportunidade. Basta-vos seguir

o movimento do Sabre que se encontra nas mãos do inimigo, man-

tendo a vossa mente livre de fazer o seu próprio encadeamento, sem

que a vossa reflexão intervenha. Deslocai-vos quando o vosso adver-

sário se desloca e isso conduzir-vos-á à vitória.

Isto — que se pode chamar a atitude mental de não-ingerência

— constitui o elemento mais vital na Arte do Sabre, tal como na prá-

tica do Zen. Se a distância entre duas acções for da espessura de um

cabelo, há interrupção. Quando batemos com as mãos, o som sai sem

hesitação. O som não espera, nem pensa antes de sair. Não há me-

ditação. Um movimento segue o outro sem que a mente consciente-

mente o interrompa. Se estais perturbados ou se reflectis sobre o que

convém fazer quando vedes o adversário preparar-se para vos matar,

estais a dar-lhe o lugar, isto é, estais a oferecer-lhe uma boa oportu-

ni-dade para ele desferir um golpe fatal. Que a vossa defesa siga o

ataque sem um momento de interrupção e não haverá dois movi-

mentos separados chamados ataque e defesa. O carácter imediato

da vossa acção levará inevitavelmente à derrota do vosso adversário

por ele próprio. Tal como um barco deslizando docemente sobre os

rápidos, no Zen e no Budo, um espírito que não hesite, nem pare,

nem se interponha, é precioso.

Referimo-nos muitas vezes no Zen ao relâmpago ou às faís-

cas que brotam do choque de dois sílex. Se entendermos isto no sen-

tido de rapidez, cometemos um grande erro. A ideia deve ser a da

instantaneidade da acção, a de um movimento ininterrupto de ener-

gia vital. Sempre que dais lugar à interrupção, num sector que não

está em relação vital com a circunstância, é certo e seguro que per-

deis a vossa própria postura.

Isto não significa, bem entendido, que desejeis realizar as coi-

sas rapidamente ou no mais curto tempo possível. Se tiverdes em vós

tal desejo, a sua própria presença constituiria uma interrupção.43

D. T. Suzuki comenta:

Esta via de não-interrupção, que se diz ser necessária ao do-

mínio da Arte do Sabre, é uma via de não-esforço ou de não-desejo

(…) Do ponto de vista da Arte, é uma arte de não arte. Os confucio-

nistas diriam: ‘Que diz o Céu? Que diz a Terra? Mas as estações vão

e vêm e todas as coisas crescem’. Os adeptos de Lao-Tsé (diriam): “É

o princípio de não-acção que move todas as coisas”. Ou ainda: “Os

raios giram, simplesmente porque o eixo não mexe”. Todas estas ob-

servações tendem a mostrar que o centro de gravidade da vida, em

todas as suas manifestações, sejam elas artísticas, poéticas, religiosas

ou dramáticas e desenrolem-se numa existência tranquila de estudo

ou de intensa actividade, permanece imutável. E, quando o consegui-

mos compreender, obtemos um estado de realização do Eu que se

exprime de uma maneira perfeita na vida e na acção.44

.2 Miyamoto Musashi

(1584-1646)

Os textos de Miyamoto Musashi que chegaram até aos nos-

sos dias dão-nos uma ideia aproximada, uma representação do que

poderia significar esta Via que, por definição e uma vez mais, só na

prática e no total empenhamento de si ganha verdadeiro sentido.

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107

Page 110: Aikido

do Fogo trata da Energia; e O Escrito do Céu (ou Escrito do Vazio) abor-

da a meditação45. Todos estes temas foram frequentemente reto-ma-

dos nos mesmos Kakemono.

Penso que seria interessante extrair algumas reflexões que con-

densam o seu pensamento.

A ideia das duas mãos

Manter o sabre com as duas mãos não é o elemento funda-

mental da Arte do Sabre. Ao pegar em dois Sabres, o objectivo é apren-

der a servirmo-nos de um Sabre com uma única mão. Ao início, toda

a gente tem enorme dificuldade em utilizar o Sabre com uma só mão,

porque ele é muito pesado. Mas à força de treino, consolidado pela

Via, torna-se mais fácil. O mesmo acontece com o tiro ao arco, ou com

outras armas...46

A ideia da maneira de agarrar o Sabre

Agarra-se o Sabre, mantendo o polegar e o indicador com le-

veza; o dedo médio não deve estar nem apertado nem relaxado; o de-

do anular e o mindinho devem estar, esses sim, bem apertados. É ne-

fasto haver um vazio no interior da mão47. É preciso agarrar o Sabre

com o espírito de cortar o adversário em dois. Quando rachamos o

adversário, a forma da mão não muda. Quando desviamos um golpe,

quando nos apoiamos no Sabre do adversário ou quando o bloquea-

mos, só o polegar e o indicador se deslocam ligeiramente...48

O movimento do Sabre

Quem tiver assimilado bem o movimento do Sabre acabará

por conseguir servir-se do Sabre apenas com dois dedos. Se se quer

deslocar o Sabre muito rapidamente, sai-se da regra e depara-se com

dificuldades. O Sabre deve ser movido calma e correctamente. Quando

se utiliza o Sabre tão depressa quanto um leque ou quanto um tantô

(punhal), não é possível atravessar um homem. Quando se golpeia de

Em Maio de 1995, ocorreu em Inglaterra um facto histórico

que poucos especialistas de Budo conhecem.

A Dai Nippon Butoku Kai organizou então um encontro pou-

co divulgado. Esta associação, criada em 1895, sediada em Kyoto,

herdeira do Butoku Den (criado no século IX), agrupa e supervisiona,

actual-mente, as Artes Marciais japonesas. Tem como presidente o

príncipe Higashi Fushimi, tio do actual imperador.

A cerimónia, na qual participou uma delegação portuguesa,

foi dirigida pelo Mestre Teshin Hamada, 9º Dan, Hanshi, presidente

da Divisão Internacional da Dai Nippon. O Mestre Hamada executou

um Kata muito antigo e examinou candidatos de várias disciplinas a

diferentes graduações Dan. Propôs, pela primeira vez, representantes

mundiais para dirigir os ramos nacionais da Dai Nippon Butoku Kai.

As graduações e a titularidade das representações foram, mais tarde,

ratificadas pelo Conselho de Hanshi, em Kyoto.

Mas voltando à cerimónia, aquela decorreu perante o

"Bokken" de Miyamoto Musashi, considerado tesouro nacional.

Miyamoto Musashi, aos 50 anos, tomou consciência de que

a Arte do Sabre era verdadeiramente um "Do". Poeta e excelente ca-

lígrafo, fundou um dojo, cujo ensino original foi a utilização simul-tâ-

nea de dois sabres, Nitô-ryû, um grande e um pequeno. Os seus due-

los tornaram-se rapidamente conhecidos em todo o Japão. A fim de

aperfeiçoar a sua arte, passou uma grande parte da vida a viajar, reen-

contrando pelo caminho numerosos discípulos. Aos 60 anos, escre-

veu o seu ensino sob o título Gorin no sho (Escritos das Cinco Rodas),

formados por cinco Kakemono (ou rolos manuscritos).

O primeiro, O Escrito da Terra, apresenta o sistema geral da

sua escola; depois, O Escrito da Água descreve sobretudo as técnicas;

O Escrito do Vento aborda a estratégia das diferentes escolas; O Escrito

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108

Page 111: Aikido

alto a baixo ou na horizontal, o Sabre deve ser conduzido segundo a

regra, os braços desenhando um movimento amplo.49

Podemos, aqui, abrir um parêntese a respeito do Aiki Do.

Muitas vezes vemos praticantes no tapete que utilizam a "ve-

locidade" sem ter assimilado a verdadeira profundidade do movi-

mento. Portanto, os seus Té-Katana50, para usar a expressão do meu

Mestre Nakakura, são como farinha.

Antes de passarmos a outros escritos, seria útil explicar aos

leitores ocidentais a significação japonesa de algumas noções.

Hyoshi

O Hyoshi é o espírito que se encontra em todas as coisas, de

uma simples pedra à imensidade das estrelas.

Segundo a tradição japonesa, é algo que se cultiva, que não

pode ser adquirido sem uma prática regular. Tal como o deslocar das

pedras pelo jardineiro, a fim de arranjar o jardim, exige uma prática

contínua. Do mesmo modo, o músico que toca regularmente o seu

instrumento possui o Hyoshi.

É também a integração das cadências que ligam ritmicamen-

te um ou vários sujeitos ao seu meio ambiente, no quadro de uma

actividade artística, que contribuirá assim para a harmonia do con-

junto.

Para Miyamoto Musashi, existe um Hyoshi particular para o

Sabre como para qualquer outra arma. No Sabre, o Hyoshi existe sob

uma forma concordante e uma forma discordante. É preciso saber

discernir entre o Hyoshi grande e pequeno, lento e rápido, o Hyoshi

do Ma (intervalo, distância). No combate, conhecendo o Hyoshi do

adversário, deve utilizar-se um Hyoshi com que ele nem sonhe, e ga-

nhar, fazendo surgir do vazio o Hyoshi da sabedoria.

Ni-No-Kochi-No-Hyoshi (o segundo Hyoshi da an-

ca)

Podemos compreender o Hyoshi em dois tempos...

Quando se está prestes a desencadear um ataque, caso o ad-

versário esboce logo um movimento de recuo ou de paragem, deve

fazer-se semblante de atacar; e caso o adversário reaja por uma ten-

são, devemos golpear um pouco mais tarde, aproveitando o momento

em que ele se distende.51

O movimento de Sekka (pedra e faísca)

A uma distância em que o meu Sabre e o do adversário mal

se tocam, é preciso bater extremamente forte, sem levantar o meu

sabre ... Para realizar esta técnica, é preciso ter força nas pernas, no

corpo e nas mãos. Com estas três forças, golpeia-se.52

De acordo com a descrição de Miyamoto Musashi, podemos

fazer uma comparação inesperada com o teatro. Com efeito, quan-

do um actor entra em cena, ele deve reunir todas as condições da ex-

pressão justa...

Ensino, muitas vezes, aos jovens actores, os rudimentos da

arte do Sabre. Através de uma simplicidade aparente, estas técnicas

são de uma grande profundidade.

A ideia do "corpo do Macaco mítico, Sukko"53

Antes de golpear o adversário, avança-se todo o corpo, co-

mo se não nos servíssemos dos braços. Quando se quer estender os

braços em direcção ao adversário, o corpo afasta-se instintivamente.

É por isso que é preciso avançar primeiro o corpo.54

Podemos ligar esta estratégia à posição de guarda – Waki

Kamae.

A ideia do "corpo de laca"

Tendo avançado para muito perto do adversário, a ideia é não

mais descolar, é permanecer colado, tal como a laca. Cola-se com for-

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109

Page 112: Aikido

máxima da Energia pura e imaterial.

Poderíamos fazer um estudo mais aprofundado sobre o som.

Mas não é esse o nosso tema nem o objecto das nossas reflexões.

Regressemos aos três sons do célebre Miyamoto Musashi, que

ele descreve assim:

Na guerra, utilizam-se três registos de voz. Um para o come-

ço, outro para o meio e outro para o fim. (...) No princípio do com-

bate, o som é exagerado; durante o combate ele é baixo e deve pa-

recer profundo; enfim, após a vitória, o som é forte e elevado. Num

combate a dois, a fim de fazer mover o adversário, faço semblante de

golpear, lançando um Kiai “Eï”, depois, executo a minha forma de ata-

que. Após ter golpeado o adversário, lanço o grito que anuncia a mi-

nha vitória. Não lanço o grito com força ao mesmo tempo que o meu

Sabre. Durante o combate grito baixo e ligeiramente a fim de me apoiar

nos Hyoshi.56

A propósito da velocidade

Creio que esta passagem é muito útil aos jovens praticantes

de Aiki Do.

Musashi critica a velocidade!

Este não é um caminho justo. O que se designa por rapidez é,

na realidade, não estar em dessintonia com o hyoshi de cada coisa.

Os gestos dos verdadeiros especialistas não parecem rápidos. Na dan-

ça ou no canto, quando um especialista e um principiante dançam ou

cantam em conjunto, o principiante tem sempre a sensação de estar

em atraso e o seu espírito torna-se apressado. O especialista que ba-

te ritmadamente o tambor, fá-lo calmamente, enquanto que o prin-

cipiante tem sempre a impressão de estar em atraso ... A rapidez é,

de facto, um desacordo com o Ma57. O gesto do verdadeiro especia-

lista antes parece lento, mas o Ma encontra-se preenchido e este nun-

ça a cabeça, o corpo, os pés, tudo. Habitualmente, no combate, tem-

se a tendência para avançar a cabeça e os pés, enquanto as ancas se

afastam. É preciso, pois, colar o corpo como a laca, sem nenhum in-

tervalo. É preciso reflectir nisto!55

Em Aiki Do, sabemos que os movimentos partem das ancas

(Koshi) que têm a sua origem ao nível da bacia. Os Mestres chineses

falam de "Rins". Quando a cabeça pende para a frente, perdemos o

nosso apoio "energético".

A ideia das três vozes (Kiai)

Aqui, Miyamoto Musashi fala do som. Ele utiliza três registos

de voz. Todos sabemos que o "grito" é uma primeira reacção peran-

te o perigo. O grito pode influenciar ou mesmo parar um ataque. Bem

conhecido das artes do combate tanto no Oriente como no Ocidente,

ele pode estar na origem do uso activo da voz humana como um ele-

mento maior do combate.

É preciso não esquecer que as legiões romanas e gregas co-

nheciam bem o efeito paralisante dos clamores que repentinamente

brotavam da profundeza dos bosques silenciosos.

Durante a última Guerra Mundial, os partisans do País Basco

tinham um grito bem estudado para passar à acção de combate.

Na Índia, ao contrário, não há grito (Kiai) como nas outras

Artes Marciais, como no Iai Do ou no Ken Do, grito que não apenas

"suspende", mas também liberta Energia (Ki).

Nas Artes Marciais indianas, o grito é silencioso! Ele vem das

profundezas do ser. O silêncio projecta uma energia subtil (bem co-

nhecida dos Yoguis) e o sopro liberta esta energia. Este grito emite

uma vibração que provoca um efeito extraordinário sobre o adversá-

rio, porque o silêncio (que é também uma força) está unido ao espí-

rito de que este é a raiz... Nestas técnicas indianas, há uma explosão

XX

110

Page 113: Aikido

ca parece apressado.58

A propósito do Céu ou do vazio

É no último capítulo dedicado ao Céu ou ao vazio que se en-

contra o essencial do ensino de Musashi.

O vazio não significa que nada exista ou que "nada" possa

ser objecto de conhecimento. O vazio não é igual a nada do que exis-

te. Ao conhecer o vazio, ficamos a conhecer, simultaneamente, tudo

o que existe e aquilo que não existe. O verdadeiro vazio não signifi-

ca apenas conhecer alguma coisa que é inexistente — isso é o espí-

rito transviado. Alguns, praticando o Sabre, sem conhecer o que é a

Via, falam do vazio quando chegam a um impasse. Isto não é o ver-

dadeiro vazio. O Bushi59 deve aprender a Via do Sabre de uma ma-

neira certa e treinar-se também nas outras Artes Marciais, aperfei-

çoando as suas acções, expulsando do seu espírito as perturbações,

não parando o treino nem um dia, nem uma hora; ele deve polir o

seu espírito, a sua vontade, a sua perspicácia e a sua capacidade de

observação. Afastada, assim, toda a nuvem de perturbação, o céu

torna-se claro. Eis onde se situa o verdadeiro vazio.60

Miyamoto Musashi também sustenta que aquele que não che-

ga a atingir o verdadeiro vazio se enganou no caminho...

.3 A arte de Ding

Os olhos abertos observam o trabalho Yang

Os olhos fechados contemplam o Yin secreto.

Chuang Tsé

Retrocedamos quase dois milénios para escutar a "arte de

Ding", pela pena de Chuang Tsé ou Zhuangzi, originário da cidade

de Mong, na actual província de Honan na China, e que terá vivido

cerca de 350 a 275 AC. Considerado um dos primeiros e mais signi-

ficativos intérpretes do Taoísmo, é conhecido sobretudo pela obra que

tem por título o seu próprio nome, Zhuangzi, também designada Nan-

hua cheching ("O Cânone Sagrado de Nan-hua").

Talhante na cozinha

ao serviço do Príncipe Wen Hui

Ding esquartejava um boi;

golpeando com a mão, pressionando com o ombro,

ajudando com o pé, empurrando com o joelho,

só sé ouvia huo! xiang!

o canto da faca

cortando as carnes em cadência,

quais os acordes da dança de Sanglin

ou as harmonias musicais de Jingshou.

— Oh! Ha! exclama o Príncipe. Excelente!

Que arte!

Pousando a sua faca, Ding, o talhante, respondeu:

— O vosso servo é um apaixonado do Tao

muito superior a todas as artes.

Quando começava a esquartejar os bois,

nada mais via do que o boi.

Após três anos,

já não via o boi como um bloco.

A minha abordagem é agora espiritual.

XX

111

Page 114: Aikido

nele fixo o meu olhar,

para ele avanço suavemente,

introduzo a faca com a máxima delicadeza,

e, de um golpe, a articulação desmembra-se

qual torrão atirado ao ar e que cai na terra.

Tiro a minha faca, endireito-me,

dirijo o meu olhar para as Quatro direcções,

repouso, satisfeito.

Limpo a faca, coloco-a no estojo.

— Excelente! exclama o Príncipe Wen Hui.

Acabo de aprender com o talhante de cozinha Ding

como manter a vida.61

Tão interessante quanto este texto de Chuang Tsé, cuja ver-

são francesa pertence a Claude Larre e Elisabeth Rochat de la Vallée,

é a leitura e os comentários que sobre ele tecem estes dois sinólogos.

Fazendo apelo a obras anteriores e posteriores à de Chuang Tsé, de-

sig-nadamente Tao Te King, de Lao Tsé, e Huainanzi, tratado eclécti-

co do século II AC, escrevem:

Aquele que sabe ver e encarar as coisas ou os seres tais como

eles são, no seu modo de ser, habita a realidade. Ele conhece as es-

truturas naturais que determinam as formas vivas e o seu destino.

Visionário, não lhe falharia uma via de acesso, uma passagem

no que aos olhos de um neófito aparece como uma massa compacta

de matéria, tendo forma e visibilidade, mas que, realmente, é com-

posta e sustentada por aquilo que não tem forma nem visibilidade: o

vazio. O vazio não é uma ausência. É o conjunto das comunicações e

dos movimentos de sopros; onde os sopros passam, passam facilmente

E já não vejo com os olhos.

A percepção sensível e o conhecimento mental

deram lugar ao impulso do espírito.

Partindo da organização natural,

começo o trabalho pelas grandes fissuras,

deslizo através das grandes cavidades,

aceito a realidade tal como ela se apresenta;

operando assim, jamais deparo com um tendão,

e por maioria de razão com um grande osso.

Um bom talhante, porque talha,

muda de faca todos os anos.

Os outros talhantes, porque despedaçam,

mudam-na todos os meses.

Eu, eu tenho esta faca há dezanove anos;

esquartejei milhares de bois,

e o seu gume permanece novo,

como se tivesse acabado de vir da pedra de amolar.

Cada articulação tem um espaço vazio,

o gume da faca não tem espessura.

Se se insere aquilo que não tem espessura

onde um vazio existe

o gume tem todo o espaço para se mover

com inteiro à vontade.

É assim que após dezanove anos,

o gume da minha faca

está novo como à saída da pedra de amolar.

Somente, cada vez que chego a um nó,

pondero a dificuldade.

Contenho-me e concentro-me,

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112

Page 115: Aikido

os Espíritos, se lhes não pesar o fardo de uma conduta desviante.

Onde passam Espíritos e sopros, passa aquilo que tem a mesma sub-

tileza: o gume da faca. Ding é um Mestre do vazio.

O gume não tem espessura: se se afia uma lâmina, o seu fio

é quase imperceptível. Mão e coração podem tornar espesso o gume

pela ideia grosseira que dele se tem, ou pela incapacidade de asse-

gurar sem solução de continuidade o encadeamento do coração, do

braço, da mão, da faca e das vias oferecidas na espessura das carnes

e no oco da articulação.

Com igual facilidade, o grande pintor empunha a brocha ou

o pequeno pincel de três pelos para transcrever o Universo em cada

uma das suas telas.

Informado pelos seus Espíritos, a imperceptível passagem tor-

na-se numa grande fissura e o ínfimo orifício numa grande cavidade.

A faca passa pelas vias naturais da organização viva. Ela desliza sem

raspar, fazendo ‘huo’ e ‘xiang’, não tocando as paredes, não se gas-

ta, encontrando sempre a enfiada das aberturas à sua frente, jamais

entra em choque onde não há acesso e, portanto, não se parte so-

bre um osso ou sobre um tendão inesperado.

Como a água, que é leve e se adapta, insinua-se por todo

o lado sem oferecer resistência e à qual nada pode resistir.

(…) A água é modelo de vida. A faca é uma metáfora da vi-

da pessoal.

Os talhantes inábeis gastam ou partem a sua faca, tal como

aqueles que, não sabendo estimar a vida, a dissipam ou a destroem.

As duas maneiras de interromper prematuramente a vida consistem

em delapidar a sua essência e os seus Espíritos, tanto por fricções con-

tínuas e conflitos, como por choques com o que se viu mal ou mal

calculou; ou então em se submeter a um esforço ou a uma tensão

tais, que, qual corda violentamente esticada, se rompe o Arco de Vida.

Os maus talhantes trabalham com demasiada força e apres-

sa-damente; agridem o boi; precipitam-se, sem se dar ao trabalho de

olhar ou escutar. As suas facas caem sobre um osso no qual se par-

tem. Actuam não importa como, sem respeitar as linhas de força das

estruturas naturais, por vezes, guiados exclusivamente pela oposição,

atraídos pela resistência. Talvez evitem os grandes escolhos e os gra-

ves erros, mas nunca os atritos que desgastam e fazem envelhecer

prematuramente. Eles embotam a sua faca; enfraquecem a acutilân-

cia do seu gume; perdem a clareza do seu espírito e a vitalidade do

seu corpo; inconscientes dos pequenos estragos, nem se preocupam

em encontrar-lhes remédio, nem em corrigir-se, tomando-se por sá-

bios quando não chocam com um grande osso. Eles não durarão.

Ding utiliza o mesmo cutelo desde há dezanove anos, sem es-

tragar o seu gume; a perfeição do seu gesto evita todo o choque, to-

do o esforço. A lâmina é a nossa vida: não a desgastemos, nem a for-

cemos; conduzamo-la para onde ela se dirige por si mesma; e não fa-

çamos contra nós próprios o que não ousaríamos fazer a outrem.

Evitemos os confrontos, os conflitos, as rivalidades e as provas de for-

ça. Para quê esgotar antes do seu fim uma vida para a qual não exis-

te uma pedra de amolar que a possa regenerar!

Ding sabe durar; ele tem a “Longa vida e a visão perene”.

Dezanove anos são disso símbolo. Se adicionarmos Dez, número do

homem na sua perfeição, a Nove, número dos sopros que formam

territórios organizados, obtém-se Dezanove. Dezanove exprime a per-

feição de actividade e de governo a partir de uma organização cen-

tralizada e de uma autoridade bem centrada62. Atribuindo ao núme-

ro Dez a totalidade de um ser composto, tomado na sua unidade, e

ao número Nove, a organização dos múltiplos elementos deste ser,

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Page 116: Aikido

mesmo um pai pode ensinar isto a um filho.

E concluem:

O vazio é a coisa mais bem partilhada e a mais necessária do

mundo. Nenhuma actividade do coração ou da mão pode efectuar-se

sem o vazio, sem o espaço livre. O cap. 11 de Lao Tsé repete-o por

três vezes. O mesmo se passa com o Céu, com a Terra e com o Homem.

O vazio é disponibilidade e possibilidade. O agir que ele permite é na-

tural; aquilo que se faz, faz-se por si e nada ofende. Mas é preciso

aceitar a submissão a este natural, a limpeza até ao osso, a desagre-

gação, para realmente manter a sua vida. Porquê? Porque o vazio é o

agir natural...63

Alonguei-me na transcrição do texto de Claude Larre, padre

jesuíta, professor no Instituto Ricci de Paris, e de Elizabeth Rochat de

la Vallée, autora de numerosos textos filosóficos, dada a sua enorme

riqueza.

Ele transmite-nos uma reflexão sobre a arte de viver, em ple-

no centro da Via (Do), curiosamente, muito próxima da que, vários sé-

culos depois, Miyamoto Musashi, veio a fazer.

A via do Budo não é como a da Vida? Quanto mais procura-

mos mantê-la de qualquer forma e a qualquer preço, mais a perde-

mos. Não seria melhor protegê-la com subtileza e respeito?

Neste estudo, a reflexão sobre o vazio não poderá em caso al-

gum evocar as diferentes correntes de pensamento relativas à "noção

do vazio".

Através do Budismo, a lógica do vazio defendeu diversos con-

ceitos. Enquanto na escola do pequeno Veículo (Hînayâna), o vazio

era um atributo só das pessoas, já na do grande Veículo (Mahâyâna)

o vazio era extensível a todas as coisas. Em todas as disputas orató-

obtém-se dezanove: na sua coesão de conjunto quase indistinta, to-

dos os elementos da composição são conhecidos; a decomposição

não impede a manutenção da Unidade.

Tudo o que deixa rasto mostra que ele não foi capaz de ser

subtil e não foi capaz de passar sem raspar, sem deixar um pouco de

si mesmo. O mau condutor deixa traços de tinta nas paredes da sua

garagem; os dirigentes medíocres multiplicam leis e decretos e can-

sam--se a explicá-los e a justificar-se.

“Os soberanos, no Tempo da Grande Virtude,

Da sua existência os súbditos mal se apercebiam…”

(Lao Tsé 17)

“Quem bem caminha não deixa rasto”

(Lao Tsé 27)

Recorrendo a uma outra obra, o Huainanzi, cap. II, que resu-

me a "arte de Ding", os dois sinólogos passam a citar:

Tu, o talhante, esquartejaste numa manhã nove bois e a tua

faca podia ainda rapar os pêlos.

Ding, o cozinheiro, serviu-se da sua faca durante dezanove

anos e o gume continuava ainda como se acabasse de ser aguçado.

Como era possível? É que eles moviam-se livremente nos in-

terstícios de numerosos vazios.

Se o compasso e o esquadro, a agulha e o fio são os instru-

mentos da habilidade, eles não constituem a sua razão de ser...

O bom artesão acciona sucessivamente as molas que os in-

fluxos libertam; entrincheirado no Yin, guiado por uma percepção

confusa, ele penetra a maravilha no Obscuro. Em total acordo com

os Espíritos, mão e coração movem-se livremente entre os incontá-

veis vazios, sem nunca serem parados pelos limites dos seres. Nem

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Page 117: Aikido

rias, os adeptos do Mahâyâna diziam aos membros do Hînayâna: "Para

vós, todas as coisas são como um tonel vazio. Para nós não há to-

neis".

Os praticantes ocidentais do Budo não estão sensibilizados à

mística de uma vacuidade espiritual. Frequentemente, confundem

"vazio" com o nada ou o espaço que nos rodeia. E, no entanto, nu-

merosas referências ensinam-nos o vazio. Ela, a vacuidade, não é es-

tranha ao pensamento do Ocidente. Símbolos, parábolas, místicos,

artistas tentam apoiar este objectivo.

A afinidade espiritual que liga os investigadores tanto orien-

tais como ocidentais faz com que todos eles saibam que o "vazio es-

piritual" não é o nada, nem a angústia. Falar do vazio é um desafio

àquilo que é objectivo, ao próprio bom senso das certezas quantas

vezes provisórias...

"Procurar uma imagem do vazio é um non-sens; mas a con-

ver-gência de várias imagens pode indicar o sentido, o bem fundado

de uma pesquisa que escapa assim ao absurdo."64

No Oriente, falar do inefável não é um acto contraditório. O

uso das imagens não é a ilustração do que já existe, do que é dado,

garantido, mas o meio de fazer aparecer o que é bem real e não dei-

xa de advir. Esta lógica poética revela a presença e a força irradiante

de uma realidade que permanece misteriosa porque a sua plenitude

é inesgotável.

As imagens do vazio sugerem ao espírito que esta vacuidade

é efectivamente plenitude.

.4 História chinesa da dinastia Song

(O encontro da “Arte do Movimento com o pincel do pintor”)

Um velho Mestre chinês, encontrando um jovem pintor na

floresta, perguntou-lhe:

— Sabeis pintar?

— Sois um velho camponês ignorante. Que sabeis de pintu-

ra?

— Como podeis conhecer o que trago no coração?, replica

o Mestre.

O jovem pintor sentiu-se envergonhado e surpreendido.

A primeira condição para pintar — diz o Mestre — é seguir

seis regras essenciais e estas mesmas regras aplicam-se também à

Arte do Sabre.

A primeira chama-se Chi65 (espírito ou energia vital); a segunda

Yun (correspondência ou harmonia); a terceira Si (pensamento ou pla-

no - desígnio); a quarta Sing (efeito de paisagem); a quinta Bi (pin-

cel); a sexta Mo (tinta).

O espírito permite ao pensamento seguir os movimentos do

pincel e fixar sem hesitação a forma das coisas.

Das formas correctas e perfeitas, resulta a harmonia. Destas

formas, o pensamento faz surgir o essencial.

A paisagem constrói-se observando a lei das estações. O pin-

cel deve seguir regras, permanecendo contudo livre e espontâneo no

seu movimento, de modo a que todas as coisas pareçam animadas e

movediças. A tinta pode ser carregada ou clara, espessa ou diluída

conforme a profundidade e a doçura das coisas; a cor deve ser de tal

modo natural que não pareça ser o resultado dos pincéis.

Um pintor perfeito, realizado, não faz nenhum esforço para

exprimir espontaneamente as variações da Natureza. Um pintor pro- XX

115

Page 118: Aikido

41. Chuang Tsé escreve-se, na norma francesa, Tchouang Tseu, na norma britânica,Chuang-tzu e, na transcrição oficial chinesa Pinyin, Zhuangzi. Sobre este filósofochinês taoísta, v. mais adiante.

42. Shûnya é um termo filosófico do sânscrito que designa a «vacuidade». Nós pode-ríamos traduzi-lo aqui por «espírito apropriado». Esta sabedoria adquire-se intuiti-vamente após uma prática do Budo rigorosa. A prática do Sabre «imutável» signifi-ca o alto grau de mobilidade em torno de um centro imutável.

43. Transcrito por D. T. Suzuki, Essais sur le bouddhisme Zen, Paris, Albin Michel, 1934,reed. 1972, pp. 362-363.

44. Idem, p. 363-364.

45. Miyamoto Musashi, Ecrits sur les cinq roues (Gorin no sho), Paris, Maisonneuve etLarose, 1977.

46. Miyamoto Musashi, op. cit.

47. Ou ainda, em Aiki Do, para aquele que agarra (Aité). Compreender como se agarraum punho exige, por vezes, numerosos anos. E o mesmo se passa, no Judo, com apega do kimono (Kumi Kata).

48. Miyamoto Musashi, op. cit.

49. Miyamoto Musashi, op. cit.

50. Em Té-Katana: Té significa mão; Katana - Sabre.

51. Miyamoto Musashi, op. cit.

52. Miyamoto Musashi, op. cit.

fundo penetra com o seu pensamento a Natureza e cada coisa que

existe no Céu e sobre a Terra.

O pincel entregue a si mesmo (sem pensamento) caracteriza

o pintor hábil. Ele diz que a realidade não é suficiente para ele. Mas

ele nada sabe do movimento espontâneo nem do Chi.

53. Sukko: macaco mítico com braços muito curtos. O mito do macaco pode resumir-secomo segue: trata-se de um mágico malicioso, que dissimula os seus poderes, oprimeiro dos quais é a inteligência, sob aspectos caricaturais.

54. Miyamoto Musashi, op. cit.

55. Miyamoto Musashi, op. cit.

56. Miyamoto Musashi, op. cit.

57. Neste caso, ao falar de Ma, trata-se do intervalo temporal numa cadência.

58. Miyamoto Musashi, op. cit.

59. Bushi significa Samurai.

60. Miyamoto Musashi, op. cit.

61. Tanto a epígrafe como o poema de Chuang Tsé são retirados de Claude Larre eElisabeth Rochat de la Vallée, De Vide en Vide. Zhuangzi – La conduite de da la vie,cit., p. 7 e pp. 37-39.

62. Em Zhuangzi, cap. 11, Huangdi, o Imperador Amarelo, governava há dezanoveanos quando se faz admoestar pelo eremita Guang Cheng, ao qual tinha ido pedirconselho. Após três meses de reflexão e de purificação, Huangdi regressa a GuangCheng a fim de receber o seu ensino (A nota é de Claude Larre e E. Rochat de laVallée).

63. Claude Larre e Elizabeth Rochat de la Vallée, op. cit., pp. 55-59.

64. Maurice Cocagnac, Le Zen, cit., p. 134.

65. Em japonês Ki.

XX

116

Page 119: Aikido

Ensinar a Arte do Movimento é coisa grave. Está-se menos na

zona do corpo do que no domínio do espírito.

O corpo do Mestre é um lugar de acto de conhecimento e sa-

bedoria, de contacto e de amor, de mistério.

O lugar da acção, do acto...

O Mestre da Arte do Movimento é um homem que ensina

através da sua acção, rodeado de praticantes que não são passivos,

mas observadores-executantes. Não são consumidores passivos, fa-

zem parte do jogo. Nele contam participar e dele tirar proveito. O

Mestre deve estabelecer com eles uma dupla relação de parceiro/ exe-

cutante na qual o seu corpo é o mediador privilegiado.

Ele vai tentar conduzi-los ao longo de uma viagem, através

de um caminho. É uma experiência delicada.

O Mestre faz propostas de movimentos que, em princípio,

não estão repertoriados no Go Kyo66, e que é preciso enunciar e des-

cre-ver, pelas palavras e pelo acto do corpo. Quanto mais avanço no

meu próprio trabalho, mais penso que a descrição oral é importante.

Ela é um meio de afastar uma reprodução mimética, mecâ-

nica e mecanicista do movimento, e um instrumento para orientar a

pesquisa no sentido de uma verdadeira criação, do domínio do uso

do movimen-to e no da tomada de consciência do corpo através do

movimento.

Mas o momento em que o enunciado passa pelo corpo não

é menos importante. É-o até talvez mais, no caso em que nos servi-

mos do enunciado oral, porque mais raro e mais esperado pelos pra-

ticantes.

Este momento é muito particular. Não se trata de executar

um movimento que os outros tentam imitar ou reproduzir por mi-

metismo. O Mestre não pede que se identifiquem com ele, nem que

XXI

117

XXIo m e s t r e , a r t e s ã o s e m o b j e c t o

Page 120: Aikido

a reflexão. Pode desfrutar-se a sua acção, o que nem sempre aconte-

ce num trabalho livre. Esta absorção na acção (que não é projecção

da acção em si mesma) está próxima da do artesão que roda o seu

pote, do pintor que pinta a sua tela e... que frequentemente força o

silêncio...

Mas o Mestre do Movimento, que fabrica ele? Nada. O mo-

vi-mento que ele indica não é feito para durar. Não é uma coreogra-

fia. É apenas uma efémera proposta que em breve desaparecerá. Tal

como o mineiro cavando a sua galeria, o poceiro furando o seu poço,

o Mestre como que escora o espaço, na impossibilidade do recome-

ço ou da expansão do movimento, o que, perante ataques fortes, tor-

na o gesto simultaneamente frágil e definitivo. Ele é um artesão sem

objecto. É uma consciência em acção.

O Mestre é um livro aberto, uma memória em total e contí-

nua transformação. Ajustamento, actualização, estaleiro.

O que ele contém não é definitivo, mas evolui com o trabalho

e com o tempo. A idade tem o seu peso nesta necessária adaptação

ao instante, fonte de riquezas e não de dificuldades. Livro aberto na pá-

gina de hoje. O importante é o que se vive e o que se diz no dia a dia.

Os anos de estudo, as práticas, as técnicas, as escolas, as ex-

periências marcaram este corpo, mas já não são senão vestígios.

Latentes, aparecem no momento próprio. Por vezes, vindo de muito

longe, emergem numa subtil conexão com coisas de outrora. Estes

conhecimentos antigos não se impõem a um Mestre que também não

os impõe aos outros. Eles não são o seu principal trunfo e apenas in-

tervêm como uma espécie de auxiliar de memória que corrobora a ex-

periência. O Mestre mostra mais experiência que saber. Sendo um prá-

tico, não impõe uma ciência, uma escola, um estilo. Antes propõe uma

prática.

reproduzam diante de si a sua imagem como num espelho, mas que

encontrem a sua própria identidade através de um movimento que

ele propõe, que ele enuncia com o seu próprio corpo e de que os pra-

ticantes vão tentar apropriar-se.

Um verdadeiro Mestre não se projecta, não se exibe.

Não é ele que vai em direcção aos outros, mas são os outros

que vêm a si. O olhar dos praticantes lêem o corpo do Mestre atra-

vés do "movimento" — o Mestre enuncia o movimento com o seu

corpo.

Os praticantes mais antigos como que o trespassam e lhe fil-

tram o movimento. É um olhar de "conciliação" com ele.

Em contrapartida, o Mestre fala em particular a cada um dos

que o rodeiam.

O Mestre não submete o seu movimento a um espartilho, ele

evolui em liberdade no espaço ilimitado (Aiki Nage).

Intimidade da presença. Para entrar neste jogo, é preciso atin-

gir um estado de fazer sem fazer, que é uma abstracção do Eu.

O Movimento que se enuncia e que o corpo descreve não é

passível de artifícios ou emendas; aparece em estado puro, sem es-

córias, nem romantismo. O bom executante no tatami tende a tor-

nar-se tecni-cista, a carregar o traço, a sobrecarregar o movimento.

O Mestre, ao contrário, joga no menos. Menos intenção, portanto,

menos tensão e menor exteriorização. O corpo do Mestre procede

por omissão, e, contudo, ele está ali na evidência do seu enunciado,

sem emoção, sem paixão.

Sobre o tatami, o praticante não saberá por si próprio se pra-

ticou bem ou mal. A memória da sua prática é frequentemente fal-

sa.

Em pedagogia, sabe-se o que se faz. Dá-se uma pausa para

XXI

118

Page 121: Aikido

No plano puramente físico, ao seu corpo apenas resta aquilo

que é estritamente necessário ao movimento profundo. Pouco a

pouco, tudo o que é superficial se desvanece. Fica qual planta poda-

da. O Mestre está em posição de aprender a cada instante. O seu en-

sino ensina-o.

É preciso muito abandono para atingir este estado. "Está-se

no autêntico"!

Esta transformação deve imperativamente desembaraçar-se

a todo o momento da fatalidade do "estático".

Um Mestre não se satisfaz com a acumulação do saber. Deve

entrar no caminho da metamorfose. Assim, permanece na constan-

te experiência da intuição, no seu sentido de conhecimento claro,

imediato, da verdade, sem auxílio do raciocínio. Não concebe a prio-

ri, inventa no momento.

Vai direito ao objectivo.

Picasso diria: "Ele não procura, encontra". É um corpo em es-

pírito.

A conexão, lugar de contacto e de amor

O que se ensina é menos importante do que aqueles a quem

se ensina. Prioridade, portanto, à relação com os outros. A presença

do nosso corpo pode tornar-se ambígua.

Um corpo dirige-se a um outro; a proximidade dos dois, o seu

contacto, deliberado ou fortuito, cria uma intimidade que importa

avaliar, medir, ajustar e explorar sabiamente.

O tocar, se tocar existe, é subtil. O mais profundo do homem

é a pele, diria um especialista, e quem nela toca corre o risco de atin-

gir o outro. Este tocar não é nem demasiado doce, nem demasiado

duro, nem adulador, nem reprovador. Não afaga com demasiada sua-

vidade, nem corrige com excessiva dureza. Os grandes Mestres do

Movimento dizem que quando se pousa a mão sobre alguém, não é

apenas o corpo que se toca, mas também a alma. O tocar guia e orien-

ta o movimento de um músculo, de uma articulação, de um segmento,

não é uma manipulação.

O contacto não é amoroso, nem terapêutico. Ele não deve

magoar, o que correria o risco de criar ainda mais tensão e provocar

bloqueios e rejeição. O Mestre não é um terapeuta. Não tem receitas

preconcebidas, poções mágicas, remédios miraculosos. Também não

é um treinador. O que ele propõe não é um training, palavra horrível,

porque veículo de uma velha herança desportiva totalmente inade-

quada à Arte do Movimento. O Mestre age na qualidade. Não apela

à boa vontade, à coragem, à resistência. Não é um domador. Não uti-

liza o chicote, nem o torrão de açúcar.

O seu modo é o do tacto, do contacto, da escuta objectiva.

A sua voz segue o diapasão do seu corpo. Usa mais a sugestão do

que a imposição. Apela às imagens que abrem as portas ao movi-

mento.

Corpo a corpo pacífico, sem complacência, nem excessivo ri-

gor. Trata-se de uma relação de confiança e respeito mútuos.

Aqui, estamos de novo no campo da intuição, mas no seu

sentido segundo, de faculdade de prever, adivinhar, prevenir, como

se evita um acidente. O corpo do Mestre, adivinho, detector dos pos-

síveis, é um corpo de presença e de atenção. Ele é travessia. Não se

dirige à emoção. Vai direito à consciência. Fala à escuta.

XXI

119

Page 122: Aikido

Aprende sem cessar consigo e com os outros. Um discípulo

dizia ao seu Mestre: "A minha arte encontra novas fontes de inspira-

ção, ao ver-vos exercer a vossa". E o Mestre, sorrindo, respondia-lhe:

"A minha arte encontra novas fontes de inspiração, ao ver-vos exer-

cer a vossa".

Ele é o aprendiz-sábio. Não tem o espírito do especialista,

centrado no ter e no saber. Chega a acontecer-lhe desejar possuir me-

nos para ser mais. A intuição condu-lo à essência do devir e à cons-

ciência do que é.

Arquitecto do vazio, escultor do invisível, faz vibrar a imobili-

dade, faz deslocar o espaço; ele é demiurgo. É o mensageiro do enig-

ma. O corpo do mestre é então a simples projecção do seu espírito. O

seu pensamento faz-se movimento e o seu movimento pensamento.

É um lugar de passagem, um não-lugar. E se se recorrer à imagem do

pedagogo, daquele que conduz a criança na escola, então ele é a crian-

ça, é o caminho, é a escola.

É o príncipe dos principiantes.

O corpo do Mestre, lugar de alquimia

poética e de metamorfose

Do movimento proposto, indicado, descrito, os movimentos

do Mestre sugerem o todo e as partes, a génese e o resultado, o den-

tro e o fora, as raízes e a flor. Ele dá o múltiplo no um. Revela o inte-

rior e o exterior, revela, como o mestre de Nô de que Zeami fala, a

beleza visível da flor — hana— e a beleza invisível ou secreta, con-

tida ou escondida, a beleza profunda — yûgen.

A beleza do Mestre, que emana da idade, é a beleza das coi-

sas vivas que chegam ao seu termo, a beleza tranquila da velhice, a

que no Japão se chama rogaku.

Por uma subtil combinação — yang/ying — ele possui ao mes-

mo tempo a força viril e o encanto feminino. Aproxima-se da graça.

O que irresistivelmente atrai neste corpo em acção: a certeza

de que quem o vê experimenta ser conduzido para um lugar primor-

dial e assiste ao nascer do movimento. Trata-se de criação. A intensi-

dade da solidão em que ele se move dá uma força incomensurável

ao seu acto; o movimento é então a única coisa que existe, como se

ele jogasse todo o seu ser.

Situa-se totalmente no instante.

Não recita um texto, nem elabora um texto para o dia de ama-

nhã. Pleno de passado, projectado para o futuro, o discurso que ex-

prime é fugaz, pertence por inteiro ao tempo do presente. É uma es-

pécie de meditação.

Assim, o corpo do Mestre do Movimento é um corpo de ac-

to, de pensamento, de amor e de mistério. É um mestre construtor,

mas de uma maestria singular. É um mestre construtor sem constru-

ção.66 No entanto, uma grande maioria de professores ensina movimentos repertoriados,

onde apenas é mudado o encadeamento...

XXI

120

Page 123: Aikido

Ai Ki

Ai significa Harmonia e Ki significa Energia. Poderíamos dizer que são

os elementos base de toda a arte do movimento.

Aiki Do

Termo japonês significando literalmente "Via de combate da divina

harmonia". É uma "Via marcial" fundada em 1936 por Morihei

Ueshiba, que se caracteriza pela sua enorme flexibilidade e pelo seu

carácter defensivo e não violento. Visa, acima de tudo, o desenvol-

vimento espiritual de quem o pratica.

Aiki Do de Conciliação

Aiki Do que privilegia a comunhão com o Universo.

Aiki Do de Consolidação

Aiki Do em que predomina a noção física desportiva e em que se es-

quecem os princípios espirituais da Arte.

Aikidoca

Praticante de Aiki Do com vários anos de experiência.

Aikikai

Mestre Morihei Ueshiba, após ter sido reconhecido pela Dai Nippon

Butoku Kai, começara a ensinar o Aikido e fundara o Dojo Kobukan

em 1931. Em finais dos anos 50, Kisshômaru Ueshiba, terceiro filho

de Morihei Ueshiba, cria a Aikikai, Dojo Honbu, com sede em Tóquio,

que sucede ao Dojo Kobukan. A Aikikai funciona também como cen-

tro da Federação Internacional do Aiki Do.

Aiki Nage

Projecção que obedece aos grandes princípios do Ai Ki, em que se

conjugam a harmonia (Ai) e a Energia (Ki).

Aité

Literalmente, é a mão que está perante mim. Na pedagogia do Aiki

Do, é utilizado para designar o parceiro.

Asana

São posturas do Yoga que devem ser executadas e mantidas com con-

forto e firmeza (sukha + stira).

g

121

g g l o s s á r i o

Page 124: Aikido

Chuang Tsé ou Zhuangzi

É uma das principais e mais antigas obras taoístas que tem por título

o nome do seu autor Chuang Tsé que viveu no Norte da China, no sé-

culo IV AC. Esta obra, também conhecida por Nan-hua chenching ou

Nan Houa Tchen King (O Cânone Sagrado de Nan Hua), compre-en-

dia, sob a dinastia Han, 52 capítulos. Hoje, só engloba 33. É formada

por histórias simbólicas, fábulas de fundo moral e debates contradi-

tórios. A ortografia do título Chuang Tsé é variável: Chuang Tsé,

Tchouang Tseu, Tchouang Tzu, ou ainda, na transcrição oficial chine-

sa, Pinyin, Zhuangzi. O mesmo acontece com o nome do autor.

Cinestesia

Vem do grego Kínesis. É o sentido pelo qual se percebem os movimen-

tos musculares, o peso e a posição dos membros.

Dai Nippon Butoku Kai

Associação criada em 1895 e sediada em Kyoto que, actualmente,

agrupa e supervisiona as artes marciais japonesas. Tem como presi-

dente o príncipe Higashi Fushimi, tio do actual imperador. A sua Divisão

Inter-nacional é presidida pelo Mestre Teshin Hamada, 9º Dan, Hanshi.

Dan

Grau, graduação.

De Ai

Espaço harmonioso do encontro em que tudo se decide.

Dharana

Termo sânscrito que significa fixar a mente num só ponto. Corresponde,

aproximadamente, a concentração.

Dharana-Yukta

Termo sânscrito que designa o processo pelo qual é dada uma direc-

ção precisa à mente, depois de esta se ter libertado de todas as dis-

tracções.

Bi

Termo chinês que designa pincel.

Bokken

Sabre de treino japonês feito de madeira dura.

Brahman

Termo sânscrito que significa sagrado. De forma simplificada, pode-

mos dizer que é o Deus supremo do hinduísmo primitivo, criador do

mundo, dos deuses e dos seres.

Buda

Termo sânscrito, que significa Sábio, Iluminado. Nome pelo qual fi-

cou conhecido, entre outros, o príncipe Siddhartha Gautama, que

criou uma nova religião e filosofia, o budismo. Originário do Norte da

Índia, viveu no século VI AC.

Budo

Bu significa marcial e Do via. Budo é a "Via marcial", cujo objectivo

é contribuir, pelo treino no combate com ou sem armas, para o de-

senvolvimento espiritual daqueles que o praticam.

Bushi

Palavra japonesa que significa guerreiro.

Chitta bhiumi

Modalidades da consciência ou planos mentais. Viyasa distingue cin-

co estados da consciência: Kshipta (dispersão); Mûdha (confusão);

Vikshipta (estabilidade imperfeita); Ekagra (fixação); Nirodha (imobi-

li-dade). Apenas os dois últimos pertencem ao Yoga, isto é, decorrem

da meditação (Dhyana).

g

122

Page 125: Aikido

Dharma

Termo sânscrito, significando, literalmente, aquele que suporta. A Lei

cósmica, a Ordem universal ou Ordem transcendental a que os ho-

mens estão sujeitos. Designa, por extensão, a doutrina do Buda, sen-

do Buda uma emanação do próprio Dharma.

Dhyana

(ver Zen)

Do

Termo japonês que designa a Via, o Caminho. Equivalente ao chinês

Tao ou Dao.

Dojo

Palavra japonesa significando literalmente "o lugar da Via". O dojo é

a sala onde se praticam as artes marciais.

Dojo Budokan de Portugal

Foi o primeiro Dojo fixo criado em Portugal por George Stobbaerts,

em Cascais, em 1971. Nele se ensinaram e praticaram a meditação

Zen e várias Artes Marciais, concretamente, Kendo, Iai Do e Aiki Do.

Ekagrata

Modalidade da consciência que conduz ao estado de concentração

(Dharana)

Escola Ten Chi International

Associação criada em 1992 por Georges Stobbaerts e por alguns dos

seus alunos espalhados pelo mundo. Sediada na Várzea de Sintra, é

aqui que se situa o seu principal Dojo. Nele se praticam, regularmen-

te, a meditação Zen, Yoga, Tenchi Tessen e Aiki Do. Durante os está-

gios internacionais, está aberto à caligrafia e ao estudo das vozes,

bem como à prática de outras artes marciais: Iai Do, Kendo e Jiu Jitsu.

Geiko

Tipo de prática em que a concentração desempenha um papel fun-

damental.

Go Kyo

Termo japonês que designa o conjunto das técnicas base do Aiki Do.

Gorin no Sho

Obra também conhecida por "Escritos das Cinco Rodas" ou "O Livro

dos Cinco Anéis", que condensa o ensino do Mestre de Sabre Miyamo-

to Musashi (1584-1646).

"Grande Veículo" (Mahâyâna)

Corrente budista, que remonta ao século I ou II DC, e que poderia

traduzir-se por "grande meio de progressão". Ela virá a ser dominante

no Tibete, Mongólia, China, Coreia, Japão e Vietname.

Haku

(ver Ko Kyu)

Hammi

Termo japonês que designa posição de guarda de perfil. Há duas po-

sições de guarda deste tipo: Migi Hammi (posição de guarda à direi-

ta) e Hidari Hammi (posição de guarda à esquerda).

Hana

Beleza visível.

Hara

Termo japonês que remete para a noção de centro do corpo, mas que

não faz obrigatoriamente referência à geometria.

Haragei

Expressão japonesa que vem do termo Hara. Corresponde a um es-

tado de maturidade em que a sensibilidade e a Energia têm a possi-

bilidade de se manifestar a qualquer momento.

g

123

Page 126: Aikido

Judo

À letra a "Via da flexibilidade". Arte marcial criada no fim do século

XIX por Jigoro Kano. Cedo se tornou modalidade desportiva de com-

petição.

Kaiten Nage

Projecção de Aiki Do em que a energia do ataque é absorvida por um

movimento de rotação horizontal, a que se segue um movimento de

rotação vertical que gera o desequilíbrio.

Kake

Execução, o momento da projecção.

Kakemono

Rolos manuscritos.

Kalaripayat

Arte marcial, originária do Sul da Índia, praticada nos meios campo-

neses. O termo vem de duas palavras utilizadas em malaiala, uma lín-

gua do Kerala, em que Kalari significa campo de batalha e payat prá-

tica. Os textos mais antigos que lhe foram consagrados encontram-se

escritos em tamoul primitivo, língua cujos primeiros traços remontam

ao século III. Mas o Kalaripayat é mais antigo, devendo existir há mais

de três mil anos. À semelhança da arte do Vajramukti, constitui a es-

sência das Artes Marciais actuais. Pensa-se que terá sido levada para

a China por Boddhidharma.

Kamae

Posição de guarda, que pode ser de três tipos: Jodan (guarda alta),

Chudan (guarda média), Gedan (guarda baixa). O Kamae é um esta-

do de espírito que envolve a Energia e a percepção.

Hikaï Tanden

(ver Seika Tanden)

Hyoshi

Termo japonês. Corresponde a algo que se cultiva e que só pode ser

adquirido através de uma prática constante e regular.

Huainanzi

Tratado ecléctico do século II AC, compilado por mestres taoístas na

corte do príncipe Liu An, da casa Han, rei de Huainan, de 164 a 123

AC. A obra retoma o pensamento de Lao Tsé e de Chuang Tsé e apre-

senta as teorias filosóficas e científicas da época Han.

Iai Do

Termo japonês significando literalmente a "Via do Sabre e da bainha".

Ikebana

Arte de arranjos florais.

Irimi Nage

Técnica de Aiki Do que envolve a noção de entrada no campo do par-

ceiro e a sua satelitização, num movimento que pode ser centrífugo

ou centrípeto.

Issoku

Ângulo morto.

Bastão de madeira de perto de um metro e meio.

Jo Ha Ku

Jo significa lento; Ha médio; e Ku rápido.

Ju no Geiko

Praticar com leveza.

g

124

Page 127: Aikido

Kanji

Caracteres sino-japoneses utilizados para transcrever a língua japo-

nesa. Enquanto que, em chinês, cada caracter representa uma pala-

vra ou uma ideia (ideograma), em japonês, estes caracteres foram uti-

lizados para representar quer uma ideia, quer um som da língua ja-

ponesa.

Karaté Do

A Via ou Arte da "mão vazia", originária de Okinawa. O Karaté tal

como hoje o conhecemos é essencialmente o produto de uma sínte-

se que teve lugar no século XVIII entre a arte do "Te" criada em

Okinawa, as artes chinesas do box do templo de Shaolin e de outros

estilos do Sul da China, que então eram praticados na província do

Fu-Kien.

Karateca

Praticante confirmado de Karaté.

Kata

Em japonês, significa "forma". É o conjunto de movimentos codifi-

cados através dos quais se estuda a essência de uma arte.

Katsu Hayabi

Estado de fusão com o Universo.

Ken Do

A "Via do Sabre". Forma moderna da esgrima japonesa, em que a

arma, o shinai, é um sabre de bambu com várias fendas longitudi-

nais.

Ken Jitsu

Termo japonês que significa literalmente a "Arte do Sabre".

Ki

Do chinês Chi. Energia, sopro, força vital ou princípio vital.

Kiai

Termo japonês que significa encontro do espírito. O Kiai é o nome do

grito lançado no momento em que se desfecha um golpe.

Ko Kyu

Termo japonês que designa respiração. Vem de Haku (Ko) que signi-

fica expirar e de Suu (Kyu) que significa inspirar.

Kokyu Ho

Exercício de respiração.

Kokyu Nage

Técnica de Aiki Do baseada na noção de respiração/movimento.

Koshi Nage

Projecção de anca.

Kubi Nage

Projecção pelo pescoço.

Kumi Kata

Pega do kimono no Judo.

Kyu Do

A "Via do Arco". Arte em que o objectivo do archeiro é fundir-se com

o alvo numa atitude inspirada pelo Zen. Distingue-se do Kyu Jutsu,

que é essencialmente uma arte de combate.

Ma

Intervalo, distância espacial. Numa cadência, também pode designar

intervalo temporal.

Makyo

Termo japonês que significa, literalmente, fenómenos demoníacos. É

o conjunto de sensações ilusórias de toda a espécie que podem ma-

ni-festar-se durante a prática do Zazen.

Mo

g

125

Page 128: Aikido

É na Índia a ciência da respiração.

Randori

Treino livre.

Rogaku

Beleza tranquila da velhice.

Ryo Te Dori

Pega dos dois pulsos.

Sabaki

Esquivar, rodar.

Sabre

O Sabre, para os japoneses, tal como a espada para os cavaleiros oci-

dentais, era o símbolo de discernimento e de lealdade. O Samurai ti-

nha dois sabres: um mais longo, o Katana, de 60 a 100 centímetros;

e outro mais curto, Shotô ou Wakizashi, com 30 a 60 centímetros.

Desde tempos antigos, o gume (Hamon), o punho (Tsuka), a protec-

ção do punho (Tsuba) foram sendo objecto de cuidados especiais e re-

quintados que transformaram o Sabre numa obra de arte. Inicialmente,

instrumento de morte, tornou-se no símbolo de protecção da vida. No

Japão, há três elementos preciosos – o Espelho (Sol), a Jóia (Lua) e o

Sabre (Relâmpago) – que são sagrados e venerados. De um ponto de

vista simbólico, o Sabre passou a ser um meio de concentração e de

suporte à meditação, um instrumento de contemplação e dos "exer-

cícios paradoxais" (Kôan), uma fonte de procura interior. A posse de

um Sabre (a não confundir com o Iaito, cópia de um Sabre real utili-

zado na aprendizagem do Iai Do) é um verdadeiro privilégio e supõe,

para o praticante das Artes Marciais, um elevado nível na ciência do

seu manejo.

Sankaku Tai

Termo chinês que designa tinta.

Naginata

Alabarda.

Ni Kyo

É uma técnica de imobilização do Aiki Do, que incide sobre as arti-

culações do pulso, cotovelo e ombro.

Nitô Ryu

Escola dos dois Sabres, um grande e um pequeno, criada por Miyamoto

Musashi (1584-1646).

Abreviação de "Sarugaku no Nô", forma aristocrática de teatro can-

tado e dançado, de influência budista e xintoísta.

Omoté/Ura

São duas maneiras diferentes mas complementares de executar al-

gumas técnicas em Aiki Do. Omoté corresponde à fachada, ao que é

visível e mais imediato. Ura, ao invisível ou ao que permanece escon-

dido e na sombra. De forma simplificada, poderíamos dizer que uma

técnica em Omoté é realizada pela frente do parceiro. Uma técnica

em Ura é executada pelo exterior ou por detrás do parceiro.

"Pequeno Veículo" (Hînayâna)

Corrente budista mais rigorosa, também intitulada Theravâda, ou a

"via dos antigos", e conhecida pelo termo pejorativo Hînayâna. Ela

implantou-se sobretudo na Ásia do Sul e Sueste (Sri Lanka, Birmânia,

Tailândia, Cambodja e Laos).

Prajnâ

Termo que no Yoga designa a intuição que capta ao mesmo tempo

a totalidade e a individualidade das coisas.

Pranayama

g

126

Page 129: Aikido

Triângulo recto que se forma quando, a partir da posição de Shizentai,

se avança um dos pés.

Sankaku Tobi

São, no Karaté, golpes com os pés sem pontos de apoio. A sua exe-

cução só se consegue através de uma ciência da marcha e de uma sá-

bia deslocação do peso do corpo. Ela exige descontracção e um gran-

de controlo da respiração. É uma técnica difícil, porque se bate si-

multaneamente com os pés e as mãos no mesmo salto. Flexibilidade

e concentração perfeita tornam-se indispensáveis.

San Kyo

Técnica de imobilização do Aiki Do, que consiste na torção do pulso

num movimento de espiral em direcção ao ombro.

Satori

Palavra japonesa que significa iluminação, revelação.

Satsang

Reuniões que investigadores espirituais e adeptos do Yoga realizam

a fim de escutar o ensino de um Mestre.

Seika Tanden

Termo japonês, correspondente ao chinês Chi Haï. É o centro de gra-

vidade situado entre a terceira e quinta vértebras lombares da colu-

na vertebral ou cerca de 3 cm. abaixo do umbigo, ponto do qual sur-

ge a nossa Energia.

Sekka

Literalmente, pedra e faísca. Termo empregue por Miyamoto Musashi

para designar o espírito e a técnica de um dos seus golpes de Sabre.

Sen no Sen

Previsão e antecipação da acção do adversário.

Shin – Ghi – Tai

Princípios que devem nortear a prática de uma arte e que significam,

respectivamente, espírito, técnica e corpo. A aquisição do Shin é a

mais longa.

Shio Nage

Projecção do Aiki Do, proveniente da Arte do Sabre, que envolve um

movimento de rotação do corpo e é executada nas quatro direcções.

Shité

Aquele que faz, que tem a iniciativa.

Shizentai

É a postura correcta em pé, natural, em que as pernas se encontram

afastadas a uma distância semelhante à da dos ombros e em que os

músculos estão totalmente relaxados.

Shûnya

Termo filosófico do sânscrito que designa a vacuidade.

Si

Termo chinês que significa pensamento, plano, desígnio.

Sing

Termo chinês que designa efeito de paisagem.

Sukko

Macaco mítico com braços muito curtos. Na mitologia japonesa, tra-

ta--se de um mágico malicioso que, sob aspectos caricaturais, dissi-

mula os seu poderes, o primeiro dos quais é a inteligência.

Tada Ima

Significa apenas agora.

Tai Sabaki

Rotação que se faz lateralmente à distância do raio de acção dos bra-

ços do parceiro ou que se executa para nos colocarmos atrás do par-

ceiro, mas sem que este nos possa atingir. A um primeiro nível, é a

g

127

Page 130: Aikido

bastão ou o Sabre.

Uchikomi

Repetição de um mesmo movimento.

Waki Kamae

Posição de guarda lateral.

Yin/Yang

Yin significa literalmente a sombra. Yang significa literalmente a luz

do sol. É a fórmula de todas as alternâncias que constituem o Cosmos

e a nossa própria existência. São os princípios fundamentais e com-

plementares do Universo.

Yoga

O termo vem de "jug" que significa segurar, ligar, manter sob o jugo.

O Yoga é a disciplina que tem como finalidade dominar os diversos

elementos da personalidade. É uma das seis visões do mundo ou sis-

temas filosóficos (darshana) tradicionais da Índia.

Yoga Nidra

É uma escuta total (escuta do som).

Yon Kyo

Técnica de imobilização no Aiki Do, que envolve a pressão dolorosa

sobre o nervo radial.

Yûgen

Beleza invisível, secreta, contida, escondida, profunda.

Yun

Termo chinês que designa correspondência ou harmonia.

Zanshin

Estado de vigilância constante e contínua.

Zen

Termo japonês do sânscrito dhyana, através do chinês Ch’an. Escola

aprendizagem da espiral.

Tantô

Punhal de madeira.

Tao

Termo chinês de múltiplas significações. Princípio e Via de salvação,

princípio regulador do Universo. Segundo Marcel Granet, no fundo

de todas as concepções do Tao, encontram-se as noções de Ordem,

Totalidade, Responsabilidade, Eficácia. Na versão chinesa do 4º Evan-

gelho (S. João), os missionários traduziram: "No princípio era o Tao e

o Tao era com Deus e Deus era Tao". Aqui, Tao é o Verbo, o Logos.

Tao Te King

Obra fundadora do Taoísmo, cujo título em Pinyin é Daode Jing e que

em português significa Livro da Via e da Virtude. Livro célebre e cita-

do desde o fim do século IV AC, é atribuído a Lao Tsé (literalmente,

O Velho Mestre), que tanto pode ser uma figura lendária, como um

personagem real. A obra é formada por uma sucessão de máximas e

passagens versificadas, que, aparentemente, se destinavam a servir

de temas de meditação. Marcel Granet confessa que este livro, "tra-

duzido e retraduzido, é precisamente intraduzível". Tem sido objec-

to de inúmeras edições nas mais díspares versões.

Tatami

Tapete com que é revestido o Dojo de algumas Artes Marciais.

Te Katana

Fazer da mão sabre.

Ten Chi Nage

Técnica de Aiki Do. Literalmente, projecção Céu – Terra.

Tsuki

Golpe directo e de frente que pode ser executado com o punho, o

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b

131

Page 134: Aikido

132

Após ter acendido a existência, é preciso a si voltar

e sondar a própria natureza, é preciso viver a vida,

tornar presente e permanente a consciência do ser.

Page 135: Aikido

Deveria existir em qualquer parte, um lugar

onde o desenvolvimento e progresso inte-

rior se fizessem na harmonia entre o corpo

e o espírito. Um lugar onde as artes se

reencontrassem, a fim de despertar as

consciências. Um lugar dedicado a criar re-

lações de fraternidade entre os homens

e a fazer prevalecer a paz no mundo.

Foi a partir desta utopia que Georges

Stobbaerts concebeu o Dojo Ten Chi (Céu-

Terra) na Várzea de Sintra. Em 1980, junta-

mente com alguns alunos, começou por plan-

tar árvores e outras plantas de numerosas es-

pécies, dispondo criteriosamente caminhos,

muros de pedra, lagos, pequenas cascatas, e

finalmente o pequeno e o grande dojo, trans-

formando, com enormes esforços, um terre-

no árido de vários hectares num espaço har-

mo-nioso, guiado pelas linhas de equilíbrio

que orientam os jardins orientais.

Page 136: Aikido

Um espaço coberto de 500m2 acolhe

cursos regulares e estágios internacionais de

aikido, yoga, zazen e tenchi tessen (a arte do

leque). Tendo em vista uma perspectiva inter-

disciplinar, decorrem também seminários de

formação de actores, caligrafia, exposições

de pintura e escultura, concertos e espectá-

cu-los de dança, bem como encontros de in-

vesti-gadores de diversas áreas do saber, on-

de um dos objectivos é unir a razão e a sen-

sibilidade. Este é um lugar de reflexão e de

prática que procura ser a união da milenária

filosofia oriental com o pensamento analíti-

co e posi-tivo do ocidente.

Page 137: Aikido
Page 138: Aikido

aiki do

g e o r g e s s t o b b a e r t s

Hanshi, 8º Dan Dai Nippon Butoku Kai (Kyoto, Japão)

Fundador do Aikido em Portugal

a p r o c u r a d a u n i d a d e