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BEATRIZ TERESA CASTRO D'AIRE COM TODA A MINHA GRATIDŽO Ao M rio Matos o Editor que resolveu acreditar e apostar em mim. ' Prof. Cristina Almeida Ribeiro a professora extraordin ria e a amiga generosa que aceitou fazer a apresenta‡"o deste livro. ' Mafalda Torre do Valle a amiga de h trinta anos e a actriz de talento que fez a leitura do lan‡amento. ' minha irm" Gigi uma das maiores artistas plasticas que eu conhe‡o, autora da aguarela da p g. ' Prof. Isabel Barbudo a professora que aceitou orientar a minha tese, e a amiga que tanto me tem encorajado. Ao Jos‚ Carlos Ribeiro o meu pr¡ncipe

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BEATRIZ

TERESA CASTRO D'AIRE

COM TODA A MINHA GRATIDŽO

Ao M rio Matos

o Editor que resolveu acreditar e apostar em mim.

' Prof. Cristina Almeida Ribeiro

a professora extraordin ria e a amiga generosa

que aceitou fazer a apresenta‡"o deste livro.

' Mafalda Torre do Valle

a amiga de h trinta anos e a actriz de

talento que fez a leitura do lan‡amento.

' minha irm" Gigi

uma das maiores artistas plasticas que eu

conhe‡o, autora da aguarela da p g.

' Prof. Isabel Barbudo

a professora que aceitou orientar a minha tese,

e a amiga que tanto me tem encorajado.

Ao Jos‚ Carlos Ribeiro

o meu pr¡ncipe

o amigo de todas as horas.

BEATRIZ

(MENINA EST†S ' JANELA)

Teresa Castro d'Aire

Para ti, meu Amor

que ‚s toda a minha vida

Cap¡tulo 1

Chamo-me Beatriz de Almeida e S . Estou em Paris, na esplanada

do Caf‚ de la Paix, e enquanto escrevo estas minhas mem¢rias

tenho na frente uma garrafa de champagne. Acabo neste mˆs de

Novembro de 1928 de completar trinta e nove anos. N"o espero

nada j da vida e vou morrer um dia destes de uma dose de

coca¡na. A cada dia que passa vejo-me no espelho e noto que

mais e mais se me acentua a palidez, mais os olhos se me

embaciam de tristeza, de vazio, mais e mais se me cavam as

faces. Tenho momentos em que sinto ang£stia e febre, mas a

maior parte das vezes ‚ apenas cansa‡o aquilo que sinto,

cansa‡o e nostalgia. Nostalgia de quˆ? De tudo o que nunca

vivi? Ah, se eu soubesse...

Amei um dia um homem de nome Mart¡n. Era um estranho homem

aquele. Por ele me perdi. Mart¡n dizia-me que o meu corpo

tinha um cheiro suave de violetas. Devia ser verdade. Ainda

hoje me sinto por vezes um pouco como se fosse eu pr¢pria uma

violeta. Por causa da cor dos meus olhos, por causa das

olheiras fundas que tenho, por causa das veias salientes nas

minhas m"os brancas, esguias e tr‚mulas como eu. Por causa da

minha voz abafada e nost lgica.

Ah, a coca¡na! -ltimo ref£gio daqueles para quem o peso de

viver, ou de sobreviver apenas, ‚ algo de t"o dram tico, t"o

sofrido, t"o repassado de ang£stia que se n"o pode descrever.

Aqueles que sabem que em breve ir"o morrer, como eu sei.

Nasci no mˆs de Novembro, como se desde sempre estivesse

condenada a este nevoeiro, a esta tristeza que guardo comigo,

que se me agarrou ao corpo e ... alma, e que ‚ uma outra doen‡a,

terr¡vel e sem cura. N"o enviou Dante para o mais fundo dos

infernos todos os melanc¢licos volunt rios? Pois bem, com eles

irei, e contra isso n"o creio que haja nada que possa fazer.

Quando eu nasci o meu pai viveu um momento que deve ter sido

extraordinariamente dif¡cil para ele, a morte da minha m"e.

Talvez por isso tivesse ficado t"o contente por eu ser uma

rapariga, talvez por isso me mimasse e me deixasse fazer tudo

o que me apetecia. Aos dois anos puxava-lhe o bigode e as

barbas, e ele, normalmente t"o grave, t"o s‚rio, achava gra‡a,

como achava gra‡a a tudo aquilo que eu fazia. Aos cinco

sentava-me no colo e contava-me hist¢rias, mas n"o eram as

hist¢rias tolas que geralmente se contam ...s crian‡as. Talvez

porque as n"o soubesse, talvez por uma preocupa‡"o pedag¢gica,

as hist¢rias que me contava eram adapta‡"es que fazia ele

pr¢prio a partir de personagens da Hist¢ria e da Literatura,

de forma que Robin Hood, Ulisses, Othelo e Robinson Crusoe

eram para mim t"o reais como D. Afonso Henriques, Pougatchev,

Thomas More ou a Padeira de Aljubarrota. Mais tarde lemos

juntos a l¡rica de Cam"es e a Hist¢ria Tr gico Mar¡tima.

O meu pai era oficial de Marinha. Chegou a ir ... China, de onde

trouxe um servi‡o de jantar azul e branco, e ao Jap"o onde

adoeceu com umas febres terr¡veis. Por l ficou uns trˆs ou

quatro meses a convalescer. Foi assim que aprendeu a falar um

pouco de japonˆs, e a distinguir pela cor, pelo sabor e pelo

perfume mais de vinte variedades diferentes de ch .

Anata no o'tcha o nonde ni mairi mash" ka."

(Vamos tomar ch ?)

Era uma das frases que sabia dizer em japonˆs.

De regresso do Oriente resolveu tirar umas f‚rias em

Mo‡ambique. Foi l que conheceu a minha m"e. Era filha de um

coronel inglˆs em servi‡o na Rod‚sia. Estavam por l a passar

umas f‚rias. Chamava-se Daisy e era cerca de quinze anos mais

nova do que ele. Parece que se enamoraram perdidamente.

Casaram em Joanesburgo.

Pouco depois o meu pai recebeu uma carta com a not¡cia da

morte do irm"o mais velho, que n"o tinha filhos. Assim, e

embora secundog‚nito, se viu de repente Marquˆs da Amendoeira

e senhor de uma fortuna muito consider vel. Decidiu ent"o

largar a Marinha e voltar para o Alentejo. Algu‚m tinha de

ficar ... frente da herdade. E da corti‡a, claro. Regressaram

ent"o, e foi por essa altura que eu nasci, l na herdade, a

poucos quil¢metros de Portalegre.

A minha m"e morreu para que eu pudesse nascer. Antes n"o

nascera. Dela herdei a pele transparente que tenho e que me

faz parecer mais fr gil do que na realidade sou, e herdei uns

brincos de ametistas que acabei por vender a um joalheiro de

Paris. Francamente, nunca tinha gostado muito deles. 's vezes

penso se teriam sido essas ametistas que me trouxeram esta

tristeza, que me condenaram a esta melancolia sem fim...

Deixou-me tamb‚m o retrato dela num alfinete oval rodeado de

pequenas p‚rolas. Trago-o posto neste momento em que redijo as

minhas mem¢rias.

N"o creio que sejamos muito parecidas. Pensando melhor, talvez

tenhamos algumas semelhan‡as. As sobrancelhas finas e

arqueadas, claras, que quase n"o se vˆem, o nariz estreito, os

l bios finos e um tanto descorados que por vezes deixam

transparecer um leve travo de azedume, ou ser apenas

tristeza?

Os meus cabelos s"o castanhos claros, os meus olhos s"o de uma

cor entre o violeta e o azul forte, um pouco encovados.

Raramente os abro por completo. As pessoas diziam-me que eu

parecia estar sempre a olhar para o vazio, para coisa nenhuma,

mas n"o era verdade. Era, e sou ainda, uma espectadora atenta

de tudo aquilo que se passa ... minha volta.

Creio ter tido alguma beleza, ... minha maneira. Numa tentativa

para conservar ainda alguns vest¡gios dessa beleza da minha

juventude, por volta dos meus trinta anos comecei a dar um

pouco de cor nas faces e nos l bios, um pouco de p¢ de arroz

junto dos olhos a tentar disfar‡ar, ou atenuar ao menos um

pouco, as olheiras fundas que tenho.

Tamb‚m me diziam que tinha por vezes o ar de um bicho

assustado. A minha m"e, pelo que me contam, era mais serena.

Talvez n"o pensasse nas coisas em que eu pensava. Talvez se

n"o deleitasse com os prazeres com que eu me deleitava, um

tanto doentiamente, como por exemplo o prazer m¢rbido de

imaginar que iria morrer no auge da minha juventude.

Justamente porque a morte da minha m"e me n"o foi nunca

recriminada ou atirada em cara, foi-me muito dif¡cil

libertar-me de um sentimento de mal estar em rela‡"o ... vida,

como se no fundo me n"o assistisse o direito de estar neste

mundo. Passei a minha infƒncia a tentar fugir dessa minha

culpa do passado, real ou imagin ria que ela tenha sido. S¢

mais tarde, muito mais tarde, com a maturidade, aprendi a

viver comigo pr¢pria e com aquilo que foi o pre‡o do meu

nascimento, a morte da minha m"e.

Deparou-se-me ent"o um outro problema, o de entender o sentido

da vida. Afinal, por que motivo nasci? Que fa‡o dentro deste

meu corpo? Que quero da vida, afinal? Para onde vou? Qual ‚ o

meu destino nesta vida? Qual vir a ser depois dela?

A minha forma‡"o religiosa foi pouca. O meu pai, o homem

melhor, o mais digno, o mais s bio e tamb‚m o mais justo que

conheci, era ateu. Conhecia as escrituras, considerava que

eram belos textos de onde se podiam tirar bons e proveitosos

ensinamentos, mas eram fantasias. Comet¡amos um grave erro ao

confundi-los com as verdades autˆnticas da vida. Entendia que

a religi"o era uma esp‚cie de bord"o para fracos e infelizes.

Acho que apesar de tudo ele teria gostado que eu fosse educada

na f‚ anglicana, como a minha m"e, mas ... falta de uma igreja

anglicana nos trezentos quil¢metros mais pr¢ximos, o

catolicismo alguma coisa boa havia de me ensinar. Alguns £teis

e salutares ensinamentos, ... mistura com outros tantos

disparates, dizia ele suspirando e encolhendo os ombros, entre

aborrecido e resignado.

Era a velha Ermelinda quem rezava comigo. Levava-me ... missa.

Combinou com o padre Fernando, e l me p"s a fazer a primeira

comunh"o perante o olhar distra¡do do meu pai, que n"o apoiava

propriamente, mas tamb‚m n"o proibia, porque n"o havia nada

neste mundo que ele proibisse ... Ermelinda. Afinal... ela

tinha-o visto nascer, tratava-o por menino! Ao longo de mais

de sessenta anos de dedica‡"o ... fam¡lia, a Ermelinda tinha

adquirido uma esp‚cie de estatuto de velha matriarca que lhe

conferia, dentro daquela casa, todos os direitos, todos os

poderes.

A Ermelinda! Quando eu era menina era ela que me fazia todas

aquelas coisas que as m"es costumam fazer ...s filhas.

Entran‡ava-me os cabelos, punha-me os meus la‡os azuis, ou os

vermelhos, ou outros, vestia-me o bibe de folhos engomados,

ensinou-me a bordar a ponto de cruz e a fazer biscoitos de

manteiga. As coisas que a Ermelinda me ensinou!

- N"o meta as m"os na malga das azeitonas, menina. Faz a

azeitona sapateira.

Levava-me a dar milho ...s galinhas e um dia deixou-me escolher

uma pinta¡nha toda muito amarelinha s¢ para mim. Chamei-lhe

Lili. Pus-lhe uma fita ... volta de um p‚, para a conhecer no

meio das outras. Depois cresceu, da¡ a pouco come‡ou a p"r uns

ovinhos pequeninos, a Ermelinda fritava-mos em manteiga e eram

o meu almo‡o favorito. O meu pai andava todo satisfeito. Nunca

me tinha visto comer com tanto apetite.

Foi ela, a velha Ermelinda, quem me explicou todas as mudan‡as

que o meu corpo viria a sofrer, quando chegasse ... puberdade.

Contava-me que na noite em que eu nasci tinham aparecido no

c‚u trˆs estrelas cadentes em forma de triƒngulo, um quadrado

de trˆs pontas, como ela dizia, e que isso era um mau

press gio. Que havia de morrer longe de casa, sozinha e em

grande sofrimento. Quem sabe l o que estas coisas tˆm de

verdade, mas ...s vezes ponho-me a pensar nisso, e noutras

coisas que ela me dizia. Dizia-me que o meu mal era quebranto,

e que tivesse tino, ou pelo luar havia de me perder. Eu ria-me

e ia-me embora. N"o ia ficar ali a ouvir tolices de criadas

velhas e meias tontas como a Ermelinda, que cheirava a cera e

andava sempre cheia de bentinhos pendurados ao pesco‡o. Hoje

n"o sei se ela seria t"o tonta assim, e ...s vezes penso que

gostaria de ter dado um pouco mais de aten‡"o ...s coisas que

ela me dizia.

O quarto dela era um lugar encantado. Cheirava a alfazema e

cheirava um pouco a fechado, e tinha uma atmosfera de mist‚rio

que me deixava quase embriagada. Ela sentava-se a coser, eu

tinha uma cadeirinha pequena e sentava-me ao p‚ dela a bordar

uns patinhos num guardanapo, ou coisa parecida, ela contava-me

hist¢rias e outras vezes punha-se a cantarolar a sua velha

cantilena:

Eu hei-de dar ao menino

Uma fitinha pr¢ chap‚u

Tamb‚m ele me h -de dar

Um lugarzinho no C‚u.

Na parede ao p‚ da cama tinha um quadro pendurado. Era um S.

Sebasti"o com um pano vermelho atado ... cintura, com duas

pontas ca¡das a escorrer sangue, com o corpo trespassado de

setas. Era um dos santos da devo‡"o da Ermelinda. Pela cara e

pelos cabelos n"o se percebia muito bem se era um rapaz ou uma

rapariga, mas era muito bonito, e eu ...s vezes pousava o meu

bordado e deixava-me ficar ali sentada, muito quieta, s¢ a

olhar para ele.

Havia l em casa uma outra criada muito velha chamada Piedade,

que morreu quando eu estava para fazer seis anos. Puseram o

caix"o na capela, ao fundo do jardim, e n"o me deixaram ir

vˆ-la. Talvez por isso mesmo a minha imagina‡"o delirante

fazia com que muitas vezes sonhasse com ela de noite.

Aparecia-me toda vestida de preto, com uns bra‡os muito

compridos, a cara esverdeada, e ria-se, com a boca toda

escancarada, a mostrar os seus dois £nicos dentes, um cinzento

escuro e outro amarelo-esverdeado. Eu acordava transpirada e

com um medo que me fazia ficar muito quieta durante um grande

bocado, aterrorizada, sem respirar, a saborear com aquele medo

uma sensa‡"o que era de um prazer t"o intenso que n"o ousava

cont -lo a ningu‚m.

Nunca fui ... escola. Foi o meu pai que me ensinou a ler, pela

cartilha de Jo"o de Deus, e um pouco de francˆs, pelos livros

da Condessa de S‚gur. Sentava-me no colo e passava tardes

inteiras a conversar comigo sobre aquilo que era a nossa vida

de todos os dias.

Defronte da janela do meu quarto havia um castanheiro grande.

Todos os dias de manh"zinha o sol projectava a sombra das suas

folhas sobre a parede branca, e parecia que dan‡avam. Era

lindo!

Outra coisa com que passava o meu tempo era a observar as

cegonhas nas suas migra‡"es. Era muito bonito. 's vezes

sentava-me a olh -las ... sombra de uma rvore, e punha-me a

pensar que tamb‚m eu gostaria de ter umas asas para voar como

elas.

Um belo dia, devia eu andar por volta dos meus sete anos, o

meu pai chamou-me, fez a sua cara mais s‚ria, que reservava

para as ocasi"es importantes, e disse-me que queria que eu

conhecesse a l¡ngua que tinha sido da minha m"e. Queria que a

conhecesse como ... minha pr¢pria l¡ngua. Tinha contratado uma

preceptora inglesa que devia estar a chegar de um dia para o

outro.

Com efeito dois dias depois l chegou ela, perto da hora do

jantar. Veio numa charrette de aluguer com um grande ba£ e um

chap‚u de abas largas com um v‚u a cobrir-lhe a cara toda,

metido por dentro da gola do vestido. Devia pensar que ia para

†frica, para o meio dos mosquitos.

Chamava-se Miss Davidson. Era alta, muito magra e meia

arruivada, com a cara toda cheia de sardas e os dois dentes da

frente muito grandes.

Nessa noite fui ao ouvido meu pai segredar-lhe que ela tinha

cara de coelho, e ele disse-me para n"o ser tonta, e n"o dizer

disparates, mas eu bem via que ele estava cheio de vontade de

rir.

Comia connosco ... mesa, e era muito engra‡ada. S¢ limpava ao

guardanapo os cantinhos da boca. Ali s ela n"o comia

propriamente, fingia que comia. A maior parte das vezes o

jantar dela era um biscoito e uma ch vena de ch . Dizia que

estava habituada a viver assim, e que se comesse carne ao

jantar j n"o conseguiria dormir.

Acho que n"o sabia cozinhar. S¢ sabia fazer scones, Yorkshire

pudding, triffle, steak and kidney pie, e mais nada, acho eu.

Usava umas sapatorras muito feias, de atacadores, e um dia

explicou-me que em Inglaterra as senhoras de respeito s¢

usavam sapatos daqueles. A minha m"e n"o usava. Nunca

perguntei a ningu‚m, mas sei que n"o usava. Tenho a certeza.

O quarto dela era pegado ao meu, e numa altura em que a

Ermelinda esteve de cama com febre, Miss Davidson veio de

manh" ao meu quarto para me lavar e vestir, mas eu n"o quis.

J tinha nove anos, j sabia muito bem arranjar-me sozinha.

Depois o meu pai interveio, e muito contrariada l deixei que

me fizesse as tran‡as. Felizmente no dia seguinte a Ermelinda

j estava boa. N"o era que Miss Davidson fosse m pessoa, ou

me fosse antip tica, mas a Ermelinda era a Ermelinda, era

quase como se fosse a minha m"e. A intimidade do meu corpo era

com ela que a partilhava, com mais ningu‚m.

No dia seguinte ao da sua chegada, Miss Davidson come‡ou a

ensinar-me inglˆs. Come‡ou por me p"r a cantar o alfabeto, e

ao fim de uns meses j eu arranhava alguma coisa e j ela me

contava hist¢rias.

There was an old woman

who lived in a shoe

she had so many children

she didn't know what to do

...

And then little Goldilocks said...

Parece que estou a ouvi-la!Aos catorze anos devorei vida,

sofregamente, o Huckleberry Finn, as alegres comadres de

Windsor, o Robinson Crusoe, a Jane Eyre, os sonetos da

Elizabeth Barrett Browning. Aos quinze anos eu dominava

perfeitamente a l¡ngua inglesa e as suas del¡cias subtis.Foi

gra‡as ... ajuda de Miss Davidson que escrevi alguns textos que

nem sei se lhes poderei chamar poesia. Ilustrei-os com

aguarelas e esses eram momentos em que experimentava um prazer

intens¡ssimo.

Aliteration exercise

Six o'clock in the morning. A small but still secure stone

solid stout stiff square fortress like a sentinel in a sad

overcast colour surrounded by small silk smooth stones. A

couple of small blue useless boats standstill in the sand,

side by side, covered with salt and dust. They have scar

looking scratches. It's September, it's the end of the summer

season. There is a somnolence, a loneliness silence, like in a

secret sanctuary. The whole scene lasted for no more time than

a sigh. Everything seemed to be sunk in a strange, silent

sleep. In the distance, the sight of the silver sea. There is

sea scent everywhere. In the intense blue sky, something

suddenly stirs me up. The slowly soaring seaguls screaming out

their sarcasm.

Miss Davidson montava bastante bem. Muitas vezes me

acompanhava nos meus passeios a cavalo.

Depois de jantar sentava-se a ler um romance ou a bordar.

Todos os anos no Natal me oferecia trˆs ou quatro naperons de

renda para o meu enxoval, e ao meu pai meia d£zia de len‡os

com o monograma dele bordado. Eu oferecia-lhe uma lembran‡a

que o meu pai comprava em Portalegre. Um frasco de perfume,

umas luvas, uma ‚charpe de seda.

Em todos aqueles anos que viveu connosco, n"o me lembro de a

ter ouvido pronunciar uma palavra s¢ que fosse em portuguˆs.

Nem com as criadas. Quando queria um copo de gua levantava-se

e ia busc -lo. Mas pelas caras que fazia quando apareciam l

na herdade os meus primos de Portalegre, que s¢ diziam

asneiras, acho que percebia perfeitamente tudo o que se dizia

... volta dela. Uma vez o Chico Maria, que era o mais novo,

trazia um sapo na algibeira dos cal‡"es, e ela fez uma cara

mais enjoada que parecia que tinha engolido uma sardinha

podre!...

Um dia, j l estava em casa h uns sete ou oito anos, recebeu

uma carta. Tinha a m"e em Liverpool que estava muito mal, e

tinha de ir tratar dela. Nesse mesmo dia arrumou as coisas no

ba£ e foi-se embora.

Quando se despediu de mim abra‡ou-me e deu-me um beijo. Foi a

£nica vez.

� curioso... agora que penso nisso, n"o me lembro se algum dia

chegou a dizer-me qual era o seu primeiro nome.

Por essa altura, j eu tinha os meus catorze anos, o meu pai

entendeu que era chegado o momento de me instruir nos

cl ssicos. Juntos lemos a Il¡ada e os Pensamentos de Marco

Aur‚lio entre outros. Hoje ainda, se quisese, creio que seria

capaz de recitar de cor alguns excertos. Ensinou-me tamb‚m

latim, que era muito ma‡ador de estudar, mas enfim, l fui

aprendendo alguma coisa. Um belo dia consegui dar por

terminada uma dif¡cil tarefa: traduzir sem nenhum erro algumas

cartas de C¡cero.

A partir da¡ n"o precisei de estudar mais latim, o que foi

para mim uma esp‚cie de recompensa muito agrad vel de receber.

O que sabia n"o era muito, dizia o meu pai (eu por mim achava

que at‚ j era demais), mas atendendo ao esfor‡o e ao

resultado obtido, ele dava-se por satisfeito. Era o suficiente

para j n"o passar por completamente ignorante em lado nenhum.

J no que dizia respeito ... aritm‚tica os resultados que

obtivemos n"o foram t"o bons. O meu pai bem tentava, coitado,

cheio de paciˆncia, ...s vezes ralhava comigo, mas ainda hoje

conto pelos dedos e sou perfeitamente incapaz de extrair uma

simples raiz quadrada.

Tamb‚m gostava de desenhar, embora me pare‡a que n"o tinha

muito talento, ou a m"o muito firme. O meu pai elogiava-me

muito, corrigia-me os esbo‡os, e assim passei algumas das

horas mais agrad veis da minha adolescˆncia.

A minha madrinha, que era a minha tia Josefina, irm" mais nova

do meu pai, era vi£va de um m‚dico de Reguengos, n"o tinha

filhos e pintava aguarelas. N"o sei muito bem onde ter

aprendido, ou com quem, mas pintava razoavelmente bem, e

alguma coisa me ensinou. Ainda cheguei a pintar meia d£zia de

paisagens que o meu pai guardava como se fossem Tintorettos ou

Rembrandts.

Pintei um dia o meu auto retrato, e fiz tamb‚m um retrato do

meu pai a carv"o. Parece que ficaram menos mal, pelo menos foi

aquilo que na altura me disseram.

Mas aquilo que fazia a minha felicidade, e para que, segundo

ele, eu era verdadeiramente dotada, era o piano. Este pai

culto e interessado nunca se preocupou em ensinar-me a ler

partituras muito dif¡ceis. L iria, devagar, com o tempo, e a

verdade ‚ que aos doze anos j eu tocava perfeitamente com ele

trechos para quatro m"os.

Aos quinze anos tocava de improviso. Tocava coisas alegres,

ternas, nostalgicas, conforme a disposi‡"o do momento, e

parece que n"o compunha mal de todo. O meu pai gostava muito

de me ouvir, dizia que eu tinha verdadeiro talento. Miss

Davidson tamb‚m gostava, dizia que a m£sica alimentava o

esp¡rito e formava as belas almas.

O meu pai ainda pensou em contratar um mestre, pensou

mandar-me uns tempos para Lisboa, chegou mesmo a escrever a

umas outras tias que moravam ao Loreto, mesmo ao p‚ do

Conservat¢rio. Elas dispuseram-se a receber-me, eu ‚ que n"o

quis ir. Eram duas velhas antip ticas.

De uma vez, acho que foi no ano em que morreu a Ra¡nha

Vit¢ria, ali s foi por causa dela que me chamaram Beatriz

Vit¢ria, ou foi no ano em que mudou o s‚culo, j n"o me

lembro, tinham vindo passar o Natal connosco, e eu n"o tinha

gostado delas nem um bocadinho.

A mais velha chamava-se Orqu¡dea Libƒnia, e parecia uma

avestruz, toda desengon‡ada, a cacarejar como uma galinha.

Davam-lhe xeliques, e depois era preciso aban -la com um leque

e dar-lhe a cheirar o frasquinho dos sais.

A mais nova chamava-se Maria do Sacramento, ou seria Maria dos

Rem‚dios? Era muito esquisita, estava sempre muito calada, e

depois punha-se toda franzida a olhar para as pessoas pelo

canto do olho, que parecia que estava a pensar em fazer-lhes

mal. Eu parece-me que tinha um bocado de medo dela, nem sei

muito bem porquˆ.

A Ermelinda tamb‚m n"o gostava delas. Tratava-as com respeito,

porque eram as tias velhas do meu pai, mas por tr s fazia

tro‡a, chamava-lhes as manas patarecas, e para mim, nessa

altura, ainda as coisas que a Ermelinda dizia n"o tinham

disuss"o. S¢ mais tarde, muito mais tarde, a¡ pelos meus

catorze ou quinze anos, ‚ que comecei a n"o lhe dar

importƒncia. N"o era que n"o gostasse da minha querida

Ermelinda, como sempre, mas aos poucos e poucos comecei a

achar que ela s¢ dizia tolices.

Foi por esta altura que comecei, ...s escondidas, a ler uns

livros que me tocavam como se eu pr¢pria os tivesse escrito.

Um deles eram umas cartas de uma freira que ... for‡a tinham

encarcerado num convento em Beja. Mariana, tinha sido o seu

nome, e tinha-se perdido de amores por um oficial francˆs.

...une vie que je dois perdre pour vous, puisque je ne peux la

conserver pour vous; je revis, enfin, malgr‚ moi, la lumiŠre,

je me flattais de sentir que je mourais d'amour; et d'ailleurs

j'‚tais bien aise de n'ˆtre plus expos‚e ... voir mon coeur

d‚chir‚ par la douleur de votre absence...

Soror Mariana Alcoforado

Ah, como desejei entregar-me assim a um amor que me empolasse

o cora‡"o, que mo fizesse bater desordenado!

Ia buscar este e outros livros ao escrit¢rio do meu pai, mas

n"o creio que ele, se soubesse, mo tivesse deixado ler. Creio

mesmo que se tivesse reparado, este livro teria sido fechado ...

chave junto com outros que tinha com as lombadas encostadas

para tr s. Durante muito tempo me perguntei que livros seriam

aqueles que o meu pai fechava ... chave e dos quais me n"o

deixava conhecer os t¡tulos sequer. Ao menos este consegui

lˆ-lo de noite, ...s escondidas, e sonhava, sonhava com uma

grande paix"o, mas era tamb‚m eu uma prisioneira, as minhas

grades eram o silˆncio daquele Monte onde nunca nada

acontecia. Perdida na solid"o daquele triste Alentejo, que

amores, que paix"es poderia eu viver? Foi por esta altura que

um dia me aventurei a escrever o meu primeiro soneto.

Noite de lua, noite cheia de luar,

Lembro os teus olhos, lembro tudo o que era teu

Nesta agonia, perdida entre terra e c‚u,

E sei que nunca mais me quero enamorar.

Foi h um s‚culo, h um dia, nem sei bem,

N"o sei se voltas, eu sei l se vais voltar

Sei que partiste e que me n"o canso de olhar

Pela janela, e tu n"o vens, n"o vem ningu‚m.

Oh meu amor que assim me tardas em chegar

Soubera eu quais os bra‡os que te retˆm

Quais os amores que de mim te est"o roubando

Buscar-te-ia ainda que para l do al‚m

Melhor seria at‚ ... morte procurar

Que esta agonia em que sofro e te estou esperando

Aos catorze anos talvez n"o se possa exijir muito mais. Acabou

por ser, durante muito tempo, o £nico segredo entre mim e o

meu pai. N"o seria capaz de lho mostrar. N"o tanto por uma

quest"o de pudor em rela‡"o ... minha sensualidade que

despontava, da qual eu n"o tinha sen"o uma consciˆncia muito

t‚nue, e na qual n"o punha nenhum tipo de mal¡cia, mas por

medo que ele se risse de mim, dos meus fracos dotes liter rios

e das fantasias que povoavam o meu imagin rio de rapariga.

Mais ou menos por essa altura, quando fiz dez anos, o meu pai

deu-me um presente muito especial. Uma potrazinha castanha de

dois anos que era a coisa mais linda que eu j tinha visto.

Tinha os olhos de uma pessoa, e passado pouco tempo eu falava

com ela e ela entendia tudo o que eu lhe dizia.

Eu estava habituada a montar, e sempre que me apetecia montava

um dos cavalos da herdade. S¢ n"o montava o Pintado, que era

muito bravo, e o Foguete, que era o cavalo do meu pai, e ele

n"o gostava que mais ningu‚m o montasse.

Agora era diferente. Tinha aquela eguazinha linda s¢ para mim!

Chamei-lhe Rosmaninha.

Um dia fiz um colar de junco entran‡ado com rosas de Santa

Teresinha e pus-lho ao pesco‡o.

O meu pai fartou-se de rir, e tamb‚m dizia que Rosmaninha n"o

era nome para uma ‚gua, mas eu n"o me ralei, e ficou

Rosmaninha. No Ver"o seguinte j estava rija e j podia ser

montada. Juntas pass vamos ...s vezes tardes inteiras, e assim

pass mos alguns dos melhores momentos da nossa adolescˆncia.

Ao princ¡pio foi dif¡cil, deu muito trabalho, mas valeu a

pena. Foi preciso muita paciˆncia, n"o mostrar medo, n"o fazer

gestos bruscos para ela n"o se assustar, mas em pouco tempo

estava ensinada e j eu podia mont -la com toda a confian‡a.

Salt vamos, trot vamos ... inglesa, e nunca soube o que eram

umas esporas. Agora, j l v"o todos estes anos, ...s vezes

ponho-me a pensar nela, que foi afinal a minha amiga de

infƒncia, e apetece-me chorar. Era a ‚gua mais bonita do

mundo.

Cap¡tulo 2

Quando fiz dezoito anos o meu pai preparou-me uma surpresa, e

em meados de Dezembro viemos at‚ Lisboa, passar uns dias ...

civiliza‡"o, como ele dizia.

Fic mos alojados num Hotel muito bonito chamado Avenida

Palace. Tinha luz el‚ctrica e tudo, que eram umas bolas de

vidro a deitarem muita luz, e era a coisa mais bonita que eu

j tinha visto. L na herdade t¡nhamos a luz do dia, e ... noite

acendiam-se velas ou candeeiros a petr¢leo.

Na primeira noite encontrei no meu quarto uma enorme caixa de

bombons su¡‡os e um cart"o do gerente que me desejava

felicidades e me cumprimentava pela minha beleza e pela minha

primeira visita ... capital.

Nunca me senti t"o feliz e t"o confusa. N"o sabia que era

costume terem estas amabilidades para com os clientes que

ocupavam as suites mais caras.

No dia seguinte o meu pai levou-me a uma loja que pelo aspecto

devia ser uma das melhores de Lisboa, e comprou-me uns poucos

de vestidos, dois pares de luvas, um frasco de perfume muito

bom, chamado Peut-‰tre, e outras coisas. At‚ a¡ eu s¢ tinha

usado a gua de col¢nia de alfazema que a minha tia Carlota me

mandava todos os anos no Natal, feita por ela. N"o cabia em

mim de contente e de excitada. Eram muitas emo‡"es juntas.

Nessa noite o meu pai mandou-me p"r o vestido mais bonito, que

era branco e azul com a frente toda em renda, as mangas

tufadas e uma fitinha de veludo azul, e eu assim fiz, sem

saber onde ‚ que o meu pai me iria levar, mas felic¡ssima por

ir, onde quer que fosse.

Depois bateu ... porta do meu quarto, ofereceu-me o bra‡o,

disse-me que eu j era uma rapariga crescida, e que me ia

levar ao Teatro de S. Carlos a ver um espect culo de Ÿpera.

Entre mim e o meu pai havia j uma cumplicidade de adultos, e

eu sentia que ele estava orgulhoso de me levar pelo bra‡o.

Era a estreia de Sans"o e Dalila, de Saint-Saens, com o cantor

Franceschini e a cantora Guerrini, e a primeira bailarina era

uma que parece que tamb‚m era bastante famosa, chamada Zanini.

Estava toda a gente muito bem vestida. No intervalo viemos ao

foyer, e enquanto o meu pai conversava com uns amigos

deixou-me beber uma ta‡a de champagne, que eu nunca tinha

provado.

Que coisa boa! Melhor, s¢ o Vinho do Porto que o meu pai

costumava mandar abrir no dia de Natal e me deixava beber um

bocadinho, um c lice pequeno.

Eu estava deslumbrada. O espect culo era t"o bonito, o teatro

era t"o bonito, o meu pai estava t"o bonito, de casaca e

chap‚u alto!

No £ltimo acto Sans"o abanava as colunas do templo, e

come‡avam a cair um nunca mais acabar de pedregulhos enormes

em cima do palco.

Devo ter-me assustado um pouco, porque o meu pai curvou-se

para mim e exlicou-me que eram de papel"o.

Mal eu podia imaginar que essa derrocada era um pren£ncio dos

pedregulhos verdadeiros que a vida em breve se iria encarregar

de me lan‡ar em cima.

No fim fomos todos cear a um restaurante que se chamava

Tavares, que tamb‚m era muito bonito, com muitos dourados e

todo cheio de espelhos, e devia ser o mais chique de Lisboa.

Era mesmo ali a dois passos, por isso fomos a p‚, em jeito de

passeio.

Os amigos do meu pai eram todos muito simp ticos. Havia um que

era Comendador, outro que era um Bar"o alem"o cheio de

medalhas ao peito, havia um baixinho que era Deputado ...s

C"rtes, e havia um outro que era o Conde da Vidigueira, e

tamb‚m era Marquˆs de Niza, por isso n"o percebi bem porque ‚

que o tratavam s¢ por Conde.

Talvez fosse o mais simp tico e o mais bem disposto de todos.

Disse-me que tinha uma filha da minha idade. Havia de vir

visitar-me ao Hotel para darmos um passeio por Lisboa. Eu

sentia-me feliz por me darem tanta aten‡"o.

As mulheres deles tamb‚m eram muito simp ticas, e traziam

abafos de peles e vestidos como n"o deve haver mais bonito, e

eu disse-lhes isso e elas riram-se muito.

Um dos cantores, chamado Barbieri, era amigo do Deputado, e

por isso tamb‚m o convidaram.

Comemos perdizes cozinhadas em vinho tinto que estavam uma

del¡cia, e no fim veio uma esp‚cie de fruteira grande toda em

prata, com trˆs andares, cheia de doces de ovos com v rios

feitios diferentes, e parecia que nunca mais se decidiam a

comˆ-los.

E eu a olhar para eles.

Se n"o fosse o Comendador, que l se lembrou de me oferecer

um, se calhar a esta hora ainda l estavam...

Falavam de pol¡tica, diziam mal de um tal de Jo"o Franco, e eu

deixei-me estar calada, e sossegada, que aqueles eram assuntos

de que eu n"o percebia nada, nem me devia meter.

A certa altura percebi que o meu pai sorria e conversava com o

Deputado, e dizia-lhe que sim, talvez, mas s¢ da¡ a uns

tempos, que primeiro queria ver-me casada, e s¢ depois poderia

pensar em assumir um cargo de tanta responsabilidade.

Acho que o queriam para Ministro, ou pelo menos para Deputado,

mas ele n"o me contou, e eu bem sabia que ele n"o gostava que

eu lhe fizesse perguntas sobre os assuntos dele, de forma que

achei melhor n"o lhe perguntar, e fiquei sem saber.

' sa¡da subimos para um landau muito bonito. Era todo forrado

a veludo, as lanternas at‚ eram de prata, e a separar os

lugares da frente tinha uma jarrinha de flores, e l volt mos

para o Hotel.

Esta foi a primeira noite memor vel da minha vida.

Passados dois dias recebi a visita da filha do tal amigo do

meu pai. Chamava-se Eug‚nia Telles da Gama, e era pouco mais

velha do que eu. Vinha com uma criada, que n"o a deixavam sair

doutra maneira. N"o era por nenhum motivo em especial, era s¢

porque n"o era costume.

Almo‡ mos no Hotel. Durante o almo‡o contou-me que tinha um

primo que os pais em tempos tinham querido que ela ficasse

noiva dele, mas ela n"o lhe achava gra‡a nenhuma, que era todo

muito branquinho, parecia um pinta¡nho, e agora tinha

arranjado um outro noivo que era um inglˆs chamado Harold que

tinha um neg¢cio qualquer de barcos.

Os pais dela ‚ que parece que n"o tinham ficado nada

satisfeitos com a hist¢ria, e primeiro at‚ tinham dito que n"o

a deixavam casar com ele, que n"o tinha t¡tulos nem nada, mas

ela por fim l tinha conseguido convencˆ-los, e estava muito

contente, porque este noivo era muito mais bonito do que o

primo. Mostrou-me a fotografia, e realmente n"o era nada feio.

Acab mos de almo‡ar, levou-me a dar um passeio numa vit¢ria de

aluguer com dois cavalos. O dia estava bonito, por isso fomos

com a capota levantada, toda a tarde rimos e convers mos e

diverti-me muito.

Custou este nosso passeio de uma tarde dezoito tost"es, e mais

meio tost"o que demos ao cocheiro que tinha sido muito

delicado connosco e muito simp tico.

A certa altura passou por n¢s um cortejo de um casamento. Era

um nunca mais acabar de coup‚s de aluguer forrados de branco e

todos enfeitados com ramos de flor de laranjeira, os cocheiros

de cal‡as azuis, casaca branca e chap‚u alto com a roseta

azul, ou verde, ou vermelha, ou de outra cor, conforme a

cocheira a que pertenciam.

Tamb‚m havia outros coches das fam¡lias nobres, e esses

traziam o bras"o pintado na porta e bordado na casaca do

cocheiro e do trintan rio.

Vi nesse dia o Mosteiro dos Jer¢nimos, e a minha amiga

mostrou-me o t£mulo de Vasco da Gama, que era um antepassado

dela, que l estava, defronte do de Cam"es.

Tamb‚m nessa tarde subimos ao cimo do elevador de Santa Justa.

Fic mos um longo momento l em cima a olhar a cidade aos

nossos p‚s. Que coisa linda!

Depois demos uma grande volta para eu ver a Pra‡a de Toiros,

que era toda vermelha e parecia tirada da hist¢ria do Ali

Bab .

Na altura em que pass mos por l vinham a sair muitas pessoas,

e pergunt mos o que era, e soubemos ent"o que tinha havido um

concurso de beleza e robustez infantil, que me pareceu uma

ideia muito esquisita.

Mas de tudo isto, do que eu mais gostei, foi de ver o passeio

p£blico. Eram as senhoras com aqueles grandes chap‚us t"o

bonitos, os homens elegant¡ssimos, uns de charrette outros a

p‚, e toda a gente a cumprimentar-se.

A certa altura passou por n¢s um rapaz todo vestido de branco,

numa charrette branca, e os cavalos, as fardas dos criados,

era tudo branco. Cumprimentou a minha amiga Eug‚nia, e ela at‚

me disse quem era, eu ‚ que j n"o me lembro.

Ia s¢zinho e parece que todos os dias descia o passeio p£blico

daquela maneira, em grande estad"o, e as raparigas n"o

conseguiam deixar de olhar para ele, que parecia um pr¡ncipe

encantado.

Nessa tarde quando descemos o Chiado pass mos ainda defronte

de uma livraria. Par mos um instante. Num canto da montra

estava um livro que imediatamente chamou a minha aten‡"o.

Era um livro intitulado Lucr‚cia B¢rgia, de Victor Hugo.

Nenhuma de n¢s tinha lido nada desse escritor, embora fosse

muito conhecido, mas o t¡tulo, por si s¢, era j uma promessa

de novas e picantes emo‡"es.

Pod¡amos compr -lo, l¡amo-lo ...s escondidas... Que n"o, que o

homem da loja conhecia o pai dela, e era muito bem capaz de

lhe ir fazer queixa...

Fic mos amigas. ' despedida contou-me que uns primos dela, a

quem chamava os primos Palmela, iam dar um baile no dia

seguinte. Iam estar presentes Suas Majestades e Suas Altezas

os Pr¡ncipes Reais, e se eu pedisse ao meu pai para me deixar

ir, ela se encarregaria de fazer com que me enviassem um

convite.

Nessa mesma noite, est vamos na casa de jantar do Hotel, ¡amos

come‡ar a comer a sobremesa, chegou um criado que me estendeu

uma bandeja de prata. Era uma carta para mim. O meu primeiro

convite para um baile! Seria tamb‚m o £ltimo, que a minha vida

rapidamente viria a levar outro rumo.

No dia seguinte passei a manh" toda a preparar-me. O meu pai

pediu ao gerente que mandasse p"r uma grafonola na nossa suite

e toda a manh" trein mos valsas e polkas.

' hora do almo‡o est vamos derreados, mas pelo menos eu j me

sentia um pouco mais segura de mim. Almo‡ mos, fomos cada um

dormir uma bela sesta, e por volta das cinco horas comecei a

vestir-me.

Morria de vontade de pedir ao meu pai que me deixasse comprar

um baton, mas depois pensei melhor e achei que ele n"o ia

autorizar de maneira nenhuma, por isso nem valia a pena

tentar.

Eram oito horas, sa¡mos. Eu levava um vestido cor de alfazema

com um grande la‡o branco, por cima levava uma capa de

abrigar, e o meu pai ia com o uniforme de gala da Marinha,

azul escuro com dragonas douradas, e bot"es dourados, e as

condecora‡"es que tinha, uma com uma fitinha vermelha, e outra

com uma fitinha azul e branca.

T¡nhamos alugado um fiacre para esperar por n¢s e nos trazer

de volta, e assim foi.

Quando cheg mos, por sorte encontrei logo a minha amiga

Eug‚nia que me apresentou ...s primas e a mais umas tantas

pessoas. Apresentou-me ao noivo, que ainda era mais bonito do

que na fotografia. Era alto e tinha um bigodinho engra‡ado, e

j depois da ceia dan‡ mos a Valsa das Mil e Uma Noites.

A certa altura ouviu-se um burburinho e as pessoas come‡aram a

chegar-se para os lados e a fazer uma esp‚cie de corredor. Era

para passar a Fam¡lia Real. Eu n"o estava habituada a este

tipo de s¡tua‡"es, mas felizmente o meu pai n"o me deixou

sozinha, veio colocar-se ao p‚ de mim.

' medida que eles passavam os homens punham-se muito direitos

e inclinavam a cabe‡a, e as senhoras dobravam um bocadinho o

joelho, e eu fiz como elas.

S¢ depois ‚ que come‡aram a dan‡ar.

Eu n"o dancei muitas vezes porque n"o levava par, e tamb‚m

porque n"o conhecia muita gente, mas as vezes que dancei acho

que n"o fiz muito m figura.

Da¡ a um bocado serviram a ceia, que estava ¢ptima, com

maionaises, e per£s e leit"es assados, e em honra da fam¡lia

real tinham mandado fazer um centro de mesa que era uma coroa

muito grande toda feita em nougat e cheia de fios de ovos, e

provei uma coisa chamada cup que adorei.

Preparava-me para beber uma segunda ta‡a, que me trazia um

rapaz com quem tinha estado a dan‡ar, quando de repente vi o

meu pai que de longe olhava para mim e me franzia o sobrolho.

Pousei a ta‡a e comi um bombom.

Eu bem conhecia o meu pai. Se lhe desobedecesse era capaz de

n"o me dizer nada, mas tamb‚m era capaz de nunca mais me levar

a lado nenhum.

Esse rapaz chamava-se K‚k‚ Burnay. Devia ser um bocadinho

ligeiro, mas era simp tico e divertido.

A certa altura p"s-se a imitar um toureiro, ele e um outro

ruivo e cheio de sardas que s¢ dizia disparates mas era

engra‡ad¡ssimo, e fart mo-nos de rir. Era o cup a fazer das

suas...

A certa altura aproximou-se de n¢s o pr¡ncipe Dom Manuel. Era

bonito, e tinha um uniforme azul com dourados que lhe ficava

muito bem, mas n"o achei que tivesse muito cara de pr¡ncipe.

Entrou na conversa como qualquer um dos outros, e a certa

altura estava eu a contar que este passeio a Lisboa tinha sido

o presente de anos que o meu pai me tinha dado, e ele

perguntou-me em que dia ‚ que fazia anos.

Descobrimos ent"o que t¡nhamos nascido os dois exactamente no

mesmo dia, 15 de Novembro de 1889. T¡nhamos de dan‡ar ao menos

uma vez, disse ele, para festejar, e para nunca mais nos

esquecermos um do outro.

E assim foi. Dan‡ mos uma Polka, e n"o podia ter sido mais

divertido. Ele tinha raz"o. Eu, pelo menos, nunca mais me

esqueci.

Depois ainda fic mos a conversar um bocadinho, ele disse-me

que gostava de livros e de poesia, e que o aborreciam muito

com as coisas do protocolo, e que n"o percebia porquˆ, que o

irm"o mais velho ‚ que tinha nascido para essas coisas.

No regresso ao Hotel o meu pai disse-me que toda a noite n"o

tinha tirado os olhos de mim, e que tinha estado muito bem.

Nessa mesma noite, estava j deitada, decidi: se algum dia

tivesse um filho, chamar-se-ia Manuel. Em homenagem ao

Pr¡ncipe Dom Manuel. Por ele ser t"o bonito, por ter dan‡ado

comigo, e por gostar de poesia.

No dia seguinte recebi um telefonema da minha amiga Eug‚nia.

Quando me chamaram para ir atender, eu parecia que flutuava no

ar. Ia falar ao telefone, pela primeira vez na minha vida!

Se queria ir a uma coisa nova que havia agora no Rossio, que

chamavam o Animat¢grafo, e de que toda a gente falava. Ia ela

com o pai e os irm"os, o Jos‚, a Constan‡a e o Lu¡s.

� claro que sim! O meu pai a princ¡pio n"o queria, que estava

muito cansado, mas por fim l se convenceu.

Era realmente espantoso. ' nossa frente havia uma coisa que

parecia um len‡ol muito grande todo esticado, era sobre ele

que se viam as pessoas a mexerem-se, e era muito engra‡ado,

parecia mesmo que estavam vivas. Entretanto havia uma senhora

de idade que ia acompanhando ao piano, e ¡amos vendo a

hist¢ria a passar-se ... nossa frente.

Quando acabou acenderam as luzes. A seguir iam passar outro

filme, mas estavam a fazer um intervalo para as pessoas

descansarem um bocadinho, ou para irem beber um capil‚.

Deix mos os adultos sentados, e fomos comprar um cartuxo de

caramelos.

Foi nessa altura que a minha amiga Eug‚nia me contou um

segredo, e se eu dissesse a algu‚m nunca mais era minha amiga.

J tinha dado um beijo ao namorado! E tinha sido na boca e

tudo, como tinha visto numa gravura!

No outro dia o meu pai e eu fizemos as malas e l volt mos

para casa. Eu por mim ia a pensar no sabor que teria um beijo,

e na desola‡"o parada daquele Alentejo t"o triste.

Como eu desejava amar!

Um dia, ainda n"o eram passados trˆs meses, o meu pai entrou

no meu quarto de manh". Creio ter dado um salto na cama,

sobressaltada. N"o era h bito o meu pai vir acordar-me. Vinha

afogueado e trazia um papel na m"o. O Senhor Dom Carlos tinha

sido morto a tiro em Lisboa, no Terreiro do Pa‡o, e o Pr¡ncipe

Dom Lu¡s Filipe tamb‚m. Naquele momento foi como se me

tivessem dado uma pancada na cabe‡a. Por um instante vi tudo

branco ... minha volta.

Por que motivo a morte de duas pessoas que tinha visto afinal

apenas uma vez na vida, me impressionou daquela maneira? Hoje

ainda n"o entendo, mas o que ‚ verdade ‚ que me comovi, e

chorei como se fossem pessoas muito amadas.

E o Pr¡ncipe Dom Manuel? Estava bem, s¢ um pouco ferido.

Herdava o trono. Como ‚ a vida! Ele que gostava de poesia, e

se aborrecia com o protocolo!

O meu pai dizia que a culpa era toda do Ministro, o tal Jo"o

Franco, mas eu n"o sei, a mim parecia-me que quando acontece

uma grande trag‚dia, a culpa n"o ‚ de ningu‚m, n"o pode ser. A

culpa ‚ s¢ da vida.

Cap¡tulo 3

Pouco tempo depois adoeci. Uma tuberculose que me ia levando ...

morte. Dezasseis longos e tristes meses passei no sanat¢rio do

Caramulo.

Tinha acessos de tosse incontrol veis, e a seguir sobrevinham

as hemoptises. O Dr. Coimbra obrigava-me a tomar rem‚dios

v rias vezes por dia e a descansar bastante, e aos poucos e

poucos l fui melhorando, mas a cura foi dif¡cil e demorada.

Havia no sanat¢rio doentes num estado muito mais grave do que

o meu, e muitos deles morreram durante o tempo que l estive.

Alguns revoltavam-se, e com a pouca for‡a que ainda lhes

restava, coitados, gritavam, roucos, contorciam-se da raiva

surda, da impotˆncia de sentirem a morte t"o pr¢xima... t"o

pr¢xima!

Quando morriam de dia deixavam-nos ficar no quarto at‚ ...

noite, e s¢ ent"o os levavam a enterrar. Ningu‚m me disse, fui

eu que descobri. Uma noite ouvi barulho, levantei-me, fui

espreitar e vi-os por uma nesga da porta do meu quarto.

No dia seguinte perguntei ao Dr. Coimbra. Ele explicou-me que

j bastava todo o sofrimento daquela gente que ali estava, n"o

valia a pena impression -los e afligi-los mais ainda com o

triste espect culo de um funeral. Para quˆ? Por isso os

levavam de noite, ...s escondidas.

Um dos doentes era um senhor de idade que parecia simpatizar

muito comigo. Era alto e magro, usava umas barbas brancas, o

primeiro nome dele era M rio, mas gostava que lhe chamassem (r)o

fil¢sofo¯.

Foi ele quem me deu a conhecer o S¢, do Ant¢nio Nobre, que

segundo ele nos representava a todos os que ali est vamos

naquele sofrimento, naquele desespero de sabermos a doen‡a

terr¡vel que t¡nhamos, ... qual, bem o sab¡amos tamb‚m, poucos

de n¢s conseguir¡amos sobreviver.

Quando morreu, o "S¢" estava na minha posse, e como a fam¡lia

nem l apareceu, se calhar nem tinha fam¡lia, achei que n"o

fazia mal ficar com aquela recorda‡"o de uma pessoa que me

tinha inspirado tanto carinho.

Tombou da haste a fl"r da minha infƒncia alada,

Murchou na jarra de oiro o p£dico jasmim:

Voou aos altos c‚us a pomba enamorada

Que d'antes estendia as azas sobre mim...

Fallam de sonhos, de anjos, e elle

Falla de amor, falla d'aquelle

Que tanto e tanto a faz penar...

E o cora‡"o parte-se todo,

Quando a sorrir, com t"o bom modo,

O Mar lhe diz: H -de sarar...

Ant¢nio Nobre

Aos poucos tinha-me afei‡oado a ele, ao meu amigo fil¢sofo, e

a sua morte deixou-me mais triste ainda.

Outra pessoa cuja morte me deixou muito impressionada foi uma

rapariga pouco mais velha do que eu que passava os dias a

chorar junto ...s vidra‡as das janelas.

Era uma pessoa pouco comunicativa. Eu tinha uma grande vontade

de me aproximar dela, de lhe dirigir algumas palavras, mas n"o

era f cil. Uma tarde por fim l consegui, e a partir da¡

pass mos a conversar quase todos os dias.

Chamava-se Margarida, tinha um filho com dois anos, e queria

viver ao menos at‚ o ver crescido, que n"o precisasse mais

dela, mas achava que n"o, que a sua hora estava para breve, e

que n"o tornaria a vˆ-lo mais. Morreu pouco tempo depois.

Os dias no sanat¢rio eram iguais. T"o iguais e t"o sombrios...

a £nica coisa que me dava alegria eram as visitas que o meu

pai me fazia sempre que podia, e as cartas que me escrevia,

duas, trˆs vezes por semana.

Foi por ele que recebi a not¡cia da implanta‡"o da Rep£blica.

No momento n"o creio ter entendido muito bem todo o

significado mais profundo desta transforma‡"o pol¡tica que

acabava de se dar no pa¡s, mas francamente, nesta fase da

minha vida, estas n"o eram quest"es que me preocupassem muito.

De qualquer forma, lembro-me de na altura ter ficado contente

que fosse a terra da minha m"e a dar ex¡lio ao rei Dom Manuel.

Havia, entre os doentes do sanat¢rio, um pequeno grupo que se

interessava muito por pol¡tica. Discutiam acalorados, quase

todos os dias, porque cada um pensava de uma forma diferente,

mas eu, com as enxaquecas terr¡veis que todos os dias me

atormentavam, fechava-me no meu quarto, e o que queria acima

de tudo era que me deixassem em paz.

Tinha tamb‚m muitas ins¢nias. 's vezes lia, outras vezes

deixava-me ficar deitada na cama, muito quieta, horas sem fim.

Depois via as horas, eram trˆs e meia, eram quatro da manh".

Queria tanto ter sono!

Um dia pensei: e se eu agora desatasse a gritar, e acordasse

toda a gente, a dizer que tinha visto um fantasma? N"o valia a

pena, e ningu‚m ia achar gra‡a.

Outras vezes pensava: vou-me levantar, vou-me p"r a cirandar

por a¡, a ver se vem o sono, a ver se consigo dormir. Depois

punha-me a olhar para a escurid"o e para a luzinha da

lamparina de azeite, imaginava que a minha cama era um caix"o,

e que estava a velar o meu pr¢prio corpo, e com estes

pensamentos m¢rbidos me deleitava.

Numa dessas minhas intermin veis noites de ins¢nia acendi uma

vela e comecei a escrever um pequeno conto.

J n"o tenho forma de o reconstituir, mas lembro-me que havia

uma paisagem perfeitamente fantasmag¢rica, com um lago

verde-lodo, desses onde se afogam as almas desesperadas. No

meio do lago, a flutuar, um caix"o rodeado de flores roxas e

brancas. Por cima nuvens negras, no meio delas a lua

brilhando. L dentro uma jovem morta por amor, ou sem saber

porquˆ, muito p lida, os l bios descorados, as palpebras j

azuladas, as m"os brancas e esguias pousadas sobre o peito, o

vento ... volta a assobiar, e chuva, trov"es, clar"es s£bitos a

iluminarem asas de anjos e cruzes de cemit‚rio. Nas margens do

lago, sentados sobre lages de sepulturas, uma plateia de

santos, her¢is, ra¡nhas loucas e desgrenhadas, velhas bruxas

rindo e cacarejando, dessas que vagueiam de noite, aos uivos,

pelos bosques.

Tal era o meu desespero.

Dava tamb‚m longos passeios, caminhando lentamente sob as

rvores, tentando respirar fundo aqueles bons ares. Depois

regressava, caminhando sempre lentamente, pensando, sentindo a

frescura da sombra daquele arvoredo de copas altas e escuras.

O sanat¢rio tinha uma pequena biblioteca que devorei

avidamente. Don Quixote, A Cidade e as Serras, as com‚dias de

MoliŠre, Lazarillo de Tormes, Max du Veuzit e muitos outros

que eu lia com sofreguid"o, no fundo sem distinguir muito bem

a boa literatura da m .

Contei numa carta ao meu pai que sentia muito a falta do meu

piano. N"o eram passados quinze dias, e ei-lo que chegava numa

grande carro‡a, todo embrulhado em cobertores.

Assim, passei a tocar quase todos os dias. Sentava-me e

tocava, tocava o que me apetecia, sobretudo Chopin, talvez

porque era Inverno, e chovia. Tocava os Concertos em Fa menor

e em Mi menor, o Nocturno em Mi bemol maior. Tamb‚m gostava de

Liszt, principalmente de Berceuse e da Sonata em Si menor.

Depois, quando o tempo melhorou, comecei a tocar outras

coisas. Outras vezes acabava por dar comigo a improvisar, nem

sei o quˆ. Parecia que o ouvido se me tinha tornado mais

exigente e mais apurado.

Foi uma boa companhia para a solid"o daqueles meus dias

tristes, at‚ que em meados de Abril o Dr. Coimbra me deu por

curada e me mandou para casa com muitas recomenda‡"es. Que me

alimentasse bem e sobretudo que repousasse, que repousasse

bastante.

Assim, passava os meus dias a ler, a conversar com o meu pai,

a n"o pensar em coisa nenhuma.

Sempre acreditei que a felicidade ‚ algo que se nos oferece

quando menos esperamos. Basta saber agarrar esse momento. Por

isso, desde crian‡a que os meus olhos irrequietos se moviam

continuamente. Creio que isto acontecia porque acreditava que

um dia eles pousariam sobre alguma coisa ou algu‚m muito

especial. Estava certa de que n"o poderia enganar-me. Esse

momento seria o meu z‚nite, seria o ponto de viragem da minha

vida.

Cap¡tulo 4

Chegou coberto de poeira num entardecer parado de princ¡pios

de Maio.

Vinha caminhando devagar, silencioso, pela estrada sinuosa da

herdade. Cal‡ava umas botas velhas cobertas de terra.

Trazia uma camisa aberta e umas cal‡as muito largas que

esvoa‡avam ... medida que ele avan‡ava atrav‚s da brisa morna

que soprava ao de leve.

Chegou ... porta de casa e perguntou pelo meu pai.

Vinha pedir trabalho.

Era cozinheiro numa estalagem onde o meu pai costumava ficar

quando ia a Espanha a alguma feira, e um dia tinha-o ajudado a

escolher um cavalo que tinha sa¡do muito bom.

Por isso o meu pai tinha ficado a simpatizar com ele, que

parecia bom rapaz, e disse-lhe que sim, que ficasse, e que

fosse trabalhando na cozinha e na horta.

Fosse fazendo o que fosse preciso, ou aquilo em que se

ajeitasse melhor, que depois logo havia de se ver.

Chamava-se Mart¡n Llorgat Javier. Tinha trinta anos feitos.

Era baixo, bastante feio, moreno e entroncado, e tinha uma voz

rouca e desagrad vel.

Tinha o cabelo ondulado e quase azul, de negro que era, e t"o

brilhante que parecia que estava sempre molhado. Os olhos eram

negros tamb‚m, t"o negros que pareciam carv"es. Tinha umas

sobrancelhas carregadas que vinham unir-se junto ao nariz, uma

boca pequena de l bios grossos e uns dentes muito brancos.

Era muito metido consigo. Quase n"o falava com ningu‚m, nem se

ria, mas quando ria a casa toda abanava que parecia que o c‚u

se ia abrir numa trovoada.

Bem se esfor‡ava ele por falar portuguˆs, coitado, mas n"o era

capaz, dizia paussinho e m"ossinha.

Ao fim de umas duas ou trˆs semanas j se tinha tornado um

pouco mais comunicativo.

Tamb‚m tinha andado embarcado, e por isso quando andava todo o

seu corpo balan‡ava, como que a acompanhar o movimento das

ondas do mar.

Sabia muitas hist¢rias com marinheiros, gaivotas, temporais,

naufr gios, homens ca¡dos ao mar e outros que eram enforcados

nos mastros dos navios, mas eram sempre hist¢rias em que

morria algu‚m.

A comida que fazia era esquisita, ou pelo menos era diferente

da nossa. A mim deixava-me agoniada. Eu fingia que comia, mas

o meu pai percebeu e tirou-o da cozinha. Da¡ para a frente

passou a tratar dos cavalos.

Falava pouco, e s¢ com o meu pai. Com os outros n"o falava

sequer. N"o olhava quase para as pessoas.

Este seu temperamento, que hoje sei que era ditado pelo

orgulho, sim, mas tamb‚m por muita timidez, come‡ou a

despertar a minha curiosidade. Nunca tinha conhecido uma

pessoa assim.

Comecei ent"o a observ -lo um pouco mais de perto, a

espreit -lo, a espi -lo. Mart¡n n"o dava por nada, n"o dava

sequer pela minha presen‡a, ou pelo menos assim parecia.

Aos poucos notei que come‡ara a espiar-me tamb‚m, e esta

esp‚cie de jogo das escondidas durou at‚ ao Ver"o. Naquela

modorra parada, mon¢tona, em que viviamos mergulhados, foi a

forma que encontrei de me distrair um pouco.

Um dia saiu-me de tr s do palheiro, agarrou-me com for‡a por

um bra‡o, at‚ quase me magoar, olhou-me com uns olhos que

parecia que deitavam lume, e sussurrou-me entre dentes que o

n"o provocasse, "que j no soy un chiquillo!"

Andei uns dias assustada. Nessa altura ainda eu n"o tinha

sen"o uma vagu¡ssima ideia acerca dos mist‚rios da vida e do

amor.

Hoje sei que foi, em primeiro lugar, uma atrac‡"o irresist¡vel

aquilo que senti por Mart¡n. Era como se ele fosse um carv"o

aceso, e eu desejasse arder juntamente com ele.

Mas como disse, tudo isto eram coisas que eu sentia sem que o

soubesse, ou pelo menos sem que ousasse admiti-lo.

E assim continuou o nosso namoro de animais assustados. Mart¡n

tinha entrado no jogo, e todos os dias nos provoc vamos, nos

espreit vamos, fingindo que o faz¡amos ...s escondidas, mas

deixando, cada um de n¢s, que o outro se apercebesse da nossa

presen‡a.

Ainda hoje n"o entendo como ‚ que no Monte nem o meu pai, nem

a Ermelinda, nenhum dos que nos rodeavam, ningu‚m notava

aquilo que se estava passando. A £nica explica‡"o que encontro

‚ o ins¢lito da situa‡"o.

Eu, filha £nica do meu pai, herdeira de um t¡tulo e daquela

corti‡a toda, de amores com um homem assim, um estranho, um

desgra‡ado sem eira nem beira, um criado da casa? Era uma

coisa que n"o podia passar pela cabe‡a de ningu‚m.

Um dia, era um Domingo a seguir ao almo‡o, o meu pai tinha ido

a Portalegre tratar de neg¢cios. Os homens da herdade andavam

l para as casas deles, a Ermelinda e as outras criadas deviam

andar de volta dos seus bordados e das suas rendas.

Peguei num livro, levei uma almofada e fui sentar-me nas

traseiras da casa, perto do po‡o, ... sombra da oliveira grande.

' minha volta tudo era silˆncio. Nem os mastins ladravam. De

repente pressenti que algu‚m se aproximava.

Era Mart¡n. Na contra luz, todo ele, muito moreno, fazia um

contraste muito forte com a camisa branca e vermelha de

quadrados que trazia aberta no peito.

Aproximava-se e sorria-me. Eu n"o sabia muito bem o que

pensar. Sentou-se ao p‚ de mim, e dirigiu-se-me com um

atrevimento que eu nunca julgaria poss¡vel. E tratava-me por

tu!

Perguntou-me porque motivo n"o tinha sa¡do com o meu pai, e o

que estava a ler, e porque n"o tinha posto o vestido branco e

azul, que era aquele com que mais gostava de me ver.

Eu estava perfeitamente transida. De espanto, sobretudo.

Continuou a falar comigo numa voz macia como eu nunca lhe

tinha ouvido. Aos poucos foi aproximando as suas m"os das

minhas. Depois tomou-mas, beijou-mas, entretanto ia-me dizendo

coisas que eu ouvia fascinada.

Abra‡ mo-nos, beij mo-nos, acho que devemos ter passado assim

um grande bocado, at‚ que se ouviram os guizos dos cavalos.

Era o meu pai que estava de volta na charrette.

Mart¡n levantou-se. Pediu-me que lhe concedesse apenas alguns

minutos mais no dia seguinte. Queria falar-me dele, de mim, de

tudo o que poderia vir a ser a nossa vida, se eu quisesse.

Nessa noite acho que nem dormi, assustada, morta de medo, e ao

mesmo tempo com o cora‡"o entregue a um sentimento

incontrol vel de ang£stia e agita‡"o.

As coisas tinham chegado a um ponto que... n"o podia continuar

a enganar-me a mim pr¢pria, a fingir que era mentira tudo

aquilo que sentia.

Eu amava Mart¡n. Amava-o com todas as for‡as do meu corpo e da

minha alma, amava-o com uma estranha paix"o feita

simultaneamente de atrac‡"o e de repulsa, e que era mais

forte, incomparavelmente mais forte, do que qualquer outro

sentimento que alguma vez tivesse experimentado.

Por que motivo, pergunto-me hoje, e sobretudo com que direito,

mentem ...s raparigas? Porque lhes dizem que o amor ‚ uma doce

ternura cor de rosa?

O amor ‚ negro e ‚ brilhante, e ‚ vermelho, rubro como uma

labareda. Muito mais do que b lsamo, ‚ um carv"o em brasa que

nos queima, nos provoca um sofrimento, uma dor tremenda da

qual n"o podemos nem queremos libertar-nos.

Eu amava Mart¡n, sim, mas de qualquer forma n"o teria nunca

ousado tomar a primeira iniciativa.

No dia seguinte estive toda a manh" com o meu pai, na

cavalari‡a, de volta de um cavalo novo que tinha chegado de

Alter. Era muito bonito, ia chamar-se Viva‡o.

Mart¡n n"o parava de me olhar pelo canto do olho. O meu pai

estava ocupado, os outros tamb‚m, cada um com os seus

afazeres, n"o deram por nada.

Ao fim da manh" volt mo-nos a falar. Fal mos muito. Ao fim de

uma hora eu estava decidida. Por Mart¡n jogaria toda a minha

vida. Apostaria toda a minha felicidade naqueles olhos negros

como a noite, que brilhavam e me prometiam sonhos, loucuras,

gl¢rias e desvarios, e me prometiam, me davam j , um amor t"o

grande, t"o selvagem, t"o completamente animal, que todas as

minhas veias latejavam de desejo.

No dia seguinte, ... mesma hora, sem combinarmos, est vamos os

dois de novo no celeiro, e assim todos os dias.

Era uma verdadeira loucura. O meu pai, homem brando e pac¡fico

que era, tinha uma espingarda. Se nos descobrisse naquela

situa‡"o, a mim talvez n"o me fizesse nada, mas Mart¡n

certamente n"o sairia dali com vida.

Esse medo que t¡nhamos de ser descobertos, essa sensa‡"o de

perigo, parecia que nos agu‡ava mais ainda o desejo que

t¡nhamos um do outro.

Era j chegado, creio, o mˆs de Julho, quando fizemos amor

pela primeira vez. Fizemo-lo simples e rudemente. Foi num

Domingo, ... tardinha, dentro do celeiro. O momento em que me

rasgou o himen foi terrivelmente doloroso. Creio ter deixado

escapar um grito. N"o sei como n"o se ouviu em toda a herdade.

Agarrei-me com uma das m"os a uma trave, com a outra ao cabo

de uma forquilha que ali estava tombada sobre a palha, fechei

os olhos e cuidei que morria. Solucei de dor, sem me poder

mexer.

Para al‚m desta minha dor, terr¡vel e intensa, sentia-me

assustada, como um p ssaro ferido. Mart¡n entendeu isso,

enla‡ou-me com for‡a e do‡ura, e assim fic mos um longo

momento, abra‡ados, como se o mundo fosse acabar.

Dessa vez a Ermelinda desconfiou que alguma coisa se passara.

Viu-me entrar em casa apressada e fechar-me no meu quarto.

Tinha de trocar de vestido, aquele estava manchado de sangue.

Quando sa¡ do quarto perguntou-me o que tinha, que estava

esquisita.

Contei-lhe tudo. Que Mart¡n e eu nos am vamos, que tinha

acabado de lhe entregar o meu corpo. Ela deitou as m"os ...

cabe‡a.

- Oh menina! Que grande desgra‡a! E o seu paizinho? O que ‚

que ele vai dizer? Oh meu Deus! O que a menina foi fazer! O

seu paizinho ‚ t"o bom, e quando souber disto vai ter um

desgosto t"o grande!

- Eu sei, Ermelinda, eu tamb‚m n"o queria que ele sofresse,

mas agora o que ‚ que eu hei-de fazer?

- Oh menina! Pe‡a-me tudo, mas n"o me pe‡a que seja eu a

dizer-lhe! Oh meu Deus! A culpa foi toda minha, que havia de

ter olhado pela menina, mas aqui no Monte, neste sossego, como

‚ que eu ia adivinhar que ia acontecer uma coisa destas? Como

‚ que eu podia adivinhar?

- Deixa l , e n"o chores, que n"o vale a pena. Se eu tivesse

morrido, n"o era pior?

- Oh menina Beatriz! N"o diga uma coisa dessas, que Deus Nosso

Senhor pode castigar!

- Ent"o pronto, n"o contes nada ao meu pai, nem te aflijas,

vais ver que tudo se h -de arranjar.

- Oh menina! Diga a esse homem que fuja, ele que se v embora,

que ‚ melhor! melhor para ele, e ‚ melhor para n¢s.�

- Se ele se for embora, Ermelinda, eu vou com ele. N"o o largo

por coisa nenhuma deste mundo!

Nesse momento ela tirou um len‡o do bolso do avental, enxugou

os olhos e foi para a cozinha a solu‡ar.

Sentei-me ao piano e toquei, toquei durante muito tempo, uma

hora, talvez duas, nem sei o quˆ.

Depois o meu pai chegou para jantar, eu estava um pouco mais

calma, j s¢ me tremiam as m"os. Procurei agir com

naturalidade, mas n"o era f cil. N"o era nada f cil!

A Ermelinda ia servindo ... mesa, como fazia todos os dias, s¢

os olhos ‚ que parecia n"o conseguir levant -los do ch"o.

A meio do jantar entornei um copo de gua sobre a toalha, que

era uma coisa que desde garota n"o me acontecia.

Felizmente o meu pai, na outra extremidade da mesa, com os

candelabros de prata pelo meio, n"o me podia ver muito bem, e

n"o se apercebeu de nada, mas de qualquer forma Mart¡n e eu

n"o podiamos ficar ali nem mais um dia.

Nessa mesma noite fugimos.

Cap¡tulo 5

Sa¡ pela janela, sem fazer barulho. Levava uma trouxa com duas

mudas de roupa, o medalh"o da minha m"e numa caixinha com os

brincos de ametistas que tinham sido dela tamb‚m, as minhas

libras de ouro, e o livro, aquele meu livro favorito.

Levei ainda o meu frasco de perfume, que estava ainda em mais

de meio. Partiu-se na viagem. Mal eu sabia quanto tempo teria

de esperar at‚ poder comprar um novo frasco de perfume.

Partimos. Antes de sair da cavalari‡a ainda abracei e beijei

demoradamente a minha ‚gua Rosmaninha.

Galop mos toda a noite, n"o fosse o meu pai mandar os homens

da herdade atr s de n¢s para me levarem de volta.

Atravess mos um rio baixo, devagar para n"o assustar o animal.

Do outro lado j era Espanha. Galop mos ainda um bom bocado, e

cheg mos ent"o a um albergue muito sujo onde dormimos algumas

horas.

Era Ver"o mas estava frio e chovia muito.

Havia uma esp‚cie de cozinha grande com mesas corridas e uma

grande lareira toda em pedra. Estava bem acesa, com carv"o e

troncos grossos de madeira, e ... volta estavam alguns homens a

falar baixinho, como se estivessem a falar de n¢s, mas Mart¡n

garantiu-me que n"o, que era por serem velhos, e por j ser

muito tarde, ou seria por estarem com frio.

A uma mesa, num canto, estavam trˆs homens mais novos, a falar

tamb‚m muito baixo. Mart¡n disse-me que eram contrabandistas,

e um deles tinha um bon‚ castanho de l" que lhe cobria as

orelhas. Volta e meia virava a cabe‡a, olhava em volta, e

baixava mais ainda o tom de voz.

Acho que comemos p"o escuro, chouri‡o e azeitonas, j n"o me

lembro bem, e bebi uma caneca de vinho tinto. Eu n"o queria,

que n"o estava habituada, mas Mart¡n disse que tinha de ser,

que era para dar for‡as.

Eu s¢ me lembrava dos contos do Tchekhov e das suas descri‡"es

aterradoras de estalagens que eram covis de ladr"es a afiarem

na noite os seus facalh"es enormes, e n"o podia deixar de me

sentir um tanto assustada com tudo aquilo, mas era tolice.

Enquanto tivesse o amor de Mart¡n, nada de mal poderia

acontecer-me.

Com aquela cavalgada debaixo de chuva, sentia-me encharcada,

enregelada at‚ aos ossos, mas n"o foi a lareira nem foi o

vinho tinto, foram os bra‡os de Mart¡n que nessa noite me

deram conforto e calor. Ah, como o corpo dele era amigo do

meu, dizia-me ele...

Como Romeu e Julieta, tamb‚m n¢s, culpados, nos am vamos com a

inocˆncia dos que o n"o s"o afinal.

De qualquer forma j n"o poderia voltar para tr s, mesmo que

quisesse. E a verdade ‚ que n"o queria. Por nada deste mundo

largaria Mart¡n.

Muitos me julgar"o a £ltima das mulheres. Tinha tudo aquilo

que a vida pode dar de melhor a uma rapariga da minha idade,

inclusive um pai que me adorava e que seguramente n"o deixaria

de me proporcionar oportunidades de conhecer algum rapaz que

me agradasse, um pai que n"o merecia que eu lhe fizesse o que

fiz, e que certamente ter sofrido muito com a minha partida.

Ah, como ‚ f cil julgar-me assim!

Daqui a algum tempo, pensava eu, hei-de escrever uma longa

carta. O meu pai h -de compreender que a minha paix"o por

Mart¡n foi mais forte do que eu. Esta carta, v rias vezes

come‡ada em Sevilha e depois em Paris, n"o cheguei a

termin -la nunca, nem a envi -la. N"o tive coragem.

Dormimos pouco naquela noite, talvez umas trˆs ou quatro

horas. Tinhamos de continuar o nosso caminho.

Era ainda quase de noite quando retom mos a cavalgada, que

durou o dia todo. Por duas vezes par mos para descansar o

animal e para comer p"o com queijo e ovos cozidos, que tinha

sido a £nica coisa que na estalagem nos tinham podido vender.

Era j bastante tarde quando cheg mos a Sevilha, a casa da m"e

de Mart¡n. Era uma casa pequena e pobre, como todas as daquele

bairro de Santa Cruz, mas estava caiada de novo. Ficava no

Callej¢n del †gua, junto ao jardim do Alcazer.

A m"e dele era uma velha mirrada e encardida, com cara de ter

passado dias de muita fome. Hoje que penso nisso, n"o creio

que fosse muito diferente das mulheres que eu estava habituada

a ver l pela herdade. Olhava para Mart¡n e ria-se toda,

desdentada e cheia de rugas.

Para mim olhava desconfiada, com uns olhos pretos de rato,

pequeninos e vivos. Devia ser por causa da minha cor mais

clara, ou seria por eu ser uma estranha, ou por estar ali com

o filho dela, sem sermos casados nem nada.

O pai de Mart¡n era catal"o. e tinha sido morto pela Guarda.

Toda a vida tinha sido contrabandista, mas n"o tinha sido por

isso que o tinham morto.

Tinham-no morto por causa de uma coisa a que chamaram a M"o

Negra. Um dia Mart¡n explicou-me o que era. Tinha sido um

grupo de homens que andavam armados com facas, e entravam na

casa dos ricos, e matavam-nos, porque diziam que neste mundo

n"o podiam viver aldeias inteiras ... fome s¢ para sustentarem

meia d£zia de in£teis.

Mart¡n contava-me estas coisas extraordin rias, e eu

acreditava nele, mas punha-me a pensar no que diria o meu pai

se ouvisse uma coisa assim, e o padre Fernando tamb‚m n"o

havia de gostar, e se algum desses das facas l fosse ... igreja

confessar-se, at‚ era capaz de n"o lhe dar a absolvi‡"o.

Depois a Guarda parece que come‡ou a andar atr s deles, e

acabou por apanh -los, a muitos deles, e ao pai de Mart¡n

tamb‚m, por causa de um casal que tinha aparecido esfaqueado

em Trebujena, e depois levaram-nos para Jerez de la Frontera,

e l os mataram. Foi no ano de 1883.

Mart¡n praticamente n"o tinha chegado a conhecer o pai. Tinha

crescido no meio de muita fome e de muita mis‚ria, e achava

que a Guarda lhe tinha roubado muita coisa. Era por isso que

lhes tinha um ¢dio t"o grande, e aos ricos, e aos padres.

Ali fic mos dois anos, e eu fazia para a m"e de Mart¡n aquilo

que na minha casa nunca teria feito. Lavava, esfregava,

cozinhava, mas eles n"o pareciam gostar muito da minha comida.

Acho que n"o lhes sabia a nada.

Seria por estarem habituados ... deles, que levava muitos

fritos, e pimentos encarnados, e muito azeite e muito alho,

que ‚ uma coisa que no Alentejo tamb‚m h , e a comida dos

homens l na herdade era assim temperada, mas tem um cheiro

muito forte e desagrad vel.

Eu por mim prefiro comida mais leve. Gosto de omeletes com

salada, e de fiambre, e de peito de per£ cortado fino, e de

peixe grelhado com manteiga e sumo de lim"o.

Aos poucos e poucos fui percebendo que a m"e de Mart¡n era uma

velha horr¡vel. Andava sempre de preto. Debaixo do avental

trazia uma bolsa de cetim cheia de dinheiro. Devia ser o

dinheiro todo que tinha, e trazia-o ali com medo que lho

roubassem.

Amarrado junto ... bolsa trazia um ros rio de contas pretas.

Tinha no quarto um pequeno orat¢rio com meia d£zia de santos.

Era uma Macarena, uma crucifixo, um S. Martinho, um S.

Crist¢v"o, uma Senhora do Carmo e outra do Pilar, uma Sta

Teresinha e um S. Jo"o Baptista.

Ao lado do orat¢rio, pendurada na parede com um prego e um

la‡o, tinha uma tran‡a de cabelo j todo roida da tra‡a. A mim

metia-me um bocado de nojo. Era dela, quando era nova. Tinha

sido uma promessa que tinha feito, de oferecer a tran‡a ...

senhora do Carmo, no dia em que Mart¡n tinha nascido, que a

comadrona, ou seja, a parteira, tinha visto as coisas muito

mal paradas.

Todos os dias, atrav‚s da porta do quarto, a ouv¡amos

cantarolar em voz alta desfiando o seu ros rio.

Trazia tamb‚m uma argola com as chaves da despensa, e s¢ ela ‚

que l entrava, e no galinheiro tamb‚m, com medo que l fossem

roubar-lhe os ovos, ou alguma galinha, acho eu, que andavam

muitos vadios de noite pelos p tios e pelos quintais.

Sa¡a de casa de manh" muito cedo para ir ... missa, e a seguir

passava no mercado a comprar alguma coisa que fosse preciso.

Estava de volta a¡ pelo meio da manh", e o tempo que demorava

devia ser na conversa com outras velhas, porque as compras que

fazia nunca eram muitas.

Naquela casa mais depressa faltava do que sobrava. Muitas

vezes me levantei da mesa, n"o direi propriamente com fome,

mas com a sensa‡"o que de bom grado teria comido... ao menos

mais um peda‡o de p"o. Mas ‚ramos quatro a comer, e o pouco

que havia tinha de chegar para todos.

Eu n"o ia com ela ... missa nem ao mercado. Fui habituada a ir ...

missa desde pequenina, e um passeio pelo mercado bem me podia

tamb‚m ajudar a espairecer um pouco, mas era a companhia dela

que me incomodava.

Incomodava-me o h lito dela, que tinha os dentes todos p"dres,

incomodava-me o cheiro a ran‡o que vinha do cabelo dela, que

at‚ fazia v¢mitos, incomodava-me a voz dela, rouca e gritada.

Mas tudo isto me era no fundo quase indiferente. Tinha o amor

de Mart¡n, tinha os seus olhos que me queimavam como brasas,

os seus bra‡os que me seguravam como tenazes, a sua barba que

me arranhava at‚ quase me fazer sangrar, os seus dentes que me

mordiam os seios at‚ que eu gritasse, o sexo dele que era como

uma espada que me queimava por dentro e me rasgava as

entranhas cada vez mais fundo, sem que o meu corpo deixasse de

o desejar cada dia, de novo, e outra vez, e mais, e mais.

Dormia, noite ap¢s noite, docemente enla‡ada nos seus bra‡os,

embriagada do cheiro forte do seu corpo. O resto pouco me

importava.

Um dia levou-me a conhecer um pouco mais da cidade. A Torre da

Giralda, esmagadora na sua altura, a Catedral, esmagadora na

sua grandiosidade, na solidez dos seus blocos de pedra.

Esmagadora era tamb‚m a riqueza do seu tesouro, todo aquele

ouro, as pedras... Tamb‚m me levou a ver o Alcazer. A¡ foi a

presen‡a de uma cultura milenar, foram os lavrados no gesso, a

presen‡a do cor"o em t"o perfeita harmonia com a arte, que me

deixou esmagada de assombro e prazer.

Alguns dias depois levou-me tamb‚m a ver a Macarena. Nunca vi

uns olhos assim, que tanto me impressionassem.

Quando me apetecia dava uma volta pelo bairro, mas n"o me

afastava muito, tinha receio de me perder pelas calles,

callejas e callejones daquela cidade imensa e desconhecida.

Uma coisa que me deixou surpreendida foi a forma como os

sevilhanos celebravam as festas da Semana Santa.

Faziam uma prociss"o que era qualquer coisa de grandioso.

Levava um dia inteiro a passar. Eram centenas, milhares de

pesoas, mais alegres do que fervorosos, pareceu-me a mim, mas

o mais impressionante eram os membros das confrarias, os

nazarenos, que levavam uma esp‚cie de carapu‡o alto e bicudo

enfiado na cabe‡a, s¢ com uns buracos para os olhos.

Quando os vi na prociss"o a primeira coisa de que me lembrei

foi de um livro que o meu pai tinha na biblioteca, sobre a

Inquisi‡"o. Trazia algumas estampas, e os carrascos que

infligiam os supl¡cios ...queles pobres desgra‡ados usavam uns

carapu‡os iguais aos dos penitentes sevilhanos, assim bicudos

e tudo.

Talvez por isso, esta prociss"o um tanto assustadora n"o se

pode dizer que me tenha agradado muito. Tenho mesmo alguma

dificuldade em compreender esta forma l£gubre que os cat¢licos

tˆm de viver a sua f‚.

Mart¡n tinha uns amigos que moravam na Calle Sierpes, e

cederam-nos uma janela, de forma que ali fic mos toda a noite

de Quinta-Feira Santa.

' meia noite sairam da Igreja da Macarena com a imagem.

Passava das trˆs da manh" quando os vimos surgir ao fundo da

rua, eram quase quatro da manh" quando passaram debaixo da

nossa janela. Vinha com um manto todo borado a ouro e p‚rolas,

rodeada da Guarda de Honra toda engalanada, os cavalos

enfeitados com plumas na cabe‡a. Era um espect culo digno de

se ver.

N"o deviam ter ficado muito cansados, os sevilhanos, com esta

festa, porque na semana seguinte j estavam a fazer outra, com

corridas de toiros, mostras de cavalos, gente a cantar e a

dan‡ar pelas ruas e comes e bebes que eram um exagero. Mart¡n

ouvia-me fazer estes coment rios e n"o se aborrecia, ria-se

comigo.

Um dia ainda tentou ensinar-me a tocar castanholas, mas eu,

pura e simplesmente, nunca consegui aprender. Para isso era

preciso que tivesse nascido ali, que tivesse sido educada

naquele ambiente. Ele dizia que era uma coisa que vinha de

dentro de n¢s, e que, ao contr rio daquilo que eu poderia

pensar, as castanholas n"o se tocavam com os dedos, tocavam-se

com o corpo todo, com os p‚s, com os ouvidos, com o cora‡"o.

Entretanto, que fazia Mart¡n? Desde que cheg ramos a Sevilha

que todos os dias sa¡a de casa de manh" cedo, mas n"o ia

trabalhar. Eu n"o entendia o que ele ia fazer, e

perguntava-lhe, e ele ria-se, e n"o explicava. Ia-me

prometendo que logo me diria tudo.

At‚ que uma noite obtive finalmente a resposta. Mart¡n ia,

pura e simplesmente, conspirar. Estava ligado a um grupo de

outros que pensavam como ele, e todos juntos estavam tentando

achar a forma de destronar Afonso XIII. Entregar o governo ao

proletariado, eis o que havia a fazer pela Espanha.

Mas tamb‚m havia o irm"o de Mart¡n. Chamava-se Crist¢bal, mas

chamavam-lhe Toba. Era mais velho, mais alto e mais claro de

pele, e menos entroncado. Tinha tamb‚m um temperamento muito

reservado. A mim tratava-me como se eu n"o existisse, ou

melhor, ignorava-me por completo. Entrava e sa¡a de casa e n"o

cumprimentava ningu‚m.

Era solteiro, e trabalhava em casa de um outro, como

carpinteiro de m¢veis.

Ao Domingo ia pescar para as margens do Guadalquivir, mas

poucas vezes trazia alguma coisa que valesse a pena.

Das ideias pol¡ticas de Mart¡n n"o queria nem ouvir falar.

Dizia que n"o t¡nhamos amor ... vida, e que a Guarda ainda ia

acabar por dar connosco.

A partir de certa altura Mart¡n passou a trazer os amigos e

passaram a reunir-se l em casa, ... volta da mesa da cozinha.

Crist¢bal ficava furioso. Dizia que n"o estava para pagar por

aquilo a que chamava "las tonterias de Mart¡n". Houve uma

manh" em que a discuss"o se acendeu, de repente j uma faca

brilhava na m"o de Crist¢bal. Se n"o fosse a m"e, que lhes deu

um grito e se meteu no meio dos dois, nem quero pensar na

trag‚dia que naquela manh" podia ter acontecido.

A partir desse dia passei a respeitar aquela velha com pouco

mais de um metro de altura que num segundo conseguiu apartar

dois homens como aqueles.

Havia nas traseiras da casa uma esp‚cie de pequeno p tio

caiado de branco que dava para as traseiras de outras tantas

casas. Tinha duas laranjeiras, um banco de pedra, e no centro

tinha um po‡o com uma gua leve e muito boa para beber.

Era um lugar encantado. Ali passei algumas tardes de sossego,

a ler, a ouvir os p ssaros. Sentia-me bem ali como n"o me

sentia em nenhum lugar do interior daquela casa.

' noite via os pirilampos sobre os canteiros do p tio, e

lembrava-me de quando era menina, l na herdade. Abria a

janela do meu quarto e ficava a olhar para as estrelas.

's vezes, sobretudo no Ver"o, ouvia-se nos outros p tios

cantar e dan‡ar pela noite fora. No nosso isso n"o acontecia,

porque as melhores bailarinas de flamenco eram as ciganas, e

essas s¢ gostavam de fazer a festa no seu pr¢prio p tio.

Dan‡avam as sevillanas, cante-jondos, seguidillas. Eles bem me

explicavam que eram cantares e dan‡ares todos diferentes uns

dos outros, mas para mim era tudo a mesma coisa.

Mart¡n n"o era um grande apreciador nem de flamenco nem de

corridas de toiros. Aceitava-as como manifesta‡"es art¡sticas

e culturais, mas entendia que eram coisas de que os governos

se serviam para distrair os povos, entorpecendo-os,

diminuindo-os, embebedando-os espiritualmente, impedindo-os de

pensar nos seus problemas do dia a dia e de tomarem parte na

nossa luta pol¡tica.

Eram anest‚sicos de que se serviam para adiar a Revolu‡"o

social, que era, ao fim e ao cabo, a £nica coisa

verdadeiramente importante e urgente, e tudo isso com a £nica

finalidade de mais facilmente nos explorarem e oprimirem.

Enquanto se entretinham a sapatear, a cravar bandarilhas e a

rezar ... Macarena, esqueciam a mis‚ria em que viviam e, pior

ainda, esqueciam os motivos pelos quais assim viviam, e o que

havia a fazer para modificar a vida de todos e de cada um.

Eram uns oito ou dez, os amigos de Mart¡n, e trˆs mulheres.

Usavam umas camisas que talvez j tivessem sido brancas, e

coletes pretos por cima. Mart¡n, esse ent"o, s¢ gostava de

camisas de quadrados vermelhos, e n"o usava colete nem chap‚u.

Eram o Paco, o Benito, o Pirri, o Dominguez, o Balseras, a

Carmen, a Pepa, a Marivi, o Manolo Ruiz, o Nu¤ez, o Moreno e o

Juanito.

O Balseras era um de olhos claros que se dizia revolucion rio

... maneira brissotiana, ainda hoje estou para saber o que

quereria ele dizer com isso.

A Marivi era uma que vivia de dan‡ar flamenco ... noite numa

taberna. Era bonita e meia aciganada. As outras n"o gostavam

muito dela, creio que a consideravam praticamente uma

prostituta, mas Mart¡n dizia que era um elemento muito £til

porque tinha facilidade em estabelcer contactos, e sempre ia

ouvindo coisas que se diziam pela taberna.

N"o sei porquˆ, tive sempre a sensa‡"o que entre Mart¡n e

Marivi (r)alguma coisa¯ teria havido no passado.

A Pepa, para mim, era de todos a mais simp tica. Era uma

rapariga franzina, de olhos cor de castanha, com a pele entre

o rosa e o alaranjado. Via-se que era muito t¡mida, e talvez

por isso falava poucas vezes, mas quando falava era tomada por

um entusiasmo espantoso, cheio de uma f‚ sincera e generosa.

Foi, de todos, a primeira que me acolheu com um sorriso doce e

caloroso.

A Carmen vendia galinhas no mercado. Era alta, morena e

desempoeirada. Uma vez, no meio de uma discuss"o, ferrou duas

bofetadas no Cabo da Guarda que o deitou por terra. E ele

ficou com elas, meteu o rabo entre as pernas e foi-se embora.

Quem tem raz"o tem sempre muita for‡a, dizia ela.

O Moreno era o pai da Pepa. Era um j velhote, com pouco

cabelo e uma grande barriga, andava apoiado a um cajado,

coitado, acho que j nem percebia metade do que se dizia nas

reuni"es, mas respeitavam-no muito porque tinha dado mais de

cinquenta anos da sua vida ... nossa causa.

O Dominguez era estucador. Era alto, de cabelo encaracolado,

um tanto esquivo e arredio. Tinha a cara picada das bexigas e

isso dava-lhe o ar de um galo brig"o. N"o gostava muito do

cunhado, que era o Pirri. Hist¢rias antigas, diziam eles.

Esse Pirri era o brincalh"o do grupo. Qualquer coisa lhe

servia para tro‡ar dos outros. Era baixo, louro e corado, e

nos l bios tinha sempre um sorriso atrevido.

O Paco e o Benito eram dois irm"os que moravam do outro lado

da cidade. Eram rapazes novos e cheios de entusiasmo, ...s vezes

at‚ se excediam um bocado. Eram brutos que se fartavam.

Cuspiam para o ch"o ali mesmo no meio da nossa cozinha.

Um dia chegaram com uma ideia nova. Faz¡amos uma lista de

pessoas que, se aparecessem mortas, a culpa ca¡sse sobre os

soldados da Guarda. Os sogros deles, os vizinhos, mas

sobretudo pessoas que tivessem tido alguma desaven‡a com algum

deles, e mat vamo-los, um a um.

Depois era f cil come‡ar a espalhar que tinham sido eles, os

da Guarda, quem mais ‚ que podia ter sido? No dia em que o

povo todo se levantasse contra eles n¢s aproveit vamos,

ca¡amos-lhes em cima e davamos cabo deles de uma vez por

todas. Felizmente a ideia n"o foi aprovada. Tinha sido uma

sangueira.

O Juanito era um que tinha fugido ... tropa. Comia pouco, falava

pouco, tossia muito, uma tosse cavada que eu bem conhecia.

Devia ter alguma coisa nos pulm"es. Era bom rapaz e eu

simpatizava bastante com ele. Aparecia sempre muito bem

barbeado, penteado com fixador, com o fato muito limpo, muito

bem escovado, ...s vezes at‚ cheirava a gua de col¢nia, e os

outros faziam um bocadinho de tro‡a dele. De uma vez o

Dominguez parece que lhe chamou "maric¢n" e iam-se pegando os

dois ... pancada.

O Manolo Ruiz era o dono da taberna onde dan‡ava a Marivi,

trˆs ou quatro ruas mais adiante, e defendia-a sempre. Marivi

n"o era aquilo que algumas pessoas pensavam. Era uma boa

rapariga e j se tinha arriscado muito pela nossa causa, dizia

ele.

Esse Ruiz tinha veleidades de poeta, e dentro do g‚nero

popular n"o deixava de ter alguma gra‡a. Tinha uma barriga que

parecia um abade, e quando queria convencer as pessoas de

alguma coisa come‡ava a gaguejar, exaltava-se muito e agitava

os bra‡os como um rel¢gio que de repente come‡asse a andar com

os ponteiros desordenadamente para um lado e para o outro.

O Nu¤ez era o empregado dele. Entrava mudo e sa¡a calado.

Ningu‚m sabia muito bem ao certo o que pensava de tudo aquilo,

mas o Manolo tinha ficado por ele, que era de confian‡a, e por

isso ali estava connosco.

Tratavam-se todos por camaradas, falavam de Marx e de Lenine,

abriam garrafas de vinho e bebiam ... Revolu‡"o. Estava para

breve, diziam eles.

Ficavam at‚ tarde, falavam muito depressa e eu nem sempre os

entendia. Ainda por cima usavam palavras que eu nunca tinha

ouvido, e falavam de coisas que eu nem sabia que existiam.

Noite ap¢s noite, ... medida que enxugava a loi‡a, ia-os ouvindo

falar, e ... medida que as semanas passavam ia-os entendendo

cada vez melhor.

Uma noite decidi. Socialista, Anarquista, ou qualquer outra

coisa que Mart¡n fosse, o meu lugar era ao lado dele. Puxei de

um banco e sentei-me. Ele n"o me disse nada. Levantou-se,

pegou no copo, sorriu, olhou ... volta e brindou ... nova camarada

que acabava de aderir ao Partido.

A partir da¡ comecei a ler tamb‚m alguns te¢ricos. Ao fim de

algum tempo eu era uma revolucion ria em tudo igual a eles.

Confiaram-me ent"o a miss"o de traduzir do inglˆs e resumir

passagens de livros de forma a poderem ser depois passadas

para espanhol, para serem publicadas no jornal, que era feito

em casa do Pirri.

Um dia n"o resisti, e escrevi eu pr¢pria um pequeno texto.

A tinta com que escrevo ‚ vermelha como os meus l bios que

cantam. Os meus olhos experimentam um prazer intens¡ssimo

enquanto vou saboreando as letras com o brilho de rubis e o

sabor de frutos silvestres que a encarnado vivo, uma a uma,

sobre o papel, v"o ganhando forma e significado. Porque sou um

animal carn¡voro, uma loba esfaimada, insaci vel. Vou

devorando a vida, mastigando cada momento, momentos que s"o

como papoilas desfraldadas ao vento. Vou roendo cada instante,

s"frega da rubra paix"o de viver, vou bebendo o meu c lice

tinto do sangue e das labaredas em que ardo... escarlate...

p£rpura...

Uma Camarada

Era como asin vamos os textos. Para que entre n¢s n"o

existissem distin‡"es, mas sobretudo para n"o fornecer nenhuma

pista ...s autoridades, se por acaso algum exemplar lhes fosse

parar ...s m"os.

At‚ que ponto consigo, pelo menos neste texto, dissociar a

minha paix"o rubra por Mart¡n da minha op‡"o ideol¢gica, nem

eu pr¢pria o sei.

E assim decorreram mais de dois anos. Entretanto fui ganhando

cabelos brancos, os dedos foram-se-me tornando vermelhos e

mais grossos, as costas foram-se-me vergando sob o peso

daquela mis‚ria.

' for‡a de carregar com baldes de gua e cestos de lenha

pesados, e de esfregar ajoelhada o ch"o da cozinha, creio ter

perdido muito daquilo a que, meio a brincar meio a s‚rio, o

meu pai chamava o meu porte de princesa.

Um dia veio uma rapariga que eu n"o conhecia. Chamava-se

Dolores, e ... primeira vista parecia apenas uma igual a outra

qualquer, mas quando come‡ou a falar vibrava, toda ela, de

tanta emo‡"o, de uma paix"o de tal forma arrebatada que nos

tocava at‚ ao mais profundo das nossas fibras.

Por essa altura come‡ mos a sair na carro‡a com a mula.

Lev vamos tachos e panelas, e se a Guarda perguntasse alguma

coisa Mart¡n fazia-se passar por funileiro, que ‚ uma

profiss"o que obriga a viajar bastante.

‹amos devagar, por causa do calor, e Mart¡n assobiava

baixinho:

En pie, oh vitimas del hambre,

en pie hambrientos de la tierra...

A vida dos andaluuzes n"o era muito diferente da dos

alentejanos.

O meu pai tinha mil e duzentos hectares de sobreiros. Todos os

anos se contratavam homens e mulheres para o trabalho da

corti‡a numa das zonas da herdade. Eram os ganh"es. Passavam

devagar, como se estivessem cansados, muito queimados do sol.

Quando eu era menina muitas vezes me punha a observ -los. 's

vezes assavam bolotas para comer, outras vezes comiam p"o com

queijo, comiam azeitonas, mas a maior parte dos dias desconfio

que n"o comiam mais nada.

Hoje imagino como deviam odiar-nos, ao meu pai e a mim. Com o

mesmo ¢dio surdo e revoltado com que Mart¡n odiava todos

aqueles a quem culpava pela sua infƒncia de tanta mis‚ria. O

mesmo ¢dio que estes camponeses andaluzes votavam aos senhores

daquelas terras de fome, camponeses bisonhos que passavam por

n¢s de cenho franzido, com medo, talvez, que lhes quis‚ssemos

roubar o peda‡o de p"o de h uma semana que levavam na sacola.

Cheg vamos ...s aldeias, e iamos directamente procurar o homem

de confian‡a do Partido. Mart¡n conhecia-os bem, e faziam-lhe

todos uma grande festa.

Depois ... noite ¡amos para casa do principal, reuniamos todos

os que faziam parte desse n£cleo, e fal vamos daquilo que nos

interessava, a Revolu‡"o. J n"o tardava, e ent"o todos os

pobres do mundo seriam vingados da fome, da mis‚ria, das

humilha‡"es sofridas ao longo de tantos s‚culos.

Uma noite, em M laga, em casa do camarada Jos‚ Maria, fomos

avisados por um garoto que era filho de um deles. Vinha

ofegante, a correr, que o tinha mandado o irm"o. Que

fug¡ssemos, que o J£lio nos tinha tra¡do, vinha l a Guarda.

Mal tivemos tempo. Num instante sairam todos para a rua,

esgueiraram-se pelos becos, o Jos‚ Maria e a mulher meteram-se

na cama, apagaram-se as velas. N"o eram passados dois minutos,

bateram ... porta com pancadas que fizeram estremecer a casa

toda. Era a Guarda.

Entraram, com as botifarras a bater no ch"o com toda a for‡a,

devia ser para nos assustarem, revistaram o que quiseram, n"o

encontraram nada que comprometesse ningu‚m. Apenas os donos da

casa que estavam j deitados, e n¢s, que ‚ramos uns compadres

que andavam em viagem e ali estavam a passar a noite,

enroscados no ch"o da cozinha ao p‚ do fog"o. Foi por um triz!

Esse tal de J£lio umas duas ou trˆs semanas depois parece que

foi apanhado de noite por uma quadrilha de ladr"es, e apareceu

morto com duas facadas na barriga e uma no pesco‡o. Foi o que

constou, pelo menos...

A pol¡cia andava atr s de n¢s. Os jornais j por v rias vezes

se nos tinham referido como (r)os perigosos cabecilhas dos

movimentos insurreccionais¯.

Todos os membros do Partido eram procurados, perseguidos,

presos, dizia-se at‚ que os enforcavam de noite, nos p tios

das pris"es, ...s escondidas, sem julgamento, sem nada que n"o

fosse a pressa de se verem livres deles, de os matarem.

Assassinos!

Cap¡tulo 6

O sangue pingava para o ch"o

Por isso um dia fugimos para Fran‡a. Fomos de carruagem, de

comb¢io de mercadorias, a cavalo, a p‚.

T¡nhamos um camarada que sabia fazer papeis falsos. ramos o�

senhor e a senhora Juan Fernandez, um casal de emigrantes

esfomeados, como tantos outros, a fugir ... mis‚ria.

N"o levavamos nada, nada mesmo. Nem livros, nem panfletos,

nada que nos denunciasse. Em contrapartida, quantos sonhos

lev vamos connosco, quantos projectos!

Mart¡n pretendia reunir em Fran‡a um ex‚rcito de patriotas

revolucion rios, com eles marchar sobre Madrid, matando se

preciso fosse, a torto e a direito se preciso fosse, mulheres

e crian‡as se preciso fosse. Tomariam ent"o o poder,

instaurariam o governo revolucion rio do proletariado.

A vigilƒncia da Guarda era menos apertada a Leste dos

Pirin‚us, dizia Mart¡n, de forma que foi esse o itiner rio que

escolhemos.

Evit mos Madrid, que Mart¡n dizia que era muito perigoso.

Assim, de Sevilha fomos direitos a Valˆncia, e da¡, sempre ao

longo da costa, at‚ Barcelona, onde cheg mos numa sexta-feira

... noite.

Fic mos dois dias em casa de um primo de Mart¡n. Chamava-se

Joan Llorgat. Era alto, moreno, de cabelos ralos. N"o era

propriamente um camarada, mas tamb‚m n"o era pessoa que nos

fosse denunciar. Digamos que n"o se queria meter em apuros,

mas era um simpatizante da nossa causa.

Era pedreiro. Trabalhava nessa altura, ele e muitos outros,

numa igreja que tinham come‡ado a fazer, dedicada ... Sagrada

Fam¡lia, e dizia que dava em louco com aquilo, que parecia que

estava tudo torto, e depois ia-se a ver e afinal estava

direito.

As torres da igreja, por exemplo, faziam lembrar os castelos

dos Xiquets de Valls, que eram grupos de rapazes, ...s vezes

mais de uma d£zia deles, que se punham todos de p‚ e se

equilibravam em cima dos ombros uns dos outros, e n"o ca¡am.

O arquitecto que fazia estas estranhas coisas chamava-se

Gaudi. Nesse Domingo Llorgat levou-nos a ver o Parque Guell e

algumas casas feitas por ele, a Casa Vicens, a Casa Batll¢, a

Casa Mil . Era extraordin rio!

Misturava cimento com azulejos e ferros trabalhados e

torcidos, juntava esses materiais de forma a ir ao encontro

das formas mais simples da natureza, como um caracol ou uma

espiga de trigo, e conseguia efeitos de uma grandiosidade que

tocava o infinito! Almo‡ mos "un entrep n de pernil", que era

uma sanduiche de presunto em catal"o.

De bom grado teria ficado alguns dias mais em Barcelona, mas o

dia seguinte era uma segunda feira, Llorgat tinha de ir

trabalhar, n¢s despedimo-nos e seguimos para Paris.

Entretanto por essa altura mataram o Arquiduque

Francisco-Fernando, e estalou a Grande Guerra.

Por um lado Paris em 1914 n"o era certamente o lugar mais

seguro para se viver, mas a Pol¡cia espanhola andava atr s de

n¢s, regressar era muito arriscado, e pelo menos ali, no meio

da confus"o, sempre pass vamos mais despercebidos, e o perigo

era menor.

And mos duas semanas um bocado perdidos, quase sem dinheiro,

sem casa, sem nada, a dormir em casa de um camarada, no canap‚

da sala, um canap‚ muito velho e muito duro, todo partido,

todo aos altos e baixos, e j era um favor.

At‚ que finalmente l conseguimos arranjar qualquer coisa.

Conhecemos um homenzinho que tinha uma pocilga,

verdadeiramente nojenta, a que chamava restaurante. Ficou

combinado que Mart¡n trabalharia na cozinha, que tinha gordura

e fuligem at‚ ao tecto. Eu poderia servir ...s mesas ou tocar

piano, conforme o movimento que houvesse. Em troca cedia-nos

metade das guas-furtadas do pr‚dio, dava-nos de jantar, e

ainda pod¡amos levar as sobras para cima, para comermos no dia

seguinte ao almo‡o. Frias, que n"o havia onde as aquecer.

Era aquilo a que os franceses chamam mansarda, e n¢s chamamos

guas furtadas, de tecto esconso.

's vezes Mart¡n conseguia p"r de parte uns bocados bons de

frango, ou de carne assada, sem ele ver, e quando era assim

n"o era muito mau, mas outras vezes n"o lev vamos sen"o p"o e

uma marmita de sopa. As coisas melhores eram sempre para mim.

Eu dizia-lhe que n"o, n"o via por que motivo entre n¢s n"o

havia tudo de ser repartido, mas ele insistia, fazia quest"o

disso, obrigava-me a aceitar essa prova maior do seu amor.

Do outro lado, separado de n¢s por um tabique de madeira,

morava um velho com alguns quinze gatos. At‚ nem era

antip tico, o pior era o cheiro que os bichos deitavam, e que

empestava tudo, at‚ a nossa roupa. Passava os dias a vasculhar

os caixotes do lixo do bairro, coitado. Ainda vivia pior do

que n¢s.

Depois um dia morreu. Soltaram os gatos, arejaram aquilo tudo,

e passados uns dias veio uma velha que se mudou para l .

Era uma pobre desgra‡ada. Contava que em nova tinha sido

bailarina, mas eu creio que ter sido algo mais parecido com

prostituta.

Tinha um filho que era carteirista, ou ladr"o de casas, nunca

cheguei a perceber muito bem. J tinha estado preso v rias

vezes, e volta e meia aparecia por l com a barba por fazer e

uma cara de quem andava a fugir de algu‚m ou de alguma coisa.

Se calhar era mesmo da Pol¡cia, ou seria de outros como ele,

sabe-se l por que obscuras raz"es!

Das v rias vezes que o vi pareceu-me que trazia sempre a mesma

camisa, cada vez mais suja, meia por dentro meia por fora das

cal‡as. Tamb‚m usava sempre um bon‚ muito ensebado a cair-lhe

para os olhos, de forma que nunca lhos vi muito bem, com

excep‡"o de uma vez que veio sem o bon‚. Eram uns olhos de

quem pedia piedade e perd"o, um deles todo negro, esmurrado e

injectado de sangue.

Mis‚ria! Pobre gente aquela!

's vezes vinha tamb‚m uma rapariga ainda nova com cara de

bicho maltratado e assustado. Suponho que seria a que dormia

com ele, e provavelmente tamb‚m se juntavam para roubar, mas

n"o sei muito bem o que roubariam, ou a quem, em tempos como

aqueles, t"o dif¡ceis, em que ningu‚m tinha coisa nenhuma, e

toda a gente vivia t"o mal, por causa da guerra.

Quanto a n¢s, n"o sei, francamente, se ‚ramos felizes ou

infelizes, acho que nem t¡nhamos tempo para pensar nisso.

Acima de tudo t¡nhamos de nos manter unidos, se quer¡amos

aguentar as condi‡"es dif¡ceis, terr¡veis, que naquele momento

nos eram impostas.

A clientela do restaurante era constituida sobretudo por

soldados que tinham ficado um dia ou dois em Paris antes de

partirem para a frente de batalha, ou que tinham sido feridos

em combate, tinham recebido alta do hospital militar e gozavam

de uma breve licen‡a antes de regressarem ...s trincheiras.

Vinham sozinhos uns, outros vinham acompanhados, geralmente

com prostitutas. Bebiam muito e por vezes tornavam-se

abusadores, mas o trabalho no restaurante era naquele momento

o nosso £nico meio de sobrevivˆncia, e eu n"o me podia dar ao

luxo de perder a calma e a dignidade.

Mart¡n estava na cozinha. As coisas que ouvi e as situa‡"es

desagrad veis que se geraram e que fui obrigada a suportar

passaram-lhe ao lado a maior parte das vezes, felizmente.

O barulho que faziam era infernal, e o esfor‡o que eu era

obrigada a fazer para me manter ali a trabalhar at‚ de

madrugada era tremendo, por isso n"o me sobravam muitas for‡as

para prestar uma grande aten‡"o ao mundo exterior, aos

acontecimentos que eram comentados ... minha volta e que diziam

respeito ... pr¢pria guerra. Ainda hoje n"o percebi muito bem,

acho que foi tudo porque a Inglaterra n"o queria que a

Alemanha fosse mais poderosa no com‚rcio mar¡timo.

Para mim tudo aquilo era muito confuso. Havia a dupla e a

tripla alian‡a, a posi‡"o amb¡gua da It lia, o problema dos

Balkans, a neutralidade da Gr‚cia, as hesita‡"es do presidente

Wilson, que governava um pa¡s onde tinha gente de v rias

origens e v rias tendˆncias po¡ticas, a posi‡"o do Jap"o, as

declara‡"es de guerra que em poucos dias se cruzaram como se

fizessem parte de um complicado jogo de xadrez. At‚ em †frica

parece que andavam ... pancada!

T¡nhamos uma telefonia no nosso s¢t"o, e Mart¡n todos os dias

ouvia as not¡cias. Interessavam-lhe muito. Depois comentava

comigo que ter¡amos de adiar os nossos projectos. S¢ quando a

guerra acabasse poder¡amos pensar em p"-los em pr tica.

Naquele momento convulsivo as condi‡"es para se organizar um

ex‚rcito para marchar sobre Madrid n"o podiam ser piores.

Ainda tentou reunir um pequeno grupo, mas era muito dif¡cil,

por causa da mobiliza‡"o geral e por causa das dificuldades do

dia a dia que todos conheciamos.

's vezes sentava-me ao p‚ dele a ouvir a r dio, e foi assim

que soube que tinham descoberto uma bailarina que dormia com

os oficiais franceses e ingleses, e depois dormia com os

alem"es, e passava-lhes informa‡"es secretas sobre as

opera‡"es militares, e por causa disso fuzilaram-na.

Afinal, se eram segredos, a mim parece-me que eles, como

militares, eram quem mais obriga‡"o tinha de os saber guardar.

N"o tinham de os revelar sob nenhum pretexto.

� muito f cil para os homens, quando se sentem culpados de

alguma coisa, esconderem-se atr s das mulheres e dos seus

(r)diab¢licos poderes de sedu‡"o¯. f cil, mas n"o ‚ j� usto, nem

‚ honesto, creio eu.

Por isso n"o me parece que ela fosse a £nica culpada, nem que

eles estivessem t"o inocentes assim...

's vezes aparecia um ou outro portuguˆs. Eram raros, mas

quando apareciam sempre se davam dois dedos de conversa.

Houve um, foi j quase no fim da guerra, que me contou que

perto da terra dele, que era uma aldeia na serra de Aire,

perto de Leiria, tinham prendido uns garotos que andavam a p"r

tudo em polvorosa, que iam a um lugar, e diziam que lhes

aparecia Nossa Senhora, e falava com eles.

Outro contou-me que lhe tinha morrido a fam¡lia toda com a

pneum¢nica.

Outro ainda vinha da frente de batalha na Flandres, e contou

que o tinham chamado a meio da noite para integrar o pelot"o

que ia fuzilar um companheiro que andava a passar informa‡"es

ao inimigo, e ele obedeceu, que n"o tinha outro rem‚dio, mas

estava visivelmente perturbado. Sempre era um companheiro.

Teria feito fosse o que fosse, contava ele, para que n"o

tivesse acontecido uma coisa daquelas.

Um outro ainda vinha muito revoltado, contou-me. N"o queria

voltar para a guerra. Em primeiro lugar nem sequer tinha

querido ir para l . Era um rapaz simp tico com uns belos olhos

meigos e inteligentes.

Nesse dia n"o havia muito movimento, de forma que convers mos

um bocado. Deixou-me ficar um jornal chamado A Greve, com um

artigo da Angelina Vidal sobre a guerra, a fome... era bom que

as pessoas lessem essas coisas, dizia ele.

Pela r dio ouv¡amos os relatos das baixas nos campos de

batalha, ouvimos a descri‡"o detalhada da sangrenta batalha La

Lys, as declara‡"es dos generais, os apelos aos soldados e aos

civis, mas o meu francˆs estava longe de ser perfeito, e o de

Mart¡n era pior ainda, de maneira que quando n"o est vamos a

perceber o que diziam deslig vamos ou sintonizavamos a outra

esta‡"o.

Pela r dio ouv¡amos as not¡cias da Revolu‡"o russa e do

fuzilamento do Czar e da Fam¡lia Imperial. Mart¡n vibrava.

Levantava-se da cadeira, deixava-a cair com ru¡do, voltava a

sentar-se para ouvir o resto da not¡cia, estalava os l bios

nervosamente.

Um belo dia resolveu partir.

Que na R£ssia era mais f cil conseguir os apoios de que

precisava para fazer a Revolu‡"o em Espanha. Por outro lado as

coisas por l estavam agitadas e ainda um pouco confusas, e

eu... bastava olhar para mim, via-se logo que n"o era uma

oper ria nem uma camponesa, e as coisas podiam tornar-se

perigosas, sobretudo porque n"o fal vamos a l¡ngua, n"o

conhec¡amos ningu‚m...

Eu teria de ficar em Paris. Em menos de trˆs meses passaria a

buscar-me. At‚ hoje.

Com Mart¡n ainda eu conseguia suportar o ambiente s¢rdido

daquele restaurante. Sem ele tornava-se humanamente

imposs¡vel.

De repente, um belo dia, pus-me a fazer contas. H perto de

quatro meses que n"o tinha o meu per¡odo. Estava gr vida!

Era a £ltima coisa que eu desejava naquele momento, era algo

que n"o podia permitir-me, mas era a crua realidade!

Est vamos j no fim da guerra, que durou apenas mais trˆs

meses, mas isso eu n"o podia adivinh -lo, n"o podia sabˆ-lo

ningu‚m.

Como ‚ que eu podia ter uma crian‡a, naquele s¢t"o, sem

dinheiro, sem comida, sem Mart¡n, sem nada?

Falei com Rosalie, a rapariga que servia ...s mesas comigo.

Disse-me que conhecia uma mulher que sabia resolver esses

problemas.

Era aquilo a que chamavam uma (r)fazedora de anjos¯.

Longamente, nessa noite, me debati com a minha ang£stia. Tinha

por um lado todo o peso da minha educa‡"o, dos conceitos do

que se deve e n"o deve fazer, as minhas referˆncias uterinas,

o legado da ancestralidade feminina, maternal, da Ermelinda.

Tinha tamb‚m um medo pƒnico daquilo que iria ter de enfrentar.

E a minha m"e? O que pensaria ela? N"o, a minha m"e n"o podia

pensar nada, porque tinha morrido.

Mas a minha m"e tinha morrido para que eu pudesse nascer. N"o

tinha eu agora a obriga‡"o de fazer todos os sacrif¡cios para

p"r no mundo a crian‡a que tinha dentro de mim?

Por outro lado, a minha m"e tinha morrido porque essa tinha

sido a sua escolha? N"o, a minha m"e tinha morrido por outra

raz"o. Ela tinha morrido porque n"o tinham conseguido

salv -la. Mas se tivesse podido escolher, que escolha teria

sido a dela?

Ah, como era dif¡cil!

De repente senti alguma coisa que me ro‡ava ao de leve num p‚.

Fiz um ligeiro movimento para me virar.

Uma ratazana correu pelo soalho.

Fui.

Bati ... porta, surgiu uma matrona de rosto muito vermelho.

Expliquei-lhe em voz baixa ao que vinha. Ela mandou-me entrar.

Era uma cave escura, suja, onde tudo cheirava a uma mis‚ria

que n"o saberei descrever.

Come‡ou por me perguntar quem eu era, se era uma prostituta,

quem era o pai da crian‡a, e quanto dinheiro tinha para lhe

pagar.

Dei-lhe tudo o que tinha, que era muito pouco, e dei-lhe as

duas £ltimas libras de ouro que me restavam, e que Mart¡n e eu

t¡nhamos resolvido guardar para uma afli‡"o. Que afli‡"o podia

haver, maior do que aquela em que eu me encontrava naquele

momento?

N"o parecia muito satisfeita.

Mandou-me esperar e saiu por uma porta. Da¡ a pouco voltou com

uns poucos de ferros, agulhas, pin‡as, tesouras que colocou

sobre uma mesa e voltou a sair.

Da¡ a meia hora surgiu de novo com um panel"o, depois outro,

dois panel"es de gua a ferver. Eu n"o conseguia olhar para

ela, nem para o que fazia, mas ouvi que mergulhava os ferros

na gua a ferver. O outro panel"o era para as lavagens,

explicou ela. Mandou-me deitar sobre o div".

Eu estava aterrorizada. Siderada de medo. Medo de n"o sair

dali com vida, medo que alguma coisa pudesse correr mal, e me

mandassem para o hospital. Que explica‡"es podia eu dar? Eram

capazes de me meter na pris"o!

Mas ela n"o me deixou pensar muito tempo. O que eu tinha vindo

fazer, tinha de ser feito rapidamente. Era horr¡vel, aquela

mulher, pensava eu. Depois pensei: afinal esta mulher talvez

seja um carrasco que tenho na minha frente, mas que direito

tenho de a condenar, se fui eu pr¢pria que a procurei?

Olhei ent"o nos seus olhos, procurando neles algum resqu¡cio

de humanidade, e apercebi-me de que tamb‚m ela tinha medo.

Medo que eu morresse, medo que alguma coisa corresse mal, medo

que a qualquer momento a pol¡cia lhe irrompesse pela casa

adentro.

E eu ali, naquela situa‡"o que era de desespero mas que era

tamb‚m de dependˆncia, uma dependˆncia como nunca tinha

sentido em rela‡"o a ningu‚m, nem creio que possa voltar a

sentir.

Colocou-me um len‡ol ... volta da cintura. Eu n"o queria olhar,

mas n"o conseguia despegar os olhos das suas m"os grandes e

vermelhas. Com uma pin‡a tirou um dos ferros de dentro de

gua, enterrou-o fundo no meu corpo, senti uma dor lancinante,

de enlouquecer, e em breves segundos estava feito. O meu filho

j n"o existia.

O sangue ca¡a a jorros, ensopava o len‡ol, pingava para o ch"o

de oleado. Ela n"o parecia surpreendida. As paredes sujas

daquela cave todos os dias deviam assistir ao mesmo desespero,

... mesma sangrenta e brutal destrui‡"o de vida.

Voltei a p‚ para casa. ' minha frente, cada passo que dava

parecia uma queda num precip¡cio.

Pensava: se um dia a minha vida se modificasse, se noutras

circunstƒncias quisesse ter um filho, poderia tˆ-lo? Seria o

meu organismo ainda capaz de conceber? Teria para sempre

ficado mutilada?

No dia seguinte as dores redobraram. Tinha febre, n"o

conseguia levantar-me da cama. ' tarde apareceu Rosalie.

Trazia-me p"o e um pouco de queijo. Era tudo o que tinha

conseguido arranjar. Pousou a sua m"o sobre a minha testa e

disse-me que achava que eu tinha febre. Iria ainda nesse dia

tentar arranjar-me algum rem‚dio.

Ah, Rosalie, minha amiga!

Tinha a sensa‡"o de ter sofrido uma destrui‡"o, uma amputa‡"o,

uma perda irrevers¡vel. Esta foi uma sensa‡"o que durou v rios

dias, e se transformou naquilo a que posso chamar uma perda

continuada no tempo.

Da¡ a quarenta e oito horas estava de novo a servir ...s mesas,

mas passaram v rios meses at‚ o meu corpo se recuperar.

Quanto ... minha alma, essa... n"o creio que tenha chegado a

refazer-se nunca por completo daquilo por que passei.

E sem saber como, nunca mais fui a mesma pessoa. Creio que at‚

a confian‡a se me esbateu no olhar. J n"o me importavam as

justifica‡"es, n"o me importavam os motivos porque fiz aquilo

que fiz, mas apenas que o fiz. Naquele momento j s¢ importava

que me sentia terrivelmente mal comigo pr¢pria e com tudo o

que se tinha passado. Eu bem sei que tive todos os

justificativos do mundo, mas apesar de tudo n"o conseguia

libertar-me de um remorso terr¡vel. Injusto, mas terr¡vel.

Olhava para os soldados e pensava: se tivesse tido o meu

filho, o rosto dele poderia ter vindo a ser o de qualquer um

deles.

Resolvi ent"o alistar-me no corpo volunt rio de enfermeiras.

Sem perceber nada de enfermagem, sem distinguir uma ligadura

de uma compressa. Mesmo assim os meus servi‡os eram bem

vindos.

Mudei-me ent"o para a enfermaria militar, que funcionava

dentro de uns barrac"es de lona verde, e ali vivi em

comunidade com outras enfermeiras.

Come‡aram por me ensinar, ao longo da primeira semana, os

primeiros rudimentos, ou seja, a lavar uma ferida, a fazer um

penso, a p"r uma ligadura. Quase todos estavam muito feridos,

em estado bastante grave.

As guerras n"o se ganhavam com soldados deprimidos, explicava

o Major, e recomendava-nos que fal ssemos com eles com

carinho, mas sem nunca deixarmos de mostrar um sorriso de

coragem, com um misto de ternura e bom humor, ainda que

v¡ssemos que estavam a morrer.

De qualquer forma o meu francˆs n"o era grande coisa, de forma

que a maior parte das vezes me limitava a dar-lhes o meu

melhor sorriso enquanto lhes via a febre, lhes ajeitava as

almofadas, lhes fazia os curativos.

Alguns deles, mais espertalh"es, olhavam para n¢s com olhos de

namoro, sabendo que, vendo-os assim feridos, nunca ser¡amos

capazes de ter para com eles uma atitude mais agressiva, ou de

rejei‡"o. Mas n"o podia ser. Havia de ser bonito, se f"ssemos

a namor -los a todos!

De forma que a t‚cnica que us vamos para evitar envolvimentos

era muito simples, e resultava quase sempre:

- Est s com um ar muito maroto, tenho a impress"o que j est s

mas ‚ bom. Amanh" j podes voltar para a frente de combate.

Fechavam logo os olhos, mansos como cordeirinhos, e punham-se

a gemer, com um ar muito doente, muito sofredor.

A comida era pouca e m , mas pelo menos naquele lugar eu

exorcisava um pouco o meu grilh"o, o meu enorme sentimento de

culpa pela crian‡a cuja vida destru¡, fazia alguma coisa de

£til, para al‚m de que o cheiro a ‚ter era mais suport vel que

o cheiro a ratos que havia no meu s¢t"o, e os soldados feridos

n"o me faltavam ao respeito como faziam os soldados

embriagados.

Ao fim de um mˆs devem ter achado que apesar da minha boa

vontade a habilidade n"o era muita, de forma que me ensinaram

a conduzir e me puseram uma ambulƒncia nas m"os.

Acho que me desempenhei menos mal dessas minhas fun‡"es at‚ ao

fim da guerra, em Novembro.

Ia com uma equipe de dois enfermeiros buscar os feridos ...

frente de batalha, junto ... fronteira com a B‚lgica, para os

trazer para o hospital de campanha. Vejo e ou‡o felizmente

muito bem, e sou uma pessoa de gestos brandos e suaves, de

forma que a minha condu‡"o n"o era das piores.

Faz¡amos os percursos muitas vezes de noite, mas isso a mim

tamb‚m n"o me punha dificuldades de maior. Enfim, n"o fui

propriamente uma hero¡na de guerra, mas cumpri a minha

obriga‡"o o melhor que sabia e podia, o que j n"o ‚ mau de

todo, creio eu.

Trˆs meses depois acabou a guerra. Veio o armist¡cio e

assinaram-se uns poucos de tratados.

Que havia eu de fazer ... minha vida?

Voltar para Portugal estava fora de quest"o. N"o conseguiria

suportar a censura nos olhos do meu pai.

Ir para Moscovo ... procura de Mart¡n, sem saber uma palavra de

russo, era uma verdadeira loucura.

Ainda pensei ir at‚ Barcelona, pedir a Llorgat que me

arranjasse trabalho, mas depois achei que n"o. Afinal, mal o

conhecia!

Retomar o meu trabalho no restaurante afigurava-se-me como a

£nica alternativa poss¡vel, mas o meu est"mago, todas as

minhas v¡sceras, se revoltavam contra isso.

N"o. Havia de haver outra coisa que eu pudesse fazer, mas o

quˆ?

Voltei para o meu s¢t"o e para o meu trabalho no restaurante.

Mas sufocava! Era um verdadeiro pesadelo!

A minha vida era como um monte de fuligem negra que de vez em

quando era iluminada pelo clar"o da minha revolta.

Cap¡tulo 7

At‚ que uma noite apareceu por l um rapaz baixo e magro, com

uns olhos de um azul muito claro que contrastava com o seu

rosto bronzeado.

Chamava-se Sebastien. Tinha um nariz adunco, cabelo

encaracolado, morava em Montmartre e pintava na rua. Ainda

hoje n"o sei se teria a veia de um grande pintor, mas sei que

se punha todo, at‚ ... alma, nas telas que pintava.

Olhou para mim e disse-me que eu era exactamente o modelo de

que andava ... procura. Se n"o queria ir posar para ele. Trˆs

horas todas as manh"s. Em troca dava-me o almo‡o e dava-me a

imortalidade nas suas telas.

Aceitei. Em parte por um pouco de narcisismo, suponho eu, e

muito por causa daqueles seus olhos. Parecia que tocavam

m£sica!

Para sublimar o meu corpo, tamb‚m. Como uma f‚nix eternamente

renascida das labaredas, pela vida que matei dentro de mim e

por todas as crian‡as que n"o terei nunca, desejei, desejei

muito que o meu corpo ficasse para sempre pintado numa tela.

No primeiro dia mandou-me despir e deitar sobre uma esp‚cie de

div" que tinha perto da janela, com uns len‡ois bastante

sujos.

Em casa do meu pai as camas eram feitas de lavado duas vezes

por semana, e todas as noites vinha uma criada engomar os

folhos das dobras do len‡ois.

No atelier de Sebastien a desordem reinava um pouco por todo o

lado. Havia bisnagas de tinta de ¢leo, j meias pisadas,

espalhadas pelo ch"o, havia boi"es de vidro pelos cantos com

pinceis mergulhados em oleo de linha‡a...

Sebastien nunca conseguia tirar por completo os restos de

tinta das m"os, sobretudo das unhas, que tinham sempre tinta

entranhada ... volta. Vermelho, amarelo, verde...

Tamb‚m as suas roupas estavam todas manchadas de tinta de

cores variadas, e olhando para as suas telas quase se podia

adivinhar o que trazia vestido no dia em que pintara este ou

aquele detalhe de cada quadro.

Ao fim da manh" o meu corpo estava esbo‡ado a l pis sobre a

tela, parecendo brotar de meia d£zia de linhas mestras que se

cruzavam no centro do quadro.

Sebastien s¢ pintava de manh". Por volta do meio dia, quando o

sol desaparecia pelo canto da janela, o seu atelier ficava

mergulhado numa esp‚cie de penumbra triste e pardacenta, e os

len‡ois da sua cama pareciam mais sujos ainda.

Assim, ao longo de v rias sess"es, foi pintando o meu corpo,

foi escurecendo os contornos e as sombras do lado esquerdo,

foi iluminando o lado direito do quadro, foi-lhe dando volume

e vida.

Ia enquadrar-me numa paisagem muito especial. No Bois de

Boulogne, como uma esp‚cie de deusa da floresta, encostada ao

tronco de uma rvore, toda rodeada de folhas secas em tons de

ocre, ouro velho e castanho avermelhado.

Hoje que me lembro daquele quadro, n"o creio que o meu corpo

tivesse, no conjunto, a menor importƒncia. Era apenas um

acess¢rio no meio das folhas secas. Essa ‚ uma afronta que n"o

poderei perdoar nunca a Sebastien.

Terminada a sess"o de pintura almo‡ vamos, e o que com¡amos

conseguia ser pior ainda que as sobras do restaurante.

Depois fic vamos at‚ ... noite a conversar at‚ serem horas de eu

voltar para o meu trabalho no restaurante.

Outras vezes ia pintar para as margens do Sena.

Recusava-se a aderir a uma escola de pintura, fosse ela qual

fosse. N"o era cubista, nem futurista, nem dada¡sta, nem

surrealista. Era apenas ele, Sebastien.

A sua pintura era algo que nascia da incr¡vel for‡a an¡mica de

que era dotado, e n"o tinha a ver com nenhum factor exterior a

ele pr¢prio.

Um belo dia despiu-se, o seu corpo veio para junto do meu, e

naquela penumbra do atelier nos am mos por detr s da sombra

dos espessos reposteiros corridos.

O seu corpo era bem musculado, a sua pele era macia, o seu

h lito era quente e os seus bra‡os seguravam-me com firmeza.

Sabia muito bem o que queria, e queria coisas completamente

loucas, que eu nem sequer imaginava que se pudessem fazer.

Com ele mergulhei na mais completa das deprava‡"es. Fiz coisas

perfeitamente incr¡veis que n"o sei nem quero contar, mas o

mais estranho de tudo ‚ que n"o me arrependi nunca, nem por um

segundo.

Nunca tive em rela‡"o ao meu corpo nenhum sentimento de culpa,

como o n"o tive nunca em rela‡"o ...s fantasias que viv¡amos na

nossa intimidade. Por uma raz"o apenas. Seria a pervers"o,

mas... era delicioso!

Foi assim que um belo dia deixei passar as horas e n"o fui

trabalhar.

No dia seguinte de manh" estava despedida.

Subi a buscar as minhas coisas. N"o me devo ter demorado um

quarto de hora.

' sa¡da deitei um £ltimo olhar ...quele restaurante pomposamente

chamado "Au Boeuf ... la Mode". Desde que l cheguei, em 1914,

n"o creio que aquela cozinha tenha sido lavada uma £nica vez.

Sa¡ a porta. C fora Sebastien sorria-me. Tanto melhor, dizia

ele. J era mais que tempo de me mudar para o atelier, onde

ali s, aos poucos e poucos, me fui sentindo cada vez melhor.

Passei a lavar-lhe os len‡ois ao menos uma vez por semana, dei

um jeito naquilo tudo, arrumei-lhe as tintas, os boi"es dos

pinceis, as paletas e tudo o mais a um canto, em cima de uma

mesa, e ele parecia encantado. J n"o precisava de andar de

gatas pelo ch"o ... procura de um l pis ou de uma r‚gua.

Deitei-lhe fora um monte de roupa velha que ele n"o usava e de

porcarias in£teis que tinha espalhadas por todo o lado, at‚

uma roda de bicicleta cheia de ferrugem! A isso n"o achou

tanta gra‡a.

As suas telas, que at‚ a¡ estavam amontoadas a um canto umas

contra as outras, pendur mo-las pelas paredes, do ch"o ao

tecto. Foi r pido, f cil, e desempecilhou metade do atelier,

que n"o era propriamente muito grande. At‚ na casa de banho,

por cima do lavat¢rio e da banheira, pendur mos quadros.

Para al‚m do espa‡o que ganh vamos, esta solu‡"o tinha a

grande vantagem de os podermos admirar vinte e quatro horas

por dia.

As paredes cinzentas do atelier ganharam uma nova vida. Nos

primeiros dias adormec¡amos e acord vamos um tanto

surpreendidos, quase assustados com aquela s£bita

transforma‡"o, como se estiv‚ssemos rodeados do espectro de

estranhas e silenciosas presen‡as, mas depois de nos

habituarmos era uma sensa‡"o muito agrad vel.

A cor preferida de Sebastien era o dourado. T¡nhamos pendurada

na nossa frente uma tela enorme verdadeiramente alucinante.

Eram labaredas pintadas sobre um fundo negro. Labaredas

vermelhas, amarelas, laranja, douradas.

Eram milhares de centelhas de brilho dourado a relampejar na

noite.

Eram presen‡a e ausˆncia, eram velas acesas na escurid"o, para

a celebra‡"o de um qualquer ritual misterioso.

Era um incˆndio, um deslumbre, uma verdadeira orgia de

labaredas, e era ouro l¡quido a escorrer pela escurid"o da

noite.

Era como um solo de trompete que de repente irrompesse do

fundo de uma orquestra.

Sebastien tinha algumas teorias curiosas sobre arte, sobre

pol¡tica e sobre muitas outras coisas.

Defendia a teoria de Marx, que dizia que (r)Os poetas s"o uns

originais, dever deixar-se-lhes seguir o seu pr¢prio caminho,

n"o dever"o aplicar-se-lhes as mesmas normas que ...s pessoas

comuns.¯ Entendia que esta regra n"o era v lida s¢ para os

poetas, mas para todos os artistas em geral.

Um belo dia, est vamos sem dinheiro, entr mos num restaurante

em Montparnase. Comemos e bebemos tudo o que nos apeteceu, e

fugimos sem pagar a conta. Demos uma corrida, mistur mo-nos na

multid"o, e s¢ par mos uns poucos de quarteir"es mais adiante.

Encost mo-nos a um gradeamento de ferro, ofegantes, e rimos

como eu nunca tinha rido na minha vida.

N"o era nem por sombras um iletrado.

Defendia a teoria de Robert Browning, o culto do her¢i

vencido, e defendia que o ideal de gl¢ria n"o estava na

perfei‡"o mas sim no g‚nio.

Era ainda um admirador incondicional de Walter Pater e de

Oscar Wilde, defensor da Arte como pleno justificativo de si

pr¢pria, a (r)Art for art's sake¯.

Entendia tamb‚m que a Arte n"o tem de ser verdade mas sim

verosimelhan‡a. Para ele n"o importava a realidade, importava

a mensagem on¡rica.

Defendia ainda que nada nos fazia viajar t"o longe no campo da

Arte como o maravilhoso e o fant stico.

Se o espectro de um sapo - dizia ele - viesse de outra gal xia

num tapete voador ... procura da pedra filosofal, chegasse a uma

casa assombrada, passasse pelo desespero de perder a sua

identidade para se metamorfosear em pr¡ncipe, lutasse com uma

armadura sem cavaleiro, cheirasse uma orqu¡dea m gica e se

visse transportado para uma orgia sexual com a pr¢pria m"e,

poderia dizer-se que o autor de semelhante hist¢ria estava a

delirar, poderiam discutir-se os pressupostos est‚ticos,

‚ticos e morais, mas nem por isso deixava de ser uma bel¡ssima

hist¢ria cheia de poesia.

Tinha ainda muitas outras teorias.

Entendia que os cegos eram os verdadeiros iluminados, os que

desconheciam as aparˆncias enganadoras do mundo, e conheciam

uma outra realidade secreta e muito mais profunda das coisas,

n"o acess¡vel ao comum dos mortais.

Entendia que o adult‚rio, o triƒngulo amoroso, era a base do

casamento, que s¢ assim poderia sobreviver.

Donde se deduzia que as chamadas (r)coisas s‚rias¯ em si mesmas

n"o tinham nenhuma consistˆncia, nem eram elas que mantinham

viva uma sociedade, uma vez que precisavam do sustent culo de

outras coisas muito mais inteligentes, como a aud cia, a

fantasia, a insubmiss"o, a criatividade generosa.

"Que o Bom Deus me livre e guarde de algum dia vir a ser uma

pessoa s‚ria." - dizia ele rindo. - "As pessoas mentem, mentem

sempre, mentem todos os dias. Eu, pelo menos, minto. Porque as

verdades, as verdades absolutas da vida, o que quer que seja

que isso signifique - dizia ele - s¢ s"o capt veis em perfeito

e completo estado de bebedeira. S"o coisas demasiado ¢bvias

para precisarem de ser ditas, e ainda por cima n"o tˆm,

geralmente, a menor das importƒncias, ou a menor das gra‡as.

Deixa que o mundo inteiro se esboroe ... nossa volta em teorias

obtusas e complicadas, beija-me apenas!"

Como poderia eu n"o amar Sebastien?

Um belo dia chegou ao atelier muito satisfeito. Tinham-no

convidado a exp"r os seus quadros numa das galerias mais

conceituadas de Paris. Era o momento da prova de ferro, dizia

ele com os olhos muito brilhantes. Era a hora da gl¢ria, ou

era o fracasso total.

Passados alguns dias veio com uns poucos de amigos e levaram

as telas num carro puxado a cavalos.

Estiveram cr¡ticos, jornalistas, pessoas de qualquer forma

ligadas ... arte, e o acolhimento que teve foi bastante bom.

Elogiaram-no muito, compararam-no a este e ...quele...

Not¡cias nos jornais ‚ que foram s¢ duas, e pequenas, mas

mesmo assim j foi bom.

Vendeu quinze telas. Foi mais do que n¢s esper vamos.

Alguns dias depois chegou a casa ... hora de jantar com um outro

rapaz um pouco mais novo. Era italiano, veneziano, como ele

pr¢prio fazia quest"o de esclarecer.

Chamava-se Stefano. Era tamb‚m pintor de rua, em Montmartre, e

chegou com duas garrafas de vinho, a cantar com uma bela voz

de tenor

-Vino, vino eccolo qua!

Vino, vino, tira camp...!

Era um bonito rapaz, delicado, diria mesmo um pouco

amaneirado, embora vestisse com sobriedade. A sua £nica

extravagƒncia era um enorme len‡o de seda vermelha que trazia

amarrado ao pesco‡o com um volumoso n¢ e duas pontas compridas

como duas setas vermelhas.

Quando o vi pela primeira vez imaginei que esse len‡o seria um

sinal, algo que o distinguia politicamente, ... semelhan‡a do

que faziam dois ou trˆs dos que haviam sido os meus camaradas

de Sevilha.

Mas n"o. Era um sinal, sim, mas tinha a ver com a sua arte.

Era o rosso veneziano, explicou-me ele, o vermelho de

Tintoretto, Veronese, Tiziano. O vermelho dos tectos do

Pal cio dos Dodges.

Tinhamos de ir a Veneza, dizia ele, tinhamos de ir conhecer a

cidade mais extraordin ria do mundo.

- Chi non s'innamora a Venezia, non s'innamora mai pi£! Ed si

non e vero, e bene trovato!

Dizia ele, rindo em seguida uma gargalhada sonora.

As telas de Sebastien tinham rendido algum dinheiro. Est vamos

portanto numa situa‡"o de relativa largueza, por isso nessa

noite, debaixo do entusiasmo do vinho branco, que estava

fresco, era delicioso e nos subiu um pouco ... cabe‡a,

combin mos que sim, ir¡amos a Veneza. Partir¡amos na semana

seguinte.

Entretanto, e enquanto part¡amos e n"o part¡amos, Stefano

come‡ou a aparecer quase todas as noites.

Cantava e cozinhava. Sabia fazer um prato de f¡gado que era

partido aos bocadinhos e depois era estufado com muita cebola,

e comia-se com uma esp‚cie de pudim de milho a que chamava

polenta. Eram pratos venezianos, e n"o eram maus de todo. J a

m"e dele os fazia, e av¢ tamb‚m.

E partimos ent"o para Veneza. Fomos de comboio, em segunda

classe. Sebastien achava prefer¡vel n"o gastarmos muito

dinheiro enquanto n"o soub‚ssemos, por exemplo, quanto ir¡amos

ter de pagar pelo Hotel, quanto ir¡amos gastar nas refei‡"es.

Creio ter sido esse o momento em que pela primeira vez o

des

prezei. Havia nele um sentimento pequeno-burguˆs de

prudˆncia e poupan‡a que me p"s completamente doente. Uma

viagem de recreio ou se faz com conforto ou n"o se faz.

Aproveitei as horas que durou a viagem para dormir, para

descansar bastante. Aben‡oada seja esta minha natureza que, se

por um lado n"o me deixa nunca dormir muito, ou muito

profundamente, por outro me permite adormecer onde e quando me

apetece, at‚ num comboio em andamento.

Tenho uma vaga ideia de o comboio ter parado na fronteira, e

de ter vindo um pol¡cia italiano pedir os passaportes. ' noite

comi um caldo de galinha e mais qualquer coisa, nem sei o quˆ,

na carruagem que funcionava como bar. Tirando isso toda a

viagem se resumiu a um barulho cadenciado e mon¢tono que me

embalava docemente.

De manh" cheg mos a um s¡tio chamado Mestre. Santa Maria! Como

os italianos s"o barulhentos logo de manh"!

A nossa mala foi levada por um homem de blusa cinzenta que a

atirou para cima de uma barca onde j estavam algumas vinte ou

trinta, todas encavalitadas umas em cima das outras, e eu a

pensar que n"o era poss¡vel que n"o ca¡sse ... gua. Mas n"o

caiu. Quando cheg mos ao hotel j ela l estava, ... nossa

espera.

Os pais de Stefano eram gente pobre, explicou ele, n"o tinham

condi‡"es para nos receber.

Por isso ficamos alojados naquilo que no prospecto vinha

anunciado como um pal cio do s‚c XIV transformado em Hotel,

com todas as comodidades modernas, a trezentos metros da Pra‡a

de S. Marcos.

Era de facto um velho pal cio, n"o h d£vida, s¢ que os

quartos que nos deram a n¢s deviam ser as antigas pocilgas.

Afinal eram as cavalari‡as. Quase que adivinhava...

T¡nhamos uma janela de onde se via a ponte dos suspiros, mas

n¢s mantinhamo-la fechada, n"o s¢ por causa dos mosquitos, mas

porque ... noite o panorama era verdadeiramente assustador.

Mesmo em frente havia um outro velho pal cio com os dois pisos

de baixo completamente abandonados e em ru¡nas, com aspecto de

serem o melhor dos esconderijos para ratazanas e malfeitores.

Passe mos de g"ndola e n"o pag mos. O gondoliere ainda era

mais ou menos primo de Stefano. Era curioso o esp¡rito de clan

que aquela gente conservava!

Stefano contou-nos a hist¢ria do le"o de S.Marcos, levou-nos a

visitar o Pal cio dos Dodges com o famoso cavalo pintado no

tecto que parece deslocar-se, cavalgando na nossa direc‡"o,

seja qual for o ponto do sal"o em que nos encontremos. Stefano

parecia muito satisfeito, Mostrava-nos todas estas coisas e ia

cantarolando alegremente:

- Daghe di taco, daghe di punta,

Quanto ‚ buona sor Assunta...

Vimos a fachada de alguns antigos pal cios, a C d'Oro, a C

Pesaro e outras, subimos ao magn¡fico campanile, vimos a

Bas¡lica de S. Marcos com os seus mosaicos e a Palla d'Oro,

toda cravejada de pedras preciosas.

Era de facto uma cidade extraordin ria. Em ru¡nas, a

afundar-se, e contudo... magn¡fica!

No dia seguinte fiz uma outra descoberta espantosa, as

m scaras venezianas. Havia-as em papel mach‚, em porcelana e

at‚ em cristal, alusivas ... Commedia del'Arte e a muitas outras

coisas. Uma delas, a do m‚dico da peste, creio eu, tinha um

nariz igual ao de Sebastien, mas eu n"o lhe disse, ele n"o ia

achar gra‡a nenhuma.

Havia-as que representavam as coisas mais variadas, desde o

Sol e a Lua at‚ ...s esta‡"es do ano. Havia-as decoradas com

flores e folhas secas, com dourados, com missangas... Havia um

Arlequim em vidro espelhado que era de uma beleza que n"o tem

descri‡"o. Custava uma pequena fortuna.

Havia junto ... ponte do Rialto alguns rapazes que as pintavam ...

m"o representando quadros c‚lebres, le"es, p ssaros,

borboletas, notas de m£sica, faziam Bacos, gueixas,

Cle¢patras, representavam as fantasias mais espantosas e a sua

imagina‡"o parecia n"o conhecer limites.

Nem que passasse o resto dos meus dias a calcorrear aquelas

ruas, subindo e descendo pontes, eu me sentiria saciada de

tanta beleza.

E foi assim que uma bela tarde cheguei ao Hotel. No corredor,

enquanto procurava a chave do quarto, ouvi uma gargalhada de

Stefano, seguida da voz de Sebastien:

- C'est pas vrai, jamais je ne l'ai aim‚e!

Entrei no quarto e vi... aquilo que quereria n"o ter visto

nunca.

Sebastien levantou-se de um salto, e tapou o sexo com a colcha

vermelha da cama. Para quˆ?

Stefano exclamou:

- La Madoska!

Tinham ca¡do todas as m scaras.

Sebastien nunca me amara.

No dia seguinte de manh" regressei sozinha a Paris.

N"o era o que existia entre Sebastien e Stefano que me

incomodava. Gostar de rapazes era um direito seu, e n"o me

deixava incomodada ou sequer surpreendida. N"o era nada que eu

ignorasse. A sua rela‡"o com Stefano tinha sido para mim

perfeitamente evidente desde o primeiro dia, e francamente,

n"o me incomodava nem um bocadinho. O assunto era entre eles,

a mim era-me completamente indiferente, n"o me tocava sequer.

O que me ofendia, me ultrajava, me feria profundamente, era a

forma ign¢bil como ele me havia mentido ao longo de tanto

tempo.

Sebastien sempre me fizera crer que o meu lugar era de uma

verdadeira imprescindibilidade na vida dele, e que as rela‡"es

com rapazes n"o retiravam nada, rigorosamente nada, ao amor

que sentia por mim. Sebastien jurara que me amava, e eu

acreditara nele. Afinal...

- Jamais je ne l'ai aim‚e...

Uma mentira ‚ uma coisa horr¡vel e desprez¡vel, ‚ a £nica

coisa que n"o sei perdoar.

Nessa noite ainda me tentou convencer de que eu era uma

esp‚cie de hero¡na grega, o meu estatuto de excepcionalidade

n"o me admitia nenhuma esp‚cie de sentimentos mesquinhos.

Dizia-me que o amor e o ¢dio s"o coisas que depressa se

esquecem, e que a vida era isso mesmo, uma grande desilus"o.

Podia ter-lhe perdoado se quisesse, mas n"o perdoei, n"o vou

perdoar nunca.

A minha voca‡"o n"o ‚, nunca foi, e recuso-me a aceitar que

possa vir a ser a da infeliz ateniense, reduzida ...s

intermin veis horas de espera pelo regresso do meu her¢i,

vindo... quem sabe... de algum Banquete.

Cheguei a Paris disposta a de algum modo refazer a minha vida.

Pintaria... daria li‡"es de piano... ao fim e ao cabo havia de

haver alguma coisa que eu pudesse fazer.

Entretanto n"o tinha dinheiro. N"o pude, ao longo de toda a

viagem, comer uma sandu¡che sequer.

Dirigi-me ao Consulado de Portugal. Achei que era a £nica

atitude inteligente a tomar. Eles haviam de me ajudar.

Fui recebida por um funcion rio mais ou menos am vel que me

disse que nunca conhecera uma pessoa com tanta sorte.

Tinha justamente sabido de umas pessoas endinheiradas que

andavam ... procura de uma preceptora para a filha, que lhe

ensinasse boas maneiras, um pouco de piano, um pouco de

desenho, um pouco de inglˆs. Era um lugar que parecia feito ...

medida para mim.

O sal rio era pequeno, mas como n"o gastava dinheiro nem em

alojamento nem em refei‡"es...

O pai era engenheiro, tinha sido um dos que tinham trabalhado

com Eiffel, a construir a famosa torre que tanta pol‚mica

tinha gerado em Paris.

Moravam num palacete em Chaillot. N"o me tratavam propriamente

mal, mas n"o deixavam passar uma oportunidade de me fazer

sentir que o tempo dos velhos aristocratas tinha acabado.

Metade de n¢s t¡nhamos morrido com Lu¡s XVI no cadafalso, a

outra metade t¡nhamo-nos arruinado com a Revolu‡"o Industrial.

Agora o mundo era deles, dos burgueses com dinheiro. Quanto a

n¢s... tinhamos de nos contentar com o papel que eles

entendessem por bem atribuir-nos. Professores de piano, de

l¡nguas, de boas maneiras... e isto era se n"o quis‚ssemos

morrer de fome. Como disse, nunca me trataram propriamente

mal, mas eu sentia nas mais pequenas coisas uma frieza feita

de novo riquismo misturado com algum despeito.

Eram talvez umas dez horas da noite quando bati ... porta

daquela casa. ' minha espera estava uma criada para me

conduzir ao meu quarto. Era um quarto interior, mas pelo menos

n"o cheirava mal. Ali s, naquele momento, e apesar de toda a

vida ter sofrido de um pouco de claustrofoia, eu n"o estava em

posi‡"o de poder escolher. Qualquer coisa, at‚ um quarto sem

janela, era melhor do que dormir na rua.

Deitei-me sobre a cama e lembrei-me de Miss Davidson, pensando

que talvez n"o fosse m ideia se tentasse parecer-me um pouco

com ela. Estiquei os dentes da frente para fora, achei que

devia estar igual a ela, com cara de coelho, e ri-me.

Adormeci nessa noite em Chaillot a pensar no que seria feito

dela, ao fim de todos aqueles anos.

No dia seguinte fui apresentada ... minha pupila.

Chamava-se GisŠle. Sete anos gordinhos e um pouco lentos de

entendimento.

N"o tinha nos dedos a agilidade e o (r)nervo¯ suficientes para

algum dia dominar com mestria as teclas de um piano, mas nos

dois meses que l vivi consegui ensinar-lhe o que ‚ uma escala

de m£sica e consegui p"-la a tocar os primeiros acordes do Fr�

Elise que me pareceu um trecho suficientemente f cil para ela

come‡ar.

Ensinei-lhe a cantar o alfabeto em inglˆs e os Three Blind

Mice, orientei-lhe alguns esbo‡os simples a l pis e a carv"o,

ensinei-lhe os meus (r)modos aristocr ticos¯, como a m"e fazia

quest"o de sublinhar, como por exemplo a pegar numa ch vena de

ch sem espetar o dedo pequenino.

Era uma crian‡a um tanto desajeitada, mas capaz de gestos

enternecedores, e quem sabe, se l tivesse ficado mais algum

tempo, talvez me tivesse afei‡oado a ela.

Tamb‚m naquela casa se ouvia r dio, e foi assim que um dia

ouvi a not¡cia da morte de Sid¢nio Pais, (r)O Bem Amado¯, como

lhe chamavam.

Os dias naquela casa eram tristonhos. A £nica coisa que me

dava alegria era o bel¡ssimo piano que tinham no sal"o. Assim,

terminado o meu dia de trabalho, sentava-me e tocava, tocava

agora para meu pr¢prio prazer, e muitas vezes ao ser"o aquela

fam¡lia de novos ricos ignorantes, enfatuados e arrogantes

convidavam amigos que vinham s¢ para me ouvir tocar.

Nunca foram capazes de me dizer muito obrigado.

Cap¡tulo 8

Um dia, ainda n"o eram passados dois meses, vieram-me chamar.

Tinha uma visita. Era o Primeiro Secret rio da Embaixada de

Portugal em Paris que desejava falar-me. Estava ... minha espera

l em baixo no sal"o.

Era um homem de bastante idade mas ainda direito e muito

aprumado, alto e forte, cuidadosamente penteado, de bigode

revirado para cima, vestia um fato escuro e camisa de peitilho

engomado, que era uma coisa que j n"o se usava h mais de

vinte anos.

Tinha o aspecto de uma pesoa s‚ria, ... moda antiga, todo muito

lavado, engomado, escovado, perfumado, todo ele a luzir da

ponta dos cabelos ... ponta das botinas.

Tinha sido incumbido pelo advogado da fam¡lia, o Dr Mayer, de

me participar a morte do meu pai e de me entregar uma carta.

Ainda se lembrava, h muitos anos, de ter conhecido muito bem

o meu av", pai do meu pai, e por isso tinha feito quest"o de

vir pessoalmente.

Fiquei at¢nita, sem fala!

O consul entregou-me o envelope lacrado no qual imediatamente

reconheci o timbre do meu pai e a sua caligrafia regular,

aberta, generosa, com as mai£sculas cuidadosamente desenhadas.

Quantas recorda‡"es me cruzaram o esp¡rito naquele momento!

Despedi-o rapidamente. Por nada deste mundo ofereceria a um

estranho o espect culo do meu sofrimento.

S¢ quando me vi de novo sozinha, fechada na intimidade do meu

quarto, ‚ que abri o envelope. Tremiam-me as m"os sem que o

pudesse evitar.

Minha Querida Filha,

Quero que saibas em primeiro lugar que h muito conhe‡o o teu

paradeiro, e que se nada fiz para me aproximar de ti, todos

estes anos esperei pelo teu regresso. Ter-te-¡a recebido de

bra‡os abertos.

Quero que saibas tamb‚m que os pecados do amor s"o aqueles que

aos meus olhos mais facilmente devem ser perdoados. Como n"o

te perdoaria eu a ti?

Entra na posse da tua heran‡a, e lembra-te para sempre do teu

Pai

Deitei-me sobre a cama e ali fiquei algumas horas, sem me

mexer. Que estupidez! Se tivesse sabido que ele me tinha

perdoado, nem ele nem eu ter¡amos vivido a dolorosa solid"o

dos £ltimos tempos. Agora j n"o interessava, j nada

interessava.

Quando dei por mim tinha ca¡do a noite. Foi ent"o que senti

vontade, uma vontade imensa de chorar, e ali fiquei,

misturando l grimas quentes com mem¢rias de infƒncia.

Como desejaria tˆ-lo vivo, ali junto de mim, voltar a ser

menina, ouvir a sua voz grave, sentar-me no seu colo,

contar-lhe que tinha comido um ovinho da Lili, mostrar-lhe os

meus desenhos, e tantas outras coisas que foram afinal os

£nicos momentos verdadeiramente felizes da minha vida.

Na semana seguinte parti para Portugal. Se o meu pai, ao

contr rio do que eu julgava como certo, n"o me havia

deserdado, n"o via motivo para n"o aceitar a minha heran‡a.

N"o via motivo para desprezar mil e duzentos hectares de

corti‡a que o meu pai queria que fossem meus.

Sentia uma vontade grande, muito grande, de voltar a ver a

minha casa, as minhas terras. Por isso, chegada a Lisboa,

rumei directamente para a herdade.

Tomei primeiro uma diligˆncia at‚ vora. Comigo viajava um�

padre que ressonou o tempo todo, e uma m"e com duas crian‡as

irrequietas.

Seguia tamb‚m um rapaz de vinte e poucos anos, bastante feio,

de cabelo curto e sobrancelhas cerradas. Lia um livro, de vez

em quando levantava os olhos, olhava pela janela, via as horas

de forma a exibir um pouco o bel¡ssimo rel¢gio antigo de ouro

que trazia preso ao bolso do colete com uma grossa corrente de

ouro, suspirava enfastiado e voltava a mergulhar na sua

leitura.

Tinha o ar de jovem acabado de formar que regressava a casa

contrariado, obrigado pela fam¡lia, provavelmente de casamento

mais ou menos combinado com alguma prima Leoc dia, irritante e

burra.

M‚dico seria talvez, ou advogado. ¡a talvez abrir consult¢rio.

Arrancado ... cidade, e quem sabe, arrancado aos bra‡os dos

amores mais picantes de alguma Marion corista ou de alguma

Rosa cantadeira, encafuado ... for‡a na prov¡ncia, a sua vida

n"o prometia vir a ser outra coisa para al‚m de um longo t‚dio

sem fim at‚ ... morte. N"o disse uma £nica palavra durante as

v rias horas que durou a viagem.

Tudo isto seriam fantasias minhas, mas pelo menos enquanto me

entretinha a romancear sobre a vida do passageiro desconhecido

que tinha na minha frente, passava o tempo e sobretudo

conseguia ir adiando o momento, que sabia pr¢ximo, em que

teria de enfrentar as minhas pr¢prias emo‡"es. Evitava ter de

pensar no meu pai e no meu doloroso regresso a casa.

Chegada a vo� ra, ao p‚ da igreja de S. Francisco, consegui,

n"o sem alguma dificuldade, contratar um homem com uma carro‡a

que aos trancos e barrancos l me conduziu at‚ ... herdade. E

cantava, com uma voz nasalada, arrastada, nost lgica:

- Menina est s ... janela...

Cheguei ... noitinha. Paguei ao homem, pedi-lhe que me levasse a

mala at‚ ... porta de casa, ele assim fez e foi-se embora.

Como era grande e bonita a minha casa! Nem eu me lembrava j !

Todos os anos o meu pai costumava mand -la caiar de novo, e

ficava branca, de um branco que fazia doer os olhos.

Por um momento vi-me sozinha, naquele silˆncio, parada

defronte da porta.

Ao longe no horizonte levantava-se a lua, uma lua cheia,

imensa, como na noite em que tinha partido.

A porta estava fechada. Atravessei o p tio at‚ ...s casas da

gente da herdade, bati na primeira e veio uma mulher.

Perguntei-lhe se sabia quem tinha a chave.

Ela n"o parecia surpreendida por me ver.

- O seu paizinho, menina, disse-me que a menina havia de

aparecer por c .

Que era a Jacinta, filha do tio Francisco, se n"o me lembrava

dela. T¡nhamos brincado juntas em crian‡as. Que sim, que me

lembrava, mas que estava muito cansada da viagem, no dia

seguinte falar¡amos.

O tio Francisco era o nosso pastor. Tinha veia de fil¢sofo.

Disse-me um dia uma coisa curiosa que me deu que pensar ao

longo da vida. Que n"o entendia porque ‚ que as pessoas viviam

a vida sempre a correr. S¢ se era para chegarem mais

depressa... ... morte!

Nunca mais poderei esquecer o momento em que, ... luz da vela

que me deu a Jacinta, e ap¢s uma ausˆncia de quinze anos,

voltei a entrar naquela casa.

Junto ... porta da rua l estava o mesmo velho m¢vel escuro,

enorme, que o meu pai contava que antigamente servia para as

pessoas dormirem l dentro.

Estava tudo como dantes, s¢ faltava o meu pai. E que vazio!

Como era forte o cheiro que a ausˆncia dele deixara no ar!

Parecia-me vˆ-lo, com o seu roup"o de seda da China e as suas

barbas de velho marinheiro.

Tinha uma grande biblioteca que usava como escrit¢rio. L

passava horas esquecidas, sentado ... secret ria, a escrever as

suas cartas, com uma pena sempre muito bem aparada, e a tratar

dos seus neg¢cios.

Escrevia, escrevia... o que escreveria ele? Depois pegava num

dos seus sobrescritos forrados a papel de seda azul escuro,

endere‡ava-o, fechava-o cuidadosamente, tirava o anel do dedo,

acendia uma vela, soprava o f¢sforo, derretia lentamente

alguns pingos de lacre, humedecia o anel com o seu bafo

quente, e s¢ ent"o, com um gesto r pido e firme, lacrava

finalmente o sobrescrito.

Era uma opera‡"o que demorava alguns minutos, mas no Alentejo

tem-se tempo para tudo. Para olhar as estrelas, para morrer de

t‚dio e para lacrar a correspondˆncia.

Outras vezes punha-se a olhar pela janela, e assim ficava

muito tempo, parado, muito direito, sem dizer nada. Quando

ficava naquele estado n"o prestava muita aten‡"o ao que eu

dizia ou fazia, por isso eu tamb‚m n"o lhe dizia nada, mas

deixava-me ficar ali, junto dele, muito quieta.

Nesses momentos eu apercebia-me de uma vaga tristeza que

pairava no ar. Agora sei que eram os momentos em que se

lembrava da minha m"e. Sentava-me ent"o num cadeir"o de couro,

e punha-me a ler. Hoje penso que talvez aqueles silˆncios

for‡ados de tantas horas tenham contribuido para que eu

crescesse com este meu temperamento melanc¢lico.

Ao fim de quinze anos, de regresso ... minha casa, no escrit¢rio

do meu pai, como sempre, tudo parecia estar no seu lugar.

Sobre a secret ria, o tinteiro chinˆs, ainda com restos de

tinta seca no fundo, e as penas muito bem aparadas. A £nica

novidade era uma caneta de tinta permanente.

Sentei-me ... secret ria. Do lado direito, para minha surpresa,

junto ao tinteiro, estava uma B¡blia encadernada a vermelho.

Tinha uma flor seca a assinalar uma das p ginas. Por um

momento pensei que estivesse ali a marcar uma mensagem para

mim. A par bola do filho pr¢digo. Seria? Abri-a cuidadosamente

mas foi sobre os salmos do Rei David que os meus olhos

pousaram:

Senhor, o meu cora‡"o n"o se orgulha

nem os meus olhos s"o altivos

n"o vou atr s das grandezas

nem de prod¡gios que me excedam.

O meu pai ter-se-ia tornado crente?

Sa¡ da biblioteca e entrei no quarto dele. Cheirava um pouco a

tabaco. Grandes modifica‡"es se tinham dado ao longo daqueles

anos. Depois da minha partida o meu pai tinha-se tornado

fumador.

Rapidamente deitei uma vista de olhos ...s salas e ... casa de

jantar. L estavam os talheres do meu pai, D. Jo"o V, pesados,

com o nome dele gravado - Henrique - N"o comia com outros.

L estava tamb‚m a sua garrafa de cristal facetada para onde

decantava o Vinho do Porto que se bebia nos dias de festa.

O meu pai tinha algumas teorias engra‡adas. Dizia por exemplo

que com o Queijo da Serra e o Vinho do Porto, respectivamente

o melhor queijo e o melhor vinho do mundo, n"o compreendia

porque ‚ que os portugueses continuavam a ser um povo triste,

eternamente a suspirar por gl¢rias long¡nquas e prazeres

estrangeiros.

Esta teoria parecia-me a mim duplamente engra‡ada, porque

afinal, ele pr¢prio n"o tinha ido casar com uma inglesa?

Em nossa casa ...s refei‡"es s¢ se bebia gua. O meu pai dizia

que o vinho estragava o paladar. Tinha de ser muito bom, e

bebido s¢ de longe em longe.

Naquilo que comia, como ali s em tudo o resto, era requintado

e exigente. As suas camisas era a Ermelinda quem lhas engomava

a preceito, ao longo de tardes inteiras, com um fervor quase

religioso. Era a £nica capaz de satisfazˆ-lo.

E foi mergulhada nestas recorda‡"es que entrei finalmente no

meu quarto.

A minha cama l estava, com o dossel em veludo e damasco

vermelho. Estava feita, com len‡ois de folhos engomados.

Quando eu era menina a Ermelinda ia-me deitar, e depois

trazia-me sempre um copo de leite morno e biscoitos, e acendia

a lamparina de azeite debaixo do crucifixo de prata. Ficava

acesa toda a noite, e era uma luz muito doce, que me fazia

sonhar.

Uma noite, era eu muito pequena, mas lembro-me como se fosse

hoje, acordei. Levantei-me da cama e fui olhar pela janela.

As cortinas da janela do meu quarto eram de cambraia cor de

rosa. Afastei-as. Era Ver"o. L fora brilhava uma lua enorme,

branca, redonda, e milhares e milhares de estrelas brilhavam

tamb‚m. Era lindo!

Abri ent"o a janela de par em par, e ali fiquei um longo

momento a olhar para a imensid"o do c‚u, a escutar a noite, a

pensar que aquelas estrelas todas podiam ser pessoas que j

tivessem morrido, e qual seria a da minha m"e, e se eu

pr¢pria, quando morresse, viria a ser uma estrela como

aquelas.

Estas recorda‡"es da minha infƒncia e da minha adolescˆncia

eram t"o claras, t"o n¡tidas, que olhei para a mesinha de

cabeceira e quase estranhei n"o ver o copo de leite e os

biscoitos que a Ermelinda me levava em menina.

Deitei-me. Da janela via as estrelas, tal como quando era

menina. Dormi toda a noite de um sono s¢.

Sonhei que estava na herdade, debaixo do castanheiro, a olhar

pela janela para dentro do meu quarto, a ver a sombra das

folhas projectadas na parede, a dan‡arem o seu triste e

intermin vel bailado.

Na contra-luz aproximava-se Mart¡n. Do outro lado vinha a

Ermelinda, com um copo de leite e dois biscoitos. Eu n"o

queria beber o leite, e ent"o disse-lhe que estava quente, e

ela respondeu:

- N"o est , menina, pode beber, est s¢ quebrado da friura.

De repente olhei para o c‚u, e por detr s de uma nuvem surgia

o meu pai com uma express"o de tristeza e de censura. Segurava

nas m"os a sua eterna ch vena de ch em porcelana de SŠvres,

branca, com uma risquinha dourada.

Entretanto a Ermelinda olhou para cima, viu o meu pai, deitou

as m"os ... cabe‡a e desatou a chorar e a gritar que a culpa era

toda dela, e do outro lado Mart¡n cantava baixinho:

- De pie oh vitimas del hambre...

Depois vi que passava por ali um rio, mesmo defronte da casa,

e estava todo coberto de folhas douradas ... superf¡cie. Olhei

outra vez para o c‚u, e ent"o ‚ que reparei que estavam o sol

e a lua ao mesmo tempo, e eram iguais ...s m scaras que eu tinha

visto em Veneza.

A seguir Mart¡n chegou ao p‚ de mim, e trazia a carro‡a das

panelas e n"o dizia nada, ria-se, e depois come‡ou a assobiar.

Atr s dele vinha um garoto a gritar que o J£lio nos tinha

tra¡do, e vinham uns poucos de policias a cavalo, e na cabe‡a

traziam enfiado um capuz como os dos penitentes da prociss"o,

e traziam dois panel"es de gua a ferver, e ferros, uns ferros

horrorosos, e vinham enterr -los no meu corpo, e havia sangue

a pingar para o ch"o, e por todo o lado cheirava a incenso,

como cheirava dentro da Catedral de Sevilha, e depois chegou

uma g"ndola, e o gondoliere tinha o nariz de Sebastien, mas

era Stefano, e cantava com a sua voz de tenor.

- Chi se ne frega, chi se ne frega...

Vinha-nos buscar, e Sebastien foi com ele. Eu dormitava,

embalada pelo doce trotar de uma carruagem de comboio, e de

repente quando dei por mim estava sozinha, toda nua, deitada

no meio das folhas do Bois de Boulogne.

De manh" acordei em sobressalto, com gente a bater ... porta.

Era a Jacinta, que vinha com mais duas ou trˆs mulheres saber

se precisava de alguma coisa. Que n"o, que se precisasse de

alguma coisa lhe diria.

Uma delas era a Mariana. Eu lembrava-me bem dela, por causa

das circunstƒncias tr gicas em que lhe tinha morrido a m"e,

trinta anos atr s.

A Albertina era uma das mulheres l da herdade. Era uma mulher

ainda nova, alta, roli‡a, corada. Tinha na minha frente a

Mariana, e parecia que a estava a ver a ela.

N"o se chegou a saber muito bem como foi, mas parece que o

marido andava para o Ribatejo a trabalhar nem sei em quˆ, e

ela tinha ficado sozinha com a filha, que era da minha idade.

Depois parece que houve um outro homem que come‡ou a ir com

ela aos carac¢is, e as pessoas come‡aram a falar.

Que andavam entendidos os dois, e que quando o marido

soubesse...

E o marido voltou, e soube, e fartou-se de lhe dar pancada, e

no dia seguinte a mesma coisa, e todos os dias, e depois um

dia ela n"o deve ter aguentado mais, meteu pela boca abaixo um

frasco inteiro de veneno para os ratos.

Eu ainda era muito pequena, ningu‚m me contava estas coisas,

mas fui ouvindo uns bocados aqui, perguntando outros ali, e l

acabei por conseguir reconstituir a hist¢ria.

As pessoas calavam-se, dava a impress"o que todos, ao fim e ao

cabo, se sentiam um tanto culpados pelo que tinha acontecido.

O meu pai na altura ainda mandou chamar a guarda. Eles falaram

com umas tantas pessoas, e depois encolheram os ombros e

foram-se embora.

N"o creio que algum dia possa vir a esquecer a express"o de

dor no rosto da m"e dela, a tia Adelaide.

Agora, ao fim de todos aqueles anos, ali estavam aquelas

mulheres, loucas de curiosidade de me voltarem a ver. N"o lhes

podia levar a mal. Era t"o natural!

Quando parti, n"o s¢ devo ter surpreendido tudo e todos, como

devo ter sido, se calhar durante meses, o tema de todas as

conversas maledicentes. Provavelmente ter havido gente a

afirmar que h muito suspeitava do que se estava passando.

Mentira.

A £nica pessoa que sabia do que se tinha passado era a

Ermelinda, e essa, tenho a certeza, nenhuma for‡a humana

poderia ter-lhe arrancado uma palavra s¢ que fosse contra mim.

Era ela, de toda aquela gente, a £nica que verdadeiramente

desejava voltar a ver, abra‡ar com todas as minhas for‡as,

todas as minhas saudades. Mas a Ermelinda tinha morrido, ¡a

para cinco anos. De velha.

Nessa manh" do meu regresso, vagueando pela casa um pouco ao

acaso, dei comigo defronte da estante do meu pai, a tal da

portinha de vidro, dos livros arrumados com a lombada para

tr s. J n"o estava fechada ... chave, e assim desvendei

finalmente o segredo do meu pai e das leituras proibidas da

minha adolescˆncia. L estavam algumas obras do E‡a, A

Rel¡quia e o Crime do Padre Amaro, l estavam a Moll Flanders,

Les Diaboliques, os poemas er¢ticos de Bocage, eram ao todo

cinco prateleiras. Peguei num, perfeitamente ao acaso. Les

Liaisons Dangereuses.

Sentei-me no velho cadeir"o de cabedal e comecei a folhe -lo

lentamente, lendo uns excertos aqui, outros ali.

Era uma colectƒnea de cartas cruzadas entre v rias pessoas,

que aos poucos iam desvendando uma estranha intriga. Uma

mulher, para se vingar de um ex-amante, p"e-se de acordo com

um outro ex-amante para maquinar a perdi‡"o de uma rapariga

ing‚nua. Esse amigo, em vez de seduzir a rapariga, decide

seduzir uma outra, uma burguesa de moral a condizer.

Eram ent"o estas as coisas que o meu pai n"o me deixava ler!

Certamente n"o quis sen"o proteger-me das teias complicadas,

diab¢licas, daquilo a que chamaria talvez os amores mundanos,

ou coisa parecida, mas hoje assiste-me, creio, o direito de

perguntar:

N"o teria sido muito mais £til para mim se n"o me tivessem

feito crescer dentro de uma nuvem de p‚talas de rosa?

Se aos vinte anos eu tivesse uma no‡"o mais clara do que ‚ o

amor, talvez a minha vida tivesse sido outra. Assistia-me,

pelo menos, o direito de escolher os meus pr¢prios erros,

liberta de toda a inocˆncia, de toda a ignorƒncia, creio eu.

Quando fiz sete anos a Ermelinda tinha-me dado uma pequena

arca alentejana, toda branca, com flores pintadas em cores

garridas. Foi onde passei a guardar as minhas coisas ¡ntimas.

N"o tinha chave, mas o meu pai n"o ia l mexer. Primeiro

porque sabia que era l que eu guardava os meus pequenos

tesouros de crian‡a, os meus segredos de adolescente. Depois

porque tinha coisas mais importantes com que se preocupar.

S¢ nessa tarde reparei nela. L estava, no seu lugar de

sempre, no ch"o, debaixo da mesinha de cabeceira.

Abri-a. L dentro um retrato dos meus pais, as minhas agulhas

de fazer ponto de cruz, um saquinho de berlindes, duas fitas

de cetim de um azul j muito desmaiado, devo tˆ-las usado a

prender a minhas tran‡as, um raminho de flores secas, a minha

boneca de pano, que me tinha feito a Ermelinda, as outras

tinha-as dado todas no dia em que completei quinze anos,

algumas folhas de papel dobradas, com a tinta muito sumida e

muito esborratada. Uma delas era uma receita de um bolo, as

outras n"o se conseguiam ler. Um santinho da minha primeira

comunh"o, o programa do Teatro de S. Carlos, da noite em que o

meu pai me levou a assistir ao Sans"o e Dalila, a Cartilha de

Jo"o de Deus, o cart"o que o gerente do hotel tinha mandado

p"r no meu quarto juntamente com uma caixa de bombons, o

recorte de jornal com a not¡cia da implanta‡"o da Rep£blica

que trazia uma fotografia do Rei D. Manuel. Eram os tesouros

que na noite da minha fuga tinha deixado para tr s.

Por baixo de tudo isto, para minha surpresa, o soneto, o tal

dos meus catorze anos.

� poss¡vel que o meu pai o tenha lido, e o tenha deixado ali

para que eu o encontrasse. Se assim foi, talvez lhe tenha sido

mais f cil compreender-me, a mim e aos motivos que me levaram

a partir. Afinal, n"o foi por causa de Mart¡n. Foi por causa

do amor.

Numa gaveta da secret ria do meu pai encontrei um desenho

feito por volta dos meus cinco, seis anos. Era o fundo do mar,

um mar onde n"o faltava um polvo aos quadradinhos, uma sereia

de longos cabelos muito loiros e uma arca aberta cheia de

moedas de ouro e colares de p‚rolas pendurados, o mar que eu,

no Alentejo, nunca tinha visto, e que a minha imagina‡"o me

fazia fantasiar daquela forma exuberante. A mesma imagina‡"o

delirante que mais tarde me faria sonhar com o amor, desej -lo

com todo o ardor dos meus dezoito anos inquietos. No verso do

meu desenho, escrita pela m"o do meu pai, uma frase de Oscar

Wilde, um seu conceito de arte.

(r)Art has flowers that no forest knows of, birds that no

woodland possesses¯

Oscar Wilde

Entretanto, vagueando por aquela casa silenciosa, eu sentia

que para al‚m do meu pai, para al‚m da Ermelinda, faltava

alguma coisa mais, e eu n"o conseguia perceber o que era.

Claro! Faltava o meu piano. A Jacinta explicou-me depois que o

meu pai o tinha dado para o orfanato de vora. Era-lhe�

demasiado doloroso, a cada momento, olhar para ele e imaginar

que um dia, sabia-se l quando, eu poderia regressar.

Se isso viesse a acontecer, tinha ele dito, logo havia de se

comprar outro, muito melhor e mais bonito!

Entretanto a not¡cia do meu regresso deve ter-se espalhado

como um rastilho, porque n"o tinham passado dois dias,

apareceram-me l na herdade os meus primos de Portalegre...

Vinham fazer uma visita de pˆsames pela morte do meu pai,

disseram. Mas na realidade tamb‚m eles vinham saciar a sua

curiosidade m¢rbida. Vinham ver como seria a cara de algu‚m

que fugiu de casa com um criado. Vinham contar quantas rugas o

sofrimento teria sulcado no meu rosto.

A minha tia, principalmente, olhava-me e parecia surpreendida

com a minha pele que de facto era, e ainda hoje ‚, a de uma

rapariguinha nova. Surpreendida e... ro¡da por uma pontinha de

inveja.

Falavam comigo cheios de cerim¢nia, e sobretudo muito pouco ...

vontade. Devem ter-me censurado durante anos a fio.

L me contaram que o meu tio Afonso tinha morrido afogado no

rio h uns dez anos atr s, com uma grande bebedeira de

gua-p‚. Tirando isso estava tudo como dantes.

A minha prima Maria da Gra‡a tinha casado com um not rio,

estava a morar em Beja, tinha trˆs crian‡as.

Os meus primos mais novos estavam menos irrequietos mas tinham

o mesmo ar de camp¢nios que sempre lhes conheci. O Z‚ Domingos

ia casar, ainda perguntou timidamente se eu n"o ficava at‚

Setembro, que fazia muito gosto em me convidar para o

casamento. Est vamos em Abril!

Insistiram muito para que os fosse visitar antes de regressar

a Paris. Sabia-se l se nos tornar¡amos a ver, e sempre ‚ramos

fam¡lia, dizia a minha tia. Santa hiocrisia! Como se isso

significasse alguma coisa!

Entretanto a minha decis"o estava tomada. Venderia a herdade.

Tinha combinado com o homem da charrette que viria buscar-me

na ter‡a feira, por isso no domingo arrumei uns trˆs ou quatro

caixotes com algumas coisas, o anel do meu pai, que mandei

ajustar ao meu dedo e nunca mais tirei, o tinteiro e as penas

dele, a caneta de tinta permanente, as condecora‡"es da

marinha, o sinete, o crucifixo do meu quarto, alguns outros

objectos de prata, fotografias, um dos naperons de renda de

Miss Davidson, a minha arca de madeira pintada com o seu

valioso conte£do, as minhas aguarelas e alguns outros objectos

com mais significado para mim. Os livros ficaram empacotados

tamb‚m. Seguiriam depois.

Na segunda feira de manh" ainda andei por ali a despedir-me

daquilo tudo.

C fora estava o velho celeiro, o lugar onde havia amado

Mart¡n, e estavam as cavalari‡as, que me recordaram a minha

adorada Rosmaninha.

Mas n"o valia a pena ficar sentada numa cadeira a lembrar-me

de coisas que o tempo tinha levado, h muito se tinham

desvanecido como fumo, e agora me voltavam dolorosamente ao

pensamento.

Nessa tarde n"o tinha que fazer, a Jacinta l me arranjou um

homem com uma carro‡a, e sempre fui at‚ Portalegre.

A minha tia recebeu-me com uma satisfa‡"o exagerada e

despropositada que cheirava a falso por todos os lados. Fazia

comigo uma cerim¢nia que me irritava e me deixava incomodada.

L foi ... cozinha dar as suas ordens, e de facto, ainda n"o

eram cinco horas, foi servido um ch com algumas vinte

guloseimas diferentes. Era p"o de l¢, eram barrigas de freira,

eram rosquinhas, era toucinho do c‚u, era castanhada, era

pudim do Abade de Priscos, eram merengues, eram rebu‡ados de

ovos, era um exagero que tocava o rid¡culo.

Havia uma pessoa que queria apresentar-me. Era um professor

que tinha chegado h pouco tempo. A minha tia queria que eu

visse que tamb‚m se davam com pessoas educadas e instru¡das.

Mandou o meu primo mais novo com um bilhete a convid -lo para

o ch .

Ele veio, com um ar de quem tinha ficado surpreendido com o

convite, tinha vindo por uma quest"o de boas maneiras, mas no

fundo n"o sabia muito bem o que estava ali a fazer.

Era um rapaz baixo e magro. Parecia muito t¡mido. Chamava-se

Jos‚ Maria e era imensamente am vel. Convers mos um pouco,

falei-lhe do meu interesse pela poesia, e a partir da¡ a

conversa tornou-se fluida, simples e natural, como num

reencontro entre velhos amigos. ' despedida pediu-me o meu

endere‡o de Paris. Que me daria not¡cias.

Com efeito, umas trˆs ou quatro semanas ap¢s o meu regresso a

Paris, recebi um pacote pelo correio. Era um livro chamado

Poemas de Deus e do Diabo com uma dedicat¢ria muito bonita.

V rias vezes o li e reli, com a sensa‡"o de sempre algo

encontrar de novo. Santo Deus, que vulc"o de sentimentos e

d£vidas, ang£stias e ambiguidades. Como entendi a poesia deste

rapaz, o seu drama, que ‚ afinal o meu, a sua busca do

infinito, a sua necessidade de evas"o.

Eram coisas que de tal forma entendia que lamentava n"o ter

sabido escrevˆ-las eu pr¢pria.

Este meu ar,

Estas vagas m"os ca¡das,

Estes vagos olhos fitos,

Este vago riso alheio,

N"o sei que foi quem mos deu !

...

O que sofria,

Dava-o por bem sofrido e por bem pago,

Pensando que era grande quem bebia

(Como eu bebia) o derradeiro trago.

Jos‚ R‚gio

Cap¡tulo 9

Um pouco entorpecida, tentando n"o sentir os solavancos da

diligˆncia, fechei os olhos, como se estivesse a ver um filme,

e relembrei a minha primeira vinda a Lisboa. H quantos anos

tinha sido? H dezanove, vinte anos. Eram tantos que me

pareciam uma eternidade.

Entretanto, absorta nos meus pensamentos, est vamos a chegar a

Lisboa e eu nem me apercebia.

Era perto da hora do almo‡o. Ali mesmo na esta‡"o tomei um

fiacre e segui directamente para o escrit¢rio do advogado do

meu pai, na Rua da Concei‡"o.

Do outro lado da sua secret ria D. Jos‚, enorme, toda em pau

santo, o Dr. Mayer estava muito velho, mas era bem o mesmo que

eu conhecera vinte anos atr s. Limpava cuidadosamente as

lentes dos ¢culos redondos e sorria-me.

Tratava-me por Senhora Marquesa. Havia de facto herdado o

t¡tulo, mas era a primeira vez que assim me tratavam. Para os

meus primos eu era a prima Beatriz, para a gente do Monte era

ainda a menina.

Foi tudo mais f cil do que eu havia previsto. Expliquei-lhe

que queria vender a herdade. Fi-lo meu procurador, adiantou-me

cinquenta contos de reis que era uma soma mais do que

suficiente para as minhas primeiras despesas.

Despediu-se de mim com uns olhos morti‡os com muita mal¡cia

escondida por detr s dos ¢culos, e algo me diz que este foi

para ele um chorudo neg¢cio. Deve ter ganho muito mais do que

o que seria razo vel, mas isso a mim pouco me importa,

francamente.

Decidi-me ent"o a passar uns dias em Lisboa, que n"o parecia a

mesma cidade. Eram os autom¢veis, dezenas deles, mas n"o era

s¢ isso. Eram as pessoas, que j n"o tinham aquele ar de gente

fina da prov¡ncia a passear ao Domingo. Tinham agora um ar

distante e atarefado, passavam distra¡das ou apressadas, j

n"o perdiam tempo a cumprimentar qualquer desconhecido.

Viam-se mulheres sozinhas na rua, um costume adoptado durante

a Grande Guerra, por necessidade, mas que n"o deixava de ser

uma novidade, e at‚ se via uma ou outra pelos caf‚s.

Cheguei ent"o ao Avenida Palace. Fui atendida pessoalmente

pelo gerente, muito polido, mas sem conseguir disfar‡ar

completamente uma pontinha de surpresa.

- E o nome de V. Exa.?

- Beatriz Vit¢ria Robertson de Noronha Almeida e S , Marquesa

da Amendoeira.

Parecia cada vez mais intrigado. Se a Minha Excelˆncia era

filha de Sua Excelˆncia o Senhor meu Pai.

N"o vi motivo para lhe dar muitas explica‡"es. Nem ele mas

pediu. Apenas um documento que me identificasse.

- Far o favor de se sentir em sua casa, minha senhora, e se

alguma coisa n"o estiver a gosto, V. Exa. ter a bondade de me

comunicar imediatamente.

A seguir fez uma v‚nia, um sorriso am vel que me fez sentir um

pouco melhor, despediu-se e chamou o groom que seguiu ... minha

frente, levando a minha mala de viagem numa m"o e a chave do

quarto na outra.

Nessa tarde devo ter gasto mais de cinco contos de reis s¢ em

vestidos, abafos, luvas, sapatos, chap‚us, perfumes, batons,

quinquilharias.

Por volta das oito horas chegaram as minhas compras. Deviam

ser mais de trinta caixas. Eu imagino o que o pessoal do Hotel

deve ter cochichado pelos cantos. Olhavam para mim com uns

olhos de curiosidade...

Os dois grooms que ajudaram a trazer as caixas para o meu

quarto n"o acreditavam. Cinco mil reis de gorgeta!

Lisboa estava muito diferente. Havia hoteis, restaurantes,

teatros, cinemas, enfim, a pacata cidade que eu conhecera em

Novembro de 19O7 tinha dado lugar a um centro buli‡oso e

cosmopolita.

Est vamos no ano de 1926, o clima de instabilidade gerado pelo

golpe de estado parecia ter acalmado um pouco e as pessoas

estavam divididas entre a consterna‡"o pela morte de Rodolfo

Valentino e a admira‡"o por um jovem formado em Coimbra

chamado Oliveira Salazar. Tinha o apoio do pr¢prio General

Carmona. O jornal que comprei no dia seguinte num quiosque do

Rossio fazia-lhe um vigoroso elogio. Que era ele que ia

levantar a na‡"o, salv -la do caos financeiro, mas eu n"o sei.

Pela fotografia mais parecia um seminarista de prov¡ncia, e

sobretudo nos seus olhos n"o vi inteligˆncia nem brilho.

Trazia a not¡cia de um atentado contra Mussolini, falava de

uns boatos que corriam sobre a fuga da pris"o de um aldrab"o

qualquer chamado Alves dos Reis, que tinha falsificado uma

encomenda de notas ao Banco de Inglaterra, o jornal n"o

adiantava muitos detalhes sobre o assunto, mas explicava que

boato era falso, o homem continuava preso.

Falava tamb‚m de uma actriz chamada Maria Alves que tinha

aparecido morta, tinham prendido um industrial do norte

chamado Augusto Gomes. Parece que tinha sido um ajuste de

contas, uma hist¢ria qualquer de ci£mes, mas era uma hist¢ria

horrorosa. Ele tinha-a estrangulado e tinha atirado o corpo

para o meio da rua, pelo menos era o que dizia o jornal.

Procurei a p gina dos Teatros. No Nacional ia uma coisa

chamada A Valsa da Meia Noite. Francamente, n"o me apetecia

nada. No Teatro do Gin sio ia O Az, com a actriz Palmira

Bastos. No S. Carlos ia A Rosa do Adro, no S. Lu¡s a Roma

Galante, a Companhia Joaquim de Almeida representava uma coisa

chamada Fox Trot com a Teresa Gomes, e no Avenida estava a

Companhia Satanela-Amarante com uma pe‡a chamada P"o de L¢.

Decidi-me afinal por uma revista chamada Cabaz de Morangos,

que estava em cena no Sal"o Newparth, na Rua Nova do Almada, e

conclu¡ uma coisa curiosa: ao fim de todos aqueles anos, os

portugueses continuavam os mesmos. Era espantoso!

Com o clima pol¡tico, social e econ¢mico que se vivia, e que

n"o podia ser mais inst vel, num pa¡s mal aproveitado, mal

governado, com gente a passar fome, com a carne a 9.6OO o

quilo, sa¡am satisfeitos a trautear a £ltima cria‡"o de

Deolinda de Macedo:

Maria!

S"o teus olhos azeitonas

Cachopa!

S"o teus l bios quais cerejas

S"o teus seios cachos de uvas que abandonas

' vindima desta sede que os deseja...

Havia de ser em Paris!

Na Rua do Carmo comprei um livro com as caricaturas de Rafael

Bordalo Pinheiro. Era espantoso de arg£cia e sentido cr¡tico!

Estava j de sa¡da, quando deparei com um livro cujo t¡tulo

chamou a minha aten‡"o. Era o Livro de M goas de Florbela

Espanca, uma alentejana melanc¢lica como eu, que como eu amou

o amor e tudo lhe sacrificou.

Nessa noite, no meu belo quarto do Avenida Palace, comecei a

folhe -lo. Era espantoso! Parecia que o que ali estava escrito

tinha sido sentido e escrito por mim.

No dia seguinte voltei ... livraria. Ainda consegui comprar um

outro livro seu, Soror Saudade, mas quanto ao seu endere‡o o

empregado n"o me sabia informar. Como gostaria de a ter

conhecido!

A minha dor ‚ um convento, H l¡rios

Dum roxo macerado de mart¡rios

T"o belos como nunca os viu ningu‚m...

...

Oh minha vƒ, in£til mocidade

trazes-me embriagada, entontecida!...

Duns beijos que me deste noutra vida

trago em meus l bios roxos a saudade.

Florbela

Espanca

Nesse dia ainda fui a uma matin‚e no cinema Condes, ver um

filme chamado Notre Dame de Paris com Lou Chaney num espantoso

desempenho do papel de Quasimodo.

' sa¡da sentei-me numa esplanada a tomar um c lice de Madeira

e a fumar um cigarro, perante os olhos arregalados do

empregado.

Ainda nesse dia resolvi dar um passeio de carro el‚ctrico. Os

assentos eram de palhinha, nem por isso muito confort veis,

mas consegui um bom lugar, c atr s, ao p‚ da janela.

A certa altura desenrolou-se uma cena engra‡ada e pitoresca.

' minha frente vinha uma varina. N"o trazia canastra, mas o

carrapito, o cord"o de ouro e o cheiro a peixe n"o deixavam

margem para d£vidas.

Era uma mulher alta e forte, corada, a¡ para uns quarenta e

poucos anos.

Ao lado dela sentou-se um rapazola a¡ dos seus dezoito anos,

baixinho, magrinho, de bigodinho revirado, chap‚u de palhinha,

¢culos redondos e jornal debaixo do bra‡o. De repente come‡ou

a assoar-se, a fungar, a olhar para a varina pelo canto do

olho.

- Olhe l , ¢ freguˆs, n"o est a gostar do cheirinho a

carapau? Olhe que ele era do fresquinho, ouviu? Tomara-o

vosseeme‡ˆ! Ora o fin¢rio! Olhe que eu posso cheirar a peixe,

sou peixeira, sim senhor, com muita honra, mas se vosseme‡ˆ

pagou o bilhete, fique sabendo que eu tamb‚m paguei!

Entretanto, enorme, ocupava o banco quase todo. Ele, muito

esticado no seu cantinho, n"o dizia nada, nem se atrevia a

respirar, e a certa altura disse:

- Oh senhor revisor, venha aqui dar-se ao respeito, faz favor,

que as pessoas como eu, que at‚ j sou bacharel, n"o andam nos

carros el‚ctricos para serem tratadas desta maneira!

- Ora vejam l ! Deve pensar que eu tenho medo do revisor! Olhe

que eu dou-lhe com o peixe nas ventas, fique sabendo que levo

aqui na alcofa uma cabe‡a de pescada, que era para levar ...

minha filha, e chicharro, por isso ‚ s¢ escolher. E o

berbig"o, quer ver o cheirinho que ele deita? Olhe que ‚ do

fresquinho! E tamb‚m trago chaputa, mas essa ‚ pr sua m"e, e

bˆbeda, ‚ o que ela deve ser!

Aben‡oada! Eu estava deliciada com tudo aquilo, e mesmo sem

querer lembrei-me do E‡a.

"Deste arroz com favas, nem em Paris, Melchior amigo!"

Pois ‚, varinas destas, que eu saiba, tamb‚m n"o h nem em

Paris nem em mais lado nenhum do mundo.

Ela olhava para todos os lados, como que a certificar-se da

aprova‡"o dos presentes. Dei-lhe o meu sorriso mais caloroso.

Entretanto tinha chegado ao meu destino. Apeei-me, consolada,

e ela atr s de mim. Torceu a rodilha, p"s a alcofa ... cabe‡a, e

l foi a chinelar pela rua fora.

Nessa tarde fiz ainda uma outra coisa. H anos que tinha

vontade de consultar uma cartomante.

N"o foi dif¡cil. Ali mesmo na Rua do Carmo havia uma tabuleta

em metal amarelo gravada a preto.

Mme BROUILLARD

vidente

Subi um lan‡o de escadas, por acaso bastante sujas, bati ...

porta e entrei.

Fui recebida por uma mulher gorda com o cabelo todo aos

caracolinhos de um amarelo muito amarelo e umas sobrancelhas

muito arqueadas, desenhadas a preto. Tinha os l bios pintados

com baton vermelho j um bocado esborratado, tinha dois sinais

pintados, um deles do lado esquerdo, logo abaixo das rugas dos

olhos, o outro do outro lado, junto ... asa do nariz. Tamb‚m

tinha as unhas pintadas de cor de rosa forte, com o esmalte j

muito estalado.

Estava vestida com uma saia preta e roxa e uma blusa amarela

cheia de n¢doas. Cal‡ava umas meias pretas de l" com um grande

buraco numa delas, e uns chinelos cinzentos de fazenda. Pelos

ombros trazia um xaile preto de l", muito velho.

Por todo o lado se sentia um cheiro que era uma mistura de

mofo, sujidade, perfume ordin rio, vinho azedo e toucinho

ran‡oso.

Toda a sala estava envolta numa esp‚cie de penumbra

misteriosa. Devia ser para impressionar.

Em cima de um m¢vel estava um casti‡al com uma vela de cera

amarela, e na janela tinha uns reposteiros de veludo de um

verde j muito sumido, muito comido pelo sol, e com aspecto de

nunca em dias de vida terem sido lavados, escovados ou sequer

arejados.

Mandou-me sentar e perguntou-me ao que vinha.

Disse-lhe que tinha vindo para ela me dizer coisas sobre a

minha vida.

Perguntou-me ent"o o dia e a hora do meu nascimento, e

disse-me que o meu signo era o escorpi"o, e que nunca me

esquecesse que o escorpi"o ‚ o £nico animal que em situa‡"o de

desespero se suicida com o seu pr¢prio veneno. Disse-me depois

que o meu metal era o cobre, a minha pedra a safira azul, que

se eu fosse uma rvore seria uma ac cia ou uma palmeira, se

fosse uma flor tanto podia ser uma violeta como uma cam‚lia,

uma orqu¡dea ou at‚ uma esterl¡cia. Se fosse um animal tanto

podia ser uma loba como uma cor‡a, uma guia como um rouxinol.

Depois disse que me ia deitar o Tarot, sentou-se na minha

frente, tirou um baralho de cartas de dentro de uma gaveta,

benzeu-as, fez uma reza r pida que n"o percebi, mas n"o me

pareceu nenhuma ora‡"o que eu conhecesse, e come‡ou a p"r as

cartas uma a uma em cima da mesa como se fossem as doze horas

no mostrador do rel¢gio.

Tinham uns bonecos esquisitos, representavam pessoas em

atitudes estranhas, com desenhos ... volta.

Depois fez mais duas rodadas com outro baralho semelhante ao

das cartas normais de jogar.

Apontou ent"o para as primeiras cartas. Eram a Sacerdotisa (a

profetisa), a Estrela (o guia espiritual), e o quatro de

ouros, que significava uma profecia.

A seguir vinha o Sumo Sacerdote. Come‡ou a falar-me de um

homem mais velho, o boneco tinha umas barbas como as do meu

pai, e falou-me em boas palavras de portas de casa adentro, e

de sobressaltos em horas de comidas e bebidas, e eu a

lembrar-me da £ltima noite em que jantei ... mesa com o meu pai,

e at‚ entornei um copo de gua. De um lado tinha o Eremita,

que significava o eterno retorno, e do outro tinha a Roda da

Vida e o dez de ouros, que era muito dinheiro.

A seguir estava o Carro da Vida, seguido do cinco de ouros e

do seis de espadas. Era uma vit¢ria sobre uma doen‡a, e eu a

lembrar-me do sanat¢rio.

Falou-me do Diabo, que era a subvers"o dos valores anteriores

(era Mart¡n!). Tinha sa¡do rodeado pela Lua, a lua cheia da

noite em que fugi, e do Sol, a luz que ele veio trazer ... minha

vida. Tinha tamb‚m o as de paus, que eram fandangos (era fazer

amor), e o nove de espadas, que significava em dia ou v‚spera

de igreja (tinha sido num Domingo!)

Mostrou-me depois o Louco, representado pela letra hebraica

Shin (s¢ podia ser Sebastien) que vinha rodeado pelo Mago, que

era o g‚nio, pelo Enforcado, que representava o sacrif¡cio

supremo, pelo valete de copas, pelo quatro de ouros, pelo

cinco de paus e pelo dois de copas. Eram instintos perversos,

ausˆncia, separa‡"o, as guas do mar. O dois de copas era uma

carta, not¡cias de longe. Era espantoso! Como ‚ que ela podia

sabar? O valete de copas era a imagem de um jovem rei. D.

Sebasti"o?

Talvez porque o meu rompimento com Sebastien estivesse ainda

muito fresco na minha mem¢ria, pedi-lhe que me falasse um

pouco mais sobre a letra Shin. Explicou-me que estava

associada ao Louco, a 21¦ carta do Tarot. Era uma estranha

personagem que n"o podia impedir-se de caminhar ... deriva, sem

conhecer o seu destino. Era um peregrino sem rumo em

permanente estado de del¡rio e ˆxtase, incapaz de ouvir outra

voz que n"o a da sua pr¢pria natureza amb¡gua que acabava

geralmente por conduzi-lo ... auto destrui‡"o e ao caos.

' medida que escutava estas palavras, dei comigo a pensar no

destino de Sebastien, um outro D. Sebasti"o. Era f cil

imaginar Sebastien de gib"o de seda e escarpins bordados, e de

repente, estranhamente, lembrei-me da imagem que a Ermelinda

tinha pendurada na parede do quarto, o tal S. Sebasti"o do

pano vermelho amarrado ... cintura, como Sebastien em Veneza, no

momento em que se cobriu com a colcha vermelha da cama. O

santo todo ele escorria sangue, com o corpo crivado de setas

iguais ...s pontas ca¡das da echarpe vermelha de Stefano, iguais

...s labaredas do quadro que t¡nhamos pendurado no atelier, na

parede em frente ... cama.

Sebasti"o m rtir. A letra S era aqui a espiral do fumo

sacrificial. E era muitas outras coisas. Sebastien e Stefano,

os dois SS deitados, como o leve ondular da gua nos canais de

Veneza. O silvo da serpente que me mentiu, que sinuosamente se

havia esquivado a dizer-me a verdade que me devia afinal.

Perguntei-lhe ent"o o que me podia dizer sobre o futuro.

De novo me deitou as cartas, desta vez em quadrado. Tinha o

cavaleiro de ouros, o as de espadas e a Morte, significavam um

menino de ouro, de novo fandangos, l grimas, um cavalo e a

morte, mas n"o a minha.

Em seguida saiu a Dama de copas, o as de Copas e o Mundo. Era

uma mulher jovem, um afecto, uma trai‡"o, excessos de v rias

ordens e os prazeres do mundo.

Por fim voltou a baralhar as cartas, e fez um £ltimo quadrado

com uma carta no centro, e no seu rosto estampou-se uma

express"o de espanto. Nunca tinha visto nada assim. Tinha

sa¡do o trˆs de cada um dos quatro naipes, e no centro a Torre

de Babel.

Disse-me ent"o que eram quatro os amores da minha vida,

ligados ao n£mero trˆs ou a um triƒngulo.

A Estrela, que era a primeira carta que tinha sa¡do, era o

momento do meu nascimento, e a Torre de Babel, que tinha sido

a £ltima, era o desmoronar de tudo, era o fim da minha vida,

n"o me sabia dizer quando seria, mas mesmo que soubesse n"o me

dizia.

Lembrei-me ent"o da Ermelinda, e do que ela contava sobre a

noite em que eu tinha nascido. Um quadrado de trˆs pontas, n"o

era como ela dizia?

Perguntei-lhe se podiam ser trˆs estrelas cadentes em

triƒngulo e uma profecia, ela olhou para a Sacerdotisa, para a

Estrela, para a Torre a cair e disse que sim.

Eram talvez umas seis horas da tarde.

Sa¡ para a rua e respirei um pouco de ar puro.

Hoje, trˆs anos passados, cumpridas todas as profecias, n"o

creio que v viver muito mais...

Desci um quarteir"o da rua, devagarinho, a olhar para as

pessoas, para as lojas, para os trens, para os autom¢veis, e

foi ent"o que resolvi subir ao cimo do elevador de Sta Justa.

Que beleza!

Ainda l fiquei um bom bocado, a ver o Rossio, o Terreiro do

Pa‡o, o Convento do Carmo, a pensar na minha vida. Foi ent"o

que me lembrei: que seria feito da minha amiga Eug‚nia Telles

da Gama? No dia seguinte havia de tentar descobrir a morada

dela, talvez at‚ lhe fizesse uma visita.

Nessa noite ainda fui jantar a uma casa de fados. Havia uma

fadista que cantava a hist¢ria de uma Rosinha que tinha sido

abandonada por um marinheiro, tinha morrido tuberculosa

cooooitadinha (o pesco‡o da fadista esticava-se todo), e ...

porta tinham ficado aaaas chiiiiinelinhas.

As pessoas aplaudiam.

No dia seguinte pedi na recep‡"o do Hotel que me descobrissem

a morada da minha amiga, e eles l telefonaram para o tal

escrit¢rio dos barcos, que era mais propriamente uma agˆncia

de navega‡"o. Ela sempre tinha casado com o Harold, o inglˆs,

estava a morar em Caxias.

Podia-se ir de comboio, mas o dia estava t"o bonito que eu

preferi chamar um fiacre e mandar bater para l .

Belo passeio! Est vamos em meados de Abril, o tempo estava uma

del¡cia, o Tejo estava calmo, ali para aqueles lados eram tudo

quintas e os ares eram muito bons.

Havia no ar uma alegria t¡mida que era dada pelas pequenas

flores brancas e amarelas que come‡avam a aparecer pelos

campos. Se n"o encontrasse a minha amiga j n"o dava o passeio

por desperdi‡ado.

De repente lembrei-me do rosto dela com mais nitidez. Vi-a na

minha frente no dia em que t¡nhamos alugado uma vit¢ria,

t¡nhamos mandado descer a capota, e t¡nhamos andado a passear

por Lisboa.

Cheguei. Era uma casa branca toda coberta de buganv¡lias cor

de rosa. Bati ... porta, vierram dois c"es a ladrar.

- Milord, Blackie, quietos!

Chamava uma criada de avental e crista. Que sim, que a senhora

estava, para eu fazer o favor de dizer o nome e esperar um

momentinho.

Ela n"o queria acreditar! H dezoito anos!

N"o podia ter-me recebido melhor. Que eu tinha tido uma ¢ptima

ideia, que era uma surpresa muito agrad vel, que o Harold

tamb‚m ia gostar muito de me ver, que tinha de ficar para

jantar. Mandava embora o fiacre, e eles depois iam-me levar no

autom¢vel.

Mandou servir refrescos no jardim e ali estivemos toda a tarde

a conversar. N"o lhe deve ter chegado aos ouvidos a hist¢ria

da minha fuga com Mart¡n. Se sabia de alguma coisa agiu como

se n"o soubesse de nada, e preferiu n"o tocar no assunto.

Tinha uma filha mais velha, a Mary, que era bonita e simp tica

e tinha uns olhos azuis muito claros, iguais aos da m"e. A

mais nova era menos bonita e um tanto enjoada, e tinha uns

olhos onde brilhava alguma mal¡cia mas pouca inteligˆncia.

Tinha tamb‚m dois rapazes. O mais velho, o Albert, magro,

esqu lido, de ¢culos e cheio de tiques, e o mais novo, o John,

que devia andar a¡ pelos seus seis anos, e era uma crian‡a

encantadora com uns grandes carac¢is castanhos e uns olhos

meigos cor de mel. Ali esteve toda a tarde, muito sossegado, a

brincar com um carreirinho de formigas. Tinha estado a morrer

com uma apendicite, e por isso era o ai-Jesus dos pais e da

irm" mais velha.

' tardinha chegou o Harold, num Austin azul. Continuava bonito

e simp tico, com o seu bigodinho engra‡ado, e tinha j nos

cabelos uns fiozinhos brancos que lhe ficavam a matar.

Fez-me uma grande festa, lembrava-se perfeitamente de mim, e

de uma valsa que t¡nhamos dan‡ado na festa memor vel da minha

primeira vinda a Lisboa.

Tinham uma grafonola e ainda ouvimos uns tangos e uns

pasodobles enquanto tom vamos um Pink Gin antes de jantar.

Depois tocaram um gong e fomos para a mesa. Serviram uma canja

que parecia a que fazia a Ermelinda, e como nunca mais eu

tinha comido em dias de vida. Depois veio um arroz de pato que

tamb‚m estava muito bom, e um leite creme com canela e um

gostinho a laranja que era uma coisa deliciosa.

Depois de jantar as crian‡as foram dormir, em vez de

"good-night" tinham sido ensinados a dizer "nai-nai", e eu

achei muita gra‡a, porque era como dizia Miss Davidson, e como

eu pr¢pria tinha sido ensinada a dizer.

A minha amiga Eug‚nia ainda me deu uma receita de scones, que

era uma coisa de que eu em crian‡a gostava muito, e todo

aquele ambiente ... antiga, um pouco ... inglesa, me fez reavivar

mem¢rias antigas dos tempos em casa do meu pai.

Eram talvez umas dez horas, vieram no carro trazer-me de volta

ao Hotel. Despedi-me deles, agradeci, subi para o meu quarto

com cascatas de recorda‡"es de infƒncia a esvoa‡arem como

p ssaros dentro da minha cabe‡a.

Nessa noite levei muito tempo a adormecer. N"o conseguia

deixar de pensar, havia tanto para relembrar... O meu pai, a

Ermelinda, a Rosmaninha, a gente do Monte, a fruteira com os

doces de ovos, o pr¡ncipe Dom Manuel, o sanat¢rio, o meu amigo

fil¢sofo, Mart¡n, a m"e dele, os camaradas, a vida em Sevilha,

o p tio com as laranjeiras, aquela calmaria, a noite em que

quase fomos apanhados pela guarda, a fuga para Fran‡a, o

botequim, os soldados, o barulho que faziam, aquele sot"o

gelado, cheio de ratazanas, o velho dos gatos, a velha que

veio depois, a partida de Mart¡n, as noites ... espera, tantas,

a (r)fazedora de anjos¯, o seu rosto, as suas m"os vermelhas, os

ferros, o meu medo, a vontade que eu tinha de gritar,

Sebastien, as horas a posar, im¢vel, o quadro pendurado na

frente da nossa cama, a exposi‡"o, Veneza, as m scaras,

Stefano, a minha estupefac‡"o, a minha desola‡"o, a minha

indigna‡"o, GisŠle, a carta do meu pai, a chegada ao Monte, os

meus primos, o rapaz que tinha vindo tomar ch , as coisas que

me tinha dito a vidente, tudo se fundia numa esp‚cie de

arco-iris que rodava dentro da minha cabe‡a e ma deixava

vazia, sem conseguir dormir e todavia sem estar completamente

acordada, como num sonho em que eu estivesse consciente de

estar a sonhar, e pudesse rever as mesmas imagens, outra vez,

e outra ainda, ao sabor da minha fantasia.

No dia seguinte telefonei a agradecer de novo aos meus amigos

e a convid -los tamb‚m por minha vez.

Nessa noite vieram jantar comigo no Hotel, que tinha uma

cozinha francamente boa e muito bem apresentada.

Depois de jantar sentei-me ao piano e toquei para eles, toquei

o melhor que sabia, coisas alegres, e pela cara deles bem se

via que estavam encantados.

De repente passou o Embaixador Inglˆs, o Harold conhecia-o.

Estava com umas oito ou dez pessoas, ingleses tamb‚m, um deles

era um Secret rio de Estado do Governo de Sua Magestade o Rei

George. Calhou passarem no momento em que os meus dedos

tocavam:

London bridge is falling down

falling, falling...

N"o resistiram. Havia por ali costela inglesa. Espreitaram,

riram-se para n¢s, acenaram, deram as good-evenings, aceitaram

o convite, veio uma garrafa de bom vinho do Porto, outra de

Whisky, sentaram-se connosco, beberam, confraternizaram,

cantaram, foi uma noite bem passada.

Nessa noite subi para o meu quarto e de novo o branco, a

ausˆncia, o vazio.

Eu, a camarada de Mart¡n, a usar um t¡tulo, a conviver com

pessoas daquelas? E os meus belos ideais de Sevilha? E a

classe oper ria? E a arte pela arte, como centro do universo?

E a insubmiss"o a todo e qualquer poder?

Por outro lado... depois de conhecer a mis‚ria daquele s¢t"o,

ia recusar mil e duzentos hectares de corti‡a?

Santo Deus, como estava confusa! Queria tanto conciliar-me

comigo pr¢pria, e era t"o dif¡cil! Sentia vergonha, como se

estivese a trair Mart¡n, e com ele todos os desgra‡ados do

mundo, que a mim pr¢pria tinha jurado proteger.

Por outro lado havia a mem¢ria do meu pai, e havia a vida, que

era t"o mais f cil quando se tinha dinheiro... e eu bem o

sabia. Ah, eu conhecia bem uma face e a outra da moeda!

De novo, tal como numa certa noite em menina, agitada,

perturbada, sem poder dormir, me levantei da cama,

aproximei-me da janela e pus-me a olhar para as estrelas.

Depois sentei-me, peguei numa folha de papel timbrado do

Hotel, e escrevi:

Pelo verso e reverso desta vida

Vivi. Para que vivi eu, afinal?

Aqui estou eu, despojada, vencida,

Pela chuva, pela dor, pelo vendaval,

Pelo nevoeiro, pela solid"o.

Ouvia o vento... ouvia-o zunir!

Era t"o jovem... ardia de paix"o...

Contava as horas noite fora, sem dormir

Silˆncios que sofria, meu segredo...

Noites de ang£stia que nem sei contar

Horas terr¡veis, eu j nem me lembro!

Temporais que uivavam no arvoredo

Vem comigo! Dizia-me a assobiar

Pelas frinchas a ventania de Novembro

E eu tinha ido, tinha seguido o temporal dos meus pr¢prios

instintos...

Nessa noite jantei no Hotel, um ch e uma fatia de cake.

Estava em Lisboa ia j para uma semana, ia sendo tempo de

regressar.

No dia seguinte dirigi-me a uma agˆncia de viagens, na Rua do

Ouro, a comprar a minha passagem para Paris.

' minha frente estava um casal a reclamar, que queriam ir

passear a It lia, tinham comprado as passagens, mas n"o havia

meio de conseguirem os passaportes, e estavam a ver que n"o

iam.

O rapaz da Agˆncia, por sinal bastante antip tico, dizia que

n"o lhes podia devolver o dinheiro. Os passaportes eram uma

quest"o que o governo ‚ que tinha de resolver, eles n"o podiam

fazer nada.

O marido estava exaltad¡ssimo, que era uma roubalheira, mas

ele tinha um primo deputado, e se fosse preciso levava-se o

assunto ao Parlamento, que ele n"o era homem para se deixar

ficar assim com um prejuizo de quase dois contos de reis.

No outro dia segui no comboio para Paris.

Cap¡tulo 10

Nas carruagens de segunda classe ia uma grande confus"o e

muito barulho, e o revisor veio pedir muita desculpa, que era

gente com pouca educa‡"o, ele n"o tinha culpa, iam ver o jogo

de futebol Portugal-Fran‡a, e aquela agita‡"o toda era por

causa disso.

' hora de almo‡o vieram com uma campa¡nha chamar as pessoas

para o Wagon Restaurante. L me serviram um consom‚, um

rosbife, um sorvete com pedacinhos de chocolate.

Sentado ... minha frente sentou-se um rapaz ainda novo com um

bigodinho loiro e um chap‚u ... Gardel. No meio dos dois, um

pequeno candeeiro, um abat-jour de seda grenat com as franjas

a tremer. Os seus olhos lƒnguidos eram castanhos claros, c"r

de mel, as suas pestanas muito louras pareciam tremeluzir

tamb‚m. Ah, o ouro, o eterno sedutor!

N"o troc mos uma palavra. Acabei de almo‡ar, regressei ao meu

compartimento. N"o fui jantar. Eu come‡ava a recear o amor.

Acho que dormitei o resto do tempo, embalada pelo suave trotar

da carruagem. ' chegada a Paris tomei um taxi e alojei-me no

Grand Hotel.

De uma vez por todas, bastava de mis‚ria!

Estava de novo em Paris, mas desta vez em condi‡"es

completamente diferentes.

De pianista e criada de mesa num restaurante mal frequentado,

a almo‡ar sopa da v‚spera numa marmita velha, a suportar os

ditos obscenos dos soldados, e depois em Chaillot a dormir num

buraco sem janela, eu era agora senhora de uma fortuna, passe

o exagero, capaz de comprar, se eu quisesse, metade da cidade

de Paris. Como era diferente! Era o dia da noite!

Passados dois dias voltei a Chaillot a buscar uma ou outra

coisa, meia d£zia de objectos de que n"o me quis separar. Os

meus livros, o retrato de Mart¡n e pouco mais.

Passei tamb‚m no restaurante a buscar Rosalie. Tinha sido a

£nica pessoa a ajudar-me nos dias mais duros, mais dif¡ceis da

minha vida. Veio viver comigo.

Porquˆ o retrato de Mart¡n? Porquˆ Rosalie? Que estranhos

la‡os cria a mis‚ria entre as pessoas?

Passado pouco tempo recebia um cheque do meu advogado em

Lisboa. A herdade estava vendida. Entrei no banco mais

pr¢ximo, pedi para falar com o gerente, informei-me sobre os

investimentos mais interessantes, decidi-me pelas ac‡"es dos

caminhos de ferro, e tomei ainda uma outra decis"o. Desse dia

em diante n"o iria dedicar um £nico momento da minha vida a

pensar nas minhas finan‡as.

Mart¡n partira havia j mais de um ano, e n"o voltara a dar

not¡cias, mas isso n"o me impedia de todos os dias pensar

nele, e agora com mais motivos. Que pensaria ele de tudo

aquilo?

Provavelmente quereria empregar todo aquele dinheiro na

Revolu‡"o, mas eu sozinha... sem ele as coisas pareciam ter-se

desmaterializado, pareciam ter perdido todo o seu significado,

nada tinha j a mesma for‡a, o mesmo vigor, a mesma urgˆncia.

Um governo do povo em Espanha, em Portugal, na Europa toda,

criar uma Uni"o Europeia, semelhante ... Uni"o Sovi‚tica... sim,

claro, mas sem Mart¡n? Era como se com o desaparecimento dele

tivessem desaparecido tamb‚m os meus ideais.

Eu n"o fa‡o a menor ideia de quanto dinheiro poder ser

necess rio para financiar uma Revolu‡"o. Subornar pessoas,

comprar armas, manter um ex‚rcito, dependeria provavelmente da

resistˆncia que encontr ssemos pela frente, mas n"o creio que

aquilo que o meu pai me tinha deixado fosse o suficiente para

levar vante um projecto desses.

Acima de tudo, sem Mart¡n, com que entusiasmo faria eu fosse o

que fosse? Ainda por cima o nosso grupo estava disperso e

muito reduzido.

Com o fim da guerra as pessoas tinham passado a ter outro tipo

de prioridades. Ao longo daqueles quatro anos toda a gente

tinha passado tantas priva‡"es, que o que queriam naquele

momento era gozar a vida.

Por todo o lado se viam autom¢veis, pessoas bem vestidas,

restaurantes caros e locais de divers"o nocturna onde se

dan‡ava ainda o fox-trot, e tamb‚m o charleston, que era a

grande novidade.

As mulheres cortavam o cabelo (r)... gar‡onne¯, bastante curto com

uma grande franja, usavam-se os vestidos com a cintura

desca¡da, os colares muito compridos e as boquilhas.

Foi essa a minha primeira cedˆncia ao capitalismo, creio eu.

Uma boquilha com um aro de ouro cravejado de pequenos

diamantes.

Nessa noite jantei na casa de jantar do Hotel. Mandei vir

escargots, um linguado com manteiga e champagne. Acho que

bebi, sozinha, mais de meia garrafa. Devo ter subido para o

quarto a trocar as pernas...

O maitre olhava para mim um tanto surpreendido. Eu trazia um

bom vestido comprado em Lisboa, e n"o tenho, n"o tive nunca, o

ar infeliz da pobre desgra‡ada que fui, a tocar piano para os

soldados, mas tamb‚m n"o tinha ainda o ar sofisticado que se

esperaria de algu‚m que se aloja no melhor Hotel de Paris.

Por isso no dia seguinte resolvi ir tratar de mim. Entrei num

sal"o de cabeleireiro e cortei a minha tran‡a, a minha grossa

tran‡a castanha clara que me vinha at‚ ... cintura e que

desfazia todas as noites.

Mart¡n adorava ver-me pentear os meus belos cabelos ondulados.

Cortei-a, fiz o tal penteado ... gar‡onne, e um minuto depois

estava arrependida. Quase me apetecia chorar. Enfim, j n"o

havia rem‚dio, e ao fim de umas semanas j me habituara ao meu

novo penteado moderno e chique.

Experimentei tamb‚m desenhar as sobrancelhas a l pis. Estava

muito na moda, mas n"o era para um rosto como o meu. Parecia

uma mulher de cabaret.

Em seguida comprei mais uns tantos vestidos, e n"o sei quantas

bugigangas mais, comprei este mundo e o outro, comprei tudo

aquilo que me apeteceu.

Afinal, tinham sido catorze anos de mis‚ria por uma Revolu‡"o

e por um homem que tinham acabado por me trair um pelo outro.

O que vir a ser o mundo daqui a dez ou vinte anos n"o o sei

eu, n"o o sabe ningu‚m.

Pela minha parte j tinha dado o meu contributo em Sevilha,

com as priva‡"es e os perigos que tinha passado.

Tinha agora direito a ser apenas um ser humano, com as minhas

fraquezas. Que obriga‡"o tinha eu de ser uma hero¡na, uma

m rtir?

Se os anos que vivi com Mart¡n n"o tivessem sido t"o duros, se

n"o me tivesse deitado tantas vezes com fome, com necessidade

de sab"o para me lavar e sem o ter, se n"o tivesse acordado

tantas vezes naquele s¢t"o com o barulho que as ratazanas

faziam a roer nem sei o quˆ, se n"o tivesse passado por tantas

humilha‡"es, com o meu vestido passajado, com a soldadesca a

tomar-me por uma prostituta, se n"o tivesse vivido a

experiˆncia horrorosa que vivi, deitada sobre um div", a

sentir o meu corpo a ser dilacerado a sangue frio, se

Sebastien n"o me tivesse mentido torpemente, talvez eu

acreditasse ainda na humanidade.

Ah, se eu n"o tivesse passado por tudo aquilo que passei,

talvez me tivesse sido mais f cil tomar a £nica atitude nobre

e generosa, repartir a minha fortuna com todos os desgra‡ados

deste mundo, mas o que ‚ verdade ‚ que, depois daquilo que

tinha passado, me sintia agora com direito ... minha fraqueza e

ao meu ego¡smo.

Sentia uma enorme necessidade de me resgatar das horr¡veis

condi‡"es em que tinha vivido, queria rodear-me de tudo o que

neste mundo houvesse de melhor e de mais belo.

N"o queria mais pensar em crian‡as desabrigadas e sem p"o, nem

em capitalistas a sugarem o sangue do povo trabalhador. N"o

queria, pura e simplesmente, pensar na mis‚ria humana, e

ningu‚m me podia obrigar, nem que para isso tivesse de me

encher de champagne, de absintho, de coca¡na.

Comecei ent"o ... procura de uma casa. N"o foi dif¡cil. Comprei

um palacete todo branco e cor-de-rosa junto ao Bois de

Boulogne, mandei restaurar os frescos, mandei forrar paredes

dos sal"es a seda natural, mobilei-o, apetrechei-o, comprei um

piano de cauda de excelente qualidade, fabrico alem"o,

contratei uns poucos de criados e passei a frequentar o (r)tout

Paris¯.

Em boa hora fui buscar Rosalie. Nenhum ordenado chega para lhe

pagar o carinho, a generosidade com que tem tratado de mim, da

minha roupa, da intimidade do meu quarto, ao longo destes

quase dois anos em que est , recuso-me a dizer ao meu servi‡o,

est comigo.

Nunca no meu quarto cor-de-rosa-bombom faltaram as flores

frescas, nunca a minha intimidade foi devassada por estranhos,

nunca me faltou uma pequena toalha molhada em gua fria sobre

a testa naquelas manh"s em que a lembran‡a do lcool ingerido

na v‚spera era ainda muito viva.

N"o h de facto nada que atraia tantas amizades como o Senhor

Dinheiro. Em pouqu¡ssimo tempo eu tinha reunido ... minha volta

uma verdadeira c"rte. Pessoas que alguns meses atr s n"o se

dignariam oferecer-me um olhar, surgiam agora com ramos de

flores, sorrisos deslumbrantes, confidˆncias ¡ntimas.

Recebia todas as sextas-feiras. Os jornais referiam-se a mim

com um (r)Mme la Marquise¯ seguido de reticˆncias que davam a

entender que eu era, naquele momento, o centro de certas

mundanidades chiques e picantes.

N"o enviava convites. As portas abriam-se ...s cinco horas, e

rapidamente a casa se enchia de amigos, conhecidos e

desconhecidos que vinham satisfazer a sua curiosidade,

conhecer uma das mulheres mais faladas de Paris, mas que

vinham tamb‚m pelo champagne, pelas ostras e pelo caviar,

pelos fais"es que eram servidos perto das duas da manh".

Vinham industriais, artistas, diplomatas, pol¡ticos, as

pessoas mais d¡spares deste mundo.

Veio uma noite Louis Jouvet, o actor da moda, am vel mas muito

cheio da sua pessoa.

Doutra vez veio o ex-Presidente Loubet, e foi um gosto

conversar com ele. Fal mos do eterno caso Dreyfus, disse-lhe

que tamb‚m para mim Dreyfus estava inocente, e Loubet

sorriu-me com um sorriso de quem possu¡a a verdadeira

sabedoria dos anos.

Andr‚ Gide vinha todas as semanas. Era doce como um bombon

quando gostava das pessoas, era acutilante como uma espada

quando n"o gostava. Em qualquer dos casos era sempre um

lingote de ouro a brilhar.

Paul Valery tamb‚m aparecia bastante. Era um poeta que me dava

a impress"o de albergar em si um mist‚rio indesvend vel, uma

esp‚cie de segunda natureza oculta. Muito requestado, chegou

um dia a declamar Rimbaud e Baudelaire.

Veio uma noite Sarah Bernard. Estava j muito velhota,

coitada, mas era sempre uma emo‡"o recebˆ-la. Tinha o porte de

uma verdadeira ra¡nha. As suas pernas tremiam ligeiramente, a

m"o que apoiava na bengala tremia um pouco tamb‚m.

Vieram uma noite T. S. Eliot, o autor de The Waste Land, um

dos textos mais fascinantes que j li, e Virginia Woolf,

espantosa. Estava profundamente enamorada da sua £ltima obra,

Orlando. Era a hist¢ria de uma personagem que ao longo de

quatro s‚culos ia vivendo e ia sofrendo uma metamorfose

sexual. Era preciso destruir todas as ideias preconceituosas

que as pessoas tinham acerca da vida, do sexo, do amor...

Nothing thicker than a knive's blade separates happiness from

melancholy.

Virg¡nia Woolf

Contou-me que para editar os seus livros e os de alguns amigos

mais ¡ntimos tinha instalado em casa uma esp‚cie de

tipografia, em cima da mesa da casa de jantar. Estavam em

Paris para uma curta visita, talvez voltassem da¡ a um ano ou

dois. Se assim fosse n"o deixariam de me vir visitar.

Havia quem tocasse m£sica, quem declamasse poesia, quem

politicasse, quem exibisse as toilettes, quem cortejasse as

mulheres bonitas e n"o s¢, e quem lhes segredasse ao ouvido

coisas que as faziam rir ...s gargalhadas, havia de tudo.

Comprei tamb‚m um cavalo chamado Thierry, um belo cavalo, e

uma calŠche de passeio. A maior parte das vezes era eu pr¢pria

quem a conduzia pelo bosque. Era uma forma de passar o tempo.

's vezes apeava-me e dava longos passeios a p‚. A boa

sociedade parisiense cumprimentava-me amavelmente.

Foi l que fui um dia apresentada a Ravel, o m£sico.

Convidei-o para minha casa. Nunca apareceu, nem voltei a

vˆ-lo.

Comprei tamb‚m um Buick todo preto. Era um dos criados, de

nome Edgar, quem me fazia de chauffeur. Era, para al‚m de mim

pr¢pria, o £nico que sabia conduzir.

Pouco tempo depois conheci na Ÿpera outra personagem

interessante, o Ministro Herriot, com quem conversei um pouco

sobre a U.R.S.S., que o seu Governo acabava de reconhecer. Era

um homem de modos um pouco bruscos, mas que sabia muito bem o

que dizia.

Estavam tamb‚m Jean Giraudoux, agrad vel e inteligente, e Jean

Cocteau, um fasc¡nio. Tinha acabado de publicar um livro de

contos fant sticos. Passados alguns dias apareceu numa das

minhas festas e trouxe-me um exemplar.

Nas corridas de Vincennes fui apresentada a Maurice Rotschild,

com uns olhos muito azuis e um ar de quem suspirava pelo

eternamente inacess¡vel.

� algo que me transcende, esta minha paix"o pelos cavalos.

Embora a cal‚che fosse muito leve, do que Thierry gostava

mesmo era de correr livremente, trotar comigo pelo Bois de

Boulogne logo de manh" cedo, e era muitas vezes o que

faz¡amos.

Um dia reparei num rapaz alto e louro que nos olhava

atentamente. Parecia no entanto mais interessado em Thierry do

que em mim.

�, francamente, uma grave afronta para qualquer mulher.

Meti conversa.

Era russo, pr¡ncipe de sangue, primo do Czar. Chamava-se

Wladimir. Tinha fugido da Revolu‡"o, a cavalo pelas estepes,

com as j¢ias que tinham sido da m"e enfiadas no cano das

botas. Os bolcheviks tinham-lhe morto a fam¡lia toda.

Tinha vindo para Paris ... procura de um qualquer meio de

subsistˆncia. J tinha sido porteiro de Cabaret, jardineiro,

era agora tratador de cavalos ali perto do Bois de Boulogne, e

tinha reparado em Thierry. Era um cavalo muito bonito.

No dia seguinte volt mo-nos a encontrar, no outro tamb‚m, e na

semana seguinte. Em pouco tempo partilh vamos a intimidade dos

nossos corpos. Foi t"o simples como isso.

Era terr¡vel. Havia nele uma for‡a de insubordina‡"o, uma

insolˆncia como eu nunca tinha visto antes.

A sua instru‡"o n"o tinha sido muito cuidada. Falava mal o

francˆs, nunca tinha ouvido falar na civiliza‡"o grega, n"o

queria saber de m£sica, nem de pintura, sabia acender uma

lareira e bebia de um s¢ golo grandes copos de vodka, cognac,

whisky, o que fosse.

Sabia de cavalos e dizia-me que na sua terra, avaliar um

cavalo ao primeiro olhar, era tudo o que um pr¡ncipe de sangue

precisava de saber.

Olhava-me com o mesmo interesse, um misto de arrogƒncia,

desprezo e paix"o com que no Bois de Boulogne observara

Thierry.

Tinha deixado em S. Petersburgo bons cavalos que eram mais bem

tratados e mais bem alimentados que os mujiks das suas terras.

As suas cavalari‡as tinham melhores condi‡"es que as isb s!

Falava-me dos seus divertimentos em S. Petersburgo. Chicotear

um mujik at‚ o fazer sangrar bastante, beber uma garrafa

inteira de vodka e pendurar-se no peitoril mais alto do

torre"o do pal cio, desafiando o perigo. Isso sim, eram

passatempos pr¢prios de um pr¡ncipe russo.

Era capaz de uma crueldade e de uma selvajeria como n"o se

julgar poss¡vel. E era assim que me possu¡a, como quem monta

um cavalo a galope at‚ lhe rebentar com o cora‡"o.

Era de uma rudeza verdadeiramente animal, mas era o mais belo

animal que eu j tinha visto sobre a terra.

O seu corpo era o de um David, os seus olhos obl¡quos eram os

de um t rtaro, os seus cabelos dourados era os de um pr¡ncipe

de conto de fadas, os seus l bios eram finos e sorriam por

vezes, atrevidos, desdenhosos. Tinham um esgar de insolˆncia

trocista que n"o poupava ningu‚m. Os seus dentes eram brancos

e fortes, como que feitos para ele me morder, me rasgar a

carne!

Era um diamante por talhar.

Dentro dele fervia um ¢dio surdo contra o povo russo que n"o

entendia as realidades mais simples da vida. E explicava-me:

- muito simples. Se nasceste pr¡ncipe, dizia ele, melhor�

para ti. Goza a vida, come e bebe o melhor que puderes, que a

morte n"o deixar um dia de te vir buscar a ti tamb‚m. Se

nasceste mujik, nitchev"! N"o vale a pena tentares mudar o teu

destino. Submete-te ao teu senhor natural, o senhor das

terras, que ‚ melhor para ti seres um mujik esfomeado mas

vivo, do que seres um mujik morto ... chicotada.

Explicou-me tamb‚m que o que se tinha passado na R£ssia tinha

sido tudo por culpa de um frade chamado Grigori Iefimovitch, a

quem chamavam Rasputine, que tinha feito um pacto com o

dem¢nio para arruinar o Imp‚rio Russo.

Era ele o £nico capaz de manter vivo o pequeno Alexei

Czarevitch, o herdeiro do trono, com a doen‡a terr¡vel que

tinha, e por causa disso tinha conseguido tornar-se muito

poderoso, era ele que mandava na Czarina, e at‚ no pr¢prio

Czar, formava e demitia governos, sempre de forma a favorecer

os alem"es, e ningu‚m se atrevia a dizer fosse o que fosse.

Ent"o, o pr¡ncipe Ioussoupov, o Gr"o Duque Dimitri Pavlovitch

e um Deputado de nome Pourichkevitch tinham-se organizado em

grande segredo, numa conspira‡"o para o matarem, e a prova de

que ele tinha pacto com os infernos era que lhe tinham dado a

beber vinho envenenado, e ele n"o morreu. Deram-lhe a seguir

comida envenenada e ele n"o morreu. Depois ainda o

apunhalaram, e ele n"o morreu, e s¢ com um tiro ‚ que tinham

conseguido mat -lo, e depois deitaram o corpo dele ao Neva,

mas isto tinha acontecido em 1916, era j tarde, muito tarde.

Aldeias, cidades inteiras estavam sublevadas, nessa altura j

a revolta tinha atingido propor‡"es tais que n"o se podia

controlar.

Pouco tempo depois a Fam¡lia Imperial era morta por ordem do

Soviet dos Urais em Iekaterinenbourg. E n"o tinha sido s¢ a

Fam¡lia Imperial, muitas outras pessoas tinham sido mortas

pelos bolcheviks, que afinal eram apenas mujiks revoltados,

gente que pouco tempo atr s nem gente era, eram chamados

(r)almas¯, pertenciam ... terra e tinham nascido para servir o seu

senhor natural, porque ao fim e ao cabo eram menos do que

animais de carga, e assim ‚ que devia ser, era essa a ordem

natural das coisas, ra‡a miser vel de mujiks! Dem¢nios!

Contei-lhe que tamb‚m em Portugal tinham morto um rei, exilado

outro, instaurado a Rep£blica, mas nunca lhe contei porque

motivo tinha abandonado a minha casa. Podia tentar

explicar-lhe as minhas raz"es, que em tudo tinham sido outras,

diferentes das dele, mas n"o valia a pena.

Ele nunca iria entender que eu pudesse ter fugido com Mart¡n,

apenas porque os seus olhos eram negros como carv"es e me

queimavam como brasas acesas.

� prov vel que pensasse que eu estava em Paris a fugir aos

bolcheviks portugueses, os republicanos. Wladimir tinha o

cond"o de interpretar todas as coisas ... luz da sua pr¢pria

cultura. H dez anos que estava em Paris, mas interiormente

nunca tinha sa¡do da R£ssia. A sociedade para ele era composta

por pr¡ncipes, mujiks, cavalos e garrafas de vodka.

Eu n"o sei se estava enamorada, creio bem que n"o. Era outra

coisa, era um impulso animal que me atra¡a para ele, para o

seu corpo que era como uma est tua de m rmore.

Ele era igual a um tigre da Sib‚ria. †gil, sensual, robusto,

brutal, de uma beleza imposs¡vel de descrever.

N"o tinha medo de nada. Uma noite entrou na meu quarto vindo

nem sei de onde. Trazia um estranho brilho no olhar. Tinha-se

envolvido numa discuss"o com um bar"o j de idade, este

tinha-o ultrajado, dizia, e ele tinha-o desafiado para um

duelo. O bar"o tinha-se-lhe rido na cara, o infame!

Se fosse na R£ssia, dizia ele de olhos enxutos mas com a voz

entrecortada de solu‡os de raiva mal contida, havia de o

mandar a‡oitar como a um reles mujik!

Em S. Petersburgo o seu pai tinha sempre um servo cuja £nica

fun‡"o era limpar as estrebarias. Um deles uma vez tinha

deixado uns troncos de madeira junto da porta, e por causa

disso um dos melhores cavalos tinha trope‡ado, partido uma

perna, e tinha tido de ser abatido.

O pai de Wladimir enfurecera-se como ele nunca o tinha visto.

Tinha mandado o homem cavar um buraco na terra, tinha-o feito

enterrar s¢ com a cabe‡a de fora, para que os lobos viessem de

noite comˆ-lo, e assim tinha acontecido.

Pois se estivessem na R£ssia, ele, Wladimir Vassilievitch

Romanov, n"o hesitaria em fazer o mesmo com aquele baronete

miser vel.

Tive muita dificuldade em explicar-lhe, em fazer-lhe

compreender, que est vamos em Paris, em 1927, que os franceses

n"o tratavam assim um criado, muito menos um bar"o, e que para

al‚m disso h cinquenta anos j que n"o se batiam em duelo

como no tempo dos nossos av¢s. Para al‚m de probido era

considerado ridiculo, ou pelo menos fora de moda.

Wladimir n"o compreendia. Ele estava a falar-me da sua honra,

e eu dizia-lhe que estava fora de moda?

Enfim, l se convenceu, mas ainda andou amuado mais de quinze

dias.

Para o consolar ofereci-lhe um cavalo. Era um puro sangue da

Camarga, castanho, de crina preta, lind¡ssimo.

Tinha um bom movimento de esp duas e de garupa e estava j

treinado para galopes curtos e de carreira. Cham mos-lhe

Diamant. Os olhos de Wladimir n"o queriam acreditar. Brilhavam

que pareciam estrelas.

Quereria ter-lhe dado muito mais, mas n"o era f cil. Precisei

de esperar pelo dia seus anos para lhe oferecer uma cigarreira

de ouro e uma peli‡a de astrakan. E mesmo nessa ocasi"o, eu

bem via que ele estava doido de contente, mas n"o queria

aceitar. Sentia-se ofendido naquele seu orgulho irracional.

O nosso dia a dia n"o era dos mais pac¡ficos. Wladimir tinha

vindo viver comigo, mas volta e meia desaparecia, passava a

noite toda fora de casa, andava pelas tabernas e pelos

bord‚is, suponho eu.

Chegava a casa bˆbado, punha-se aos pontap‚s ... porta, acordava

os criados todos, e com a voz entramelada ordenava que lhe

servissem de comer e de beber, que lhe esfregassem as pernas

com vodka, que lhe preparassem um banho, e que no dia seguinte

lhe tivessem o cavalo pronto ...s sete da manh". Depois

empurrava a porta do meu quarto com um pontap‚, deitava-se e

ficava a dormir at‚ ao meio dia.

Quando calhava trazia para casa os seus amigos, emigrados

russos como ele, e ficavam toda a noite a beber vodka e a

cantar muito alto, por vezes punham-se a dan‡ar dan‡as russas

e h£ngaras.

Eu ...s vezes ficava, bebia com eles, at‚ perceber que preferiam

ficar sozinhos, s¢ entre homens, para estarem mais ... vontade.

A partir da¡ passei a subir para o quarto. Mas n"o dormia,

naquela casa n"o dormia ningu‚m.

Iam-se embora de madrugada, ele vinha dormir, e no sal"o

ficava tudo virado de pernas para o ar que parecia que tinha

sido devassado por um furac"o, ou que as Er¡nias tinham andado

por ali ... solta... Os m¢veis arredados, ...s vezes uma ou outra

cadeira partida, garrafas vazias por todo o lado, estilha‡os

de copos junto ... lareira. Tive dois criados que se despediram

por causa disso.

Tamb‚m sa¡amos. ¡amos ... Ÿpera, ...s corridas de cavalos, a

festas em casa deste e daquele. Ele levava o seu uniforme do

regimento dos cossacos, negro, com bot"es e dragonas douradas.

Um acontecimento importante para os parisienses era, todos os

anos, a estreia do Ballet Russe. N"o se conseguiam bons

lugares nem a pre‡o de ouro.

Wolodja conhecia Diaghilev que quis ser am vel e nos arranjou

dois excelentes lugares na terceira fila para a Gis‚le.

Dan‡ava Olga Spessivtseva, e realmente valeu a pena. Parecia

que flutuava no ar!

Depois do espect culo fomos todos cear ... Tour d'Argent.

Ostras, caviar, champagne...

Convers mos muito. Falou-se de Nijinski, comentaram-se as suas

interpreta‡"es de L'Apr‚s Midi d'un Faune, o seu casamento com

Ramala de Pulszky, os ci£mes loucos de Diaghilev, a rescis"o

do contrato, a reconcilia‡"o, a doen‡a do bailarino, o seu

internamento, a forma como devia sentir-se infeliz...

Nessa altura Diaghilev desviou o olhar, visivelmente

perturbado, e felizmente um outro bailarino que tinha vindo

com ele teve a presen‡a de esp¡rito suficiente para mudar o

rumo ... conversa.

Um dia Wladimir saiu de casa de manh" e chegou muito excitado

... hora de almo‡o. Tinha estado com a Gr"-Duquesa Anast sia

Nikolaievna, filha do Czar. H algum tempo j que corriam

rumores por Paris, mas ele nunca tinha ligado, achava que era

uma aventureira qualquer, uma mentirosa a fazer-se passar por

ela. O pr¢prio Gr"o-Duque Casimiro se recusava a reconhecˆ-la,

ou sequer a discutir o assunto.

Mas Wladimir tinha estado com ela nessa manh", e ficara com a

certeza. Era ela, estava viva, Anast sia Romanova!

Ele tinha-a conhecido muito novinha, mas lembrava-se dela

perfeitamente. Al‚m disso ela tinha pousado os olhos sobre ele

e tinha-o reconhecido imediatamente. Era ela, sim.

No dia seguinte veio jantar connosco.

Mandei preparar caviar, contratou-se um duo de balalaikas,

encheu-se a casa de jantar de t£lipas vermelhas.

Wladimir foi busc -la, chegou, subiu a escadaria com ela pelo

bra‡o. Era uma bonita rapariga, com uma express"o ing‚nua e

imensamente doce.

Jant mos, convers mos, tivemos o cuidado de evitar falar de

revolu‡"es, de bolcheviks, de tudo o que de algum modo pudesse

feri-la.

Foi ela a romper o tab£. Contou como tudo se passara. Que os

tinham mandado entrar para uma adega numa cave, os tinham

deixado sentados ... espera, horas intermin veis, e por fim

tinham entrado um oficial e quatro soldados. Tinham-nos

mandado levantar e tinham-nos morto a todos.

Ela tinha acordado no dia seguinte em casa de uma fam¡lia de

mujiks. Estava ferida, e sentia-se muito fraca e muito

perturbada com tudo o que se tinha passado. Tinham tratado

dela, e assim se tinha salvo.

Eu olhava para ela, e n"o me era dif¡cil imaginar a forma como

as coisas se teriam passado. Um soldado que rola os corpos com

as suas botas rudes. De teoria pol¡tica n"o sabe nada, nem

nunca ouviu falar. Tem um fraco por mulheres bonitas. No meio

daquelas pessoas mortas, os inimigos da Revolu‡"o, h uma que

est viva. Ele olha para aquele rosto t"o jovem, t"o cheio de

beleza e inocˆncia, e n"o pensa:

"Esta, daqui a uns anos, vai ser igual aos outros." Pensa:

"Esta, que culpas pode ter?" E n"o tem coragem de acabar de a

matar.

Lembrava-se de acordar deitada numa cama, perto de uma janela,

e de ter visto os bolcheviks acenderem uma grande fogueira.

Era Ver"o, e atrav‚s da janela aberta tinha sentido um cheiro

esquisito. Eram os bolcheviks que queimavam os corpos daqueles

que tinham sido a fam¡lia dela.

Os parentes mais pr¢ximos, na esperan‡a, talvez, de ainda um

dia colocarem o Gr"o-Duque Casimiro no trono, recusavam-se a

recebˆ-la, mas ela ali estava.

Com um vestido oferecido por uma casa de modas, um casaco de

peles emprestado por uma outra, uma tiara de diamantes nos

cabelos, lind¡ssima mas emprestada tamb‚m, a viver de favores,

mas era ela.

Falou um pouco da sua infƒncia. Das corridas de tren¢, com o

pai, que era divertid¡ssimo, pelos jardins de Petrodvoretz.

Falou das irm"s, Tatiana, Maria, e principalmente Olga, que

era aquela de quem mais gostava, e falou da m"e, sempre em

sobressalto por causa de Alexei. Pobre Alexei. N"o podia

correr, n"o podia brincar...

Depois de jantar ainda tom mos um licor, convers mos mais um

pouco, e a seguir fomos lev -la de volta ao hotel.

Passado algum tempo soube pelos jornais que tinha ido aos

Estados Unidos. Depois disso n"o voltei a saber o que tinha

sido feito dela.

Um belo dia fomos passear para o Bois de Boulogne. Eu montava

o Thierry, Wolodja seguia a meu lado no Diamant.

Trot vamos lado a lado alegremente, e de repente, quando menos

se esperaria, Diamant assustou-se com qualquer coisa e

empinou-se. Wladimir era um excelente cavaleiro, mas foi

apanhado de surpresa e desequilibrou-se.

Ficou im¢vel, estendido no ch"o. Chamei-o. Que viesse, que n"o

se fizesse de engra‡ado.

Ele n"o se movia. Poderia ter desmaiado?

Desmontei, aproximei-me dele.

De repente senti um calafrio a percorrer-me as costas.

Tinha batido com a cabe‡a numa pedra, estava morto.

Come‡aram a juntar-se pessoas. No meio delas estava um m‚dico,

mas era tarde demais, j n"o havia nada que se pudesse fazer.

Devia ter batido com uma for‡a tremenda. Debaixo da sua cabe‡a

algumas gotas de sangue vermelho. A morte tinha sido

instantƒnea.

N"o era poss¡vel, mas era verdade.

Estava ali, ... minha frente, sem vida. Morto, irremediavelmente

morto.

Foi sepultado no dia seguinte.

O seu corpo foi transportado para uma igreja, e ali estive

toda a noite, sozinha com ele, com as velas e com uma sensa‡"o

de vazio, de atordoamento. Parecia que a pancada que Wolodja

tinha recebido na cabe‡a, eu a tinha recebido na minha tamb‚m.

L dentro s¢ zunidos e incredulidade. N"o podia ser. Mas era!

Wladimir era mais um que n"o tinha podido mudar o seu tr gico

destino.

Depois chegou Rosalie, a minha boa Rosalie, com uma tijela de

caldo. N"o consegui tom -lo. Agradeci e mandei-a para casa

dormir. Queria ficar ali, sozinha com ele. A £ltima noite com

Wolodja.

Tinha os olhos fechados e os seus l bios tinham perdido o

esgar insolente e trocista. A morte tinha-lhes dado um leve

sorriso sereno e doce como nunca lhe tinha visto.

Nunca mais cantaria para mim

Zatchiem cid¡ch da palun"tchi

u rasstvari"nava akn ?

(Por quem esperas sentada at‚ ...

meia-noite junto da janela aberta?)

Ah, meu menino de ouro, meu pr¡ncipe, meu animal feroz e

indom vel!

Assim fiquei por muito tempo a olhar o seu rosto. Era o mais

belo de todos os brutos.

Foi sepultado vestido de vermelho. De vermelho se vestiram

pr¡ncipes e sacerdotes para ritos inici ticos, desde que o

mundo ‚ mundo. Cavaleiro, mestre de sua montada, Galaaz, e K‚,

senhor de todas as vilanias, todas as crueldades.

Ele foi o fruto que n"o chegou a amadurecer, a esperar pela

revela‡"o. Viveu os seus vinte e nove anos de vida com o

cora‡"o em forma de tri"ngulo, um Santo Graal pronto a receber

as gotas de sangue de um Cristo doce e terr¡vel. Cora‡"o

silencioso que foi o seu pr¢prio templo. Deus grego de beleza

que se criou a si pr¢prio, segredo de iniciados que era para

ele fonte terr¡vel de ang£stia.

Solid"o de predestinados, de prisioneiros do seu pr¢prio

nascimento. A distƒncia que separava Wolodja de todo o resto

da humanidade era a mesma que separava essa mesma humanidade

dos bˆbados, dos poetas, dos tolos, dos santos, dos cegos, dos

ungidos. Era o estigma que se lhe tinha agarrado ao nome e ...

pele no momento em que nascera pr¡ncipe. Brilho, ou visco?

O ar que respirava era de h dois mil anos. Ele era o Deus,

mas era tamb‚m o cordeiro pronto para o sacrif¡cio.

Creio que foi Maquiavel que disse que os degraus dos tronos

est"o sempre cobertos de sangue, e que s¢ atrav‚s do sangue se

conquista o poder.

Passaram os primeiros dias em que me sentia como se estivesse

bˆbada, a flutuar no ar.

Depois, aos poucos e poucos, fui-me compenetrando da terr¡vel,

da esmagadora verdade. Wladimir estava morto, e eu...

Sentia na alma baforadas quentes de solid"o... Ah, como senti

a sua falta! Cada momento da sua ausˆncia era como uma

vertigem, um precip¡cio dentro de mim.

Nunca mais encontro outro Wladimir, porque... n"o existe outro

Wladimir. Ele era £nico, em tudo aquilo que dizia e fazia.

Resolvi ent"o que nunca mais havia de amar homem nenhum.

Para quˆ? Para me fugirem atr s de uma Revolu‡"o e nunca mais

darem not¡cias? Para me trocarem por um rapaz? Para me

morrerem, assim, estupidamente, aos vinte e nove anos, de uma

queda desastrada de um cavalo?

Comecei ent"o a refugiar-me na coca¡na.

Acreditei que de todas as formas de suic¡dio esta seria a

menos dolorosa.

Com uma lamina de barba desfazia um pedacinho em cima de um

pequeno espelho, cuidadosamente, tentando n"o perder nem um

gr"o do precioso pozinho branco.

Em seguida inalava-o pelas narinas atrav‚s de um canudinho de

papel. O meu corpo ficava dormente, come‡ava a sentir as

pontas dos dedos como se fossem de borracha, e em poucos

minutos toda eu mergulhava numa sonolˆncia semi let rgica que

era qualquer coisa de delicioso.

O mundo inteiro podia ruir ... minha volta, eu n"o daria por

nada, entretida a saborear os mais ¡nfimos movimentos do meu

corpo, como se pairasse no ar.

Era miraculoso. Na minha cabe‡a constru¡a as fantasias mais

incr¡veis, destru¡a-as para de novo as reconstruir ao sabor da

minha apetˆncia.

Mas tamb‚m era diab¢lico. N"o sei se n"o me ria sozinha, como

uma idiota, e sobretudo depois de conhecer todas as novas e

deliciosas sensa‡"es que a coca¡na punha ao meu alcance, como

fazer para conseguir continuar a viver neste monstruoso mundo

real?

Ao fim de algum tempo j n"o me era poss¡vel, era a descida

aos infernos! J s¢ sabia morar nessa minha nova morada, para

l das nuvens, e descer de l era-me doloroso, t"o doloroso

que em absoluto me recusava a fazˆ-lo.

Cap¡tulo 11

Entretanto sentia que a minha vida estava prestes a terminar.

Iria partir-se a qualquer momento, como a corda fr gil de um

rel¢gio.

A coca¡na n"o ajuda a prolongar a vida, toda a gente sabe...

Eram trˆs as estrelas cadentes que tinham atravessado a minha

vida - Mart¡n, Sebastien, Wladimir. E o quarto lado do

triƒngulo?

A Ermelinda tinha-as visto no c‚u, na noite em que eu nasci.

Afinal n"o ia eu morrer longe de casa, sozinha e em grande

sofrimento?

Por outro lado, as estrelas cadentes n"o brilham com mais

intensidade no momento em que est"o prestes a extinguir-se?

Resolvi ent"o dar uma £ltima grande festa, uma festa

magn¡fica.

Contratei um rapaz que tinha uma galeria de arte e passava por

ser o maior esteta de Paris. Jean-Claude, chamava-se ele.

Era um tudo nada extravagante. Apareceu-me em casa com uma

camisa de seda num tom de amarelo vivo e umas cal‡as muito

largas de veludo preto.

Fez uma v‚nia e sentou-se.

Disse-lhe ent"o que queria que fosse ele a organizar tudo. Que

gastasse o que fosse preciso, mas que me fizesse uma festa

verdadeiramente espectacular, como nunca se tivesse visto, e

que Paris nunca mais pudesse esquecer.

E assim, foi ele quem se encarregou de tudo. Os preparativos

levaram para cima de trˆs meses.

Encomendou fogo de artif¡cio, milhares de estrelas coloridas

que iluminaram o c‚u ao longo de mais de duas horas.

Encomendou orqu¡deas cor de rosa, centenas, milhares delas,

para se enfeitar a casa de jantar onde havia de ser servida a

ceia.

Contratou cozinheiros, criados, uma legi"o deles, m£sicos,

trˆs orquestras diferentes, uma cl ssica, uma moderna para

tocar no jardim, e uma outra, de negros americanos, com uma

cantora negra espantosa que tamb‚m declamava poesia.

Nas traseiras do jardim armou-se uma tenda com uma cigana

contratada para ler a sina aos convidados. Jean Claude achava

que era ex¢tico, as pessoas iam adorar.

Veio tamb‚m uma Companhia de Teatro, ou melhor, um grupo de

saltimbancos que representaram no sal"o uma sua vers"o muito

peculiar de Arlequim e Columbina todos vestidos de cetim

duchesse de cores garridas e brilhantes, enfeitados da cabe‡a

aos p‚s, a prop¢sito e a desprop¢sito, com mais pom-pons, mais

dourados, mais colorido e mais cambalhotas do que seria de

esperar, mas enfim, n"o deixou de ter a sua gra‡a.

Encomendou os patˆs e as sobremesas no Maxim's, encomendou

charutos, Havanas puros, o champagne, que toda a noite correu

a jorros, mandou os convites, eu s¢ tive de pagar a conta, que

conseguiu deixar-me definitivamente arruinada.

Jean Claude conhecia centenas de pessoas interessantes em

Paris. Por isso, para al‚m do meu c¡rculo de amigos e

conhecidos, que eram a¡ umas duzentas, trezentas pessoas, lhe

disse que convidasse mais gente, quem ele quisesse, desde que

de algum modo fossem pessoas fora do comum desenxabido dos

mortais.

At‚ o meu vestido foi ele que me ajudou a escolher. Era todo

em seda preta, com os ombros bordados a lantejoulas e pequenas

plumas douradas. Por detr s da minha franja ... gar‡onne surgia

uma pluma dourada que se me enrolava ... volta da cabe‡a com

gra‡a e elegƒncia.

Estiveram para cima de seiscentas pessoas, algumas delas

provavelmente at‚ sem terem sido convidadas.

Veio Gide, que n"o podia faltar, e trouxe com ele Pierre

Louys.

Vieram Gertrud Stein, Alice Toklas e Pablo Picasso. Veio Lord

Alfred Douglas, enfatuado que parecia um per£. Esta do per£,

h que dar o seu a seu dono, foi o Gide, que o detestava, que

p"s a circular. De facto, foi a £nica falha que tive a apontar

a Jean-Claude, ter mandado convite a uma criatura daquelas.

Veio Paul Langevin, o grande c‚rebro da ciˆncia, mas nem por

isso com grande sensibilidade art¡stica.

Veio Andr‚ Citroen, correcto e ins¡pido.

Veio uma rapariguinha de vinte e poucos anos e olhos claros,

chamada Marguerite de Crayencour. Vinha de bra‡o dado com o

pai, como eu, no dia da minha primeira festa em Lisboa.

Convers mos um bocadinho. J tinha publicado dois livros,

poemas inspirados na Antiguidade Cl ssica, e o pai estava

muito orgulhoso dela.

Veio Ren‚ Char, fascinante! Pierre Laval, com uma express"o

esquisita nos olhos, e Prokofieff, que passou a noite sentado

numa cadeira com um ar muito aborrecido. Parece que n"o estava

(r)nos seus dias¯.

Veio Mistinguett, a grande! Vinha com Maurice Chevalier. Ela

parecia gostar muito dele, mas ele n"o parava de olhar para

quem estava, principalmente para as raparigas mais bonitas, ou

mais novas.

Veio Max Ernst, agora surrealista, para o ano sabe-se l o

quˆ!

A certa altura, j passava das trˆs da manh", por entre o

tremendo vazio que eu sentia no meio de toda aquela gente,

houve uma rapariga muito bonita que chamou a minha aten‡"o.

Estava junto ... cascata que tinha sido montada no jardim.

- Chama-se Julie, ‚ uma s fica...

Confidenciou-me Jean-Claude com um ar muito c£mplice.

H algum tempo que a inclina‡"o que certas mulheres sentem por

outras mulheres me vinha dando que pensar. Aquela era uma

oportunidade £nica de conhecer uma delas mais de perto, e

satisfazer assim um pouco da minha curiosidade.

Noutras circunstƒncias talvez eu nunca tivesse ousado, mas

...quela hora, depois de j ter bebido pelo menos umas dez ta‡as

de champagne, aproximei-me dela. Era muito jovem, n"o devia

ter mais de vinte e dois, vinte e trˆs anos.

N"o trazia baton nem rouge. Tinha um vestido verde esmeralda

todo bordado a missanga, e por cima dos seus cabelos negros e

cheios de vida trazia um pequeno diadema de missangas verdes

que lhe ca¡am formando pequenos pingentes sobre a testa. Os

seus olhos eram muito verdes tamb‚m.

A orquestra tocava um charleston, e as suas pernas balan‡avam

um pouco ao ritmo da m£sica, fazendo cintilar uma infinidade

de missangas sobre o seu vestido de seda. De repente

lembrei-me das estrelas que via em menina da janela do meu

quarto.

Segurava uma ta‡a de champagne na m"o direita, enquanto o

bra‡o esquerdo lhe ca¡a ao longo do corpo com naturalidade.

Sorriu-me docemente piscando um pouco os seus olhos lƒnguidos.

Era encantadora. De repente senti vontade, uma vontade imensa,

de lhe prender nos cabelos uma orqu¡dea cor de rosa.

Levei aos l bios a minha longa boquilha, inspirei o fumo do

meu cigarro de ponta dourada e sorri-lhe tamb‚m, por entre o

fumo, as plumas e o brilho das missangas.

' volta dela parecia haver todo um halo de do‡ura que era

perfeitamente inebriante. De repente todos os meus poros

respiravam aquela sua suavidade perversa e deliciosa.

E convers mos ao longo do resto da noite. Olh vamo-nos nos

olhos, ternamente, profundamente, tent vamos adivinhar os mais

subtis pensamentos uma da outra...

A festa terminou. Julie foi ficando, e por fim subiu comigo

para o quarto.

Olhava-me com uma do‡ura imensa e despia-se silenciosamente.

Eu tinha um pouco de pudor de olhar o corpo dela, e fui para a

casa de banho refugiar-me debaixo do chuveiro.

Da¡ por um ou dois minutos surgia ela. Trazia nos l bios um

sorriso c£mplice e atrevido. Perguntou-me se era a primeira

vez que estava com uma mulher.

Que n"o tivesse medo. Com uma mulher era muito diferente,

explicava-me ela. Era amarmos algu‚m que era igual a n¢s

pr¢prias.

Por que motivo hav¡amos de fazer alguma coisa que nos

desagradasse? Tudo iria acontecendo ... medida que nos fosse

apetecendo, nenhuma coisa era obrigat¢ria, nenhuma coisa era

proibida, e desde que nos sent¡ssemos bem uma com a outra,

tudo estaria bem.

' medida que ela me ia dizendo estas palavras com os seus

olhos lind¡ssimos docemente pousados nos meus, eu fui-me

sentindo mais calma, mais tranquila, fui perdendo o receio e

at‚... o pudor!

Creio que este deve ter sido o banho mais delicioso da minha

vida. ' medida que ouv¡amos a gua chapinhar n"o pod¡amos

deixar de rir, e as duas m£sicas, a da gua que ca¡a e a dos

nossos risos claros, um tudo nada nervosos, confundiam-se numa

s¢, semelhante ao tilintar das ta‡as de champagne, ao brilho

das missangas, ao cintilar dos nossos olhos.

Eu tinha rejuvenescido quinze anos. Sentia-me da idade dela,

estava no melhor da minha juventude.

Terminado o banho enxug mo-nos apressadamente e deit mo-nos na

cama com os cabelos ainda um pouco molhados. Cheir vamos a

flores.

Olhei o seu corpo nu, que era quase o de uma adolescente.

Estava deitada de lado, e os seus seios rosa claro pareciam

irradiar suavidade, frescura e juventude.

N"o me contive e disse-lhe:

- Que vous ˆtes belle!

Julie sorriu-me, enquanto me olhava nos olhos, pareceu um

pouco surpreendida, e respondeu:

- Et vous, alors?

Significava que aquela rapariga de vinte e poucos anos me

considerava a mim, e ao meu corpo de trinta e oito, semelhante

ao dela em beleza e juventude.

Nem Mart¡n nem Wladimir me haviam dito nunca nada de parecido.

Nem mesmo Sebastien, que sobre uma tela havia pintado o meu

corpo nu.

Para Mart¡n eu tinha sido acima de tudo a camarada corajosa

que generosamente tinha abandonado uma heran‡a, um patrim¢nio,

para me juntar a ele, trabalhar pela Revolu‡"o. Tinha sido a

companheira que com ele partilhara os ideais, os momentos

dif¡ceis e a chama de uma grande paix"o.

Para Wladimir eu tinha sido a refugiada, aquela que como ele

fugira da Revolu‡"o da popula‡a, a aristocrata a quem tinham

morto o seu rei, e tinha sido a ‚gua fogosa que ele, pr¡ncipe

t rtaro, montava sem arreios nem sela.

Para Sebastien, pelo menos at‚ certo ponto, talvez eu tenha

sido o encontrar de um certo ideal est‚tico, mas um ideal que

lhe era exterior, acess¢rio, e que ele nunca amara

verdadeiramente.

E ali estava eu, sem saber como, embriagada de champagne e da

do‡ura daquela rapariga.

Fizemos ent"o uma coisa que n"o sei bem se se chama fazer

amor. N"o foi parecido com o que fazem uma mulher e um homem,

n"o foi parecido com coisa nenhuma que eu conhecesse.

Foi qualquer coisa que s¢ posso comparar ao Concerto de Mozart

para Flauta e Harpa, a um ro‡agar de sedas, ao fumo do ¢pio.

Entra-nos nas veias, toca-nos os pontos mais sens¡veis do

corpo e da alma, transporta-nos para o interior de um sonho

di fano e perfeitamente irreal.

E enquanto nos ¡amos amando, os nossos olhares iam-se

encontrando, com se fossem dois arco-iris que se cruzassem.

No dia seguinte ela quis saber quando poderia voltar a ver-me.

Eu n"o sabia o que havia de lhe dizer. Por um lado tinha sido

muito bom, era verdade. Por outro era tudo t"o estranho, eu

sentia-me t"o confusa...

Afinal, o que ‚ que me tinha passado pela cabe‡a, para fazer

uma coisa daquelas?

A explica‡"o para aquilo que se passara entre mim e Julie,

estaria no champagne?

Ah, a quem estava eu a tentar enganar? Tinha feito amor com

uma mulher, e tinha sido a sensa‡"o mais deliciosa da minha

vida.

Por uma noite t¡nhamos sido deusas.

A vida tinha-me ferido tanto, e t"o profundamente, que aquela

noite com ela, em que tinha experimentado mil do‡uras suaves,

tinha sido um verdadeiro b lsamo para a minha alma.

A minha decis"o estava tomada. J imaginava as tro‡as nos

jornais, (r)La Marquise des Anges...¯, mas n"o me importava.

Ficaria com Julie, am -la-ia enquanto ela quisesse, contra

tudo e contra todos.

S¢ que... tinha um pequeno problema a resolver. Estava

arruinada, completamente arruinada. O dinheiro que me restava

no banco era o suficiente para viver um mˆs, talvez dois, n"o

mais.

Tinha de encontrar rapidamente uma solu‡"o, e fui pedir a

Jean-Claude que me aconselhasse.

Era f cil. Nem precisava de vender o palacete. Bastava-me

dividi-lo. Ficava para mim com a parte das traseiras, e

arranjava um inquilino que viesse ocupar a parte da frente.

A renda de um palacete daqueles dava para viver decentemente,

embora sem extravagƒncias. Despedia os criados, conservaria

apenas Rosalie, mas Rosalie n"o era uma criada.

Venderia os cavalos e a cal‚che, que davam muita despesa, para

al‚m de que obrigavam a manter um criado s¢ para esse servi‡o.

Quanto ao Buick, talvez n"o precisasse de o vender. Afinal de

contas, tinha conduzido uma ambulƒncia durante a guerra,

porque n"o havia de poder conduzir o meu pr¢prio autom¢vel?

E decidi-me. Aluguei a parte da frente da casa a um diplomata

sul americano, por sinal simp tico e bem educado, que estava

em Paris por dois anos. Depois se veria.

Passei a morar no apartamento das traseiras, arranjei meia

d£zia de alunos a quem passei a dar li‡"es de piano, uns mais

dotados do que outros, e se n"o podia manter o fausto de

alguns meses atr s, conseguia pelo menos viver sem grandes

afli‡"es.

O nosso templo, como lhe cham vamos, n"o seria um pal cio, mas

era um apartamento simp tico e acolhedor.

N"o vendi o Buick. Era Primavera, os campos come‡avam a

cobrir-se de flores, e Julie gostava de dar longos passeios.

Rosalie preparava-nos um cestinho com um almo‡o frio, peito de

per£ partido em fatias finas, fiambre, salada de frutas, p"o

de l¢ perfumado com uma vagem de baunilha... ‹amos sem

destino, at‚ encontrar-mos um local que nos agradasse, e ent"o

estendiamos uma toalha sobre a relva e almo‡avamos.

Por vezes as nossas m"os tocavam-se furtivamente. Outras

vezes, quando n"o havia ningu‚m por perto eu passava-lhe os

dedos pelos cabelos. Eram fios de seda, os cabelos de Julie.

Um dia descobrimos um s¡tio que parecia uma floresta

encantada. Havia um riachozinho com fetos ao longo das

margens, e pedras grandes que pareciam sido postas ali para as

pessoas terem onde se sentar.

Ali perto crescia um arbusto de malmequeres.

- Un peu, beaucoup, passion‚ment, ... la folie...

Tamb‚m o limoeiro do nosso jardim estava lindo, todo em flor.

Pass vamos tardes inteiras naquela calmaria, ... sombra, a

sentir-lhe o perfume suave. Em dias especiais abr¡amos uma

garrafa de Porto, um excelente vintage de que nos retavam umas

trˆs ou quatro caixas. Brindavamos ent"o ao amor, ... lua, ... m"e

natureza...

Julie gostava de poesia. 's vezes ... noite fic vamos sentadas

na cama a declamar uma para a outra.

Mon enfant, ma soeur,

Aimer ... loisir,

Aimer et mourir

Au pays qui te ressemble

Baudelaire

Era de uma beleza...

Sou uma pessoa que toda a vida dormi pouco e mal. Julie

contava-me contos de fadas para me adormecer.

Ao ser"o tocava para Julie. Ela gostava de me ouvir, dizia que

os meus dedos tinham poderes de magia.

Por uns tempos nem me lembrei mais da coca¡na.

Em Agosto fomos passar uns dias a Cabourg. Alug mos um pequeno

apartamento ... beira mar.

Sa¡amos de manh", ¡amos at‚ ... praia, com a areia morna a

acariciar-nos ternamente os tornozelos, desp¡amos os nossos

vestidos leves de algod"o, por baixo traz¡amos os nossos fatos

de banho de manguinha justa, cal‡"o at‚ ao meio da perna e

bot"ezinhos de madre p‚rola, e sabore vamos ent"o o prazer

intenso e sensual do contacto com o mar. Por vezes

mergulh vamos e beij vamo-nos debaixo de gua. Como ‚ramos

felizes!

' tarde ¡amos passear de bicicleta, para fazermos um pouco

mais de exerc¡cio. Ah, o vento a bater-me no rosto, o prazer

indescrit¡vel de me sentir outra vez com vinte anos!

Passe vamos por aquelas avenidas por onde passeara Proust.

Havia um Hotel que tinha uma esp‚cie de pequeno casino, semi

clandestino, acho eu. Julie gostava de jogar. Apostava forte e

perdia quase sempre. Encurtar¡amos as nossas f‚rias,

paciˆncia, mas n"o valia a pena priv -la de uma coisa que

parecia dar-lhe tanto prazer.

Faz¡amos toilettes bonitas. Era a ‚poca dos vestidos bordados

com missangas e vidrilhos, das gargantilhas rendilhadas, das

tearas sobre os cabelos.

Uma tarde encontrei Alfons Mucha, que me tinha sido

apresentado por Gide e era imensamente simp tico.

Sent mo-nos numa esplanada ... beira mar a tomar um Gin Fizz,

ele ent"o olhou para Julie, tirou da algibeira um caderninho e

um l pis, e come‡ou a desenhar. Desenhou durante mais de meia

hora.

Mais tarde, em Paris, recebemos pelo correio o retrato de

Julie, muito retocado mas muito bonito, com um bilhetinho em

que perguntava se nos importavamos que o utilizasse num dos

seus affiches que, n"o o dizia ele mas digo-o eu, eram

bel¡ssimos, verdadeiras obras de arte.

Uma noite, no bar do Hotel, Julie encontrou uma antiga

companheira de escola. Chamava-se Ninette e estava l tamb‚m a

passar uns dias de f‚rias.

Era uma rapariga espern‚fica e pouco simp tica, mas era amiga

de Julie, de forma que l fiz um esfor‡o para a suportar.

De regresso a Paris, Ninette passou a frequentar a nossa casa.

Uma noite fomos as trˆs ao cinema. Era um filme de Charlie

Chaplin, chamado Gold Rush.

Acho que se passava l para o Polo Norte, ou coisa parecida,

havia um que a pol¡cia andava atr s dele, e depois a p ginas

tantas aparece uma bailarina, e o Charlot apaixona-se por ela,

enfim...

Por mim, acho que nem vi o filme. Os peus pensamentos estavam

longe dali. Julie tinha-me dito nessa manh" uma coisa muito

estranha:

- Tout ce qui est beau doit mourir un jour.

Esta sua frase, aliada aos olhares que ultimamente vinha

surpreendendo entre ela e Ninette, fazia-me estremecer... de

medo, do pavor irracional que tinha de a perder.

Com efeito, nessa noite perdi-a para sempre. Insisti um pouco

com ela, e acabou por me dizer a verdade, que se resumia ali s

a uma coisa muito simples:

Julie j n"o me amava.

N"o quis saber mais nada. Para quˆ?

No dia seguinte foi-se embora. Nunca mais a vi. Passados dois

dias voltei ... coca¡na. Uma semana depois escrevi o £nico poema

de amor da minha vida.

Ah, meu amor,

tu foste a nuvem branca

que choveu no meu Sahara.

Branca como a calma das nuvens.

Branca como a agonia.

Branca como os p ssaros e as palavras.

Branca como a do‡ura do olhar.

Branca como as minhas m"os que te procuram.

Branca como o sorriso perdido no tempo.

Branco tamb‚m.

Cap¡tulo 12

Entardeceu. Estou em Paris, na esplanada do Caf‚ de la Paix,

tenho na frente uma garrafa de champagne que fui bebendo ao

longo desta tarde em que redigi estas minhas mem¢rias.

Retoco um pouco o p¢ de arroz. Olho-me no pequeno espelho.

Desvio o olhar.

Digo-me - N"o, Beatriz, n"o fujas do teu pr¢prio rosto.

Envelheceste um pouco, mas ‚s tu, ainda e sempre tu. A tua

ang£stia, essa nostalgia, essa solid"o que se te agarrou ...

alma, e que neste momento ‚ j t"o f cil, t"o claramente

percept¡vel aos olhos de quem quer que te olhe, essas olheiras

fundas de sofrimento que te esfor‡as por esconder...

Lembras-te, Beatriz? Houve um tempo em que o amor... era nos

outros que o procuravas, na tua liga‡"o a eles. Hoje sabes que

n"o ‚ sen"o em ti que podes encontr -lo, n"o ‚ sen"o de dentro

de ti pr¢pria que podes fazˆ-lo brotar.

Afinal, o que s"o os outros? Gente sempre a querer parecer

mais apressada do que na realidade est , gente fechada em si

mesma, na pequena concha da sua insignificƒncia. Pessoas que

n"o te descobriram, n"o se aperceberam nunca de ti, ali

parada, quieta, a transbordar de amor.

E no entanto, tu bem sabes como as pessoas precisam do amor.

Precisam tanto dele, procuram-no t"o desenfreadamente, que o

deixam passar ao lado e n"o o vˆem, n"o d"o por ele.

Ponho-me a pensar: ser que algum dia existi verdadeiramente?

Ser que ao longo da minha vida fui mais alguma coisa para

al‚m do reflexo daqueles que me rodearam?

Olho-me um momento mais no pequeno espelho. Que rosto sofrido,

este meu! E como poderia n"o sˆ-lo? N"o sei de ningu‚m que

tenha passado um peda‡o t"o amargo como aquele que eu passei.

N"o culpo ningu‚m. Nos momentos das grandes decis"es n"o ouvi

nunca sen"o a verdade mais autˆntica, aquela que se escondia

no mais rec"ndito do meu cora‡"o, mas nem por isso o meu

c lice deixou de ser amargo.

Ah, o vinho do Porto que o meu pai mandava abrir no dia de

Natal!

Menina e mo‡a...

Ponho-me a pensar no tempo em que a felicidade para mim era

ter as algibeiras cheias de guloseimas! Do tempo em que...

"je savais du latin et des sottises..."

Depois transformei-me numa esp‚cie de hero¡na Raciniana,

pronta a ceder ...s belas, brilhantes, pecaminosas, sedutoras

tenta‡"es do amor.

O sofrimento n"o purifica o indiv¡duo. a maior das mentiras! �

Sabes o que ‚ um espelho, Beatriz? algu‚m a quem n"o podes,�

n"o poder s nunca mentir. E depois, que outra ponte existe

entre ti e o mundo?

V l , respira fundo, sorri, abre a tua alma, deixa que

levante voo, como se acreditasses na felicidade, ou como se

fosses morrer j amanh".

Fecho a caixinha de p¢ de arroz. Tenho frio, sinto a falta de

Mart¡n. Sinto a falta do seu corpo que me cheirava a campo, da

sua voz macia, dos seus olhos t"o negros, t"o negros!

Ou ‚ de Wladimir que sinto a falta? Ah, aquela sua beleza de

est tua grega com cabelos dourados!

N"o, n"o sinto falta de Sebastien. Sebastien n"o chegou a

existir, n"o passou de uma mentira na minha vida.

De Julie? Eu sei l se sinto a falta de Julie!

Ou ser que as saudades que sinto s"o de algu‚m que nunca

conheci, de um amor que nunca vivi?

Atrav‚s da esplanada envidra‡ada vou observando as pessoas que

passam. L fora v"o caindo uns pingos pequenos de chuva. Uma

chuva quente, mole, irritante, como o tempo, abafado, mole,

irritante.

Este ‚ certamente o meu £ltimo Outono. Sempre gostei tanto do

Outono!

A minha vida foi curta. Soube sempre que seria curta. Agora

que sei que vou morrer, penso:

Como ser morrer? Tenho ainda, creio, alguns meses para viver,

mas n"o sei, ser que vou saber morrer serenamente?

Dizem que ‚ a coisa mais importante que temos de aprender na

vida, mas eu duvido seriamente. N"o creio que seja uma coisa

que se consiga aprender.

Aprender a morrer. Como se isso fosse poss¡vel! Uma coisa ‚

pensar na morte, pensar nela a uma grande distƒncia. Outra

muito diferente ‚ vˆ-la aproximar-se como eu vejo neste

momento.

Ser que me espera um sofrimento terr¡vel, dores

insuport veis? Ah, n"o, tudo menos isso. Aumento as doses de

coca¡na, misturo-lhe absintho, mas quando chegar o momento

quero morrer depressa. Que a minha morte seja r pida, pelo

amor de Deus!

Perdi a beleza dos meus vinte anos, esbanjei a minha fortuna,

n"o quero saber. Sinto-me muito pr¢xima de perder a lucidez,

n"o quero saber. A minha dignidade, essa n"o quero perdˆ-la

nunca.

Podia tomar um frasco inteiro de comprimidos, mas parece que ‚

uma coisa horrorosa, s"o v¢mitos, e dores, e mais v¢mitos, e

mais dores, ‚ uma verdadeira orgia de sofrimento, um inferno

dantesco e intermin vel.

Quem morreu assim, aqui h uns anos atr s, foi o M rio de S

Carneiro. Era um poeta portuguˆs que vivia aqui em Paris,

amigo do Fernando Pessoa.

Um pouco mais de sol - eu era brasa,

Um pouco mais de azul - eu era al‚m.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa..

Se ao menos eu permanecesse aqu‚m...

...

Tristes m"os longas e lindas

Que eram feitas pra se dar...

Ningu‚m mas quis apertar...

Tristes m"os longas e lindas...

M rio de S Carneiro

Deve ser uma agonia, um desespero, e ainda por cima as pessoas

ficam roxas, cor de ameixa, quase negras...

N"o. Tirem-me tudo, mas deixem-me ficar aquilo que mantenho

com tanto amor, o £ltimo vest¡gio que me resta dos tempos da

minha juventude e da minha beleza. A minha pele suave,

levemente rosada.

Na minha frente toca um m£sico de rua. Canta uma can‡"o

americana

I spent my life

a dingalinging

from heart to heart

from bed to bed

Dou-lhe algumas moedas e penso:

Porque ‚ que eu tenho de morrer aos trinta e nove anos? Porque

‚ que n"o posso morrer velha, como toda a gente?

Queria tanto ser ainda capaz de me agarrar ... vida!

E se este meu sofrimento fosse daqueles que os m‚dicos podem

tratar?

A vida, a morte, eu sei l se as desejo! A coca¡na... o

suic¡dio... mas a minha vida, bem ou mal, eu n"o a vivi? Agora

o que me espera ‚ apenas uma viagem para o infinito.

Mas afinal por que ‚ que eu me puz para aqui a escrever estas

coisas? Se eu sempre soube, se sempre desejei morrer jovem, se

dizem que morrer jovem ‚ afinal uma gl¢ria que os deuses

reservam para aqueles a quem mais amam...

Santo Deus, como estou confusa!

Estou s¢, completamente s¢. Sempre estive s¢. Como se alguma

vez algum ser humano tivesse estado de outra maneira que n"o

fosse completamente s¢!

Como se o amor n"o fosse a maior mentira jamais inventada!

A £nica coisa de que me sinto capaz ‚ de escrever um £ltimo

poema.

Nothing

Nowhere to go

No wet sand under my feet

No fairy tales, no fun, no fantasy

No one for me to be fond of

No fern along the river

No vintage wine, no toasts

No vanilla cake, oh no, never again

No lemon scent, nowhere

No novels and no dreams

No demons, no tempests

No revenge feelings

No velvet memories through my veins

No resemblence, no rememberance

No remains, no remedy

November

Tantas mem¢rias, e nem preciso de molhar a madalena no ch ...

Devo estar a delirar. E eu n"o quero mentir, n"o quero iludir

a realidade. N"o quero fugir-lhe. N"o vale a pena. Para quˆ?

Apercebo-me agora que durante a minha vida toda n"o fiz outra

coisa que n"o fosse fugir.

Quereria, neste momento t"o pr¢ximo j da agonia, doloroso e

quase final, poder fugir das minhas mem¢rias que teimam,

nost lgicas, em ressoar dentro de mim.

Sinto-me despojada de tudo aquilo que amei na vida. O meu pai,

a minha ‚gua, o amor de Mart¡n, a minha m£sica, Sebastien,

Wolodja, Julie... sinto-me despojada de tudo e de mim pr¢pria,

mas antes de deixar esta vida quero ainda redigir o meu

testamento.

A Rosalie deixo o palacete, deixo todos os meus bens

materiais. N"o ‚ muito, mas n"o precisar mais de trabalhar.

Bem o merece, minha Rosalie, meu b lsamo!

' minha juventude lego a Bela Adormecida de Tchaikowski.

Afinal, se n"o tivesse nunca despertado do sonho cor de rosa

que foi a minha infƒncia, a minha vida teria sido uma outra

trag‚dia, a do t‚dio, da calmaria daquele Alentejo perdido e

sem esperan‡a.

' mem¢ria do meu pai deixo uma ria de Pucini, Oh my beloved

Daddy.

A Mart¡n lego o Coro dos Peregrinos do Tanhauser de Wagner.

Ele foi o in¡cio da peregrina‡"o, mansamente, a revela‡"o de

harmonia tr gica, e foi o climax, alvorada violenta, de paix"o

vermelha, de todas as for‡as da natureza gritando em un¡ssono

um canto de revolta e dor.

A Sebastien lego uma outra ria de Pucini, Vissi d'Arte, Vissi

d'Amore...

Vissi d'arte, vissi d'amore

non feci mai male

ad anima viva.

Con mano furtiva...

A Wladimir deixo o Coro dos Barqueiros do Volga. Porque ele

foi a nostalgia da terra em simbiose com a rudeza dos homens

do mar. Possam as vozes profundas e o marulhar dos remos nas

guas embal -lo para sempre. Festa, cƒntico, lamento, ternura,

raiva.

A Julie lego o Clair de Lune de Debussy. Foi esse o lugar que

teve no meu cora‡"o. Algumas notas t¡midas, receosas, um lento

bailado sensual, estrelas a brilhar e algumas gotas de

orvalho.

Aos meus trinta e nove anos acabados de cumprir deixo a

Fantaisie Impromptue de Chopin. Uma chama a arder, agitada,

sobre um fundo de do‡ura, tristeza e solid"o. Que outra coisa

foi afinal a minha vida?

Penso no momento da minha morte. Gostaria que a lua brilhasse,

gostaria que cobrissem o meu corpo com violetas.

Vida vida minha vida

aos poucos entristecida

aos poucos amargurada.

De tristeza malsofrida

tanta coisa prometida

e afinal n"o me deu nada

Vida vida minha vida

em que n"o achei guarida

em que n"o achei morada.

Minha vida foragida

vida que n"o foi cantiga

nem chegou a ser balada

Vida vida minha vida

t"o calada e t"o sofrida

vida t"o desencontrada.

N"o sei curar esta ferida

sei que ... hora da partida

saudades levo de nada