Alçapão para gigantes, de Péricles Prade
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Péricles Prade
ALÇAPÃO PARA GIGANTES
(1ª Edição, Alfa-Ômega/SP, 1980; 2ª Edição, Letras Contemporâneas/SC, 1995)
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SUMÁRIO
Prefácio / Fábio Lucas / Alçapão para gigantes / O segredo / O vulnerável destino de um rato / O servo de Schedin / A grande concha / O demônio e as margaridas / O tigre / Mirsânia, a estrategista / Depoimento de um filho adotivo / O cavalo de Mergoror / O touro e o rio / O unicórnio voador / Posfácio / Álvaro Cardoso Gomes /
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PÉRICLES PRADE
ALÇAPÃO PARA GIGANTES
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"Quero, antes de mais nada, advertir o leitor que tem aqui uma pequenina obra-prima". (Tassilo Orpheu Spalding) "Péricles Prade é escritor singular na literatura, sem ninguém que se lhe assemelhe quanto à elaboração de seus escritos, em prosa ou em poesia. Que seus textos são fantásticos, não há nenhuma dúvida, mas inteiramente diferentes de outros transgressores do real de nossas letras". (Almeida Fischer) "Os contos de Péricles Prade penetram fundo o território brumoso do fantástico, num mundo alienante surrealista cuja inteligência do texto se nega a qualquer tentativa de leitura ingênua." (Cassiano Ricardo)
"Péricles Prade está entre os maiores escritores do país, não só pela performance estilística, como também pela fecunda imaginação. É de uma originalidade vertiginosa." (C. Ronald)
"Trabalho criativo na ficção que revela um escritor empenhado em mudar a concepção tradicional do conto fundado na ordem racional das idéias, através de uma estória e linguagem em que a alegria, a imagem, o humor nos levam a uma aventura verbal e plástica realmente original". (Laís Correa de Araújo) "Péricles Prade vem-se projetando na literatura brasileira como mestre definitivo do fantástico e do surrealismo. Desde seu primeiro livro, Os milagres do cão Jerônimo, essas características despontaram como marcantes em sua arte literária." (Lauro Junkes) "Péricles Prade revelou-se um dos maiores contistas brasileiros na linha do realismo mágico." (José Afrânio Moreira Duarte) "Pode-se entender, assim, a adesão de Péricles Prade ao fantástico como instrumento adequado para criar o seu mundo de ficção, porque se opõe ao falso realismo, que consiste em crer que as coisas podem ser escritas como o dava por assentado o otimismo filosófico e científico de outros tempos". (Carlos Jorge Appel) "Péricles Prade, sem favor algum, é uma das figuras mais expressivas do conto fantástico brasileiro, podendo ser situado dentre os escritores mais importantes da América Latina na atualidade". (Luz e Silva)
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OS GIGANTES APRISIONADOS DE PÉRICLES PRADE
Fábio Lucas
Uma neblina de mistério cobre os doze contos de Péricles Prade, reunidos sob o título Alçapão para Gigantes. Talvez a indefinida espessura poética, aderida à função narrativa. De que mundo ficto se trata, de que ficção? Nada do convencional procedimento romanesco, a extrair similitudes do encandeamento de fatos do cotidiano. Antes narrativa que se nutre de mitos, efusão livre do imaginário, debaixo de cujo aparente controle subjazem razões imponderáveis sopradas do inconsciente. E nesta parte complexa se entrelaçam impulsos individuais com os arquétipos da espécie humana. Mais do que decifrar a mensagem do contista, cumpre senti-la primeiramente, pois ela se realiza sob o jugo perpétuo da fantasia. Não uma fantasia gratuita e evasiva. Trata-se de uma construção sistemática do maravilhoso, ou seja, uma narrativa sob o monopólio do sobrenatural. É o lado mitológico de Alçapão para Gigantes. Mas a liberação dos prodígios e das imagens do inconsciente passam pelo crivo da realização consciente; quer dizer: o modelo surreal é atenuado pela infra-estrutura real. A irrestrição da onipotência do narrador na montagem dos eventos sobrenaturais é controlada pela contingência existencial, pelos limites vivenciais do ser humano, pela ideologia. Então, não se trata apenas de produzir espantos e prodígios. No território fantasmático dos seres extra-terrenos infiltra-se a substância humana no que ela tem de mais perecível e precário. Pode-se notar na ficção de Péricles Prade um duplo movimento: a uma expansão do imaginário, segue-se uma cláusula restritiva. Quando não, uma rotina da função prodigiosa. O primeiro parágrafo do livro ilustra a passagem de um momento a outro: "Quando, pela primeira vez, o gigante caiu no alçapão, o baque foi violento e surdo. Nas seguintes, a queda era suportada com prudência e habilidade". O primeiro conto fecha-se magnificamente com uma equivalência predicativa: "A armadilha era a própria exaustão", o que corresponde a um jorro poético e a um fator narrativo de total efeito regressivo, pois ilumina todo o texto. A correlação significativa se acentua no conto seguinte, pois poderia ser resumida assim: segredo é segredo (cf. "segredo").
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"O Vulnerável Destino de um Rato" procura representar um estado de necessidade, definido por "habitar muitos corpos, ocupando nobres lugares para o alimento vital". Aí está: o "alimento vital" se torna a cláusula restritiva de todas as possibilidades do rato. Sua ausência só pode ser a morte, a condição terrena do rato: "definhou sem dar um grito". "O Servo de Schedin" propõe o velho tema hegeliano do reconhecimento, dependência irrecusável do Outro: "Soube que o senhor morava aqui e gostaria de registrar minha passagem sobre a face da terra". O prodígio narrado no conto é superado pela necessidade de registro. Esse conto e o seguinte, "A Grande Concha", são marcados pela compulsão do mistério que, aliado a dois outros componentes – a ameaça e o medo – tece uma atmosfera de terror. A fraqueza humana se apodera do demônio em "O Demônio e as Margaridas" e o tigre se torna veículo de uma busca, algo que se encontra além das aparências, em "O Tigre". Mas é em "Mirsânia, a Estrategista" que o jogo metafórico mais se declara, pois tem como referente as astúcias do poder. Do poder ainda não suspeitado. Em "Depoimento de um Filho Adotivo" o que se tem é a crueldade, numa confissão de fingida inocência. É também a descrição de um caminho para o absolutismo exclusivista. Faz parelha com o conto seguinte, "O Cavalo de Mergoror", de sentido contrário: a ação é de abolição da crueldade. Naquele são visíveis os sinais da lei humana: cobiça, assassínio; neste, a vingança e a morte como gesto reparador. Com "O Touro e o Rio" repete-se o fenômeno da restrição qualitativa do aspecto maravilhoso, algo que o torna único e memorável: "o fenômeno nunca mais se repetiu". Finalmente, nesta sequência temática, vamos atingir "O Unicórnio Voador", cujo término nos remete tanto ao fato que não se repete, descrito no conto anterior, como à necessidade de registro, apontada no conto "O Servo Schedin", condição da glória e da permanência. O conto e o livro se fecham com um declaração acerca do unicórnio enigmático, ''filho de uma abelha gigante", cujo sentido profundo pode aplicar-se ao impulso que leva o poeta a escrever, a fim de que não se perca o estado momentâneo de convívio com os segredos da expressão: "Meu temor é morrer antes dele e tudo ficar sem explicação". Temos que Alçapão para Gigantes, refletindo uma atração sistemática do A. pela introdução do sobrenatural na articulação temática, cede à tentação de explorar os limites naturais, carregados de paixões, fraquezas e finitude, que presidem o discurso humano. Por aí é que se infiltra a capacidade crítica de Péricles Prade, enlaçada à sua propensão ao texto poético.
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ALÇAPÃO PARA GIGANTES
Quando, pela primeira vez, o gigante caiu no
alçapão, o baque foi violento e surdo. Nas seguintes, a queda era suportada
com prudência e habilidade.
Supunha-se que, com a lição do cativeiro, não mais
voltasse a furtar as melancias, quebrando-as com os dentes como se fossem
delicadas nozes.
Era reincidente, porém.
Retornava à plantação em períodos certos, como se
obedecesse a um ritual. Segundo o calendário-Wostruph, os furtos atingiram a
soma astronômica de 6.600.666.000.660.600.010.001.216.
A solução encontrada parecia simples, mas quase
todos os conselheiros negros votaram desfavoravelmente à prisão. De nada
adiantou, pois a unanimidade dos conselheiros verdes determinou que o
gigante permanecesse recluso, em regime perpétuo.
O erro foi fatal.
A ausência prolongada, apesar de transformada em
costume, provocou a ira de Berthemethar ao amanhecer. Reuniu dezoito
caçadores, guerreiros improvisados, liderados por um prestigiado armador
cuja especialidade exigia amplíssimo conhecimento de como é possível anular
o perigo de quaisquer armadilhas, mesmo as mais sofisticadas.
E partiram.
Nas bordas do terceiro vulcão sopraram o
necessário para causar um terremoto, mas os inimigos nem se abalaram.
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Mal iniciaram novo ataque, surgiram trezentos e
doze novas armadilhas. Tantas eram, que só o trabalho para desfazê-las os
cansou. Um dos gigantes chegou a adoecer, causando sérias preocupações.
No dia seguinte novas armadilhas os surpreendiam.
Os guerreiros, aos poucos, perdiam suas forças, permanecendo à sombra das
árvores remanescentes. Só o armador resistiu, caminhando em direção dos
castelos de palha.
Faltava um metro para o portão central, e, nesse
breve espaço, começou a mais violenta luta de que se teve notícia: contra as
armadilhas do povo de Sezmedor.
Durante uma semana ainda suportou. O cansaço
dele tomou conta e apenas um dos dedos conseguiu movimentar. Com real
facilidade foi conduzido ao interior da jaula, onde fez companhia a outro
cativo, conformado.
Se não tivesse ouvido certa conversa, perto das
folhagens, jamais descobriria o motivo de sua derrota.
A armadilha era a própria exaustão.
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O SEGREDO
Sempre tive consciência do meu poder e jamais quis
fazer uso dele. Não foram poucas as vezes em que senti forte atração para
exercê-lo, uma espécie de curiosidade em relação a um resultado fatal.
Sentado na poltrona fico a pensar que seria
melancólico morrer sem utilizar força tão terrível. De nada adianta,
reconheço, possuir o segredo pelo simples prazer de sua intimidade.
Por outro lado, se deixo de participar a todos que
existe, ele passa a não ter sentido.
Preciso contar a alguém.
Talvez a pessoa certa seja Rhodamar, sempre
interessada quando se trata de coisas estranhas.
- Por favor, quero conversar com a prisioneira.
- Lamento muito. Matou-se hoje, pela manhã,
durante uma sessão cinematográfica.
Acendo o cigarro, um pouco triste, mas aliviado por
não ter cometido um erro.
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O VULNERÁVEL DESTINO DE UM RATO
Encontrar um rato na uretra pode ser surpresa a um
médico, mas jamais a Rothan, o balseiro, que vive dessas maravilhas há muitos
anos, à beira do Rio Benedito, declamando para os anuns com alegria contida.
O rato tem uma história e só Rothan sabe disso:
No tempo de Egisto IV, que morreu delirando
entre os fogos, houve uma festa em Pomeranos quando anunciaram o
nascimento de Aboval, o primogênito.
Foram contratadas seis hábeis parteiras, que, no
altar de cedro, excitaram a grande Rata.
As mulheres trabalharam dias e dias, sem descanso,
tendo ao término da festa surgido entre as mãos de Noblina aquele a quem foi
reservado um magnífico destino: o de habitar muitos corpos, ocupando
nobres lugares para o alimento vital.
Durante anos seguidos o balseiro toma
conhecimento de detalhes considerados estranhos pelos vizinhos, salientando-
se o fato de o rato ter sido encontrado, com frequência, em situações incríveis.
Ubaldo o encontrou no esfíncter de doze carpas,
seguidamente retiradas da lagoa anã da Granja Oriente.
Hamms, quando barbeiro, viu o animal no fio da
navalha de uma espinha solitária do freguês alemão.
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Lifãres e seu filho Rodrigo, espanhóis perdidos na
Praia da Saudade, souberam de sua existência no pneu esquerdo do Mercedes
dos Pisani, quase sempre furado.
Amaral, também conhecido como E Silva, assustou-
se ao ver o rato cair no chão ao abrir um processo na longínqua comarca de
Mourinhos.
Carlango, quase um senador, cuja especialidade
maior sempre foi a de mexer no nariz, deixou o velho hábito ao verificar a
presença do rato, rindo, entre a verde matéria na ponta do indicador.
Mas Prisco, o rato, como que por verdadeira mágica
desapareceu por completo.
Soube-se que Rothan resolveu ficar no mais
absoluto silêncio. Chegou até a negar a veracidade das ocorrências.
Ninguém sabia a razão, até ontem, quando foi
descoberta a verdade.
Casara com a Grande Rata, cuja paixão acabou
levando o filho à morte porque, proibido de viajar para alimentar-se, definhou
sem dar um grito.
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O SERVO DE SCHEDIN
No cesto encontrei doze ovos de chumbo.
Desconfiado, olhei para os lados na expectativa de uma presença
desconcertante. Não houve equívoco, pois em seguida um corpo indefinido
arrastou-se em minha direção. O pavor fez com que eu permanecesse no
lugar.
O ser, notando o meu comportamento, retraiu-se
um pouco. Menos embaraçado, mas ainda um tanto inibido, falei num tom
quase afetivo:
- Com que criatura estou em contacto?
- Sou o servo do príncipe Schedin, único
sobrevivente de terrível catástrofe ocasionada em seu império. Um dilúvio de
milhares e milhares de micróbios infestou a comunidade, afogando-a na
imundície. Consegui manter-me vivo graças ao fato de ser possuidor de um
controle orgânico inédito no mundo animal. Basta que eu tranque a respiração
alguns segundos para transformar meu corpo num bloco de chumbo. Foi com
esse poder, originado de uma fórmula conhecida apenas pelo alquimista
Arfhanio, até o dia do assassinato, que pude salvar-me da morte.
- Mas o que faz em minha casa, no meio das aves e
nesta hora da manhã?
- Soube que o senhor morava aqui e gostaria de
registrar minha passagem sobre a face da terra.
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A GRANDE CONCHA
Olhar a ponta do pé direito, todos os dias, era um
verdadeiro suplício. Mestre Maiochi não se conformava com a unha encravada
que, desde a infância, impunha-lhe uma dor quase imperceptível, mas
contínua.
Mora à beira de um rio prudente, tendo como
prazer maior o fato de, apesar de idoso, ser professor de um conhecido grupo
de cegos.
No último aniversário recebeu de presente,
embrulhada em papel prateado, uma tesoura delicadíssima e cuja origem
jamais foi questionada. A ponta, afiada, possui um brilho estranho só notado
por Lothar, o jardineiro rosacruz.
Após uma visita a Pastos Velhos acabei sabendo,
em contato com outro professor, apelidado de Senhor U, que havia uma
fórmula singela para resolver o problema da unha, cortando-a em V.
Bastou cortá-la para verificar que, no dia seguinte,
mudou de cor, dobrando o tamanho.
Fez novas experiências.
No final do mês de Janeiro andava com real
dificuldade. A unha já era maior do que o próprio pé. Os cortes multiplicavam
o tamanho.
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Mestre Maiochi confeccionou uma meia enorme,
marrom, conduzindo a perna com as mãos. Deixou de dar aulas e só saia de
casa aos domingos, sentado numa carroça esbranquiçada, que dirigia a um
local ignorado.
Não suportou o desejo dos cortes. Uma compulsão.
A tesoura, duas lâminas ofuscantes, funcionava como se fosse sempre a
primeira vez. A unha continuava a crescer; redobrava.
Tão extraordinário o crescimento, que se viu
forçado a abandonar a habitação. A unha sequer entrava pela porta detrás, a
maior delas. Ou mesmo pelo janelão perto do poço.
Passou a frequentar o bosque.
Incríveis os problemas para caminhar.
Daí as razões dos jejuns, menos espaçados.
Se parasse de cortar, por certo teria condições de
sobrevivência. A compulsão no entanto era tal que, todas as manhãs, quase
sem resistência, voltava aos cortes após visível esforço.
A partir do septuagésimo corte a unha passou a
crescer com autonomia.
A fome e a sede eram demasiadas, mas o mestre
Maiochi não podia sair do lugar. Sem possibilidade de qualquer controle viu a
matéria tomar conta da aldeia: a igreja, a escola, as casas, os verdes vales, a
tudo engolia, presos à sombra envolvente nascida de sua presença.
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O DEMÔNIO E AS MARGARIDAS
O demônio não resistiu. Minhas piadas, realmente,
eram muito boas. Cruzou as perninhas e desandou a rir como um menino.
Havia esquecido as dores da perversidade e trazia no rosto a paz, sem
nenhuma malícia exposta.
De repente, entristeceu. Pude até anunciar um jeito
esquisito no lábio superior, talvez um princípio de choro.
Depois, exalando comovente curiosidade, com
reverência pediu que contasse outras.
Estranhei. Algo misterioso envolvia a singular
criatura. Não quis de maneira alguma continuar, mas acabei sendo,
irresistivelmente, forçado a nova conversa, agora engenhosa, trespassada de
fino humor. Sorriu aliviado, suspirando.
Em seguida, com as pequenas mãos escondendo os
olhos brilhantes, sugerindo melancolia, confessou levar uma vida injusta entre
os seus.
Puxou-me, envergonhado, dizendo-me quase
inaudível:
- Como gosto de você!
Creio não ser preciso expressar o quanto me
assustei. Sempre pensara, desde criança, que os demônios fossem maus. E
este, que participava de minha convivência, seria um personagem expulso dos
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infernos? Nada disso, mas pensei que estava sendo enganado. Fazendo de
conta que nada me abalara, falei com naturalidade:
- Confesso que jamais um demônio simpatizou-se
comigo.
Como ele permanecesse em silêncio, fiquei
constrangido. Supus que minha intervenção o tivesse deixado sem graça.
Pigarreei um pouco:
- Peço desculpas.
Mal acabara de pronunciar essas palavras, caí em
mim. Não devia ter falado assim. Este é um daqueles que estão contaminados
pelos pecados do mundo, pensei. Estava prestes a dizer qualquer coisa de
interessante, quando fui interrompido:
- Sou um tímido. Falta-me vocação. Como encará-
lo? Olhei para os lados, indeciso. Por que não tivera maior percepção? Era
aquilo, afinal?
Os tímidos devem ser respeitados. Agi abusando de
um ser bom e inseguro.
Não podia remediar, infelizmente.
Ou podia?
O interessante é que, nem havia passado um
segundo, com razão imaginei que estava sendo envolvido em exemplar
gozação. E se o demônio, no fundo, estivesse construindo uma situação
ridícula para divertir-se às minhas custas?
Coçou a cabeça e, com aspecto aparentando calma,
gritou histérico:
- Conversar com o senhor é a própria humilhação!
Irritei-me. Fizera menção para levantar, doido-
doido para quebrar-lhe os chifres, quando de maneira educada estendeu-me os
braços, pedindo que eu ficasse parado.
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Deu-me um prolongado beijo na testa e, após
chorar aos prantos, recitou alguns versos da Divina Comédia.
Foi com tristeza nos olhos que, retirando o rabo do
canteiro das margaridas, disse adeus.
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O TIGRE
1
O tigre dança sobre enorme e quente chapa de
ferro. Os gritos explodem na floresta. Após, com as pernas queimadas, o
corpo do animal tomba ao chão. Recolhido por monstros verdes é levado para
uma jaula luminosa, onde, prisioneiro, vê com surpresa sete lâminas sagradas
curtirem o belo couro de manchas selvagens.
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O tigre enfia o pescoço na boca da serpente de
ouro. Ouve-se à distância o veneno escorrer pelas veias, mas o animal, afeito a
torturas, resiste com resignação. As mordidas continuam, os finos dentes
quase rompendo a jugular.
Sem se preocupar, com tranquilidade sopra dentro
da serpente que, aos poucos, converte-se em balão.
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O tigre salta ao fundo do poço, num mergulho que
ultrapassa a cinco minutos, procurando em vão encontrar a arca de fogo
furtada do altar do Rei Anthenor. Repete o mergulho diversas vezes, espetado,
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sempre, por uma afiada espada de prata que sai da bainha conduzida pelo
escravo branco.
Aberta a arca, ao acaso, a água corrompe o símbolo.
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MIRSÂNIA, A ESTRATEGISTA
Nos corredores a Rainha se irrita. Pela quarta vez
patas estranhas eliminam os exércitos, preparados há longo tempo. Não
confessa o desânimo, mas pensa na renúncia. Convoca o povo para expor
certos pormenores.
- Se não tivesse o temperamento que é do
conhecimento de todos, já me consideraria derrotada. Creio, porém, em nossa
milenar capacidade de recuperação. Minha preocupação é tamanha que,
sozinha, não mais tenho condições de organizar as defesas. Até hoje não
admiti a interferência de ninguém, segura de poder decidir tudo, inclusive a
respeito das guerras. Volto atrás. Ouço para melhor orientar. Quem poderia
nos aconselhar para o combate?
Todas as formigas, uma única voz, disseram aos
gritos:
- Mirsânia, a estrategista!
A Rainha engoliu em seco. Era sua rival, presa no
cubículo de Milfos há dezesseis séculos por que um dia teve a ousadia de
demonstrar um pequeno erro de cálculo cometido por um Ministro. A
situação era embaraçosa.
Se não acolhesse o pedido estaria desmoralizada
após o patético discurso; se aceitasse estaria admitindo a força da outra.
Pensou alguns segundos e sucumbiu:
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- Sendo para o beneficio de todos, determino a
expedição do alvará de soltura.
A Rainha, escoltada por trinta e quatro falanges,
dirigiu-se apressadamente ao cárcere. Apanhou as chaves e, num gesto solene,
abriu as porias de ferro.
A surpresa do desencontro é indizível. Ela não mais
se encontrava na prisão. No Chão, num papiro, havia uma fórmula minúscula
que mais parecia rascunho de projetos. Juntou-a com as mãos trêmulas,
chamando com urgência o alquimista Fharnau.
Com os olhos inchados e arfando, disse com terror:
- Majestade, Mirsânia é o Gigante!
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DEPOIMENTO DE UM FILHO ADOTIVO
Quem me criou foi o capitão Alphonsus, conhecido
pelos viajantes como exímio curador de furúnculos.
Apesar de solteiro, chegou a adotar mais de
quarenta crianças.
Sofri muito no começo, mas aos poucos fui me
ambientando. Na ausência dele passei a ser o responsável por tudo. Num dia,
ainda me recordo, livrei Alpínio da desgraça ministrando veneno no copo de
plástico. Parecia um passarinho. Até hoje supõem ser outra a origem da
morte.
Verdade é que anualmente falece um, tendo os
vizinhos já se acostumado. Hoje constato, com certa tristeza, que o único vivo
é Lando, famoso por ter descoberto um cofre contendo antigas moedas de
ouro.
No íntimo não tenho coragem para eliminá-lo. Mas
serei incoerente, se não o fizer. Ele anda desconfiado e sabe que não escapará.
Armado, obriguei-o a caminhar até à beira do poço.
Com um velho balde teve que tirar toda a água e colocá-la na piscina. Fez o
trabalho umas trinta vezes. Na última caiu, debatendo-se.
Como eu o vigiava, de longe, corri em sua direção
para salvá-lo.
Com muito esforço consegui retirar o corpo; todos
são testemunhas.
Com um morto, afinal, o que se pode fazer?
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O CAVALO DE MERGOROR
O cavalo fugiu rumo à caverna de Mergoror,
soltando longa cortina de poeira cinzenta.
O eremita afagou o animal, irritado pela constância
dos maus tratos infligidos ao animal, geralmente durante o inverno, quando a
dor é mais penetrante.
Jamais fora dado a vinganças, mas a punição deveria
ser irremissível.
O problema maior, na aldeia, seria descobrir o autor
das chicotadas. Uma criança, talvez?
Mergoror, após muitos anos de recolhimento,
desceu das colinas em direção de Catharan, silencioso, durante a noite.
Sabe o Senhor, porventura, quem bateu no meu
cavalo negro?
O padeiro, tido como sabedor de tudo quanto se
passava em Catharan, limitou-se a balançar a cabeça, num gesto negativo
perpassado de temor.
Mergoror voltou-se tão silencioso como veio.
A pergunta era mero disfarce.
O conhecimento possuía há muito tempo, no exato
momento em que sentiu, mesmo de longe, as dores cortantes do animal
belíssimo.
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Seguiu alguns passos, retirou agulha finíssima de um
dos bolsões, e, num gesto rápido, lançou-a certeira no coração do padeiro.
Este, com os olhos inchados, surpreso, maravilhou-se com o sábio.
Caminhou um pouco, cambaleante, para beijar o
eremita na face direita. Após, caiu.
A presença de várias pessoas fez com que não
pudesse retirar, por entre as pernas do morto, mechas fortes de crinas negras
aparecendo discretas.
Mergoror sabia de tudo, mas não admitia que, para
satisfazer um prazer, a criatura humana chegasse a fazer da crueldade raro
exercício.
Hoje, na caverna, continua a afagar o animal sem
receios. Vê-se, ao fundo, certo brilho nos olhos escuros.
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O TOURO E O RIO
A sede era intensa e o touro, sem esforço, bebeu
toda a água do rio.
Em seguida movimentou-se com dificuldade.
Como insistem, cabe-me contar alguns detalhes que,
na verdade, não são os mais importantes.
- Quando a barriga cresceu, parte dela caiu sobre os
trilhos de Marjaina: o trem não pôde ser detido, tendo falecido dezoito
famílias de imigrantes japoneses.
- Uma lavadeira, que servia na fazenda dos
Berthaso, precipitou-se na cisterna quando retirava água, sofrendo a queda
devido ao deslocamento do ar quando o touro ensaiava um passo.
- Há quatro anos urinava peixes longos e brilhantes,
ainda vivos, naturalmente, causando pânico entre os mendigos que os
disputavam. Um grupo de crianças chegou à conclusão de que imediata
providência deveria ser tomada. Alexandre, o menor, com escamas construiu
um aparelho móvel (quarenta por cento de borracha), convocando os
companheiros para nele ingressarem. Aproveitou o sono do animal, coisa rara,
golpeando a agulha com força para furar a bolsa de couro.
Poucos os sobreviventes, entre os quais me
encontro, mas o fato é que o fenômeno nunca mais se repetiu.
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O UNICÓRNIO VOADOR
No momento em que estava olhando para o lado
esquerdo da cama um enorme barulho quase estourou meus miolos. Dei um
salto e fiquei a espreitar pela fechadura.
Abro a porta com extremo cuidado e vou até a sala.
Nada que possa preocupar. Faço uma pesquisa com os olhos; absoluto o
silêncio.
Da sala fui para os quartos e de lá até ao banheiro.
Supunha que, com o tremor, pelo menos parte da casa houvesse caído. De
repente, a lembrança. Dirijo-me correndo à cozinha.
Decepcionado, verifico que tudo se encontra nos
devidos lugares: a geladeira, o fogão, o armarinho, as panelas, o tapete, o
relógio e a caixinha de lixo.
Ainda sonolento, recosto-me na parede. Mal a toco
e um grito agudo toma conta do ambiente. Coloco as mãos nas costas, com
receio de sentir um buraco na espinha.
Ao me virar, a surpresa.
Estendo as mãos para apalpar e ver que ponta é
essa que tem uns quinze centímetros e está encravada na parede. Puxo-a com
força, num ímpeto, mas ela nem se mexe.
Lembro-me de que no quartinho há um martelo
excelente, de cabeça grande. Vou buscá-lo e começo a dar contínuas batidas,
sem sucesso.
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Desisto, lamentando não ter um serrote bem afiado.
Mais tarde despi o pijama e coloquei uma calça de
couro e camisa xadrez para tomar o café da manhã.
A ponta na cozinha é uma ideia fixa.
Necessito descobrir o que é. E se houver alguma
coisa do lado de fora?
Tomo o último gole da xícara, com calma mas
pensando muito, crente de que estou na pista certa.
Com passadas firmes vou à cozinha, ultrapasso a
porta e dou a volta na casa.
Um animal ajoelhado bufa um bocado e, para falar a
verdade, geme também. Possui apenas um chifre e com ele está preso.
Foi só passar o susto e deu-se outro. Piscou um
olho e disse sem cerimônia:
- Como é, vai ou não me tirar daqui?
Impertinente, mas, vendo-o sofrer, não resisti e fui
providenciar a vinda imediata de um pedreiro. Consegui trazer o Sr. Landoz.
Quase cego, não chega a perceber a situação. Certifiquei-me disso após ele ter
recebido o dinheiro pelo trabalho, pois me perguntou o motivo de um prego
tão grande na cozinha.
Achei engraçado e disse que, se precisasse de novos
serviços, irei apanhá-lo em casa. Quando dobrou a esquina fiquei mais
tranquilo, dei um pontapé no rabo do animal e insisti, com voz autoritária,
para que me contasse a origem de sua presença.
- Sou filho de uma abelha gigante chamada
Hirtamusa. Antes da criação da terra vivia no planeta Morang, cujo formato é
idêntico a uma fruta muito procurada pelos homens. Mamãe me gerou no dia
em que completou mil anos; daí a minha sabedoria. Tive sérios problemas de
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alimentação. Ser único, não existe unicórnio de asas, como eu. Por distração
sofri uma queda.
Ainda hoje o conservo numa jaula de vidro, spécie
de estufa apropriada ao seu desenvolvimento.
Meu temor é morrer antes dele e tudo ficar sem
explicação.
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ALÇAPÃO DE IMAGENS
Álvaro Cardoso Gomes
A ficção de Péricles Prade tem parentesco com o surrealismo, mas parece que há uma diferença fundamental entre os processos narrativos de Alçapão para Gigantes e os da prosa surrealista. Esta realiza um corte espacial na realidade, aquela um temporal. Ou seja: o universo surrealista secciona o real, através de imagens flutuantes do subconsciente: a sequência automática das imagens impede a linearidade da ação. As imagens vogam num ritmo imponderável, criando poderosos oximoros com o que se entende por normalidade. Já nas narrativas de Péricles Prade, aparentadas com o mito, a lenda, as histórias exemplares, a linearidade se afirma em obrigatória compulsão. Desse modo, as imagens do subconsciente deixam de se comportar como bolsões de significado. Pelo contrário, metaforicamente elas se alinham em enredo, porque só passam a ter significado quando desenvoltas. É a colocação das palavras no tempo que faz os embriões do obscuro desencadearem um processo, no qual, eles se transformam em seres espacialmente concebidos.
A transformação das imagens do inconsciente em actantes é o primeiro passo para
que a prosa prevaleça sobre a poesia (ainda que esta prosa seja toda impregnada pelo
poético). Única forma de o narrador transformar os conteúdos da alma profunda em
palavras; contudo, não na perspectiva poética em que a imagem pura, livre da peia espácio-
temporal, flutua num compasso musical. Aqui, realiza-se verdadeira operação alquímica: a
imagem inativa, que repousa numa espécie de limbo, transforma-se em ação e, ao
transformar-se em ação, circunscrevendo-se dentro da lógica da linearidade espácio-temporal,
privilegia posturas ritualísticas. A narrativa justifica sua existência pelo rito, que, segundo
Van der Leeuw, “é um mito em ação"1. Dessa perspectiva, os contos de Alçapão para
Gigantes, como os rituais, visem a atualizar os mitos, para ligar o profano ao sagrado.
Através deles, o "indivíduo do quotidiano tem acesso a uma sobre-realidade que o
transfigura tanto a ele mesmo como ao quadro de sua vida"2. Esta parece ser a função das
narrativas de Péricles Prade: ao contrário da experiência surrealista, em que as imagens
formam bolsões de significado, sem a sequência linear, o texto deste escritor chama a
sequência para si, porque se objetiva como um ritual. As imagens arquetípicas, liberadas do
inconsciente, constroem histórias exemplares, em que o ser humano, muitas vezes,
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metaforizado por animais, numa perspectiva especular, se vê como modelo de outros seres
humanos. Um homem é todos os homens, e sua história conta a história da Humanidade.
Todavia, se estas narrativas tomam a feição de um ritual em que o profano é unido
ao sagrado, supõe-se que ela se caracteriza sempre pelos mesmos componentes. O conto-ri-
tual tem conformação eminentemente tautagórica: num rito é a repetição de um fragmento de
um tempo original", diz-nos Van der Leeuw3. Ora, a consequência disso é a repetição de
estrutura e gestos, o que torna as personagens entes modelares. Os seres desse tipo de ficção
constituem projeções da psique coletiva, que, segundo Jung, contém componentes de ordem
"impessoal, coletiva, sob a forma de categorias herdadas ou arquétipos”4. Desse modo, são
imagens ou figurações que o indivíduo herda da comunidade e que contracenam com aqueles
componentes estritamente individuais da psique. Portanto, se as narrativas de Alçapão
para Gigantes são histórias modelares, com função ritualística, verifica-se que as imagens e
seres que as estruturam têm fundo arquetípico.
As imagens arquetípicas e recorrentes do livro ordenam-se em três grupos,
que se relacionam como vasos comunicantes. Ou seja: pertencem ao mesmo plano de
simbologia e só existem uma em função da outra. São elas:
a) Imagens do espaço: a uretra, o esfíncter, a concha, a redoma, o
cárcere, o alçapão, o ovo, a arca, o poço, a caverna, a barriga, a bolsa.
b) Imagens de animais: o cavalo, o touro, o tigre, o unicórnio, o rato, a formiga,
os peixes, a abelha.
c) Imagens de homens dominados pela parte animal ou ao
contrário disso:
- o gigante, o demônio
- homens-narrativa, o velho Sábio e crianças.
O primeiro conjunto de imagens primordiais constitui o espaço privilegiado das
narrativas, ora referido como receptáculo de algo valioso (o tesouro na área de "O tigre"),
ora, na maioria das vezes, como prisão: o alçapão do conto que dá título ao livro; a uretra, o
esfincter de "O vulnerável destino de um rato"; a concha de "A grande concha"; o cárcere de
"Mirsânia, a estrategista", o poço de "Depoimentos de um filho adotivo", a caverna de "O
cavalo de Mergoror", a barriga e a bolsa de "O touro e o rio" e a estufa-redoma de "O
unicórnio voador". Ligadas à figura do círculo, tais imagens constituem metáfora primordial
do ventre materno. O ventre geralmente tem sentido positivo; lugar de proteção e calor e por
isso mesmo comparado ao laboratório dos alquimistas, em virtude de seu poder de
transformação. Mas todo símbolo primordial é ambivalente; assim "o ventre é refúgio, mas é
também devorador. A Genetrix pode-se mostrar dominadora e cruel; ela nutre suas
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criaturas, mas há o risco de ele mantê-los ao nível infantil e de entravar o seu
desenvolvimento espiritual"5.
Os animais ora são o herói da narrativa, como o roedor de "O vulnerável destino de
um rato", a formiga de "Mirsânia, a estrategista", o tigre de "O tigre", ora coadjuvante
numa aventura, que neles encontra o núcleo de seu significado (o que acontece em quase todos
os outros contos). Como se pode observar, em Alçapão para Gigantes há predomínio
absoluto de animais terrestres e mamíferos: rato, cavalo, touro, tigre, unicórnio; há dois
insetos, um aéreo (abelha) e um terrestre e subterrâneo (formiga) e apenas um animal
aquático (os peixes). Essa escolha é significativa, no sentido de que tais animais estão
ligados a forças solares, representando, portanto, a energia da libido, seja em seu aspecto
positivo, seja em seu aspecto negativo. Por outro lado, é preciso considerar aqueles seres que
são humanos e, ao mesmo tempo, não o são, porque há neles alguma coisa do reino dos
animais irracionais. O gigante, por exemplo, é um "símbolo de indigência espiritual (...),
imagem do desmesuramento, em proveito dos instintos corporais e brutais"6. O crescimento
desmedido do gigante implica restrição da parte intelectual, ou mesmo da parte espiritual.
São célebres os de atos e Ephialtes enganados por um tolo estratagema de artemisa, ou, do
próprio Adamastor, referido por Camões nos Lusíadas, que, cego de amor, se deixa lograr
por Thétis. O mesmo acontece em "Alçapão para gigantes”: a armadilha para o gigante
baseia sua engenhosidade na inocência do inimigo. Já o demônio, relacionado "com os
instintos, com o desejo em suas formas passionais, com as artes mágicas, com a desordem e
perversão”7, por isso mesmo representa o ser humano dominado pelos mais baixos instintos,
o animal, em sua conformação subterrânea.
Ao lado dos animais, há os homens também atuando como heróis em determinadas
narrativas, ou como meros coadjuvantes em outras. Nesses casos, comportam-se como heróis-
solares: há neles a prevalência das forças do fogo sobre as aquáticas, ou ainda, do consciente
sobre o inconsciente. O melhor exemplo desse tipo de ser é representado pelo grupo de
crianças que se sacrifica pelos outros em "o touro e o rio". Mas há também a figura do velho
sábio, o eremita de "O cavalo de Mergoror". Sua perfeita interação como o animal qualifica-
o como um ser que atingiu a totalidade. Assim, ele configura o que Jung chama de
"personalidade-mana", "um ser de uma sabedoria superior e de uma vontade igualmente
superior (...) o conhecido arquétipo do homem poderoso, sob a forma do herói, do cacique, do
mago, do curandeiro e do santo, senhor dos homens e dos espíritos, amigo de Deus"8. O
mesmo não se pode dizer de outro sábio, o Mestre Maiochi, de "A grande concha": seu
saber para cegos é nulo. A maior prova disso está em que, ao final da narrativa, ele é
dominado por uma parte orgânica de si mesmo. Ainda como heróis, é preciso considerar os
homens-palavra, cuja ação se faz através da linguagem. Rothan, o barqueiro de "O
vulnerável destino de um rato"; o homem que sabe a verdade sobre o servo de Shedin; o
sobrevivente de "O touro e o rio", todos eles são portadores de conhecimento, no sentido de
que os seres e as coisas nascem da vontade expressa de falar.
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Este levantamento preliminar de imagens arquetípicas, referentes ao espaço e aos
seres, serviu-nos para fornecer os elementos essenciais à existência da narrativa mítica. Como
já se viu, o espaço é ligado à imagem do círculo. Quanto aos seres, dividem-se em animais,
homens dominados pelo instinto primário que privilegiam as forças solares em detrimento
das aquáticas, ou seja, que dominam os baixos instintos por uma vontade. Antes, porém, de
integrarmos os actantes no espaço, é preciso refletir sobre a presença massiva dos animais,
quer como personagens, quer como coadjuvantes, nas histórias exemplares de Alçapão para
gigantes. Ainda que se possa ingenuamente determinar a diferenciação entre homens e
animais, baseando-se no par instinto/razão, cremos que é oportuno pensar numa interação
mais profunda entre ambos. Em realidade, homens e animais deste espaço mágico não se
diferenciam substancialmente; a melhor prova disso está em que há razoável lei de permuta
entre ambos: o gigante se animaliza, ao cair na armadilha mais banal; a formiga se eleva,
ao se transformar em gigante. É que as narrativas situam-se numa mítica, anterior à eclosão
de consciência. Ou ainda, as narrativas situam-se numa espécie de "Idade de Saturno, na
qual os animais tem poder de linguagem (ou Idade de Ouro que precedeu à emergência do
intelecto)"9. Ora, é com a consciência da Idade de Saturno que Péricles Prade dá à sua
ficção a conformação da fábula: os animais falam, os animais não se distinguem em
qualidade dos seres humanos. Ainda: podem constituir um emblema do próprio homem, na
sua conformação mais simplificada, sem incômodas máscaras ou complexos.
Isto posto, é necessário examinar o papel dos actantes-animais ou animais-
coadjuvantes dentro do espaço especificado. Se o espaço é ambivalente, na sua significação
simbólica de ventre materno, obviamente, tal símbolo informará o caráter ora positivo, ora
negativo, dentro de cada narrativa. No primeiro caso, as narrativas contam uma história
exemplar: o retorno a um princípio, a restauração de uma ordem, seja ela rompida
brutalmente ou não. Para tanto, o voltar atrás no tempo implica a medição do ventre
materno. Tal mediação constitui o ritual que Mircea Eliade nomeia de regressus ad uterum
e que possui várias conformações. Em suas próprias palavras, "o retorno ao útero é expresso
quer pela reclusão do neófito numa choça, quer pelo fato de ser simbolicamente tragado por
um monstro, que pela penetração num terreno sagrado identificado ao útero da Mãe-
Terra"10. No segundo caso, o retorno ao ventre é instauração do caos, verdadeiro apocalipse,
retorno ao incriado. Ao invés de propiciar o volto benéfica ao princípio, instaura o fim dos
tempos, represando forças vitais.
Dentro dessa perspectiva negativa, temos a imagem do gigante aprisionado: o alçapão,
emblema da Mãe-Terrível, reduz a força arrasadora a nada. A armadilha-ventre materno,
de acordo com a psicologia jungueana, representa a figura castradora da mãe que impede o
filho de assumir a libido. Outro exemplo poderoso da função castradora do útero está no
conto "O tigre". Dividida em três partes, a narrativa conta o ritual de sacrifício do animal,
que busca em vão" a arca de fogo furtada do altar do Rei Anthenor". O tigre "simboliza
um princípio ativo, a energia, em oposição ao princípio úmido e passivo"11. Podemos então
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associar sua figura ao fogo, ainda mais pelo fato de, em sua busca, ele desejar exatamente
esse elemento. A relação entre a fera e o fogo faz dela um herói solar que, por isso, deverá
passar por um ritual iniciático. No primeiro fragmento, é supliciado com as chamas; no
segundo, enfrenta a serpente do Mal12. Por fim, deve saltar num poço, o obstáculo mais
perigoso, a Mãe-Terrível, que destrói sua meta: a arca se abre ao acaso, e "a água corrompe
o símbolo".
Idêntico papel exercer o cárcere de "Mirsânia, a estrategista", somente que ali a
metamorfose criativa de Mirsânia subverte a penalidade: o ventre-prisão, que tinha caráter
negativo, de repente se transforma no laboratório alquímico, que possibilita a
transmudação da formiga em gigante. Mas a imagem mais forte do caráter negativo do
ventre está em "A grande concha". Associada à água e ao órgão sexual feminino, a concha
geralmente tem sentido positivo. No conto em questão, todavia, predominam os aspectos
negativos da regressão infantil, porque se torna a obsessão única da vida do Mestre. Ao
tentar cortar a unha, Maiochi deflagra um processo que o leva à morte: a uma cresce tanto
que se transforma numa concha que envolve todo o mundo. A simbologia é bastante clara:
o velho sábio é dominado por sua parte orgânica e, por ela, engolfado. Opera-se um retorno
ao princípio, através da concha-útero. A dor, sinal do nascimento, como pecado, é
recuperada com a visão apocalíptica do final, quando a regressão infantil de Maiochi engole
simbolicamente o universo.
A simbologia da regressão do ser, com a manifestação de comportamentos infantis,
também comparece no conto "O segredo", verdadeira alegoria do homem moderno. A
personagem tem um segredo, uma força terrível que hesita em revelar. Essa força terrível são
os conteúdos da psique, que o homem primitivo tinha o poder de exorcizar, através de rituais
ou da exteriorização delas, transformando-as em entes sobrenaturais. Isso implicava o
esvaziamento mágico do ser e sua purgação. Já o homem moderno, com a descoberta do "eu",
torna-se um ser fechado em si mesmo, dominado por forças que não consegue controlar. Daí
vem que experimente a solidão cósmica, com a aguda consciência de alteridade. Mas a
conseqüência maior dessa sua atitude de ensimesmamento é a regressão: o segredo não
revelado corresponde à força da libido represa/ como se ele fosse tomado pelo poder da Mãe-
Terrível.
Quanto ao sentido positivo do regressus ad uterum, encontramo-lo principalmente em
"O unicórnio voador" e "O touro e o rio". No primeiro, Péricles Prade reconstrói em parte
a alegoria platônica da queda, do pecado original. Vivendo no planeta Morang, o animal é
privilegiado porque possui asas: "ser único, não existe unicórnio com asas como eu". Mas,
como o gigante, equilibra sua sabedoria com uma falta: a distração, o que lhe provoca a
queda e a conseqüente prisão na parede. De que lhe adiantam asas se não pode voar? De
que lhe adianta o chifre se o tem preso na parede? Contudo, o animal fantástico aprisionado
pode ser também uma alegoria cristã. Segundo Borges, ele simboliza, entre outras coisas,
"Jesus Cristo e o Espírito Santo"13. Esse seu caráter religioso surge referido no Velho
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Testamento: "o unicórnio é um símbolo de castidade e também um emblema da espada ou
da palavra de Deus"14. Assim, no conto em questão, ele é o mensageiro que traz a boa
nova e que por isso mesmo permanece aprisionado (como Cristo num invólucro carnal). "A
jaula de vidro, uma espécie de estufa apropriada ao seu desenvolvimento", é o útero
materno, invólucro protetor da verdade original, que a personagem deseja assimilar.
Em "O touro e o rio", a história exemplar conta de uma situação caótica,
apocalíptica e do ritual para o retorno ao princípio harmonioso. O touro simboliza" com
sua força brutal a dominação perversa. Seu sopro é a chama devastadora"15. O fato de ele
engolir o rio é sinal de que passa a simbolizar o novo leviatã, a besta do Mal, que não só se
apodera do fluxo da vida, como também semeia a desordem no mundo. O combate ao
monstro se dá através das crianças, isso porque elas são inocentes. A menor delas,
sintomaticamente chamada Alexandre, constrói um aparelho, dentro do qual, as crianças
penetram para derrotar o Leviatã. Ora, o ingresso dos meninos na bolsa de borracha
semelha em tudo o ritual mágico do regressus ad uterum referido por Mircea Eliade,
especificamente no que diz respeito à "reclusão do neófito numa choça". A bolsa-ventre
evidentemente representa o ventre materno, e a entrada das crianças dentro dela serve para
que o Tempo retorne ao princípio. Alexandre, o líder entre os meninos, iguala-se neste
ritual ao herói Alexandre e está apto, portanto, a combater o inimigo. Mas a luta final não
se dá sem sacrifício: grande parte das crianças morre, para que a ordem prevaleça sobre o
caos: "poucos os sobreviventes, entre os quais me encontro, mas o fato é que o fenômeno
nunca mais se repetiu.
Seja em seu aspecto positivo, seja em seu aspecto negativo, o ritual de regressus ad
uterum, uma constante nas narrativas de Péricles Prade, lida com duas etapas
fundamentais do tempo: o princípio e o fim, ora com uma intenção restitutiva, ora com uma
intenção escatológica. Seus heróis, portanto, vivem num espaço mágico que os obriga a repetir
velhos gestos. Mas o importante é que há neles todos a busca de uma pureza original, ou a
preservação de algo intocado, uma primeira natureza indevassada. É, pois, a presença
dessas ações ritualísticas, de busca de origens, da imitação de comportamentos modelares que
dá à prosa de Péricles Prade feição nitidamente mítica. Mas o fato de o escritor escolher o
caminho do mito não implica que haja só uma visão nostálgica do passado; mais que isto, o
autor deseja, através de narrativas exemplares, algo virginal e puro, que o nosso tempo,
pobre de sonhos e do imaginário, ocultou ou ameaçou destruir. E este ideal utópico
evidentemente só pode ser atingido por uma linguagem encantatória, simbólica, recriadora de
seres e situações, que apenas dois espaços souberam preservar: o do inconsciente e o das artes.
Por que não retomá-los então? É o que faz este mago dos símbolos, com seu instigante
alçapão de imagens.
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Anotações bibliográficas 1 Van der Leeuw - L'homme primitij et la religion, trad. Franc., Paris, Alcan, 1940, p. 120. 2 Georges Gusdorf - Mito e meta física, trad. Bras. Sp, Convívio, 1980, p. 37. 3 Van der Leeuw - L'homme primitif et la religion, op. Cito P. 120. 4 C. G. Jung - O eu e o inconsciente, trad. Bras., Petrópolis, Vozes, 1979, p. 13. 5 Jean Chevalier et Alain Gheerbrant - Dictionnaire des Symboles, 4 vols. Paris, Seghers, 1973, 4°.vol, p. 367. 6 Jean Chevalier et Alain Gheerbrant - Dictionnaire des symboles, op. cit, 2°. Vol, p. 371. 7 J. E. Cirlot - Dictionnaire of symbols, 2°. ed, trad. am,NY, Philosophical Library, 1983, p. 80. 8 C.G. Jung - O eu e o inconsciente, op. cit, p. 111 e 103. 9 J. E. Cirlot - Dictionary os symbols, op. cito P. 11. 10 Mirce Eliade - Mito e realidade, trad. Bras. Sp, Perspectiva, 1972, p. 75 11Jean Chevalier et Alain Gheerbrant - Dictionnaire des symboles, op. cit, 4°. vol. P. 298. 12 Segundo o mesmo Dictionnaire des symboles, se o tigre luta "como em certas representações contra animais inferiores, tais quais os répteis, ele passa a representar uma figura superior da consciência", op. cito P. 299. 13 Jorge Luis Borges - O livro dos seres imaginários, trad.bras, Porto Alegre, Globo, 1981, p. 162. 14Jean Chevalier et Alain Gheerbrant - Dictionnaire des symboles, op. cit, 4°. vol, p. 357. 15 Paul Diel, idem ibidem, p. 276
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Quando foi lançado o primeiro livro de contos de Péricles Prade (nascido em Timbó, SC, a sete de maio de 1942) o poeta Cassiano Ricardo, então exercendo o ofício de crítico, assumiu a responsabilidade de assegurar as extraordinárias virtudes literárias do texto, a ponto de negar inteligência àqueles que se mantêm impermeáveis à beleza da obra, dela fazendo uma tentativa de leitura ingênua. Após essa manifestação, centenas de críticas favoráveis foram publicadas em todo país, o mesmo ocorrendo em relação ao livro seguinte, intitulado Alçapão para Gigantes, publicado pela editora Alfa-Omega. Publica-se, agora, a segunda edição, com prefácio de Fábio Lucas e posfácio de Álvaro Cardoso Gomes, conceituadíssimo críticos de literatura, atestando a alta qualidade da obra.