Além da Metafísica e do Niilismo: Nietzsche e uma ética para espíritos livres

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Universidade Federal de Gois Faculdade de Filosofia Ps-Graduao Projeto de Mestrado

ALM DA METAFSICA E DO NIILISMO Nietzsche e uma tica para espritos livres

Eduardo Carli de Moraes

Maio de 2011

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IDENTIFICAO DO PROJETO

Tema: Alm da Metafsica e do Niilismo: Nietzsche e uma tica para espritos livres

Proponente: Eduardo Carli de Moraes

Linha de pesquisa: tica e filosofia poltica

Provveis orientadores: 1 Adriano Correia 2 Adriana Delb 3 Jos Ternes

Perodo de execuo: Vinte e quatro meses

Goinia, Maio de 2011 2

1. CARACTERIZAO DO PROBLEMA...as consequncias mais prximas [da morte de Deus], suas consequncias para ns, no so, ao inverso do que talvez se poderia esperar, nada tristes e ensombrecedoras, mas antes so como uma nova espcie, difcil de descrever, de luz, felicidade, facilidade, serenidade, encorajamento, aurora... De fato, ns filsofos e 'espritos livres' sentimo-nos, notcia de que 'o velho Deus est morto', como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso corao transborda de gratido, assombro, pressentimento, expectativa eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que no esteja claro, enfim podemos lanar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor outra vez permitida, o mar, o nosso mar, est outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto 'mar aberto'. NIETZSCHE. A Gaia Cincia, aforismo #343.

Um dos fenmenos humanos mais profundamente estudados por Nietzsche a moral, objeto de uma considerao prolongada e pormenorizada que perpassa muitas obras do filsofo alemo, a ponto de seu interesse e preocupao com a questo dos valores ser descrita por Brobjer como the centre of gravity of all his writings1. Alguns dos escritos nietzschianos j revelam em seus ttulos as ambies de seu autor: Aurora Reflexes Sobre os Preconceitos Morais e A Genealogia da Moral, por exemplo, esclarecem que algumas das principais tarefas a que se props Nietzsche eram averiguar as origens das estimaes humanas a respeito do Bem e do Mal, criticar as iluses ou preconceitos que subjazem a estes juzos, num empreendimento que acaba pondo em questo o valor de sistemas de moralidade que norteiam condutas humanas e definem culturas e civilizaes: "enquanto para toda a tradio o valor dos valores morais era visto como um dado inquestionvel, agora se colocar sob suspeita o prprio valor desses valores."2 Estes so alvos que Nietzsche atinge seja atravs de um procedimento genealgico (que busca compreender as razes histricas das avaliaes morais, uma vez que todo cdigo de moralidade ou tbua de valores concebido pelo filsofo no como ddiva ou revelao divina, mas como construto humano), seja atravs de uma anlise psicolgica (reveladora de afetos e motivaes ocultos nos posicionamentos morais, com a incluso de elementos fisiolgicos e impulsos inconscientes, procedimento exemplificado pela dissecao nietzschiana da figura do sacerdote asctico). Por essas e outras, Nietzsche chegou a ser descrito por seu conterrneo Thomas Mann, influente literato do sculo XX e Prmio Nobel de Literatura, como o maior crtico e psiclogo da moral conhecido na histria da mente humana.3 A filosofia de Nietzsche, clebre por seu carter crtico e polmico (a ponto de seus1 BROBJER, T. Nietzsch's Ethics of character. Sucia: Uppsala University, 1995. P. 12. 2 MOURA, C.A.R. Nietzsche: Civilizao e Cultura. So Paulo: Martins Fontes, 2006. Introduo, XVI. 3 MANN, T. Nietzsche's Philosophy in The Light of Contemporary Events. Washington: library of Congress, 1947. Pg. 17.

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procedimentos serem descritos como anlogos a marteladas destinadas a demolir dolos), procede a uma crtica conjunta tanto da metafsica de inspirao platnica quanto da moralidade judaicocrist (consideradas como intimamente implicadas, j que o cristianismo no passaria de platonismo para o povo4). Como elucida Moura, "o cristianismo apresentado como uma das peles com as quais a serpente platnica se revestiu... a 'morte de Deus' , assim, um estgio da morte do platonismo"5. O vnculo entre a crtica metafsica, de um lado, e moralidade a ela acoplada, de outro, ntimo. Tanto que o procedimento genealgico descrito como um antdoto contra a pretenso universalista de certas moralidades especficas, que pretendem falar de modo absoluto e universal, independentemente de tempo histrico ou espao geogrfico, cometendo o erro habitual de concluir que h uma obrigatoriedade incondicionada6:A verdadeira genealogia pretender antes marcar as diferenas do que forjar identidades, ela ser atenta s mutaes das significaes e desconfiada diante dos conceitos supostamente unvocos. Por isso, ela no decretar a existncia de nenhuma finalidade meta-histrica a orientar o vir-a-ser, ela investigar a histria sem a pretenso de reencontrar ali a realizao de qualquer ideal eterno. Afinal, a histria dos historiadores, ao procurar ler nos eventos a realizao progressiva de uma finalidade imutvel, apenas uma metafsica travestida. Por isso Nietzsche opor o 'filosofar histrico' a toda pretenso metafsica de reencontrar dados eternos, e insistir na denncia de que qualquer teleologia construda sobre o erro de se imaginar um homem eterno, em torno do qual todas as coisas do mundo estariam alinhadas desde o comeo. Assim, a genealogia ser a histria desembaraada da metafsica. () Segundo Nietzsche o verdadeiro sentido histrico aquele que reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado eterno.7

O procedimento genealgico-crtico empregado por Nietzsche em sua investigao da moral, portanto, faz parte de um projeto mais amplo de desmantelamento da metafsica de raiz platnica-crist ( qual o filsofo to enfaticamente se ope). Ao versar sobre o fenmeno da morte de Deus, isto , do crescente descrdito lanado sobre as crenas crists na Europa de seu sculo, Nietzsche destaca que no se pode desvincular esta decadncia da f da concomitante crise da moral ligada a ela: depois de solapada essa crena, no somente a religio que se v posta no banco dos rus, mas tudo quanto estava edificado sobre ela, apoiado a ela, arraigado nela; por exemplo, toda a nossa moral europia. 8 Nietzsche assim resume tudo que se esboroa com a morte de Deus e a vitria do atesmo cientfico:Considerar a natureza como se ela fosse uma prova da bondade e custdia de Deus;4 NIETZSCHE. Alm do Bem e do Mal. Prlogo. Cia das Letras, 1992, p. 8 5 MOURA. Nietzsche: Civilizao e Cultura. Martins Fontes, 2006. Pg. 30. 6 NIETZSCHE. A Gaia Cincia. Livro V, 345. In: Obras incompletas. So Paulo: Nova Cultural, 1999 (Os Pensadores). Pg 198. 7 MOURA. Op Cit. Pg. 114-115. 8 NIETZSCHE. Op Cit. Pg 195.

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interpretar a histria em honra de uma razo divina, como constante testemunho de uma ordenao tica do mundo com intenes finais ticas; interpretar as prprias vivncias, como a interpretavam h bastante tempo homens devotos, como se tudo fosse providncia, tudo fosse aviso, tudo fosse inventado e ajustado por amor da salvao da alma: isso agora passou isso, para toda conscincia mais refinada, passa por indecoroso, desonesto, por mentira, efeminamento, fraqueza, covardia9

Scarlett Marton resume assim as oposies nietzschianas:Nietzsche desautoriza as filosofias que supem uma teleologia objetiva governando a existncia, desabona as teorias cientficas que presumem um estado final para o mundo, desacredita as religies que acenam com futuras recompensas e punies. Recusa a metafsica e o mundo supra-sensvel, rejeita o mecanicismo e a entropia, repele o cristianismo e a vida depois da morte.10

A moral judaico-crist, alm de baseada numa concepo metafsica platnica que Nietzsche rejeita como ilusria, criticada com severidade por vrias razes: por ser hostil vida (dirige o olhar, verde e maligno, contra o prprio prosperar fisiolgico 11), sexualmente repressora (conseguiu fazer de Eros e Afrodite duendes infernais12), nascida de afetos reativos como o ressentimento e a crueldade internalizada (a ponto de ser equiparada a um levante de escravos na moral):A Igreja combate as paixes atravs do mtodo da extirpao radical; seu sistema, seu tratamento, a castrao. No se pergunta jamais: como se espiritualiza, embeleza e diviniza um desejo? Em todas as pocas o peso da disciplina foi posto a servio de extermnio. (...) Mas atacar a paixo atacar a raiz da vida; o processo da Igreja nocivo vida.13

Nietzsche diagnostica na moralidade judaico-crist uma calnia contra a realidade terrena, uma averso a tudo que mundano, e esta tbua de valores anti-naturais no passaria de um doentio moralismo que ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos14. Dois trechos, um da Genealogia e outro d'O Anticristo, sintetizam tais opinies:dio contra o humano, mais ainda contra o animal, mais ainda contra o material, essa repulsa aos sentidos, razo mesma, o medo da felicidade e da beleza, esse anseio por afastar-se de toda aparncia, mudana, vir-a-ser, morte, desejo, anseio mesmo tudo isso significa, ousemos compreend-lo, uma vontade de nada, uma m-vontade contra a9 NIETZSCHE. A Gaia Cincia. Livro V, 357. In: Obras incompletas. So Paulo: Nova Cultural, 1999 (Os Pensadores). Pg 203. 10 MARTON, Scarlett. O eterno retorno do mesmo: tese cosmolgica ou imperativo tico. In: tica, org: Adauto Novaes. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. pg. 218. 11 NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. Terceira Dissertao, 11. p. 358. 12 NIETZSCHE. Aurora, 76. P. 149. 13 NIETZSCHE. Crepsculo dos dolos. A Moral Como Manifestao Contra a Natureza. 01. 14 NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. II Dissertao. 7.

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vida 15 No encontramos nenhum deus, nem na histria nem na natureza, nem por trs da natureza mas sim sentimos aquilo que foi venerado como Deus, no como divino, mas como digno de lstima, como absurdo, como pernicioso, no somente como erro mas como crime contra a vida16

Como aponta ainda Deleuze, Nietzsche concebe todo o pensamento metafsico como uma depreciao do mundo e da existncia: Il ny a pas de mtaphysique qui ne juge et ne dprecie lexistence au nom dune monde supra-sensible.17 Ora, superar a metafsica equivaleria a uma superao da ciso entre uma dimenso supra-sensvel (concebida como morada e fonte de todo valor) e uma sensvel (tida como falsa, transitria, corruptora). Trata-se de romper com a separao entre estes dois mundos, o que equivale a libertar a filosofia do imprio do platonismo e do ideal asctico. Pois tambm a filosofia, segundo Nietzsche, viveu sob o jugo do ideal asctico, como aponta o 3 ensaio da Genealogia, e Nietzsche identifica esse trao asctico como uma espcie de pecado original da metafsica; como metafsica, a filosofia se institui a partir da negao e desvalorizao do sensvel, do corpo, da materialidade, do movimento, do transitrio, do devir, do histrico. 18 Trata-se, ademais, no mbito da filosofia nietzchiana, de afirmar que este vir-a-ser no pode ser julgado (nem aprovado, nem condenado) a partir de modelos ideais, de modo que, para Nietzsche, ni lexistence nest pose comme coupable, ni la volont ne se sent elle-mme coupable dexister.19 Fica claro, a partir do exposto at aqui, o quanto a filosofia de Nietzsche radicalmente crtica tanto da metafsica quanto da moralidade caractersticas do cristianismo. Esta dimenso destrutiva da obra do filsofo, porm, no esgota seu empreedimento filosfico, de modo que cabe perguntar: no haveria um esforo nietzschiano em sugerir novas vias, isto , a obra de Nietzsche no conteria uma vasta reflexo sobre a necessidade de instituir novas tbuas de valores e novas virtudes? Em outras palavras, como sustenta Brobjer20, no estaria presente uma faceta construtiva e afirmativa na filosofia moral nietzschiana? Nietzsche, que com tanto empenho iconoclasta tratou de criticar a moralidade dominante em seu tempo, no o teria feito com o intento de expor a maldio que certos ideais lanavam sobre a realidade e sugerir a possibilidade de uma outra tica, digna de espritos livres e dionisacos, afirmadores da vida e fiis terra, cuja imagem modelar o sbio Zaratustra, que dana em celebrao da inocncia do devir? Em nossa pesquisa, portanto, temos como objetivo principal investigar as reflexes de15 16 17 18 19 20 NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. III Dissertao. 28. NIETZSCHE. O Anticristo, 47. DELEUZE, G. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962. Pg. 40. GIACIA, O. Nietzsche Como Psiclogo. So Leopoldo (RS): Unisinos. Pg. 48. DELEUZE, G. Op Cit. Pg. 41. ...ethics is a fundamental concern for Nietzsche and his affirmative ethics is closely associated with, and represents the other side of, his critique of morality and it is no less important . In: BROBJER, Thomas. Op Cit. Pg. 41.

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Nietzsche no que concerne a uma tica afirmativa capaz de superar tanto a metafsica quanto o niilismo. Tendo esta tica para espritos livres como fio condutor de nosso estudo, pretendemos analisar conceitos de Nietzsche como a transvalorao dos valores, o eterno retorno, o amor fati, a afirmao da vontade de potncia, o Alm-do-homem, dentre outros.

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2. JUSTIFICATIVA Julgamos de primeira importncia investigar a fundo a faceta positiva ou construtiva da filosofia moral nietzschiana, defendendo-a contra uma interpretao equivocada de que Nietzsche realizaria apenas uma crtica devastadora que conduziria a um imoralismo absoluto. Parece-nos relevante enfatizar, atravs de nossa pesquisa, que a obra nietzschiana comporta um empreendimento filosfico que busca refletir sobre tica de modo a ir alm tanto da metafsica quanto do niilismo, de modo que no nos parece adequado desvincular seus procedimentos crticos dos criativos. Esta convico de que a filosofia de Nieztzsche no se esgota em seus procedimentos destruidores, indo alm da mera iconoclastia, fundamenta-se na opinio de comentadores que apresentaremos concisamente na sequncia. O projeto nietzchiano de derrubar dolos, como elucida Moura, no se deve aalgum gratuito furor iconoclasta, mas sim porque a realidade 'foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal... A mentira do ideal foi at agora a maldio sobre a realidade, atravs dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa at seus instintos mais bsicos a ponto de adorar os valores inversos aos nicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro.' (Ecce Homo, Prlogo, #02, p.18). Ao invs do tcito platonismo de todos os 'professores da meta da existncia', o que se busca agora desenraizar a exigncia mesma de um ideal no instituir um novo ideal, mas voltar para aquilo que Nietzsche chamar de 'inocncia do vir-a-ser': antes de tudo, a deciso de no medir mais a realidade segundo normais ideais das quais ela est afastada, em direo s quais ela deveria caminhar uma estratgia que sempre ter por consequncia condenar o mundo do vir-aser em nome desses ideais.21

o que Marton destaca, por sua vez:Se a runa do cristianismo trouxe como consequncia a sensao de que 'nada tem sentido', 'tudo em vo', trata-se agora de mostrar que a viso crist no a nica interpretao do mundo s mais uma. Perniciosa, ela inventou a vida depois da morte para justificar a existncia; nefasta, fabricou o reino de Deus para legitimar avaliaes humanas. Na tentativa de negar este mundo em que nos achamos, procurou estabelecer a existncia de outro, essencial, imutvel, eterno; durante sculos, fez dele a sede e a origem dos valores. urgente, pois, suprimir o alm e voltar-se para a terra. 22

Deleuze destaca ainda que o procedimento crtico-genealgico de Nietzsche no est preso nas malhas do ressentimento e da vingana (afetos essencialmente reativos): La critique nest jamais conue par Nietzsche comme um raction, mais comme une action. (...) La critique nest

21 MOURA. Op Cit. Introduo, XIX. 22 MARTON, Scarlett. O eterno retorno do mesmo: tese cosmolgica ou imperativo tico. In: tica, org: Adauto Novaes. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. pg. 218.

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pas une r-action du re-sentiment, mais lexpression active dum mode dexistence actif23. Nietzsche ao ope-se queles que caluniam o mundo, a vida e a natureza por estarem ainda presos na teia de aranha metafsica ou ao ideal asctico (em vez de unidade de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, vemos o pensamento dar-se por tarefa julgar a vida, de lhe opor valores pretensamente superiores, de a medir com esses valores e de a limitar e condenar, explica Deleuze). A isto Nietzsche prope uma alternativa, assim exposta por Deleuze: as duas virtudes do filsofo legislador eram a crtica de todos os valores estabelecidos, quer dizer, dos valores superiores vida e do princpio de que eles dependem, e a criao de novos valores, valores da vida que reclamam outro princpio. Martelo e transmutao.24

Esta concepo nietzschiana

tambm est muito bem exposta na parbola das Trs Transmutaes, em Assim Falava Zaratustra, que destaca que no basta que o leo rebele-se contra o camelo, mas crucial que torne-se, como uma criana, um novo comeo. Em nossa pesquisa, portanto, pretendemos esclarecer que a obra nietzschiana no justamente interpretada quando faz-se dela um elogio do imoralismo completo, de um niilismo axiolgico sintetizado pela frmula Nada verdadeiro, tudo permitido. o que Moura nega com veemncia, enfatizando que Nietzsche jamais preconizou o laxismo do "tudo permitido":Justo ele, que sempre se manifestou contra qualquer verso do laisser-aller; ele que, ao criticar os valores morais vigentes (...) atribua como tarefa, ao filsofo do futuro, precisamente a criao de valores; ele, enfim, que j indicara expressamente aos seus leitores que seu trabalho de toupeira, para minar a confiana na moral, era realizado em nome da... moralidade!25

Parece-nos de importncia fundamental frisar, pois, o quanto a filosofia nietzschiana, longe de conceber-se como mera destruio de antigos dolos e valores venerados, comporta tambm uma outra dimenso: construtiva e criativa. Com recorrncia o filsofo destaca a necessidade de escrever novas tbuas de valores, tendo em vista o porvir do homem, a ponto de julgar que justamente esta a tarefa do autntico filsofo: tornar-se legislador. Como Brobjer aponta, Nietzsche's references to himself and Zarahustra as immoralists and his critique of morality can be understood as referring to essentially one kind of morality which Nietzsche regarded as having been paradigmatic during the last two thousand years or so.26

Tambm Leiter comenta que o ataque de Nietzsche moralidade

dominante era baseada no diagnstico nietzschiano de que o florescimento da excelncia humana e23 24 25 26 DELEUZE, G. Op Cit. Pg. 3. DELEUZE, G. Nietzsche. Lisboa: Edies 70, 2009. P. 19. MOURA. Op Cit. Pg. 239 BROBJER, T. Op Cit. P. 25.

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o desabrochar do gnio criativo eram obstaculizados pelas concepes morais vigentes:Nietzsche attacks morality, most simply, because he believes its unchallenged cultural dominance is a threat to human excelence and human greatness. () In a posthumously published note of 1885, he remarks that men of great creativity, the really great men according to my understanding, will be sought in vain today because nothing stands more malignantly in the way of their rise and evolution... than what in Europe today is called simply morality (WP: 957) 27

O projeto de investigar a fundo, pois, a faceta positiva e construtiva da filosofia moral nietzchiana parece-nos plenamente justificada, uma vez que, como aponta ainda Nussbaum, o propsito de Nietzsche, atravs de sua crtica moralidade, foi limpar o terreno para novas possibilidades de criao: Indeed, this was the whole purpose of genealogy as Nietzsche, Foucault's precursor here, introduced it: to destroy idols once deemed necessary, and to clear the way for new possibilities of creation. 28

27 LEITER, B. Nietzsche On Morality. Routledge: London, 2002. Pg. 25 e 114. 28 NUSSBAUM, M. Citada por Brobjer, op cit. p. 49.

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3. HIPTESES DE TRABALHO - A obra nietzschiana procura oferecer no somente uma crtica radical do ideal asctico (descrito no Ecce Homo como o ideal nefasto par excellence, um ideal de dcadence), mas a tentativa de fazer frente a ele com um contra-ideal que poria fim ao reinado da moralidade de auto-renncia29. A se desvela o projeto nietzschiano, para alm da crtica e da demolio, de oferecer uma alternativa a este monstruoso mtodo de avaliao caracterstico dos sacertodes ascticos e que no est inscrito na histria humana como uma exceo ou curiosidade: um dos mais disseminados e longevos fatos que h30. Nietzsche, aps fazer uso do martelo e da dinamite, no se d por satisfeito: cabe aos espritos-livres construir novas tbuas de valores que faam com que a terra deixe de ser a a estrela asctica. Tendo como fio condutor a caracterizao de uma tica para espritos livres, analisaremos como se relacionam conceitos como alm-do-humano (bbermensch), amor fati, segunda inocncia, eterno retorno, afirmao dionisaca etc. - Se Nietzsche tanto criticou e rejeitou os pessimistas e niilistas, foi tambm por vislumbrar a possibilidade de que a morte de Deus pudesse representar um auspicioso recomeo, como to bem sustenta o trecho de A Gaia Cincia que citamos em nossa epgrafe. No devemos rejeitar a perspectiva de que a vitria total e definitiva do atesmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dvida com seu comeo, sua causa prima [causa primeira]. O atesmo e uma espcie de segunda inocncia so inseparveis.31 Pretendemos sustentar que a superao da metafsica e do niilismo representaria, segundo Nietzsche, o que Giacia chama de um ultrapassamento em relao a um horizonte cultural limitado: No mundo contemporneo, com o aprofundamento e a mxima intensificao do niilismo europeu, abrem-se novamente horizontes para uma repetio mpar desse resgate de uma virtualidade cultural que corresponderia a um ultrapassamento dos mais sagrados ideais vividos at o presente.32. - Cientes de que no h em Nietzsche nada que se assemelhe a um sistema prescritivo dogmtico, tentaremos investigar que concepo tinha o filsofo a respeito das virtudes ou traos de carter que conduzem excelncia humana, sabedoria terrena. A hiptese que pretendemos sustentar, com auxlio dos textos nietzschianos e de alguns de seus comentadores, a de que existe sim uma intensa preocupao de Nietzsche com uma reflexo a respeito de uma tbua de valores ou29 30 31 32 NIETZSCHE. Ecce Homo. Pg. 140. NIETZSCHE. Genealogia da Moral, III Dissertao. NIETZSCHE. Genealogia da Moral. II Dissertao, #20, p.73. GIACIA. Nietzsche Como Psiclogo. So Leopoldo (RS): Unisinos. Pg. 149.

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sistema de moralidade que oferecesse ao potencial humano um maior florescimento. Como aponta Moura, o homem sbio ou virtuoso, para Nietzsche, no pode ter um rosto definido, isto , uma definio demasiado estreita; mas isto no impede que encontre-se vrios elementos na obra nietzschiana que possibilitam explorar as caractersticas da excelncia humana como Nietzsche a concebe:Com o conceito de alm-homem se estar designando uma perptua superao de si, e por isso esse alm-homem nunca ter rosto definido, nem poderia t-lo. Com esse conceito no se traa nenhuma imagem de um novo homem divino, a idia de superao de si probe toda e qualquer cristalizao de uma figura determinada, algo do qual se possa repertoriar os traos, e por isso o esprito livre viajante sem porto de chegada era a sua melhor prefigurao." (...) "...o esprito livre um personagem que no se fixa em convices e experimenta as mais variadas perspectivas... ele jamais se fixar em alguma certeza, superando-se perpetuamente em direo a novas opinies, novas perspectivas. porque a vontade de potncia superao de si que as convices so prises, e o esprito livre estar condenado a ser um experimentador.33

- Em suma, nossa investigao pretende analisar a hiptese de que, aps o trabalho de dinamitao realizado por sua filosofia, h decerto uma tentativa de Nietzsche de sugerir um novo regime tico, no mais dominado pelo ideal asctico, que rompe com a metafsica platnica-crist, no mais baseado na promessa de uma recompensa ou de uma punio extraterrenas, no mais hostil vida e caluniadora do mundo. Em resumo: uma tica que supera tanto a metafsica quanto o niilismo, cuja tbua de valores no baseada em ideais transcendentes em contraste com os quais a realidade caluniada, mas sim numa sabedoria da imanncia, digna daqueles espritos livres a quem Zaratustra conclamava a permanecerem fiis Terra:Eu vos exorto, meus irmos! Permanecei fiis terra e no acrediteis naqueles que vos falam de esperanas supraterrestres. So envenenadores, quer o saibam ou no! So menosprezadores da vida! (...) Em outros tempos, blasfemar contra Deus era o maior dos ultrajes, mas Deus morreu e com ele morreram esses blasfemadores. De ora em diante, o crime mais atroz ultrajar a terra e ter em maior conta as entranhas do insondvel do que o sentido da terra!34

33 MOURA. Op Cit. Pg. 201. 34 NIETZSCHE. Assim Falava Zaratustra. Primeiro Livro. Pg. 23.

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4. CRONOGRAMA

1 SEMESTRE

2 SEMESTRE

3 SEMESTRE

4 SEMESTRE

Obteno dos crditos obrigatrios Pesquisa bibliogrfica da obra de Nietzsche Pesquisa bibliogrfica de comentadores Reunies de orientao Redao do texto de qualificao Finalizao da dissertao

X X X

X X X X X X X X X X

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5. BIBLIOGRAFIA CONSULTADABROBJER, T. Nietzsches Ethics of Character: A study of Nietzsches ethics and its place in the history of moral thinking. Sucia: Uppsala University, 1995. DELEUZE, G. Nietzche et la Philosophie. Paris: PUF, 1962. ___________. Nietzsche. Lisboa: Edies 70, 2009. GIACIA, O. Labirintos da Alma: Nietzsche e a auto-supresso da moral. Campinas: Unicamp, 1997. ___________. Nietzsche como Psiclogo. So Leopoldo (RS): Unisinos. LEITER, B. Nietzsche On Morality. Routledge: London, 2002. NIETZSCHE, F. Alm do Bem e do Mal. So Paulo: Cia das Letras, 2005. _____________. Anticristo. So Paulo: Cia das Letras. 2005. _____________. Assim Falava Zaratustra. So Paulo: Civilizao Brasileira. 1998. _____________. Aurora. So Paulo: Cia das Letras. 2005. _____________. Crepsculo dos dolos. So Paulo: Cia das Letras. 2005. _____________. Ecce Homo. So Paulo: Cia das Letras, 2005. _____________. Gaia Cincia. So Paulo: Cia das Letras. 2005. _____________. Genealogia da Moral. So Paulo: Cia das Letras, 2009. _____________. Humano Demasiado Humano. So Paulo: Cia das Letras, 2005. _____________. Nascimento da Tragdia. So Paulo: Companhia das Letras. 1992. MARTON, S. O eterno retorno do mesmo: tese cosmolgica ou imperativo tico. In: tica, org: Adauto Novaes. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. MOURA, C.A.R. Nietzsche: Civilizao e Cultura. So Paulo: Martins Fontes.

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5.1. BIBLIOGRAFIA A SER PESQUISADAANSELL-PEARSON, K. Nietzsche como Pensador Poltico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. _________________(org). Nietzsche On The Genealogy Of Morality. USA: Cambridge, 2 ed. 2006. ARENDT, H. O repdio nietzschiano da vontade. In: A Vida do Esprito. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009. HEIDEGGER, M. Nietzche Volumes I e II. So Paulo: Forense Universitria. 2007. JASPERS, K. An Introduction to the Understanding of His Philosophical Activity. Paris: Gallimard, 1950. KAUFMANN, W. Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist. New Jersey: Princeton University Press, 1974. 4a edio. LWITH, K. Nietzsche's Philosophy of the Eternal Recurrence of the Same. Trans. J.Harvey Lomax. Berkeley: University of California Press, 1977. MARTON, S. Das Foras Csmicas aos Valores Humanos. So Paulo: Brasiliense, 1990. MATTOS, F.C. Nietzsche e o primado da prtica: um esprito livre em guerra contra o dogmatismo. 2007. Tese (Doutorado) FFLCH, Universidade de So Paulo. MAGNUS, B. e HIGGINS, K. (org). The Cambridge Companion to Nietzsche. 1996. NIETZSCHE, F. Alm do Bem e do Mal. So Paulo: Cia das Letras, 2005. _____________. Anticristo. So Paulo: Cia das Letras. 2005. _____________. Assim Falava Zaratustra. So Paulo: Civilizao Brasileira. 1998. _____________. Aurora. So Paulo: Cia das Letras. 2005. _____________. Crepsculo dos dolos. So Paulo: Cia das Letras. 2005. _____________. Ecce Homo. So Paulo: Cia das Letras, 2005. _____________. Gaia Cincia. So Paulo: Cia das Letras. 2005. _____________. Genealogia da Moral. So Paulo: Cia das Letras, 2009. _____________. Humano Demasiado Humano. So Paulo: Cia das Letras, 2005. _____________. Nascimento da Tragdia. So Paulo: Companhia das Letras. 1992.

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