AJUP NO MARANHÃO: a contribuição para o (re) significar do espaço público maranhense

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UNDB – UNIDADE DE ENSINO SUPERIOR DOM BOSCO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO VANESSA RODRIGUES DE MELO ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA POPULAR NO MARANHÃO: a contribuição para o (re) significar do espaço público maranhense

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Monografia apresentada pela graduanda Vanessa Rodrigues de Melo à coordenação do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, sob orientação do professor Mestre Elton Fogaça da Costa, pertencente à área de concentração Filosofia do Direito, como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito.

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UNDB – UNIDADE DE ENSINO SUPERIOR DOM BOSCOCURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

VANESSA RODRIGUES DE MELO

ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA POPULAR NO MARANHÃO: a contribuição para o (re) significar do espaço público maranhense

São Luís2011

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VANESSA RODRIGUES DE MELO

ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA POPULAR NO MARANHÃO: a contribuição para o (re) significar do espaço público

maranhense

Monografia apresentada pela graduanda Vanessa Rodrigues de Melo à coordenação do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, sob orientação do professor Mestre Elton Fogaça da Costa, pertencente à área de concentração Filosofia do Direito, como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito.

São Luís 2011

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VANESSA RODRIGUES DE MELO

ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA POPULAR NO MARANHÃO: a contribuição para o (re) significar do espaço público maranhense

Monografia submetida à Coordenação do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito. Área de concentração: Filosofia do Direito.

Aprovada em_____/_____/2011.

BANCA EXAMINADORA

Professor Mestre Elton Fogaça da Costa (Orientador)

Unidade de Ensino Dom Bosco

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A todos os homens e mulheres que com muita garra e devoção se dedicam a luta incansável do movimento social popular e a re-significação dos direitos.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Vânia e Josenildo, pelo cuidado, dedicação e trabalho com o qual

se voltaram para financiarem a minha educação e a cobrança constante para que eu mostrasse

o meu melhor desempenho.

Aos meus tios e tias, que sempre me fizeram sentir sua filha, em especial, à tia

Vanda, que além de ser minha segunda mãe até os dias de hoje, sempre se devotou com zelo e

dedicação a minha criação e aos meus estudos ocupando as suas tardes com as minhas tarefas

escolares e acompanhando minha infância e juventude, sendo capaz de entender meus anseios

e cobrir minhas travessuras.

Às minhas avós, que sempre zelaram pelo meu bem-estar e minha felicidade, em

especial, a avó Maria Nazinha que contribuiu para uma infância cheias de histórias e contos,

demonstrando várias vezes que o carinho de avó e incondicional e único.

Ao meu irmão, Jamerson e aos primos Jessyca, Jhonny, Rômulo e Junior, pelo

convívio fraternal, pelas travessuras, confusões e pela companhia sempre especial.

Aos amigos da graduação, por terem compartilhado noites cansativas e dias

exaustivos na busca de concluirmos nossa graduação, e em especial, a Alexandre Sousa e a

Débora Bahia, que desde o primeiro dia de aula se mostraram companheiros e amigos muito

especiais e inseparáveis, são pessoas muito queridas, guardo-as no coração.

A Arnaldo, por todos os momentos divididos, em especial, pela força de vontade

de mudar por nós e insistir para que eu agisse com mais garra e determinação na luta diária,

sendo, assim, meu maior companheiro e, ainda, por todos os sonhos que compartilhamos, algo

que de mais belo temos.

Aos amigos da assessoria e do PAJUP, que compartilharam dias, noites,

madrugadas, dias de semana, finais de semana e inúmeros feriados, na luta de um mundo mais

justo e mais Belo e menos corrompido pelos interesses particulares.

Ao espaço gerado pela RENAJU, por permitir observar que não somos os últimos

loucos embevecidos do néctar da beleza dos sonhos compartilhados, porque sonho sonhado

junto é realidade.

As secretárias Roseane Viegas e Josyane Andrade que sempre deixaram a

convivência acadêmica mais agradável, diante a excessiva burocracia da instituição.

Ao mestre e coordenador Elton Fogaça, por ter nos permitido observar a essência

do ser Mestre, e sempre cheio de carinho e amor nos acompanhou no sonho quase impossível

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numa instituição privada onde o espaço acadêmico, por regra, não tem o compromisso com a

efetivação um Direito mais humano e vivo.

 

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Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Essa idéia é atroz. No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma responsabilidade insustentável. É isso que levava Nietzsche a dizer que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht). Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza?O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é. Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar mais semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.O que escolher, então? O peso ou a leveza?(Milan Kundera)

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RESUMO

A atuação comunicativa das assessorias jurídicas universitárias populares, mediada pelo exercício da educação popular, possibilita a articulação e o protagonismo de seus envolvidos. A educação popular permite que seja discutida a verdadeira função humanizadora do Direito, mediando leituras de mundo onde estão imbuídas constantes lutas em busca da efetividade de direitos. O presente trabalho tem por objetivo a análise da atuação das assessorias jurídicas universitárias populares maranhenses na ocupação do espaço público como oportunidade de (re) significar a razão política do Estado Democrático de Direito, em especial o espaço geopolítico que ocupam. Para isso, faz-se uso da teoria política de Hannah Arendt e da (re) significação do espaço público como a pedra de toque do Estado Democrático de Direito ao proporcionar uma justificação aos direitos humanos e à soberania popular, de modo que, a concepção de justiça, além de ter validade nas normas, seja expressa nas ações públicas dos cidadãos.

Palavras-chave: Espaço público. Assessoria Jurídica Universitária Popular. Estado Democrático de Direito.

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ABSTRACT

The communicative performance of the Legal Service Organizations, mediated by the exercise of the popular education, makes possible the connection and the protagonism of its involved ones. The popular education allows the discusssion of the true humanizing function of the Law, mediating world readings where are included the constant fights in search for the effectiveness of rights. The present work has as objective the analysis of the performance of the “maranhenses” Legal Service Organizations in the occupation of the public space as an oportunity to give a new meaning to the political reason of The Rule of Law, in special, the geopolitical space they occupy. To do so, it is used the politics theory of Hannah Arendt and of the (re) meaning of the public space as the main reason of The Rule of Law when providing a justification to the human rights and the popular sovereignty, in way that, the conception of justice, besides having validity in the norms, is expressed in the public actions of the citizens.

KeyWords: Public space. Legal Service Organizations. The Rule of Law.

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LISTA DE ABREVIATURAS

AJUP Assessoria Jurídica Universitária PopularCEB’S Comunidades Eclesiásticas de Base PAJUP Programa de Assessoria Jurídica Universitária PopularNAJUP Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular UnB Universidade de BrasíliaSAJU Serviço de Assessoria JurídicaUFBA Universidade Federal da Bahia UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do SulUFMA Universidade Federal do Maranhão UNDB Unidade de Ensino Superior Dom BoscoSEPEX Semana de Pesquisa, Ensino e Extensão Universitária IES Instituição de Ensino SuperiorERAJU Encontro Regional de Assessorias JurídicasERED Encontro Regional dos Estudantes de DireitoPIERS/AMAI Programa Institucional de Extensão e Responsabilidade SocialRENAJU Rede Nacional de Assessoria Jurídica UniversitáriaOAB Ordem dos Advogados do BrasilCPT Comissão da Pastoral da TerraMST Movimento dos Sem-TerraCSP Central Sindical e PopularPROEX Pró-reitoria de extensão

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 Democracia e seu contexto no Brasil 14

2.1 Considerações sobre a democracia 14

2.2 A ocupação do espaço político democrático 19

2.3 A abertura democrática e os novos sujeitos de direito no Brasil 23

3 As Assessorias Jurídicas Universitárias Populares 29

3.1 O contexto histórico brasileiro no surgimento das assessorias jurídicas universitárias populares 29

3.2 A prática inovadora da assessoria jurídica universitária popular. 31

3.3 A legitimação das Ajups na ressignificação do espaço público 40

4 A TENTATIVA DE DIGNIFICAR O MUNDO PÚBLICO: as experiências das assessorias jurídicas universitárias, no espaço maranhense. 48

4.1 Uma compreensão da temporalidade 48

4.2 A constituição histórica das experiências ajupianas no Estado do Maranhão 51

4.2.1 NAJUP NEGRO COSME – UFMA 51

4.2.2 PAJUP – MA 53

4.3 Das experiências ajupianas no Estado do Maranhão 57

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 66

REFERÊNCIAS 68

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1 INTRODUÇÃO

Há tempos que os processos sócio-políticos de ocupação e resistência são

agraciados como a opção mais legítima de ocupação de poder. Assim, compondo-se pela

orientação unitária de processo social, a análise sobre os processos sócio-políticos não

contemplam as manifestações sociais como ícone constitutivo do agir político.

A autêntica manifestação política do ser humano, em si, reafirma o direito de

manifesto por meio da excelência em dar novos significados ao contexto da mobilização,

oportunizando embate de paradigmas e ainda, verificando os avanços ou retrocessos surgidos

durante o processo. Nessas condições, a atuação política se faz justificativa para se obter

novas críticas e ações que visem a (re)significação do espaço político viciado.

Em contraposição, soma-se o ponto de vista da sociedade e da mídia ao

manifestarem a existência do desmantelamento das mobilizações políticas, justificando-o com

a ausência de organizações emblemáticas no combate das mazelas do dia-a-dia, persistindo,

atualmente, com a expressa necessidade de cobrar ao Estado por mais políticas públicas,

colaborando com a formação do senso comum dominado e retirando do povo o poder de

manifestação originário.

A dominação dessa “verdade” explicita o interesse na contenção da força política

de mobilização dos cidadãos, de maior evidência nos últimos 20 anos, ao concorrer com

meios que auxiliem no desmonte do princípio da democracia participativa. A ocupação

política dos espaços oportunizados pelo Estado, e ainda, a ocupação naqueles em que há

obstáculos para o diálogo, se demonstram especiais para a racionalização do agir.

Diante disso, faz-se extremamente salutar transpor essa discussão para o mundo

social, partindo da análise das relações do Direito com a ocupação reflexiva do espaço

público, de maneira a se constatar que os sujeitos protagonistas dessa ocupação permitem

verificar a presença da interdisciplinaridade dos saberes contidos nos processos sócio-

políticos.

A interdisciplinaridade por sua natureza é o gênero de várias espécies de

conceitos, e por vezes, se faz em plena confluência de saberes. Sua incidência nas relações

compreendidas com a ciência do Direito transmite o reconhecimento de vários pontos de vista

de um saber sobre o objeto, desta vez, visto de pontos distintos e relativos.

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Nessa perspectiva, as premissas dessa discussão é não se olvidar de que o Direito

submete-se ao processo histórico, por sua vez, dialético. É a expressão inconfundível do uso

alternativo do Direito na expectativa de auferir instrumental para os movimentos

emancipatórios.

É nesse ambiente alternativo que a atuação comunicativa das Ajups mediada pela

prática da metodologia da educação popular possibilita a articulação e o protagonismo dos

homens envolvidos. A educação popular torna possível a ocorrência das discussões sobre a

verdadeira função humanizadora do Direito ao mediar leituras de mundo imbuídas de

constantes lutas em busca da efetividade dos direitos.

A ocupação do espaço público configura-se como oportunidade de (re)significar a

razão política do Estado Democrático de Direito Moderno, em especial, o espaço geopolítico

que ocupam contribuindo para o reconhecimento das responsabilidades políticas e pessoais

inerente a cada atuação.

A (re)significação do espaço público que ocupam representa a pedra de toque de

todo o Estado Democrático de Direito proporcionando uma justificativa aos direitos humanos

e à soberania popular, de modo que a concepção de justiça, além de ter validade nas normas,

seja expressa nas ações públicas dos cidadãos.

É nesse ambiente de luta que a metodologia das assessorias jurídicas universitárias

populares interfere na conjuntura política do Estado do Maranhão, construindo ambientes de

reflexão e ação dentro e fora das Instituições de Ensino Superior pertencentes, e ainda,

influenciando de forma crucial na conscientização de todos os atores participantes do

movimento social.

Não é, portanto, apenas uma atividade de extensão universitária constante das

grades curriculares das universidades, mas também, a construção de um projeto político social

que se faz justificativa do espírito de luta arraigado em tal relação alternativa do uso do

Direito.

Neste esforço, no primeiro capítulo, visamos por fazer uma reflexão sobre a

democracia, a ocupação do espaço democrático e o agir político, destacando o papel político

do ser humano a partir do pensamento político de Hannah Arendt, traçando, ainda, suas

relações com o contexto brasileiro.

No segundo capítulo, por sua vez, será abordado o histórico das assessorias

jurídicas universitárias populares, perpassando o contexto histórico brasileiro e a discussão

sobre o acesso à justiça e o papel da universidade para a transformação social, apontando

algumas das características das Ajups.

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Por fim, o terceiro e último capítulo tratará das atividades das Ajups maranhenses,

das suas ações e dos obstáculos surgidos no espaço público aonde se inseriram, bem como

verificar a existência de contribuição ou não para o re-significar do espaço público

maranhense, mediados por seus feitos ao abordar se houve alcance na efetivação dos direitos

questionados.

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2 DEMOCRACIA E SEU CONTEXTO NO BRASIL

Além disso, sempre que o mundo artificial não se torna palco para a ação e o discurso – como ocorre com comunidades governadas despoticamente que os banem para a estreiteza dos lares, impedindo assim o ascenso de uma esfera pública – a liberdade não possui realidade concreta. Sem um âmbito público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço concreto onde aparecer.

Hannah Arendt

2.1 Considerações sobre a democracia

O Estado Democrático de Direito se orienta por meio de uma tensão existente

entre direito e política, uma vez que ao direito é pertinente o regulamento de conflitos

interpessoais e coletivos e à política a regência da ação coletiva a fim de legitimar atores e

decisões. Para o reconhecimento do Estado de Direito é necessário a fundamentação da

“liberdade da política” (ARENDT, 2006, p.195), aquela que separada da política no processo

histórico dirigido na Idade Moderna, nos conduz a afirmar que a raison d’être da política é a

própria liberdade, não pensada como a liberdade de direcionar o arbítrio, liberum arbitrium,

mas, a que é vivida pela própria ação humana.

Ocorre que, seguindo o desenvolvimento de Hannah Arendt, a política não é

domínio em si, exercido de governante sobre governado e nem manifestação da vontade

individual, mas consiste em ação feita em conjunto, refletindo assim, a condição plural do

homem como sujeito histórico.

A partir de então, cabe visualizarmos, em particular, a perda da concepção política

da liberdade1 que tanto influencia na efetividade do Estado Democrático de Direito,

esclarecendo que não há liberdade em ações solidárias desvirtualizando o próprio ambiente da

ação e, ainda, compreendendo que o limite do “eu quero” se supera no “eu posso”, na medida

que isso é dito em condição de par por todos.

1 Hannah Arendt em sua obra “A condição humana”, livro confeccionado por meio de várias conferências oferecidas na Universidade de Chicago, por volta da década de 50, destacou profundamente os aspectos que compõe a vita activa do homem, categoria essa que a acompanhou por toda a vida.

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É nessa faceta de designar as atividades humanas fundamentais, que Hannah

Arendt (2007b, p.15) delineia que:

Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. Trata-se de atividades fundamentos porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano (...). A condição humana do labor é a própria vida. (...) O trabalho produz um mundo artificial de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é mundanidade. A ação, única atividade que se exerce entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição - não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida política. (grifo nosso)

Compreende-se então, que a categoria política é sinônima da categoria liberdade,

conforme auferido por Hannah Arendt, e a liberdade existe, portanto, na condição plural do

homem, enquanto estiver agindo. Diante disso, poderíamos compreender que o elogio da

liberdade da política muito traz esperanças à discussão sobre o Estado Democrático e nos

relembra que desde quando fora proposta a idéia de Estado de democracia, a história política e

a filosofia política trouxeram consigo o ideal do governo do povo pelo povo.

De Platão a Hannah Arendt há estudos sobre como considerar esse modelo de

Estado, o orientador do pluralismo e assim observar que o princípio procedimental da

soberania popular está para o estado de direito com o mesmo papel que o princípio da

democracia está para o sistema de direitos como aludido por Habermas (1987, p.209), assim a

ação política só encontra a sua essência na concretização da esfera pública.

Essa mesma concepção orienta o Estado democrático de direito que se constitui de

forma atual na perspectiva normativa do sistema do direito e pelo sistema da política que

outrora se iniciou pela formulação de um juízo de valores auferidos sobre as mais diversas

formas de regime. Assim, Simone Goyard-Fabre (2003, p.22), em seu estudo sobre as

compreensões do Estado Democrático, direciona o olhar orientador para os fundamentos

nascentes sobre o modelo democrático de Estado:

Quando os filósofos da Antiguidade abordavam a questão política, preocupavam-se sem dúvida em examinar as estruturas reais das Cidade-Estado a fim de analisá-las conforme seus diversos parâmetros. Mas, de um ponto de vista normativo, procuravam sobretudo descobrir ou bem suas virtudes ou então suas imperfeições, com o intuito de elaborar um ideal político e, às vezes, traça os rumos de um reformismo institucional. Tal procedimento, bastante constante no pensamento

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político grego tem um alcance que vai muito além do caráter metodológico da reflexão dos filósofos. Sem perder de vista a historicidade da democracia, para eles tão fácil de descrever em sua fenomenalidade já que eram testemunhas diretas dela, situavam seu conceito, por um lado, dentro do quadro lógico de um ordenamento tipológico dos modos de governo, e, por outro lado, no quadro axiológico dos juízos de valor.

O princípio axiológico do regime democrático vem sendo há séculos traçado em

busca do juízo de valor correspondente a justiça, em A República – cujo marco fundamental

foi pensar na justiça como um diálogo político – é significativo o olhar direcional escolhido

por Platão, qual seja o de abandonar o sistema de números como metodologia ideal para a

classificação dos regimes e implantar a lógica do valor. Longe de posicionar-se no âmbito do

empirismo, Platão defende que as condições ideais de independência a qualquer estrutura

institucional da democracia partem de se superar os tópicos da utilidade e conveniência como

medidas a serem efetivadas a todo e qualquer regime, demonstrando que se deve analisar e

obedecer a sua ordem própria.

Segundo Platão, deveríamos exercer uma análise apurada, normativa e

comparativa do nosso modelo de governo e auferir os princípios fundantes da nossa

Constituição. É verdade que Platão alertou-nos que não poderíamos, em hipótese alguma,

constituir um Estado semelhante à República idealizada por ele, mas afirma que a organização

de Estado que mais se aproximar desse modo de governo provará da essência da Constituição

ideal, servindo assim, de fluxo primordial do devir como essência do existir.

Sem dúvida, há uma inquietação constante nesse pensamento, qual seja de como

localizarmos os pressupostos que constituem um Estado aproximado desse modelo de

organização estatal democrático? Diante disso, a reflexão de Hannah Arendt a ser

demonstrada se encaminha como a significação mais plausível sobre os pressupostos do

Estado Democrático que aqui estimamos dispostos a delinear. Para Arendt, o campo da

política não se perfaz apenas no campo da razão pura – como aludido por Platão – nem

mesmo pela razão prática comentada por Kant.

A política, apontada por Arendt, trata de inserir a ação humana na convivência

entre os plurais, o seu contexto de existência é o pensamento plural. Por isso que há a

preocupação em definir a existência humana, no seu viés político, não somente ao que tange

as experiências da manutenção da vida para o seu sentido biológico, mas ainda em especificar

que ainda que os seres humanos sejam seres condicionados, e isso não se confunde com a

natureza humana do homem, a sua inserção no mundo não generaliza a condição da qual

jamais nos condicionamos em absoluto.

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Dessa forma, a pluralidade humana se constitui como a virtuosidade da ação, logo

que se fossem todos objetos de reprodução, o Estado do qual estaríamos inseridos não

passaria de um Estado de repetições. Logo, para Arendt (2007a, p.16):

(...). A pluralidade é a condição humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. (grifo nosso)

A isso, Arendt aproxima da realidade fática a o que aqui ousamos nomear de

pensamento do julgar como condição inerente ao espaço público, onde a pluralidade se faz

fecunda e corriqueira. A filósofa nos apresenta o profundo comprometimento arraigado no

potencial do juízo do homem, quando em suas palavras, afirma que:

O juízo obtém sua validade específica desse acordo potencial. Isso por um lado significa que esses juízos devem se libertar das ‘condições subjetivas pessoais’, isto é, das idiossincrasias que determinam naturalmente o modo de ver de cada indivíduo na sua intimidade, e que são legítimas enquanto são apenas opiniões mantidas particularmente, mas que não são adequadas para ingressar em praça pública e perdem toda validade no domínio público. E esse modo alargado de pensar, que sabe, enquanto juízo, como transcender suas próprias limitações individuais, não pode, por outro lado, funcionar em estrito isolamento ou solidão; ele necessita da presença de outros ‘em cujo lugar’ cumpre pensar, cujas perspectivas deve levar em consideração e sem os quais ele nunca tem oportunidade de sequer chegar a operar. Como a lógica, para ser correta, depende da presença do eu, também o juízo, para ser válido, depende da presença de outros. (ARENDT, 2007b, p. 274-275)

De fato, o conceito de política enfrentado por Arendt de pensar o plural traz

consigo a capacidade de pensar o coletivo2, corroborando a “mentalidade alargada” de Kant e

aproximando do campo da natureza dialógica da política, que consta a busca pela verdade da

política. Assim, a capacidade de pensar o coletivo está no âmbito do rompimento do pensar

consigo mesmo e sim assumir que o resultado da atividade do pensamento infere um ponto

ilustrativo da responsabilidade dos indivíduos envolvidos, por não ser essa apenas uma

prerrogativa do filósofo ou de um especialista, mas de todos os homens no mundo.

Como se segue, a concretização do princípio democrático acompanha a análise de

como se porta a representação dos indivíduos nesse estado, e dessa forma Canotilho (2010, p.

419) sugere que:

A representação, como componente do principio democrático, assenta nos seguintes postulados: (1) exercício jurídico, constitucionalmente autorizado de funções de

2 Categoria aqui deduzida do enfoque construído por Hannah Arendt ao assumir que a ação política parte do espaço de ação e da palavra, rompendo o ambiente das perguntas metafísicas oriundas do diálogo consigo mesmo e onde o livre-arbítrio se localiza como núcleo da razão prática conhecida por Kant.

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domínio, feito em nome do povo, por órgãos de soberania do Estado; (2) derivação directa ou indirecta da legitimação de domínio do princípio da soberania popular; (3) exercício do poder com a vista a prosseguir os fins ou interesses do povo. Nisso se resumia a tradicional idéia de Lincoln: governo do povo, pelo povo, para o povo.

A representação dos homens para o princípio democrático que aqui começamos a

delinear favorece a que encontremos na capacidade da existência “a faculdade de ver as coisas

não apenas do próprio ponto de vista, mas na perspectiva de todos aqueles que porventura

estejam presentes” (ARENDT, 2007b, p. 275). Eis aqui uma questão fundamental, o

direcionamento salutar dado pela filosofia política à atividade do pensamento que se vê

urgente para a racionalização moderna da vida política. Podemos, portanto, a isso auferir que

o pensamento é atividade essencial para a inserção e o situar-se do homem no mundo e, ainda,

para o enfrentamento dos problemas encontrados na vida com seus pares.

Essa linha de raciocínio traça uma justificativa que possibilita enxergarmos a

efetivação prática da ação política focada nos espaços públicos trazida pela ação política do

homem, como alude Hannah Arendt (2009b, p. 170 e 171) ao tratar da concepção de política

no sentido grego:

A “política”, no sentido grego da palavra, está, portanto, centrada na liberdade, com o que esta é entendida negativamente como o estado de quem não é dominando nem dominador e positivamente como um espaço que só pode ser criado por homens e no qual cada homem circula entre seus pares.

A dimensão política de Arendt nos ensina que a cada indivíduo cabe a necessidade

de ter consciência das ocorrências humanas no mundo, de modo a posicionar-se perante elas e

assumir a responsabilidade inerente à plenitude do papel de membro da comunidade. A

dimensão política da existência do homem sobrepuja qualquer outra esfera do plano da

existência, tornando evidente o profundo comprometimento do homem com a esfera pública.

Assim, Arendt em A vida do espírito (2010, p.113) faz um sistema de comparação

entre os sujeitos da vida ao papel de ator e de espectador para compreender a “verdade” do

espetáculo da qual se compõem a essência das atividades da vida. Por esses dados, ela

contorna os papéis compondo que:

o ator, por sua parcela do todo, deve encenar o seu papel: ele não somente é por definição “uma parte”, como também está preso à circunstância de que se encontra seu significado “último e a justificativa de sua existência unicamente como constituinte de um todo. Assim, a retirada do envolvimento direto para uma posição fora do jogo (o festival da vida) não apenas é a condição de julgar – para ser o árbitro final da competição que se desenrola -, como também é a condição para compreender o significado do jogo. Em segundo lugar, o que interessa essencialmente ao ator é a doxa, uma palavra que significa tanto fama quanto

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opinião, pois é através da opinião da audiência e do juiz que a fama vem a se consolidar.

Diante dessa concepção, o espaço público se faz por excelência o espaço da ação

e da natureza dialógica da política3. Tendo se preocupado com a ocupação dos espaços

públicos, Arendt visualizou que o espaço da política compreende os consensos e os dissensos

inerentes à práxis do viver em comunidade. Segundo a autora, “os homens não precisariam do

discurso ou da ação para se fazerem entender” (ARENDT, 2007a, p. 188) caso não existisse

essa dinâmica existencial do espaço público.

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e de diferença. (...). Essa distinção singular vem à tona no discurso e na ação. Através deles, os homens podem distinguir-se, ao invés de permanecerem apenas diferentes; a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens. Esta manifestação, em contraposição à mera existência corpórea, depende da iniciativa, mas trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano. Isto não ocorre com nenhuma outra atividade da vita activa.

É com palavras e atos que nos inserimos na dinâmica do viver e podemos

compartilhar da vida pública. Assim, pode-se consentir que o profundo comprometimento

com a dimensão política do existir como ser humano influencia no sentido democrático de

espaço público que nos deparamos.

2.2 A ocupação do espaço político democrático

O Estado Democrático de Direito, como dito inicialmente, é resultante da tensão

entre direito e política. O direito e a política constituem pólos distintos de uma mesma esfera

que compõe um Estado de direito que preza pelo alcance nos espaços do público e do privado

da vida cotidiana dos cidadãos. O problema com o qual lidamos por ora tange a evidenciar

como os eventos políticos direcionados pela coletividade são tratados na moderna esfera

democrática.

É sabido que o atual Estado Democrático de Direito se perfaz pela convivência de

dois poderes, o constituído e o constituinte, de modo a direcioná-los para a garantia da

estabilidade e da renovação do seu organismo político governamental por meio da liberdade

participativa. Seu gerenciamento, observado por Arendt, busca a harmonização do seu 3 Aqui inserimos o entendimento de dialogicidade de Freire para compreendermos e apreciarmos o pensamento de Hannah Arendt sobre a dimensão dialógica da política.

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controle pelos pares e, ainda, a superação do modelo político-burocrático de coordenação de

Estados, gerador de distinções, sendo uma delas o manuseio da identificação de classes para

burocratizar o respeito ao direito.

O tradicional comportamento de senhoril do sistema compele a produções

simbólicas de dominação que se perfazem como instrumento de manuseio tático do controle

sobre a população. Esse efeito ideológico, segundo Bourdieu (2007, p. 11), é vislumbrado na

desmoralização das classes dominadas, e se torna visível quando:

A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-as das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas, para a legitimação das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções. Este efeito ideológico, produz a cultura dominante dissimulando a função de divisão na função de comunicação; a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pelas suas distâncias em relação à cultura dominante.

Desde os anos oitenta, visualizamos a supervalorização da estruturação das

instituições republicanas, e ainda, daquilo que ousamos denominar da banalização da ação

política. A democratização dos Estados implicou na institucionalização dos espaços públicos

por essência, no processo conhecido por institution building ou good governance, gerando

uma falsa solidariedade entre os cidadãos e instaurando o fenômeno da solidão, indesejado

pela crítica local de Arendt (2007a, p. 68 e 69):

Nas circunstancias modernas, essa provação de relações – objetivas – com os outros e de uma realidade garantida por intermédio destes últimos tornou-se o fenômeno de massa da solidão, no qual assumiu sua forma mais extrema e mais anti-humana. O motivo pelo qual esse fenômeno é tão extremo é que a sociedade de massas não apenas destrói a esfera pública e a esfera privada: priva ainda os homens não só do seu lugar no mundo, mas também do seu lar privado, no qual antes eles se sentiam resguardados contra o mundo e onde, de qualquer forma, até mesmo os que eram excluídos do mundo podiam encontrar-lhe o substituto no calor do lar (...)

No entender de Arendt, compartilhado aqui, a expansão da solidão permitiu a

alienação das sociedades modernas dificultando a solidificação do processo de

democratização do Estado, de maneira a causar uma “democracia com defeitos congênitos”,

no seu discurso e prática. Primeiro, por fomentar uma idéia de “democracia consolidada”,

onde teríamos uma sociedade compartimentada e finalizada em sua efetividade e existência.

Outro, porque possibilita sustentar relações débeis entre o Estado e a sociedade explicitando

um status de boa governança malgrado.

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21

É necessário frisar que, com o avanço dessa concepção de Estado de Direito, as

sociedades modernas caíram num processo de massificação em que o interesse de agir passou

a constituir apenas a busca pelas condições de subsistência, anulando o processo de

mobilização pela condição de vida boa. Em sua obra A condição humana, Arendt (2007a,

p.56) delineia aquilo de mais claro na sociedade, o fruto de sua constituição:

A mais clara indicação de que a sociedade constitui a organização pública do próprio processo vital talvez seja encontrada no fato de que, em tempo relativamente curto, a nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades concentraram-se imediatamente em torno de única atividade necessária para manter a vida – o labor.(...) A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são admitidas em praça pública.

Ao que tudo indica, esse processo apresenta ameaça à própria lógica da ação que o

Estado de direito não reconhece como ameaçada, pois, insiste e continua com a instituição de

políticas sociais, não permitindo a manifestação livre do homem. A saber, para o Estado

Democrático de Direito nada mais importa que a legitimação das regras político-institucionais

reconhecidas inserindo esse processo num ritmo de concordância da liberdade geral

corresponde à habilidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido. Quando dizemos que alguém está “no poder” estamos na realidade nos referindo ao fato de encontrar-se esta pessoa investida de poder, por um certo número de pessoas, para atuar em seu nome. No momento em que o grupo, de onde originara-se o poder (potestas in populo, sem um povo ou um gruponão há poder), desaparece, “o seu poder” também desaparece. (ARENDT, 2009a, p. 18-19).

A força organizadora desse Estado, então, passa a restringir o espaço da liberdade

da política como auferido inicialmente, corroborando assim, com a redução do espaço da ação

popular e por fim, reduzindo o acesso aos espaços públicos direcionados ao próprio exercício

da liberdade política. Nesse sentido, Arendt (2007b, p.196 e 197) afirma que:

O campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, é claro, mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da política. E mesmo hoje em dia, quer o saibamos ou não, devemos ter sempre em mente, ao falarmos do problema da liberdade, o problema da política e o fato de o homem ser dotado com o dom da ação; pois ação e política entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber se, ao menos admitir a existência da liberdade, e é difícil tocar em um problema político particular

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sem, implícita ou explicitamente, tocar em um problema de liberdade humana (...) A liberdade, ou o seu contrário, experimenta-se com o outro e não em relação consigo mesmo. Os homens são livres – diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois, pois ser livre e agir é a mesma coisa.

É por se valer desse pensamento que se observou nas práticas das assessorias, a

serem demonstradas no capítulo seguinte, como um dos permissivos intersubjetivos à

ressignificação dos espaços públicos existentes no Estado democrático brasileiro. A isso,

soma-se a possibilidade existente no Estado democrático de fazer valer a virtude da política

como expôs Arendt em toda a sua vida. Assim a busca pela liberdade política aspirada pelas

assessorias políticas não se perfaz pela manutenção da soberania popular logo que, uma vez

mantida, teríamos apenas a própria dependência da vontade de cada indivíduo sobre os

demais, restando assim a uma prática da prescrição.

Paulo Freire menciona a prática da prescrição própria à atitude popular, inferindo

ao pensamento da “aderência” qual seja o de seguir com a manutenção do poder e com o

status quo do espaço, delineando um homem que segue os padrões já estabelecidos não sendo

capaz de romper com a contradição e nem manifestando estima de superá-la. Aliás, Freire

(2005, p.36 e 37) destaca que:

Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no que vimos chamando de consciência ‘hospedeira’ da consciência opressora. (...) o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores

Em seguida, destaca-se o contraponto a essa atitude, a chamada prática dialógica,

conhecida por seu autor e tão cara às assessorias, uma vez que seu método se baseia na

superação da idéia de reificação dos seus atores e assim, fazendo com que estes assumam seu

papel de homem-histórico na escrita do mundo. Como descreve Paulo Freire (2005, p. 45),

sua concepção de intersubjetividade serviria como instrumento de humanização do homem e

ainda dos espaços ocupados por ele, logo que:

A pedagogia do oprimido, que busca a restauração da intersubjetividade se apresenta como pedagogia do Homem. Somente ela, que se anima de generosidade autentica, humanista e não “humanitarista”, pode alcançar este objetivo. Pelo contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de falsa generosidade, faz dos oprimidos objetos de seus humanitarismo, mantém e encarna a própria opressão. É instrumento de desumanização.

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De modo semelhante, o estabelecimento de organismos prestados ao ofício da

responsabilidade diante do mundo não se limitando ao isolacionismo da luta, uma vez que aos

homens não é dado à possibilidade de viverem em ato solitário, constituindo dessa forma a

condição existencial da política, como afirmava Arendt.

Daí mencionarmos a importância da busca contínua da liberdade política,

retirando os atores da re-significação das “sombras” da opressão e na medida do possível,

compartilhar da pauta do pertencimento. Assim, é que identificamos a necessidade da

valorização do thaumatzéin4 diário, na busca da liberdade. Neste diapasão, Paulo Freire (2005,

p. 37), com muita sabedoria, afirma que:

A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é idéia que se faça mito. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos.

Aos homens é dado, sob a condição humana, o compartilhamento do con-viver,

assumindo o comando da autoria. E, portanto, a autoria da vida é categoria basilar para que as

assessorias jurídicas direcionem suas metodologias a prática da amizade política pelo mundo,

qual seja a de promover a conscientização da responsabilidade pelo mundo inerente a

característica humana. Mas, dada as suas peculiaridades para a constituição do movimento

como visualizar a sua efetiva realização aliando-se a crítica do contexto histórico e ao

compromisso de autoria da vida levantada como pressuposto para o reconhecimento da

responsabilidade no espaço público? É o que se passará a tratar.

2.3 A abertura democrática e os novos sujeitos de direito no Brasil

O primeiro olhar para se localizar como o movimento das assessorias jurídicas

universitárias populares podem se inserir no contexto brasileiro é compreender que o Estado

Contemporâneo tem como missão a função de conciliar dois pressupostos, aparentemente

inconciliáveis, por bem saber, a ordem social e a mutabilidade.

É sabido que o Estado, tal com concebido pelo Direito, se perfaz de uma realidade

dinâmica e mutável e por isso, então, que aqui se destaca o movimento de 1964 e seus atos

4 Categoria inserida por Aristóteles para mencionar a perda da capacidade humana de superar a estagnação da surpresa, ou seja, de esclarecer que ao ser humano se faz necessário superar a idéia de planificação dos espíritos, fazendo com que o espanto, a estupefação sejam componente básico da buscar diária.

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institucionais como a experiência brasileira mais apropriada para justificar a essência dos

movimentos sociais, tais como a assessoria jurídica popular que ajudam a construir a história

do Brasil.

Em rigor, é salutar sintetizar que a constituição dos movimentos das entidades de

Assessoria Jurídica Popular tal como se confere em sua essência, sempre renovado e

multifacetado, foi dado em consonância com o novo período que se instaurava no Estado

brasileiro, pós-regime militar.

O regime militar brasileiro, que durou de 1964 a 1985, com intensa e violenta

repressão aos seus opositores e esvaziamento do espaço público através da Doutrina da

Segurança Nacional e da chamada “luta contra a subversão”. Fato é que a renovação no

período histórico brasileiro, advinda com o fim do regime, culminou no momento de

revitalização nacional e de mudanças de perspectivas e delimitadores sociais, conhecido pela

abertura democrática que vigoraria.

Nesse período, então, torna-se presente o surgimento de diversas manifestações

sociais por todo o país, reivindicando novas conquistas por direitos e apresentando o

surgimento de sujeitos de direitos originários, em face da organização manuseada nos espaços

de reivindicação ocupados.

Nesse sentido, Maria da Glória Gohn (2006, p.287) destaca que as décadas de 70 a

90 foram, de fato, um momento de exercício da ação coletiva, no que tange às lutas pela

cidadania e democracia, respaldando o novo espírito de mobilização que surgia da população.

Do ponto de vista da produção de conhecimento sobre os movimentos sociais, o “novo” deste último período deve ser visto numa dupla dimensão: como construtor de espaços de cidadania, com as novas leis que se estabeleceram no país e com a reviravolta teórica que passa a correr no plano das análises. Na primeira, o exemplo maior é dado pela nova Constituição brasileira, em especial no capítulo sobre os novos direitos sociais. Na segunda destacam-se as novas categorias que passaram a ser introduzidas na agenda dos analistas sobre os movimentos sociais: a questão do cotidiano em Agnes Heller (1981); a problemática da relação entre a democracia direta e a democracia representativa em Norberto Bobbio (1992); e a questão das esferas públicas e privadas enquanto espaço de participação social para a construção da democracia, em Hannah Arendt.

O aprofundamento da participação social desse período se deu de tal maneira

engajado que os movimentos sociais característicos por sua particular autonomia na discussão

dos problemas sociais sofreram com a questão da redefinição dos limites da auto-delimitação

que o momento lhe impunha. Assim sendo, Wolkmer (2001, p. 237) concebe tal momento

representando-o na superação da noção de sujeito cognoscente a priori, intitulado como

Page 26: AJUP NO MARANHÃO: a contribuição para o (re) significar do espaço público maranhense

25

aquele que reage conforme os ajustes do objeto oferecido, correlacionando-o ao momento

histórico-social de superação ativa pelo qual a nação se identificava:

O “novo”, enquanto portador do futuro, não esta mais numa totalidade universalista constituída por sujeitos soberanos, centralizados e previamente arquitetados, mas no espaço de subjetividades cotidianas compostas por uma pluralidade concreta de sujeitos diferentes e heterogêneos. O amplo espectro de uma mundialidade repleta de subjetividades agrega sujeitos pessoais e coletivos que se vão definindo e construindo a cada momento num permanente processo interativo.

Compreender os fatores conjunturais do período que se definiu como os “anos de

chumbo” da história brasileira, contribui para que seja efetivada a identificação da essência

desses novos movimentos. É imperioso que se faça a observância do caminho traçado pelas

entidades motivadoras da prática da Assessoria Jurídica Popular, não só na estima de entender

o processo histórico vivido por elas, mas, ainda, para compreender como o Direito avaliou

suas produções e como os operadores do Direito trabalharam com as mais diversas posturas

sustentadas por cada movimento. Essa análise permite, ainda, que outro ponto seja alcançado:

verificar se houve atributo emancipatório constituído ao longo de toda a sua trajetória.

Todo esse processo de exame do histórico dos movimentos de Assessoria Jurídica

Popular parte da premissa de que o campo jurídico cultiva uma dialogicidade única com a

realidade social, por vezes manifestada pelo nascimento de mecanismos alternativos à

concepção tradicional da intermediação jurídica dos conflitos sociais, traduzindo novas

conjecturas, dinâmicas e organizações advindas do colapso situacional vivenciado. As

sucessivas crises institucionais e as conseqüentes manifestações populares decorridas da crise

instaurada pelo golpe militar de 64 contribuíram para o ambiente edificador de um novo

paradigma sócio-político, modificando o contexto social ao romper com valores e parâmetros

culturais do séc. XX. Desse modo, Wolkmer alude que (2001, p. 237):

O “novo” e o “coletivo” não devem ser pensados em termos de identidade humana que sempre existiram, segundo critério de classe, etnia, sexo, idade, religião ou necessidade, mas em função da postura que permitiu que sujeitos inertes, dominados, submissos e espectadores passassem a sujeitos emancipados, participantes e criadores de sua própria história.

Igualmente, verificamos de modo manifesto e inicial, o embate emergido no

espaço político nacional pela abertura do direito de expressão que se deu para além do

requerimento de uma cidadania formal, na estima de alcançar a consolidação mais firme dos

laços regentes do público e do privado. O tipo de ativismo jurídico abalizado naqueles tempos

e mediado, boa parte, por grupos existencialmente semelhantes aos de Assessoria Jurídica

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Popular, objetivou um novo modelo de Estado que repensasse maneiras diversas de diálogo e

de regulação do cenário nacional.

Para a análise conjuntural de verificação do foco principal das lutas políticas no

espaço nacional destaca-se a busca pela efetivação dos direitos, em especial dos direitos

humanos que se demonstraram como o fator recorrente de associação aos movimentos da

época, deixando por óbvio e inconteste a existência de um movimento de restrição popular ao

plano do convívio nacional. A essa restrição da participação do povo somou-se vários

instrumentos legais intimidadores buscando a poda e a verticalização das ordens emanadas

pelo poder central, suprimindo os movimentos de classe e toda e qualquer forma de

contestação que se destacavam no contexto de crise, como exemplo os movimentos pela

anistia de 77 e as greves do ABC de 795.

Para tanto, o processo de redemocratização do país se autenticou com a

legitimação dos sujeitos de direitos, com a subjetividade popular superando a ação coletiva do

simples contestar e reconhecendo novos referenciais e novas pautas reivindicatórias que

superavam os aportes tradicionais de organização popular. Um dos marcos excedido pela

constituição de novos movimentos é a superação do binômio renúncia-contestação, marcante

na década de 70 e anos seguintes ao período ditatorial, sugerindo então, mudanças no plano de

execução do campo epistemológico dos movimentos sociais.

Nesse decorrer Gohn (2000, p.11) retrata que:

É bom recordarmos que após o período transcorrido entre 1964-1974, sob o regime militar, a sociedade civil reagiu e se manifestou. A partir de 1978 e ao longo dos anos 80 tivemos um novo ciclo nas relações sociedade-Estado, que entrou para a História como sendo de natureza reivindicatória e participacionista. (...) As grandes mobilizações que conferiram vitalidade nos anos 80 aos grupos e movimentos sociais organizados, principalmente no setor urbano, perderam visibilidade, mas surgiram novas formas de fazer política.

As características mais marcantes desse avanço, acompanhado na década de 80,

apontam para o questionamento da subjetividade antes concebida pela coletividade e agora

colocada em questão pelo surgimento de novos espaços de participação política.

Assim, novas identidades aos movimentos foram conferidas e um significativo aumento da

mobilização popular foi identificado com o momento político apreciado pela mudança

estrutural da época, exemplificando-se com o surgimento da Central Única dos Trabalhadores

e o fortalecimento das Comunidades Eclesiásticas de Base (CEB’s). 5 Maria da Glória Gohn, em sua obra Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos, demonstra em sede de anexo o mapeamento do cenário dos movimentos sociais no Brasil, referente aos anos de 1972 – 1997.

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À luz dessas modificações no cenário político brasileiro, destaca-se as

mobilizações sociais que se voltaram para a problemática da miséria social, mal acentuado

pelo feroz crescimento urbano e econômico contraído pelos projetos de expansão econômica

da América Latina e do Brasil, que foram instituídos pós-ditadura de 64. O tão conhecido

“crescimento econômico” trouxe consigo a temática da miséria que fora foco de várias

mobilizações sociais que trabalharam pari passu com a temática da sobrevivência humana nas

grandes cidades e nos centros rurais, agindo assim como um mecanismo de resposta ao novo

modelo de políticas sociais implementado pela nova democracia.

Além dessa constatação, notou-se clara a formalização do processo de abertura

política mediada pelo crescimento e diversificação dos movimentos sociais que buscavam

temáticas em consonância com o novo contexto político econômico nacional e mundial e que

traziam consigo novos conceitos de cidadania e participação popular, como assenta Vladimir

de Carvalho Luz (2008, p.116):

Parece evidente, então, que a lógica dessa noção histórica de cidadania, de cunho passivo e liberal, calcada na idéia de representação, assimilada e propugnada pelo saber jurídico oficial, chocou-se, ao longo do processo de abertura política brasileira, com o grau de organização popular e a consciência dos sujeitos demandantes acerca dos direitos conquistados.

Nesse processo de “descoberta” de novos espaços de luta política, a sociedade

civil despertou para a pluralidade de conceitos impressos nas mais diversas manifestações

populares surgidas no decorrer da década e traziam consigo um padrão de cidadania que

refletia no modo de reorganização da instância formal da estrutura do estado e, ainda, na

organização popular da sociedade. Nessa perspectiva, foram levadas ao Poder Judiciário

diversas demandas antes compartimentadas e agora legitimadas pelo texto constitucional de

1988 que as politizou por meio do processo de abertura constitucional.

Vários fatores contribuem para essa contastação, entre eles o que Lédio Rosa de

Andrade (2001, p. 23 – 24) define ter ocorrido

Simultaneamente, a sociedade civil começou a organizar-se e a trazer ao Poder Judiciário reivindicações não resolvidas pelos outros Poderes: todas, até então, consideradas políticas, econômicas e sociais, não jurídicas. São exemplos as questões de terra (ocupações políticas), dos salários (grandes conflitos coletivos e greve – sistema econômico) e, inclusive, pedidos de indenização por mortes ocasionadas pelo regime anterior (política).

Conforme o relatado, novos movimentos jurídicos surgiram diante desse contexto,

como exemplo o da advocacia popular. A experiência da advocacia popular data da década de

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70 e se caracteriza pela crítica à cultura jurídica dominante, ao apresentar-se como sujeito-

alternativo no embate político da ação postulatória do direito, tendo grande destaque ao

alinhar os seus serviços ao dos serviços populares legais institucionalizados das assessorias

populares.

No contexto em foco, Santos (1997, p.263) justifica os efeitos oriundos da

articulação do período ao promover a idéia de “alargamento do espaço político” tal como o

promovido pelos sujeitos coordenadores do movimento da crítica jurídica brasileira, entre eles

os advogados populares, que juntamente aos serviços populares orientaram e direcionaram as

mudanças inovadoras no campo da crítica jurídica6. Tais mudanças puderam ser

contabilizadas em estudo formulado por Gohn (2006, p.320), ao auferir que:

no plano geral, a principal contribuição dos diferentes tipos de movimento sociais brasileiros dos últimos vinte anos foi na reconstrução do processo de democratização do país. E não se trata apenas da reconstrução do regime político, da retomada da democracia e do fim do regime militar. Trata-se da reconstrução ou construção de valores democráticos, de novos rumos para a cultura do país, do preenchimento de vazios na condução da luta pela redemocratização, constituindo-se como agentes interlocutores que dialogam diretamente com a população e com o Estado.

Chega-se, então, ao ponto de registrar o processo evolutivo das experiências dos

serviços orientadores das Assessorias Jurídicas Brasileiras especificando a tonalidade

alternativa, a partir da análise conjuntural, resguardando os argumentos propiciadores a

promoção da força humanizadora inerentes as Ajups. Assim, passaremos a abordar no

próximo capítulo uma compreensão do espaço e da contemporalidade da prática inovadora

das Ajups.

6 Entre os agentes defensores do movimento de crítica da prática jurídica, destacamos Eugênio Lyra, na Bahia; Jacques Alfonsin, no Rio Grande do Sul; e Celso Soares, no Rio de Janeiro.

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3 AS ASSESSORIAS JURÍDICAS UNIVERSITÁRIAS POPULARES

Ou os estudantes se identificam com o destino do seu povo, com ele sofrendo a mesma luta, ou se dissociam do seu povo, e nesse caso, serão aliados daqueles que exploram o povo. (Florestan Fernandes)

3.1 O contexto histórico brasileiro no surgimento das assessorias jurídicas universitárias populares

Conforme mencionado no capítulo anterior, nas últimas quatro décadas vêm se

delineando, na sociedade brasileira, movimentos sociais7 que se caracterizam por constantes

lutas na esperança de concretizar o reconhecimento da cidadania, da liberdade política8 e da

garantia dos direitos humanos fundamentais. Num primeiro momento se verificou que esse

embate teve como ponto gerador a promulgação da Constituição de 88, que trouxe uma nova

ordem de cidadania imposta, impulsionando, inicialmente, o reconhecimento dos direitos que

foram maltratados durante o período de exceção militar.

Nesse sentido, destaca Vladimir Luz (2005, p. 157 – 158):

A instância jurídica, na sociedade brasileira, ao longo das décadas de 70, 80 e 90, foi progressivamente impactada pela nova subjetividade coletiva decorrente dos Novos Movimentos Sociais. Os efeitos desse processo foram significativos na esfera Legislativa, notadamente pela visível ampliação do leque de instrumentos formais de postulação, seja no campo de formação de entidades mediadoras, orientadoras dos grupos sociais, bem como na instituição de direitos substantivos, metaindividuais, esses últimos, guindados, em sua maioria, ao plano constitucional.

Esse processo de discussão dos novos alcances da cidadania permitiu a articulação

nacional que se fez mediada por diferentes níveis de mobilização das instâncias. De imediato,

no intento de efetivar o reconhecimento dos novos direitos positivados e, ainda, tornar

inesquecíveis e públicos os males do período de exceção, procurou-se a ótica do Poder

Judiciário como órgão reivindicativo a ser acionado. Nesse prisma, temos o Judiciário como o

7 Destaca-se aqui a contribuição aferida da construção cognitiva de TOURAINE ao conceber os movimentos sociais como uma nova modalidade de padrão da subjetividade coletiva, tipicamente marxista, definido-a pelo binômio sustentador dominado-dominante, regendo–a ainda pelos parâmetros econômicos. 8 Trata-se aqui de refletir o pensamento de Hannah Arendt em seus ditos na obra A vida do espírito. “Deixemos, portanto esses pensadores profissionais de lado, e concentremos nossa atenção nos homens de ação, que devem ter um compromisso com a liberdade pela própria natureza de sua atividade, que consiste em “mudar o mundo”, e não em interpretá-lo ou conhecê-lo”. (Hannah Arendt, 2010 p.463)

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lócus originário da nova ordem de cidadania, permitindo que a advocacia e magistratura, estas

localizadas no campo da Crítica Jurídica, pudessem garantir a reserva mínima da experiência

do pensamento alternativo, questão fundamental acolhida nesse novo tempo.

O estudo da formação contemporânea dos movimentos sociais possui forte liame

com a ação dos intelectuais envolvidos na superação da dogmática tradicional acobertada pelo

conservadorismo reconhecidamente arraigado no Direito. O destaque aqui se observa, num

primeiro momento, onde há o envolvimento de uma parcela crítica da magistratura, como

aludido por Arruda Jr (1992. P. 167 - 168), da advocacia popular e dos operadores conectados

aos desafios e a dialética proposta durante esse período.

Sem pretender historiar a formação da magistratura alternativa, na sua origem gaúcha, é fato que ela resulta, (...) como atitude prática com efeitos concretos de “socialização” na sociedade civil, em três planos concomitantes, embora de efeitos diversos: a) pela prestação jurisdicional de uma maneira inusitada, até mesmo revolucionária, (…) que indica a possibilidade de uma mudança de 180 graus na hermenêutica tradicional, exegética; b) pelo efeito dominó junto a magistrados (…), bem como junto a operadores jurídicos nas mais variadas profissões jurídicas (...); c) e, principalmente, pelo resgate, junto a amplos setores da população, da ruptura do discurso pretensamente unívoco, soberano, absoluto, presente entre os ventríloquos do poder estabelecido, uma vez que a quebra da “neutralidade”, da “apoliticidade”, enfim, a visualização dos juízes em carne e osso, a partir de um discurso contra o status quo juridicista, (…) possibilitou um duplo sentimento: de potencialização de revolta contra o poder dominante bem como o reforço da crença, a partir mesmo do ideário legado pela burguesia e por ela mesma negada, da identidade entre isonomia jurídica e isonomia social, entre Justiça/Poder Judiciário.

Apesar da formação do pensamento crítico jurídico contemporâneo possuir vários

agentes defensores, o espaço investigatório que aqui se vem delimitando, não se desenha

somente no espaço da ação postulatória e de julgamento atinentes aos sujeitos já

mencionados, mas ao campo específico das experiências dos serviços legais populares, que se

consolida no tempo e tem como pedra fundamental a atuação da advocacia popular e o

movimento do Direito Alternativo, qual seja melhor explicitado do trabalho das assessorias

jurídicas nas universidades.

Além do referido, segue-se discutir a questão metodológica perfilhada nessas

experiências e, ainda, explicitar a tônica alternativista encontrada nesse novo modelo de

serviço popular, destacando o seu campo teórico e seus alcances na atuação.

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3.2 A prática inovadora da assessoria jurídica universitária popular.

Que a prática da assessoria jurídica universitária popular, conhecida como AJUP,

traz consigo um elemento inovador, já se é conhecido. Importa saber, que tipo de inovação se

trata mencionado nesse tipo de serviço popular? Quais as implicações oriundas dessa

metodologia da prática inovadora?

Esse novo método de serviço popular encontra no seio da Universidade o núcleo

para seu desenvolvimento por termos no meio acadêmico o tripé fundamental ensino –

pesquisa – extensão servindo como modelo da característica alegórica do ensino superior

ideal, tentada por vezes pelo molde de ensino superior brasileiro, que tem sua imagem

infamada e distorcida. Em reflexão sobre as práticas da Universidade, Demo (1994, p. 15) traz

um exame pertinente sobre a questão:

Educação e conhecimento constituem, hoje, eixo da transformação produtiva com eqüidade e fatores essenciais da efetiva cidadania construtiva e participativa. Nesse contexto, a pesquisa ocupa o centro do desafio educacional em termos de inovação a serviço do homem, e a universidade é o lugar privilegiado da produção própria de conhecimento (...). Todavia, a universidade brasileira, em sua maioria, num processo histórico equivocado, tornou-se instituição de mero repasse de conhecimento, e á sua postura reprodutiva acrescenta-se o corporativismo e a burocracia paralisante. A educação superior em crise exige a adoção de novos paradigmas, mas a Universidade, para inovar, precisa saber inovar-se.

O que ocorre é que os serviços populares das AJUPS propõem uma reflexão mais

aprofundada do espaço da Universidade, contribuindo para a renovação da postura

institucional sobre o tripé universitário e, conseqüentemente, sobre a extensão universitária - o

seu próprio lócus, tornando evidente a sua proposta alternativa. Desse modo, rompe com a

dogmática jurídica tradicional, vislumbrada no aspecto tecnicista do curso, ao apresentar um

novo modelo de serviço legal localizado na esfera da extensão universitária da graduação em

Direito.

Ressalta-se, aqui, que o lócus defendido é o do campo universitário

consubstanciado por toda a dinâmica existente nesse ambiente, e, portanto, da extensão

universitária mais precisamente, sendo esta, todas às vezes, acompanhada pela pesquisa e

ensino.

Conforme lembra Christianny Maia, em sede de dissertação (2006, p.15):

A assessoria jurídica popular – AJP se desenvolve no meio acadêmico (nas universidades) através de projetos de extensão universitária e na sociedade através da assessoria a movimentos populares, sindicatos ou organizações não

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governamentais, sempre ligada à temática dos direitos humanos. Portanto, é importante esclarecemos que não se trata de uma teoria ou escola, mas de um movimento que há poucos anos, vem se consolidando como uma alternativa à prática jurídica tradicional, demonstrando que é possível operar o Direito em uma perspectiva emancipatória e transformadora.

De imediato, cabe aprofundarmos o campo de atuação das AJUPS, que vem

sendo trabalhado neste estudo a fim de não excluirmos as mais promissoras discussões

existentes9 sobre o seu campo fundamental. Nestes termos, vislumbramos que a Universidade

guarda em seu seio o espírito vital para a ressignificação dos antigos paradigmas sociais e,

desse modo, se afirma como o ambiente de atuação das assessorias aqui pautadas.

Por sua vez, é nela que depositamos a capacidade de encontrar sujeitos10

competentes a promover a superação dos entraves trazidos pelo processo educativo

tradicional da universidade que temos e que auxilia no sistema mantenedor do status quo.

Dessa forma, a universidade que queremos se revela como o local ideal para a efetivação da

liberdade crítica, da atividade intelectual e da ressignificação de paradigmas concernente a

esse espaço público.

A renovação de paradigmas promovida pela Universidade deve exigir a

reinvenção do pensamento crítico nela presente, de forma a refletir a utilização do meio

acadêmico pelos próprios acadêmicos e pela sociedade. Daí a necessidade de superar a

cumplicidade da Universidade com o status quo, que vem sendo mantido durante séculos pela

classe econômica dominante. Cumplicidade esta que, por vezes, pode ser visualizada pela

manutenção de projetos meramente assistencialistas.

Dessa forma, o envolvimento da Universidade com a sociedade vem se adequando

ao antigo conceito de responsabilidade social, maquilado, por vezes, como compromisso

social da Universidade. A problemática inicial encontrada nesse conceito está no processo

atual de distanciamento do meio acadêmico com a realidade fática da sociedade, onde se

visualiza a transformação do ideário educacional superior sobrepujado e modificado em

verdadeiros centros de tecnização de homens.

9Existem dentro da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária Popular, discussões acerca da expressa e necessária definição do campo de identidade das AJUPS, promovido por alguns núcleos e projetos de ajups, a fim de extinguirem ou não a presença de “universitária” na sigla representativa do movimento. A justificativa apresentada corresponde ao fato de não excluirmos profissionais graduados em Direito, ex- membros de assessoria jurídica universitária popular, e ainda, profissionais graduados em outras áreas do ambiente de teorização e mobilização promovido pelas ajups. Não há relato registrado em arquivo da RENAJU sobre algum posicionamento ou delimitação discutida durante encontros sobre o posicionamento da rede perante a questão. Portanto, a consenso entre os integrantes das ajups de que não há justificativa plausível e não contraditória a seu próprio fundamento que supere tal dificuldade. 10Tal conjectura parte do pressuposto comentado por Wolkmer em suas obras, tratando do ambiente de contestação alternativo para os ambientes periféricos e originário do pluralismo jurídico, capaz de promover a legitimação de novos sujeitos de direito, e ainda, a descentralização do espaço público de participação social.

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Todo esse processo de mudança se clarifica quando observamos que as

instituições de ensino superior, públicas ou privadas, estão se transformando em centros

mercantilizados. Assim, a sua missão é formar cada vez mais profissionais preocupados com

seu próprio enriquecimento econômico, a ser adquirido com a graduação e na especialização

de uma massa específica para o mercado de trabalho, e ainda, na contribuição ao aumento dos

laboratórios humanos, onde os projetos desenvolvidos pelo alunato superior se traduzem em

meros ambientes de coletas de dados, muitas vezes inutilizáveis e distantes da própria

justificativa da pesquisa.

Esse alerta é reforçado por Boaventura Santos (1997, p. 229) quando define que:

As chamadas atividades de extensão que a universidade assumiu sobretudo a partir dos anos sessenta constituem a realização frustrada de um objetivo genuíno. Não devem ser, portanto, pura e simplesmente eliminadas. Devem ser transformadas. As atividades de extensão procuraram ‘extender’ a universidade sem a transformar; traduziram-se em aplicações técnicas e não em aplicações edificantes da ciência; a prestação de serviços a outrem nunca foi concebida como prestação de serviços à própria universidade. Tais atividades estiveram, no entanto, ao serviço de um objetivo genuíno, o de cumprir a ‘responsabilidade social da universidade’, um objetivo cuja genuinidade, de resto, reside no reconhecimento da tradicional ‘irresponsabilidade social da universidade’.

É, portanto, nesse espaço de superação que a pesquisa e a extensão contribuem

para a superação do paradigma universitário. Permitir a ausência desse binômio é tolerar a

consolidação de um ensino degradante e deficitário, não possibilitando o confronto irrefutável

da sociedade com a teorização acadêmica, e nesse patamar de necessidade de superação do

paradigma universitário é que as AJUPS apresentam uma proposta de ressignificação

reflexiva e inovadora ao ambiente acadêmico.

Boaventura (1997, p. 229) nos ensina que “abertura ao outro” é o sentido

profundo da democratização da universidade, nos permitindo defender a natureza política do

projeto da assessoria, pois com ela podemos visualizar a inserção de grupos historicamente

excluídos das discussões acadêmicas, possibilitando a rediscussão dos saberes científicos, de

modo que o acesso à Universidade se dê em várias vias, seja ela por meio institucional ou

ainda, pelo meio da comunidade ou pelo sujeito parceiro da atuação.

Dessa forma, essa nova atuação dentro da Universidade se distancia dos chamados

serviços legais tradicionais, visualizada dentro da academia por meio dos escritórios-escola e

os atendimentos de mutirão, onde o sujeito “atendido” é um mero objeto do educando. O prof.

Celso Fernandes Campilongo descreveu uma categorização clássica dos serviços legais

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inovadores, balizando o questionamento acadêmico sobre as novas realidades sociais que

surgiam com o processo de democratização nacional.

Assim, essa inovação facilita a interpretação sobre a temática dos serviços

jurídicos, por regra geral, de Assistência Jurídica, permitindo que seja observada mais

distintamente a proposta de atuação compartilhada pelos modelos de assessoria existentes,

ressalvando suas peculiaridades aqui já apresentadas e contrapondo com os serviços

tradicionais.

Essa tipologia criada pelo professor Campilongo contribuiu para a orientação

organizacional dos serviços da Assistência Inovadora, porém, cabe destacar que algumas

questões fundamentais a esses modelos de assistência, em certa medida, orientaram também a

Assessoria Jurídica Popular. Portanto, as inovações trazidas por esses serviços convieram para

a ressignificação do paradigma universitário, ao ampliar a compreensão de que o Direito é um

instrumento de luta social para o acesso digno à justiça, ao reconhecimento da existência do

pluralismo jurídico visualizando nos movimentos sociais o reconhecimento de novos sujeitos

de direito e ao acolher e legitimar uma nova educação emancipatória no uso democrático do

Direito. Assenta aqui, o caráter inovador da assessoria, demonstrando uma nova postura

política diante dos objetivos da República.

Sob este prisma, os pressupostos da AJUP questionam a aplicação tradicional dos

princípios da responsabilidade social da Universidade reestruturando sua ação ao coaduná-la

com a defesa da democracia brasileira pela efetivação dos direitos salvados na Carta Magna.

As considerações sobre a AJUP correspondem, inicialmente, a compreensão do Direito como

instrumento de luta social para o acesso à Justiça.

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Ressalva-se, aqui que a justiça questionada pelas assessorias parte, primeiramente,

do âmbito de abertura à justiça resguardada pelo Estado Democrático de Direito, qual seja o

ensinado por Cappelletti e Garth (1988, p.12):

O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado com o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.

A concepção gerida pelas Ajups supera a precariedade do direito ao acesso à

justiça compreendido apenas em seu aspecto formal, acompanhado da igualdade entendida

também, no aspecto formal, não efetivando, assim, o processo jurisdicional justo e efetivo e

apenas garantindo a tutela jurídica aos pobres (CAPPELLETTI E GARTH, 1988, p.9).

No entanto, essa concepção de acesso à justiça é a interpretação tradicional e há

tempos superada, porém, não esquecida ou abandonada. Em contrapartida a essa

compreensão, deu-se inicialmente, a criação das defensorias públicas e a instalação dos

juizados especiais com o objetivo de assegurar às pessoas o acesso justo e democrático ao

Poder Judiciário, como nos ensina Cappelletti e Garth (1988, p.8):

A expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico - o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.

Nesta senda, a nova faceta resgatada na terceira onda do ‘enfoque dado ao acesso

à justiça11’, coaduna-se com o projeto político de assessoria, ora respaldado na Constituição

Federal de 1988 que acolheu uma nova interpretação de acesso à justiça, ao preocupar-se com 11 A assessoria aprecia o enfoque dado por Cappelleti e Garth, ao refletirem sobre as soluções apresentadas pelos estados ocidentais no processo de abertura política pós-65, para a problemática da mediação ao acesso à justiça apreciada no projeto de Florença que refletiu sobre os custos e conseqüência do acesso ao Judiciário. Sobre as chamadas “ondas” de acesso a Justiça, pode-se afirmar, de modo sucinto, que a primeira “onda” questionou sobre a forma de acesso dos jurisdicionados hipossuficientes à Justiça, assim, na estima de reduzir o distanciamento da classe pobre ao Poder Judiciário, a primeira onda representou o surgimento de medidas de assistência jurídica em beneficio dos economicamente pobres. Em seguida, a segunda “onda” do Movimento Universal de Acesso à Justiça, foi em busca da garantia da representação jurídica dos interesses difusos, de uma coletividade que não se delimitasse somente pelo caráter econômico mas que considerasse interesses dos mais diversos grupos sociais. Citam-se aqui os exemplos de proteção ao direito das mulheres, dos GLBTTS, do meio ambiente saudável etc. Na estima de alcançar os sujeitos além do círculo dos que não são representados ou, o são, porém de forma precária, o Movimento de Acesso à Justiça compreendeu que não basta apenas encontrar representação jurídica a esse, mas que se garantisse o Acesso à Justiça de modo mais substantivo, eficaz e justo. Assim, a “última onda” tratou de representar o momento histórico de busca por um “acesso a uma ordem jurídica mais justa”, usando aqui a expressão conhecida do mestre Watanabe (apud CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2003, p.33). “Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas da reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidade para melhorar o acesso.” (CAPPELLETTI E GARTH 1988, p.67 e 68)

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o acesso igualitário e eficiente de todos os cidadãos, através de um sistema social moderno e

garantidor, expresso em toda a sua dimensão, mas destacado aqui, nos artigos 5° e 205 da

carta de direitos brasileira (BRASIL, 1988):

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal; XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (...)XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;(...) LXXVII - são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania. LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Esse conceito de acesso à justiça garantido pela Carta Magna de 1988 foi objeto

de lutas sociais para a concretização do atual Estado Democrático de Direito, fruto de uma

virada hermenêutica do paradigma dos direitos sociais.

Sarlet (2003, p.300) como parte desse histórico, diz que:

(...) reconheceu – com base numa construção hermenêutica - a existência de um direito fundamental subjetivo não-escrito à garantia dos recursos materiais mínimos necessários a existência digna.

Os projetos de AJUPs concebem um avanço interpretativo sobre a justiça, que

demonstram as limitações das medidas tomadas pelo Estado, muitas vezes, apenas idealizadas

para a atenuação de discriminação econômica, caracterizando-as, portanto como precárias e

subordinadas. Desse modo, a postura política adotada pelas assessorias revela uma nova

preocupação com o acesso à justiça, qual seja a de oportunizar a efetivação da justiça social,

refletida por Rui Barbosa (1997, p.40) em ‘Oração aos moços’.Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de

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que o lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.

O novo significado de justiça discutido pelos projetos de Assessoria está

localizado na preocupação constante em ultrapassar os obstáculos socioeconômicos para a

dignificação do direito e o seu reconhecimento como um instrumento de luta social e,

conseqüentemente, da transformação da sociedade. O que se busca não é a instauração da

desobediência civil ao Poder Judiciário, perante o qual não se juramentou alguma obediência,

mas o que vai muito além disso e que nos leva a conjeturar o porquê de termos que

descentralizar a idéia do acesso à justiça ao foco do sistema jurídico.

Acompanhando essa discussão, Santos (2008, p. 11), em Brasília, no ano de 2007,

proferiu palestra dedicada a fomentar a democratização da Justiça, e, portanto, lançando

indagação pertinente ao nosso estudo.

Porque razão estamos hoje tão centrado na idéia do direito e do sistema judicial como factores decisivos da vida colectiva democrática, do desenvolvimento de uma política forte e densa de acesso ao direito e à justiça, enfim, na idéia de levar a sério o direito e os direitos? Como é que chegamos ate aqui? E até onde poderemos ir com os instrumentos que temos?

É nesse contexto, de levar a sério os direitos12 e reconhecer os instrumentos de

combate para a democratização da Justiça, que as assessorias jurídicas encontraram nessa

justificativa histórico-constitucional a pretensão de resgate à dignidade humana, outro

pressuposto da prática da assessoria. Uma vez que faz parte do próprio desenvolvimento

Ajupiano, a admissão do Direito como organismo de visão interdisciplinar e, portanto, como

ferramenta da ação educadora promovida pela própria metodologia das Ajups.

Coadunando-se com a idéia de que somente massas populares conscientes de seus

direitos e a par das condições de manutenção de dependência do aparelho estatal podem

mobilizar-se para a transformação social, a assessoria universitária popular desenvolve

atuação concernente com o diálogo dos pressupostos da educação em direitos humanos,

utilizando-se da metodologia da Educação Popular para a aplicação digna do Direito e, assim,

promover a dignificação do Direito.

Nessa estima, Wolkmer traz o seguinte raciocínio (2001, p.233), aludindo que:

À medida que a sociedade é vista como um sistema necessariamente conflituoso, tenso e em permanente transformação, toda e qualquer análise passa a ser

12Não se concebe aqui, a intenção de tecer quaisquer trocadilhos ou referências sobre a teoria constitucional de Ronald Dworkin, por fins meramente, metodológicos.

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considerada válida apenas se for capaz de identificar os fatores de mudança responsáveis pela contínua inadequação dos modelos culturais tradicionais – entre eles, o Direito.

A busca pela dignificação do Direito, de imediato, ressalta o enfoque inovador da

prática das AJUPS. Ao contrário do que media a assistência intelectual13, os projetos de

assessoria não buscam apenas o repasse conferenciado ou apostilado de direitos reconhecidos,

mas buscam ressignificar14 a tutela da dignidade humana, a fim de superar a reificação15 do

sujeito assessor, do sujeito assessorado e do ambiente de atuação, que se torna espaço público

ressignificado.

Esta superação que não se conta fora da relação homem-mundo, assumindo a

autoria da vida pensada por Arendt aqui já mencionada, pode-se verificar que a ação do

próprio homem com a realidade concreta contrapõe a reificação do ser.

Situação essa que Paulo Freire (2005, p. 103 e 104) sustenta que:

Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão, ao atuarem em função de finalidade que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações com o mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica.

Para tanto, num trabalho de mobilização social e conscientização, tal qual o

movido pelas AJUPs e que envolva a todos os sujeitos cognoscentes16, deve-se se voltar à

busca da liberdade e da educação em direitos humanos, entendidos aqui, como os que

concernem à manutenção da vida, assim como, aos que sustentam a democracia participativa.

Partindo do pressuposto que o povo consciente e munido da práxis da atuação, as AJUPs

13 A proposta assistencialista traz em seu bojo a idéia da falsa generosidade e de trabalho messiânico. A assistência intelectual supera em conteúdo o caráter passivo da assistencial material, ao permitir o conhecimento de direitos para que o próprio sujeito “receptor” resolva o seu problema. É a atividade difundida pelos centros de informação de direitos localizados dentro das instituições, como o PROCON e ONGs, observando apenas a absorção de direitos para a solução pura de litígios. Aqui não ocorre a dignificação do direito pelo enfrentamento coletivo da questão envolvida, mas apenas o solvimento de um litígio preeminente ou já constituído. Dessa forma, não há como enquadrar tal atividade no ramo da assessoria, por mais que possa ser entendida como uma das fases da mesma ocorre que no processo de assistência intelectual não há estimulo para a autonomia e protagonismo dos homens envolvidos.14Método utilizado na neurolingüística, a fim de que, as pessoas possam estabelecer novos significados a acontecimentos através de uma nova gestação da visão de mundo.15Categoria de coordenação marxista, construída pelo húngaro Luckács, no ano de 1923. Tradicionalmente conhecida, em alemão com Verdinglichung, pressupoe a transformação do homem em simples objeto, concebendo-o como exemplar maquinal. Terminologia introduzida por Karl Marx, e posteriormente assumida por Marcuse e pelos teoricos da Escola de Frankfurt estabelecendo sua contextualização e readmissão.16 Denominação de Paulo Freire pra demonstrar a capacidade humana de cognição do mundo.

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reconhecem no espaço comunitário a manifestação daquilo que o Prof. Wolkmer intitulou

como sendo o reconhecimento do pluralismo jurídico comunitário-participativo.

Este pluralismo legal ampliado e de “novo tipo” impõe a rediscussão de questões consubstanciadas com as “fontes”, os “fundamentos” e o “objeto” do Direito. Ademais, torna-se imperativo que o pluralismo como novo referencial do político e do jurídico esteja necessariamente comprometido com a atuação de novos sujeitos coletivos (legitimidade dos atores), com a satisfação das necessidades humanas essenciais (“fundamentos materiais”) e com o processo político democrático de descentralização, participação e controle comunitário (estratégias). Soma-se ainda a inserção do pluralismo jurídico com certos “fundamentos formais” como a materialização de uma “ética concreta da alteridade” e a construção de processos atinentes a uma “racionalidade emancipatória”, ambas capazes de traduzir a diversidade e ad diferença das formas de vida cotidiana, a identidade, informalidade e autonomia dos agentes legitimadores.

Constata-se que essa “nova” abrangência do pluralismo jurídico comunitário-

participativo, traz consigo um quadro referencial que corrobora a política de atuação das

assessorias jurídicas populares universitárias localizadas em todo o Estado brasileiro, qual

seja, segundo a definição do professor Wolkmer (2001, p.231) composta pelos:

a) fundamentos de “efetividade material” – emergência de novos sujeitos coletivos, satisfação das necessidades humanas fundamentais; b) fundamentos de “efetividade formal” – reordenação do espaço publico mediante uma política democrático-comunitária descentralizada e participativa, desenvolvimento da ética concreta da alteridade, construção de processos para uma racionalidade emancipatória.

Deste modo, o surgimento e, conseqüentemente, o reconhecimento de novos

sujeitos de direitos, traduzem-se na ação de rompimento com os sistemas de manutenção do

status quo, promovida por esses homens, e assim, atendem a descoberta de um “novo sujeito”,

denominado por Dussel como sendo o “sujeito coletivo do processo emancipatório”,

trazendo em seu bojo a crítica à vida em sociedade contemporânea construída pela

subjetividade coletiva.

De fato, o novo sujeito ativo do processo emancipatório não é mais a classe, como

nos alerta Wolkmer (2001, p.237), e sim, a entidade coletiva, denominada povo, a qual

resguarda uma enorme carga de identidade que aqui se limita à identidade política-sociologia

e se traduz no sofrimento centenário em busca da concretização da liberdade, da igualdade, da

dignidade e da educação. Além, é claro, de recorrerem cotidianamente pela concretização das

necessidades fundamentais para a vida.

De fato, para E. Dussel, o novo sujeito ativo do processo emancipatório não é mais a classe, mas o “povo” enquanto massa dominada, alienada e oprimida. O “povo” é a

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40

categoria mais concreta que tem a vantagem de melhor retratar a práxis do contingente humano explorado de um sistema político – econômico, mais precisamente o “bloco comunitário dos oprimidos de uma Nação.

Assim, a nosso ver, a prática inovadora concernente às identidades Ajupianas,

construídas em parceria com esse corpo coletivo, rediscutem a luta social, mediando-a por

uma atuação comunicativa17 preocupada com a articulação e o protagonismo de seus

envolvidos, a fim de que estes consigam a execução de um mobilizar emancipatório e

contestador no manuseio do Direito.

De fato, a discussão Ajupiana sugere a busca constante pela função humanizadora

do Direito, ao mediar leituras de mundo pelas quais se verificam imbuídas constantes lutas

sociais pela efetivação de direitos. Por tudo isso, é de se observar que a dinâmica originada

pelas lutas sociais propicia um debate sobre a ressignificação do espaço público, necessária a

legitimação da identidade de autoria das assessorias.

3.3 A legitimação das Ajups na ressignificação do espaço público

Mediante o que foi visto anteriormente, o estabelecimento de uma sociedade ideal,

conforme a aspirada por Platão em seus escritos dissipa qualquer parcela de liberdade inerente

à constituição existencial da sociedade, e podemos observar essa restrição na trajetória da

política nos Estados presentes em toda a era moderna. Assim, de modo inaugural, cumpre

fazer referência ao que seria viável à constituição da legitimidade dos espaços dignos a

cobertura das questões vitais ao organismo público.

Inicialmente, largamos com o questionamento que Hannah Arendt (2006, p. 37)

nos deixou no início do O que é política? para tratarmos do que poderia ser o mundo em que

estamos inseridos.

Contra isso se poderia objetar com facilidade ser o mundo do qual se fala aqui o mundo dos homens, quer dizer, o resultado do fazer humano e do agir humano, como se queira entender isso. Essas capacidades pertencem, com certeza, à natureza do homem; se falham, não se deveria mudar a natureza do homem, antes de se poder pensar numa mudança do mundo? Essa objeção é antiqüíssima em sua essência e pode recorrer às melhores testemunhas — a saber, a Platão que já censurava Péricles, afirmando que, depois da morte, os atenienses não seriam melhores do que antes.

17 Faz-se referência ao pensamento freiriano sobre a posição ontológica da aplicação da metodologia da educação popular.

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Nesse ponto, observa-se ser complementar a necessidade de legitimarmos os

espaços dignificados públicos como sendo eles os ambientes mais estáveis para a propagação

da responsabilidade política com a qual se preocupou Karl Jaspers, e conseqüentemente,

Hannah Arendt. É sabido que em toda a obra filosófica de Jaspers, até a história mundial da

filosofia, a sua preocupação estava voltada para a cidadania mundial e suas conseqüências

para a constituição de um novo mundo.

É assim, rompendo com a autoridade da tradição no discurso sobre a

responsabilidade política dos cidadãos, que Jaspers traz, mediado pelos dizeres da sua

discípula Arendt (2008, p. 92), uma delimitação salutar sobre a nossa percepção do julgar-se

responsável pelo viver político:

Nossos conceitos políticos, segundo os quais temos de assumir responsabilidade por todos os assuntos políticos ao nosso alcance, independentemente de nossa “culpa” pessoal, pois como cidadãos nos tornamos responsáveis por tudo o que nosso governo faz em nome do país, podem nos levar a uma situação intolerável de responsabilidade global. A solidariedade entre a humanidade pode muito bem se converter numa carga insuportável, e não surpreende que as reações habituais a isso sejam a apatia política, o nacionalismo isolacionista ou a rebelião desesperada contra todos os poderes, mais do que um entusiasmo ou desejo de fazer ressurgir o humanismo.

É contra esse tipo de pano de fundo de apatia e isolacionismo que a ocupação do

espaço público, proporcionada pelos sujeitos que discutem a prática da assessoria,

inicialmente, se faz notória e configura-se como oportunidade de (re) significá-los. A razão

política do Estado Democrático de Direito, em especial, o espaço geopolítico que ocupa, se

encontra de certo modo inserido mais diretamente na contribuição para o reconhecimento das

responsabilidades políticas e pessoais inerentes a cada atuação.

A (re) significação do espaço público representa a pedra fundamental de todo o

Estado Democrático de Direito ao proporcionar uma justificação aos direitos humanos e à

soberania do diálogo popular, de modo que a concepção de justiça, além de ter validade nas

normas, seja expressa nas ações públicas dos cidadãos.

Trata-se de refletir sobre a responsabilidade pelo mundo que os cidadãos

possuem, não somente pelo mundo da natureza, ao que tange as mudanças no cenário da

política ou, ainda, pelos fenômenos da natura, mas pelos termos resultantes do agir, do falar e

do pensar.

Assim, Santos (2001, p. 15), de modo mais preciso, visualiza na atual abordagem

dos direitos humanos a forma como a comunidade o compreende sendo, então, integrante da

política emancipatória.

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42

Nos últimos tempos tenho observado com alguma perplexidade a forma como os direitos humanos se transformaram na linguagem da política progressista. De facto, durante muitos anos, após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da guerra fria, e como tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos, complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos em nome dos objectivos do desenvolvimento - tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório. Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular uma política emancipatória. E no entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes projectos de emancipação, essas mesmas forças progressistas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da emancipação. É como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo.

O mundo do qual as assessorias agregam a seu movimento de crítica é o mundo

das relações entre os humanos e destes com o mundo, e, por conseguinte, o mundo de busca

pela dignidade humana e dignificação dos direitos humanos. Dessa forma, é no mundo

comum, da sobrevivência e das buscas pelas necessidades vitais do homem, que os cidadãos

encontram em seu sentido o interesse na preservação do mundo comum. Fazem, porém por

serem agentes comuns, reiterando a perspectiva uma vez apontada por Aristóteles sobre o

espaço público, ao dizê-lo como “o espírito público que é necessário para dar vida às

instituições” (Aristóteles, 2005.p, 116).

Nessa direção, nas palavras de Habermas (1987, p.179), o mundo pelo qual as

Ajups se apropriam como ambiente de ressignificação é assim considerado:

O mundo da vida é, por assim dizer, o lugar transcendental onde o falante e ouvinte saem ao encontro um do outro, onde podem colocar reciprocamente a pretensão de suas emissões concordam com o mundo (com o mundo objetivo, com o mundo subjetivo e com o mundo social) e onde podem criticar e exibir os fundamentos dessas pretensões de validade, resolver seus desenvolvimentos e chegar a um acordo. (tradução e grifo nosso)

Então, por assim dizer, o mundo da vida que se permeia aqui, por todas essas

perquirições nada mais se relaciona senão com a ocupação política dos espaços oportunizados

pelo Estado, e ainda, se faz mais imperante e salutar a devida ocupação daqueles em que há

obstáculos para o diálogo. Com base nisso, observamos que o mundo da vida constituído pela

teoria habermasiana e ancorada pela teoria de Arendt, demonstram especialidades para a

racionalização do agir, mencionada anteriormente.

A racionalidade do agir, trabalhado por Habermas, vem aqui sendo refletida no

dimensionamento da ação. O agir em seu espaço concreto da dimensão social culmina na co-

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existência entre os indivíduos e no devido envolvimento com os valores morais e políticos

que por ora se apresenta. Assim, a metodologia utilizada pelas assessorias encontra como

sendo sua maior contribuição, a expansão do horizonte reflexivo que há na capacidade de

autocriticar-se como um sujeito envolvido na comunidade e na sociedade.

Não se defende aqui um comportamento pautado na consciência de classe, nem

pela utopia de projetos de reforma os quais se assemelharam a logística de Marx, porém o que

há é a preocupação com o hábito do pensar e, conseqüentemente, do agir. A convicção para o

agir político deve estar pautado numa ética política que nutra a mudança do mundo, como se

aspira em Arendt (2009b, p. 23) aqui:

A questão, tal como Marx a via, é a via de que sonhos nunca se tornam realidade. É notável a escassez de rebeliões de escravos e de levantes entre deserdados e humilhados, nas poucas ocasiões em que ocorreram foi precisamente a “fúria louca” que transformou o sonho em pesadelo para todo o mundo (...) Identificar os movimentos de libertação nacional com tais explosões é profetizar o seu fim – sem considerar que sua vitória improvável não resultaria em uma mudança do mundo (ou do sistema), mas apenas de pessoas.

No essencial, as propostas de Ajups acabam por contribuir para a construção de

uma sociedade menos banal e patológica, fazendo com que seja mais atuante no processo de

efetivação dos direitos reconhecidos de modo a se desvencilhar daquilo que Habermas chama

de estilo de vida marcado pelo utilitarismo.

Em suas considerações, Habermas (1987, p. 461) especifica um tipo de

colonialismo das atitudes dos cidadãos em prol da coisificação prática da vida, remetendo a

um processo de racionalização sistêmica empobrecendo a prática comunicativa das ações

humanas.

À medida que o sistema econômico submete a seus imperativos a forma de vida doméstica e o modo de vida de consumidores e empregados, o consumismo e o individualismo possessivo e as motivações relacionadas como o rendimento e a competitividade adquirem uma força configuradora. A prática comunicativa cotidiana experimenta um processo de racionalização unilateral que tem como conseqüência um estilo de vida marcado por um utilitarismo centrado na especialização.

Nesse tocante se faz imperativo destacar os fundamentos da ordem do agir no

espaço público, espaço este reconhecidamente como o campo de atuação particularizado pelas

Ajups. As teorias políticas de Hannah Arendt aliadas aos pensamentos da razão pública

promovida por Habermas têm em seu foco principal a reflexão acerca da utilização do espaço

público e da importância da ação dos sujeitos históricos e livres que o vivenciam.

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44

Na compreensão do espaço público pelos sujeitos da assessoria, sejam os que o

constituem institucionalmente, sejam os que o realizam socialmente, se faz necessário

repensar o político pelo ponto de vista da pluralidade humana e pelo potencial da autoria da

vida acordado pela ação comunicativa.

É com palavras e atos que nos inserimos no mundo; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa (Arendt, 2007a, p. 190).

Compartilhando da perspectiva originada por Habermas (1987, p. 126), o mundo

de cada indivíduo se constitui de três esferas18 que são coexistentes: a esfera do mundo

objetivo, a esfera do mundo subjetivo e por último, a esfera do mundo social. Para Arendt a

compreensão do mundo se constitui pelo reconhecimento da responsabilidade por este

mediante um inexorável trinômio concernente ao pensar, agir e assumir a autoria da própria

vida.

Nesta reflexão, os autores passam a contribuir de maneira inexpressível para o

comportamento subjetivo das assessorias.

[...] A despeito das grandes influencias de uma liberdade interior e apolítica sobre a tradição do pensamento, parece seguro afirmar que o homem nada saberia da liberdade interior se não tivesse antes experimentado a condição de estar livre como uma realidade mundana e tangível. Tomamos inicialmente consciência da liberdade ou do seu contrário em nosso relacionamento com os outros, e não no relacionamento com nós mesmos (Arendt, 2007b, p. 149).

Aqui, há a rejeição daquilo que se conhece por discurso de autoridade não se

limitando a permitir a utilização do trinômio mencionado anteriormente, e por vezes

coordenado apenas por aqueles que possuem autoridade de fala. Nos dizeres da autora

encontramos que:

O pensar no seu sentido não cognitivo, não especializado, como uma necessidade natural da vida humana, a realização da diferença dada na consciência de si mesmo,

18 Por Habermas, o mundo objetivo se constitui pela existência de todas as coisas materiais que são comuns a todos os indivíduos sujeitos da sociedade, ao mundo social; ele define ser aquele onde há existente um conjunto de normas e valores legitimados e compartilhados por todos que permeiam o mundo social. Por fim, o mundo subjetivo faz referência às vivências e experiências de cada sujeito inserido na sociedade, atendendo a peculiaridade do indivíduo por somente este ter acesso pleno a esse mundo.

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45

não é uma prerrogativa de alguns poucos, mas uma faculdade sempre presente em todo mundo (Arendt, 2004, p. 255).

E isto nos conduz a perceber que há uma briga política nos “bastidores” da

sociedade ocidental conduzindo a que percebamos a carência de expectativa do mobilizar-se

pelo mundo19. A isso, implica localizarmos que por mais que a sociedade e mídia expressem o

atual desmantelamento das mobilizações políticas, de modo a apresentar um pano de fundo

onde a ausência de organizações se faz emblemática no combate das mazelas do dia-a-dia, o

espaço público deve ser objeto de estudo e ocupação desvinculado da expressa necessidade de

cobrar do Estado mais políticas públicas.

A compreensão política da qual as assessorias jurídicas universitárias se fundam

corrobora para a desintegração do senso comum interessado em dominar uma “verdade real”,

verdade essa que, segundo acredita Critelli (2008, p. 77) auferindo do pensamento de Arendt,

é rejeitada e confrontada pela autora como:

que a verdadeira realidade do mundo está em poder ser visto por todos nós, de pontos diferentes de percepção. Não há uma só verdade, mas verdades relativas às épocas, lugares, perspectivas em que se formulam e que se sustentam.

A dominação dessa “verdade” explícita o interesse na contenção da força política

de mobilização dos cidadãos, realizada mais sutilmente como decorrente nos últimos vinte

anos, ao persistir com o discurso da “democracia boa” presente no discurso oficial e

midiático. A tentativa de usurpação do sentido real da democracia fortalece a reflexão sobre o

automatismo vinculado à vida moderna, onde seguramente é um ponto de ponderação das

Ajups.

Assim é que as Ajups, como sujeitos de parceria dessa ocupação acompanhados

de tantos outros co-sujeitos, possibilitam a contribuição para a mudança do espaço político

reconhecendo a interdisciplinaridade dos saberes e das experiências contidas em cada agente

transformador.

Tem-se a isso o desmonte da democracia participativa, com as inúmeras

convocações maquiadas da opinião popular, como justificativa de participação no Estado

Democrático. Essas convocações por vezes controladas pelo Judiciário ou pelo próprio

Estado. A discussão trazida aqui nos faz pensar o que estamos fazendo no mundo? E qual o

“mundo” que estamos inseridos?

19 Concepção ancorada nos estudos de Hannah Arendt e Habermas, levando em consideração o trajeto delineado por aqui, e ainda, o aprofundamento das leituras.

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O espaço entre os homens que é o mundo, com certeza não pode existir sem eles e um mundo sem homens, ao contrário de um universo sem homens ou uma natureza sem homens, seria uma contradição em si — sem isso significar, porém, que o mundo e as catástrofes que nele ocorrem seriam reduzidos a um acontecer puramente humano, muito menos reduzidos a algo que acontecesse com 'o homem' ou com a natureza do homem. Pois o mundo e as coisas do mundo em cujo centro se realizam os assuntos humanos não são a expressão — a impressão como que formada para fora — da natureza humana, mas sim o resultado de algo que os homens podem produzir: que eles mesmos não são, ou seja, coisas, e que os pretensos âmbitos espirituais ou intelectuais só se tornam realidades duradouras para eles, nas quais se podem mover, desde que existam objetivados enquanto mundo real. (Arendt, 2006, p. 36).

Nesta perspectiva, se faz a razão para obter novas críticas e ações com vistas à (re)

significação do espaço político. Para Arendt (2007, p. 191), o caráter da imprevisibilidade da

ação humana se realiza por sua potencialidade de ser criativo e romper os processos de

dominação estabelecendo uma nova esperança ao mundo da existência.

O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável

É nesse ambiente de paradigmas que encontramos, diretamente, o enquadramento

para as assessorias maranhenses atuarem como mediadores reflexivos para os ambientes

públicos do Estado do Maranhão. O PAJUP e o NAJUP Negro Cosme buscam interferir na

conjuntura política do Estado do Maranhão, construindo ambientes de reflexão e ação dentro

e fora das Instituições de Ensino Superior pertencentes, influenciando, de forma crucial, na

conscientização de todos os atores participantes dessa modalidade do movimento social.

Por tudo isso, é de se observar que os espaços dinamizados pelas assessorias

populares corroboram as linhas teóricas da visão políticas aqui levantadas, podendo-se

apresentá-las como fundamentais à compreensão do organismo que no presente trabalho se

estuda, qual seja as assessorias jurídicas universitárias populares.

Passaremos a abordar, no próximo capítulo, as experiências destaques dos grupos

de assessoria do Estado do Maranhão, sua relação com a temática exposta nos capítulos

anteriores e a constatação de ter havido alguma ressignificação no espaço de atuação.

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4 A TENTATIVA DE DIGNIFICAR O MUNDO PÚBLICO: as experiências das assessorias jurídicas universitárias, no espaço maranhense.

“cantamos porque o grito só não bastae já não basta o pranto nem a raiva

cantamos porque cremos nessa gentee porque venceremos a derrota

cantamos porque o sol nos reconhecee porque o campo cheira a primavera

e porque nesse talo e lá no frutocada pergunta tem a sua resposta”

Mário Benedetti

4.1 Uma compreensão da temporalidade

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48

Diante do exposto nos capítulos anteriores, se verificou que os ambientes de

atuação das assessorias se caracterizam por terem como fundamental a possibilidade do

exercício da práxis contestadora em prol da democracia, dos direitos humanos, da justiça

social. Lembremo-nos que os projetos de assessoria jurídica universitárias surgem a partir das

críticas localizadas na prática jurídica tradicional20, nas estruturas de poder legalizadas na

sociedade e na prática de ensino jurídico dogmático e legalista21. As discussões de Teoria

Crítica do Direito, a nova abordagem dada ao direito pelo Direito Alternativo e a crítica ao

ensino jurídico que foram disseminadas nas universidades, impulsionaram a iniciativa para a

formação de grupos que se organizassem em projetos de extensão, espaços adequados na

Universidade, para o desenvolvimento da prática da Assessoria Jurídica Popular.

Nessa estima de refletir a Universidade, a decana de extensão Leila Chalub, em

prefácio do volume 3 da Revista da UnB sobre a experiência da extensão universitária da

faculdade de direito, declara com boa desenvoltura o que queremos debater

É preciso esclarecer que a essência da universidade, o que lhe concede dignidade, o impulso maior que lhe dá vida, é, sempre foi e sempre será a inquietação da pesquisa. Construir conhecimento é a alma da universidade. Mas é preciso reconhecer a urgência da superação da sua “tradição endógena”. (BERNADINO, 2007, p.9).

Conforme já mencionado, a partir dos anos 60, grupos com essas peculiaridades

iniciaram o movimento de debates sobre a intervenção das Universidades (MARANHÃO,

2002, p. 199) na busca de soluções aos problemas sociais oriundos da sua própria dinâmica,

proporcionando inicialmente ações destinadas22 ao atendimento das pessoas de baixa renda

realizado nas próprias faculdades de Direito, servindo como estágios curriculares para os

discentes dos cursos.

20 De maneira explícita, aqui se referencia os escritórios-escolas que localizam sua atuação para a prestabilidade de medidas prestativas e sectarizadas diante da intenção e responsabilidade da qual se presta a Universidade. Sendo apenas um demonstrativo do descaso institucional e da burocratização do ensino, legalizando as medidas jurídicas como verdadeiras tomadas de auxílio à legitimação do isolacionismo social.21 Embora haja a intenção de enfrentar a discussão que, por ora, não há como ser aprofundada, sobre a prática do ensino dogmático e legalista, aponta-se como leitura complementar a discussão apresentada por Santos (1995) no qual o autor desnuda as três crises sofridas pelas universidades, qual sejam: a crise da hegemonia, a crise de legitimidade e a crise institucional, demonstrando que a manutenção do ensino dogmático e legalista se constitui como um dos pilares de sustentação da Universidade.22 Tais serviços se constituíam como a demonstração de serviços tradicionais que, embora muitas vezes seguindo a inicial da dogmática, se demonstraram ao longo dos anos o melhor avanço na esperança de aproximar as universidades da realidade social. A esses serviços elencamos, primeiramente, o SAJU- RS, criado na década de 50 e o SAJU-BA, criado na década de 60, ambos sob as siglas de serviço de assessoria jurídica gratuita na UFRGS e, serviço de apoio jurídico da UFBA que ao tempo passaram para essa denominação a fim de demonstrarem a amplitude do serviço prestado pelos núcleos.

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Nesse contexto, é que se deu o aprofundamento dos estudantes e dos docentes

interessados nas teorias críticas do Direito, demonstrando, assim, a conseqüente necessidade

de desenvolverem uma ação que instigasse o uso do direito como instrumento de

transformação social e emancipação humana, a fim de alcançar a justiça social. E como não é

diferente, no Estado do Maranhão, onde resta patente que o índice de desenvolvimento

humano é um dos mais baixos da Regional Nordeste, se faz urgente aliar o comprometimento

social da universidade à prática contestatória da assessoria jurídica popular.

Assim, dispõem-se ao mundo os projetos de assessoria jurídica universitária

popular para comprovar em sua base a importância de encontrarmos, nas universidades, os

espaços que propõem a aprofundar discussões sobre cidadania, direitos, democracia, justiça

social, etc. e com clareza, evidenciar que a autoria da vida, ou seja, a constituição do ser como

afirmado nos capítulos anteriores, se constitui inarredavelmente com a aptidão para assumir a

construção do bem comum.

Destarte, ser integrante de um projeto de Ajup não é apenas se assumir no mundo

como constituinte de seu ambiente de vivência, mas representa participar e cooperar com uma

rotina de funcionamento para a realização do “bem” de interesse a todos. Por tal

compreensão, nos termos de exame de Hannah Arendt, a vida pública que aqui os integrantes

das assessorias maranhenses se assumem como autores, não é o espaço de realização das

necessidades vitais vestidas sob o manto do coletivo como uma extensão da vida privada, mas

sim, é o espaço onde os homens se encontram e constroem o “bem comum” sob o desígnio da

igualdade.

O homem necessita de liberdade para interagir com os seus pares. É necessário

que haja efetivas condições para a construção do bem comum, aliando a liberdade em

plenitude, destacando o seu campo de agir, segundo Arendt (2007b, p. 191 e 192)

O campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, é claro, mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da vida política. E mesmo hoje em dia, quer o saibamos ou não, devemos ter sempre em mente, ao falarmos do problema da liberdade, o problema da política e o fato de o homem ser dotado com o dom da ação; pois a ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade, e é difícil tocar em um problema político particular sem, implica ou explicitamente, tocar em um problema de liberdade humana. A liberdade, além disso, não é apenas um dos inúmeros problemas e fenômenos da esfera política propriamente dita, tais como a justiça, o poder ou a igualdade; a liberdade, que só raramente – em épocas de crise ou de revolução – se torna o alvo direto da ação política, é na verdade o motivo por que os homens convivem politicamente organizados.

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50

Necessário destacar que o contínuo exercício de busca pela superação das

questões sociais que afligem o espaço público se concretiza na medida em que, enquanto

membros de assessoria utilizamos a liberdade que nos é inerente à incorporação da

responsabilidade de reconhecer no espaço público de atuação a possibilidade de cumprir com

a função social do ensino e ressignificar, de maneira crítica, o uso do Direito.

A sua importância é corroborada pelos ensinamentos de Santos (1997, p. 225)

Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino.

Nesse contexto, as Ajups, em geral, têm em si a responsabilidade pela

dignificação do espaço público, imbuindo neles discussões mais críticas e atuando juntamente

com as comunidades e com os movimentos sociais, de forma, a influenciar nas tomadas de

poder da sociedade, conscientizando-as para as ações nas lutas por direitos, conforme irá se

auferir a seguir.

Com isso, pode-se resumir que a atuação das assessorias jurídicas universitárias

maranhenses, incondicionalmente, corrobora a toda a trajetória de atuação política que

delineamos nesse estudo. Mas, dados os seus traços típicos e a sua peculiaridade, como

visualizar nas práticas dessas ações a atuação supramencionada?

Dessa forma, apresentaremos a seguir o histórico de constituição do NAJUP

Negro Cosme, da Universidade Federal do Maranhão - UFMA, e do PAJUP – Programa de

Assessoria Jurídica Universitária Popular, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco -

UNDB, de modo descritivo e linear, para justificar a inserção das assessorias jurídicas

populares no Estado do Maranhão. É o que se passará a esboçar.

4.2 A constituição histórica das experiências ajupianas no Estado do Maranhão

4.2.1 NAJUP NEGRO COSME – UFMA

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51

O NAJUP “Negro Cosme” 23 surgiu após várias tentativas de instaurarem um

Núcleo de Assessoria Jurídica na Universidade Federal do Maranhão, no âmbito do

Departamento de Direito, em significativa tentativa de promover uma ação integrada de

pesquisa e extensão dentro da instituição a fim de motivarem estudantes e demais envolvidos

nos movimentos sociais da época a corroborarem com a formação de grupos de estudos,

realização de palestras, seminários e participação em eventos nacionais acerca da temática da

assessoria.

Em 2000, após um encontro nacional de estudantes de Direito, o NAJUP teve em

sua trajetória a aprovação pela Assembléia Departamental do curso de Direito com aprovação

máxima enquanto projeto de pesquisa e extensão, conforme atestam as resoluções definitivas

do Conselho de Extensão e Pesquisa da UFMA, no ano de 2005. Desde então, se faz como

núcleo de pesquisa e extensão, tendo como objetivo inicial socializar o conhecimento com as

comunidades circunvizinhas da região da UFMA e entre os estudantes do curso.

Não obstante, as dificuldades iniciais foram sendo enfrentadas e apesar dos

primeiros projetos não terem se concretizado na prática, a esperança em manter e construir um

grupo sólido, onde o fôlego do movimento estudantil não se dissipasse, fora mantido. Entre as

dificuldades do início do núcleo, algumas foram relatadas em seu Projeto de Pesquisa e

Extensão Universitária (2004, p.9) (anexo A), como sendo oriundas da “falta de envolvimento

efetivo dos estudantes e pela carência de um orientador para o núcleo (...)”.

Com o compromisso de garantir o acesso à justiça dos que efetivamente precisam,

o NAJUP Negro Cosme inaugurou suas atividades contando com seis membros, sob a

orientação do professor Joaquim Shiraishi Neto. Já em maio de 2005, contavam com 12

integrantes que cooperaram na caminhada inicial do núcleo. As atividades realizadas

dividiam-se em de cunho interno e externo; sendo as de cunho interno: a formação de plano

de estudos, o processo de capacitação de novos membros, sempre prezando a sua construção e

realização pelos integrantes do núcleo e as oficinas apresentadas nas SEPEX24. Quanto às

atividades de cunho externo, realizaram oficinas direcionadas ao público discente e docente

da Faculdade São Luís.

Além de todas essas atividades promovidas pelo Núcleo direcionadas ao público

externo, ainda havia as que tinham seu funcionamento regular, quais sejam: discussões para

23 Os relatos apresentando a seguir acerca do presente grupo são oriundos do convívio extra-formal, desde o ano de 2007 e ainda, fundamentado nos arquivos e documentos aos quais autora teve acesso sobre a dinâmica do Najup “Negro Cosme”.24 Semana de Pesquisa, Ensino e Extensão Universitária, ocorrido no ano 2000 e coordenando pelo Centro Acadêmico I de Maio.

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capacitação interna sobre Teoria do Direito, Assessoria e Educação Popular e Direitos

Humanos e reuniões deliberativas acerca das representações que realizariam aliadas à

sociedade civil organizada.

O NAJUP “Negro Cosme” já desenvolveu vários trabalhos e projetos com a

contribuição da sociedade maranhense, entre eles citamos o projeto denominado “Agentes

Populares de Direito”, realizado em parceria com a Sociedade Maranhense de Direitos

Humanos, em que atuou juntamente com lideranças rurais do interior do Estado do Maranhão.

Em seguida, citamos outra atividade intitulada “Agentes Multiplicadores de Cidadania”

desenvolvida em conjunto com o Instituto EKOS25 e com lideranças locais, na área da Ilhinha,

com o intuito de promover discussões cujo interesse temático era apontado pela comunidade e

trabalho conjuntamente.

Nos anos seguintes, desenvolveu ações em parceria com o Instituto do

Homem/Fundação Konrad Adenauer, discutindo temáticas relativas à sociedade dos jovens,

debatendo temas como drogas e sexo, além, é claro, de realizar um levantamento das

violações de direitos humanos nas áreas remanejadas pela edificação da Base de Alcântara,

temática tão aludida no ambiente maranhense.

Em 2006, o Núcleo promoveu os projetos “Dialogando cidadania” e “Cidadania

em prática frente aos grandes projetos”, ambos contavam com a busca pela capacitação dos

mediadores para a mobilização popular independente. O projeto “Dialogando cidadania”, em

parceria com o Ministério Público do Maranhão, zelava pela implantação de casas de

mediação comunitária nas comunidades delineadas no esquema do projeto, em especial as

atendidas pelas Promotorias Especializadas Itinerantes.

Ao núcleo cabia o processo de capacitação dos mediadores comunitários, por

meio de oficinas sobre Mediação Comunitária, Direitos Humanos, Mobilização popular,

dentre outras temáticas. Durante o projeto “Cidadania em prática frente aos grandes projetos”

foram realizadas juntamente às comunidades-alvo da implantação do Pólo Siderúrgico,

oficinas que discutissem temáticas inerentes à mobilização das comunidades afetadas, tais

como: mobilização social, zoneamento do solo e do meio ambiente, direitos fundamentais e

afins.

25 O Instituto Ekos Brasil é uma organização da sociedade civil brasileira para a promoção do desenvolvimento sustentável. É uma das poucas ongs brasileiras que está em processo de certificação para a obtenção do certificado "Melhores Práticas Internacionais de Boa Governança e Prestação de Contas para Organizações Não Governamentais".

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Mais recentemente, em 2008, o NAJUP “Negro Cosme” passou a integrar o corpo

de luta da campanha “Justiça nos Trilhos26”, compartilhando de suas atividades e conhecendo

mais das comunidades e da dinâmica de embate enfrentada por elas. Sendo assim, surgiu o

Projeto “Trilhando Cidadania”, que se dispôs a contribuir com os cidadãos locais para a

modificação da realidade local, exercendo a cidadania em sua essência democrática,

rompendo com o ideário de cidadão votante.

Por fim, o NAJUP “Negro Cosme” desde o ano de 2010, vem atuando juntamente

com a OAB, o PAJUP - MA e outras entidades e parcerias numa Rede Estadual de Combate

aos Despejos Forçados, que tem como objetivo discutir o impacto do conflito fundiário

existente no Estado, demarcando o avanço e, conseqüentemente, constituir e legitimar uma

força de combate e conscientização junto às comunidades.

4.2.2 PAJUP – MA

O projeto de assessoria que hoje é conhecido como PAJUP27, teve seu início por

meio da articulação de alguns estudantes que iniciavam a vida acadêmica na UNDB -

Unidade de Ensino Dom Bosco, interessados na temática da assessoria jurídica popular que

fora apresentada num dos eventos acadêmicos promovidos pela IES referenciada, a III

Jornada Jurídica do ano de 2006.

Tal evento jurídico promovido pela UNDB ocorre anualmente e mantêm a

expectativa de aprofundar uma temática por meio de uma programação bem sortida de mini-

cursos, palestras e painéis que abordem com qualidade o interesse proposto. Nessa estima, foi

26“A campanha Justiça nos Trilhos surgiu no final do ano de 2007, por iniciativa dos Missionários Combonianos do Brasil Nordeste e contou com a rápida adesão de outros grupos e organizações, criando uma rede articulada para o monitoramento e pressão sobre a Companhia Vale do rio Doce. A campanha tem por objetivo a redistribuição dos recursos da Vale, através da exigência de compensações e indenizações às pessoas que se localizam ao longo da Estrada de Ferro Carajás. E assim, exigir um retorno devido para os impactos por ela causados nas comunidades em que seus empreendimentos são implantados. Nas diversas localidades em que se dá o maior impacto socioambiental da Vale, o NAJUP visa desenvolver uma ação de educação popular para o fortalecimento da mobilização das lideranças populares. Isso vem ao encontro das atividades e das temáticas trabalhadas pelo Núcleo, como a emancipação política e luta pela ocupação dos espaços públicos concedidos (ou não) ao cidadão.”(Programa de Pesquisa e Extensão Universitária Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular “Negro Cosme”, 2004, p. 16 e 17)

27 Os relatos apresentados a seguir, demonstram o fruto da experiência construída e vivenciada pela autora e pela leitura e apreciação dos relatos dos demais membros do projeto.

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oferecida, como tema para um dos mini-cursos, a discussão sobre “Extensão Universitária e

Educação Jurídica Popular28” coordenada pela professora especialista Márcia Cordeiro, que

na época ministrava aulas ao 1º período sobre Metodologia Científica, em conjunto com os

facilitadores da UFMA, que eram alunos do curso de Direito e integrantes do Núcleo de

Assessoria Jurídica Popular - “Negro Cosme”.

Durante os encontros do mini-curso, prezou-se pela dinâmica de diálogo entre os

facilitadores e os participantes, que abordaram temas como: educação popular, ensino

jurídico, direito alternativo, processos de reconhecimento da assessoria e assistência. Foram

dois dias de encontro que possibilitaram o contato inicial e bem planejado do que seria um

projeto de assessoria, motivando assim que a discussão sobre as Ajups fossem levadas ao

conhecimento do corpo discente da UNDB.

Dessa forma, um pequeno número de estudantes participantes do mini-curso em

comento e em períodos iniciais do curso, manifestou interesse em confeccionar um projeto

envolvendo a temática da extensão nos termos da assessoria jurídica popular, a fim de

apresentá-lo à coordenação do curso de Direito da UNDB, para que dessem inicio aos

trabalhos de nascimento de uma Ajup na instituição.

Diante disso, o projeto foi oferecido à apreciação da coordenação do curso de

Direito que, embora reconhecesse a salutar importância da temática da assessoria jurídica

popular, se manifestou contrária à formação de um novo grupo de extensão, haja vista a

presença de outro grupo de extensão preexistente, chamado “Direito na Divinéia”, cujas

atividades veementemente assistencialistas encontravam-se suspensas por motivos internos

desconhecidos por ora.

A partir disso, e pela não concordância dos estudantes que propuseram a

implantação de um grupo de assessoria na UNDB, por observarem contradição em termos dos

projetos propostos, optou-se por cultivar discussões acerca da temática no nível da

informalidade institucional, onde os interessados mantiveram, de forma independente, a busca

pelo aprofundamento da metodologia e da dinâmica viva da Ajup.

Nessa estima, no início do semestre seguinte, os estudantes envolvidos na

tentativa da criar uma Ajup na instituição, participaram no período de 27 de abril a 1 de maio

do ano de 2007, na Universidade Federal do Piauí, do Encontro Regional de Assessorias

Jurídicas – ERAJU, realizado em conjunto com o XX Encontro Regional dos Estudantes de

28 Minicursos oferecidos paralelamente com a grade regular do evento. Ocorriam nos dias do evento, geralmente pela manhã, e tinham como coordenadores professores da UNDB e/ou convidados.

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Direito – ERED, evento que reúne estudantes da Regional Nordeste - Piauí, Ceará e

Maranhão, e extensionistas das Ajups.

Cabe ressaltar que os estudantes não participaram como representantes da

UNDB, como se fossem extensionistas, mas apenas se fizeram presente por terem sidos

convidados a participar do evento e terem a oportunidade de se envolverem com outros

grupos de assessoria e trocarem experiências com os outros estudantes. Esse momento foi de

grande importância para os que se fizeram presentes, pois foi o momento de renovar

expectativas, esperanças e reavivar as emoções que foram frustradas no processo interno de

ativação da assessoria na UNDB.

Com o passar do tempo e com expectativas renovadas, houve um professor da

Instituição, chamado Cesar Choairy, sabedor do interesse dos estudantes em formalizarem um

grupo de extensão focado na metodologia da Ajup, que os convidou a integrar e compartilhar

da discussão e do processo inicial de instauração do projeto que foi denominado de “Projeto

Vila Luizão – PIERS/AMAI”. O projeto orientado pelo professor Cesar Choairy,

inicialmente, não compartilhava da temática coletiva e emancipatória concernente à

metodologia vivenciada nas assessorias jurídicas universitárias populares.

Ocorre que, no segundo semestre de 2007, foi lançado edital convocando os

estudantes interessados em participarem do seletivo aberto, por meio de um edital. Foram

selecionados 12 (doze) estudantes, dos quais 4 (quatro) participaram da discussão e

apresentação do projeto inicial e, somente 2 (dois) destes participaram do XX Encontro

Regional dos Estudantes de Direito – ERED - Encontro Regional de Assessorias Jurídicas –

ERAJU29, ocorrido feriado do dia do trabalhador de 2007.

Assim, escolheu-se a comunidade da Vila Luizão como o ambiente de atuação do

projeto PIERS-AMAI30, por esta manter vínculo com o professor Cesar Choairy, uma vez que

este já mantinha contato com a instituição AMAI, vinculada à Igreja Católica que promovia

atividade lúdicas e educacionais com as crianças e adolescentes do bairro.

Dessa maneira, temos no histórico do Pajup a demonstração do seu processo

inicial, uma vez que a sua concretização dar-se-ia pela luta constante dos estudantes

envolvidos com a esperança em formalizar um projeto sendo reconhecido por seu viés de

assessoria jurídica universitária.

29 O encontro tinha como temática central: Reformas – o Brasil em construção. O que esperar ao final dessa obra?30 O projeto se divida como um projeto guarda-chuvas, agregando as várias temáticas de direito fundamental, como saúde, educação, moradia, lazer e outros. A sua execução se dava pela divisão em grupos de integrantes que se dispunham pelas regras da afinidade a cada grupo.

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56

Com o passar do tempo, em 2008, ocorreu o período de desativação do projeto e

saída de alguns integrantes por se demonstram insatisfeitos com as atividades executas na

Vila Luizão, cominando numa nova dinâmica do que viria a se tornar o Pajup. Outro

professor, Elton Fogaça, recém-integrante do corpo docente da UNDB e conhecedor da

metodologia ajupiana, sugeriu aos ex-integrantes do projeto PIERS-AMAI um período de

capacitação teórica e aprofundamento dos temas geradores da Ajup e da extensão

universitária.

Assim, se deu início a um novo ciclo de atividades e estudos de todos os que

desejaram participar de projetos de extensão da instituição, prática essa que é corriqueira nos

inícios dos semestres, onde os editais são abertos. Sendo assim, iniciaram-se os encontros

para a capacitação teórica31, que tanto se demonstrava necessária para a reestruturação

daqueles que no futuro, mais precisamente nos próximos meses de 2008.1, formariam o Pajup

– MA.

Durante o período de reestruturação teórico-metodológico, o Pajup sempre prezou

pela autonomia dos integrantes, fazendo com que o processo de reestruturação fosse

construído pela identidade estudantil, tal como a sugestão de plano de estudo, facilitação do

mesmo e contatos com a comunidade, ainda que com orientação do professor Elton Fogaça.

Conjuntamente a esse processo de reestruturação interna do grupo que se

identificava como um projeto de extensão universitária nos moldes da assessoria jurídica

popular, no mês de março do ano de 2008, uma parcela de estudantes envolvidos com a

construção do espaço ajupiano na instituição, participou e contribui na execução do X

Encontro da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Popular – ERENAJU32, momento este que

os estudantes ali presentes representaram-se como extensionistas.

Seguindo esse processo de envolvimento com a Rede Nacional de Assessorias

Jurídicas Populares - RENAJU, o PAJUP manteve, até o meio do ano de 2010, atividades na

Vila Luizão, juntamente com o grupo de mulheres mencionado anteriormente. Nessa

oportunidade, manteve durante todo o tempo oficinas, estudos e intervenções de cunho crítico

e emancipatório.

31 Nessa oportunidade foi formulado um plano de estudo que constava com os seguintes textos: - Novas Tendências da Extensão Universitária em Direito (Ivan Furmann); - O que é educação popular (Carlos Rodrigues Brandão); - Extensão ou Comunicação (Paulo Freire) e, - Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico (Antônio Carlos Wolkmer). (VER ANEXO 2)32 Evento que ocorreu no período de 19 a 23 de março do ano de 2008, na cidade de São Luís, no espaço do Hotel Maracanã. Oportunidade essa que se consolidou a entrada do grupo PAJUP na Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Populares, conforme se aufere da ata da plenária final do encontro. O evento teve como temática principal a discussão sobre a Gênese dos Direitos Humanos e a necessária motivação para a defesa dos direitos humanos. Ainda, viu-se a necessidade da sua inserção nos currículos acadêmicos.

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57

Já, no final de 2010, o PAJUP foi convidado a integrar a Rede Estadual de

Combate aos Despejos Forçados, a fim de corroborar com a luta contra o avanço dos conflitos

fundiários no Estado do Maranhão.

4.3 Das experiências ajupianas no Estado do Maranhão

As modificações sociais pela quais passou o Brasil fazem menção à grande

dominação qualificada do capitalismo e ao afloramento da vida urbana por vez sustentada

pela civilização33 humana. Nesse sentido, no Maranhão, em São Luís, esse acontecimento foi

sentido de forma desordenada e violenta gerando modificações de perspectiva social e urbana,

acarretando não a convivência social harmoniosa, mas a dominação de riquezas econômicas e

do controle do Estado por uma parcela pequena da população.

Em virtude desse acontecimento a cidade de São Luís e os sítios vizinhos vieram

sendo ocupados por uma parcela de habitantes em busca da melhoria de vida e das condições

de subsistências, e naturalmente, essa ocupação se deu orientando-se por dois princípios: o da

continuidade urbana, justificada pela necessidade de ocupar o território espacial para sustento

da própria necessidade de laboração bem como, a produção de conjuntos habitacionais para o

habitar de todos, oportunizando a privatização do solo e a gentrificação34 econômica de

determinadas áreas ocupadas.

Não há produção que não seja produção do espaço, não há produção do espaço que se dê sem o trabalho. Viver, para o homem, é produzir espaço. Como o homem não vive sem trabalho, o processo de vida é um processo de criação do espaço geográfico. A forma de vida do homem é o processo de criação do espaço (SANTOS, 1996 p.88)

Não há em se pensar as ocupações urbanas, corriqueiras nas grandes e médias

áreas econômicas, sem que o seu espaço seja compreendido como “o conjunto indissociável,

33 Essa proposição toma por aporte teórico o conceito de civilização dado por Schwarcz para quem a “civilização é [...] um nome abrangente, que comporta vários significados: tecnologia, maneiras, conhecimento científico, idéias, religião, costumes; enfim, resume determinada situação política e cultural e faz par com a noção de progresso”.34 O espaço, pensado para além do geográfico, físico e social – isoladamente- é capaz de gerar um complexo de conceitos relacionais de informações. A capacidade de apreensão do homem traduz os olhares multidisciplinares que efetivam ou destroem conceitos de identidade – rompendo com o emprego do sentido iluminista de Identidade, por tomar por si como uno, coeso e estável – contribuindo para a mudança nas relações sociais. Dessa maneira, a sectarização dos territórios urbanos deixa clara a transmutação de lugares públicos em áreas quase exclusivas dos detentores do aquisitivo econômico de bens e serviços ofertados.

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58

solidário e também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações, não

consideradas isoladamente” (SANTOS, 2002, p. 63), para que se atribua mérito à observação

dos fatores políticos, sociais e econômicos inerentes da convivência urbana.

A esse contexto de usurpação de espaços dignos à moradia e, ainda, ao processo

de marginalização de determinada parte da comunidade ludovicense é que se visualiza a

justificativa de desigualdade econômica e social existente na sociedade maranhense. A esse

contexto de usurpação de direitos e de conflitos urbanos surgiu a Rede Estadual de Combate

aos Despejos Forçados, da qual as assessorias maranhenses fazem parte, e inicialmente,

destacamos a atuação do NAJUP “Negro Cosme” com o projeto denominado “Pés no chão”,

como uma das várias mobilizações políticas existentes no Estado, acerca de tal problemática.

Tal projeto teve seu início no ano de 2010 e vem contando com a parceria dos

movimentos sociais integrantes da Rede (OAB-MA /Comissão de Direitos Humanos, CPT,

MST, União de Luta por Moradia Popular, Defensoria Pública Estadual, CSP-Conlutas)

dispostos a discutir sobre a participação política das comunidades ameaçadas de despejo

forçado.

A justificativa da criação da Rede Estadual se dá por meio de um despejo

emblemático, em 18 de novembro de 2009, ocorrida na antiga comunidade Bob Kennedy,

onde 45 famílias tiveram suas casas destruídas em função de conflito fundiário existente no

local. Na oportunidade, deu-se fruto o “Fórum das Comunidades Ameaçadas de Despejos

Forçados de Paço do Lumiar”- formado por 23 comunidades do município – que em

conjunto com: OAB-MA/Comissão de Direitos Humanos, CPT, MST, União de Luta por

Moradia Popular, Defensoria Pública Estadual, CSP-Conlutas, o NAJUP Negro Cosme e o

PAJUP - UNDB35 integram a Rede Estadual de Combate aos Despejos Forçados.

Em relação ao desrespeito aos instrumentos normativos como o Estatuto da

Cidade, o Plano Diretor e a Lei de Zoneamento, o ordenamento jurídico e as autoridades se

mostram incapazes de responder ao contexto de crescimento informal voraz existente nas

grandes capitais. Em verdade, é ao tratar essa temática que o Núcleo Negro Cosme concebe

que “os problemas da cidadania e da cidade não podem ser concebidos de forma isolada, de

modo que não há cidadania sem efetiva democratização das cidades” (Projeto apresentado a

PROEX – pró-reitoria de extensão da UFMA. 2011, p.8).

É sabido que o crescente desenvolvimento da cidade de São Luís traz consigo um

aumento na especulação imobiliária e, como consequência, a elevação dos números de

35 O grupo PAJUP – UNDB em 2011 manifestou interesse em afastar-se temporariamente, por dificuldades internas.

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59

conflitos fundiários. Diante dessa realidade, “a luta pela efetivação do direito à moradia

cresce em importância, justamente, em virtude da estreita relação que estabelece com o valor

da dignidade humana e com o ideal de uma sociedade mais justa e igualitária” (Projeto

apresentado a PROEX – pró-reitoria de extensão da UFMA. 2011, p.7).

Diante disso, entendemos ser obrigatório, como tomada de atitude do fórum a

publicização dos conflitos fundiários urbanos e rurais e a sensibilização das autoridades e da

sociedade civil para os conflitos violadores do direito fundamental à moradia, a fim de

estabelecermos a idéia de participação e gerência da ação política, trabalhada nos capítulos

anteriores.

A participação dos cidadãos no governo, sob quaisquer formas, tem sido vista como necessária à liberdade somente porque o Estado, que necessariamente há de ter a sua disposição os meios de força, deve ter o seu uso controlado pelo governo. Existe também a idéia de que o estabelecimento de uma esfera de ação política, quaisquer que sejam os limites, gera poder e de que a liberdade só pode ser protegida por meio da supervisão constante do exercício desse poder. O que hoje entendemos por governo constitucional, seja monárquico ou republicano, é essencialmente um governo controlado pelos governados e limitado em seus poderes e quanto ao uso da força. Não resta dúvida de que esses limites e controles existem em nome da liberdade, para a sociedade e para o individuo. (ARENDT. 2009b, p.201)

Assim, a concepção desse projeto parte da análise dos problemas de segregação

espacial e social, advindos do acesso informal à moradia que não se mostram adequadas

mediante a existência de insegurança jurídica, vide a ameaça constante de despejos e a

violência presente nestes atos e ainda, pelo fato das áreas ocupadas não apresentarem o

disposto no art.6º da Carta Magna, acerca do direito social à moradia digna.

Dessa forma, após a presente atuação do NAJUP “Negro Cosme” nas atividades

do fórum, percebeu-se a possibilidade de aprofundamento do trabalho desenvolvido nas

comunidades, em especial na “Todos os Santos”, onde há uma liderança, conhecida como

Dona Carmosina, capaz de mobilizar a comunidade para a luta contra os despejos forçados.

Assim, por meio da metodologia da dialogicidade e a contextualização dos direitos humanos,

percebe-se que os integrantes do projeto poderão estabelecer visões mais críticas perante as

situações de desrespeito e, por meio disto, serem autores conscientizados dos embates

vivenciados.

Em contínua comprovação do interesse em efetivar o cerne emancipatório da

atuação ajupiana, o NAJUP “Negro Cosme, em outro projeto, conhecido como “Trilhando

Cidadania”, demonstrou em suas atividades a capacidade coletiva de empoderamento popular

Page 61: AJUP NO MARANHÃO: a contribuição para o (re) significar do espaço público maranhense

60

em face das mazelas, em conseqüência dos grandes empreendimentos da região da estrada de

ferro Carajás.

A atuação do “Negro Cosme”, em compasso com a campanha nacional intitulada

“Justiça nos Trilhos”, efetivou ações que se caracterizam pelo comprometimento na execução

de suas atividades e cujas práticas esboçaram o cerne emancipatório da atuação ajupiana.

Primeiramente, destacamos que tal oportunidade foi concretizada por convite ao

núcleo, organizada pelos Missionários Combonianos do Brasil Nordeste, afim de que

agregassem a rede articulada em prol do monitoramento e combate à pressão sofrida pelos

empreendimentos da Companhia Vale do Rio Doce.

O projeto visou contribuir com a alteração da realidade opressora coordenada

pelas atitudes devastadoras da Vale.

O projeto desenvolvido nesse contexto foi o “Trilhando Cidadania”, que visou contribuir para fazer dos indivíduos sujeitos ativos para a modificação de suas realidades exercendo, assim, a verdadeira cidadania. Para a realização desse projeto, o Núcleo escolheu a cidade de Buriticupu (mais especificamente o povoado de Alto do Pindaré, conhecido por Presa de Porco) como campo de atuação, acreditando que esta localidade, severamente atingida pelos empreendimentos da Vale (Projeto apresentado a PROEX – pró-reitoria de extensão da UFMA. 2011, p.3.).

Vivenciando um contexto de opressão social, moradores da cidade de Buriticupu,

afetados pelos impactos causados pelos empreendimentos da Vale e integrantes da Campanha

“Justiça nos Trilhos”, iniciaram um processo de discussão acerca da temática dos danos reais

encontrados, quais sejam a exploração de recursos ambientais e a violação dos direitos das

comunidades, como os constantes atropelamentos ao longo da estrada de ferro Carajás.

Para compreendermos as construções da atuação do NAJUP “Negro Cosme”, de

forma mais relevante, trazemos à exposição a influência da metodologia da Educação

Popular, de Paulo Freire, na atuação na comunidade Presa de Porco pelos integrantes do

Negro Cosme, corroborando com o interesse emancipatório e humanizante do pensamento

freiriano.

Inicialmente, reconhecendo no direito positivo o instrumento para a superação do

contraste social, em diversas oficinas foi deixada a idéia de que na codificação dos direitos se

perfaz o instrumento legitimador da opressão, contrariando a justificativa do processo de

configuração democrática do Estado brasileiro. Nessa expectativa, os integrantes

conjuntamente com a comunidade perceberam que a superação da relação de domínio e

opressão se faz imprescindível para a mobilização social, decidindo, portanto, construir uma

cartilha voltada a instruir a mobilização social das comunidades, conforme se afere a seguir:

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61

Demandas individuais também ganham mais força quando resolvidas em conjunto. Por exemplo, uma comunidade com vários casos de morte de moradores atropelados pelos trens de uma grande mineradora pode requisitar junto ao Estado uma profunda investigação acerca dos constantes eventos morte causados pela empresa, podendo esta última, inclusive, responder criminalmente, caso se descubra que a mesma assume o risco de matar por não tomar as medidas preventivas adequadas. (Cartilha confeccionada pela campanha Justiça nos trilhos 2009, P. 21)

Ainda, reconhecendo que:

Neste sentido, os novos movimentos sociais são um braço importantíssimo para a configuração democrática, já que é no âmbito da vida política que se opera a construção de um novo pensamento que visa obter meios de satisfazer as necessidades sociais. O mérito de que são dignos, assim, reside no fato de terem conseguido, por meio da mobilização popular, reinventar uma forma de democracia que não ficasse inerte ante a insuficiência do aparelho estatal. Ao reconhecer as práticas insurgentes levadas a cabo pelos novos movimentos sociais enquanto legítimas, posto que muitas delas têm como objetivo a afirmação dos direitos de segmentos sociais oprimidos, o NAJUP “Negro Cosme” firma o compromisso com a luta por emancipação no âmbito da Legalidade Negada. Daí a importância do trabalho de Educação Popular em Direitos Humanos que desenvolve (Projeto apresentado a PROEX – pró-reitoria de extensão da UFMA. 2011, p.6 e 7.).

É cediço que a atuação do NAJUP “Negro Cosme” se pautou pelo contato mais

informal com a comunidade de Presa de Porco e suas lideranças locais, por meio de oficinas

que eram realizadas nos finais de semana, a fim de agregar o maior número de participantes

possíveis. Assim, para o desenvolvimento desse projeto, o Negro Cosme se orientou pelos

princípios da Assessoria Jurídica Popular, buscando a edificação coletiva das ações e a

conscientização de todos os integrantes.

A partir do exposto, damos continuidade com o demonstrativo das experiências

ajupianas no Estado do Maranhão, agora com a atuação do PAJUP – MA e os espaços que o

identificam e o legitimam como atuação ajupiana. E, assim compreenderemos melhor o

contexto de nascimento e desenvolvimento do Projeto de Assessoria Jurídica Universitária

Popular – MA.

A consolidação do projeto PAJUP – MA parte de dois ambientes de atuação, o pré

– PAJUP, momento que foi iniciado pelas mesmas pessoas que hoje ajudam a constituir o

grupo e, em seguida, pela atuação na comunidade Vila Luizão em dueto com o grupo de

Mulheres da Comunidade, agora, com a denominação PAJUP – MA, e que será mais

aprofundado a frente.

Conforme mencionado no tópico do histórico, o surgimento do PAJUP - MA deu-

se pelo interesse estudantil em criar um grupo de assessoria na instituição a fim de fortalecer

Page 63: AJUP NO MARANHÃO: a contribuição para o (re) significar do espaço público maranhense

62

as discussões sobre a temática da Assessoria Jurídica Popular, dos direitos humanos e do

Direito Alternativo e demonstrar à comunidade acadêmica que o Direito deve ser utilizado

como mecanismo de transformação, a fim de que alcancemos a justiça social.

Ocorre que, durante o primeiro ano, a maior preocupação do grupo foi aprofundar

os estudos por meio de um plano de estudo definido pelos estudantes em conjunto com o

professor Elton Fogaça, que veio a se tornar o 1º orientador do PAJUP, e continua sendo-o

nos dias atuais. Esse plano de estudos se executava por meio de textos e leituras pessoais,

onde havia sempre um facilitador, integrante do PAJUP, coordenando a discussão dos

encontros, realizados semanalmente.

Assim, constava nos estudos iniciais as discussões acerca das seguintes temáticas:

a metodologia da educação popular, reconhecimento das teorias críticas do Direito e, ainda, a

prática da extensão universitária sobre diversos paradigmas, de modo a enxergar a sua

execução de maneira interdisciplinar, uma vez que o interesse era compreender a vivência do

tripé universitário, em especial a prática extensionista de forma dialógica, e fortalecer a tarefa

árdua de comprometimento do ensino jurídico mais crítico e questionador.

Deste modo, o grupo de estudantes em comento seguiu com os encontros voltados

para a discussão e aprofundamento sobre as mencionadas temáticas, oportunidade em que

houve uma ampliação das informações sobre a assessoria popular e um aumento significativo

dos interessados pela assessoria jurídica popular. As atividades do agora denominado

PAJUP36, se realizariam paralelas às atividades internas na academia37 e ainda, na comunidade

Vila Luizão.

De tal modo, a partir do que já foi mencionado sobre o primeiro ambiente de

atuação do PAJUP – MA, seguiremos com a exposição do que hoje reconhecemos como o

ambiente que melhor legitima a identidade do PAJUP – MA, como uma assessoria jurídica

popular e membro de uma rede de assessorias jurídicas universitárias populares existente no

Brasil.

36 Essa denominação foi dada meio que às pressas pela necessidade de nomear o grupo que contribuiu e participou do X Erenaju, ocorrido em São Luís, no ano de 2008. 37 No inicio do semestre 2008.2, o PAJUP – MA, já reconhecido por tal qualificação, além de realizarem atividades na comunidade Vila Luizão, obtiveram mais espaço na academia e participaram de diversos encontros como representantes do Pajup. A essas atividades, destacamos a do espaço interno acadêmico, qual seja a de integrarem os eventos promovidos pela instituição, como a “Semana do Calouro” da qual foram convidados a agregá-la. Tal evento constante do calendário da instituição e que mantêm o interesse em promover a recepção dos discentes de modo, a apresentar os instrumentos normativos e a dinâmica do curso, assim como os projetos de pesquisa e extensão existentes. Nessa oportunidade, há o convite para buscarem um grupo de interesse e integrarem-no. Assim, nesse espaço é dado ao PAJUP – UNDB momento especial de divulgação e de fala, onde é feito o convite de integração aos novos discentes, professores e interessados.

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63

O ambiente que se faz menção é o da comunidade da Vila Luizão, escolhida em

decorrência da recepção tranqüila da comunidade com os membros do PAJUP – MA, uma vez

que já existiam contatos e atividades realizadas38 com algumas lideranças locais e ainda, por

ser área conhecida da periferia urbana de São Luís, caracterizada pelas mazelas oriundas do

desequilíbrio do desenvolvimento sócio-urbano do Estado do Maranhão.

O período de retorno à comunidade culminou com a saída da congregação AMAI,

a entidade católica referida aqui, e a gerência dos encontros, na comunidade se deu por um

grupo de mulheres, em especial, a Maria, que já tinha o contato com integrantes do PAJUP,

antigos PIERS-AMAI.

Tal renovação de agentes gerou um entrave inicial39. O grupo de mulheres que,

antes da atuação do PAJUP – MA, estavam relacionadas às atividades assistencialistas

promovidas pelo PIERS- AMAI e pela própria instituição AMAI, tiveram certa dificuldade

em compreender a nova atuação que era proposta e pautada na autonomia dos envolvidos para

a resolução de seus problemas.

Ainda que encontrando esse obstáculo, as atividades não foram suspensas ou

sequer canceladas. Houve, portanto, a conscientização do Grupo de Mulheres da presença do

PAJUP – UNDB e sua metodologia, para mediarem a conscientização da comunidade perante

a usurpação de direitos coletivos. Apesar das mulheres se encontrarem no processo de

organização social e estarem se reconhecendo como movimento social, estas concordaram em

traçar uma agenda de temas e estudos que colaborassem com a discussão sobre como mediar

os problemas da realidade local.

A partir desses debates e fazendo uso do principal pilar da assessoria jurídica

popular, o trabalho na comunidade era executado com atenção ao diálogo dos extensionistas

com as mulheres da comunidade, numa espécie de troca de saberes, por reconhecer que o

comportamento dialógico, conforme os saberes de Mialle (1994, p. 21) “parte da experiência

de que o mundo é complexo: o real não mantém as condições da sua existência senão numa

luta, quer ela seja constante quer inconstante. Um pensamento dialético é precisamente um

pensamento que compreende esta existência contraditória”.

De tal modo, pudemos observar que a realidade das mulheres sempre

compreendeu que os envolvidos se reconheciam como personagens atuantes da realidade de

luta comentada por Mialle, e assim reconhece-se nesse processo a potencialidade do julgar,

que Arendt (2007b, p. 274-275) apresentou por sê-lo digno do espaço público e por ser 38 Lembrar que os integrantes do PAJUP – MA, eram em sua grande parte, os mesmos que nos tempos anteriores realizavam atividades representando o PIERS-AMAI.39

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legitimador do acesso à praça pública, onde os homens indissociavelmente necessitam uns dos

outros para se reconhecerem Homens e libertarem-se das amarras das limitações individuais

que desconfiguram a potencialidade do juízo humano.

Igualmente, em vários encontros durante todo o tempo de atuação do PAJUP –

MA com o grupo de Mulheres da Vila Luizão, houve inúmeras discussões tendo como temas:

cidadania, direito de voto, direito do consumidor, questão de gênero, constituição de

associação, posse e propriedade, pilares do movimento social e outras. Em todas elas, todos os

envolvidos figuravam como autores de conscientização e construíram encontros que foram

vivenciados através do exercício de diversas dinâmicas, debates de questões particulares40,

poemas, músicas, encenações teatrais, vídeos e depoimentos.

Em todo o processo de execução de atividades e encontros, observou-se o

amadurecimento do grupo, na sua forma de constituição uma vez que discutiram a temática de

“Associação e cooperativismo” com o objetivo de alcançar uma melhoria na execução do

trabalho coletivo desempenhado por elas, contribuindo ainda, para o reconhecimento como

um ente coletivo.

De fato, em todas as atividades realizadas em conjunto com o Grupo de Mulheres

da Vila Luizão, se pode localizar a potencialidade do juízo humano demarcado por Hannah

Arendt. Do mesmo modo que em A vida do espírito (2010, p.113 e 114) a filósofa

demonstrou que o ator está inserido no jogo e ele deve encenar a sua parte para assim

compreender o final do jogo, as mulheres da comunidade da Vila Luizão, em harmonia com

os integrantes do PAJUP – MA, desenrolaram as linhas do festival da vida e tornaram-se

conscientes do que consiste a dinâmica do espaço público.

Por fim, através das já mencionadas idéia de democracia e de ocupação do espaço

público é possível se visualizar a ressignificação da praça pública, espaço idealizado pelos

gregos e que até os dias atuais mantêm na sua essência o cumprimento da ação política. Essa

revelação se faz onde a pluralidade humana, condição básica da existência, se constitui pela

ação e discurso dos diferentes e do qual nenhum ser humano pode ser abster, da vida activa,

inaugurando-se um tempo de esperanças e perspectivas que não sejam dificilmente

40 Destaca-se aqui, um momento curioso e ímpar nos encontros na Vila Luizão. Em um dos encontros a tarde no sábado, conforme o combinado, havia uma quantidade pequena de coro por parte do grupo das Mulheres, haja vista, que a ocorrência de faltas nos encontros era pequena e quase ínfima. Depois de muito indagado, pelos membros do PAJUP, com todo cuidado e educação, percebeu-se que naquela ocorrência aleatória estava uma questão na qual nunca haviam comentado, qual seja, a opinião dos homens, em especial, dos maridos sobre a presença das suas esposas, mães e filhas naquele espaço. O que se chegou à conclusão era que apesar destes concordarem com a ocupação das mulheres, não o reconheciam como espaço competente a resolução dos problemas da comunidade, ainda que houvesse o enfretamento diário das mulheres em seus lares.

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cumpridas, mediante a ação política exercida por todos no espaço da criação do Novo e do

bem comum.

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66

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática da assessoria jurídica popular concebe a emancipação social e o

aprimoramento do convívio político entre os diferentes. A emancipação social se dá entre os

ímpares num processo dialógico de confronto social, onde os homens, por reconhecerem sua

responsabilidade perante a vida política, se assumem como autores do contexto social-

histórico do qual fazem partes.

A partir da abertura do processo democrático pós - 88, o processo de construção

social da democracia e a mudança na identidade dos movimentos sociais caracterizam um

Estado Democrático de Direito que compreende a abertura política como categoria da

liberdade humana. A nova inserção de movimentos sociais preocupados com a atuação

política do ser humano fez com que se difundisse um novo ideal de política, capaz de inserir

no corpo coletivo a paixão e a esperança da emancipação do Homem e da Mulher.

A análise do processo de democratização do estado brasileiro aponta para o

reconhecimento do valor da cidadania pela sociedade e, ainda, a constante busca de renovação

e qualidade de como exercê-la. Essa linha de raciocínio nos facilita perceber que os espaços

direcionados à ressignificação do público caracterizam-se por demonstrar o rompimento com

o elemento dominador, seja qual for sua vertente na sociedade, qual seja econômico, social,

de gênero e etc.

A dimensão política referenciada nesses espaços trata o indivíduo como o ser

competente pela sua emancipação e pela construção das ocorrências na vida pública. O que se

pretende auferir aqui é que a ação humana, cujas características trabalhamos ao longo do

presente estudo, não pode ser desintegrada no processo dialógico, e ao contrário, se perfaz na

dialeticidade da vivência- transformação.

Diante disso, o espaço público se faz digno por ser categoria inerente à ação e

natureza da dialogicidade humana. A ação humana possibilita sustentar relações onde

dissensos e os consensos solidificam o princípio democrático do Estado, no qual se está

inserido. Assim sendo, para sustentar os princípios democráticos a que estamos ligados, sem

defeito algum, é necessário reconhecer o processo de construção e desconstrução de pilares

que, porventura, constituem uma sociedade.

A isso, a prática descrita das assessorias jurídicas universitárias populares não

busca o nivelamento do interesse social, numa espécie de concordância geral e mútua,

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67

gerenciado por uma força estatal, ou ainda, por um saber popular. A assessoria jurídica

popular parte da importância da busca continua pela liberdade política, concebida aqui por

nós, inserindo os atores da vida activa no processo de pertencimento e de autoria das próprias

vidas.

A autoria da vida constitui-se como categoria fundamental para que a natureza das

ajups direcione suas práticas para a conscientização perante a responsabilidade política. Isso

se dá pelo contexto político e histórico a que se observa o surgimento e compreensão das

Ajups, sendo sempre resguardadas pela busca constante da justiça por seus próprios

oprimidos.

Através do método da educação popular freireana e da busca permanente pela

dialogicidade da prática extensionista, as assessorias jurídicas universitárias populares

inserem-se em um contexto de uso diferenciado do Direito, enquanto instrumento para

possibilitar o acesso à Justiça social, de modo a resgatar a sua função social e o pano de fundo

político do qual ele emerge, quebrando com o hermetismo da concepção tradicional do

Direito.

No Estado do Maranhão, onde a maior parte da população encontra-se carente de

políticas públicas que garantam o mínimo dos direitos sociais e há uma imensa lacuna de

participação política, com forte presença do clientelismo, oligarquias e práticas políticas

alienantes, se faz vital a discussão sobre a autoria da vida e o papel das Ajups se torna de

grande relevância.

O que se observou, ao se tratar das práticas das assessorias jurídicas maranhenses,

foi que, apesar das dificuldades, tais projetos de extensão vêm tentando, através do contato

direto e dialógico com as comunidades, contribuir para que estas se fortaleçam e possam

discutir e se apossar das próprias vidas e se sentir responsabilizadas pelo mundo comum.

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ANEXOS

ANEXO A - Projeto de Pesquisa e Extensão Universitária apresentado ao PROEX - UFMA.

ANEXO B - Relatório de atividades do PAJUP 2008.1