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BEATRIZ
TERESA CASTRO D'AIRE
COM TODA A MINHA GRATIDŽO
Ao M rio Matos
o Editor que resolveu acreditar e apostar em mim.
' Prof. Cristina Almeida Ribeiro
a professora extraordin ria e a amiga generosa
que aceitou fazer a apresenta‡"o deste livro.
' Mafalda Torre do Valle
a amiga de h trinta anos e a actriz de
talento que fez a leitura do lan‡amento.
' minha irm" Gigi
uma das maiores artistas plasticas que eu
conhe‡o, autora da aguarela da p g.
' Prof. Isabel Barbudo
a professora que aceitou orientar a minha tese,
e a amiga que tanto me tem encorajado.
Ao Jos‚ Carlos Ribeiro
o meu pr¡ncipe
o amigo de todas as horas.
BEATRIZ
(MENINA EST†S ' JANELA)
Teresa Castro d'Aire
Para ti, meu Amor
que ‚s toda a minha vida
Cap¡tulo 1
Chamo-me Beatriz de Almeida e S . Estou em Paris, na esplanada
do Caf‚ de la Paix, e enquanto escrevo estas minhas mem¢rias
tenho na frente uma garrafa de champagne. Acabo neste mˆs de
Novembro de 1928 de completar trinta e nove anos. N"o espero
nada j da vida e vou morrer um dia destes de uma dose de
coca¡na. A cada dia que passa vejo-me no espelho e noto que
mais e mais se me acentua a palidez, mais os olhos se me
embaciam de tristeza, de vazio, mais e mais se me cavam as
faces. Tenho momentos em que sinto ang£stia e febre, mas a
maior parte das vezes ‚ apenas cansa‡o aquilo que sinto,
cansa‡o e nostalgia. Nostalgia de quˆ? De tudo o que nunca
vivi? Ah, se eu soubesse...
Amei um dia um homem de nome Mart¡n. Era um estranho homem
aquele. Por ele me perdi. Mart¡n dizia-me que o meu corpo
tinha um cheiro suave de violetas. Devia ser verdade. Ainda
hoje me sinto por vezes um pouco como se fosse eu pr¢pria uma
violeta. Por causa da cor dos meus olhos, por causa das
olheiras fundas que tenho, por causa das veias salientes nas
minhas m"os brancas, esguias e tr‚mulas como eu. Por causa da
minha voz abafada e nost lgica.
Ah, a coca¡na! -ltimo ref£gio daqueles para quem o peso de
viver, ou de sobreviver apenas, ‚ algo de t"o dram tico, t"o
sofrido, t"o repassado de ang£stia que se n"o pode descrever.
Aqueles que sabem que em breve ir"o morrer, como eu sei.
Nasci no mˆs de Novembro, como se desde sempre estivesse
condenada a este nevoeiro, a esta tristeza que guardo comigo,
que se me agarrou ao corpo e ... alma, e que ‚ uma outra doen‡a,
terr¡vel e sem cura. N"o enviou Dante para o mais fundo dos
infernos todos os melanc¢licos volunt rios? Pois bem, com eles
irei, e contra isso n"o creio que haja nada que possa fazer.
Quando eu nasci o meu pai viveu um momento que deve ter sido
extraordinariamente dif¡cil para ele, a morte da minha m"e.
Talvez por isso tivesse ficado t"o contente por eu ser uma
rapariga, talvez por isso me mimasse e me deixasse fazer tudo
o que me apetecia. Aos dois anos puxava-lhe o bigode e as
barbas, e ele, normalmente t"o grave, t"o s‚rio, achava gra‡a,
como achava gra‡a a tudo aquilo que eu fazia. Aos cinco
sentava-me no colo e contava-me hist¢rias, mas n"o eram as
hist¢rias tolas que geralmente se contam ...s crian‡as. Talvez
porque as n"o soubesse, talvez por uma preocupa‡"o pedag¢gica,
as hist¢rias que me contava eram adapta‡"es que fazia ele
pr¢prio a partir de personagens da Hist¢ria e da Literatura,
de forma que Robin Hood, Ulisses, Othelo e Robinson Crusoe
eram para mim t"o reais como D. Afonso Henriques, Pougatchev,
Thomas More ou a Padeira de Aljubarrota. Mais tarde lemos
juntos a l¡rica de Cam"es e a Hist¢ria Tr gico Mar¡tima.
O meu pai era oficial de Marinha. Chegou a ir ... China, de onde
trouxe um servi‡o de jantar azul e branco, e ao Jap"o onde
adoeceu com umas febres terr¡veis. Por l ficou uns trˆs ou
quatro meses a convalescer. Foi assim que aprendeu a falar um
pouco de japonˆs, e a distinguir pela cor, pelo sabor e pelo
perfume mais de vinte variedades diferentes de ch .
Anata no o'tcha o nonde ni mairi mash" ka."
(Vamos tomar ch ?)
Era uma das frases que sabia dizer em japonˆs.
De regresso do Oriente resolveu tirar umas f‚rias em
Mo‡ambique. Foi l que conheceu a minha m"e. Era filha de um
coronel inglˆs em servi‡o na Rod‚sia. Estavam por l a passar
umas f‚rias. Chamava-se Daisy e era cerca de quinze anos mais
nova do que ele. Parece que se enamoraram perdidamente.
Casaram em Joanesburgo.
Pouco depois o meu pai recebeu uma carta com a not¡cia da
morte do irm"o mais velho, que n"o tinha filhos. Assim, e
embora secundog‚nito, se viu de repente Marquˆs da Amendoeira
e senhor de uma fortuna muito consider vel. Decidiu ent"o
largar a Marinha e voltar para o Alentejo. Algu‚m tinha de
ficar ... frente da herdade. E da corti‡a, claro. Regressaram
ent"o, e foi por essa altura que eu nasci, l na herdade, a
poucos quil¢metros de Portalegre.
A minha m"e morreu para que eu pudesse nascer. Antes n"o
nascera. Dela herdei a pele transparente que tenho e que me
faz parecer mais fr gil do que na realidade sou, e herdei uns
brincos de ametistas que acabei por vender a um joalheiro de
Paris. Francamente, nunca tinha gostado muito deles. 's vezes
penso se teriam sido essas ametistas que me trouxeram esta
tristeza, que me condenaram a esta melancolia sem fim...
Deixou-me tamb‚m o retrato dela num alfinete oval rodeado de
pequenas p‚rolas. Trago-o posto neste momento em que redijo as
minhas mem¢rias.
N"o creio que sejamos muito parecidas. Pensando melhor, talvez
tenhamos algumas semelhan‡as. As sobrancelhas finas e
arqueadas, claras, que quase n"o se vˆem, o nariz estreito, os
l bios finos e um tanto descorados que por vezes deixam
transparecer um leve travo de azedume, ou ser apenas
tristeza?
Os meus cabelos s"o castanhos claros, os meus olhos s"o de uma
cor entre o violeta e o azul forte, um pouco encovados.
Raramente os abro por completo. As pessoas diziam-me que eu
parecia estar sempre a olhar para o vazio, para coisa nenhuma,
mas n"o era verdade. Era, e sou ainda, uma espectadora atenta
de tudo aquilo que se passa ... minha volta.
Creio ter tido alguma beleza, ... minha maneira. Numa tentativa
para conservar ainda alguns vest¡gios dessa beleza da minha
juventude, por volta dos meus trinta anos comecei a dar um
pouco de cor nas faces e nos l bios, um pouco de p¢ de arroz
junto dos olhos a tentar disfar‡ar, ou atenuar ao menos um
pouco, as olheiras fundas que tenho.
Tamb‚m me diziam que tinha por vezes o ar de um bicho
assustado. A minha m"e, pelo que me contam, era mais serena.
Talvez n"o pensasse nas coisas em que eu pensava. Talvez se
n"o deleitasse com os prazeres com que eu me deleitava, um
tanto doentiamente, como por exemplo o prazer m¢rbido de
imaginar que iria morrer no auge da minha juventude.
Justamente porque a morte da minha m"e me n"o foi nunca
recriminada ou atirada em cara, foi-me muito dif¡cil
libertar-me de um sentimento de mal estar em rela‡"o ... vida,
como se no fundo me n"o assistisse o direito de estar neste
mundo. Passei a minha infƒncia a tentar fugir dessa minha
culpa do passado, real ou imagin ria que ela tenha sido. S¢
mais tarde, muito mais tarde, com a maturidade, aprendi a
viver comigo pr¢pria e com aquilo que foi o pre‡o do meu
nascimento, a morte da minha m"e.
Deparou-se-me ent"o um outro problema, o de entender o sentido
da vida. Afinal, por que motivo nasci? Que fa‡o dentro deste
meu corpo? Que quero da vida, afinal? Para onde vou? Qual ‚ o
meu destino nesta vida? Qual vir a ser depois dela?
A minha forma‡"o religiosa foi pouca. O meu pai, o homem
melhor, o mais digno, o mais s bio e tamb‚m o mais justo que
conheci, era ateu. Conhecia as escrituras, considerava que
eram belos textos de onde se podiam tirar bons e proveitosos
ensinamentos, mas eram fantasias. Comet¡amos um grave erro ao
confundi-los com as verdades autˆnticas da vida. Entendia que
a religi"o era uma esp‚cie de bord"o para fracos e infelizes.
Acho que apesar de tudo ele teria gostado que eu fosse educada
na f‚ anglicana, como a minha m"e, mas ... falta de uma igreja
anglicana nos trezentos quil¢metros mais pr¢ximos, o
catolicismo alguma coisa boa havia de me ensinar. Alguns £teis
e salutares ensinamentos, ... mistura com outros tantos
disparates, dizia ele suspirando e encolhendo os ombros, entre
aborrecido e resignado.
Era a velha Ermelinda quem rezava comigo. Levava-me ... missa.
Combinou com o padre Fernando, e l me p"s a fazer a primeira
comunh"o perante o olhar distra¡do do meu pai, que n"o apoiava
propriamente, mas tamb‚m n"o proibia, porque n"o havia nada
neste mundo que ele proibisse ... Ermelinda. Afinal... ela
tinha-o visto nascer, tratava-o por menino! Ao longo de mais
de sessenta anos de dedica‡"o ... fam¡lia, a Ermelinda tinha
adquirido uma esp‚cie de estatuto de velha matriarca que lhe
conferia, dentro daquela casa, todos os direitos, todos os
poderes.
A Ermelinda! Quando eu era menina era ela que me fazia todas
aquelas coisas que as m"es costumam fazer ...s filhas.
Entran‡ava-me os cabelos, punha-me os meus la‡os azuis, ou os
vermelhos, ou outros, vestia-me o bibe de folhos engomados,
ensinou-me a bordar a ponto de cruz e a fazer biscoitos de
manteiga. As coisas que a Ermelinda me ensinou!
- N"o meta as m"os na malga das azeitonas, menina. Faz a
azeitona sapateira.
Levava-me a dar milho ...s galinhas e um dia deixou-me escolher
uma pinta¡nha toda muito amarelinha s¢ para mim. Chamei-lhe
Lili. Pus-lhe uma fita ... volta de um p‚, para a conhecer no
meio das outras. Depois cresceu, da¡ a pouco come‡ou a p"r uns
ovinhos pequeninos, a Ermelinda fritava-mos em manteiga e eram
o meu almo‡o favorito. O meu pai andava todo satisfeito. Nunca
me tinha visto comer com tanto apetite.
Foi ela, a velha Ermelinda, quem me explicou todas as mudan‡as
que o meu corpo viria a sofrer, quando chegasse ... puberdade.
Contava-me que na noite em que eu nasci tinham aparecido no
c‚u trˆs estrelas cadentes em forma de triƒngulo, um quadrado
de trˆs pontas, como ela dizia, e que isso era um mau
press gio. Que havia de morrer longe de casa, sozinha e em
grande sofrimento. Quem sabe l o que estas coisas tˆm de
verdade, mas ...s vezes ponho-me a pensar nisso, e noutras
coisas que ela me dizia. Dizia-me que o meu mal era quebranto,
e que tivesse tino, ou pelo luar havia de me perder. Eu ria-me
e ia-me embora. N"o ia ficar ali a ouvir tolices de criadas
velhas e meias tontas como a Ermelinda, que cheirava a cera e
andava sempre cheia de bentinhos pendurados ao pesco‡o. Hoje
n"o sei se ela seria t"o tonta assim, e ...s vezes penso que
gostaria de ter dado um pouco mais de aten‡"o ...s coisas que
ela me dizia.
O quarto dela era um lugar encantado. Cheirava a alfazema e
cheirava um pouco a fechado, e tinha uma atmosfera de mist‚rio
que me deixava quase embriagada. Ela sentava-se a coser, eu
tinha uma cadeirinha pequena e sentava-me ao p‚ dela a bordar
uns patinhos num guardanapo, ou coisa parecida, ela contava-me
hist¢rias e outras vezes punha-se a cantarolar a sua velha
cantilena:
Eu hei-de dar ao menino
Uma fitinha pr¢ chap‚u
Tamb‚m ele me h -de dar
Um lugarzinho no C‚u.
Na parede ao p‚ da cama tinha um quadro pendurado. Era um S.
Sebasti"o com um pano vermelho atado ... cintura, com duas
pontas ca¡das a escorrer sangue, com o corpo trespassado de
setas. Era um dos santos da devo‡"o da Ermelinda. Pela cara e
pelos cabelos n"o se percebia muito bem se era um rapaz ou uma
rapariga, mas era muito bonito, e eu ...s vezes pousava o meu
bordado e deixava-me ficar ali sentada, muito quieta, s¢ a
olhar para ele.
Havia l em casa uma outra criada muito velha chamada Piedade,
que morreu quando eu estava para fazer seis anos. Puseram o
caix"o na capela, ao fundo do jardim, e n"o me deixaram ir
vˆ-la. Talvez por isso mesmo a minha imagina‡"o delirante
fazia com que muitas vezes sonhasse com ela de noite.
Aparecia-me toda vestida de preto, com uns bra‡os muito
compridos, a cara esverdeada, e ria-se, com a boca toda
escancarada, a mostrar os seus dois £nicos dentes, um cinzento
escuro e outro amarelo-esverdeado. Eu acordava transpirada e
com um medo que me fazia ficar muito quieta durante um grande
bocado, aterrorizada, sem respirar, a saborear com aquele medo
uma sensa‡"o que era de um prazer t"o intenso que n"o ousava
cont -lo a ningu‚m.
Nunca fui ... escola. Foi o meu pai que me ensinou a ler, pela
cartilha de Jo"o de Deus, e um pouco de francˆs, pelos livros
da Condessa de S‚gur. Sentava-me no colo e passava tardes
inteiras a conversar comigo sobre aquilo que era a nossa vida
de todos os dias.
Defronte da janela do meu quarto havia um castanheiro grande.
Todos os dias de manh"zinha o sol projectava a sombra das suas
folhas sobre a parede branca, e parecia que dan‡avam. Era
lindo!
Outra coisa com que passava o meu tempo era a observar as
cegonhas nas suas migra‡"es. Era muito bonito. 's vezes
sentava-me a olh -las ... sombra de uma rvore, e punha-me a
pensar que tamb‚m eu gostaria de ter umas asas para voar como
elas.
Um belo dia, devia eu andar por volta dos meus sete anos, o
meu pai chamou-me, fez a sua cara mais s‚ria, que reservava
para as ocasi"es importantes, e disse-me que queria que eu
conhecesse a l¡ngua que tinha sido da minha m"e. Queria que a
conhecesse como ... minha pr¢pria l¡ngua. Tinha contratado uma
preceptora inglesa que devia estar a chegar de um dia para o
outro.
Com efeito dois dias depois l chegou ela, perto da hora do
jantar. Veio numa charrette de aluguer com um grande ba£ e um
chap‚u de abas largas com um v‚u a cobrir-lhe a cara toda,
metido por dentro da gola do vestido. Devia pensar que ia para
†frica, para o meio dos mosquitos.
Chamava-se Miss Davidson. Era alta, muito magra e meia
arruivada, com a cara toda cheia de sardas e os dois dentes da
frente muito grandes.
Nessa noite fui ao ouvido meu pai segredar-lhe que ela tinha
cara de coelho, e ele disse-me para n"o ser tonta, e n"o dizer
disparates, mas eu bem via que ele estava cheio de vontade de
rir.
Comia connosco ... mesa, e era muito engra‡ada. S¢ limpava ao
guardanapo os cantinhos da boca. Ali s ela n"o comia
propriamente, fingia que comia. A maior parte das vezes o
jantar dela era um biscoito e uma ch vena de ch . Dizia que
estava habituada a viver assim, e que se comesse carne ao
jantar j n"o conseguiria dormir.
Acho que n"o sabia cozinhar. S¢ sabia fazer scones, Yorkshire
pudding, triffle, steak and kidney pie, e mais nada, acho eu.
Usava umas sapatorras muito feias, de atacadores, e um dia
explicou-me que em Inglaterra as senhoras de respeito s¢
usavam sapatos daqueles. A minha m"e n"o usava. Nunca
perguntei a ningu‚m, mas sei que n"o usava. Tenho a certeza.
O quarto dela era pegado ao meu, e numa altura em que a
Ermelinda esteve de cama com febre, Miss Davidson veio de
manh" ao meu quarto para me lavar e vestir, mas eu n"o quis.
J tinha nove anos, j sabia muito bem arranjar-me sozinha.
Depois o meu pai interveio, e muito contrariada l deixei que
me fizesse as tran‡as. Felizmente no dia seguinte a Ermelinda
j estava boa. N"o era que Miss Davidson fosse m pessoa, ou
me fosse antip tica, mas a Ermelinda era a Ermelinda, era
quase como se fosse a minha m"e. A intimidade do meu corpo era
com ela que a partilhava, com mais ningu‚m.
No dia seguinte ao da sua chegada, Miss Davidson come‡ou a
ensinar-me inglˆs. Come‡ou por me p"r a cantar o alfabeto, e
ao fim de uns meses j eu arranhava alguma coisa e j ela me
contava hist¢rias.
There was an old woman
who lived in a shoe
she had so many children
she didn't know what to do
...
And then little Goldilocks said...
Parece que estou a ouvi-la!Aos catorze anos devorei vida,
sofregamente, o Huckleberry Finn, as alegres comadres de
Windsor, o Robinson Crusoe, a Jane Eyre, os sonetos da
Elizabeth Barrett Browning. Aos quinze anos eu dominava
perfeitamente a l¡ngua inglesa e as suas del¡cias subtis.Foi
gra‡as ... ajuda de Miss Davidson que escrevi alguns textos que
nem sei se lhes poderei chamar poesia. Ilustrei-os com
aguarelas e esses eram momentos em que experimentava um prazer
intens¡ssimo.
Aliteration exercise
Six o'clock in the morning. A small but still secure stone
solid stout stiff square fortress like a sentinel in a sad
overcast colour surrounded by small silk smooth stones. A
couple of small blue useless boats standstill in the sand,
side by side, covered with salt and dust. They have scar
looking scratches. It's September, it's the end of the summer
season. There is a somnolence, a loneliness silence, like in a
secret sanctuary. The whole scene lasted for no more time than
a sigh. Everything seemed to be sunk in a strange, silent
sleep. In the distance, the sight of the silver sea. There is
sea scent everywhere. In the intense blue sky, something
suddenly stirs me up. The slowly soaring seaguls screaming out
their sarcasm.
Miss Davidson montava bastante bem. Muitas vezes me
acompanhava nos meus passeios a cavalo.
Depois de jantar sentava-se a ler um romance ou a bordar.
Todos os anos no Natal me oferecia trˆs ou quatro naperons de
renda para o meu enxoval, e ao meu pai meia d£zia de len‡os
com o monograma dele bordado. Eu oferecia-lhe uma lembran‡a
que o meu pai comprava em Portalegre. Um frasco de perfume,
umas luvas, uma ‚charpe de seda.
Em todos aqueles anos que viveu connosco, n"o me lembro de a
ter ouvido pronunciar uma palavra s¢ que fosse em portuguˆs.
Nem com as criadas. Quando queria um copo de gua levantava-se
e ia busc -lo. Mas pelas caras que fazia quando apareciam l
na herdade os meus primos de Portalegre, que s¢ diziam
asneiras, acho que percebia perfeitamente tudo o que se dizia
... volta dela. Uma vez o Chico Maria, que era o mais novo,
trazia um sapo na algibeira dos cal‡"es, e ela fez uma cara
mais enjoada que parecia que tinha engolido uma sardinha
podre!...
Um dia, j l estava em casa h uns sete ou oito anos, recebeu
uma carta. Tinha a m"e em Liverpool que estava muito mal, e
tinha de ir tratar dela. Nesse mesmo dia arrumou as coisas no
ba£ e foi-se embora.
Quando se despediu de mim abra‡ou-me e deu-me um beijo. Foi a
£nica vez.
� curioso... agora que penso nisso, n"o me lembro se algum dia
chegou a dizer-me qual era o seu primeiro nome.
Por essa altura, j eu tinha os meus catorze anos, o meu pai
entendeu que era chegado o momento de me instruir nos
cl ssicos. Juntos lemos a Il¡ada e os Pensamentos de Marco
Aur‚lio entre outros. Hoje ainda, se quisese, creio que seria
capaz de recitar de cor alguns excertos. Ensinou-me tamb‚m
latim, que era muito ma‡ador de estudar, mas enfim, l fui
aprendendo alguma coisa. Um belo dia consegui dar por
terminada uma dif¡cil tarefa: traduzir sem nenhum erro algumas
cartas de C¡cero.
A partir da¡ n"o precisei de estudar mais latim, o que foi
para mim uma esp‚cie de recompensa muito agrad vel de receber.
O que sabia n"o era muito, dizia o meu pai (eu por mim achava
que at‚ j era demais), mas atendendo ao esfor‡o e ao
resultado obtido, ele dava-se por satisfeito. Era o suficiente
para j n"o passar por completamente ignorante em lado nenhum.
J no que dizia respeito ... aritm‚tica os resultados que
obtivemos n"o foram t"o bons. O meu pai bem tentava, coitado,
cheio de paciˆncia, ...s vezes ralhava comigo, mas ainda hoje
conto pelos dedos e sou perfeitamente incapaz de extrair uma
simples raiz quadrada.
Tamb‚m gostava de desenhar, embora me pare‡a que n"o tinha
muito talento, ou a m"o muito firme. O meu pai elogiava-me
muito, corrigia-me os esbo‡os, e assim passei algumas das
horas mais agrad veis da minha adolescˆncia.
A minha madrinha, que era a minha tia Josefina, irm" mais nova
do meu pai, era vi£va de um m‚dico de Reguengos, n"o tinha
filhos e pintava aguarelas. N"o sei muito bem onde ter
aprendido, ou com quem, mas pintava razoavelmente bem, e
alguma coisa me ensinou. Ainda cheguei a pintar meia d£zia de
paisagens que o meu pai guardava como se fossem Tintorettos ou
Rembrandts.
Pintei um dia o meu auto retrato, e fiz tamb‚m um retrato do
meu pai a carv"o. Parece que ficaram menos mal, pelo menos foi
aquilo que na altura me disseram.
Mas aquilo que fazia a minha felicidade, e para que, segundo
ele, eu era verdadeiramente dotada, era o piano. Este pai
culto e interessado nunca se preocupou em ensinar-me a ler
partituras muito dif¡ceis. L iria, devagar, com o tempo, e a
verdade ‚ que aos doze anos j eu tocava perfeitamente com ele
trechos para quatro m"os.
Aos quinze anos tocava de improviso. Tocava coisas alegres,
ternas, nostalgicas, conforme a disposi‡"o do momento, e
parece que n"o compunha mal de todo. O meu pai gostava muito
de me ouvir, dizia que eu tinha verdadeiro talento. Miss
Davidson tamb‚m gostava, dizia que a m£sica alimentava o
esp¡rito e formava as belas almas.
O meu pai ainda pensou em contratar um mestre, pensou
mandar-me uns tempos para Lisboa, chegou mesmo a escrever a
umas outras tias que moravam ao Loreto, mesmo ao p‚ do
Conservat¢rio. Elas dispuseram-se a receber-me, eu ‚ que n"o
quis ir. Eram duas velhas antip ticas.
De uma vez, acho que foi no ano em que morreu a Ra¡nha
Vit¢ria, ali s foi por causa dela que me chamaram Beatriz
Vit¢ria, ou foi no ano em que mudou o s‚culo, j n"o me
lembro, tinham vindo passar o Natal connosco, e eu n"o tinha
gostado delas nem um bocadinho.
A mais velha chamava-se Orqu¡dea Libƒnia, e parecia uma
avestruz, toda desengon‡ada, a cacarejar como uma galinha.
Davam-lhe xeliques, e depois era preciso aban -la com um leque
e dar-lhe a cheirar o frasquinho dos sais.
A mais nova chamava-se Maria do Sacramento, ou seria Maria dos
Rem‚dios? Era muito esquisita, estava sempre muito calada, e
depois punha-se toda franzida a olhar para as pessoas pelo
canto do olho, que parecia que estava a pensar em fazer-lhes
mal. Eu parece-me que tinha um bocado de medo dela, nem sei
muito bem porquˆ.
A Ermelinda tamb‚m n"o gostava delas. Tratava-as com respeito,
porque eram as tias velhas do meu pai, mas por tr s fazia
tro‡a, chamava-lhes as manas patarecas, e para mim, nessa
altura, ainda as coisas que a Ermelinda dizia n"o tinham
disuss"o. S¢ mais tarde, muito mais tarde, a¡ pelos meus
catorze ou quinze anos, ‚ que comecei a n"o lhe dar
importƒncia. N"o era que n"o gostasse da minha querida
Ermelinda, como sempre, mas aos poucos e poucos comecei a
achar que ela s¢ dizia tolices.
Foi por esta altura que comecei, ...s escondidas, a ler uns
livros que me tocavam como se eu pr¢pria os tivesse escrito.
Um deles eram umas cartas de uma freira que ... for‡a tinham
encarcerado num convento em Beja. Mariana, tinha sido o seu
nome, e tinha-se perdido de amores por um oficial francˆs.
...une vie que je dois perdre pour vous, puisque je ne peux la
conserver pour vous; je revis, enfin, malgr‚ moi, la lumiŠre,
je me flattais de sentir que je mourais d'amour; et d'ailleurs
j'‚tais bien aise de n'ˆtre plus expos‚e ... voir mon coeur
d‚chir‚ par la douleur de votre absence...
Soror Mariana Alcoforado
Ah, como desejei entregar-me assim a um amor que me empolasse
o cora‡"o, que mo fizesse bater desordenado!
Ia buscar este e outros livros ao escrit¢rio do meu pai, mas
n"o creio que ele, se soubesse, mo tivesse deixado ler. Creio
mesmo que se tivesse reparado, este livro teria sido fechado ...
chave junto com outros que tinha com as lombadas encostadas
para tr s. Durante muito tempo me perguntei que livros seriam
aqueles que o meu pai fechava ... chave e dos quais me n"o
deixava conhecer os t¡tulos sequer. Ao menos este consegui
lˆ-lo de noite, ...s escondidas, e sonhava, sonhava com uma
grande paix"o, mas era tamb‚m eu uma prisioneira, as minhas
grades eram o silˆncio daquele Monte onde nunca nada
acontecia. Perdida na solid"o daquele triste Alentejo, que
amores, que paix"es poderia eu viver? Foi por esta altura que
um dia me aventurei a escrever o meu primeiro soneto.
Noite de lua, noite cheia de luar,
Lembro os teus olhos, lembro tudo o que era teu
Nesta agonia, perdida entre terra e c‚u,
E sei que nunca mais me quero enamorar.
Foi h um s‚culo, h um dia, nem sei bem,
N"o sei se voltas, eu sei l se vais voltar
Sei que partiste e que me n"o canso de olhar
Pela janela, e tu n"o vens, n"o vem ningu‚m.
Oh meu amor que assim me tardas em chegar
Soubera eu quais os bra‡os que te retˆm
Quais os amores que de mim te est"o roubando
Buscar-te-ia ainda que para l do al‚m
Melhor seria at‚ ... morte procurar
Que esta agonia em que sofro e te estou esperando
Aos catorze anos talvez n"o se possa exijir muito mais. Acabou
por ser, durante muito tempo, o £nico segredo entre mim e o
meu pai. N"o seria capaz de lho mostrar. N"o tanto por uma
quest"o de pudor em rela‡"o ... minha sensualidade que
despontava, da qual eu n"o tinha sen"o uma consciˆncia muito
t‚nue, e na qual n"o punha nenhum tipo de mal¡cia, mas por
medo que ele se risse de mim, dos meus fracos dotes liter rios
e das fantasias que povoavam o meu imagin rio de rapariga.
Mais ou menos por essa altura, quando fiz dez anos, o meu pai
deu-me um presente muito especial. Uma potrazinha castanha de
dois anos que era a coisa mais linda que eu j tinha visto.
Tinha os olhos de uma pessoa, e passado pouco tempo eu falava
com ela e ela entendia tudo o que eu lhe dizia.
Eu estava habituada a montar, e sempre que me apetecia montava
um dos cavalos da herdade. S¢ n"o montava o Pintado, que era
muito bravo, e o Foguete, que era o cavalo do meu pai, e ele
n"o gostava que mais ningu‚m o montasse.
Agora era diferente. Tinha aquela eguazinha linda s¢ para mim!
Chamei-lhe Rosmaninha.
Um dia fiz um colar de junco entran‡ado com rosas de Santa
Teresinha e pus-lho ao pesco‡o.
O meu pai fartou-se de rir, e tamb‚m dizia que Rosmaninha n"o
era nome para uma ‚gua, mas eu n"o me ralei, e ficou
Rosmaninha. No Ver"o seguinte j estava rija e j podia ser
montada. Juntas pass vamos ...s vezes tardes inteiras, e assim
pass mos alguns dos melhores momentos da nossa adolescˆncia.
Ao princ¡pio foi dif¡cil, deu muito trabalho, mas valeu a
pena. Foi preciso muita paciˆncia, n"o mostrar medo, n"o fazer
gestos bruscos para ela n"o se assustar, mas em pouco tempo
estava ensinada e j eu podia mont -la com toda a confian‡a.
Salt vamos, trot vamos ... inglesa, e nunca soube o que eram
umas esporas. Agora, j l v"o todos estes anos, ...s vezes
ponho-me a pensar nela, que foi afinal a minha amiga de
infƒncia, e apetece-me chorar. Era a ‚gua mais bonita do
mundo.
Cap¡tulo 2
Quando fiz dezoito anos o meu pai preparou-me uma surpresa, e
em meados de Dezembro viemos at‚ Lisboa, passar uns dias ...
civiliza‡"o, como ele dizia.
Fic mos alojados num Hotel muito bonito chamado Avenida
Palace. Tinha luz el‚ctrica e tudo, que eram umas bolas de
vidro a deitarem muita luz, e era a coisa mais bonita que eu
j tinha visto. L na herdade t¡nhamos a luz do dia, e ... noite
acendiam-se velas ou candeeiros a petr¢leo.
Na primeira noite encontrei no meu quarto uma enorme caixa de
bombons su¡‡os e um cart"o do gerente que me desejava
felicidades e me cumprimentava pela minha beleza e pela minha
primeira visita ... capital.
Nunca me senti t"o feliz e t"o confusa. N"o sabia que era
costume terem estas amabilidades para com os clientes que
ocupavam as suites mais caras.
No dia seguinte o meu pai levou-me a uma loja que pelo aspecto
devia ser uma das melhores de Lisboa, e comprou-me uns poucos
de vestidos, dois pares de luvas, um frasco de perfume muito
bom, chamado Peut-‰tre, e outras coisas. At‚ a¡ eu s¢ tinha
usado a gua de col¢nia de alfazema que a minha tia Carlota me
mandava todos os anos no Natal, feita por ela. N"o cabia em
mim de contente e de excitada. Eram muitas emo‡"es juntas.
Nessa noite o meu pai mandou-me p"r o vestido mais bonito, que
era branco e azul com a frente toda em renda, as mangas
tufadas e uma fitinha de veludo azul, e eu assim fiz, sem
saber onde ‚ que o meu pai me iria levar, mas felic¡ssima por
ir, onde quer que fosse.
Depois bateu ... porta do meu quarto, ofereceu-me o bra‡o,
disse-me que eu j era uma rapariga crescida, e que me ia
levar ao Teatro de S. Carlos a ver um espect culo de Ÿpera.
Entre mim e o meu pai havia j uma cumplicidade de adultos, e
eu sentia que ele estava orgulhoso de me levar pelo bra‡o.
Era a estreia de Sans"o e Dalila, de Saint-Saens, com o cantor
Franceschini e a cantora Guerrini, e a primeira bailarina era
uma que parece que tamb‚m era bastante famosa, chamada Zanini.
Estava toda a gente muito bem vestida. No intervalo viemos ao
foyer, e enquanto o meu pai conversava com uns amigos
deixou-me beber uma ta‡a de champagne, que eu nunca tinha
provado.
Que coisa boa! Melhor, s¢ o Vinho do Porto que o meu pai
costumava mandar abrir no dia de Natal e me deixava beber um
bocadinho, um c lice pequeno.
Eu estava deslumbrada. O espect culo era t"o bonito, o teatro
era t"o bonito, o meu pai estava t"o bonito, de casaca e
chap‚u alto!
No £ltimo acto Sans"o abanava as colunas do templo, e
come‡avam a cair um nunca mais acabar de pedregulhos enormes
em cima do palco.
Devo ter-me assustado um pouco, porque o meu pai curvou-se
para mim e exlicou-me que eram de papel"o.
Mal eu podia imaginar que essa derrocada era um pren£ncio dos
pedregulhos verdadeiros que a vida em breve se iria encarregar
de me lan‡ar em cima.
No fim fomos todos cear a um restaurante que se chamava
Tavares, que tamb‚m era muito bonito, com muitos dourados e
todo cheio de espelhos, e devia ser o mais chique de Lisboa.
Era mesmo ali a dois passos, por isso fomos a p‚, em jeito de
passeio.
Os amigos do meu pai eram todos muito simp ticos. Havia um que
era Comendador, outro que era um Bar"o alem"o cheio de
medalhas ao peito, havia um baixinho que era Deputado ...s
C"rtes, e havia um outro que era o Conde da Vidigueira, e
tamb‚m era Marquˆs de Niza, por isso n"o percebi bem porque ‚
que o tratavam s¢ por Conde.
Talvez fosse o mais simp tico e o mais bem disposto de todos.
Disse-me que tinha uma filha da minha idade. Havia de vir
visitar-me ao Hotel para darmos um passeio por Lisboa. Eu
sentia-me feliz por me darem tanta aten‡"o.
As mulheres deles tamb‚m eram muito simp ticas, e traziam
abafos de peles e vestidos como n"o deve haver mais bonito, e
eu disse-lhes isso e elas riram-se muito.
Um dos cantores, chamado Barbieri, era amigo do Deputado, e
por isso tamb‚m o convidaram.
Comemos perdizes cozinhadas em vinho tinto que estavam uma
del¡cia, e no fim veio uma esp‚cie de fruteira grande toda em
prata, com trˆs andares, cheia de doces de ovos com v rios
feitios diferentes, e parecia que nunca mais se decidiam a
comˆ-los.
E eu a olhar para eles.
Se n"o fosse o Comendador, que l se lembrou de me oferecer
um, se calhar a esta hora ainda l estavam...
Falavam de pol¡tica, diziam mal de um tal de Jo"o Franco, e eu
deixei-me estar calada, e sossegada, que aqueles eram assuntos
de que eu n"o percebia nada, nem me devia meter.
A certa altura percebi que o meu pai sorria e conversava com o
Deputado, e dizia-lhe que sim, talvez, mas s¢ da¡ a uns
tempos, que primeiro queria ver-me casada, e s¢ depois poderia
pensar em assumir um cargo de tanta responsabilidade.
Acho que o queriam para Ministro, ou pelo menos para Deputado,
mas ele n"o me contou, e eu bem sabia que ele n"o gostava que
eu lhe fizesse perguntas sobre os assuntos dele, de forma que
achei melhor n"o lhe perguntar, e fiquei sem saber.
' sa¡da subimos para um landau muito bonito. Era todo forrado
a veludo, as lanternas at‚ eram de prata, e a separar os
lugares da frente tinha uma jarrinha de flores, e l volt mos
para o Hotel.
Esta foi a primeira noite memor vel da minha vida.
Passados dois dias recebi a visita da filha do tal amigo do
meu pai. Chamava-se Eug‚nia Telles da Gama, e era pouco mais
velha do que eu. Vinha com uma criada, que n"o a deixavam sair
doutra maneira. N"o era por nenhum motivo em especial, era s¢
porque n"o era costume.
Almo‡ mos no Hotel. Durante o almo‡o contou-me que tinha um
primo que os pais em tempos tinham querido que ela ficasse
noiva dele, mas ela n"o lhe achava gra‡a nenhuma, que era todo
muito branquinho, parecia um pinta¡nho, e agora tinha
arranjado um outro noivo que era um inglˆs chamado Harold que
tinha um neg¢cio qualquer de barcos.
Os pais dela ‚ que parece que n"o tinham ficado nada
satisfeitos com a hist¢ria, e primeiro at‚ tinham dito que n"o
a deixavam casar com ele, que n"o tinha t¡tulos nem nada, mas
ela por fim l tinha conseguido convencˆ-los, e estava muito
contente, porque este noivo era muito mais bonito do que o
primo. Mostrou-me a fotografia, e realmente n"o era nada feio.
Acab mos de almo‡ar, levou-me a dar um passeio numa vit¢ria de
aluguer com dois cavalos. O dia estava bonito, por isso fomos
com a capota levantada, toda a tarde rimos e convers mos e
diverti-me muito.
Custou este nosso passeio de uma tarde dezoito tost"es, e mais
meio tost"o que demos ao cocheiro que tinha sido muito
delicado connosco e muito simp tico.
A certa altura passou por n¢s um cortejo de um casamento. Era
um nunca mais acabar de coup‚s de aluguer forrados de branco e
todos enfeitados com ramos de flor de laranjeira, os cocheiros
de cal‡as azuis, casaca branca e chap‚u alto com a roseta
azul, ou verde, ou vermelha, ou de outra cor, conforme a
cocheira a que pertenciam.
Tamb‚m havia outros coches das fam¡lias nobres, e esses
traziam o bras"o pintado na porta e bordado na casaca do
cocheiro e do trintan rio.
Vi nesse dia o Mosteiro dos Jer¢nimos, e a minha amiga
mostrou-me o t£mulo de Vasco da Gama, que era um antepassado
dela, que l estava, defronte do de Cam"es.
Tamb‚m nessa tarde subimos ao cimo do elevador de Santa Justa.
Fic mos um longo momento l em cima a olhar a cidade aos
nossos p‚s. Que coisa linda!
Depois demos uma grande volta para eu ver a Pra‡a de Toiros,
que era toda vermelha e parecia tirada da hist¢ria do Ali
Bab .
Na altura em que pass mos por l vinham a sair muitas pessoas,
e pergunt mos o que era, e soubemos ent"o que tinha havido um
concurso de beleza e robustez infantil, que me pareceu uma
ideia muito esquisita.
Mas de tudo isto, do que eu mais gostei, foi de ver o passeio
p£blico. Eram as senhoras com aqueles grandes chap‚us t"o
bonitos, os homens elegant¡ssimos, uns de charrette outros a
p‚, e toda a gente a cumprimentar-se.
A certa altura passou por n¢s um rapaz todo vestido de branco,
numa charrette branca, e os cavalos, as fardas dos criados,
era tudo branco. Cumprimentou a minha amiga Eug‚nia, e ela at‚
me disse quem era, eu ‚ que j n"o me lembro.
Ia s¢zinho e parece que todos os dias descia o passeio p£blico
daquela maneira, em grande estad"o, e as raparigas n"o
conseguiam deixar de olhar para ele, que parecia um pr¡ncipe
encantado.
Nessa tarde quando descemos o Chiado pass mos ainda defronte
de uma livraria. Par mos um instante. Num canto da montra
estava um livro que imediatamente chamou a minha aten‡"o.
Era um livro intitulado Lucr‚cia B¢rgia, de Victor Hugo.
Nenhuma de n¢s tinha lido nada desse escritor, embora fosse
muito conhecido, mas o t¡tulo, por si s¢, era j uma promessa
de novas e picantes emo‡"es.
Pod¡amos compr -lo, l¡amo-lo ...s escondidas... Que n"o, que o
homem da loja conhecia o pai dela, e era muito bem capaz de
lhe ir fazer queixa...
Fic mos amigas. ' despedida contou-me que uns primos dela, a
quem chamava os primos Palmela, iam dar um baile no dia
seguinte. Iam estar presentes Suas Majestades e Suas Altezas
os Pr¡ncipes Reais, e se eu pedisse ao meu pai para me deixar
ir, ela se encarregaria de fazer com que me enviassem um
convite.
Nessa mesma noite, est vamos na casa de jantar do Hotel, ¡amos
come‡ar a comer a sobremesa, chegou um criado que me estendeu
uma bandeja de prata. Era uma carta para mim. O meu primeiro
convite para um baile! Seria tamb‚m o £ltimo, que a minha vida
rapidamente viria a levar outro rumo.
No dia seguinte passei a manh" toda a preparar-me. O meu pai
pediu ao gerente que mandasse p"r uma grafonola na nossa suite
e toda a manh" trein mos valsas e polkas.
' hora do almo‡o est vamos derreados, mas pelo menos eu j me
sentia um pouco mais segura de mim. Almo‡ mos, fomos cada um
dormir uma bela sesta, e por volta das cinco horas comecei a
vestir-me.
Morria de vontade de pedir ao meu pai que me deixasse comprar
um baton, mas depois pensei melhor e achei que ele n"o ia
autorizar de maneira nenhuma, por isso nem valia a pena
tentar.
Eram oito horas, sa¡mos. Eu levava um vestido cor de alfazema
com um grande la‡o branco, por cima levava uma capa de
abrigar, e o meu pai ia com o uniforme de gala da Marinha,
azul escuro com dragonas douradas, e bot"es dourados, e as
condecora‡"es que tinha, uma com uma fitinha vermelha, e outra
com uma fitinha azul e branca.
T¡nhamos alugado um fiacre para esperar por n¢s e nos trazer
de volta, e assim foi.
Quando cheg mos, por sorte encontrei logo a minha amiga
Eug‚nia que me apresentou ...s primas e a mais umas tantas
pessoas. Apresentou-me ao noivo, que ainda era mais bonito do
que na fotografia. Era alto e tinha um bigodinho engra‡ado, e
j depois da ceia dan‡ mos a Valsa das Mil e Uma Noites.
A certa altura ouviu-se um burburinho e as pessoas come‡aram a
chegar-se para os lados e a fazer uma esp‚cie de corredor. Era
para passar a Fam¡lia Real. Eu n"o estava habituada a este
tipo de s¡tua‡"es, mas felizmente o meu pai n"o me deixou
sozinha, veio colocar-se ao p‚ de mim.
' medida que eles passavam os homens punham-se muito direitos
e inclinavam a cabe‡a, e as senhoras dobravam um bocadinho o
joelho, e eu fiz como elas.
S¢ depois ‚ que come‡aram a dan‡ar.
Eu n"o dancei muitas vezes porque n"o levava par, e tamb‚m
porque n"o conhecia muita gente, mas as vezes que dancei acho
que n"o fiz muito m figura.
Da¡ a um bocado serviram a ceia, que estava ¢ptima, com
maionaises, e per£s e leit"es assados, e em honra da fam¡lia
real tinham mandado fazer um centro de mesa que era uma coroa
muito grande toda feita em nougat e cheia de fios de ovos, e
provei uma coisa chamada cup que adorei.
Preparava-me para beber uma segunda ta‡a, que me trazia um
rapaz com quem tinha estado a dan‡ar, quando de repente vi o
meu pai que de longe olhava para mim e me franzia o sobrolho.
Pousei a ta‡a e comi um bombom.
Eu bem conhecia o meu pai. Se lhe desobedecesse era capaz de
n"o me dizer nada, mas tamb‚m era capaz de nunca mais me levar
a lado nenhum.
Esse rapaz chamava-se K‚k‚ Burnay. Devia ser um bocadinho
ligeiro, mas era simp tico e divertido.
A certa altura p"s-se a imitar um toureiro, ele e um outro
ruivo e cheio de sardas que s¢ dizia disparates mas era
engra‡ad¡ssimo, e fart mo-nos de rir. Era o cup a fazer das
suas...
A certa altura aproximou-se de n¢s o pr¡ncipe Dom Manuel. Era
bonito, e tinha um uniforme azul com dourados que lhe ficava
muito bem, mas n"o achei que tivesse muito cara de pr¡ncipe.
Entrou na conversa como qualquer um dos outros, e a certa
altura estava eu a contar que este passeio a Lisboa tinha sido
o presente de anos que o meu pai me tinha dado, e ele
perguntou-me em que dia ‚ que fazia anos.
Descobrimos ent"o que t¡nhamos nascido os dois exactamente no
mesmo dia, 15 de Novembro de 1889. T¡nhamos de dan‡ar ao menos
uma vez, disse ele, para festejar, e para nunca mais nos
esquecermos um do outro.
E assim foi. Dan‡ mos uma Polka, e n"o podia ter sido mais
divertido. Ele tinha raz"o. Eu, pelo menos, nunca mais me
esqueci.
Depois ainda fic mos a conversar um bocadinho, ele disse-me
que gostava de livros e de poesia, e que o aborreciam muito
com as coisas do protocolo, e que n"o percebia porquˆ, que o
irm"o mais velho ‚ que tinha nascido para essas coisas.
No regresso ao Hotel o meu pai disse-me que toda a noite n"o
tinha tirado os olhos de mim, e que tinha estado muito bem.
Nessa mesma noite, estava j deitada, decidi: se algum dia
tivesse um filho, chamar-se-ia Manuel. Em homenagem ao
Pr¡ncipe Dom Manuel. Por ele ser t"o bonito, por ter dan‡ado
comigo, e por gostar de poesia.
No dia seguinte recebi um telefonema da minha amiga Eug‚nia.
Quando me chamaram para ir atender, eu parecia que flutuava no
ar. Ia falar ao telefone, pela primeira vez na minha vida!
Se queria ir a uma coisa nova que havia agora no Rossio, que
chamavam o Animat¢grafo, e de que toda a gente falava. Ia ela
com o pai e os irm"os, o Jos‚, a Constan‡a e o Lu¡s.
� claro que sim! O meu pai a princ¡pio n"o queria, que estava
muito cansado, mas por fim l se convenceu.
Era realmente espantoso. ' nossa frente havia uma coisa que
parecia um len‡ol muito grande todo esticado, era sobre ele
que se viam as pessoas a mexerem-se, e era muito engra‡ado,
parecia mesmo que estavam vivas. Entretanto havia uma senhora
de idade que ia acompanhando ao piano, e ¡amos vendo a
hist¢ria a passar-se ... nossa frente.
Quando acabou acenderam as luzes. A seguir iam passar outro
filme, mas estavam a fazer um intervalo para as pessoas
descansarem um bocadinho, ou para irem beber um capil‚.
Deix mos os adultos sentados, e fomos comprar um cartuxo de
caramelos.
Foi nessa altura que a minha amiga Eug‚nia me contou um
segredo, e se eu dissesse a algu‚m nunca mais era minha amiga.
J tinha dado um beijo ao namorado! E tinha sido na boca e
tudo, como tinha visto numa gravura!
No outro dia o meu pai e eu fizemos as malas e l volt mos
para casa. Eu por mim ia a pensar no sabor que teria um beijo,
e na desola‡"o parada daquele Alentejo t"o triste.
Como eu desejava amar!
Um dia, ainda n"o eram passados trˆs meses, o meu pai entrou
no meu quarto de manh". Creio ter dado um salto na cama,
sobressaltada. N"o era h bito o meu pai vir acordar-me. Vinha
afogueado e trazia um papel na m"o. O Senhor Dom Carlos tinha
sido morto a tiro em Lisboa, no Terreiro do Pa‡o, e o Pr¡ncipe
Dom Lu¡s Filipe tamb‚m. Naquele momento foi como se me
tivessem dado uma pancada na cabe‡a. Por um instante vi tudo
branco ... minha volta.
Por que motivo a morte de duas pessoas que tinha visto afinal
apenas uma vez na vida, me impressionou daquela maneira? Hoje
ainda n"o entendo, mas o que ‚ verdade ‚ que me comovi, e
chorei como se fossem pessoas muito amadas.
E o Pr¡ncipe Dom Manuel? Estava bem, s¢ um pouco ferido.
Herdava o trono. Como ‚ a vida! Ele que gostava de poesia, e
se aborrecia com o protocolo!
O meu pai dizia que a culpa era toda do Ministro, o tal Jo"o
Franco, mas eu n"o sei, a mim parecia-me que quando acontece
uma grande trag‚dia, a culpa n"o ‚ de ningu‚m, n"o pode ser. A
culpa ‚ s¢ da vida.
Cap¡tulo 3
Pouco tempo depois adoeci. Uma tuberculose que me ia levando ...
morte. Dezasseis longos e tristes meses passei no sanat¢rio do
Caramulo.
Tinha acessos de tosse incontrol veis, e a seguir sobrevinham
as hemoptises. O Dr. Coimbra obrigava-me a tomar rem‚dios
v rias vezes por dia e a descansar bastante, e aos poucos e
poucos l fui melhorando, mas a cura foi dif¡cil e demorada.
Havia no sanat¢rio doentes num estado muito mais grave do que
o meu, e muitos deles morreram durante o tempo que l estive.
Alguns revoltavam-se, e com a pouca for‡a que ainda lhes
restava, coitados, gritavam, roucos, contorciam-se da raiva
surda, da impotˆncia de sentirem a morte t"o pr¢xima... t"o
pr¢xima!
Quando morriam de dia deixavam-nos ficar no quarto at‚ ...
noite, e s¢ ent"o os levavam a enterrar. Ningu‚m me disse, fui
eu que descobri. Uma noite ouvi barulho, levantei-me, fui
espreitar e vi-os por uma nesga da porta do meu quarto.
No dia seguinte perguntei ao Dr. Coimbra. Ele explicou-me que
j bastava todo o sofrimento daquela gente que ali estava, n"o
valia a pena impression -los e afligi-los mais ainda com o
triste espect culo de um funeral. Para quˆ? Por isso os
levavam de noite, ...s escondidas.
Um dos doentes era um senhor de idade que parecia simpatizar
muito comigo. Era alto e magro, usava umas barbas brancas, o
primeiro nome dele era M rio, mas gostava que lhe chamassem (r)o
fil¢sofo¯.
Foi ele quem me deu a conhecer o S¢, do Ant¢nio Nobre, que
segundo ele nos representava a todos os que ali est vamos
naquele sofrimento, naquele desespero de sabermos a doen‡a
terr¡vel que t¡nhamos, ... qual, bem o sab¡amos tamb‚m, poucos
de n¢s conseguir¡amos sobreviver.
Quando morreu, o "S¢" estava na minha posse, e como a fam¡lia
nem l apareceu, se calhar nem tinha fam¡lia, achei que n"o
fazia mal ficar com aquela recorda‡"o de uma pessoa que me
tinha inspirado tanto carinho.
Tombou da haste a fl"r da minha infƒncia alada,
Murchou na jarra de oiro o p£dico jasmim:
Voou aos altos c‚us a pomba enamorada
Que d'antes estendia as azas sobre mim...
Fallam de sonhos, de anjos, e elle
Falla de amor, falla d'aquelle
Que tanto e tanto a faz penar...
E o cora‡"o parte-se todo,
Quando a sorrir, com t"o bom modo,
O Mar lhe diz: H -de sarar...
Ant¢nio Nobre
Aos poucos tinha-me afei‡oado a ele, ao meu amigo fil¢sofo, e
a sua morte deixou-me mais triste ainda.
Outra pessoa cuja morte me deixou muito impressionada foi uma
rapariga pouco mais velha do que eu que passava os dias a
chorar junto ...s vidra‡as das janelas.
Era uma pessoa pouco comunicativa. Eu tinha uma grande vontade
de me aproximar dela, de lhe dirigir algumas palavras, mas n"o
era f cil. Uma tarde por fim l consegui, e a partir da¡
pass mos a conversar quase todos os dias.
Chamava-se Margarida, tinha um filho com dois anos, e queria
viver ao menos at‚ o ver crescido, que n"o precisasse mais
dela, mas achava que n"o, que a sua hora estava para breve, e
que n"o tornaria a vˆ-lo mais. Morreu pouco tempo depois.
Os dias no sanat¢rio eram iguais. T"o iguais e t"o sombrios...
a £nica coisa que me dava alegria eram as visitas que o meu
pai me fazia sempre que podia, e as cartas que me escrevia,
duas, trˆs vezes por semana.
Foi por ele que recebi a not¡cia da implanta‡"o da Rep£blica.
No momento n"o creio ter entendido muito bem todo o
significado mais profundo desta transforma‡"o pol¡tica que
acabava de se dar no pa¡s, mas francamente, nesta fase da
minha vida, estas n"o eram quest"es que me preocupassem muito.
De qualquer forma, lembro-me de na altura ter ficado contente
que fosse a terra da minha m"e a dar ex¡lio ao rei Dom Manuel.
Havia, entre os doentes do sanat¢rio, um pequeno grupo que se
interessava muito por pol¡tica. Discutiam acalorados, quase
todos os dias, porque cada um pensava de uma forma diferente,
mas eu, com as enxaquecas terr¡veis que todos os dias me
atormentavam, fechava-me no meu quarto, e o que queria acima
de tudo era que me deixassem em paz.
Tinha tamb‚m muitas ins¢nias. 's vezes lia, outras vezes
deixava-me ficar deitada na cama, muito quieta, horas sem fim.
Depois via as horas, eram trˆs e meia, eram quatro da manh".
Queria tanto ter sono!
Um dia pensei: e se eu agora desatasse a gritar, e acordasse
toda a gente, a dizer que tinha visto um fantasma? N"o valia a
pena, e ningu‚m ia achar gra‡a.
Outras vezes pensava: vou-me levantar, vou-me p"r a cirandar
por a¡, a ver se vem o sono, a ver se consigo dormir. Depois
punha-me a olhar para a escurid"o e para a luzinha da
lamparina de azeite, imaginava que a minha cama era um caix"o,
e que estava a velar o meu pr¢prio corpo, e com estes
pensamentos m¢rbidos me deleitava.
Numa dessas minhas intermin veis noites de ins¢nia acendi uma
vela e comecei a escrever um pequeno conto.
J n"o tenho forma de o reconstituir, mas lembro-me que havia
uma paisagem perfeitamente fantasmag¢rica, com um lago
verde-lodo, desses onde se afogam as almas desesperadas. No
meio do lago, a flutuar, um caix"o rodeado de flores roxas e
brancas. Por cima nuvens negras, no meio delas a lua
brilhando. L dentro uma jovem morta por amor, ou sem saber
porquˆ, muito p lida, os l bios descorados, as palpebras j
azuladas, as m"os brancas e esguias pousadas sobre o peito, o
vento ... volta a assobiar, e chuva, trov"es, clar"es s£bitos a
iluminarem asas de anjos e cruzes de cemit‚rio. Nas margens do
lago, sentados sobre lages de sepulturas, uma plateia de
santos, her¢is, ra¡nhas loucas e desgrenhadas, velhas bruxas
rindo e cacarejando, dessas que vagueiam de noite, aos uivos,
pelos bosques.
Tal era o meu desespero.
Dava tamb‚m longos passeios, caminhando lentamente sob as
rvores, tentando respirar fundo aqueles bons ares. Depois
regressava, caminhando sempre lentamente, pensando, sentindo a
frescura da sombra daquele arvoredo de copas altas e escuras.
O sanat¢rio tinha uma pequena biblioteca que devorei
avidamente. Don Quixote, A Cidade e as Serras, as com‚dias de
MoliŠre, Lazarillo de Tormes, Max du Veuzit e muitos outros
que eu lia com sofreguid"o, no fundo sem distinguir muito bem
a boa literatura da m .
Contei numa carta ao meu pai que sentia muito a falta do meu
piano. N"o eram passados quinze dias, e ei-lo que chegava numa
grande carro‡a, todo embrulhado em cobertores.
Assim, passei a tocar quase todos os dias. Sentava-me e
tocava, tocava o que me apetecia, sobretudo Chopin, talvez
porque era Inverno, e chovia. Tocava os Concertos em Fa menor
e em Mi menor, o Nocturno em Mi bemol maior. Tamb‚m gostava de
Liszt, principalmente de Berceuse e da Sonata em Si menor.
Depois, quando o tempo melhorou, comecei a tocar outras
coisas. Outras vezes acabava por dar comigo a improvisar, nem
sei o quˆ. Parecia que o ouvido se me tinha tornado mais
exigente e mais apurado.
Foi uma boa companhia para a solid"o daqueles meus dias
tristes, at‚ que em meados de Abril o Dr. Coimbra me deu por
curada e me mandou para casa com muitas recomenda‡"es. Que me
alimentasse bem e sobretudo que repousasse, que repousasse
bastante.
Assim, passava os meus dias a ler, a conversar com o meu pai,
a n"o pensar em coisa nenhuma.
Sempre acreditei que a felicidade ‚ algo que se nos oferece
quando menos esperamos. Basta saber agarrar esse momento. Por
isso, desde crian‡a que os meus olhos irrequietos se moviam
continuamente. Creio que isto acontecia porque acreditava que
um dia eles pousariam sobre alguma coisa ou algu‚m muito
especial. Estava certa de que n"o poderia enganar-me. Esse
momento seria o meu z‚nite, seria o ponto de viragem da minha
vida.
Cap¡tulo 4
Chegou coberto de poeira num entardecer parado de princ¡pios
de Maio.
Vinha caminhando devagar, silencioso, pela estrada sinuosa da
herdade. Cal‡ava umas botas velhas cobertas de terra.
Trazia uma camisa aberta e umas cal‡as muito largas que
esvoa‡avam ... medida que ele avan‡ava atrav‚s da brisa morna
que soprava ao de leve.
Chegou ... porta de casa e perguntou pelo meu pai.
Vinha pedir trabalho.
Era cozinheiro numa estalagem onde o meu pai costumava ficar
quando ia a Espanha a alguma feira, e um dia tinha-o ajudado a
escolher um cavalo que tinha sa¡do muito bom.
Por isso o meu pai tinha ficado a simpatizar com ele, que
parecia bom rapaz, e disse-lhe que sim, que ficasse, e que
fosse trabalhando na cozinha e na horta.
Fosse fazendo o que fosse preciso, ou aquilo em que se
ajeitasse melhor, que depois logo havia de se ver.
Chamava-se Mart¡n Llorgat Javier. Tinha trinta anos feitos.
Era baixo, bastante feio, moreno e entroncado, e tinha uma voz
rouca e desagrad vel.
Tinha o cabelo ondulado e quase azul, de negro que era, e t"o
brilhante que parecia que estava sempre molhado. Os olhos eram
negros tamb‚m, t"o negros que pareciam carv"es. Tinha umas
sobrancelhas carregadas que vinham unir-se junto ao nariz, uma
boca pequena de l bios grossos e uns dentes muito brancos.
Era muito metido consigo. Quase n"o falava com ningu‚m, nem se
ria, mas quando ria a casa toda abanava que parecia que o c‚u
se ia abrir numa trovoada.
Bem se esfor‡ava ele por falar portuguˆs, coitado, mas n"o era
capaz, dizia paussinho e m"ossinha.
Ao fim de umas duas ou trˆs semanas j se tinha tornado um
pouco mais comunicativo.
Tamb‚m tinha andado embarcado, e por isso quando andava todo o
seu corpo balan‡ava, como que a acompanhar o movimento das
ondas do mar.
Sabia muitas hist¢rias com marinheiros, gaivotas, temporais,
naufr gios, homens ca¡dos ao mar e outros que eram enforcados
nos mastros dos navios, mas eram sempre hist¢rias em que
morria algu‚m.
A comida que fazia era esquisita, ou pelo menos era diferente
da nossa. A mim deixava-me agoniada. Eu fingia que comia, mas
o meu pai percebeu e tirou-o da cozinha. Da¡ para a frente
passou a tratar dos cavalos.
Falava pouco, e s¢ com o meu pai. Com os outros n"o falava
sequer. N"o olhava quase para as pessoas.
Este seu temperamento, que hoje sei que era ditado pelo
orgulho, sim, mas tamb‚m por muita timidez, come‡ou a
despertar a minha curiosidade. Nunca tinha conhecido uma
pessoa assim.
Comecei ent"o a observ -lo um pouco mais de perto, a
espreit -lo, a espi -lo. Mart¡n n"o dava por nada, n"o dava
sequer pela minha presen‡a, ou pelo menos assim parecia.
Aos poucos notei que come‡ara a espiar-me tamb‚m, e esta
esp‚cie de jogo das escondidas durou at‚ ao Ver"o. Naquela
modorra parada, mon¢tona, em que viviamos mergulhados, foi a
forma que encontrei de me distrair um pouco.
Um dia saiu-me de tr s do palheiro, agarrou-me com for‡a por
um bra‡o, at‚ quase me magoar, olhou-me com uns olhos que
parecia que deitavam lume, e sussurrou-me entre dentes que o
n"o provocasse, "que j no soy un chiquillo!"
Andei uns dias assustada. Nessa altura ainda eu n"o tinha
sen"o uma vagu¡ssima ideia acerca dos mist‚rios da vida e do
amor.
Hoje sei que foi, em primeiro lugar, uma atrac‡"o irresist¡vel
aquilo que senti por Mart¡n. Era como se ele fosse um carv"o
aceso, e eu desejasse arder juntamente com ele.
Mas como disse, tudo isto eram coisas que eu sentia sem que o
soubesse, ou pelo menos sem que ousasse admiti-lo.
E assim continuou o nosso namoro de animais assustados. Mart¡n
tinha entrado no jogo, e todos os dias nos provoc vamos, nos
espreit vamos, fingindo que o faz¡amos ...s escondidas, mas
deixando, cada um de n¢s, que o outro se apercebesse da nossa
presen‡a.
Ainda hoje n"o entendo como ‚ que no Monte nem o meu pai, nem
a Ermelinda, nenhum dos que nos rodeavam, ningu‚m notava
aquilo que se estava passando. A £nica explica‡"o que encontro
‚ o ins¢lito da situa‡"o.
Eu, filha £nica do meu pai, herdeira de um t¡tulo e daquela
corti‡a toda, de amores com um homem assim, um estranho, um
desgra‡ado sem eira nem beira, um criado da casa? Era uma
coisa que n"o podia passar pela cabe‡a de ningu‚m.
Um dia, era um Domingo a seguir ao almo‡o, o meu pai tinha ido
a Portalegre tratar de neg¢cios. Os homens da herdade andavam
l para as casas deles, a Ermelinda e as outras criadas deviam
andar de volta dos seus bordados e das suas rendas.
Peguei num livro, levei uma almofada e fui sentar-me nas
traseiras da casa, perto do po‡o, ... sombra da oliveira grande.
' minha volta tudo era silˆncio. Nem os mastins ladravam. De
repente pressenti que algu‚m se aproximava.
Era Mart¡n. Na contra luz, todo ele, muito moreno, fazia um
contraste muito forte com a camisa branca e vermelha de
quadrados que trazia aberta no peito.
Aproximava-se e sorria-me. Eu n"o sabia muito bem o que
pensar. Sentou-se ao p‚ de mim, e dirigiu-se-me com um
atrevimento que eu nunca julgaria poss¡vel. E tratava-me por
tu!
Perguntou-me porque motivo n"o tinha sa¡do com o meu pai, e o
que estava a ler, e porque n"o tinha posto o vestido branco e
azul, que era aquele com que mais gostava de me ver.
Eu estava perfeitamente transida. De espanto, sobretudo.
Continuou a falar comigo numa voz macia como eu nunca lhe
tinha ouvido. Aos poucos foi aproximando as suas m"os das
minhas. Depois tomou-mas, beijou-mas, entretanto ia-me dizendo
coisas que eu ouvia fascinada.
Abra‡ mo-nos, beij mo-nos, acho que devemos ter passado assim
um grande bocado, at‚ que se ouviram os guizos dos cavalos.
Era o meu pai que estava de volta na charrette.
Mart¡n levantou-se. Pediu-me que lhe concedesse apenas alguns
minutos mais no dia seguinte. Queria falar-me dele, de mim, de
tudo o que poderia vir a ser a nossa vida, se eu quisesse.
Nessa noite acho que nem dormi, assustada, morta de medo, e ao
mesmo tempo com o cora‡"o entregue a um sentimento
incontrol vel de ang£stia e agita‡"o.
As coisas tinham chegado a um ponto que... n"o podia continuar
a enganar-me a mim pr¢pria, a fingir que era mentira tudo
aquilo que sentia.
Eu amava Mart¡n. Amava-o com todas as for‡as do meu corpo e da
minha alma, amava-o com uma estranha paix"o feita
simultaneamente de atrac‡"o e de repulsa, e que era mais
forte, incomparavelmente mais forte, do que qualquer outro
sentimento que alguma vez tivesse experimentado.
Por que motivo, pergunto-me hoje, e sobretudo com que direito,
mentem ...s raparigas? Porque lhes dizem que o amor ‚ uma doce
ternura cor de rosa?
O amor ‚ negro e ‚ brilhante, e ‚ vermelho, rubro como uma
labareda. Muito mais do que b lsamo, ‚ um carv"o em brasa que
nos queima, nos provoca um sofrimento, uma dor tremenda da
qual n"o podemos nem queremos libertar-nos.
Eu amava Mart¡n, sim, mas de qualquer forma n"o teria nunca
ousado tomar a primeira iniciativa.
No dia seguinte estive toda a manh" com o meu pai, na
cavalari‡a, de volta de um cavalo novo que tinha chegado de
Alter. Era muito bonito, ia chamar-se Viva‡o.
Mart¡n n"o parava de me olhar pelo canto do olho. O meu pai
estava ocupado, os outros tamb‚m, cada um com os seus
afazeres, n"o deram por nada.
Ao fim da manh" volt mo-nos a falar. Fal mos muito. Ao fim de
uma hora eu estava decidida. Por Mart¡n jogaria toda a minha
vida. Apostaria toda a minha felicidade naqueles olhos negros
como a noite, que brilhavam e me prometiam sonhos, loucuras,
gl¢rias e desvarios, e me prometiam, me davam j , um amor t"o
grande, t"o selvagem, t"o completamente animal, que todas as
minhas veias latejavam de desejo.
No dia seguinte, ... mesma hora, sem combinarmos, est vamos os
dois de novo no celeiro, e assim todos os dias.
Era uma verdadeira loucura. O meu pai, homem brando e pac¡fico
que era, tinha uma espingarda. Se nos descobrisse naquela
situa‡"o, a mim talvez n"o me fizesse nada, mas Mart¡n
certamente n"o sairia dali com vida.
Esse medo que t¡nhamos de ser descobertos, essa sensa‡"o de
perigo, parecia que nos agu‡ava mais ainda o desejo que
t¡nhamos um do outro.
Era j chegado, creio, o mˆs de Julho, quando fizemos amor
pela primeira vez. Fizemo-lo simples e rudemente. Foi num
Domingo, ... tardinha, dentro do celeiro. O momento em que me
rasgou o himen foi terrivelmente doloroso. Creio ter deixado
escapar um grito. N"o sei como n"o se ouviu em toda a herdade.
Agarrei-me com uma das m"os a uma trave, com a outra ao cabo
de uma forquilha que ali estava tombada sobre a palha, fechei
os olhos e cuidei que morria. Solucei de dor, sem me poder
mexer.
Para al‚m desta minha dor, terr¡vel e intensa, sentia-me
assustada, como um p ssaro ferido. Mart¡n entendeu isso,
enla‡ou-me com for‡a e do‡ura, e assim fic mos um longo
momento, abra‡ados, como se o mundo fosse acabar.
Dessa vez a Ermelinda desconfiou que alguma coisa se passara.
Viu-me entrar em casa apressada e fechar-me no meu quarto.
Tinha de trocar de vestido, aquele estava manchado de sangue.
Quando sa¡ do quarto perguntou-me o que tinha, que estava
esquisita.
Contei-lhe tudo. Que Mart¡n e eu nos am vamos, que tinha
acabado de lhe entregar o meu corpo. Ela deitou as m"os ...
cabe‡a.
- Oh menina! Que grande desgra‡a! E o seu paizinho? O que ‚
que ele vai dizer? Oh meu Deus! O que a menina foi fazer! O
seu paizinho ‚ t"o bom, e quando souber disto vai ter um
desgosto t"o grande!
- Eu sei, Ermelinda, eu tamb‚m n"o queria que ele sofresse,
mas agora o que ‚ que eu hei-de fazer?
- Oh menina! Pe‡a-me tudo, mas n"o me pe‡a que seja eu a
dizer-lhe! Oh meu Deus! A culpa foi toda minha, que havia de
ter olhado pela menina, mas aqui no Monte, neste sossego, como
‚ que eu ia adivinhar que ia acontecer uma coisa destas? Como
‚ que eu podia adivinhar?
- Deixa l , e n"o chores, que n"o vale a pena. Se eu tivesse
morrido, n"o era pior?
- Oh menina Beatriz! N"o diga uma coisa dessas, que Deus Nosso
Senhor pode castigar!
- Ent"o pronto, n"o contes nada ao meu pai, nem te aflijas,
vais ver que tudo se h -de arranjar.
- Oh menina! Diga a esse homem que fuja, ele que se v embora,
que ‚ melhor! melhor para ele, e ‚ melhor para n¢s.�
- Se ele se for embora, Ermelinda, eu vou com ele. N"o o largo
por coisa nenhuma deste mundo!
Nesse momento ela tirou um len‡o do bolso do avental, enxugou
os olhos e foi para a cozinha a solu‡ar.
Sentei-me ao piano e toquei, toquei durante muito tempo, uma
hora, talvez duas, nem sei o quˆ.
Depois o meu pai chegou para jantar, eu estava um pouco mais
calma, j s¢ me tremiam as m"os. Procurei agir com
naturalidade, mas n"o era f cil. N"o era nada f cil!
A Ermelinda ia servindo ... mesa, como fazia todos os dias, s¢
os olhos ‚ que parecia n"o conseguir levant -los do ch"o.
A meio do jantar entornei um copo de gua sobre a toalha, que
era uma coisa que desde garota n"o me acontecia.
Felizmente o meu pai, na outra extremidade da mesa, com os
candelabros de prata pelo meio, n"o me podia ver muito bem, e
n"o se apercebeu de nada, mas de qualquer forma Mart¡n e eu
n"o podiamos ficar ali nem mais um dia.
Nessa mesma noite fugimos.
Cap¡tulo 5
Sa¡ pela janela, sem fazer barulho. Levava uma trouxa com duas
mudas de roupa, o medalh"o da minha m"e numa caixinha com os
brincos de ametistas que tinham sido dela tamb‚m, as minhas
libras de ouro, e o livro, aquele meu livro favorito.
Levei ainda o meu frasco de perfume, que estava ainda em mais
de meio. Partiu-se na viagem. Mal eu sabia quanto tempo teria
de esperar at‚ poder comprar um novo frasco de perfume.
Partimos. Antes de sair da cavalari‡a ainda abracei e beijei
demoradamente a minha ‚gua Rosmaninha.
Galop mos toda a noite, n"o fosse o meu pai mandar os homens
da herdade atr s de n¢s para me levarem de volta.
Atravess mos um rio baixo, devagar para n"o assustar o animal.
Do outro lado j era Espanha. Galop mos ainda um bom bocado, e
cheg mos ent"o a um albergue muito sujo onde dormimos algumas
horas.
Era Ver"o mas estava frio e chovia muito.
Havia uma esp‚cie de cozinha grande com mesas corridas e uma
grande lareira toda em pedra. Estava bem acesa, com carv"o e
troncos grossos de madeira, e ... volta estavam alguns homens a
falar baixinho, como se estivessem a falar de n¢s, mas Mart¡n
garantiu-me que n"o, que era por serem velhos, e por j ser
muito tarde, ou seria por estarem com frio.
A uma mesa, num canto, estavam trˆs homens mais novos, a falar
tamb‚m muito baixo. Mart¡n disse-me que eram contrabandistas,
e um deles tinha um bon‚ castanho de l" que lhe cobria as
orelhas. Volta e meia virava a cabe‡a, olhava em volta, e
baixava mais ainda o tom de voz.
Acho que comemos p"o escuro, chouri‡o e azeitonas, j n"o me
lembro bem, e bebi uma caneca de vinho tinto. Eu n"o queria,
que n"o estava habituada, mas Mart¡n disse que tinha de ser,
que era para dar for‡as.
Eu s¢ me lembrava dos contos do Tchekhov e das suas descri‡"es
aterradoras de estalagens que eram covis de ladr"es a afiarem
na noite os seus facalh"es enormes, e n"o podia deixar de me
sentir um tanto assustada com tudo aquilo, mas era tolice.
Enquanto tivesse o amor de Mart¡n, nada de mal poderia
acontecer-me.
Com aquela cavalgada debaixo de chuva, sentia-me encharcada,
enregelada at‚ aos ossos, mas n"o foi a lareira nem foi o
vinho tinto, foram os bra‡os de Mart¡n que nessa noite me
deram conforto e calor. Ah, como o corpo dele era amigo do
meu, dizia-me ele...
Como Romeu e Julieta, tamb‚m n¢s, culpados, nos am vamos com a
inocˆncia dos que o n"o s"o afinal.
De qualquer forma j n"o poderia voltar para tr s, mesmo que
quisesse. E a verdade ‚ que n"o queria. Por nada deste mundo
largaria Mart¡n.
Muitos me julgar"o a £ltima das mulheres. Tinha tudo aquilo
que a vida pode dar de melhor a uma rapariga da minha idade,
inclusive um pai que me adorava e que seguramente n"o deixaria
de me proporcionar oportunidades de conhecer algum rapaz que
me agradasse, um pai que n"o merecia que eu lhe fizesse o que
fiz, e que certamente ter sofrido muito com a minha partida.
Ah, como ‚ f cil julgar-me assim!
Daqui a algum tempo, pensava eu, hei-de escrever uma longa
carta. O meu pai h -de compreender que a minha paix"o por
Mart¡n foi mais forte do que eu. Esta carta, v rias vezes
come‡ada em Sevilha e depois em Paris, n"o cheguei a
termin -la nunca, nem a envi -la. N"o tive coragem.
Dormimos pouco naquela noite, talvez umas trˆs ou quatro
horas. Tinhamos de continuar o nosso caminho.
Era ainda quase de noite quando retom mos a cavalgada, que
durou o dia todo. Por duas vezes par mos para descansar o
animal e para comer p"o com queijo e ovos cozidos, que tinha
sido a £nica coisa que na estalagem nos tinham podido vender.
Era j bastante tarde quando cheg mos a Sevilha, a casa da m"e
de Mart¡n. Era uma casa pequena e pobre, como todas as daquele
bairro de Santa Cruz, mas estava caiada de novo. Ficava no
Callej¢n del †gua, junto ao jardim do Alcazer.
A m"e dele era uma velha mirrada e encardida, com cara de ter
passado dias de muita fome. Hoje que penso nisso, n"o creio
que fosse muito diferente das mulheres que eu estava habituada
a ver l pela herdade. Olhava para Mart¡n e ria-se toda,
desdentada e cheia de rugas.
Para mim olhava desconfiada, com uns olhos pretos de rato,
pequeninos e vivos. Devia ser por causa da minha cor mais
clara, ou seria por eu ser uma estranha, ou por estar ali com
o filho dela, sem sermos casados nem nada.
O pai de Mart¡n era catal"o. e tinha sido morto pela Guarda.
Toda a vida tinha sido contrabandista, mas n"o tinha sido por
isso que o tinham morto.
Tinham-no morto por causa de uma coisa a que chamaram a M"o
Negra. Um dia Mart¡n explicou-me o que era. Tinha sido um
grupo de homens que andavam armados com facas, e entravam na
casa dos ricos, e matavam-nos, porque diziam que neste mundo
n"o podiam viver aldeias inteiras ... fome s¢ para sustentarem
meia d£zia de in£teis.
Mart¡n contava-me estas coisas extraordin rias, e eu
acreditava nele, mas punha-me a pensar no que diria o meu pai
se ouvisse uma coisa assim, e o padre Fernando tamb‚m n"o
havia de gostar, e se algum desses das facas l fosse ... igreja
confessar-se, at‚ era capaz de n"o lhe dar a absolvi‡"o.
Depois a Guarda parece que come‡ou a andar atr s deles, e
acabou por apanh -los, a muitos deles, e ao pai de Mart¡n
tamb‚m, por causa de um casal que tinha aparecido esfaqueado
em Trebujena, e depois levaram-nos para Jerez de la Frontera,
e l os mataram. Foi no ano de 1883.
Mart¡n praticamente n"o tinha chegado a conhecer o pai. Tinha
crescido no meio de muita fome e de muita mis‚ria, e achava
que a Guarda lhe tinha roubado muita coisa. Era por isso que
lhes tinha um ¢dio t"o grande, e aos ricos, e aos padres.
Ali fic mos dois anos, e eu fazia para a m"e de Mart¡n aquilo
que na minha casa nunca teria feito. Lavava, esfregava,
cozinhava, mas eles n"o pareciam gostar muito da minha comida.
Acho que n"o lhes sabia a nada.
Seria por estarem habituados ... deles, que levava muitos
fritos, e pimentos encarnados, e muito azeite e muito alho,
que ‚ uma coisa que no Alentejo tamb‚m h , e a comida dos
homens l na herdade era assim temperada, mas tem um cheiro
muito forte e desagrad vel.
Eu por mim prefiro comida mais leve. Gosto de omeletes com
salada, e de fiambre, e de peito de per£ cortado fino, e de
peixe grelhado com manteiga e sumo de lim"o.
Aos poucos e poucos fui percebendo que a m"e de Mart¡n era uma
velha horr¡vel. Andava sempre de preto. Debaixo do avental
trazia uma bolsa de cetim cheia de dinheiro. Devia ser o
dinheiro todo que tinha, e trazia-o ali com medo que lho
roubassem.
Amarrado junto ... bolsa trazia um ros rio de contas pretas.
Tinha no quarto um pequeno orat¢rio com meia d£zia de santos.
Era uma Macarena, uma crucifixo, um S. Martinho, um S.
Crist¢v"o, uma Senhora do Carmo e outra do Pilar, uma Sta
Teresinha e um S. Jo"o Baptista.
Ao lado do orat¢rio, pendurada na parede com um prego e um
la‡o, tinha uma tran‡a de cabelo j todo roida da tra‡a. A mim
metia-me um bocado de nojo. Era dela, quando era nova. Tinha
sido uma promessa que tinha feito, de oferecer a tran‡a ...
senhora do Carmo, no dia em que Mart¡n tinha nascido, que a
comadrona, ou seja, a parteira, tinha visto as coisas muito
mal paradas.
Todos os dias, atrav‚s da porta do quarto, a ouv¡amos
cantarolar em voz alta desfiando o seu ros rio.
Trazia tamb‚m uma argola com as chaves da despensa, e s¢ ela ‚
que l entrava, e no galinheiro tamb‚m, com medo que l fossem
roubar-lhe os ovos, ou alguma galinha, acho eu, que andavam
muitos vadios de noite pelos p tios e pelos quintais.
Sa¡a de casa de manh" muito cedo para ir ... missa, e a seguir
passava no mercado a comprar alguma coisa que fosse preciso.
Estava de volta a¡ pelo meio da manh", e o tempo que demorava
devia ser na conversa com outras velhas, porque as compras que
fazia nunca eram muitas.
Naquela casa mais depressa faltava do que sobrava. Muitas
vezes me levantei da mesa, n"o direi propriamente com fome,
mas com a sensa‡"o que de bom grado teria comido... ao menos
mais um peda‡o de p"o. Mas ‚ramos quatro a comer, e o pouco
que havia tinha de chegar para todos.
Eu n"o ia com ela ... missa nem ao mercado. Fui habituada a ir ...
missa desde pequenina, e um passeio pelo mercado bem me podia
tamb‚m ajudar a espairecer um pouco, mas era a companhia dela
que me incomodava.
Incomodava-me o h lito dela, que tinha os dentes todos p"dres,
incomodava-me o cheiro a ran‡o que vinha do cabelo dela, que
at‚ fazia v¢mitos, incomodava-me a voz dela, rouca e gritada.
Mas tudo isto me era no fundo quase indiferente. Tinha o amor
de Mart¡n, tinha os seus olhos que me queimavam como brasas,
os seus bra‡os que me seguravam como tenazes, a sua barba que
me arranhava at‚ quase me fazer sangrar, os seus dentes que me
mordiam os seios at‚ que eu gritasse, o sexo dele que era como
uma espada que me queimava por dentro e me rasgava as
entranhas cada vez mais fundo, sem que o meu corpo deixasse de
o desejar cada dia, de novo, e outra vez, e mais, e mais.
Dormia, noite ap¢s noite, docemente enla‡ada nos seus bra‡os,
embriagada do cheiro forte do seu corpo. O resto pouco me
importava.
Um dia levou-me a conhecer um pouco mais da cidade. A Torre da
Giralda, esmagadora na sua altura, a Catedral, esmagadora na
sua grandiosidade, na solidez dos seus blocos de pedra.
Esmagadora era tamb‚m a riqueza do seu tesouro, todo aquele
ouro, as pedras... Tamb‚m me levou a ver o Alcazer. A¡ foi a
presen‡a de uma cultura milenar, foram os lavrados no gesso, a
presen‡a do cor"o em t"o perfeita harmonia com a arte, que me
deixou esmagada de assombro e prazer.
Alguns dias depois levou-me tamb‚m a ver a Macarena. Nunca vi
uns olhos assim, que tanto me impressionassem.
Quando me apetecia dava uma volta pelo bairro, mas n"o me
afastava muito, tinha receio de me perder pelas calles,
callejas e callejones daquela cidade imensa e desconhecida.
Uma coisa que me deixou surpreendida foi a forma como os
sevilhanos celebravam as festas da Semana Santa.
Faziam uma prociss"o que era qualquer coisa de grandioso.
Levava um dia inteiro a passar. Eram centenas, milhares de
pesoas, mais alegres do que fervorosos, pareceu-me a mim, mas
o mais impressionante eram os membros das confrarias, os
nazarenos, que levavam uma esp‚cie de carapu‡o alto e bicudo
enfiado na cabe‡a, s¢ com uns buracos para os olhos.
Quando os vi na prociss"o a primeira coisa de que me lembrei
foi de um livro que o meu pai tinha na biblioteca, sobre a
Inquisi‡"o. Trazia algumas estampas, e os carrascos que
infligiam os supl¡cios ...queles pobres desgra‡ados usavam uns
carapu‡os iguais aos dos penitentes sevilhanos, assim bicudos
e tudo.
Talvez por isso, esta prociss"o um tanto assustadora n"o se
pode dizer que me tenha agradado muito. Tenho mesmo alguma
dificuldade em compreender esta forma l£gubre que os cat¢licos
tˆm de viver a sua f‚.
Mart¡n tinha uns amigos que moravam na Calle Sierpes, e
cederam-nos uma janela, de forma que ali fic mos toda a noite
de Quinta-Feira Santa.
' meia noite sairam da Igreja da Macarena com a imagem.
Passava das trˆs da manh" quando os vimos surgir ao fundo da
rua, eram quase quatro da manh" quando passaram debaixo da
nossa janela. Vinha com um manto todo borado a ouro e p‚rolas,
rodeada da Guarda de Honra toda engalanada, os cavalos
enfeitados com plumas na cabe‡a. Era um espect culo digno de
se ver.
N"o deviam ter ficado muito cansados, os sevilhanos, com esta
festa, porque na semana seguinte j estavam a fazer outra, com
corridas de toiros, mostras de cavalos, gente a cantar e a
dan‡ar pelas ruas e comes e bebes que eram um exagero. Mart¡n
ouvia-me fazer estes coment rios e n"o se aborrecia, ria-se
comigo.
Um dia ainda tentou ensinar-me a tocar castanholas, mas eu,
pura e simplesmente, nunca consegui aprender. Para isso era
preciso que tivesse nascido ali, que tivesse sido educada
naquele ambiente. Ele dizia que era uma coisa que vinha de
dentro de n¢s, e que, ao contr rio daquilo que eu poderia
pensar, as castanholas n"o se tocavam com os dedos, tocavam-se
com o corpo todo, com os p‚s, com os ouvidos, com o cora‡"o.
Entretanto, que fazia Mart¡n? Desde que cheg ramos a Sevilha
que todos os dias sa¡a de casa de manh" cedo, mas n"o ia
trabalhar. Eu n"o entendia o que ele ia fazer, e
perguntava-lhe, e ele ria-se, e n"o explicava. Ia-me
prometendo que logo me diria tudo.
At‚ que uma noite obtive finalmente a resposta. Mart¡n ia,
pura e simplesmente, conspirar. Estava ligado a um grupo de
outros que pensavam como ele, e todos juntos estavam tentando
achar a forma de destronar Afonso XIII. Entregar o governo ao
proletariado, eis o que havia a fazer pela Espanha.
Mas tamb‚m havia o irm"o de Mart¡n. Chamava-se Crist¢bal, mas
chamavam-lhe Toba. Era mais velho, mais alto e mais claro de
pele, e menos entroncado. Tinha tamb‚m um temperamento muito
reservado. A mim tratava-me como se eu n"o existisse, ou
melhor, ignorava-me por completo. Entrava e sa¡a de casa e n"o
cumprimentava ningu‚m.
Era solteiro, e trabalhava em casa de um outro, como
carpinteiro de m¢veis.
Ao Domingo ia pescar para as margens do Guadalquivir, mas
poucas vezes trazia alguma coisa que valesse a pena.
Das ideias pol¡ticas de Mart¡n n"o queria nem ouvir falar.
Dizia que n"o t¡nhamos amor ... vida, e que a Guarda ainda ia
acabar por dar connosco.
A partir de certa altura Mart¡n passou a trazer os amigos e
passaram a reunir-se l em casa, ... volta da mesa da cozinha.
Crist¢bal ficava furioso. Dizia que n"o estava para pagar por
aquilo a que chamava "las tonterias de Mart¡n". Houve uma
manh" em que a discuss"o se acendeu, de repente j uma faca
brilhava na m"o de Crist¢bal. Se n"o fosse a m"e, que lhes deu
um grito e se meteu no meio dos dois, nem quero pensar na
trag‚dia que naquela manh" podia ter acontecido.
A partir desse dia passei a respeitar aquela velha com pouco
mais de um metro de altura que num segundo conseguiu apartar
dois homens como aqueles.
Havia nas traseiras da casa uma esp‚cie de pequeno p tio
caiado de branco que dava para as traseiras de outras tantas
casas. Tinha duas laranjeiras, um banco de pedra, e no centro
tinha um po‡o com uma gua leve e muito boa para beber.
Era um lugar encantado. Ali passei algumas tardes de sossego,
a ler, a ouvir os p ssaros. Sentia-me bem ali como n"o me
sentia em nenhum lugar do interior daquela casa.
' noite via os pirilampos sobre os canteiros do p tio, e
lembrava-me de quando era menina, l na herdade. Abria a
janela do meu quarto e ficava a olhar para as estrelas.
's vezes, sobretudo no Ver"o, ouvia-se nos outros p tios
cantar e dan‡ar pela noite fora. No nosso isso n"o acontecia,
porque as melhores bailarinas de flamenco eram as ciganas, e
essas s¢ gostavam de fazer a festa no seu pr¢prio p tio.
Dan‡avam as sevillanas, cante-jondos, seguidillas. Eles bem me
explicavam que eram cantares e dan‡ares todos diferentes uns
dos outros, mas para mim era tudo a mesma coisa.
Mart¡n n"o era um grande apreciador nem de flamenco nem de
corridas de toiros. Aceitava-as como manifesta‡"es art¡sticas
e culturais, mas entendia que eram coisas de que os governos
se serviam para distrair os povos, entorpecendo-os,
diminuindo-os, embebedando-os espiritualmente, impedindo-os de
pensar nos seus problemas do dia a dia e de tomarem parte na
nossa luta pol¡tica.
Eram anest‚sicos de que se serviam para adiar a Revolu‡"o
social, que era, ao fim e ao cabo, a £nica coisa
verdadeiramente importante e urgente, e tudo isso com a £nica
finalidade de mais facilmente nos explorarem e oprimirem.
Enquanto se entretinham a sapatear, a cravar bandarilhas e a
rezar ... Macarena, esqueciam a mis‚ria em que viviam e, pior
ainda, esqueciam os motivos pelos quais assim viviam, e o que
havia a fazer para modificar a vida de todos e de cada um.
Eram uns oito ou dez, os amigos de Mart¡n, e trˆs mulheres.
Usavam umas camisas que talvez j tivessem sido brancas, e
coletes pretos por cima. Mart¡n, esse ent"o, s¢ gostava de
camisas de quadrados vermelhos, e n"o usava colete nem chap‚u.
Eram o Paco, o Benito, o Pirri, o Dominguez, o Balseras, a
Carmen, a Pepa, a Marivi, o Manolo Ruiz, o Nu¤ez, o Moreno e o
Juanito.
O Balseras era um de olhos claros que se dizia revolucion rio
... maneira brissotiana, ainda hoje estou para saber o que
quereria ele dizer com isso.
A Marivi era uma que vivia de dan‡ar flamenco ... noite numa
taberna. Era bonita e meia aciganada. As outras n"o gostavam
muito dela, creio que a consideravam praticamente uma
prostituta, mas Mart¡n dizia que era um elemento muito £til
porque tinha facilidade em estabelcer contactos, e sempre ia
ouvindo coisas que se diziam pela taberna.
N"o sei porquˆ, tive sempre a sensa‡"o que entre Mart¡n e
Marivi (r)alguma coisa¯ teria havido no passado.
A Pepa, para mim, era de todos a mais simp tica. Era uma
rapariga franzina, de olhos cor de castanha, com a pele entre
o rosa e o alaranjado. Via-se que era muito t¡mida, e talvez
por isso falava poucas vezes, mas quando falava era tomada por
um entusiasmo espantoso, cheio de uma f‚ sincera e generosa.
Foi, de todos, a primeira que me acolheu com um sorriso doce e
caloroso.
A Carmen vendia galinhas no mercado. Era alta, morena e
desempoeirada. Uma vez, no meio de uma discuss"o, ferrou duas
bofetadas no Cabo da Guarda que o deitou por terra. E ele
ficou com elas, meteu o rabo entre as pernas e foi-se embora.
Quem tem raz"o tem sempre muita for‡a, dizia ela.
O Moreno era o pai da Pepa. Era um j velhote, com pouco
cabelo e uma grande barriga, andava apoiado a um cajado,
coitado, acho que j nem percebia metade do que se dizia nas
reuni"es, mas respeitavam-no muito porque tinha dado mais de
cinquenta anos da sua vida ... nossa causa.
O Dominguez era estucador. Era alto, de cabelo encaracolado,
um tanto esquivo e arredio. Tinha a cara picada das bexigas e
isso dava-lhe o ar de um galo brig"o. N"o gostava muito do
cunhado, que era o Pirri. Hist¢rias antigas, diziam eles.
Esse Pirri era o brincalh"o do grupo. Qualquer coisa lhe
servia para tro‡ar dos outros. Era baixo, louro e corado, e
nos l bios tinha sempre um sorriso atrevido.
O Paco e o Benito eram dois irm"os que moravam do outro lado
da cidade. Eram rapazes novos e cheios de entusiasmo, ...s vezes
at‚ se excediam um bocado. Eram brutos que se fartavam.
Cuspiam para o ch"o ali mesmo no meio da nossa cozinha.
Um dia chegaram com uma ideia nova. Faz¡amos uma lista de
pessoas que, se aparecessem mortas, a culpa ca¡sse sobre os
soldados da Guarda. Os sogros deles, os vizinhos, mas
sobretudo pessoas que tivessem tido alguma desaven‡a com algum
deles, e mat vamo-los, um a um.
Depois era f cil come‡ar a espalhar que tinham sido eles, os
da Guarda, quem mais ‚ que podia ter sido? No dia em que o
povo todo se levantasse contra eles n¢s aproveit vamos,
ca¡amos-lhes em cima e davamos cabo deles de uma vez por
todas. Felizmente a ideia n"o foi aprovada. Tinha sido uma
sangueira.
O Juanito era um que tinha fugido ... tropa. Comia pouco, falava
pouco, tossia muito, uma tosse cavada que eu bem conhecia.
Devia ter alguma coisa nos pulm"es. Era bom rapaz e eu
simpatizava bastante com ele. Aparecia sempre muito bem
barbeado, penteado com fixador, com o fato muito limpo, muito
bem escovado, ...s vezes at‚ cheirava a gua de col¢nia, e os
outros faziam um bocadinho de tro‡a dele. De uma vez o
Dominguez parece que lhe chamou "maric¢n" e iam-se pegando os
dois ... pancada.
O Manolo Ruiz era o dono da taberna onde dan‡ava a Marivi,
trˆs ou quatro ruas mais adiante, e defendia-a sempre. Marivi
n"o era aquilo que algumas pessoas pensavam. Era uma boa
rapariga e j se tinha arriscado muito pela nossa causa, dizia
ele.
Esse Ruiz tinha veleidades de poeta, e dentro do g‚nero
popular n"o deixava de ter alguma gra‡a. Tinha uma barriga que
parecia um abade, e quando queria convencer as pessoas de
alguma coisa come‡ava a gaguejar, exaltava-se muito e agitava
os bra‡os como um rel¢gio que de repente come‡asse a andar com
os ponteiros desordenadamente para um lado e para o outro.
O Nu¤ez era o empregado dele. Entrava mudo e sa¡a calado.
Ningu‚m sabia muito bem ao certo o que pensava de tudo aquilo,
mas o Manolo tinha ficado por ele, que era de confian‡a, e por
isso ali estava connosco.
Tratavam-se todos por camaradas, falavam de Marx e de Lenine,
abriam garrafas de vinho e bebiam ... Revolu‡"o. Estava para
breve, diziam eles.
Ficavam at‚ tarde, falavam muito depressa e eu nem sempre os
entendia. Ainda por cima usavam palavras que eu nunca tinha
ouvido, e falavam de coisas que eu nem sabia que existiam.
Noite ap¢s noite, ... medida que enxugava a loi‡a, ia-os ouvindo
falar, e ... medida que as semanas passavam ia-os entendendo
cada vez melhor.
Uma noite decidi. Socialista, Anarquista, ou qualquer outra
coisa que Mart¡n fosse, o meu lugar era ao lado dele. Puxei de
um banco e sentei-me. Ele n"o me disse nada. Levantou-se,
pegou no copo, sorriu, olhou ... volta e brindou ... nova camarada
que acabava de aderir ao Partido.
A partir da¡ comecei a ler tamb‚m alguns te¢ricos. Ao fim de
algum tempo eu era uma revolucion ria em tudo igual a eles.
Confiaram-me ent"o a miss"o de traduzir do inglˆs e resumir
passagens de livros de forma a poderem ser depois passadas
para espanhol, para serem publicadas no jornal, que era feito
em casa do Pirri.
Um dia n"o resisti, e escrevi eu pr¢pria um pequeno texto.
A tinta com que escrevo ‚ vermelha como os meus l bios que
cantam. Os meus olhos experimentam um prazer intens¡ssimo
enquanto vou saboreando as letras com o brilho de rubis e o
sabor de frutos silvestres que a encarnado vivo, uma a uma,
sobre o papel, v"o ganhando forma e significado. Porque sou um
animal carn¡voro, uma loba esfaimada, insaci vel. Vou
devorando a vida, mastigando cada momento, momentos que s"o
como papoilas desfraldadas ao vento. Vou roendo cada instante,
s"frega da rubra paix"o de viver, vou bebendo o meu c lice
tinto do sangue e das labaredas em que ardo... escarlate...
p£rpura...
Uma Camarada
Era como asin vamos os textos. Para que entre n¢s n"o
existissem distin‡"es, mas sobretudo para n"o fornecer nenhuma
pista ...s autoridades, se por acaso algum exemplar lhes fosse
parar ...s m"os.
At‚ que ponto consigo, pelo menos neste texto, dissociar a
minha paix"o rubra por Mart¡n da minha op‡"o ideol¢gica, nem
eu pr¢pria o sei.
E assim decorreram mais de dois anos. Entretanto fui ganhando
cabelos brancos, os dedos foram-se-me tornando vermelhos e
mais grossos, as costas foram-se-me vergando sob o peso
daquela mis‚ria.
' for‡a de carregar com baldes de gua e cestos de lenha
pesados, e de esfregar ajoelhada o ch"o da cozinha, creio ter
perdido muito daquilo a que, meio a brincar meio a s‚rio, o
meu pai chamava o meu porte de princesa.
Um dia veio uma rapariga que eu n"o conhecia. Chamava-se
Dolores, e ... primeira vista parecia apenas uma igual a outra
qualquer, mas quando come‡ou a falar vibrava, toda ela, de
tanta emo‡"o, de uma paix"o de tal forma arrebatada que nos
tocava at‚ ao mais profundo das nossas fibras.
Por essa altura come‡ mos a sair na carro‡a com a mula.
Lev vamos tachos e panelas, e se a Guarda perguntasse alguma
coisa Mart¡n fazia-se passar por funileiro, que ‚ uma
profiss"o que obriga a viajar bastante.
‹amos devagar, por causa do calor, e Mart¡n assobiava
baixinho:
En pie, oh vitimas del hambre,
en pie hambrientos de la tierra...
A vida dos andaluuzes n"o era muito diferente da dos
alentejanos.
O meu pai tinha mil e duzentos hectares de sobreiros. Todos os
anos se contratavam homens e mulheres para o trabalho da
corti‡a numa das zonas da herdade. Eram os ganh"es. Passavam
devagar, como se estivessem cansados, muito queimados do sol.
Quando eu era menina muitas vezes me punha a observ -los. 's
vezes assavam bolotas para comer, outras vezes comiam p"o com
queijo, comiam azeitonas, mas a maior parte dos dias desconfio
que n"o comiam mais nada.
Hoje imagino como deviam odiar-nos, ao meu pai e a mim. Com o
mesmo ¢dio surdo e revoltado com que Mart¡n odiava todos
aqueles a quem culpava pela sua infƒncia de tanta mis‚ria. O
mesmo ¢dio que estes camponeses andaluzes votavam aos senhores
daquelas terras de fome, camponeses bisonhos que passavam por
n¢s de cenho franzido, com medo, talvez, que lhes quis‚ssemos
roubar o peda‡o de p"o de h uma semana que levavam na sacola.
Cheg vamos ...s aldeias, e iamos directamente procurar o homem
de confian‡a do Partido. Mart¡n conhecia-os bem, e faziam-lhe
todos uma grande festa.
Depois ... noite ¡amos para casa do principal, reuniamos todos
os que faziam parte desse n£cleo, e fal vamos daquilo que nos
interessava, a Revolu‡"o. J n"o tardava, e ent"o todos os
pobres do mundo seriam vingados da fome, da mis‚ria, das
humilha‡"es sofridas ao longo de tantos s‚culos.
Uma noite, em M laga, em casa do camarada Jos‚ Maria, fomos
avisados por um garoto que era filho de um deles. Vinha
ofegante, a correr, que o tinha mandado o irm"o. Que
fug¡ssemos, que o J£lio nos tinha tra¡do, vinha l a Guarda.
Mal tivemos tempo. Num instante sairam todos para a rua,
esgueiraram-se pelos becos, o Jos‚ Maria e a mulher meteram-se
na cama, apagaram-se as velas. N"o eram passados dois minutos,
bateram ... porta com pancadas que fizeram estremecer a casa
toda. Era a Guarda.
Entraram, com as botifarras a bater no ch"o com toda a for‡a,
devia ser para nos assustarem, revistaram o que quiseram, n"o
encontraram nada que comprometesse ningu‚m. Apenas os donos da
casa que estavam j deitados, e n¢s, que ‚ramos uns compadres
que andavam em viagem e ali estavam a passar a noite,
enroscados no ch"o da cozinha ao p‚ do fog"o. Foi por um triz!
Esse tal de J£lio umas duas ou trˆs semanas depois parece que
foi apanhado de noite por uma quadrilha de ladr"es, e apareceu
morto com duas facadas na barriga e uma no pesco‡o. Foi o que
constou, pelo menos...
A pol¡cia andava atr s de n¢s. Os jornais j por v rias vezes
se nos tinham referido como (r)os perigosos cabecilhas dos
movimentos insurreccionais¯.
Todos os membros do Partido eram procurados, perseguidos,
presos, dizia-se at‚ que os enforcavam de noite, nos p tios
das pris"es, ...s escondidas, sem julgamento, sem nada que n"o
fosse a pressa de se verem livres deles, de os matarem.
Assassinos!
Cap¡tulo 6
O sangue pingava para o ch"o
Por isso um dia fugimos para Fran‡a. Fomos de carruagem, de
comb¢io de mercadorias, a cavalo, a p‚.
T¡nhamos um camarada que sabia fazer papeis falsos. ramos o�
senhor e a senhora Juan Fernandez, um casal de emigrantes
esfomeados, como tantos outros, a fugir ... mis‚ria.
N"o levavamos nada, nada mesmo. Nem livros, nem panfletos,
nada que nos denunciasse. Em contrapartida, quantos sonhos
lev vamos connosco, quantos projectos!
Mart¡n pretendia reunir em Fran‡a um ex‚rcito de patriotas
revolucion rios, com eles marchar sobre Madrid, matando se
preciso fosse, a torto e a direito se preciso fosse, mulheres
e crian‡as se preciso fosse. Tomariam ent"o o poder,
instaurariam o governo revolucion rio do proletariado.
A vigilƒncia da Guarda era menos apertada a Leste dos
Pirin‚us, dizia Mart¡n, de forma que foi esse o itiner rio que
escolhemos.
Evit mos Madrid, que Mart¡n dizia que era muito perigoso.
Assim, de Sevilha fomos direitos a Valˆncia, e da¡, sempre ao
longo da costa, at‚ Barcelona, onde cheg mos numa sexta-feira
... noite.
Fic mos dois dias em casa de um primo de Mart¡n. Chamava-se
Joan Llorgat. Era alto, moreno, de cabelos ralos. N"o era
propriamente um camarada, mas tamb‚m n"o era pessoa que nos
fosse denunciar. Digamos que n"o se queria meter em apuros,
mas era um simpatizante da nossa causa.
Era pedreiro. Trabalhava nessa altura, ele e muitos outros,
numa igreja que tinham come‡ado a fazer, dedicada ... Sagrada
Fam¡lia, e dizia que dava em louco com aquilo, que parecia que
estava tudo torto, e depois ia-se a ver e afinal estava
direito.
As torres da igreja, por exemplo, faziam lembrar os castelos
dos Xiquets de Valls, que eram grupos de rapazes, ...s vezes
mais de uma d£zia deles, que se punham todos de p‚ e se
equilibravam em cima dos ombros uns dos outros, e n"o ca¡am.
O arquitecto que fazia estas estranhas coisas chamava-se
Gaudi. Nesse Domingo Llorgat levou-nos a ver o Parque Guell e
algumas casas feitas por ele, a Casa Vicens, a Casa Batll¢, a
Casa Mil . Era extraordin rio!
Misturava cimento com azulejos e ferros trabalhados e
torcidos, juntava esses materiais de forma a ir ao encontro
das formas mais simples da natureza, como um caracol ou uma
espiga de trigo, e conseguia efeitos de uma grandiosidade que
tocava o infinito! Almo‡ mos "un entrep n de pernil", que era
uma sanduiche de presunto em catal"o.
De bom grado teria ficado alguns dias mais em Barcelona, mas o
dia seguinte era uma segunda feira, Llorgat tinha de ir
trabalhar, n¢s despedimo-nos e seguimos para Paris.
Entretanto por essa altura mataram o Arquiduque
Francisco-Fernando, e estalou a Grande Guerra.
Por um lado Paris em 1914 n"o era certamente o lugar mais
seguro para se viver, mas a Pol¡cia espanhola andava atr s de
n¢s, regressar era muito arriscado, e pelo menos ali, no meio
da confus"o, sempre pass vamos mais despercebidos, e o perigo
era menor.
And mos duas semanas um bocado perdidos, quase sem dinheiro,
sem casa, sem nada, a dormir em casa de um camarada, no canap‚
da sala, um canap‚ muito velho e muito duro, todo partido,
todo aos altos e baixos, e j era um favor.
At‚ que finalmente l conseguimos arranjar qualquer coisa.
Conhecemos um homenzinho que tinha uma pocilga,
verdadeiramente nojenta, a que chamava restaurante. Ficou
combinado que Mart¡n trabalharia na cozinha, que tinha gordura
e fuligem at‚ ao tecto. Eu poderia servir ...s mesas ou tocar
piano, conforme o movimento que houvesse. Em troca cedia-nos
metade das guas-furtadas do pr‚dio, dava-nos de jantar, e
ainda pod¡amos levar as sobras para cima, para comermos no dia
seguinte ao almo‡o. Frias, que n"o havia onde as aquecer.
Era aquilo a que os franceses chamam mansarda, e n¢s chamamos
guas furtadas, de tecto esconso.
's vezes Mart¡n conseguia p"r de parte uns bocados bons de
frango, ou de carne assada, sem ele ver, e quando era assim
n"o era muito mau, mas outras vezes n"o lev vamos sen"o p"o e
uma marmita de sopa. As coisas melhores eram sempre para mim.
Eu dizia-lhe que n"o, n"o via por que motivo entre n¢s n"o
havia tudo de ser repartido, mas ele insistia, fazia quest"o
disso, obrigava-me a aceitar essa prova maior do seu amor.
Do outro lado, separado de n¢s por um tabique de madeira,
morava um velho com alguns quinze gatos. At‚ nem era
antip tico, o pior era o cheiro que os bichos deitavam, e que
empestava tudo, at‚ a nossa roupa. Passava os dias a vasculhar
os caixotes do lixo do bairro, coitado. Ainda vivia pior do
que n¢s.
Depois um dia morreu. Soltaram os gatos, arejaram aquilo tudo,
e passados uns dias veio uma velha que se mudou para l .
Era uma pobre desgra‡ada. Contava que em nova tinha sido
bailarina, mas eu creio que ter sido algo mais parecido com
prostituta.
Tinha um filho que era carteirista, ou ladr"o de casas, nunca
cheguei a perceber muito bem. J tinha estado preso v rias
vezes, e volta e meia aparecia por l com a barba por fazer e
uma cara de quem andava a fugir de algu‚m ou de alguma coisa.
Se calhar era mesmo da Pol¡cia, ou seria de outros como ele,
sabe-se l por que obscuras raz"es!
Das v rias vezes que o vi pareceu-me que trazia sempre a mesma
camisa, cada vez mais suja, meia por dentro meia por fora das
cal‡as. Tamb‚m usava sempre um bon‚ muito ensebado a cair-lhe
para os olhos, de forma que nunca lhos vi muito bem, com
excep‡"o de uma vez que veio sem o bon‚. Eram uns olhos de
quem pedia piedade e perd"o, um deles todo negro, esmurrado e
injectado de sangue.
Mis‚ria! Pobre gente aquela!
's vezes vinha tamb‚m uma rapariga ainda nova com cara de
bicho maltratado e assustado. Suponho que seria a que dormia
com ele, e provavelmente tamb‚m se juntavam para roubar, mas
n"o sei muito bem o que roubariam, ou a quem, em tempos como
aqueles, t"o dif¡ceis, em que ningu‚m tinha coisa nenhuma, e
toda a gente vivia t"o mal, por causa da guerra.
Quanto a n¢s, n"o sei, francamente, se ‚ramos felizes ou
infelizes, acho que nem t¡nhamos tempo para pensar nisso.
Acima de tudo t¡nhamos de nos manter unidos, se quer¡amos
aguentar as condi‡"es dif¡ceis, terr¡veis, que naquele momento
nos eram impostas.
A clientela do restaurante era constituida sobretudo por
soldados que tinham ficado um dia ou dois em Paris antes de
partirem para a frente de batalha, ou que tinham sido feridos
em combate, tinham recebido alta do hospital militar e gozavam
de uma breve licen‡a antes de regressarem ...s trincheiras.
Vinham sozinhos uns, outros vinham acompanhados, geralmente
com prostitutas. Bebiam muito e por vezes tornavam-se
abusadores, mas o trabalho no restaurante era naquele momento
o nosso £nico meio de sobrevivˆncia, e eu n"o me podia dar ao
luxo de perder a calma e a dignidade.
Mart¡n estava na cozinha. As coisas que ouvi e as situa‡"es
desagrad veis que se geraram e que fui obrigada a suportar
passaram-lhe ao lado a maior parte das vezes, felizmente.
O barulho que faziam era infernal, e o esfor‡o que eu era
obrigada a fazer para me manter ali a trabalhar at‚ de
madrugada era tremendo, por isso n"o me sobravam muitas for‡as
para prestar uma grande aten‡"o ao mundo exterior, aos
acontecimentos que eram comentados ... minha volta e que diziam
respeito ... pr¢pria guerra. Ainda hoje n"o percebi muito bem,
acho que foi tudo porque a Inglaterra n"o queria que a
Alemanha fosse mais poderosa no com‚rcio mar¡timo.
Para mim tudo aquilo era muito confuso. Havia a dupla e a
tripla alian‡a, a posi‡"o amb¡gua da It lia, o problema dos
Balkans, a neutralidade da Gr‚cia, as hesita‡"es do presidente
Wilson, que governava um pa¡s onde tinha gente de v rias
origens e v rias tendˆncias po¡ticas, a posi‡"o do Jap"o, as
declara‡"es de guerra que em poucos dias se cruzaram como se
fizessem parte de um complicado jogo de xadrez. At‚ em †frica
parece que andavam ... pancada!
T¡nhamos uma telefonia no nosso s¢t"o, e Mart¡n todos os dias
ouvia as not¡cias. Interessavam-lhe muito. Depois comentava
comigo que ter¡amos de adiar os nossos projectos. S¢ quando a
guerra acabasse poder¡amos pensar em p"-los em pr tica.
Naquele momento convulsivo as condi‡"es para se organizar um
ex‚rcito para marchar sobre Madrid n"o podiam ser piores.
Ainda tentou reunir um pequeno grupo, mas era muito dif¡cil,
por causa da mobiliza‡"o geral e por causa das dificuldades do
dia a dia que todos conheciamos.
's vezes sentava-me ao p‚ dele a ouvir a r dio, e foi assim
que soube que tinham descoberto uma bailarina que dormia com
os oficiais franceses e ingleses, e depois dormia com os
alem"es, e passava-lhes informa‡"es secretas sobre as
opera‡"es militares, e por causa disso fuzilaram-na.
Afinal, se eram segredos, a mim parece-me que eles, como
militares, eram quem mais obriga‡"o tinha de os saber guardar.
N"o tinham de os revelar sob nenhum pretexto.
� muito f cil para os homens, quando se sentem culpados de
alguma coisa, esconderem-se atr s das mulheres e dos seus
(r)diab¢licos poderes de sedu‡"o¯. f cil, mas n"o ‚ j� usto, nem
‚ honesto, creio eu.
Por isso n"o me parece que ela fosse a £nica culpada, nem que
eles estivessem t"o inocentes assim...
's vezes aparecia um ou outro portuguˆs. Eram raros, mas
quando apareciam sempre se davam dois dedos de conversa.
Houve um, foi j quase no fim da guerra, que me contou que
perto da terra dele, que era uma aldeia na serra de Aire,
perto de Leiria, tinham prendido uns garotos que andavam a p"r
tudo em polvorosa, que iam a um lugar, e diziam que lhes
aparecia Nossa Senhora, e falava com eles.
Outro contou-me que lhe tinha morrido a fam¡lia toda com a
pneum¢nica.
Outro ainda vinha da frente de batalha na Flandres, e contou
que o tinham chamado a meio da noite para integrar o pelot"o
que ia fuzilar um companheiro que andava a passar informa‡"es
ao inimigo, e ele obedeceu, que n"o tinha outro rem‚dio, mas
estava visivelmente perturbado. Sempre era um companheiro.
Teria feito fosse o que fosse, contava ele, para que n"o
tivesse acontecido uma coisa daquelas.
Um outro ainda vinha muito revoltado, contou-me. N"o queria
voltar para a guerra. Em primeiro lugar nem sequer tinha
querido ir para l . Era um rapaz simp tico com uns belos olhos
meigos e inteligentes.
Nesse dia n"o havia muito movimento, de forma que convers mos
um bocado. Deixou-me ficar um jornal chamado A Greve, com um
artigo da Angelina Vidal sobre a guerra, a fome... era bom que
as pessoas lessem essas coisas, dizia ele.
Pela r dio ouv¡amos os relatos das baixas nos campos de
batalha, ouvimos a descri‡"o detalhada da sangrenta batalha La
Lys, as declara‡"es dos generais, os apelos aos soldados e aos
civis, mas o meu francˆs estava longe de ser perfeito, e o de
Mart¡n era pior ainda, de maneira que quando n"o est vamos a
perceber o que diziam deslig vamos ou sintonizavamos a outra
esta‡"o.
Pela r dio ouv¡amos as not¡cias da Revolu‡"o russa e do
fuzilamento do Czar e da Fam¡lia Imperial. Mart¡n vibrava.
Levantava-se da cadeira, deixava-a cair com ru¡do, voltava a
sentar-se para ouvir o resto da not¡cia, estalava os l bios
nervosamente.
Um belo dia resolveu partir.
Que na R£ssia era mais f cil conseguir os apoios de que
precisava para fazer a Revolu‡"o em Espanha. Por outro lado as
coisas por l estavam agitadas e ainda um pouco confusas, e
eu... bastava olhar para mim, via-se logo que n"o era uma
oper ria nem uma camponesa, e as coisas podiam tornar-se
perigosas, sobretudo porque n"o fal vamos a l¡ngua, n"o
conhec¡amos ningu‚m...
Eu teria de ficar em Paris. Em menos de trˆs meses passaria a
buscar-me. At‚ hoje.
Com Mart¡n ainda eu conseguia suportar o ambiente s¢rdido
daquele restaurante. Sem ele tornava-se humanamente
imposs¡vel.
De repente, um belo dia, pus-me a fazer contas. H perto de
quatro meses que n"o tinha o meu per¡odo. Estava gr vida!
Era a £ltima coisa que eu desejava naquele momento, era algo
que n"o podia permitir-me, mas era a crua realidade!
Est vamos j no fim da guerra, que durou apenas mais trˆs
meses, mas isso eu n"o podia adivinh -lo, n"o podia sabˆ-lo
ningu‚m.
Como ‚ que eu podia ter uma crian‡a, naquele s¢t"o, sem
dinheiro, sem comida, sem Mart¡n, sem nada?
Falei com Rosalie, a rapariga que servia ...s mesas comigo.
Disse-me que conhecia uma mulher que sabia resolver esses
problemas.
Era aquilo a que chamavam uma (r)fazedora de anjos¯.
Longamente, nessa noite, me debati com a minha ang£stia. Tinha
por um lado todo o peso da minha educa‡"o, dos conceitos do
que se deve e n"o deve fazer, as minhas referˆncias uterinas,
o legado da ancestralidade feminina, maternal, da Ermelinda.
Tinha tamb‚m um medo pƒnico daquilo que iria ter de enfrentar.
E a minha m"e? O que pensaria ela? N"o, a minha m"e n"o podia
pensar nada, porque tinha morrido.
Mas a minha m"e tinha morrido para que eu pudesse nascer. N"o
tinha eu agora a obriga‡"o de fazer todos os sacrif¡cios para
p"r no mundo a crian‡a que tinha dentro de mim?
Por outro lado, a minha m"e tinha morrido porque essa tinha
sido a sua escolha? N"o, a minha m"e tinha morrido por outra
raz"o. Ela tinha morrido porque n"o tinham conseguido
salv -la. Mas se tivesse podido escolher, que escolha teria
sido a dela?
Ah, como era dif¡cil!
De repente senti alguma coisa que me ro‡ava ao de leve num p‚.
Fiz um ligeiro movimento para me virar.
Uma ratazana correu pelo soalho.
Fui.
Bati ... porta, surgiu uma matrona de rosto muito vermelho.
Expliquei-lhe em voz baixa ao que vinha. Ela mandou-me entrar.
Era uma cave escura, suja, onde tudo cheirava a uma mis‚ria
que n"o saberei descrever.
Come‡ou por me perguntar quem eu era, se era uma prostituta,
quem era o pai da crian‡a, e quanto dinheiro tinha para lhe
pagar.
Dei-lhe tudo o que tinha, que era muito pouco, e dei-lhe as
duas £ltimas libras de ouro que me restavam, e que Mart¡n e eu
t¡nhamos resolvido guardar para uma afli‡"o. Que afli‡"o podia
haver, maior do que aquela em que eu me encontrava naquele
momento?
N"o parecia muito satisfeita.
Mandou-me esperar e saiu por uma porta. Da¡ a pouco voltou com
uns poucos de ferros, agulhas, pin‡as, tesouras que colocou
sobre uma mesa e voltou a sair.
Da¡ a meia hora surgiu de novo com um panel"o, depois outro,
dois panel"es de gua a ferver. Eu n"o conseguia olhar para
ela, nem para o que fazia, mas ouvi que mergulhava os ferros
na gua a ferver. O outro panel"o era para as lavagens,
explicou ela. Mandou-me deitar sobre o div".
Eu estava aterrorizada. Siderada de medo. Medo de n"o sair
dali com vida, medo que alguma coisa pudesse correr mal, e me
mandassem para o hospital. Que explica‡"es podia eu dar? Eram
capazes de me meter na pris"o!
Mas ela n"o me deixou pensar muito tempo. O que eu tinha vindo
fazer, tinha de ser feito rapidamente. Era horr¡vel, aquela
mulher, pensava eu. Depois pensei: afinal esta mulher talvez
seja um carrasco que tenho na minha frente, mas que direito
tenho de a condenar, se fui eu pr¢pria que a procurei?
Olhei ent"o nos seus olhos, procurando neles algum resqu¡cio
de humanidade, e apercebi-me de que tamb‚m ela tinha medo.
Medo que eu morresse, medo que alguma coisa corresse mal, medo
que a qualquer momento a pol¡cia lhe irrompesse pela casa
adentro.
E eu ali, naquela situa‡"o que era de desespero mas que era
tamb‚m de dependˆncia, uma dependˆncia como nunca tinha
sentido em rela‡"o a ningu‚m, nem creio que possa voltar a
sentir.
Colocou-me um len‡ol ... volta da cintura. Eu n"o queria olhar,
mas n"o conseguia despegar os olhos das suas m"os grandes e
vermelhas. Com uma pin‡a tirou um dos ferros de dentro de
gua, enterrou-o fundo no meu corpo, senti uma dor lancinante,
de enlouquecer, e em breves segundos estava feito. O meu filho
j n"o existia.
O sangue ca¡a a jorros, ensopava o len‡ol, pingava para o ch"o
de oleado. Ela n"o parecia surpreendida. As paredes sujas
daquela cave todos os dias deviam assistir ao mesmo desespero,
... mesma sangrenta e brutal destrui‡"o de vida.
Voltei a p‚ para casa. ' minha frente, cada passo que dava
parecia uma queda num precip¡cio.
Pensava: se um dia a minha vida se modificasse, se noutras
circunstƒncias quisesse ter um filho, poderia tˆ-lo? Seria o
meu organismo ainda capaz de conceber? Teria para sempre
ficado mutilada?
No dia seguinte as dores redobraram. Tinha febre, n"o
conseguia levantar-me da cama. ' tarde apareceu Rosalie.
Trazia-me p"o e um pouco de queijo. Era tudo o que tinha
conseguido arranjar. Pousou a sua m"o sobre a minha testa e
disse-me que achava que eu tinha febre. Iria ainda nesse dia
tentar arranjar-me algum rem‚dio.
Ah, Rosalie, minha amiga!
Tinha a sensa‡"o de ter sofrido uma destrui‡"o, uma amputa‡"o,
uma perda irrevers¡vel. Esta foi uma sensa‡"o que durou v rios
dias, e se transformou naquilo a que posso chamar uma perda
continuada no tempo.
Da¡ a quarenta e oito horas estava de novo a servir ...s mesas,
mas passaram v rios meses at‚ o meu corpo se recuperar.
Quanto ... minha alma, essa... n"o creio que tenha chegado a
refazer-se nunca por completo daquilo por que passei.
E sem saber como, nunca mais fui a mesma pessoa. Creio que at‚
a confian‡a se me esbateu no olhar. J n"o me importavam as
justifica‡"es, n"o me importavam os motivos porque fiz aquilo
que fiz, mas apenas que o fiz. Naquele momento j s¢ importava
que me sentia terrivelmente mal comigo pr¢pria e com tudo o
que se tinha passado. Eu bem sei que tive todos os
justificativos do mundo, mas apesar de tudo n"o conseguia
libertar-me de um remorso terr¡vel. Injusto, mas terr¡vel.
Olhava para os soldados e pensava: se tivesse tido o meu
filho, o rosto dele poderia ter vindo a ser o de qualquer um
deles.
Resolvi ent"o alistar-me no corpo volunt rio de enfermeiras.
Sem perceber nada de enfermagem, sem distinguir uma ligadura
de uma compressa. Mesmo assim os meus servi‡os eram bem
vindos.
Mudei-me ent"o para a enfermaria militar, que funcionava
dentro de uns barrac"es de lona verde, e ali vivi em
comunidade com outras enfermeiras.
Come‡aram por me ensinar, ao longo da primeira semana, os
primeiros rudimentos, ou seja, a lavar uma ferida, a fazer um
penso, a p"r uma ligadura. Quase todos estavam muito feridos,
em estado bastante grave.
As guerras n"o se ganhavam com soldados deprimidos, explicava
o Major, e recomendava-nos que fal ssemos com eles com
carinho, mas sem nunca deixarmos de mostrar um sorriso de
coragem, com um misto de ternura e bom humor, ainda que
v¡ssemos que estavam a morrer.
De qualquer forma o meu francˆs n"o era grande coisa, de forma
que a maior parte das vezes me limitava a dar-lhes o meu
melhor sorriso enquanto lhes via a febre, lhes ajeitava as
almofadas, lhes fazia os curativos.
Alguns deles, mais espertalh"es, olhavam para n¢s com olhos de
namoro, sabendo que, vendo-os assim feridos, nunca ser¡amos
capazes de ter para com eles uma atitude mais agressiva, ou de
rejei‡"o. Mas n"o podia ser. Havia de ser bonito, se f"ssemos
a namor -los a todos!
De forma que a t‚cnica que us vamos para evitar envolvimentos
era muito simples, e resultava quase sempre:
- Est s com um ar muito maroto, tenho a impress"o que j est s
mas ‚ bom. Amanh" j podes voltar para a frente de combate.
Fechavam logo os olhos, mansos como cordeirinhos, e punham-se
a gemer, com um ar muito doente, muito sofredor.
A comida era pouca e m , mas pelo menos naquele lugar eu
exorcisava um pouco o meu grilh"o, o meu enorme sentimento de
culpa pela crian‡a cuja vida destru¡, fazia alguma coisa de
£til, para al‚m de que o cheiro a ‚ter era mais suport vel que
o cheiro a ratos que havia no meu s¢t"o, e os soldados feridos
n"o me faltavam ao respeito como faziam os soldados
embriagados.
Ao fim de um mˆs devem ter achado que apesar da minha boa
vontade a habilidade n"o era muita, de forma que me ensinaram
a conduzir e me puseram uma ambulƒncia nas m"os.
Acho que me desempenhei menos mal dessas minhas fun‡"es at‚ ao
fim da guerra, em Novembro.
Ia com uma equipe de dois enfermeiros buscar os feridos ...
frente de batalha, junto ... fronteira com a B‚lgica, para os
trazer para o hospital de campanha. Vejo e ou‡o felizmente
muito bem, e sou uma pessoa de gestos brandos e suaves, de
forma que a minha condu‡"o n"o era das piores.
Faz¡amos os percursos muitas vezes de noite, mas isso a mim
tamb‚m n"o me punha dificuldades de maior. Enfim, n"o fui
propriamente uma hero¡na de guerra, mas cumpri a minha
obriga‡"o o melhor que sabia e podia, o que j n"o ‚ mau de
todo, creio eu.
Trˆs meses depois acabou a guerra. Veio o armist¡cio e
assinaram-se uns poucos de tratados.
Que havia eu de fazer ... minha vida?
Voltar para Portugal estava fora de quest"o. N"o conseguiria
suportar a censura nos olhos do meu pai.
Ir para Moscovo ... procura de Mart¡n, sem saber uma palavra de
russo, era uma verdadeira loucura.
Ainda pensei ir at‚ Barcelona, pedir a Llorgat que me
arranjasse trabalho, mas depois achei que n"o. Afinal, mal o
conhecia!
Retomar o meu trabalho no restaurante afigurava-se-me como a
£nica alternativa poss¡vel, mas o meu est"mago, todas as
minhas v¡sceras, se revoltavam contra isso.
N"o. Havia de haver outra coisa que eu pudesse fazer, mas o
quˆ?
Voltei para o meu s¢t"o e para o meu trabalho no restaurante.
Mas sufocava! Era um verdadeiro pesadelo!
A minha vida era como um monte de fuligem negra que de vez em
quando era iluminada pelo clar"o da minha revolta.
Cap¡tulo 7
At‚ que uma noite apareceu por l um rapaz baixo e magro, com
uns olhos de um azul muito claro que contrastava com o seu
rosto bronzeado.
Chamava-se Sebastien. Tinha um nariz adunco, cabelo
encaracolado, morava em Montmartre e pintava na rua. Ainda
hoje n"o sei se teria a veia de um grande pintor, mas sei que
se punha todo, at‚ ... alma, nas telas que pintava.
Olhou para mim e disse-me que eu era exactamente o modelo de
que andava ... procura. Se n"o queria ir posar para ele. Trˆs
horas todas as manh"s. Em troca dava-me o almo‡o e dava-me a
imortalidade nas suas telas.
Aceitei. Em parte por um pouco de narcisismo, suponho eu, e
muito por causa daqueles seus olhos. Parecia que tocavam
m£sica!
Para sublimar o meu corpo, tamb‚m. Como uma f‚nix eternamente
renascida das labaredas, pela vida que matei dentro de mim e
por todas as crian‡as que n"o terei nunca, desejei, desejei
muito que o meu corpo ficasse para sempre pintado numa tela.
No primeiro dia mandou-me despir e deitar sobre uma esp‚cie de
div" que tinha perto da janela, com uns len‡ois bastante
sujos.
Em casa do meu pai as camas eram feitas de lavado duas vezes
por semana, e todas as noites vinha uma criada engomar os
folhos das dobras do len‡ois.
No atelier de Sebastien a desordem reinava um pouco por todo o
lado. Havia bisnagas de tinta de ¢leo, j meias pisadas,
espalhadas pelo ch"o, havia boi"es de vidro pelos cantos com
pinceis mergulhados em oleo de linha‡a...
Sebastien nunca conseguia tirar por completo os restos de
tinta das m"os, sobretudo das unhas, que tinham sempre tinta
entranhada ... volta. Vermelho, amarelo, verde...
Tamb‚m as suas roupas estavam todas manchadas de tinta de
cores variadas, e olhando para as suas telas quase se podia
adivinhar o que trazia vestido no dia em que pintara este ou
aquele detalhe de cada quadro.
Ao fim da manh" o meu corpo estava esbo‡ado a l pis sobre a
tela, parecendo brotar de meia d£zia de linhas mestras que se
cruzavam no centro do quadro.
Sebastien s¢ pintava de manh". Por volta do meio dia, quando o
sol desaparecia pelo canto da janela, o seu atelier ficava
mergulhado numa esp‚cie de penumbra triste e pardacenta, e os
len‡ois da sua cama pareciam mais sujos ainda.
Assim, ao longo de v rias sess"es, foi pintando o meu corpo,
foi escurecendo os contornos e as sombras do lado esquerdo,
foi iluminando o lado direito do quadro, foi-lhe dando volume
e vida.
Ia enquadrar-me numa paisagem muito especial. No Bois de
Boulogne, como uma esp‚cie de deusa da floresta, encostada ao
tronco de uma rvore, toda rodeada de folhas secas em tons de
ocre, ouro velho e castanho avermelhado.
Hoje que me lembro daquele quadro, n"o creio que o meu corpo
tivesse, no conjunto, a menor importƒncia. Era apenas um
acess¢rio no meio das folhas secas. Essa ‚ uma afronta que n"o
poderei perdoar nunca a Sebastien.
Terminada a sess"o de pintura almo‡ vamos, e o que com¡amos
conseguia ser pior ainda que as sobras do restaurante.
Depois fic vamos at‚ ... noite a conversar at‚ serem horas de eu
voltar para o meu trabalho no restaurante.
Outras vezes ia pintar para as margens do Sena.
Recusava-se a aderir a uma escola de pintura, fosse ela qual
fosse. N"o era cubista, nem futurista, nem dada¡sta, nem
surrealista. Era apenas ele, Sebastien.
A sua pintura era algo que nascia da incr¡vel for‡a an¡mica de
que era dotado, e n"o tinha a ver com nenhum factor exterior a
ele pr¢prio.
Um belo dia despiu-se, o seu corpo veio para junto do meu, e
naquela penumbra do atelier nos am mos por detr s da sombra
dos espessos reposteiros corridos.
O seu corpo era bem musculado, a sua pele era macia, o seu
h lito era quente e os seus bra‡os seguravam-me com firmeza.
Sabia muito bem o que queria, e queria coisas completamente
loucas, que eu nem sequer imaginava que se pudessem fazer.
Com ele mergulhei na mais completa das deprava‡"es. Fiz coisas
perfeitamente incr¡veis que n"o sei nem quero contar, mas o
mais estranho de tudo ‚ que n"o me arrependi nunca, nem por um
segundo.
Nunca tive em rela‡"o ao meu corpo nenhum sentimento de culpa,
como o n"o tive nunca em rela‡"o ...s fantasias que viv¡amos na
nossa intimidade. Por uma raz"o apenas. Seria a pervers"o,
mas... era delicioso!
Foi assim que um belo dia deixei passar as horas e n"o fui
trabalhar.
No dia seguinte de manh" estava despedida.
Subi a buscar as minhas coisas. N"o me devo ter demorado um
quarto de hora.
' sa¡da deitei um £ltimo olhar ...quele restaurante pomposamente
chamado "Au Boeuf ... la Mode". Desde que l cheguei, em 1914,
n"o creio que aquela cozinha tenha sido lavada uma £nica vez.
Sa¡ a porta. C fora Sebastien sorria-me. Tanto melhor, dizia
ele. J era mais que tempo de me mudar para o atelier, onde
ali s, aos poucos e poucos, me fui sentindo cada vez melhor.
Passei a lavar-lhe os len‡ois ao menos uma vez por semana, dei
um jeito naquilo tudo, arrumei-lhe as tintas, os boi"es dos
pinceis, as paletas e tudo o mais a um canto, em cima de uma
mesa, e ele parecia encantado. J n"o precisava de andar de
gatas pelo ch"o ... procura de um l pis ou de uma r‚gua.
Deitei-lhe fora um monte de roupa velha que ele n"o usava e de
porcarias in£teis que tinha espalhadas por todo o lado, at‚
uma roda de bicicleta cheia de ferrugem! A isso n"o achou
tanta gra‡a.
As suas telas, que at‚ a¡ estavam amontoadas a um canto umas
contra as outras, pendur mo-las pelas paredes, do ch"o ao
tecto. Foi r pido, f cil, e desempecilhou metade do atelier,
que n"o era propriamente muito grande. At‚ na casa de banho,
por cima do lavat¢rio e da banheira, pendur mos quadros.
Para al‚m do espa‡o que ganh vamos, esta solu‡"o tinha a
grande vantagem de os podermos admirar vinte e quatro horas
por dia.
As paredes cinzentas do atelier ganharam uma nova vida. Nos
primeiros dias adormec¡amos e acord vamos um tanto
surpreendidos, quase assustados com aquela s£bita
transforma‡"o, como se estiv‚ssemos rodeados do espectro de
estranhas e silenciosas presen‡as, mas depois de nos
habituarmos era uma sensa‡"o muito agrad vel.
A cor preferida de Sebastien era o dourado. T¡nhamos pendurada
na nossa frente uma tela enorme verdadeiramente alucinante.
Eram labaredas pintadas sobre um fundo negro. Labaredas
vermelhas, amarelas, laranja, douradas.
Eram milhares de centelhas de brilho dourado a relampejar na
noite.
Eram presen‡a e ausˆncia, eram velas acesas na escurid"o, para
a celebra‡"o de um qualquer ritual misterioso.
Era um incˆndio, um deslumbre, uma verdadeira orgia de
labaredas, e era ouro l¡quido a escorrer pela escurid"o da
noite.
Era como um solo de trompete que de repente irrompesse do
fundo de uma orquestra.
Sebastien tinha algumas teorias curiosas sobre arte, sobre
pol¡tica e sobre muitas outras coisas.
Defendia a teoria de Marx, que dizia que (r)Os poetas s"o uns
originais, dever deixar-se-lhes seguir o seu pr¢prio caminho,
n"o dever"o aplicar-se-lhes as mesmas normas que ...s pessoas
comuns.¯ Entendia que esta regra n"o era v lida s¢ para os
poetas, mas para todos os artistas em geral.
Um belo dia, est vamos sem dinheiro, entr mos num restaurante
em Montparnase. Comemos e bebemos tudo o que nos apeteceu, e
fugimos sem pagar a conta. Demos uma corrida, mistur mo-nos na
multid"o, e s¢ par mos uns poucos de quarteir"es mais adiante.
Encost mo-nos a um gradeamento de ferro, ofegantes, e rimos
como eu nunca tinha rido na minha vida.
N"o era nem por sombras um iletrado.
Defendia a teoria de Robert Browning, o culto do her¢i
vencido, e defendia que o ideal de gl¢ria n"o estava na
perfei‡"o mas sim no g‚nio.
Era ainda um admirador incondicional de Walter Pater e de
Oscar Wilde, defensor da Arte como pleno justificativo de si
pr¢pria, a (r)Art for art's sake¯.
Entendia tamb‚m que a Arte n"o tem de ser verdade mas sim
verosimelhan‡a. Para ele n"o importava a realidade, importava
a mensagem on¡rica.
Defendia ainda que nada nos fazia viajar t"o longe no campo da
Arte como o maravilhoso e o fant stico.
Se o espectro de um sapo - dizia ele - viesse de outra gal xia
num tapete voador ... procura da pedra filosofal, chegasse a uma
casa assombrada, passasse pelo desespero de perder a sua
identidade para se metamorfosear em pr¡ncipe, lutasse com uma
armadura sem cavaleiro, cheirasse uma orqu¡dea m gica e se
visse transportado para uma orgia sexual com a pr¢pria m"e,
poderia dizer-se que o autor de semelhante hist¢ria estava a
delirar, poderiam discutir-se os pressupostos est‚ticos,
‚ticos e morais, mas nem por isso deixava de ser uma bel¡ssima
hist¢ria cheia de poesia.
Tinha ainda muitas outras teorias.
Entendia que os cegos eram os verdadeiros iluminados, os que
desconheciam as aparˆncias enganadoras do mundo, e conheciam
uma outra realidade secreta e muito mais profunda das coisas,
n"o acess¡vel ao comum dos mortais.
Entendia que o adult‚rio, o triƒngulo amoroso, era a base do
casamento, que s¢ assim poderia sobreviver.
Donde se deduzia que as chamadas (r)coisas s‚rias¯ em si mesmas
n"o tinham nenhuma consistˆncia, nem eram elas que mantinham
viva uma sociedade, uma vez que precisavam do sustent culo de
outras coisas muito mais inteligentes, como a aud cia, a
fantasia, a insubmiss"o, a criatividade generosa.
"Que o Bom Deus me livre e guarde de algum dia vir a ser uma
pessoa s‚ria." - dizia ele rindo. - "As pessoas mentem, mentem
sempre, mentem todos os dias. Eu, pelo menos, minto. Porque as
verdades, as verdades absolutas da vida, o que quer que seja
que isso signifique - dizia ele - s¢ s"o capt veis em perfeito
e completo estado de bebedeira. S"o coisas demasiado ¢bvias
para precisarem de ser ditas, e ainda por cima n"o tˆm,
geralmente, a menor das importƒncias, ou a menor das gra‡as.
Deixa que o mundo inteiro se esboroe ... nossa volta em teorias
obtusas e complicadas, beija-me apenas!"
Como poderia eu n"o amar Sebastien?
Um belo dia chegou ao atelier muito satisfeito. Tinham-no
convidado a exp"r os seus quadros numa das galerias mais
conceituadas de Paris. Era o momento da prova de ferro, dizia
ele com os olhos muito brilhantes. Era a hora da gl¢ria, ou
era o fracasso total.
Passados alguns dias veio com uns poucos de amigos e levaram
as telas num carro puxado a cavalos.
Estiveram cr¡ticos, jornalistas, pessoas de qualquer forma
ligadas ... arte, e o acolhimento que teve foi bastante bom.
Elogiaram-no muito, compararam-no a este e ...quele...
Not¡cias nos jornais ‚ que foram s¢ duas, e pequenas, mas
mesmo assim j foi bom.
Vendeu quinze telas. Foi mais do que n¢s esper vamos.
Alguns dias depois chegou a casa ... hora de jantar com um outro
rapaz um pouco mais novo. Era italiano, veneziano, como ele
pr¢prio fazia quest"o de esclarecer.
Chamava-se Stefano. Era tamb‚m pintor de rua, em Montmartre, e
chegou com duas garrafas de vinho, a cantar com uma bela voz
de tenor
-Vino, vino eccolo qua!
Vino, vino, tira camp...!
Era um bonito rapaz, delicado, diria mesmo um pouco
amaneirado, embora vestisse com sobriedade. A sua £nica
extravagƒncia era um enorme len‡o de seda vermelha que trazia
amarrado ao pesco‡o com um volumoso n¢ e duas pontas compridas
como duas setas vermelhas.
Quando o vi pela primeira vez imaginei que esse len‡o seria um
sinal, algo que o distinguia politicamente, ... semelhan‡a do
que faziam dois ou trˆs dos que haviam sido os meus camaradas
de Sevilha.
Mas n"o. Era um sinal, sim, mas tinha a ver com a sua arte.
Era o rosso veneziano, explicou-me ele, o vermelho de
Tintoretto, Veronese, Tiziano. O vermelho dos tectos do
Pal cio dos Dodges.
Tinhamos de ir a Veneza, dizia ele, tinhamos de ir conhecer a
cidade mais extraordin ria do mundo.
- Chi non s'innamora a Venezia, non s'innamora mai pi£! Ed si
non e vero, e bene trovato!
Dizia ele, rindo em seguida uma gargalhada sonora.
As telas de Sebastien tinham rendido algum dinheiro. Est vamos
portanto numa situa‡"o de relativa largueza, por isso nessa
noite, debaixo do entusiasmo do vinho branco, que estava
fresco, era delicioso e nos subiu um pouco ... cabe‡a,
combin mos que sim, ir¡amos a Veneza. Partir¡amos na semana
seguinte.
Entretanto, e enquanto part¡amos e n"o part¡amos, Stefano
come‡ou a aparecer quase todas as noites.
Cantava e cozinhava. Sabia fazer um prato de f¡gado que era
partido aos bocadinhos e depois era estufado com muita cebola,
e comia-se com uma esp‚cie de pudim de milho a que chamava
polenta. Eram pratos venezianos, e n"o eram maus de todo. J a
m"e dele os fazia, e av¢ tamb‚m.
E partimos ent"o para Veneza. Fomos de comboio, em segunda
classe. Sebastien achava prefer¡vel n"o gastarmos muito
dinheiro enquanto n"o soub‚ssemos, por exemplo, quanto ir¡amos
ter de pagar pelo Hotel, quanto ir¡amos gastar nas refei‡"es.
Creio ter sido esse o momento em que pela primeira vez o
des
prezei. Havia nele um sentimento pequeno-burguˆs de
prudˆncia e poupan‡a que me p"s completamente doente. Uma
viagem de recreio ou se faz com conforto ou n"o se faz.
Aproveitei as horas que durou a viagem para dormir, para
descansar bastante. Aben‡oada seja esta minha natureza que, se
por um lado n"o me deixa nunca dormir muito, ou muito
profundamente, por outro me permite adormecer onde e quando me
apetece, at‚ num comboio em andamento.
Tenho uma vaga ideia de o comboio ter parado na fronteira, e
de ter vindo um pol¡cia italiano pedir os passaportes. ' noite
comi um caldo de galinha e mais qualquer coisa, nem sei o quˆ,
na carruagem que funcionava como bar. Tirando isso toda a
viagem se resumiu a um barulho cadenciado e mon¢tono que me
embalava docemente.
De manh" cheg mos a um s¡tio chamado Mestre. Santa Maria! Como
os italianos s"o barulhentos logo de manh"!
A nossa mala foi levada por um homem de blusa cinzenta que a
atirou para cima de uma barca onde j estavam algumas vinte ou
trinta, todas encavalitadas umas em cima das outras, e eu a
pensar que n"o era poss¡vel que n"o ca¡sse ... gua. Mas n"o
caiu. Quando cheg mos ao hotel j ela l estava, ... nossa
espera.
Os pais de Stefano eram gente pobre, explicou ele, n"o tinham
condi‡"es para nos receber.
Por isso ficamos alojados naquilo que no prospecto vinha
anunciado como um pal cio do s‚c XIV transformado em Hotel,
com todas as comodidades modernas, a trezentos metros da Pra‡a
de S. Marcos.
Era de facto um velho pal cio, n"o h d£vida, s¢ que os
quartos que nos deram a n¢s deviam ser as antigas pocilgas.
Afinal eram as cavalari‡as. Quase que adivinhava...
T¡nhamos uma janela de onde se via a ponte dos suspiros, mas
n¢s mantinhamo-la fechada, n"o s¢ por causa dos mosquitos, mas
porque ... noite o panorama era verdadeiramente assustador.
Mesmo em frente havia um outro velho pal cio com os dois pisos
de baixo completamente abandonados e em ru¡nas, com aspecto de
serem o melhor dos esconderijos para ratazanas e malfeitores.
Passe mos de g"ndola e n"o pag mos. O gondoliere ainda era
mais ou menos primo de Stefano. Era curioso o esp¡rito de clan
que aquela gente conservava!
Stefano contou-nos a hist¢ria do le"o de S.Marcos, levou-nos a
visitar o Pal cio dos Dodges com o famoso cavalo pintado no
tecto que parece deslocar-se, cavalgando na nossa direc‡"o,
seja qual for o ponto do sal"o em que nos encontremos. Stefano
parecia muito satisfeito, Mostrava-nos todas estas coisas e ia
cantarolando alegremente:
- Daghe di taco, daghe di punta,
Quanto ‚ buona sor Assunta...
Vimos a fachada de alguns antigos pal cios, a C d'Oro, a C
Pesaro e outras, subimos ao magn¡fico campanile, vimos a
Bas¡lica de S. Marcos com os seus mosaicos e a Palla d'Oro,
toda cravejada de pedras preciosas.
Era de facto uma cidade extraordin ria. Em ru¡nas, a
afundar-se, e contudo... magn¡fica!
No dia seguinte fiz uma outra descoberta espantosa, as
m scaras venezianas. Havia-as em papel mach‚, em porcelana e
at‚ em cristal, alusivas ... Commedia del'Arte e a muitas outras
coisas. Uma delas, a do m‚dico da peste, creio eu, tinha um
nariz igual ao de Sebastien, mas eu n"o lhe disse, ele n"o ia
achar gra‡a nenhuma.
Havia-as que representavam as coisas mais variadas, desde o
Sol e a Lua at‚ ...s esta‡"es do ano. Havia-as decoradas com
flores e folhas secas, com dourados, com missangas... Havia um
Arlequim em vidro espelhado que era de uma beleza que n"o tem
descri‡"o. Custava uma pequena fortuna.
Havia junto ... ponte do Rialto alguns rapazes que as pintavam ...
m"o representando quadros c‚lebres, le"es, p ssaros,
borboletas, notas de m£sica, faziam Bacos, gueixas,
Cle¢patras, representavam as fantasias mais espantosas e a sua
imagina‡"o parecia n"o conhecer limites.
Nem que passasse o resto dos meus dias a calcorrear aquelas
ruas, subindo e descendo pontes, eu me sentiria saciada de
tanta beleza.
E foi assim que uma bela tarde cheguei ao Hotel. No corredor,
enquanto procurava a chave do quarto, ouvi uma gargalhada de
Stefano, seguida da voz de Sebastien:
- C'est pas vrai, jamais je ne l'ai aim‚e!
Entrei no quarto e vi... aquilo que quereria n"o ter visto
nunca.
Sebastien levantou-se de um salto, e tapou o sexo com a colcha
vermelha da cama. Para quˆ?
Stefano exclamou:
- La Madoska!
Tinham ca¡do todas as m scaras.
Sebastien nunca me amara.
No dia seguinte de manh" regressei sozinha a Paris.
N"o era o que existia entre Sebastien e Stefano que me
incomodava. Gostar de rapazes era um direito seu, e n"o me
deixava incomodada ou sequer surpreendida. N"o era nada que eu
ignorasse. A sua rela‡"o com Stefano tinha sido para mim
perfeitamente evidente desde o primeiro dia, e francamente,
n"o me incomodava nem um bocadinho. O assunto era entre eles,
a mim era-me completamente indiferente, n"o me tocava sequer.
O que me ofendia, me ultrajava, me feria profundamente, era a
forma ign¢bil como ele me havia mentido ao longo de tanto
tempo.
Sebastien sempre me fizera crer que o meu lugar era de uma
verdadeira imprescindibilidade na vida dele, e que as rela‡"es
com rapazes n"o retiravam nada, rigorosamente nada, ao amor
que sentia por mim. Sebastien jurara que me amava, e eu
acreditara nele. Afinal...
- Jamais je ne l'ai aim‚e...
Uma mentira ‚ uma coisa horr¡vel e desprez¡vel, ‚ a £nica
coisa que n"o sei perdoar.
Nessa noite ainda me tentou convencer de que eu era uma
esp‚cie de hero¡na grega, o meu estatuto de excepcionalidade
n"o me admitia nenhuma esp‚cie de sentimentos mesquinhos.
Dizia-me que o amor e o ¢dio s"o coisas que depressa se
esquecem, e que a vida era isso mesmo, uma grande desilus"o.
Podia ter-lhe perdoado se quisesse, mas n"o perdoei, n"o vou
perdoar nunca.
A minha voca‡"o n"o ‚, nunca foi, e recuso-me a aceitar que
possa vir a ser a da infeliz ateniense, reduzida ...s
intermin veis horas de espera pelo regresso do meu her¢i,
vindo... quem sabe... de algum Banquete.
Cheguei a Paris disposta a de algum modo refazer a minha vida.
Pintaria... daria li‡"es de piano... ao fim e ao cabo havia de
haver alguma coisa que eu pudesse fazer.
Entretanto n"o tinha dinheiro. N"o pude, ao longo de toda a
viagem, comer uma sandu¡che sequer.
Dirigi-me ao Consulado de Portugal. Achei que era a £nica
atitude inteligente a tomar. Eles haviam de me ajudar.
Fui recebida por um funcion rio mais ou menos am vel que me
disse que nunca conhecera uma pessoa com tanta sorte.
Tinha justamente sabido de umas pessoas endinheiradas que
andavam ... procura de uma preceptora para a filha, que lhe
ensinasse boas maneiras, um pouco de piano, um pouco de
desenho, um pouco de inglˆs. Era um lugar que parecia feito ...
medida para mim.
O sal rio era pequeno, mas como n"o gastava dinheiro nem em
alojamento nem em refei‡"es...
O pai era engenheiro, tinha sido um dos que tinham trabalhado
com Eiffel, a construir a famosa torre que tanta pol‚mica
tinha gerado em Paris.
Moravam num palacete em Chaillot. N"o me tratavam propriamente
mal, mas n"o deixavam passar uma oportunidade de me fazer
sentir que o tempo dos velhos aristocratas tinha acabado.
Metade de n¢s t¡nhamos morrido com Lu¡s XVI no cadafalso, a
outra metade t¡nhamo-nos arruinado com a Revolu‡"o Industrial.
Agora o mundo era deles, dos burgueses com dinheiro. Quanto a
n¢s... tinhamos de nos contentar com o papel que eles
entendessem por bem atribuir-nos. Professores de piano, de
l¡nguas, de boas maneiras... e isto era se n"o quis‚ssemos
morrer de fome. Como disse, nunca me trataram propriamente
mal, mas eu sentia nas mais pequenas coisas uma frieza feita
de novo riquismo misturado com algum despeito.
Eram talvez umas dez horas da noite quando bati ... porta
daquela casa. ' minha espera estava uma criada para me
conduzir ao meu quarto. Era um quarto interior, mas pelo menos
n"o cheirava mal. Ali s, naquele momento, e apesar de toda a
vida ter sofrido de um pouco de claustrofoia, eu n"o estava em
posi‡"o de poder escolher. Qualquer coisa, at‚ um quarto sem
janela, era melhor do que dormir na rua.
Deitei-me sobre a cama e lembrei-me de Miss Davidson, pensando
que talvez n"o fosse m ideia se tentasse parecer-me um pouco
com ela. Estiquei os dentes da frente para fora, achei que
devia estar igual a ela, com cara de coelho, e ri-me.
Adormeci nessa noite em Chaillot a pensar no que seria feito
dela, ao fim de todos aqueles anos.
No dia seguinte fui apresentada ... minha pupila.
Chamava-se GisŠle. Sete anos gordinhos e um pouco lentos de
entendimento.
N"o tinha nos dedos a agilidade e o (r)nervo¯ suficientes para
algum dia dominar com mestria as teclas de um piano, mas nos
dois meses que l vivi consegui ensinar-lhe o que ‚ uma escala
de m£sica e consegui p"-la a tocar os primeiros acordes do Fr�
Elise que me pareceu um trecho suficientemente f cil para ela
come‡ar.
Ensinei-lhe a cantar o alfabeto em inglˆs e os Three Blind
Mice, orientei-lhe alguns esbo‡os simples a l pis e a carv"o,
ensinei-lhe os meus (r)modos aristocr ticos¯, como a m"e fazia
quest"o de sublinhar, como por exemplo a pegar numa ch vena de
ch sem espetar o dedo pequenino.
Era uma crian‡a um tanto desajeitada, mas capaz de gestos
enternecedores, e quem sabe, se l tivesse ficado mais algum
tempo, talvez me tivesse afei‡oado a ela.
Tamb‚m naquela casa se ouvia r dio, e foi assim que um dia
ouvi a not¡cia da morte de Sid¢nio Pais, (r)O Bem Amado¯, como
lhe chamavam.
Os dias naquela casa eram tristonhos. A £nica coisa que me
dava alegria era o bel¡ssimo piano que tinham no sal"o. Assim,
terminado o meu dia de trabalho, sentava-me e tocava, tocava
agora para meu pr¢prio prazer, e muitas vezes ao ser"o aquela
fam¡lia de novos ricos ignorantes, enfatuados e arrogantes
convidavam amigos que vinham s¢ para me ouvir tocar.
Nunca foram capazes de me dizer muito obrigado.
Cap¡tulo 8
Um dia, ainda n"o eram passados dois meses, vieram-me chamar.
Tinha uma visita. Era o Primeiro Secret rio da Embaixada de
Portugal em Paris que desejava falar-me. Estava ... minha espera
l em baixo no sal"o.
Era um homem de bastante idade mas ainda direito e muito
aprumado, alto e forte, cuidadosamente penteado, de bigode
revirado para cima, vestia um fato escuro e camisa de peitilho
engomado, que era uma coisa que j n"o se usava h mais de
vinte anos.
Tinha o aspecto de uma pesoa s‚ria, ... moda antiga, todo muito
lavado, engomado, escovado, perfumado, todo ele a luzir da
ponta dos cabelos ... ponta das botinas.
Tinha sido incumbido pelo advogado da fam¡lia, o Dr Mayer, de
me participar a morte do meu pai e de me entregar uma carta.
Ainda se lembrava, h muitos anos, de ter conhecido muito bem
o meu av", pai do meu pai, e por isso tinha feito quest"o de
vir pessoalmente.
Fiquei at¢nita, sem fala!
O consul entregou-me o envelope lacrado no qual imediatamente
reconheci o timbre do meu pai e a sua caligrafia regular,
aberta, generosa, com as mai£sculas cuidadosamente desenhadas.
Quantas recorda‡"es me cruzaram o esp¡rito naquele momento!
Despedi-o rapidamente. Por nada deste mundo ofereceria a um
estranho o espect culo do meu sofrimento.
S¢ quando me vi de novo sozinha, fechada na intimidade do meu
quarto, ‚ que abri o envelope. Tremiam-me as m"os sem que o
pudesse evitar.
Minha Querida Filha,
Quero que saibas em primeiro lugar que h muito conhe‡o o teu
paradeiro, e que se nada fiz para me aproximar de ti, todos
estes anos esperei pelo teu regresso. Ter-te-¡a recebido de
bra‡os abertos.
Quero que saibas tamb‚m que os pecados do amor s"o aqueles que
aos meus olhos mais facilmente devem ser perdoados. Como n"o
te perdoaria eu a ti?
Entra na posse da tua heran‡a, e lembra-te para sempre do teu
Pai
Deitei-me sobre a cama e ali fiquei algumas horas, sem me
mexer. Que estupidez! Se tivesse sabido que ele me tinha
perdoado, nem ele nem eu ter¡amos vivido a dolorosa solid"o
dos £ltimos tempos. Agora j n"o interessava, j nada
interessava.
Quando dei por mim tinha ca¡do a noite. Foi ent"o que senti
vontade, uma vontade imensa de chorar, e ali fiquei,
misturando l grimas quentes com mem¢rias de infƒncia.
Como desejaria tˆ-lo vivo, ali junto de mim, voltar a ser
menina, ouvir a sua voz grave, sentar-me no seu colo,
contar-lhe que tinha comido um ovinho da Lili, mostrar-lhe os
meus desenhos, e tantas outras coisas que foram afinal os
£nicos momentos verdadeiramente felizes da minha vida.
Na semana seguinte parti para Portugal. Se o meu pai, ao
contr rio do que eu julgava como certo, n"o me havia
deserdado, n"o via motivo para n"o aceitar a minha heran‡a.
N"o via motivo para desprezar mil e duzentos hectares de
corti‡a que o meu pai queria que fossem meus.
Sentia uma vontade grande, muito grande, de voltar a ver a
minha casa, as minhas terras. Por isso, chegada a Lisboa,
rumei directamente para a herdade.
Tomei primeiro uma diligˆncia at‚ vora. Comigo viajava um�
padre que ressonou o tempo todo, e uma m"e com duas crian‡as
irrequietas.
Seguia tamb‚m um rapaz de vinte e poucos anos, bastante feio,
de cabelo curto e sobrancelhas cerradas. Lia um livro, de vez
em quando levantava os olhos, olhava pela janela, via as horas
de forma a exibir um pouco o bel¡ssimo rel¢gio antigo de ouro
que trazia preso ao bolso do colete com uma grossa corrente de
ouro, suspirava enfastiado e voltava a mergulhar na sua
leitura.
Tinha o ar de jovem acabado de formar que regressava a casa
contrariado, obrigado pela fam¡lia, provavelmente de casamento
mais ou menos combinado com alguma prima Leoc dia, irritante e
burra.
M‚dico seria talvez, ou advogado. ¡a talvez abrir consult¢rio.
Arrancado ... cidade, e quem sabe, arrancado aos bra‡os dos
amores mais picantes de alguma Marion corista ou de alguma
Rosa cantadeira, encafuado ... for‡a na prov¡ncia, a sua vida
n"o prometia vir a ser outra coisa para al‚m de um longo t‚dio
sem fim at‚ ... morte. N"o disse uma £nica palavra durante as
v rias horas que durou a viagem.
Tudo isto seriam fantasias minhas, mas pelo menos enquanto me
entretinha a romancear sobre a vida do passageiro desconhecido
que tinha na minha frente, passava o tempo e sobretudo
conseguia ir adiando o momento, que sabia pr¢ximo, em que
teria de enfrentar as minhas pr¢prias emo‡"es. Evitava ter de
pensar no meu pai e no meu doloroso regresso a casa.
Chegada a vo� ra, ao p‚ da igreja de S. Francisco, consegui,
n"o sem alguma dificuldade, contratar um homem com uma carro‡a
que aos trancos e barrancos l me conduziu at‚ ... herdade. E
cantava, com uma voz nasalada, arrastada, nost lgica:
- Menina est s ... janela...
Cheguei ... noitinha. Paguei ao homem, pedi-lhe que me levasse a
mala at‚ ... porta de casa, ele assim fez e foi-se embora.
Como era grande e bonita a minha casa! Nem eu me lembrava j !
Todos os anos o meu pai costumava mand -la caiar de novo, e
ficava branca, de um branco que fazia doer os olhos.
Por um momento vi-me sozinha, naquele silˆncio, parada
defronte da porta.
Ao longe no horizonte levantava-se a lua, uma lua cheia,
imensa, como na noite em que tinha partido.
A porta estava fechada. Atravessei o p tio at‚ ...s casas da
gente da herdade, bati na primeira e veio uma mulher.
Perguntei-lhe se sabia quem tinha a chave.
Ela n"o parecia surpreendida por me ver.
- O seu paizinho, menina, disse-me que a menina havia de
aparecer por c .
Que era a Jacinta, filha do tio Francisco, se n"o me lembrava
dela. T¡nhamos brincado juntas em crian‡as. Que sim, que me
lembrava, mas que estava muito cansada da viagem, no dia
seguinte falar¡amos.
O tio Francisco era o nosso pastor. Tinha veia de fil¢sofo.
Disse-me um dia uma coisa curiosa que me deu que pensar ao
longo da vida. Que n"o entendia porque ‚ que as pessoas viviam
a vida sempre a correr. S¢ se era para chegarem mais
depressa... ... morte!
Nunca mais poderei esquecer o momento em que, ... luz da vela
que me deu a Jacinta, e ap¢s uma ausˆncia de quinze anos,
voltei a entrar naquela casa.
Junto ... porta da rua l estava o mesmo velho m¢vel escuro,
enorme, que o meu pai contava que antigamente servia para as
pessoas dormirem l dentro.
Estava tudo como dantes, s¢ faltava o meu pai. E que vazio!
Como era forte o cheiro que a ausˆncia dele deixara no ar!
Parecia-me vˆ-lo, com o seu roup"o de seda da China e as suas
barbas de velho marinheiro.
Tinha uma grande biblioteca que usava como escrit¢rio. L
passava horas esquecidas, sentado ... secret ria, a escrever as
suas cartas, com uma pena sempre muito bem aparada, e a tratar
dos seus neg¢cios.
Escrevia, escrevia... o que escreveria ele? Depois pegava num
dos seus sobrescritos forrados a papel de seda azul escuro,
endere‡ava-o, fechava-o cuidadosamente, tirava o anel do dedo,
acendia uma vela, soprava o f¢sforo, derretia lentamente
alguns pingos de lacre, humedecia o anel com o seu bafo
quente, e s¢ ent"o, com um gesto r pido e firme, lacrava
finalmente o sobrescrito.
Era uma opera‡"o que demorava alguns minutos, mas no Alentejo
tem-se tempo para tudo. Para olhar as estrelas, para morrer de
t‚dio e para lacrar a correspondˆncia.
Outras vezes punha-se a olhar pela janela, e assim ficava
muito tempo, parado, muito direito, sem dizer nada. Quando
ficava naquele estado n"o prestava muita aten‡"o ao que eu
dizia ou fazia, por isso eu tamb‚m n"o lhe dizia nada, mas
deixava-me ficar ali, junto dele, muito quieta.
Nesses momentos eu apercebia-me de uma vaga tristeza que
pairava no ar. Agora sei que eram os momentos em que se
lembrava da minha m"e. Sentava-me ent"o num cadeir"o de couro,
e punha-me a ler. Hoje penso que talvez aqueles silˆncios
for‡ados de tantas horas tenham contribuido para que eu
crescesse com este meu temperamento melanc¢lico.
Ao fim de quinze anos, de regresso ... minha casa, no escrit¢rio
do meu pai, como sempre, tudo parecia estar no seu lugar.
Sobre a secret ria, o tinteiro chinˆs, ainda com restos de
tinta seca no fundo, e as penas muito bem aparadas. A £nica
novidade era uma caneta de tinta permanente.
Sentei-me ... secret ria. Do lado direito, para minha surpresa,
junto ao tinteiro, estava uma B¡blia encadernada a vermelho.
Tinha uma flor seca a assinalar uma das p ginas. Por um
momento pensei que estivesse ali a marcar uma mensagem para
mim. A par bola do filho pr¢digo. Seria? Abri-a cuidadosamente
mas foi sobre os salmos do Rei David que os meus olhos
pousaram:
Senhor, o meu cora‡"o n"o se orgulha
nem os meus olhos s"o altivos
n"o vou atr s das grandezas
nem de prod¡gios que me excedam.
O meu pai ter-se-ia tornado crente?
Sa¡ da biblioteca e entrei no quarto dele. Cheirava um pouco a
tabaco. Grandes modifica‡"es se tinham dado ao longo daqueles
anos. Depois da minha partida o meu pai tinha-se tornado
fumador.
Rapidamente deitei uma vista de olhos ...s salas e ... casa de
jantar. L estavam os talheres do meu pai, D. Jo"o V, pesados,
com o nome dele gravado - Henrique - N"o comia com outros.
L estava tamb‚m a sua garrafa de cristal facetada para onde
decantava o Vinho do Porto que se bebia nos dias de festa.
O meu pai tinha algumas teorias engra‡adas. Dizia por exemplo
que com o Queijo da Serra e o Vinho do Porto, respectivamente
o melhor queijo e o melhor vinho do mundo, n"o compreendia
porque ‚ que os portugueses continuavam a ser um povo triste,
eternamente a suspirar por gl¢rias long¡nquas e prazeres
estrangeiros.
Esta teoria parecia-me a mim duplamente engra‡ada, porque
afinal, ele pr¢prio n"o tinha ido casar com uma inglesa?
Em nossa casa ...s refei‡"es s¢ se bebia gua. O meu pai dizia
que o vinho estragava o paladar. Tinha de ser muito bom, e
bebido s¢ de longe em longe.
Naquilo que comia, como ali s em tudo o resto, era requintado
e exigente. As suas camisas era a Ermelinda quem lhas engomava
a preceito, ao longo de tardes inteiras, com um fervor quase
religioso. Era a £nica capaz de satisfazˆ-lo.
E foi mergulhada nestas recorda‡"es que entrei finalmente no
meu quarto.
A minha cama l estava, com o dossel em veludo e damasco
vermelho. Estava feita, com len‡ois de folhos engomados.
Quando eu era menina a Ermelinda ia-me deitar, e depois
trazia-me sempre um copo de leite morno e biscoitos, e acendia
a lamparina de azeite debaixo do crucifixo de prata. Ficava
acesa toda a noite, e era uma luz muito doce, que me fazia
sonhar.
Uma noite, era eu muito pequena, mas lembro-me como se fosse
hoje, acordei. Levantei-me da cama e fui olhar pela janela.
As cortinas da janela do meu quarto eram de cambraia cor de
rosa. Afastei-as. Era Ver"o. L fora brilhava uma lua enorme,
branca, redonda, e milhares e milhares de estrelas brilhavam
tamb‚m. Era lindo!
Abri ent"o a janela de par em par, e ali fiquei um longo
momento a olhar para a imensid"o do c‚u, a escutar a noite, a
pensar que aquelas estrelas todas podiam ser pessoas que j
tivessem morrido, e qual seria a da minha m"e, e se eu
pr¢pria, quando morresse, viria a ser uma estrela como
aquelas.
Estas recorda‡"es da minha infƒncia e da minha adolescˆncia
eram t"o claras, t"o n¡tidas, que olhei para a mesinha de
cabeceira e quase estranhei n"o ver o copo de leite e os
biscoitos que a Ermelinda me levava em menina.
Deitei-me. Da janela via as estrelas, tal como quando era
menina. Dormi toda a noite de um sono s¢.
Sonhei que estava na herdade, debaixo do castanheiro, a olhar
pela janela para dentro do meu quarto, a ver a sombra das
folhas projectadas na parede, a dan‡arem o seu triste e
intermin vel bailado.
Na contra-luz aproximava-se Mart¡n. Do outro lado vinha a
Ermelinda, com um copo de leite e dois biscoitos. Eu n"o
queria beber o leite, e ent"o disse-lhe que estava quente, e
ela respondeu:
- N"o est , menina, pode beber, est s¢ quebrado da friura.
De repente olhei para o c‚u, e por detr s de uma nuvem surgia
o meu pai com uma express"o de tristeza e de censura. Segurava
nas m"os a sua eterna ch vena de ch em porcelana de SŠvres,
branca, com uma risquinha dourada.
Entretanto a Ermelinda olhou para cima, viu o meu pai, deitou
as m"os ... cabe‡a e desatou a chorar e a gritar que a culpa era
toda dela, e do outro lado Mart¡n cantava baixinho:
- De pie oh vitimas del hambre...
Depois vi que passava por ali um rio, mesmo defronte da casa,
e estava todo coberto de folhas douradas ... superf¡cie. Olhei
outra vez para o c‚u, e ent"o ‚ que reparei que estavam o sol
e a lua ao mesmo tempo, e eram iguais ...s m scaras que eu tinha
visto em Veneza.
A seguir Mart¡n chegou ao p‚ de mim, e trazia a carro‡a das
panelas e n"o dizia nada, ria-se, e depois come‡ou a assobiar.
Atr s dele vinha um garoto a gritar que o J£lio nos tinha
tra¡do, e vinham uns poucos de policias a cavalo, e na cabe‡a
traziam enfiado um capuz como os dos penitentes da prociss"o,
e traziam dois panel"es de gua a ferver, e ferros, uns ferros
horrorosos, e vinham enterr -los no meu corpo, e havia sangue
a pingar para o ch"o, e por todo o lado cheirava a incenso,
como cheirava dentro da Catedral de Sevilha, e depois chegou
uma g"ndola, e o gondoliere tinha o nariz de Sebastien, mas
era Stefano, e cantava com a sua voz de tenor.
- Chi se ne frega, chi se ne frega...
Vinha-nos buscar, e Sebastien foi com ele. Eu dormitava,
embalada pelo doce trotar de uma carruagem de comboio, e de
repente quando dei por mim estava sozinha, toda nua, deitada
no meio das folhas do Bois de Boulogne.
De manh" acordei em sobressalto, com gente a bater ... porta.
Era a Jacinta, que vinha com mais duas ou trˆs mulheres saber
se precisava de alguma coisa. Que n"o, que se precisasse de
alguma coisa lhe diria.
Uma delas era a Mariana. Eu lembrava-me bem dela, por causa
das circunstƒncias tr gicas em que lhe tinha morrido a m"e,
trinta anos atr s.
A Albertina era uma das mulheres l da herdade. Era uma mulher
ainda nova, alta, roli‡a, corada. Tinha na minha frente a
Mariana, e parecia que a estava a ver a ela.
N"o se chegou a saber muito bem como foi, mas parece que o
marido andava para o Ribatejo a trabalhar nem sei em quˆ, e
ela tinha ficado sozinha com a filha, que era da minha idade.
Depois parece que houve um outro homem que come‡ou a ir com
ela aos carac¢is, e as pessoas come‡aram a falar.
Que andavam entendidos os dois, e que quando o marido
soubesse...
E o marido voltou, e soube, e fartou-se de lhe dar pancada, e
no dia seguinte a mesma coisa, e todos os dias, e depois um
dia ela n"o deve ter aguentado mais, meteu pela boca abaixo um
frasco inteiro de veneno para os ratos.
Eu ainda era muito pequena, ningu‚m me contava estas coisas,
mas fui ouvindo uns bocados aqui, perguntando outros ali, e l
acabei por conseguir reconstituir a hist¢ria.
As pessoas calavam-se, dava a impress"o que todos, ao fim e ao
cabo, se sentiam um tanto culpados pelo que tinha acontecido.
O meu pai na altura ainda mandou chamar a guarda. Eles falaram
com umas tantas pessoas, e depois encolheram os ombros e
foram-se embora.
N"o creio que algum dia possa vir a esquecer a express"o de
dor no rosto da m"e dela, a tia Adelaide.
Agora, ao fim de todos aqueles anos, ali estavam aquelas
mulheres, loucas de curiosidade de me voltarem a ver. N"o lhes
podia levar a mal. Era t"o natural!
Quando parti, n"o s¢ devo ter surpreendido tudo e todos, como
devo ter sido, se calhar durante meses, o tema de todas as
conversas maledicentes. Provavelmente ter havido gente a
afirmar que h muito suspeitava do que se estava passando.
Mentira.
A £nica pessoa que sabia do que se tinha passado era a
Ermelinda, e essa, tenho a certeza, nenhuma for‡a humana
poderia ter-lhe arrancado uma palavra s¢ que fosse contra mim.
Era ela, de toda aquela gente, a £nica que verdadeiramente
desejava voltar a ver, abra‡ar com todas as minhas for‡as,
todas as minhas saudades. Mas a Ermelinda tinha morrido, ¡a
para cinco anos. De velha.
Nessa manh" do meu regresso, vagueando pela casa um pouco ao
acaso, dei comigo defronte da estante do meu pai, a tal da
portinha de vidro, dos livros arrumados com a lombada para
tr s. J n"o estava fechada ... chave, e assim desvendei
finalmente o segredo do meu pai e das leituras proibidas da
minha adolescˆncia. L estavam algumas obras do E‡a, A
Rel¡quia e o Crime do Padre Amaro, l estavam a Moll Flanders,
Les Diaboliques, os poemas er¢ticos de Bocage, eram ao todo
cinco prateleiras. Peguei num, perfeitamente ao acaso. Les
Liaisons Dangereuses.
Sentei-me no velho cadeir"o de cabedal e comecei a folhe -lo
lentamente, lendo uns excertos aqui, outros ali.
Era uma colectƒnea de cartas cruzadas entre v rias pessoas,
que aos poucos iam desvendando uma estranha intriga. Uma
mulher, para se vingar de um ex-amante, p"e-se de acordo com
um outro ex-amante para maquinar a perdi‡"o de uma rapariga
ing‚nua. Esse amigo, em vez de seduzir a rapariga, decide
seduzir uma outra, uma burguesa de moral a condizer.
Eram ent"o estas as coisas que o meu pai n"o me deixava ler!
Certamente n"o quis sen"o proteger-me das teias complicadas,
diab¢licas, daquilo a que chamaria talvez os amores mundanos,
ou coisa parecida, mas hoje assiste-me, creio, o direito de
perguntar:
N"o teria sido muito mais £til para mim se n"o me tivessem
feito crescer dentro de uma nuvem de p‚talas de rosa?
Se aos vinte anos eu tivesse uma no‡"o mais clara do que ‚ o
amor, talvez a minha vida tivesse sido outra. Assistia-me,
pelo menos, o direito de escolher os meus pr¢prios erros,
liberta de toda a inocˆncia, de toda a ignorƒncia, creio eu.
Quando fiz sete anos a Ermelinda tinha-me dado uma pequena
arca alentejana, toda branca, com flores pintadas em cores
garridas. Foi onde passei a guardar as minhas coisas ¡ntimas.
N"o tinha chave, mas o meu pai n"o ia l mexer. Primeiro
porque sabia que era l que eu guardava os meus pequenos
tesouros de crian‡a, os meus segredos de adolescente. Depois
porque tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
S¢ nessa tarde reparei nela. L estava, no seu lugar de
sempre, no ch"o, debaixo da mesinha de cabeceira.
Abri-a. L dentro um retrato dos meus pais, as minhas agulhas
de fazer ponto de cruz, um saquinho de berlindes, duas fitas
de cetim de um azul j muito desmaiado, devo tˆ-las usado a
prender a minhas tran‡as, um raminho de flores secas, a minha
boneca de pano, que me tinha feito a Ermelinda, as outras
tinha-as dado todas no dia em que completei quinze anos,
algumas folhas de papel dobradas, com a tinta muito sumida e
muito esborratada. Uma delas era uma receita de um bolo, as
outras n"o se conseguiam ler. Um santinho da minha primeira
comunh"o, o programa do Teatro de S. Carlos, da noite em que o
meu pai me levou a assistir ao Sans"o e Dalila, a Cartilha de
Jo"o de Deus, o cart"o que o gerente do hotel tinha mandado
p"r no meu quarto juntamente com uma caixa de bombons, o
recorte de jornal com a not¡cia da implanta‡"o da Rep£blica
que trazia uma fotografia do Rei D. Manuel. Eram os tesouros
que na noite da minha fuga tinha deixado para tr s.
Por baixo de tudo isto, para minha surpresa, o soneto, o tal
dos meus catorze anos.
� poss¡vel que o meu pai o tenha lido, e o tenha deixado ali
para que eu o encontrasse. Se assim foi, talvez lhe tenha sido
mais f cil compreender-me, a mim e aos motivos que me levaram
a partir. Afinal, n"o foi por causa de Mart¡n. Foi por causa
do amor.
Numa gaveta da secret ria do meu pai encontrei um desenho
feito por volta dos meus cinco, seis anos. Era o fundo do mar,
um mar onde n"o faltava um polvo aos quadradinhos, uma sereia
de longos cabelos muito loiros e uma arca aberta cheia de
moedas de ouro e colares de p‚rolas pendurados, o mar que eu,
no Alentejo, nunca tinha visto, e que a minha imagina‡"o me
fazia fantasiar daquela forma exuberante. A mesma imagina‡"o
delirante que mais tarde me faria sonhar com o amor, desej -lo
com todo o ardor dos meus dezoito anos inquietos. No verso do
meu desenho, escrita pela m"o do meu pai, uma frase de Oscar
Wilde, um seu conceito de arte.
(r)Art has flowers that no forest knows of, birds that no
woodland possesses¯
Oscar Wilde
Entretanto, vagueando por aquela casa silenciosa, eu sentia
que para al‚m do meu pai, para al‚m da Ermelinda, faltava
alguma coisa mais, e eu n"o conseguia perceber o que era.
Claro! Faltava o meu piano. A Jacinta explicou-me depois que o
meu pai o tinha dado para o orfanato de vora. Era-lhe�
demasiado doloroso, a cada momento, olhar para ele e imaginar
que um dia, sabia-se l quando, eu poderia regressar.
Se isso viesse a acontecer, tinha ele dito, logo havia de se
comprar outro, muito melhor e mais bonito!
Entretanto a not¡cia do meu regresso deve ter-se espalhado
como um rastilho, porque n"o tinham passado dois dias,
apareceram-me l na herdade os meus primos de Portalegre...
Vinham fazer uma visita de pˆsames pela morte do meu pai,
disseram. Mas na realidade tamb‚m eles vinham saciar a sua
curiosidade m¢rbida. Vinham ver como seria a cara de algu‚m
que fugiu de casa com um criado. Vinham contar quantas rugas o
sofrimento teria sulcado no meu rosto.
A minha tia, principalmente, olhava-me e parecia surpreendida
com a minha pele que de facto era, e ainda hoje ‚, a de uma
rapariguinha nova. Surpreendida e... ro¡da por uma pontinha de
inveja.
Falavam comigo cheios de cerim¢nia, e sobretudo muito pouco ...
vontade. Devem ter-me censurado durante anos a fio.
L me contaram que o meu tio Afonso tinha morrido afogado no
rio h uns dez anos atr s, com uma grande bebedeira de
gua-p‚. Tirando isso estava tudo como dantes.
A minha prima Maria da Gra‡a tinha casado com um not rio,
estava a morar em Beja, tinha trˆs crian‡as.
Os meus primos mais novos estavam menos irrequietos mas tinham
o mesmo ar de camp¢nios que sempre lhes conheci. O Z‚ Domingos
ia casar, ainda perguntou timidamente se eu n"o ficava at‚
Setembro, que fazia muito gosto em me convidar para o
casamento. Est vamos em Abril!
Insistiram muito para que os fosse visitar antes de regressar
a Paris. Sabia-se l se nos tornar¡amos a ver, e sempre ‚ramos
fam¡lia, dizia a minha tia. Santa hiocrisia! Como se isso
significasse alguma coisa!
Entretanto a minha decis"o estava tomada. Venderia a herdade.
Tinha combinado com o homem da charrette que viria buscar-me
na ter‡a feira, por isso no domingo arrumei uns trˆs ou quatro
caixotes com algumas coisas, o anel do meu pai, que mandei
ajustar ao meu dedo e nunca mais tirei, o tinteiro e as penas
dele, a caneta de tinta permanente, as condecora‡"es da
marinha, o sinete, o crucifixo do meu quarto, alguns outros
objectos de prata, fotografias, um dos naperons de renda de
Miss Davidson, a minha arca de madeira pintada com o seu
valioso conte£do, as minhas aguarelas e alguns outros objectos
com mais significado para mim. Os livros ficaram empacotados
tamb‚m. Seguiriam depois.
Na segunda feira de manh" ainda andei por ali a despedir-me
daquilo tudo.
C fora estava o velho celeiro, o lugar onde havia amado
Mart¡n, e estavam as cavalari‡as, que me recordaram a minha
adorada Rosmaninha.
Mas n"o valia a pena ficar sentada numa cadeira a lembrar-me
de coisas que o tempo tinha levado, h muito se tinham
desvanecido como fumo, e agora me voltavam dolorosamente ao
pensamento.
Nessa tarde n"o tinha que fazer, a Jacinta l me arranjou um
homem com uma carro‡a, e sempre fui at‚ Portalegre.
A minha tia recebeu-me com uma satisfa‡"o exagerada e
despropositada que cheirava a falso por todos os lados. Fazia
comigo uma cerim¢nia que me irritava e me deixava incomodada.
L foi ... cozinha dar as suas ordens, e de facto, ainda n"o
eram cinco horas, foi servido um ch com algumas vinte
guloseimas diferentes. Era p"o de l¢, eram barrigas de freira,
eram rosquinhas, era toucinho do c‚u, era castanhada, era
pudim do Abade de Priscos, eram merengues, eram rebu‡ados de
ovos, era um exagero que tocava o rid¡culo.
Havia uma pessoa que queria apresentar-me. Era um professor
que tinha chegado h pouco tempo. A minha tia queria que eu
visse que tamb‚m se davam com pessoas educadas e instru¡das.
Mandou o meu primo mais novo com um bilhete a convid -lo para
o ch .
Ele veio, com um ar de quem tinha ficado surpreendido com o
convite, tinha vindo por uma quest"o de boas maneiras, mas no
fundo n"o sabia muito bem o que estava ali a fazer.
Era um rapaz baixo e magro. Parecia muito t¡mido. Chamava-se
Jos‚ Maria e era imensamente am vel. Convers mos um pouco,
falei-lhe do meu interesse pela poesia, e a partir da¡ a
conversa tornou-se fluida, simples e natural, como num
reencontro entre velhos amigos. ' despedida pediu-me o meu
endere‡o de Paris. Que me daria not¡cias.
Com efeito, umas trˆs ou quatro semanas ap¢s o meu regresso a
Paris, recebi um pacote pelo correio. Era um livro chamado
Poemas de Deus e do Diabo com uma dedicat¢ria muito bonita.
V rias vezes o li e reli, com a sensa‡"o de sempre algo
encontrar de novo. Santo Deus, que vulc"o de sentimentos e
d£vidas, ang£stias e ambiguidades. Como entendi a poesia deste
rapaz, o seu drama, que ‚ afinal o meu, a sua busca do
infinito, a sua necessidade de evas"o.
Eram coisas que de tal forma entendia que lamentava n"o ter
sabido escrevˆ-las eu pr¢pria.
Este meu ar,
Estas vagas m"os ca¡das,
Estes vagos olhos fitos,
Este vago riso alheio,
N"o sei que foi quem mos deu !
...
O que sofria,
Dava-o por bem sofrido e por bem pago,
Pensando que era grande quem bebia
(Como eu bebia) o derradeiro trago.
Jos‚ R‚gio
Cap¡tulo 9
Um pouco entorpecida, tentando n"o sentir os solavancos da
diligˆncia, fechei os olhos, como se estivesse a ver um filme,
e relembrei a minha primeira vinda a Lisboa. H quantos anos
tinha sido? H dezanove, vinte anos. Eram tantos que me
pareciam uma eternidade.
Entretanto, absorta nos meus pensamentos, est vamos a chegar a
Lisboa e eu nem me apercebia.
Era perto da hora do almo‡o. Ali mesmo na esta‡"o tomei um
fiacre e segui directamente para o escrit¢rio do advogado do
meu pai, na Rua da Concei‡"o.
Do outro lado da sua secret ria D. Jos‚, enorme, toda em pau
santo, o Dr. Mayer estava muito velho, mas era bem o mesmo que
eu conhecera vinte anos atr s. Limpava cuidadosamente as
lentes dos ¢culos redondos e sorria-me.
Tratava-me por Senhora Marquesa. Havia de facto herdado o
t¡tulo, mas era a primeira vez que assim me tratavam. Para os
meus primos eu era a prima Beatriz, para a gente do Monte era
ainda a menina.
Foi tudo mais f cil do que eu havia previsto. Expliquei-lhe
que queria vender a herdade. Fi-lo meu procurador, adiantou-me
cinquenta contos de reis que era uma soma mais do que
suficiente para as minhas primeiras despesas.
Despediu-se de mim com uns olhos morti‡os com muita mal¡cia
escondida por detr s dos ¢culos, e algo me diz que este foi
para ele um chorudo neg¢cio. Deve ter ganho muito mais do que
o que seria razo vel, mas isso a mim pouco me importa,
francamente.
Decidi-me ent"o a passar uns dias em Lisboa, que n"o parecia a
mesma cidade. Eram os autom¢veis, dezenas deles, mas n"o era
s¢ isso. Eram as pessoas, que j n"o tinham aquele ar de gente
fina da prov¡ncia a passear ao Domingo. Tinham agora um ar
distante e atarefado, passavam distra¡das ou apressadas, j
n"o perdiam tempo a cumprimentar qualquer desconhecido.
Viam-se mulheres sozinhas na rua, um costume adoptado durante
a Grande Guerra, por necessidade, mas que n"o deixava de ser
uma novidade, e at‚ se via uma ou outra pelos caf‚s.
Cheguei ent"o ao Avenida Palace. Fui atendida pessoalmente
pelo gerente, muito polido, mas sem conseguir disfar‡ar
completamente uma pontinha de surpresa.
- E o nome de V. Exa.?
- Beatriz Vit¢ria Robertson de Noronha Almeida e S , Marquesa
da Amendoeira.
Parecia cada vez mais intrigado. Se a Minha Excelˆncia era
filha de Sua Excelˆncia o Senhor meu Pai.
N"o vi motivo para lhe dar muitas explica‡"es. Nem ele mas
pediu. Apenas um documento que me identificasse.
- Far o favor de se sentir em sua casa, minha senhora, e se
alguma coisa n"o estiver a gosto, V. Exa. ter a bondade de me
comunicar imediatamente.
A seguir fez uma v‚nia, um sorriso am vel que me fez sentir um
pouco melhor, despediu-se e chamou o groom que seguiu ... minha
frente, levando a minha mala de viagem numa m"o e a chave do
quarto na outra.
Nessa tarde devo ter gasto mais de cinco contos de reis s¢ em
vestidos, abafos, luvas, sapatos, chap‚us, perfumes, batons,
quinquilharias.
Por volta das oito horas chegaram as minhas compras. Deviam
ser mais de trinta caixas. Eu imagino o que o pessoal do Hotel
deve ter cochichado pelos cantos. Olhavam para mim com uns
olhos de curiosidade...
Os dois grooms que ajudaram a trazer as caixas para o meu
quarto n"o acreditavam. Cinco mil reis de gorgeta!
Lisboa estava muito diferente. Havia hoteis, restaurantes,
teatros, cinemas, enfim, a pacata cidade que eu conhecera em
Novembro de 19O7 tinha dado lugar a um centro buli‡oso e
cosmopolita.
Est vamos no ano de 1926, o clima de instabilidade gerado pelo
golpe de estado parecia ter acalmado um pouco e as pessoas
estavam divididas entre a consterna‡"o pela morte de Rodolfo
Valentino e a admira‡"o por um jovem formado em Coimbra
chamado Oliveira Salazar. Tinha o apoio do pr¢prio General
Carmona. O jornal que comprei no dia seguinte num quiosque do
Rossio fazia-lhe um vigoroso elogio. Que era ele que ia
levantar a na‡"o, salv -la do caos financeiro, mas eu n"o sei.
Pela fotografia mais parecia um seminarista de prov¡ncia, e
sobretudo nos seus olhos n"o vi inteligˆncia nem brilho.
Trazia a not¡cia de um atentado contra Mussolini, falava de
uns boatos que corriam sobre a fuga da pris"o de um aldrab"o
qualquer chamado Alves dos Reis, que tinha falsificado uma
encomenda de notas ao Banco de Inglaterra, o jornal n"o
adiantava muitos detalhes sobre o assunto, mas explicava que
boato era falso, o homem continuava preso.
Falava tamb‚m de uma actriz chamada Maria Alves que tinha
aparecido morta, tinham prendido um industrial do norte
chamado Augusto Gomes. Parece que tinha sido um ajuste de
contas, uma hist¢ria qualquer de ci£mes, mas era uma hist¢ria
horrorosa. Ele tinha-a estrangulado e tinha atirado o corpo
para o meio da rua, pelo menos era o que dizia o jornal.
Procurei a p gina dos Teatros. No Nacional ia uma coisa
chamada A Valsa da Meia Noite. Francamente, n"o me apetecia
nada. No Teatro do Gin sio ia O Az, com a actriz Palmira
Bastos. No S. Carlos ia A Rosa do Adro, no S. Lu¡s a Roma
Galante, a Companhia Joaquim de Almeida representava uma coisa
chamada Fox Trot com a Teresa Gomes, e no Avenida estava a
Companhia Satanela-Amarante com uma pe‡a chamada P"o de L¢.
Decidi-me afinal por uma revista chamada Cabaz de Morangos,
que estava em cena no Sal"o Newparth, na Rua Nova do Almada, e
conclu¡ uma coisa curiosa: ao fim de todos aqueles anos, os
portugueses continuavam os mesmos. Era espantoso!
Com o clima pol¡tico, social e econ¢mico que se vivia, e que
n"o podia ser mais inst vel, num pa¡s mal aproveitado, mal
governado, com gente a passar fome, com a carne a 9.6OO o
quilo, sa¡am satisfeitos a trautear a £ltima cria‡"o de
Deolinda de Macedo:
Maria!
S"o teus olhos azeitonas
Cachopa!
S"o teus l bios quais cerejas
S"o teus seios cachos de uvas que abandonas
' vindima desta sede que os deseja...
Havia de ser em Paris!
Na Rua do Carmo comprei um livro com as caricaturas de Rafael
Bordalo Pinheiro. Era espantoso de arg£cia e sentido cr¡tico!
Estava j de sa¡da, quando deparei com um livro cujo t¡tulo
chamou a minha aten‡"o. Era o Livro de M goas de Florbela
Espanca, uma alentejana melanc¢lica como eu, que como eu amou
o amor e tudo lhe sacrificou.
Nessa noite, no meu belo quarto do Avenida Palace, comecei a
folhe -lo. Era espantoso! Parecia que o que ali estava escrito
tinha sido sentido e escrito por mim.
No dia seguinte voltei ... livraria. Ainda consegui comprar um
outro livro seu, Soror Saudade, mas quanto ao seu endere‡o o
empregado n"o me sabia informar. Como gostaria de a ter
conhecido!
A minha dor ‚ um convento, H l¡rios
Dum roxo macerado de mart¡rios
T"o belos como nunca os viu ningu‚m...
...
Oh minha vƒ, in£til mocidade
trazes-me embriagada, entontecida!...
Duns beijos que me deste noutra vida
trago em meus l bios roxos a saudade.
Florbela
Espanca
Nesse dia ainda fui a uma matin‚e no cinema Condes, ver um
filme chamado Notre Dame de Paris com Lou Chaney num espantoso
desempenho do papel de Quasimodo.
' sa¡da sentei-me numa esplanada a tomar um c lice de Madeira
e a fumar um cigarro, perante os olhos arregalados do
empregado.
Ainda nesse dia resolvi dar um passeio de carro el‚ctrico. Os
assentos eram de palhinha, nem por isso muito confort veis,
mas consegui um bom lugar, c atr s, ao p‚ da janela.
A certa altura desenrolou-se uma cena engra‡ada e pitoresca.
' minha frente vinha uma varina. N"o trazia canastra, mas o
carrapito, o cord"o de ouro e o cheiro a peixe n"o deixavam
margem para d£vidas.
Era uma mulher alta e forte, corada, a¡ para uns quarenta e
poucos anos.
Ao lado dela sentou-se um rapazola a¡ dos seus dezoito anos,
baixinho, magrinho, de bigodinho revirado, chap‚u de palhinha,
¢culos redondos e jornal debaixo do bra‡o. De repente come‡ou
a assoar-se, a fungar, a olhar para a varina pelo canto do
olho.
- Olhe l , ¢ freguˆs, n"o est a gostar do cheirinho a
carapau? Olhe que ele era do fresquinho, ouviu? Tomara-o
vosseeme‡ˆ! Ora o fin¢rio! Olhe que eu posso cheirar a peixe,
sou peixeira, sim senhor, com muita honra, mas se vosseme‡ˆ
pagou o bilhete, fique sabendo que eu tamb‚m paguei!
Entretanto, enorme, ocupava o banco quase todo. Ele, muito
esticado no seu cantinho, n"o dizia nada, nem se atrevia a
respirar, e a certa altura disse:
- Oh senhor revisor, venha aqui dar-se ao respeito, faz favor,
que as pessoas como eu, que at‚ j sou bacharel, n"o andam nos
carros el‚ctricos para serem tratadas desta maneira!
- Ora vejam l ! Deve pensar que eu tenho medo do revisor! Olhe
que eu dou-lhe com o peixe nas ventas, fique sabendo que levo
aqui na alcofa uma cabe‡a de pescada, que era para levar ...
minha filha, e chicharro, por isso ‚ s¢ escolher. E o
berbig"o, quer ver o cheirinho que ele deita? Olhe que ‚ do
fresquinho! E tamb‚m trago chaputa, mas essa ‚ pr sua m"e, e
bˆbeda, ‚ o que ela deve ser!
Aben‡oada! Eu estava deliciada com tudo aquilo, e mesmo sem
querer lembrei-me do E‡a.
"Deste arroz com favas, nem em Paris, Melchior amigo!"
Pois ‚, varinas destas, que eu saiba, tamb‚m n"o h nem em
Paris nem em mais lado nenhum do mundo.
Ela olhava para todos os lados, como que a certificar-se da
aprova‡"o dos presentes. Dei-lhe o meu sorriso mais caloroso.
Entretanto tinha chegado ao meu destino. Apeei-me, consolada,
e ela atr s de mim. Torceu a rodilha, p"s a alcofa ... cabe‡a, e
l foi a chinelar pela rua fora.
Nessa tarde fiz ainda uma outra coisa. H anos que tinha
vontade de consultar uma cartomante.
N"o foi dif¡cil. Ali mesmo na Rua do Carmo havia uma tabuleta
em metal amarelo gravada a preto.
Mme BROUILLARD
vidente
Subi um lan‡o de escadas, por acaso bastante sujas, bati ...
porta e entrei.
Fui recebida por uma mulher gorda com o cabelo todo aos
caracolinhos de um amarelo muito amarelo e umas sobrancelhas
muito arqueadas, desenhadas a preto. Tinha os l bios pintados
com baton vermelho j um bocado esborratado, tinha dois sinais
pintados, um deles do lado esquerdo, logo abaixo das rugas dos
olhos, o outro do outro lado, junto ... asa do nariz. Tamb‚m
tinha as unhas pintadas de cor de rosa forte, com o esmalte j
muito estalado.
Estava vestida com uma saia preta e roxa e uma blusa amarela
cheia de n¢doas. Cal‡ava umas meias pretas de l" com um grande
buraco numa delas, e uns chinelos cinzentos de fazenda. Pelos
ombros trazia um xaile preto de l", muito velho.
Por todo o lado se sentia um cheiro que era uma mistura de
mofo, sujidade, perfume ordin rio, vinho azedo e toucinho
ran‡oso.
Toda a sala estava envolta numa esp‚cie de penumbra
misteriosa. Devia ser para impressionar.
Em cima de um m¢vel estava um casti‡al com uma vela de cera
amarela, e na janela tinha uns reposteiros de veludo de um
verde j muito sumido, muito comido pelo sol, e com aspecto de
nunca em dias de vida terem sido lavados, escovados ou sequer
arejados.
Mandou-me sentar e perguntou-me ao que vinha.
Disse-lhe que tinha vindo para ela me dizer coisas sobre a
minha vida.
Perguntou-me ent"o o dia e a hora do meu nascimento, e
disse-me que o meu signo era o escorpi"o, e que nunca me
esquecesse que o escorpi"o ‚ o £nico animal que em situa‡"o de
desespero se suicida com o seu pr¢prio veneno. Disse-me depois
que o meu metal era o cobre, a minha pedra a safira azul, que
se eu fosse uma rvore seria uma ac cia ou uma palmeira, se
fosse uma flor tanto podia ser uma violeta como uma cam‚lia,
uma orqu¡dea ou at‚ uma esterl¡cia. Se fosse um animal tanto
podia ser uma loba como uma cor‡a, uma guia como um rouxinol.
Depois disse que me ia deitar o Tarot, sentou-se na minha
frente, tirou um baralho de cartas de dentro de uma gaveta,
benzeu-as, fez uma reza r pida que n"o percebi, mas n"o me
pareceu nenhuma ora‡"o que eu conhecesse, e come‡ou a p"r as
cartas uma a uma em cima da mesa como se fossem as doze horas
no mostrador do rel¢gio.
Tinham uns bonecos esquisitos, representavam pessoas em
atitudes estranhas, com desenhos ... volta.
Depois fez mais duas rodadas com outro baralho semelhante ao
das cartas normais de jogar.
Apontou ent"o para as primeiras cartas. Eram a Sacerdotisa (a
profetisa), a Estrela (o guia espiritual), e o quatro de
ouros, que significava uma profecia.
A seguir vinha o Sumo Sacerdote. Come‡ou a falar-me de um
homem mais velho, o boneco tinha umas barbas como as do meu
pai, e falou-me em boas palavras de portas de casa adentro, e
de sobressaltos em horas de comidas e bebidas, e eu a
lembrar-me da £ltima noite em que jantei ... mesa com o meu pai,
e at‚ entornei um copo de gua. De um lado tinha o Eremita,
que significava o eterno retorno, e do outro tinha a Roda da
Vida e o dez de ouros, que era muito dinheiro.
A seguir estava o Carro da Vida, seguido do cinco de ouros e
do seis de espadas. Era uma vit¢ria sobre uma doen‡a, e eu a
lembrar-me do sanat¢rio.
Falou-me do Diabo, que era a subvers"o dos valores anteriores
(era Mart¡n!). Tinha sa¡do rodeado pela Lua, a lua cheia da
noite em que fugi, e do Sol, a luz que ele veio trazer ... minha
vida. Tinha tamb‚m o as de paus, que eram fandangos (era fazer
amor), e o nove de espadas, que significava em dia ou v‚spera
de igreja (tinha sido num Domingo!)
Mostrou-me depois o Louco, representado pela letra hebraica
Shin (s¢ podia ser Sebastien) que vinha rodeado pelo Mago, que
era o g‚nio, pelo Enforcado, que representava o sacrif¡cio
supremo, pelo valete de copas, pelo quatro de ouros, pelo
cinco de paus e pelo dois de copas. Eram instintos perversos,
ausˆncia, separa‡"o, as guas do mar. O dois de copas era uma
carta, not¡cias de longe. Era espantoso! Como ‚ que ela podia
sabar? O valete de copas era a imagem de um jovem rei. D.
Sebasti"o?
Talvez porque o meu rompimento com Sebastien estivesse ainda
muito fresco na minha mem¢ria, pedi-lhe que me falasse um
pouco mais sobre a letra Shin. Explicou-me que estava
associada ao Louco, a 21¦ carta do Tarot. Era uma estranha
personagem que n"o podia impedir-se de caminhar ... deriva, sem
conhecer o seu destino. Era um peregrino sem rumo em
permanente estado de del¡rio e ˆxtase, incapaz de ouvir outra
voz que n"o a da sua pr¢pria natureza amb¡gua que acabava
geralmente por conduzi-lo ... auto destrui‡"o e ao caos.
' medida que escutava estas palavras, dei comigo a pensar no
destino de Sebastien, um outro D. Sebasti"o. Era f cil
imaginar Sebastien de gib"o de seda e escarpins bordados, e de
repente, estranhamente, lembrei-me da imagem que a Ermelinda
tinha pendurada na parede do quarto, o tal S. Sebasti"o do
pano vermelho amarrado ... cintura, como Sebastien em Veneza, no
momento em que se cobriu com a colcha vermelha da cama. O
santo todo ele escorria sangue, com o corpo crivado de setas
iguais ...s pontas ca¡das da echarpe vermelha de Stefano, iguais
...s labaredas do quadro que t¡nhamos pendurado no atelier, na
parede em frente ... cama.
Sebasti"o m rtir. A letra S era aqui a espiral do fumo
sacrificial. E era muitas outras coisas. Sebastien e Stefano,
os dois SS deitados, como o leve ondular da gua nos canais de
Veneza. O silvo da serpente que me mentiu, que sinuosamente se
havia esquivado a dizer-me a verdade que me devia afinal.
Perguntei-lhe ent"o o que me podia dizer sobre o futuro.
De novo me deitou as cartas, desta vez em quadrado. Tinha o
cavaleiro de ouros, o as de espadas e a Morte, significavam um
menino de ouro, de novo fandangos, l grimas, um cavalo e a
morte, mas n"o a minha.
Em seguida saiu a Dama de copas, o as de Copas e o Mundo. Era
uma mulher jovem, um afecto, uma trai‡"o, excessos de v rias
ordens e os prazeres do mundo.
Por fim voltou a baralhar as cartas, e fez um £ltimo quadrado
com uma carta no centro, e no seu rosto estampou-se uma
express"o de espanto. Nunca tinha visto nada assim. Tinha
sa¡do o trˆs de cada um dos quatro naipes, e no centro a Torre
de Babel.
Disse-me ent"o que eram quatro os amores da minha vida,
ligados ao n£mero trˆs ou a um triƒngulo.
A Estrela, que era a primeira carta que tinha sa¡do, era o
momento do meu nascimento, e a Torre de Babel, que tinha sido
a £ltima, era o desmoronar de tudo, era o fim da minha vida,
n"o me sabia dizer quando seria, mas mesmo que soubesse n"o me
dizia.
Lembrei-me ent"o da Ermelinda, e do que ela contava sobre a
noite em que eu tinha nascido. Um quadrado de trˆs pontas, n"o
era como ela dizia?
Perguntei-lhe se podiam ser trˆs estrelas cadentes em
triƒngulo e uma profecia, ela olhou para a Sacerdotisa, para a
Estrela, para a Torre a cair e disse que sim.
Eram talvez umas seis horas da tarde.
Sa¡ para a rua e respirei um pouco de ar puro.
Hoje, trˆs anos passados, cumpridas todas as profecias, n"o
creio que v viver muito mais...
Desci um quarteir"o da rua, devagarinho, a olhar para as
pessoas, para as lojas, para os trens, para os autom¢veis, e
foi ent"o que resolvi subir ao cimo do elevador de Sta Justa.
Que beleza!
Ainda l fiquei um bom bocado, a ver o Rossio, o Terreiro do
Pa‡o, o Convento do Carmo, a pensar na minha vida. Foi ent"o
que me lembrei: que seria feito da minha amiga Eug‚nia Telles
da Gama? No dia seguinte havia de tentar descobrir a morada
dela, talvez at‚ lhe fizesse uma visita.
Nessa noite ainda fui jantar a uma casa de fados. Havia uma
fadista que cantava a hist¢ria de uma Rosinha que tinha sido
abandonada por um marinheiro, tinha morrido tuberculosa
cooooitadinha (o pesco‡o da fadista esticava-se todo), e ...
porta tinham ficado aaaas chiiiiinelinhas.
As pessoas aplaudiam.
No dia seguinte pedi na recep‡"o do Hotel que me descobrissem
a morada da minha amiga, e eles l telefonaram para o tal
escrit¢rio dos barcos, que era mais propriamente uma agˆncia
de navega‡"o. Ela sempre tinha casado com o Harold, o inglˆs,
estava a morar em Caxias.
Podia-se ir de comboio, mas o dia estava t"o bonito que eu
preferi chamar um fiacre e mandar bater para l .
Belo passeio! Est vamos em meados de Abril, o tempo estava uma
del¡cia, o Tejo estava calmo, ali para aqueles lados eram tudo
quintas e os ares eram muito bons.
Havia no ar uma alegria t¡mida que era dada pelas pequenas
flores brancas e amarelas que come‡avam a aparecer pelos
campos. Se n"o encontrasse a minha amiga j n"o dava o passeio
por desperdi‡ado.
De repente lembrei-me do rosto dela com mais nitidez. Vi-a na
minha frente no dia em que t¡nhamos alugado uma vit¢ria,
t¡nhamos mandado descer a capota, e t¡nhamos andado a passear
por Lisboa.
Cheguei. Era uma casa branca toda coberta de buganv¡lias cor
de rosa. Bati ... porta, vierram dois c"es a ladrar.
- Milord, Blackie, quietos!
Chamava uma criada de avental e crista. Que sim, que a senhora
estava, para eu fazer o favor de dizer o nome e esperar um
momentinho.
Ela n"o queria acreditar! H dezoito anos!
N"o podia ter-me recebido melhor. Que eu tinha tido uma ¢ptima
ideia, que era uma surpresa muito agrad vel, que o Harold
tamb‚m ia gostar muito de me ver, que tinha de ficar para
jantar. Mandava embora o fiacre, e eles depois iam-me levar no
autom¢vel.
Mandou servir refrescos no jardim e ali estivemos toda a tarde
a conversar. N"o lhe deve ter chegado aos ouvidos a hist¢ria
da minha fuga com Mart¡n. Se sabia de alguma coisa agiu como
se n"o soubesse de nada, e preferiu n"o tocar no assunto.
Tinha uma filha mais velha, a Mary, que era bonita e simp tica
e tinha uns olhos azuis muito claros, iguais aos da m"e. A
mais nova era menos bonita e um tanto enjoada, e tinha uns
olhos onde brilhava alguma mal¡cia mas pouca inteligˆncia.
Tinha tamb‚m dois rapazes. O mais velho, o Albert, magro,
esqu lido, de ¢culos e cheio de tiques, e o mais novo, o John,
que devia andar a¡ pelos seus seis anos, e era uma crian‡a
encantadora com uns grandes carac¢is castanhos e uns olhos
meigos cor de mel. Ali esteve toda a tarde, muito sossegado, a
brincar com um carreirinho de formigas. Tinha estado a morrer
com uma apendicite, e por isso era o ai-Jesus dos pais e da
irm" mais velha.
' tardinha chegou o Harold, num Austin azul. Continuava bonito
e simp tico, com o seu bigodinho engra‡ado, e tinha j nos
cabelos uns fiozinhos brancos que lhe ficavam a matar.
Fez-me uma grande festa, lembrava-se perfeitamente de mim, e
de uma valsa que t¡nhamos dan‡ado na festa memor vel da minha
primeira vinda a Lisboa.
Tinham uma grafonola e ainda ouvimos uns tangos e uns
pasodobles enquanto tom vamos um Pink Gin antes de jantar.
Depois tocaram um gong e fomos para a mesa. Serviram uma canja
que parecia a que fazia a Ermelinda, e como nunca mais eu
tinha comido em dias de vida. Depois veio um arroz de pato que
tamb‚m estava muito bom, e um leite creme com canela e um
gostinho a laranja que era uma coisa deliciosa.
Depois de jantar as crian‡as foram dormir, em vez de
"good-night" tinham sido ensinados a dizer "nai-nai", e eu
achei muita gra‡a, porque era como dizia Miss Davidson, e como
eu pr¢pria tinha sido ensinada a dizer.
A minha amiga Eug‚nia ainda me deu uma receita de scones, que
era uma coisa de que eu em crian‡a gostava muito, e todo
aquele ambiente ... antiga, um pouco ... inglesa, me fez reavivar
mem¢rias antigas dos tempos em casa do meu pai.
Eram talvez umas dez horas, vieram no carro trazer-me de volta
ao Hotel. Despedi-me deles, agradeci, subi para o meu quarto
com cascatas de recorda‡"es de infƒncia a esvoa‡arem como
p ssaros dentro da minha cabe‡a.
Nessa noite levei muito tempo a adormecer. N"o conseguia
deixar de pensar, havia tanto para relembrar... O meu pai, a
Ermelinda, a Rosmaninha, a gente do Monte, a fruteira com os
doces de ovos, o pr¡ncipe Dom Manuel, o sanat¢rio, o meu amigo
fil¢sofo, Mart¡n, a m"e dele, os camaradas, a vida em Sevilha,
o p tio com as laranjeiras, aquela calmaria, a noite em que
quase fomos apanhados pela guarda, a fuga para Fran‡a, o
botequim, os soldados, o barulho que faziam, aquele sot"o
gelado, cheio de ratazanas, o velho dos gatos, a velha que
veio depois, a partida de Mart¡n, as noites ... espera, tantas,
a (r)fazedora de anjos¯, o seu rosto, as suas m"os vermelhas, os
ferros, o meu medo, a vontade que eu tinha de gritar,
Sebastien, as horas a posar, im¢vel, o quadro pendurado na
frente da nossa cama, a exposi‡"o, Veneza, as m scaras,
Stefano, a minha estupefac‡"o, a minha desola‡"o, a minha
indigna‡"o, GisŠle, a carta do meu pai, a chegada ao Monte, os
meus primos, o rapaz que tinha vindo tomar ch , as coisas que
me tinha dito a vidente, tudo se fundia numa esp‚cie de
arco-iris que rodava dentro da minha cabe‡a e ma deixava
vazia, sem conseguir dormir e todavia sem estar completamente
acordada, como num sonho em que eu estivesse consciente de
estar a sonhar, e pudesse rever as mesmas imagens, outra vez,
e outra ainda, ao sabor da minha fantasia.
No dia seguinte telefonei a agradecer de novo aos meus amigos
e a convid -los tamb‚m por minha vez.
Nessa noite vieram jantar comigo no Hotel, que tinha uma
cozinha francamente boa e muito bem apresentada.
Depois de jantar sentei-me ao piano e toquei para eles, toquei
o melhor que sabia, coisas alegres, e pela cara deles bem se
via que estavam encantados.
De repente passou o Embaixador Inglˆs, o Harold conhecia-o.
Estava com umas oito ou dez pessoas, ingleses tamb‚m, um deles
era um Secret rio de Estado do Governo de Sua Magestade o Rei
George. Calhou passarem no momento em que os meus dedos
tocavam:
London bridge is falling down
falling, falling...
N"o resistiram. Havia por ali costela inglesa. Espreitaram,
riram-se para n¢s, acenaram, deram as good-evenings, aceitaram
o convite, veio uma garrafa de bom vinho do Porto, outra de
Whisky, sentaram-se connosco, beberam, confraternizaram,
cantaram, foi uma noite bem passada.
Nessa noite subi para o meu quarto e de novo o branco, a
ausˆncia, o vazio.
Eu, a camarada de Mart¡n, a usar um t¡tulo, a conviver com
pessoas daquelas? E os meus belos ideais de Sevilha? E a
classe oper ria? E a arte pela arte, como centro do universo?
E a insubmiss"o a todo e qualquer poder?
Por outro lado... depois de conhecer a mis‚ria daquele s¢t"o,
ia recusar mil e duzentos hectares de corti‡a?
Santo Deus, como estava confusa! Queria tanto conciliar-me
comigo pr¢pria, e era t"o dif¡cil! Sentia vergonha, como se
estivese a trair Mart¡n, e com ele todos os desgra‡ados do
mundo, que a mim pr¢pria tinha jurado proteger.
Por outro lado havia a mem¢ria do meu pai, e havia a vida, que
era t"o mais f cil quando se tinha dinheiro... e eu bem o
sabia. Ah, eu conhecia bem uma face e a outra da moeda!
De novo, tal como numa certa noite em menina, agitada,
perturbada, sem poder dormir, me levantei da cama,
aproximei-me da janela e pus-me a olhar para as estrelas.
Depois sentei-me, peguei numa folha de papel timbrado do
Hotel, e escrevi:
Pelo verso e reverso desta vida
Vivi. Para que vivi eu, afinal?
Aqui estou eu, despojada, vencida,
Pela chuva, pela dor, pelo vendaval,
Pelo nevoeiro, pela solid"o.
Ouvia o vento... ouvia-o zunir!
Era t"o jovem... ardia de paix"o...
Contava as horas noite fora, sem dormir
Silˆncios que sofria, meu segredo...
Noites de ang£stia que nem sei contar
Horas terr¡veis, eu j nem me lembro!
Temporais que uivavam no arvoredo
Vem comigo! Dizia-me a assobiar
Pelas frinchas a ventania de Novembro
E eu tinha ido, tinha seguido o temporal dos meus pr¢prios
instintos...
Nessa noite jantei no Hotel, um ch e uma fatia de cake.
Estava em Lisboa ia j para uma semana, ia sendo tempo de
regressar.
No dia seguinte dirigi-me a uma agˆncia de viagens, na Rua do
Ouro, a comprar a minha passagem para Paris.
' minha frente estava um casal a reclamar, que queriam ir
passear a It lia, tinham comprado as passagens, mas n"o havia
meio de conseguirem os passaportes, e estavam a ver que n"o
iam.
O rapaz da Agˆncia, por sinal bastante antip tico, dizia que
n"o lhes podia devolver o dinheiro. Os passaportes eram uma
quest"o que o governo ‚ que tinha de resolver, eles n"o podiam
fazer nada.
O marido estava exaltad¡ssimo, que era uma roubalheira, mas
ele tinha um primo deputado, e se fosse preciso levava-se o
assunto ao Parlamento, que ele n"o era homem para se deixar
ficar assim com um prejuizo de quase dois contos de reis.
No outro dia segui no comboio para Paris.
Cap¡tulo 10
Nas carruagens de segunda classe ia uma grande confus"o e
muito barulho, e o revisor veio pedir muita desculpa, que era
gente com pouca educa‡"o, ele n"o tinha culpa, iam ver o jogo
de futebol Portugal-Fran‡a, e aquela agita‡"o toda era por
causa disso.
' hora de almo‡o vieram com uma campa¡nha chamar as pessoas
para o Wagon Restaurante. L me serviram um consom‚, um
rosbife, um sorvete com pedacinhos de chocolate.
Sentado ... minha frente sentou-se um rapaz ainda novo com um
bigodinho loiro e um chap‚u ... Gardel. No meio dos dois, um
pequeno candeeiro, um abat-jour de seda grenat com as franjas
a tremer. Os seus olhos lƒnguidos eram castanhos claros, c"r
de mel, as suas pestanas muito louras pareciam tremeluzir
tamb‚m. Ah, o ouro, o eterno sedutor!
N"o troc mos uma palavra. Acabei de almo‡ar, regressei ao meu
compartimento. N"o fui jantar. Eu come‡ava a recear o amor.
Acho que dormitei o resto do tempo, embalada pelo suave trotar
da carruagem. ' chegada a Paris tomei um taxi e alojei-me no
Grand Hotel.
De uma vez por todas, bastava de mis‚ria!
Estava de novo em Paris, mas desta vez em condi‡"es
completamente diferentes.
De pianista e criada de mesa num restaurante mal frequentado,
a almo‡ar sopa da v‚spera numa marmita velha, a suportar os
ditos obscenos dos soldados, e depois em Chaillot a dormir num
buraco sem janela, eu era agora senhora de uma fortuna, passe
o exagero, capaz de comprar, se eu quisesse, metade da cidade
de Paris. Como era diferente! Era o dia da noite!
Passados dois dias voltei a Chaillot a buscar uma ou outra
coisa, meia d£zia de objectos de que n"o me quis separar. Os
meus livros, o retrato de Mart¡n e pouco mais.
Passei tamb‚m no restaurante a buscar Rosalie. Tinha sido a
£nica pessoa a ajudar-me nos dias mais duros, mais dif¡ceis da
minha vida. Veio viver comigo.
Porquˆ o retrato de Mart¡n? Porquˆ Rosalie? Que estranhos
la‡os cria a mis‚ria entre as pessoas?
Passado pouco tempo recebia um cheque do meu advogado em
Lisboa. A herdade estava vendida. Entrei no banco mais
pr¢ximo, pedi para falar com o gerente, informei-me sobre os
investimentos mais interessantes, decidi-me pelas ac‡"es dos
caminhos de ferro, e tomei ainda uma outra decis"o. Desse dia
em diante n"o iria dedicar um £nico momento da minha vida a
pensar nas minhas finan‡as.
Mart¡n partira havia j mais de um ano, e n"o voltara a dar
not¡cias, mas isso n"o me impedia de todos os dias pensar
nele, e agora com mais motivos. Que pensaria ele de tudo
aquilo?
Provavelmente quereria empregar todo aquele dinheiro na
Revolu‡"o, mas eu sozinha... sem ele as coisas pareciam ter-se
desmaterializado, pareciam ter perdido todo o seu significado,
nada tinha j a mesma for‡a, o mesmo vigor, a mesma urgˆncia.
Um governo do povo em Espanha, em Portugal, na Europa toda,
criar uma Uni"o Europeia, semelhante ... Uni"o Sovi‚tica... sim,
claro, mas sem Mart¡n? Era como se com o desaparecimento dele
tivessem desaparecido tamb‚m os meus ideais.
Eu n"o fa‡o a menor ideia de quanto dinheiro poder ser
necess rio para financiar uma Revolu‡"o. Subornar pessoas,
comprar armas, manter um ex‚rcito, dependeria provavelmente da
resistˆncia que encontr ssemos pela frente, mas n"o creio que
aquilo que o meu pai me tinha deixado fosse o suficiente para
levar vante um projecto desses.
Acima de tudo, sem Mart¡n, com que entusiasmo faria eu fosse o
que fosse? Ainda por cima o nosso grupo estava disperso e
muito reduzido.
Com o fim da guerra as pessoas tinham passado a ter outro tipo
de prioridades. Ao longo daqueles quatro anos toda a gente
tinha passado tantas priva‡"es, que o que queriam naquele
momento era gozar a vida.
Por todo o lado se viam autom¢veis, pessoas bem vestidas,
restaurantes caros e locais de divers"o nocturna onde se
dan‡ava ainda o fox-trot, e tamb‚m o charleston, que era a
grande novidade.
As mulheres cortavam o cabelo (r)... gar‡onne¯, bastante curto com
uma grande franja, usavam-se os vestidos com a cintura
desca¡da, os colares muito compridos e as boquilhas.
Foi essa a minha primeira cedˆncia ao capitalismo, creio eu.
Uma boquilha com um aro de ouro cravejado de pequenos
diamantes.
Nessa noite jantei na casa de jantar do Hotel. Mandei vir
escargots, um linguado com manteiga e champagne. Acho que
bebi, sozinha, mais de meia garrafa. Devo ter subido para o
quarto a trocar as pernas...
O maitre olhava para mim um tanto surpreendido. Eu trazia um
bom vestido comprado em Lisboa, e n"o tenho, n"o tive nunca, o
ar infeliz da pobre desgra‡ada que fui, a tocar piano para os
soldados, mas tamb‚m n"o tinha ainda o ar sofisticado que se
esperaria de algu‚m que se aloja no melhor Hotel de Paris.
Por isso no dia seguinte resolvi ir tratar de mim. Entrei num
sal"o de cabeleireiro e cortei a minha tran‡a, a minha grossa
tran‡a castanha clara que me vinha at‚ ... cintura e que
desfazia todas as noites.
Mart¡n adorava ver-me pentear os meus belos cabelos ondulados.
Cortei-a, fiz o tal penteado ... gar‡onne, e um minuto depois
estava arrependida. Quase me apetecia chorar. Enfim, j n"o
havia rem‚dio, e ao fim de umas semanas j me habituara ao meu
novo penteado moderno e chique.
Experimentei tamb‚m desenhar as sobrancelhas a l pis. Estava
muito na moda, mas n"o era para um rosto como o meu. Parecia
uma mulher de cabaret.
Em seguida comprei mais uns tantos vestidos, e n"o sei quantas
bugigangas mais, comprei este mundo e o outro, comprei tudo
aquilo que me apeteceu.
Afinal, tinham sido catorze anos de mis‚ria por uma Revolu‡"o
e por um homem que tinham acabado por me trair um pelo outro.
O que vir a ser o mundo daqui a dez ou vinte anos n"o o sei
eu, n"o o sabe ningu‚m.
Pela minha parte j tinha dado o meu contributo em Sevilha,
com as priva‡"es e os perigos que tinha passado.
Tinha agora direito a ser apenas um ser humano, com as minhas
fraquezas. Que obriga‡"o tinha eu de ser uma hero¡na, uma
m rtir?
Se os anos que vivi com Mart¡n n"o tivessem sido t"o duros, se
n"o me tivesse deitado tantas vezes com fome, com necessidade
de sab"o para me lavar e sem o ter, se n"o tivesse acordado
tantas vezes naquele s¢t"o com o barulho que as ratazanas
faziam a roer nem sei o quˆ, se n"o tivesse passado por tantas
humilha‡"es, com o meu vestido passajado, com a soldadesca a
tomar-me por uma prostituta, se n"o tivesse vivido a
experiˆncia horrorosa que vivi, deitada sobre um div", a
sentir o meu corpo a ser dilacerado a sangue frio, se
Sebastien n"o me tivesse mentido torpemente, talvez eu
acreditasse ainda na humanidade.
Ah, se eu n"o tivesse passado por tudo aquilo que passei,
talvez me tivesse sido mais f cil tomar a £nica atitude nobre
e generosa, repartir a minha fortuna com todos os desgra‡ados
deste mundo, mas o que ‚ verdade ‚ que, depois daquilo que
tinha passado, me sintia agora com direito ... minha fraqueza e
ao meu ego¡smo.
Sentia uma enorme necessidade de me resgatar das horr¡veis
condi‡"es em que tinha vivido, queria rodear-me de tudo o que
neste mundo houvesse de melhor e de mais belo.
N"o queria mais pensar em crian‡as desabrigadas e sem p"o, nem
em capitalistas a sugarem o sangue do povo trabalhador. N"o
queria, pura e simplesmente, pensar na mis‚ria humana, e
ningu‚m me podia obrigar, nem que para isso tivesse de me
encher de champagne, de absintho, de coca¡na.
Comecei ent"o ... procura de uma casa. N"o foi dif¡cil. Comprei
um palacete todo branco e cor-de-rosa junto ao Bois de
Boulogne, mandei restaurar os frescos, mandei forrar paredes
dos sal"es a seda natural, mobilei-o, apetrechei-o, comprei um
piano de cauda de excelente qualidade, fabrico alem"o,
contratei uns poucos de criados e passei a frequentar o (r)tout
Paris¯.
Em boa hora fui buscar Rosalie. Nenhum ordenado chega para lhe
pagar o carinho, a generosidade com que tem tratado de mim, da
minha roupa, da intimidade do meu quarto, ao longo destes
quase dois anos em que est , recuso-me a dizer ao meu servi‡o,
est comigo.
Nunca no meu quarto cor-de-rosa-bombom faltaram as flores
frescas, nunca a minha intimidade foi devassada por estranhos,
nunca me faltou uma pequena toalha molhada em gua fria sobre
a testa naquelas manh"s em que a lembran‡a do lcool ingerido
na v‚spera era ainda muito viva.
N"o h de facto nada que atraia tantas amizades como o Senhor
Dinheiro. Em pouqu¡ssimo tempo eu tinha reunido ... minha volta
uma verdadeira c"rte. Pessoas que alguns meses atr s n"o se
dignariam oferecer-me um olhar, surgiam agora com ramos de
flores, sorrisos deslumbrantes, confidˆncias ¡ntimas.
Recebia todas as sextas-feiras. Os jornais referiam-se a mim
com um (r)Mme la Marquise¯ seguido de reticˆncias que davam a
entender que eu era, naquele momento, o centro de certas
mundanidades chiques e picantes.
N"o enviava convites. As portas abriam-se ...s cinco horas, e
rapidamente a casa se enchia de amigos, conhecidos e
desconhecidos que vinham satisfazer a sua curiosidade,
conhecer uma das mulheres mais faladas de Paris, mas que
vinham tamb‚m pelo champagne, pelas ostras e pelo caviar,
pelos fais"es que eram servidos perto das duas da manh".
Vinham industriais, artistas, diplomatas, pol¡ticos, as
pessoas mais d¡spares deste mundo.
Veio uma noite Louis Jouvet, o actor da moda, am vel mas muito
cheio da sua pessoa.
Doutra vez veio o ex-Presidente Loubet, e foi um gosto
conversar com ele. Fal mos do eterno caso Dreyfus, disse-lhe
que tamb‚m para mim Dreyfus estava inocente, e Loubet
sorriu-me com um sorriso de quem possu¡a a verdadeira
sabedoria dos anos.
Andr‚ Gide vinha todas as semanas. Era doce como um bombon
quando gostava das pessoas, era acutilante como uma espada
quando n"o gostava. Em qualquer dos casos era sempre um
lingote de ouro a brilhar.
Paul Valery tamb‚m aparecia bastante. Era um poeta que me dava
a impress"o de albergar em si um mist‚rio indesvend vel, uma
esp‚cie de segunda natureza oculta. Muito requestado, chegou
um dia a declamar Rimbaud e Baudelaire.
Veio uma noite Sarah Bernard. Estava j muito velhota,
coitada, mas era sempre uma emo‡"o recebˆ-la. Tinha o porte de
uma verdadeira ra¡nha. As suas pernas tremiam ligeiramente, a
m"o que apoiava na bengala tremia um pouco tamb‚m.
Vieram uma noite T. S. Eliot, o autor de The Waste Land, um
dos textos mais fascinantes que j li, e Virginia Woolf,
espantosa. Estava profundamente enamorada da sua £ltima obra,
Orlando. Era a hist¢ria de uma personagem que ao longo de
quatro s‚culos ia vivendo e ia sofrendo uma metamorfose
sexual. Era preciso destruir todas as ideias preconceituosas
que as pessoas tinham acerca da vida, do sexo, do amor...
Nothing thicker than a knive's blade separates happiness from
melancholy.
Virg¡nia Woolf
Contou-me que para editar os seus livros e os de alguns amigos
mais ¡ntimos tinha instalado em casa uma esp‚cie de
tipografia, em cima da mesa da casa de jantar. Estavam em
Paris para uma curta visita, talvez voltassem da¡ a um ano ou
dois. Se assim fosse n"o deixariam de me vir visitar.
Havia quem tocasse m£sica, quem declamasse poesia, quem
politicasse, quem exibisse as toilettes, quem cortejasse as
mulheres bonitas e n"o s¢, e quem lhes segredasse ao ouvido
coisas que as faziam rir ...s gargalhadas, havia de tudo.
Comprei tamb‚m um cavalo chamado Thierry, um belo cavalo, e
uma calŠche de passeio. A maior parte das vezes era eu pr¢pria
quem a conduzia pelo bosque. Era uma forma de passar o tempo.
's vezes apeava-me e dava longos passeios a p‚. A boa
sociedade parisiense cumprimentava-me amavelmente.
Foi l que fui um dia apresentada a Ravel, o m£sico.
Convidei-o para minha casa. Nunca apareceu, nem voltei a
vˆ-lo.
Comprei tamb‚m um Buick todo preto. Era um dos criados, de
nome Edgar, quem me fazia de chauffeur. Era, para al‚m de mim
pr¢pria, o £nico que sabia conduzir.
Pouco tempo depois conheci na Ÿpera outra personagem
interessante, o Ministro Herriot, com quem conversei um pouco
sobre a U.R.S.S., que o seu Governo acabava de reconhecer. Era
um homem de modos um pouco bruscos, mas que sabia muito bem o
que dizia.
Estavam tamb‚m Jean Giraudoux, agrad vel e inteligente, e Jean
Cocteau, um fasc¡nio. Tinha acabado de publicar um livro de
contos fant sticos. Passados alguns dias apareceu numa das
minhas festas e trouxe-me um exemplar.
Nas corridas de Vincennes fui apresentada a Maurice Rotschild,
com uns olhos muito azuis e um ar de quem suspirava pelo
eternamente inacess¡vel.
� algo que me transcende, esta minha paix"o pelos cavalos.
Embora a cal‚che fosse muito leve, do que Thierry gostava
mesmo era de correr livremente, trotar comigo pelo Bois de
Boulogne logo de manh" cedo, e era muitas vezes o que
faz¡amos.
Um dia reparei num rapaz alto e louro que nos olhava
atentamente. Parecia no entanto mais interessado em Thierry do
que em mim.
�, francamente, uma grave afronta para qualquer mulher.
Meti conversa.
Era russo, pr¡ncipe de sangue, primo do Czar. Chamava-se
Wladimir. Tinha fugido da Revolu‡"o, a cavalo pelas estepes,
com as j¢ias que tinham sido da m"e enfiadas no cano das
botas. Os bolcheviks tinham-lhe morto a fam¡lia toda.
Tinha vindo para Paris ... procura de um qualquer meio de
subsistˆncia. J tinha sido porteiro de Cabaret, jardineiro,
era agora tratador de cavalos ali perto do Bois de Boulogne, e
tinha reparado em Thierry. Era um cavalo muito bonito.
No dia seguinte volt mo-nos a encontrar, no outro tamb‚m, e na
semana seguinte. Em pouco tempo partilh vamos a intimidade dos
nossos corpos. Foi t"o simples como isso.
Era terr¡vel. Havia nele uma for‡a de insubordina‡"o, uma
insolˆncia como eu nunca tinha visto antes.
A sua instru‡"o n"o tinha sido muito cuidada. Falava mal o
francˆs, nunca tinha ouvido falar na civiliza‡"o grega, n"o
queria saber de m£sica, nem de pintura, sabia acender uma
lareira e bebia de um s¢ golo grandes copos de vodka, cognac,
whisky, o que fosse.
Sabia de cavalos e dizia-me que na sua terra, avaliar um
cavalo ao primeiro olhar, era tudo o que um pr¡ncipe de sangue
precisava de saber.
Olhava-me com o mesmo interesse, um misto de arrogƒncia,
desprezo e paix"o com que no Bois de Boulogne observara
Thierry.
Tinha deixado em S. Petersburgo bons cavalos que eram mais bem
tratados e mais bem alimentados que os mujiks das suas terras.
As suas cavalari‡as tinham melhores condi‡"es que as isb s!
Falava-me dos seus divertimentos em S. Petersburgo. Chicotear
um mujik at‚ o fazer sangrar bastante, beber uma garrafa
inteira de vodka e pendurar-se no peitoril mais alto do
torre"o do pal cio, desafiando o perigo. Isso sim, eram
passatempos pr¢prios de um pr¡ncipe russo.
Era capaz de uma crueldade e de uma selvajeria como n"o se
julgar poss¡vel. E era assim que me possu¡a, como quem monta
um cavalo a galope at‚ lhe rebentar com o cora‡"o.
Era de uma rudeza verdadeiramente animal, mas era o mais belo
animal que eu j tinha visto sobre a terra.
O seu corpo era o de um David, os seus olhos obl¡quos eram os
de um t rtaro, os seus cabelos dourados era os de um pr¡ncipe
de conto de fadas, os seus l bios eram finos e sorriam por
vezes, atrevidos, desdenhosos. Tinham um esgar de insolˆncia
trocista que n"o poupava ningu‚m. Os seus dentes eram brancos
e fortes, como que feitos para ele me morder, me rasgar a
carne!
Era um diamante por talhar.
Dentro dele fervia um ¢dio surdo contra o povo russo que n"o
entendia as realidades mais simples da vida. E explicava-me:
- muito simples. Se nasceste pr¡ncipe, dizia ele, melhor�
para ti. Goza a vida, come e bebe o melhor que puderes, que a
morte n"o deixar um dia de te vir buscar a ti tamb‚m. Se
nasceste mujik, nitchev"! N"o vale a pena tentares mudar o teu
destino. Submete-te ao teu senhor natural, o senhor das
terras, que ‚ melhor para ti seres um mujik esfomeado mas
vivo, do que seres um mujik morto ... chicotada.
Explicou-me tamb‚m que o que se tinha passado na R£ssia tinha
sido tudo por culpa de um frade chamado Grigori Iefimovitch, a
quem chamavam Rasputine, que tinha feito um pacto com o
dem¢nio para arruinar o Imp‚rio Russo.
Era ele o £nico capaz de manter vivo o pequeno Alexei
Czarevitch, o herdeiro do trono, com a doen‡a terr¡vel que
tinha, e por causa disso tinha conseguido tornar-se muito
poderoso, era ele que mandava na Czarina, e at‚ no pr¢prio
Czar, formava e demitia governos, sempre de forma a favorecer
os alem"es, e ningu‚m se atrevia a dizer fosse o que fosse.
Ent"o, o pr¡ncipe Ioussoupov, o Gr"o Duque Dimitri Pavlovitch
e um Deputado de nome Pourichkevitch tinham-se organizado em
grande segredo, numa conspira‡"o para o matarem, e a prova de
que ele tinha pacto com os infernos era que lhe tinham dado a
beber vinho envenenado, e ele n"o morreu. Deram-lhe a seguir
comida envenenada e ele n"o morreu. Depois ainda o
apunhalaram, e ele n"o morreu, e s¢ com um tiro ‚ que tinham
conseguido mat -lo, e depois deitaram o corpo dele ao Neva,
mas isto tinha acontecido em 1916, era j tarde, muito tarde.
Aldeias, cidades inteiras estavam sublevadas, nessa altura j
a revolta tinha atingido propor‡"es tais que n"o se podia
controlar.
Pouco tempo depois a Fam¡lia Imperial era morta por ordem do
Soviet dos Urais em Iekaterinenbourg. E n"o tinha sido s¢ a
Fam¡lia Imperial, muitas outras pessoas tinham sido mortas
pelos bolcheviks, que afinal eram apenas mujiks revoltados,
gente que pouco tempo atr s nem gente era, eram chamados
(r)almas¯, pertenciam ... terra e tinham nascido para servir o seu
senhor natural, porque ao fim e ao cabo eram menos do que
animais de carga, e assim ‚ que devia ser, era essa a ordem
natural das coisas, ra‡a miser vel de mujiks! Dem¢nios!
Contei-lhe que tamb‚m em Portugal tinham morto um rei, exilado
outro, instaurado a Rep£blica, mas nunca lhe contei porque
motivo tinha abandonado a minha casa. Podia tentar
explicar-lhe as minhas raz"es, que em tudo tinham sido outras,
diferentes das dele, mas n"o valia a pena.
Ele nunca iria entender que eu pudesse ter fugido com Mart¡n,
apenas porque os seus olhos eram negros como carv"es e me
queimavam como brasas acesas.
� prov vel que pensasse que eu estava em Paris a fugir aos
bolcheviks portugueses, os republicanos. Wladimir tinha o
cond"o de interpretar todas as coisas ... luz da sua pr¢pria
cultura. H dez anos que estava em Paris, mas interiormente
nunca tinha sa¡do da R£ssia. A sociedade para ele era composta
por pr¡ncipes, mujiks, cavalos e garrafas de vodka.
Eu n"o sei se estava enamorada, creio bem que n"o. Era outra
coisa, era um impulso animal que me atra¡a para ele, para o
seu corpo que era como uma est tua de m rmore.
Ele era igual a um tigre da Sib‚ria. †gil, sensual, robusto,
brutal, de uma beleza imposs¡vel de descrever.
N"o tinha medo de nada. Uma noite entrou na meu quarto vindo
nem sei de onde. Trazia um estranho brilho no olhar. Tinha-se
envolvido numa discuss"o com um bar"o j de idade, este
tinha-o ultrajado, dizia, e ele tinha-o desafiado para um
duelo. O bar"o tinha-se-lhe rido na cara, o infame!
Se fosse na R£ssia, dizia ele de olhos enxutos mas com a voz
entrecortada de solu‡os de raiva mal contida, havia de o
mandar a‡oitar como a um reles mujik!
Em S. Petersburgo o seu pai tinha sempre um servo cuja £nica
fun‡"o era limpar as estrebarias. Um deles uma vez tinha
deixado uns troncos de madeira junto da porta, e por causa
disso um dos melhores cavalos tinha trope‡ado, partido uma
perna, e tinha tido de ser abatido.
O pai de Wladimir enfurecera-se como ele nunca o tinha visto.
Tinha mandado o homem cavar um buraco na terra, tinha-o feito
enterrar s¢ com a cabe‡a de fora, para que os lobos viessem de
noite comˆ-lo, e assim tinha acontecido.
Pois se estivessem na R£ssia, ele, Wladimir Vassilievitch
Romanov, n"o hesitaria em fazer o mesmo com aquele baronete
miser vel.
Tive muita dificuldade em explicar-lhe, em fazer-lhe
compreender, que est vamos em Paris, em 1927, que os franceses
n"o tratavam assim um criado, muito menos um bar"o, e que para
al‚m disso h cinquenta anos j que n"o se batiam em duelo
como no tempo dos nossos av¢s. Para al‚m de probido era
considerado ridiculo, ou pelo menos fora de moda.
Wladimir n"o compreendia. Ele estava a falar-me da sua honra,
e eu dizia-lhe que estava fora de moda?
Enfim, l se convenceu, mas ainda andou amuado mais de quinze
dias.
Para o consolar ofereci-lhe um cavalo. Era um puro sangue da
Camarga, castanho, de crina preta, lind¡ssimo.
Tinha um bom movimento de esp duas e de garupa e estava j
treinado para galopes curtos e de carreira. Cham mos-lhe
Diamant. Os olhos de Wladimir n"o queriam acreditar. Brilhavam
que pareciam estrelas.
Quereria ter-lhe dado muito mais, mas n"o era f cil. Precisei
de esperar pelo dia seus anos para lhe oferecer uma cigarreira
de ouro e uma peli‡a de astrakan. E mesmo nessa ocasi"o, eu
bem via que ele estava doido de contente, mas n"o queria
aceitar. Sentia-se ofendido naquele seu orgulho irracional.
O nosso dia a dia n"o era dos mais pac¡ficos. Wladimir tinha
vindo viver comigo, mas volta e meia desaparecia, passava a
noite toda fora de casa, andava pelas tabernas e pelos
bord‚is, suponho eu.
Chegava a casa bˆbado, punha-se aos pontap‚s ... porta, acordava
os criados todos, e com a voz entramelada ordenava que lhe
servissem de comer e de beber, que lhe esfregassem as pernas
com vodka, que lhe preparassem um banho, e que no dia seguinte
lhe tivessem o cavalo pronto ...s sete da manh". Depois
empurrava a porta do meu quarto com um pontap‚, deitava-se e
ficava a dormir at‚ ao meio dia.
Quando calhava trazia para casa os seus amigos, emigrados
russos como ele, e ficavam toda a noite a beber vodka e a
cantar muito alto, por vezes punham-se a dan‡ar dan‡as russas
e h£ngaras.
Eu ...s vezes ficava, bebia com eles, at‚ perceber que preferiam
ficar sozinhos, s¢ entre homens, para estarem mais ... vontade.
A partir da¡ passei a subir para o quarto. Mas n"o dormia,
naquela casa n"o dormia ningu‚m.
Iam-se embora de madrugada, ele vinha dormir, e no sal"o
ficava tudo virado de pernas para o ar que parecia que tinha
sido devassado por um furac"o, ou que as Er¡nias tinham andado
por ali ... solta... Os m¢veis arredados, ...s vezes uma ou outra
cadeira partida, garrafas vazias por todo o lado, estilha‡os
de copos junto ... lareira. Tive dois criados que se despediram
por causa disso.
Tamb‚m sa¡amos. ¡amos ... Ÿpera, ...s corridas de cavalos, a
festas em casa deste e daquele. Ele levava o seu uniforme do
regimento dos cossacos, negro, com bot"es e dragonas douradas.
Um acontecimento importante para os parisienses era, todos os
anos, a estreia do Ballet Russe. N"o se conseguiam bons
lugares nem a pre‡o de ouro.
Wolodja conhecia Diaghilev que quis ser am vel e nos arranjou
dois excelentes lugares na terceira fila para a Gis‚le.
Dan‡ava Olga Spessivtseva, e realmente valeu a pena. Parecia
que flutuava no ar!
Depois do espect culo fomos todos cear ... Tour d'Argent.
Ostras, caviar, champagne...
Convers mos muito. Falou-se de Nijinski, comentaram-se as suas
interpreta‡"es de L'Apr‚s Midi d'un Faune, o seu casamento com
Ramala de Pulszky, os ci£mes loucos de Diaghilev, a rescis"o
do contrato, a reconcilia‡"o, a doen‡a do bailarino, o seu
internamento, a forma como devia sentir-se infeliz...
Nessa altura Diaghilev desviou o olhar, visivelmente
perturbado, e felizmente um outro bailarino que tinha vindo
com ele teve a presen‡a de esp¡rito suficiente para mudar o
rumo ... conversa.
Um dia Wladimir saiu de casa de manh" e chegou muito excitado
... hora de almo‡o. Tinha estado com a Gr"-Duquesa Anast sia
Nikolaievna, filha do Czar. H algum tempo j que corriam
rumores por Paris, mas ele nunca tinha ligado, achava que era
uma aventureira qualquer, uma mentirosa a fazer-se passar por
ela. O pr¢prio Gr"o-Duque Casimiro se recusava a reconhecˆ-la,
ou sequer a discutir o assunto.
Mas Wladimir tinha estado com ela nessa manh", e ficara com a
certeza. Era ela, estava viva, Anast sia Romanova!
Ele tinha-a conhecido muito novinha, mas lembrava-se dela
perfeitamente. Al‚m disso ela tinha pousado os olhos sobre ele
e tinha-o reconhecido imediatamente. Era ela, sim.
No dia seguinte veio jantar connosco.
Mandei preparar caviar, contratou-se um duo de balalaikas,
encheu-se a casa de jantar de t£lipas vermelhas.
Wladimir foi busc -la, chegou, subiu a escadaria com ela pelo
bra‡o. Era uma bonita rapariga, com uma express"o ing‚nua e
imensamente doce.
Jant mos, convers mos, tivemos o cuidado de evitar falar de
revolu‡"es, de bolcheviks, de tudo o que de algum modo pudesse
feri-la.
Foi ela a romper o tab£. Contou como tudo se passara. Que os
tinham mandado entrar para uma adega numa cave, os tinham
deixado sentados ... espera, horas intermin veis, e por fim
tinham entrado um oficial e quatro soldados. Tinham-nos
mandado levantar e tinham-nos morto a todos.
Ela tinha acordado no dia seguinte em casa de uma fam¡lia de
mujiks. Estava ferida, e sentia-se muito fraca e muito
perturbada com tudo o que se tinha passado. Tinham tratado
dela, e assim se tinha salvo.
Eu olhava para ela, e n"o me era dif¡cil imaginar a forma como
as coisas se teriam passado. Um soldado que rola os corpos com
as suas botas rudes. De teoria pol¡tica n"o sabe nada, nem
nunca ouviu falar. Tem um fraco por mulheres bonitas. No meio
daquelas pessoas mortas, os inimigos da Revolu‡"o, h uma que
est viva. Ele olha para aquele rosto t"o jovem, t"o cheio de
beleza e inocˆncia, e n"o pensa:
"Esta, daqui a uns anos, vai ser igual aos outros." Pensa:
"Esta, que culpas pode ter?" E n"o tem coragem de acabar de a
matar.
Lembrava-se de acordar deitada numa cama, perto de uma janela,
e de ter visto os bolcheviks acenderem uma grande fogueira.
Era Ver"o, e atrav‚s da janela aberta tinha sentido um cheiro
esquisito. Eram os bolcheviks que queimavam os corpos daqueles
que tinham sido a fam¡lia dela.
Os parentes mais pr¢ximos, na esperan‡a, talvez, de ainda um
dia colocarem o Gr"o-Duque Casimiro no trono, recusavam-se a
recebˆ-la, mas ela ali estava.
Com um vestido oferecido por uma casa de modas, um casaco de
peles emprestado por uma outra, uma tiara de diamantes nos
cabelos, lind¡ssima mas emprestada tamb‚m, a viver de favores,
mas era ela.
Falou um pouco da sua infƒncia. Das corridas de tren¢, com o
pai, que era divertid¡ssimo, pelos jardins de Petrodvoretz.
Falou das irm"s, Tatiana, Maria, e principalmente Olga, que
era aquela de quem mais gostava, e falou da m"e, sempre em
sobressalto por causa de Alexei. Pobre Alexei. N"o podia
correr, n"o podia brincar...
Depois de jantar ainda tom mos um licor, convers mos mais um
pouco, e a seguir fomos lev -la de volta ao hotel.
Passado algum tempo soube pelos jornais que tinha ido aos
Estados Unidos. Depois disso n"o voltei a saber o que tinha
sido feito dela.
Um belo dia fomos passear para o Bois de Boulogne. Eu montava
o Thierry, Wolodja seguia a meu lado no Diamant.
Trot vamos lado a lado alegremente, e de repente, quando menos
se esperaria, Diamant assustou-se com qualquer coisa e
empinou-se. Wladimir era um excelente cavaleiro, mas foi
apanhado de surpresa e desequilibrou-se.
Ficou im¢vel, estendido no ch"o. Chamei-o. Que viesse, que n"o
se fizesse de engra‡ado.
Ele n"o se movia. Poderia ter desmaiado?
Desmontei, aproximei-me dele.
De repente senti um calafrio a percorrer-me as costas.
Tinha batido com a cabe‡a numa pedra, estava morto.
Come‡aram a juntar-se pessoas. No meio delas estava um m‚dico,
mas era tarde demais, j n"o havia nada que se pudesse fazer.
Devia ter batido com uma for‡a tremenda. Debaixo da sua cabe‡a
algumas gotas de sangue vermelho. A morte tinha sido
instantƒnea.
N"o era poss¡vel, mas era verdade.
Estava ali, ... minha frente, sem vida. Morto, irremediavelmente
morto.
Foi sepultado no dia seguinte.
O seu corpo foi transportado para uma igreja, e ali estive
toda a noite, sozinha com ele, com as velas e com uma sensa‡"o
de vazio, de atordoamento. Parecia que a pancada que Wolodja
tinha recebido na cabe‡a, eu a tinha recebido na minha tamb‚m.
L dentro s¢ zunidos e incredulidade. N"o podia ser. Mas era!
Wladimir era mais um que n"o tinha podido mudar o seu tr gico
destino.
Depois chegou Rosalie, a minha boa Rosalie, com uma tijela de
caldo. N"o consegui tom -lo. Agradeci e mandei-a para casa
dormir. Queria ficar ali, sozinha com ele. A £ltima noite com
Wolodja.
Tinha os olhos fechados e os seus l bios tinham perdido o
esgar insolente e trocista. A morte tinha-lhes dado um leve
sorriso sereno e doce como nunca lhe tinha visto.
Nunca mais cantaria para mim
Zatchiem cid¡ch da palun"tchi
u rasstvari"nava akn ?
(Por quem esperas sentada at‚ ...
meia-noite junto da janela aberta?)
Ah, meu menino de ouro, meu pr¡ncipe, meu animal feroz e
indom vel!
Assim fiquei por muito tempo a olhar o seu rosto. Era o mais
belo de todos os brutos.
Foi sepultado vestido de vermelho. De vermelho se vestiram
pr¡ncipes e sacerdotes para ritos inici ticos, desde que o
mundo ‚ mundo. Cavaleiro, mestre de sua montada, Galaaz, e K‚,
senhor de todas as vilanias, todas as crueldades.
Ele foi o fruto que n"o chegou a amadurecer, a esperar pela
revela‡"o. Viveu os seus vinte e nove anos de vida com o
cora‡"o em forma de tri"ngulo, um Santo Graal pronto a receber
as gotas de sangue de um Cristo doce e terr¡vel. Cora‡"o
silencioso que foi o seu pr¢prio templo. Deus grego de beleza
que se criou a si pr¢prio, segredo de iniciados que era para
ele fonte terr¡vel de ang£stia.
Solid"o de predestinados, de prisioneiros do seu pr¢prio
nascimento. A distƒncia que separava Wolodja de todo o resto
da humanidade era a mesma que separava essa mesma humanidade
dos bˆbados, dos poetas, dos tolos, dos santos, dos cegos, dos
ungidos. Era o estigma que se lhe tinha agarrado ao nome e ...
pele no momento em que nascera pr¡ncipe. Brilho, ou visco?
O ar que respirava era de h dois mil anos. Ele era o Deus,
mas era tamb‚m o cordeiro pronto para o sacrif¡cio.
Creio que foi Maquiavel que disse que os degraus dos tronos
est"o sempre cobertos de sangue, e que s¢ atrav‚s do sangue se
conquista o poder.
Passaram os primeiros dias em que me sentia como se estivesse
bˆbada, a flutuar no ar.
Depois, aos poucos e poucos, fui-me compenetrando da terr¡vel,
da esmagadora verdade. Wladimir estava morto, e eu...
Sentia na alma baforadas quentes de solid"o... Ah, como senti
a sua falta! Cada momento da sua ausˆncia era como uma
vertigem, um precip¡cio dentro de mim.
Nunca mais encontro outro Wladimir, porque... n"o existe outro
Wladimir. Ele era £nico, em tudo aquilo que dizia e fazia.
Resolvi ent"o que nunca mais havia de amar homem nenhum.
Para quˆ? Para me fugirem atr s de uma Revolu‡"o e nunca mais
darem not¡cias? Para me trocarem por um rapaz? Para me
morrerem, assim, estupidamente, aos vinte e nove anos, de uma
queda desastrada de um cavalo?
Comecei ent"o a refugiar-me na coca¡na.
Acreditei que de todas as formas de suic¡dio esta seria a
menos dolorosa.
Com uma lamina de barba desfazia um pedacinho em cima de um
pequeno espelho, cuidadosamente, tentando n"o perder nem um
gr"o do precioso pozinho branco.
Em seguida inalava-o pelas narinas atrav‚s de um canudinho de
papel. O meu corpo ficava dormente, come‡ava a sentir as
pontas dos dedos como se fossem de borracha, e em poucos
minutos toda eu mergulhava numa sonolˆncia semi let rgica que
era qualquer coisa de delicioso.
O mundo inteiro podia ruir ... minha volta, eu n"o daria por
nada, entretida a saborear os mais ¡nfimos movimentos do meu
corpo, como se pairasse no ar.
Era miraculoso. Na minha cabe‡a constru¡a as fantasias mais
incr¡veis, destru¡a-as para de novo as reconstruir ao sabor da
minha apetˆncia.
Mas tamb‚m era diab¢lico. N"o sei se n"o me ria sozinha, como
uma idiota, e sobretudo depois de conhecer todas as novas e
deliciosas sensa‡"es que a coca¡na punha ao meu alcance, como
fazer para conseguir continuar a viver neste monstruoso mundo
real?
Ao fim de algum tempo j n"o me era poss¡vel, era a descida
aos infernos! J s¢ sabia morar nessa minha nova morada, para
l das nuvens, e descer de l era-me doloroso, t"o doloroso
que em absoluto me recusava a fazˆ-lo.
Cap¡tulo 11
Entretanto sentia que a minha vida estava prestes a terminar.
Iria partir-se a qualquer momento, como a corda fr gil de um
rel¢gio.
A coca¡na n"o ajuda a prolongar a vida, toda a gente sabe...
Eram trˆs as estrelas cadentes que tinham atravessado a minha
vida - Mart¡n, Sebastien, Wladimir. E o quarto lado do
triƒngulo?
A Ermelinda tinha-as visto no c‚u, na noite em que eu nasci.
Afinal n"o ia eu morrer longe de casa, sozinha e em grande
sofrimento?
Por outro lado, as estrelas cadentes n"o brilham com mais
intensidade no momento em que est"o prestes a extinguir-se?
Resolvi ent"o dar uma £ltima grande festa, uma festa
magn¡fica.
Contratei um rapaz que tinha uma galeria de arte e passava por
ser o maior esteta de Paris. Jean-Claude, chamava-se ele.
Era um tudo nada extravagante. Apareceu-me em casa com uma
camisa de seda num tom de amarelo vivo e umas cal‡as muito
largas de veludo preto.
Fez uma v‚nia e sentou-se.
Disse-lhe ent"o que queria que fosse ele a organizar tudo. Que
gastasse o que fosse preciso, mas que me fizesse uma festa
verdadeiramente espectacular, como nunca se tivesse visto, e
que Paris nunca mais pudesse esquecer.
E assim, foi ele quem se encarregou de tudo. Os preparativos
levaram para cima de trˆs meses.
Encomendou fogo de artif¡cio, milhares de estrelas coloridas
que iluminaram o c‚u ao longo de mais de duas horas.
Encomendou orqu¡deas cor de rosa, centenas, milhares delas,
para se enfeitar a casa de jantar onde havia de ser servida a
ceia.
Contratou cozinheiros, criados, uma legi"o deles, m£sicos,
trˆs orquestras diferentes, uma cl ssica, uma moderna para
tocar no jardim, e uma outra, de negros americanos, com uma
cantora negra espantosa que tamb‚m declamava poesia.
Nas traseiras do jardim armou-se uma tenda com uma cigana
contratada para ler a sina aos convidados. Jean Claude achava
que era ex¢tico, as pessoas iam adorar.
Veio tamb‚m uma Companhia de Teatro, ou melhor, um grupo de
saltimbancos que representaram no sal"o uma sua vers"o muito
peculiar de Arlequim e Columbina todos vestidos de cetim
duchesse de cores garridas e brilhantes, enfeitados da cabe‡a
aos p‚s, a prop¢sito e a desprop¢sito, com mais pom-pons, mais
dourados, mais colorido e mais cambalhotas do que seria de
esperar, mas enfim, n"o deixou de ter a sua gra‡a.
Encomendou os patˆs e as sobremesas no Maxim's, encomendou
charutos, Havanas puros, o champagne, que toda a noite correu
a jorros, mandou os convites, eu s¢ tive de pagar a conta, que
conseguiu deixar-me definitivamente arruinada.
Jean Claude conhecia centenas de pessoas interessantes em
Paris. Por isso, para al‚m do meu c¡rculo de amigos e
conhecidos, que eram a¡ umas duzentas, trezentas pessoas, lhe
disse que convidasse mais gente, quem ele quisesse, desde que
de algum modo fossem pessoas fora do comum desenxabido dos
mortais.
At‚ o meu vestido foi ele que me ajudou a escolher. Era todo
em seda preta, com os ombros bordados a lantejoulas e pequenas
plumas douradas. Por detr s da minha franja ... gar‡onne surgia
uma pluma dourada que se me enrolava ... volta da cabe‡a com
gra‡a e elegƒncia.
Estiveram para cima de seiscentas pessoas, algumas delas
provavelmente at‚ sem terem sido convidadas.
Veio Gide, que n"o podia faltar, e trouxe com ele Pierre
Louys.
Vieram Gertrud Stein, Alice Toklas e Pablo Picasso. Veio Lord
Alfred Douglas, enfatuado que parecia um per£. Esta do per£,
h que dar o seu a seu dono, foi o Gide, que o detestava, que
p"s a circular. De facto, foi a £nica falha que tive a apontar
a Jean-Claude, ter mandado convite a uma criatura daquelas.
Veio Paul Langevin, o grande c‚rebro da ciˆncia, mas nem por
isso com grande sensibilidade art¡stica.
Veio Andr‚ Citroen, correcto e ins¡pido.
Veio uma rapariguinha de vinte e poucos anos e olhos claros,
chamada Marguerite de Crayencour. Vinha de bra‡o dado com o
pai, como eu, no dia da minha primeira festa em Lisboa.
Convers mos um bocadinho. J tinha publicado dois livros,
poemas inspirados na Antiguidade Cl ssica, e o pai estava
muito orgulhoso dela.
Veio Ren‚ Char, fascinante! Pierre Laval, com uma express"o
esquisita nos olhos, e Prokofieff, que passou a noite sentado
numa cadeira com um ar muito aborrecido. Parece que n"o estava
(r)nos seus dias¯.
Veio Mistinguett, a grande! Vinha com Maurice Chevalier. Ela
parecia gostar muito dele, mas ele n"o parava de olhar para
quem estava, principalmente para as raparigas mais bonitas, ou
mais novas.
Veio Max Ernst, agora surrealista, para o ano sabe-se l o
quˆ!
A certa altura, j passava das trˆs da manh", por entre o
tremendo vazio que eu sentia no meio de toda aquela gente,
houve uma rapariga muito bonita que chamou a minha aten‡"o.
Estava junto ... cascata que tinha sido montada no jardim.
- Chama-se Julie, ‚ uma s fica...
Confidenciou-me Jean-Claude com um ar muito c£mplice.
H algum tempo que a inclina‡"o que certas mulheres sentem por
outras mulheres me vinha dando que pensar. Aquela era uma
oportunidade £nica de conhecer uma delas mais de perto, e
satisfazer assim um pouco da minha curiosidade.
Noutras circunstƒncias talvez eu nunca tivesse ousado, mas
...quela hora, depois de j ter bebido pelo menos umas dez ta‡as
de champagne, aproximei-me dela. Era muito jovem, n"o devia
ter mais de vinte e dois, vinte e trˆs anos.
N"o trazia baton nem rouge. Tinha um vestido verde esmeralda
todo bordado a missanga, e por cima dos seus cabelos negros e
cheios de vida trazia um pequeno diadema de missangas verdes
que lhe ca¡am formando pequenos pingentes sobre a testa. Os
seus olhos eram muito verdes tamb‚m.
A orquestra tocava um charleston, e as suas pernas balan‡avam
um pouco ao ritmo da m£sica, fazendo cintilar uma infinidade
de missangas sobre o seu vestido de seda. De repente
lembrei-me das estrelas que via em menina da janela do meu
quarto.
Segurava uma ta‡a de champagne na m"o direita, enquanto o
bra‡o esquerdo lhe ca¡a ao longo do corpo com naturalidade.
Sorriu-me docemente piscando um pouco os seus olhos lƒnguidos.
Era encantadora. De repente senti vontade, uma vontade imensa,
de lhe prender nos cabelos uma orqu¡dea cor de rosa.
Levei aos l bios a minha longa boquilha, inspirei o fumo do
meu cigarro de ponta dourada e sorri-lhe tamb‚m, por entre o
fumo, as plumas e o brilho das missangas.
' volta dela parecia haver todo um halo de do‡ura que era
perfeitamente inebriante. De repente todos os meus poros
respiravam aquela sua suavidade perversa e deliciosa.
E convers mos ao longo do resto da noite. Olh vamo-nos nos
olhos, ternamente, profundamente, tent vamos adivinhar os mais
subtis pensamentos uma da outra...
A festa terminou. Julie foi ficando, e por fim subiu comigo
para o quarto.
Olhava-me com uma do‡ura imensa e despia-se silenciosamente.
Eu tinha um pouco de pudor de olhar o corpo dela, e fui para a
casa de banho refugiar-me debaixo do chuveiro.
Da¡ por um ou dois minutos surgia ela. Trazia nos l bios um
sorriso c£mplice e atrevido. Perguntou-me se era a primeira
vez que estava com uma mulher.
Que n"o tivesse medo. Com uma mulher era muito diferente,
explicava-me ela. Era amarmos algu‚m que era igual a n¢s
pr¢prias.
Por que motivo hav¡amos de fazer alguma coisa que nos
desagradasse? Tudo iria acontecendo ... medida que nos fosse
apetecendo, nenhuma coisa era obrigat¢ria, nenhuma coisa era
proibida, e desde que nos sent¡ssemos bem uma com a outra,
tudo estaria bem.
' medida que ela me ia dizendo estas palavras com os seus
olhos lind¡ssimos docemente pousados nos meus, eu fui-me
sentindo mais calma, mais tranquila, fui perdendo o receio e
at‚... o pudor!
Creio que este deve ter sido o banho mais delicioso da minha
vida. ' medida que ouv¡amos a gua chapinhar n"o pod¡amos
deixar de rir, e as duas m£sicas, a da gua que ca¡a e a dos
nossos risos claros, um tudo nada nervosos, confundiam-se numa
s¢, semelhante ao tilintar das ta‡as de champagne, ao brilho
das missangas, ao cintilar dos nossos olhos.
Eu tinha rejuvenescido quinze anos. Sentia-me da idade dela,
estava no melhor da minha juventude.
Terminado o banho enxug mo-nos apressadamente e deit mo-nos na
cama com os cabelos ainda um pouco molhados. Cheir vamos a
flores.
Olhei o seu corpo nu, que era quase o de uma adolescente.
Estava deitada de lado, e os seus seios rosa claro pareciam
irradiar suavidade, frescura e juventude.
N"o me contive e disse-lhe:
- Que vous ˆtes belle!
Julie sorriu-me, enquanto me olhava nos olhos, pareceu um
pouco surpreendida, e respondeu:
- Et vous, alors?
Significava que aquela rapariga de vinte e poucos anos me
considerava a mim, e ao meu corpo de trinta e oito, semelhante
ao dela em beleza e juventude.
Nem Mart¡n nem Wladimir me haviam dito nunca nada de parecido.
Nem mesmo Sebastien, que sobre uma tela havia pintado o meu
corpo nu.
Para Mart¡n eu tinha sido acima de tudo a camarada corajosa
que generosamente tinha abandonado uma heran‡a, um patrim¢nio,
para me juntar a ele, trabalhar pela Revolu‡"o. Tinha sido a
companheira que com ele partilhara os ideais, os momentos
dif¡ceis e a chama de uma grande paix"o.
Para Wladimir eu tinha sido a refugiada, aquela que como ele
fugira da Revolu‡"o da popula‡a, a aristocrata a quem tinham
morto o seu rei, e tinha sido a ‚gua fogosa que ele, pr¡ncipe
t rtaro, montava sem arreios nem sela.
Para Sebastien, pelo menos at‚ certo ponto, talvez eu tenha
sido o encontrar de um certo ideal est‚tico, mas um ideal que
lhe era exterior, acess¢rio, e que ele nunca amara
verdadeiramente.
E ali estava eu, sem saber como, embriagada de champagne e da
do‡ura daquela rapariga.
Fizemos ent"o uma coisa que n"o sei bem se se chama fazer
amor. N"o foi parecido com o que fazem uma mulher e um homem,
n"o foi parecido com coisa nenhuma que eu conhecesse.
Foi qualquer coisa que s¢ posso comparar ao Concerto de Mozart
para Flauta e Harpa, a um ro‡agar de sedas, ao fumo do ¢pio.
Entra-nos nas veias, toca-nos os pontos mais sens¡veis do
corpo e da alma, transporta-nos para o interior de um sonho
di fano e perfeitamente irreal.
E enquanto nos ¡amos amando, os nossos olhares iam-se
encontrando, com se fossem dois arco-iris que se cruzassem.
No dia seguinte ela quis saber quando poderia voltar a ver-me.
Eu n"o sabia o que havia de lhe dizer. Por um lado tinha sido
muito bom, era verdade. Por outro era tudo t"o estranho, eu
sentia-me t"o confusa...
Afinal, o que ‚ que me tinha passado pela cabe‡a, para fazer
uma coisa daquelas?
A explica‡"o para aquilo que se passara entre mim e Julie,
estaria no champagne?
Ah, a quem estava eu a tentar enganar? Tinha feito amor com
uma mulher, e tinha sido a sensa‡"o mais deliciosa da minha
vida.
Por uma noite t¡nhamos sido deusas.
A vida tinha-me ferido tanto, e t"o profundamente, que aquela
noite com ela, em que tinha experimentado mil do‡uras suaves,
tinha sido um verdadeiro b lsamo para a minha alma.
A minha decis"o estava tomada. J imaginava as tro‡as nos
jornais, (r)La Marquise des Anges...¯, mas n"o me importava.
Ficaria com Julie, am -la-ia enquanto ela quisesse, contra
tudo e contra todos.
S¢ que... tinha um pequeno problema a resolver. Estava
arruinada, completamente arruinada. O dinheiro que me restava
no banco era o suficiente para viver um mˆs, talvez dois, n"o
mais.
Tinha de encontrar rapidamente uma solu‡"o, e fui pedir a
Jean-Claude que me aconselhasse.
Era f cil. Nem precisava de vender o palacete. Bastava-me
dividi-lo. Ficava para mim com a parte das traseiras, e
arranjava um inquilino que viesse ocupar a parte da frente.
A renda de um palacete daqueles dava para viver decentemente,
embora sem extravagƒncias. Despedia os criados, conservaria
apenas Rosalie, mas Rosalie n"o era uma criada.
Venderia os cavalos e a cal‚che, que davam muita despesa, para
al‚m de que obrigavam a manter um criado s¢ para esse servi‡o.
Quanto ao Buick, talvez n"o precisasse de o vender. Afinal de
contas, tinha conduzido uma ambulƒncia durante a guerra,
porque n"o havia de poder conduzir o meu pr¢prio autom¢vel?
E decidi-me. Aluguei a parte da frente da casa a um diplomata
sul americano, por sinal simp tico e bem educado, que estava
em Paris por dois anos. Depois se veria.
Passei a morar no apartamento das traseiras, arranjei meia
d£zia de alunos a quem passei a dar li‡"es de piano, uns mais
dotados do que outros, e se n"o podia manter o fausto de
alguns meses atr s, conseguia pelo menos viver sem grandes
afli‡"es.
O nosso templo, como lhe cham vamos, n"o seria um pal cio, mas
era um apartamento simp tico e acolhedor.
N"o vendi o Buick. Era Primavera, os campos come‡avam a
cobrir-se de flores, e Julie gostava de dar longos passeios.
Rosalie preparava-nos um cestinho com um almo‡o frio, peito de
per£ partido em fatias finas, fiambre, salada de frutas, p"o
de l¢ perfumado com uma vagem de baunilha... ‹amos sem
destino, at‚ encontrar-mos um local que nos agradasse, e ent"o
estendiamos uma toalha sobre a relva e almo‡avamos.
Por vezes as nossas m"os tocavam-se furtivamente. Outras
vezes, quando n"o havia ningu‚m por perto eu passava-lhe os
dedos pelos cabelos. Eram fios de seda, os cabelos de Julie.
Um dia descobrimos um s¡tio que parecia uma floresta
encantada. Havia um riachozinho com fetos ao longo das
margens, e pedras grandes que pareciam sido postas ali para as
pessoas terem onde se sentar.
Ali perto crescia um arbusto de malmequeres.
- Un peu, beaucoup, passion‚ment, ... la folie...
Tamb‚m o limoeiro do nosso jardim estava lindo, todo em flor.
Pass vamos tardes inteiras naquela calmaria, ... sombra, a
sentir-lhe o perfume suave. Em dias especiais abr¡amos uma
garrafa de Porto, um excelente vintage de que nos retavam umas
trˆs ou quatro caixas. Brindavamos ent"o ao amor, ... lua, ... m"e
natureza...
Julie gostava de poesia. 's vezes ... noite fic vamos sentadas
na cama a declamar uma para a outra.
Mon enfant, ma soeur,
Aimer ... loisir,
Aimer et mourir
Au pays qui te ressemble
Baudelaire
Era de uma beleza...
Sou uma pessoa que toda a vida dormi pouco e mal. Julie
contava-me contos de fadas para me adormecer.
Ao ser"o tocava para Julie. Ela gostava de me ouvir, dizia que
os meus dedos tinham poderes de magia.
Por uns tempos nem me lembrei mais da coca¡na.
Em Agosto fomos passar uns dias a Cabourg. Alug mos um pequeno
apartamento ... beira mar.
Sa¡amos de manh", ¡amos at‚ ... praia, com a areia morna a
acariciar-nos ternamente os tornozelos, desp¡amos os nossos
vestidos leves de algod"o, por baixo traz¡amos os nossos fatos
de banho de manguinha justa, cal‡"o at‚ ao meio da perna e
bot"ezinhos de madre p‚rola, e sabore vamos ent"o o prazer
intenso e sensual do contacto com o mar. Por vezes
mergulh vamos e beij vamo-nos debaixo de gua. Como ‚ramos
felizes!
' tarde ¡amos passear de bicicleta, para fazermos um pouco
mais de exerc¡cio. Ah, o vento a bater-me no rosto, o prazer
indescrit¡vel de me sentir outra vez com vinte anos!
Passe vamos por aquelas avenidas por onde passeara Proust.
Havia um Hotel que tinha uma esp‚cie de pequeno casino, semi
clandestino, acho eu. Julie gostava de jogar. Apostava forte e
perdia quase sempre. Encurtar¡amos as nossas f‚rias,
paciˆncia, mas n"o valia a pena priv -la de uma coisa que
parecia dar-lhe tanto prazer.
Faz¡amos toilettes bonitas. Era a ‚poca dos vestidos bordados
com missangas e vidrilhos, das gargantilhas rendilhadas, das
tearas sobre os cabelos.
Uma tarde encontrei Alfons Mucha, que me tinha sido
apresentado por Gide e era imensamente simp tico.
Sent mo-nos numa esplanada ... beira mar a tomar um Gin Fizz,
ele ent"o olhou para Julie, tirou da algibeira um caderninho e
um l pis, e come‡ou a desenhar. Desenhou durante mais de meia
hora.
Mais tarde, em Paris, recebemos pelo correio o retrato de
Julie, muito retocado mas muito bonito, com um bilhetinho em
que perguntava se nos importavamos que o utilizasse num dos
seus affiches que, n"o o dizia ele mas digo-o eu, eram
bel¡ssimos, verdadeiras obras de arte.
Uma noite, no bar do Hotel, Julie encontrou uma antiga
companheira de escola. Chamava-se Ninette e estava l tamb‚m a
passar uns dias de f‚rias.
Era uma rapariga espern‚fica e pouco simp tica, mas era amiga
de Julie, de forma que l fiz um esfor‡o para a suportar.
De regresso a Paris, Ninette passou a frequentar a nossa casa.
Uma noite fomos as trˆs ao cinema. Era um filme de Charlie
Chaplin, chamado Gold Rush.
Acho que se passava l para o Polo Norte, ou coisa parecida,
havia um que a pol¡cia andava atr s dele, e depois a p ginas
tantas aparece uma bailarina, e o Charlot apaixona-se por ela,
enfim...
Por mim, acho que nem vi o filme. Os peus pensamentos estavam
longe dali. Julie tinha-me dito nessa manh" uma coisa muito
estranha:
- Tout ce qui est beau doit mourir un jour.
Esta sua frase, aliada aos olhares que ultimamente vinha
surpreendendo entre ela e Ninette, fazia-me estremecer... de
medo, do pavor irracional que tinha de a perder.
Com efeito, nessa noite perdi-a para sempre. Insisti um pouco
com ela, e acabou por me dizer a verdade, que se resumia ali s
a uma coisa muito simples:
Julie j n"o me amava.
N"o quis saber mais nada. Para quˆ?
No dia seguinte foi-se embora. Nunca mais a vi. Passados dois
dias voltei ... coca¡na. Uma semana depois escrevi o £nico poema
de amor da minha vida.
Ah, meu amor,
tu foste a nuvem branca
que choveu no meu Sahara.
Branca como a calma das nuvens.
Branca como a agonia.
Branca como os p ssaros e as palavras.
Branca como a do‡ura do olhar.
Branca como as minhas m"os que te procuram.
Branca como o sorriso perdido no tempo.
Branco tamb‚m.
Cap¡tulo 12
Entardeceu. Estou em Paris, na esplanada do Caf‚ de la Paix,
tenho na frente uma garrafa de champagne que fui bebendo ao
longo desta tarde em que redigi estas minhas mem¢rias.
Retoco um pouco o p¢ de arroz. Olho-me no pequeno espelho.
Desvio o olhar.
Digo-me - N"o, Beatriz, n"o fujas do teu pr¢prio rosto.
Envelheceste um pouco, mas ‚s tu, ainda e sempre tu. A tua
ang£stia, essa nostalgia, essa solid"o que se te agarrou ...
alma, e que neste momento ‚ j t"o f cil, t"o claramente
percept¡vel aos olhos de quem quer que te olhe, essas olheiras
fundas de sofrimento que te esfor‡as por esconder...
Lembras-te, Beatriz? Houve um tempo em que o amor... era nos
outros que o procuravas, na tua liga‡"o a eles. Hoje sabes que
n"o ‚ sen"o em ti que podes encontr -lo, n"o ‚ sen"o de dentro
de ti pr¢pria que podes fazˆ-lo brotar.
Afinal, o que s"o os outros? Gente sempre a querer parecer
mais apressada do que na realidade est , gente fechada em si
mesma, na pequena concha da sua insignificƒncia. Pessoas que
n"o te descobriram, n"o se aperceberam nunca de ti, ali
parada, quieta, a transbordar de amor.
E no entanto, tu bem sabes como as pessoas precisam do amor.
Precisam tanto dele, procuram-no t"o desenfreadamente, que o
deixam passar ao lado e n"o o vˆem, n"o d"o por ele.
Ponho-me a pensar: ser que algum dia existi verdadeiramente?
Ser que ao longo da minha vida fui mais alguma coisa para
al‚m do reflexo daqueles que me rodearam?
Olho-me um momento mais no pequeno espelho. Que rosto sofrido,
este meu! E como poderia n"o sˆ-lo? N"o sei de ningu‚m que
tenha passado um peda‡o t"o amargo como aquele que eu passei.
N"o culpo ningu‚m. Nos momentos das grandes decis"es n"o ouvi
nunca sen"o a verdade mais autˆntica, aquela que se escondia
no mais rec"ndito do meu cora‡"o, mas nem por isso o meu
c lice deixou de ser amargo.
Ah, o vinho do Porto que o meu pai mandava abrir no dia de
Natal!
Menina e mo‡a...
Ponho-me a pensar no tempo em que a felicidade para mim era
ter as algibeiras cheias de guloseimas! Do tempo em que...
"je savais du latin et des sottises..."
Depois transformei-me numa esp‚cie de hero¡na Raciniana,
pronta a ceder ...s belas, brilhantes, pecaminosas, sedutoras
tenta‡"es do amor.
O sofrimento n"o purifica o indiv¡duo. a maior das mentiras! �
Sabes o que ‚ um espelho, Beatriz? algu‚m a quem n"o podes,�
n"o poder s nunca mentir. E depois, que outra ponte existe
entre ti e o mundo?
V l , respira fundo, sorri, abre a tua alma, deixa que
levante voo, como se acreditasses na felicidade, ou como se
fosses morrer j amanh".
Fecho a caixinha de p¢ de arroz. Tenho frio, sinto a falta de
Mart¡n. Sinto a falta do seu corpo que me cheirava a campo, da
sua voz macia, dos seus olhos t"o negros, t"o negros!
Ou ‚ de Wladimir que sinto a falta? Ah, aquela sua beleza de
est tua grega com cabelos dourados!
N"o, n"o sinto falta de Sebastien. Sebastien n"o chegou a
existir, n"o passou de uma mentira na minha vida.
De Julie? Eu sei l se sinto a falta de Julie!
Ou ser que as saudades que sinto s"o de algu‚m que nunca
conheci, de um amor que nunca vivi?
Atrav‚s da esplanada envidra‡ada vou observando as pessoas que
passam. L fora v"o caindo uns pingos pequenos de chuva. Uma
chuva quente, mole, irritante, como o tempo, abafado, mole,
irritante.
Este ‚ certamente o meu £ltimo Outono. Sempre gostei tanto do
Outono!
A minha vida foi curta. Soube sempre que seria curta. Agora
que sei que vou morrer, penso:
Como ser morrer? Tenho ainda, creio, alguns meses para viver,
mas n"o sei, ser que vou saber morrer serenamente?
Dizem que ‚ a coisa mais importante que temos de aprender na
vida, mas eu duvido seriamente. N"o creio que seja uma coisa
que se consiga aprender.
Aprender a morrer. Como se isso fosse poss¡vel! Uma coisa ‚
pensar na morte, pensar nela a uma grande distƒncia. Outra
muito diferente ‚ vˆ-la aproximar-se como eu vejo neste
momento.
Ser que me espera um sofrimento terr¡vel, dores
insuport veis? Ah, n"o, tudo menos isso. Aumento as doses de
coca¡na, misturo-lhe absintho, mas quando chegar o momento
quero morrer depressa. Que a minha morte seja r pida, pelo
amor de Deus!
Perdi a beleza dos meus vinte anos, esbanjei a minha fortuna,
n"o quero saber. Sinto-me muito pr¢xima de perder a lucidez,
n"o quero saber. A minha dignidade, essa n"o quero perdˆ-la
nunca.
Podia tomar um frasco inteiro de comprimidos, mas parece que ‚
uma coisa horrorosa, s"o v¢mitos, e dores, e mais v¢mitos, e
mais dores, ‚ uma verdadeira orgia de sofrimento, um inferno
dantesco e intermin vel.
Quem morreu assim, aqui h uns anos atr s, foi o M rio de S
Carneiro. Era um poeta portuguˆs que vivia aqui em Paris,
amigo do Fernando Pessoa.
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era al‚m.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa..
Se ao menos eu permanecesse aqu‚m...
...
Tristes m"os longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ningu‚m mas quis apertar...
Tristes m"os longas e lindas...
M rio de S Carneiro
Deve ser uma agonia, um desespero, e ainda por cima as pessoas
ficam roxas, cor de ameixa, quase negras...
N"o. Tirem-me tudo, mas deixem-me ficar aquilo que mantenho
com tanto amor, o £ltimo vest¡gio que me resta dos tempos da
minha juventude e da minha beleza. A minha pele suave,
levemente rosada.
Na minha frente toca um m£sico de rua. Canta uma can‡"o
americana
I spent my life
a dingalinging
from heart to heart
from bed to bed
Dou-lhe algumas moedas e penso:
Porque ‚ que eu tenho de morrer aos trinta e nove anos? Porque
‚ que n"o posso morrer velha, como toda a gente?
Queria tanto ser ainda capaz de me agarrar ... vida!
E se este meu sofrimento fosse daqueles que os m‚dicos podem
tratar?
A vida, a morte, eu sei l se as desejo! A coca¡na... o
suic¡dio... mas a minha vida, bem ou mal, eu n"o a vivi? Agora
o que me espera ‚ apenas uma viagem para o infinito.
Mas afinal por que ‚ que eu me puz para aqui a escrever estas
coisas? Se eu sempre soube, se sempre desejei morrer jovem, se
dizem que morrer jovem ‚ afinal uma gl¢ria que os deuses
reservam para aqueles a quem mais amam...
Santo Deus, como estou confusa!
Estou s¢, completamente s¢. Sempre estive s¢. Como se alguma
vez algum ser humano tivesse estado de outra maneira que n"o
fosse completamente s¢!
Como se o amor n"o fosse a maior mentira jamais inventada!
A £nica coisa de que me sinto capaz ‚ de escrever um £ltimo
poema.
Nothing
Nowhere to go
No wet sand under my feet
No fairy tales, no fun, no fantasy
No one for me to be fond of
No fern along the river
No vintage wine, no toasts
No vanilla cake, oh no, never again
No lemon scent, nowhere
No novels and no dreams
No demons, no tempests
No revenge feelings
No velvet memories through my veins
No resemblence, no rememberance
No remains, no remedy
November
Tantas mem¢rias, e nem preciso de molhar a madalena no ch ...
Devo estar a delirar. E eu n"o quero mentir, n"o quero iludir
a realidade. N"o quero fugir-lhe. N"o vale a pena. Para quˆ?
Apercebo-me agora que durante a minha vida toda n"o fiz outra
coisa que n"o fosse fugir.
Quereria, neste momento t"o pr¢ximo j da agonia, doloroso e
quase final, poder fugir das minhas mem¢rias que teimam,
nost lgicas, em ressoar dentro de mim.
Sinto-me despojada de tudo aquilo que amei na vida. O meu pai,
a minha ‚gua, o amor de Mart¡n, a minha m£sica, Sebastien,
Wolodja, Julie... sinto-me despojada de tudo e de mim pr¢pria,
mas antes de deixar esta vida quero ainda redigir o meu
testamento.
A Rosalie deixo o palacete, deixo todos os meus bens
materiais. N"o ‚ muito, mas n"o precisar mais de trabalhar.
Bem o merece, minha Rosalie, meu b lsamo!
' minha juventude lego a Bela Adormecida de Tchaikowski.
Afinal, se n"o tivesse nunca despertado do sonho cor de rosa
que foi a minha infƒncia, a minha vida teria sido uma outra
trag‚dia, a do t‚dio, da calmaria daquele Alentejo perdido e
sem esperan‡a.
' mem¢ria do meu pai deixo uma ria de Pucini, Oh my beloved
Daddy.
A Mart¡n lego o Coro dos Peregrinos do Tanhauser de Wagner.
Ele foi o in¡cio da peregrina‡"o, mansamente, a revela‡"o de
harmonia tr gica, e foi o climax, alvorada violenta, de paix"o
vermelha, de todas as for‡as da natureza gritando em un¡ssono
um canto de revolta e dor.
A Sebastien lego uma outra ria de Pucini, Vissi d'Arte, Vissi
d'Amore...
Vissi d'arte, vissi d'amore
non feci mai male
ad anima viva.
Con mano furtiva...
A Wladimir deixo o Coro dos Barqueiros do Volga. Porque ele
foi a nostalgia da terra em simbiose com a rudeza dos homens
do mar. Possam as vozes profundas e o marulhar dos remos nas
guas embal -lo para sempre. Festa, cƒntico, lamento, ternura,
raiva.
A Julie lego o Clair de Lune de Debussy. Foi esse o lugar que
teve no meu cora‡"o. Algumas notas t¡midas, receosas, um lento
bailado sensual, estrelas a brilhar e algumas gotas de
orvalho.
Aos meus trinta e nove anos acabados de cumprir deixo a
Fantaisie Impromptue de Chopin. Uma chama a arder, agitada,
sobre um fundo de do‡ura, tristeza e solid"o. Que outra coisa
foi afinal a minha vida?
Penso no momento da minha morte. Gostaria que a lua brilhasse,
gostaria que cobrissem o meu corpo com violetas.
Vida vida minha vida
aos poucos entristecida
aos poucos amargurada.
De tristeza malsofrida
tanta coisa prometida
e afinal n"o me deu nada
Vida vida minha vida
em que n"o achei guarida
em que n"o achei morada.
Minha vida foragida
vida que n"o foi cantiga
nem chegou a ser balada
Vida vida minha vida
t"o calada e t"o sofrida
vida t"o desencontrada.
N"o sei curar esta ferida
sei que ... hora da partida
saudades levo de nada