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    Maria Amlia Garcia de AlencarBrasil

    Cultura e identidade nos sertes do Brasil:representaes na msica popular

    A categoria serto est profundamente arraigada na cultura brasileira, seja no

    senso comum, seja no pensamento social ou ainda no imaginrio do povo. Referncia

    espacial e mtica, o serto tem se constitudo em categoria essencial para se pensar a

    nao brasileira. A etimologia da palavra ainda no bem definida. Segundo Amado

    (1995) o vocbulo deriva de deserto (deserto, deserto, serto), apoiando-se essa

    hiptese nos atributos comuns aos dois termos: aridez, despovoamento, travessia.

    No Brasil, desde o perodo colonial, a palavra serto tem sido empregada para

    fazer referncia a reas as mais diversas, pois seu enunciado depende do locusde onde

    fala o enunciante. Assim, serto se refere a reas to distintas e imprecisas como o

    interior de So Paulo (tambm identificada como rea caipira) e da Bahia, toda a regio

    amaznica, os estados de Minas Gerais, Gois e Mato Grosso, alm do serto

    nordestino, onde quase se identifica com a regio. Marcado pela baixa densidade

    populacional e, em alguns lugares, pela aridez da vegetao e do clima, o serto assinalaa fronteira entre dois mundos, o atrasado e o civilizado. Mancha imprecisa que recobre o

    interior do Brasil, melhor seria a referncia a sertes, no plural. Pode-se afirmar que,

    relativo ao espao geogrfico ou ao imaginrio social, serto sempre plural.

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    Desde o incio da colonizao o serto foi, de modo geral, carregado de

    significados negativos -espaos distantes, vazios de civilizao, habitat de ndios bravios,

    feras (reais e mticas) quando no do prprio demnio. (Souza, 1986) Tornou-se tambm

    abrigo para os expulsos da sociedade colonial. Degredados, criminosos, fugitivos de todo

    tipo, encontravam ali um porto seguro onde reconstruir a vida. Serto era ento espao de

    liberdade e esperana.

    O movimento bandeirante, em fins do sculo XVII e incio do XVIII, levando

    descoberta de minas de ouro e pedras preciosas no que viria constituir os estados de

    Minas Gerais, Mato Grosso, Gois e oeste da Bahia, marcou o incio da ocupao efetiva

    do territrio por colonizadores. Nas reas no exploradas pela minerao, ou sucedendo

    a essa aps o seu declnio, a pecuria bovina foi responsvel pela ocupao de vastosterritrios. A fronteira do Brasil foi empurrada para oeste. Surgiam arraiais e vilas, onde a

    autoridade buscava se impor sem sucesso. O serto era a terra sem lei, lugar da

    violncia, do indistinto e da desordem. O perfil do sertanejo surgia em comportamentos

    condizentes com o meio social, distante as autoridades rgias.

    A pobreza era o trao mais caracterstico dessas regies, atestada nas casas

    simples de pau-a-pique, com cho de barro e poucos mveis. Parte dessa populao era

    constituda de camponeses volantes, que buscavam moradia de favor junto a algum

    grande proprietrio ou que optavam por errar pelos campos desertos, fazendo roados

    para a sobrevivncia com suas famlias. (Arajo, in Del Priori, 2000). Muitas dessas

    caractersticas permanecem intocadas do Brasil do sculo XX, no que Martins classificou

    de economia de mnimos vitais (1974)1.

    A cultura dos sertes manifesta-se na religiosidade popular; na literatura de cordel,

    que transmite lendas, contos e causos; nos rodeios e vaquejadas; na comida e na

    poesia; na maneira de vestir; nas danas, na msica, com semelhanas e peculiaridades

    por todo o pas. A msica caipira de acordo com Martins, est sempre associada a rituais

    religiosos, de trabalho ou lazer (1974). Luiz Heitor, ao estudar os gneros e instrumentos

    musicais do Brasil, encontrou uma rea de cantoria referente ao serto nordestino,

    1Para fins deste trabalho, os termos caipira, geralmente associado ao roceiro do interior de So Paulo, e

    sertanejo, referente ao morador do serto ou vaqueiro, so tomados como equivalentes.

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    enquanto que a regio centro-oeste e parte das regies sul e sudeste foram incorporadas

    na rea da moda-de-viola (Mapa das reas musicais do Brasil. Grove, The New Grove

    Dictionary of Music and Musicians, 1980: 225).

    No sculo XX, apesar do rpido avano das frentes de expanso e do processo de

    modernizao que atingiu (e atinge) o serto brasileiro, um certo sentimento de

    inferioridade em relao ao litoral pode ainda ser percebido. Identificado aos atributos

    negativos construdos ao longo dos sculos, ser do interior, caipira, sertanejo era parte de

    uma identidade negativa. A ressignificao dessa identidade teve incio em fins do sculo

    XIX e se reafirma nos dias atuais, como se ver adiante.

    O serto incorporou-se ao pensamento social brasileiro em fins do sculo XIX,

    quando a gerao de 1870, criticando o romantismo na literatura e nas artes, comeou a

    ressignificar a categoria, agora como princpio explicativo e identitrio da nao em

    processo de constituio. A oposio dicotomia litoral-serto fez surgir uma produo

    intelectual que, expressando a preocupao com a construo de uma nao unificada,

    procurava superar aquela dicotomia. Serto se tornou, ento, categoria essencial do

    pensamento brasileiro. Na cultura do interior do pas, esses autores encontravam as

    fontes mais puras da nacionalidade.

    Na literatura romntica observa-se a passagem do indianismo para o sertanejismo.

    (Matos, 1994) A vertente realista comandou o movimento de redescoberta do Brasil do

    serto, atingindo seu ponto mais alto com o regionalismo de Guimares Rosa, em Grande

    serto: veredas, de 1956.

    Na msica erudita de compositores brasileiros tambm comearam a aparecer

    desde os fins do sculo XIX, os primeiros sinais de uma busca do nacional no folclore,

    admitido como legtima expresso da cultura popular. Observe-se que estes autores

    retomam as propostas do romantismo alemo, de busca das razes nacionais na cultura

    popular, movimento ampliado com o modernismo brasileiro, na dcada de 1920.

    Na msica popular urbana, o final do sculo XIX viu avanar tambm o carter

    nacional, particularmente na msica para dana, teatro ou serenatas bomias. Msicos

    profissionais imprimiam s suas composies os tons nacionais como, por exemplo, o

    flautista Calado ou a pianeira Chiquinha Gonzaga. Os limites entre o erudito e o popular

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    tornavam-se imprecisos. O lundu saa das ruas para os sales de baile; no sentido

    inverso, a modinha passava dos sales da Corte para os violes das ruas, juntando-se ao

    maxixe, ao samba, aos conjuntos de choros, moda de viola (ou toada), s danas rurais.

    Mrio de Andrade escreveu sobre esse perodo: A msica popular cresce e se define

    com uma rapidez incrvel, tornando-se violentamente a criao mais forte e a

    caracterizao mais bela da nossa raa (1941: 29).

    Desde os anos 20 deste sculo, observa-se no Brasil um grande movimento de

    expanso do capital, acompanhado de um processo de rpida urbanizao, que atingiu

    particularmente o centro-oeste e a regio amaznica, atravs de migraes que

    caracterizam a expanso da fronteira agrcola, em decorrncia da concentrao de terras

    nas lavouras de caf e da implantao das primeiras indstrias modernas a regiosudeste. A penetrao dos trilhos da estrada de ferro e a melhoria nos meios de

    comunicao tambm favoreceram esse movimento. O conjunto de mudanas gerou a

    ocupao e insero de novas reas na economia de mercado. O fluxo migratrio era

    quase contnuo em direo ao interior do pas. Em sentido inverso, muitos sertanejos,

    particularmente do nordeste, foram atrados pelas grandes cidades do sudeste. Durante o

    perodo Vargas (1930-1945), o Estado brasileiro fez-se presente, de forma enftica, na

    direo da incorporao do serto como forma de construo da nao e a ideologia

    nacionalista atingiu momentos de euforia. A msica, com Villa-Lobos frente, teve umimportante papel nesse processo.

    Ainda nos anos 20, o desenvolvimento das tcnicas de gravao, com a chegada

    dos primeiros discos e vitrolas eltricos, do microfone e auto-falantes, foi muito importante

    no sentido da divulgao de valores e bens simblicos. O progresso estendeu-se tambm

    ao rdio, abrindo-se a fase de ouro da msica popular brasileira: 1927-1946

    (Vasconcelos, 1964). O advento de meios tcnicos de reproduo de formas de arte

    levaram perda da aura que revestia as manifestaes artsticas no passado. Por outro

    lado, os aspectos formais e estilsticos caractersticos de determinadas formas musicais,

    passam a ser condicionados, at certo ponto, pela tcnica, assim como pelo processo

    industrial de produo e de consumo. (Zan, s/d ). Muitas msicas tradicionais do interior

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    do Brasil tiveram que ser adaptadas, por exemplo, ao tempo de durao das msicas

    gravadas.

    Os avanos tcnicos possibilitaram, a partir dos anos 40, a penetrao de ritmoslatinos na msica caipira, particularmente mexicanos (corridos e rancheras) e paraguaios

    (guarnias e polcas), alm de novos instrumentos, como a harpa e o acordeon. No Brasil,

    uma modalidade criada entre a polca e a ranchera foi o rasqueado (Ulha, s/d).

    A msica popular, como expresso da identidade nacional, ganhou as

    programaes de rdio. O samba carioca dividia o espao com a msica regional e

    caipira, estando ainda indefinido o gnero que se imporia como smbolo da identidade

    musical do brasileiro. Nas rdios, tocavam-se valsas, modinhas, maxixes, alem de fox-

    trotes e outros gneros estrangeiros, mas conjuntos de tradio nordestina, como o Grupo

    de Caxang e os Turunas da Mauricia, com suas toadas, ccos, emboladas, caterets e

    modinhas sertanejas conquistavam um pblico relativamente amplo. Este novo repertrio

    ganhou espao importante em teatros e na prpria indstria fonogrfica. Para Zan, a

    aceitao do gnero devia-se, em parte, ao seu apelo regionalista e nacionalista, que se

    coadunava com as propostas das elites intelectuais modernistas, valorizando essas

    formas de manifestao musical em detrimento dos ritmos populares urbanos. (Zan, s/d)

    Compositores da chamada msica caipira (para alguns estudiosos msica

    sertaneja raiz) gravaram seus primeiros discos nessa fase: em 1924 foi gravada a toada

    Tristeza do jeca, composta no interior de So Paulo em 1918, por Angelino Oliveira. Em

    1938 foi feita a primeira gravao de Saudades do mato, composta em 1904 com o

    nome de Francana, por Jorge Galati, Antero Gomes e Raul Torres. Seus temas retratam o

    cotidiano da vida rural. Entre 1926 e 1928 a Turma Caipira Cornlio Pires apresentava-se

    pelo interior paulista fazendo showsem que combinava a msica caipira com anedotas. O

    primeiro disco da Turma foi gravado em 1929, seguindo-se cinqenta e oito gravaes at

    1930. O sucesso da frmula levou outros grupos a repeti-la e as gravadoras passaram a

    se interessar pelo gnero. Em 1931 Cornlio Pires apresentou um show no Teatro

    Municipal de So Paulo, com violeiros, catireiros e duplas sertanejas, com grande

    sucesso de pblico e crtica. Para Caldas (1999) esse momento marca a transio entre a

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    msica caipira e a msica sertaneja, ou seja, a msica caipira feita na cidade, para um

    pblico urbano.

    Gnero novo no repertrio das rdios das grandes cidades, a temtica rural logomobilizou tambm compositores urbanos, que foram influenciados pelo regionalismo: as

    primeiras composies de Noel Rosa foram a toada Festa no cu, a embolada Minha

    viola e a cano Mardade da cabocla. S depois o compositor se tornou sambista da

    cidade. Por outro lado, compositores j consagrados, como Catulo da Paixo Cearense,

    tambm aderiram ao gnero: Luar do serto tornou-se prefixo da Rdio Nacional, uma

    das mais importantes da poca, em 1939. Na dcada de 1940, fizeram grande sucesso

    msicas de compositores muito conhecidos como Maring, de Joubert de Carvalho,

    Rancho fundode Ary Barroso e Lamatine Babo e Serra da Boa Esperana, deste ltimocompositor. Transitando entre o erudito e o popular, Heckel Tavares comps Casa de

    caboclo, com Luiz Peixoto, Sussuarana, com Murilo Arajo, e Guacira, com Joracy

    Camargo, entre outras. Iniciava-se um novo gnero na msica popular brasileira: a

    temtica rural tratada por compositores de vivncia urbana, gnero que persistir na

    chamada MPB, a partir dos anos 70.

    Essas msicas faziam sucesso em todo o pas e se tornaram parte da memria

    musical de um grande nmero de brasileiros. Esse sucesso pode ser explicado pela

    temtica tratada, que expressa a tradio romntica do motivo do exlio, adequada

    nostalgia dos que haviam deixado o campo em busca da cidade, como ocorria com

    intensidade no Brasil da poca. Nessas canes surgia um campo edenizado, distante e

    puro, para o qual se sonhava voltar um dia.

    A crtica especializada a respeito dessa verso urbana do mundo sertanejo variou

    muito. Jarbas Mello na Revista da msica popular (maro-abril de 1955), em artigo

    intitulado Catulo Letrista, a respeito dos poemas sertanejos desse autor, escreveu:

    ...sua poesia neste estilo, afora um ou outro poema de versos maisconseqentes, est muito aqum da poesia verdadeiramente sertaneja, jintegrada em nosso folclore, ou ainda improvisada nas vozes de nossoscantadores matutos (p. 20).

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    De modo geral, essa opinio concordava com a crtica de musiclogos

    modernistas, preocupados com critrios de autenticidade. Para esses, a msica ligada ao

    mercado cultural moderno era olhada com desconfiana, e, eventualmente, excluda da

    classe das produes populares e nacionais. As toadas e poemas sertanejos de Catulo

    eram vistos como cpia da msica folclrica (Travassos, 2000: 51-52).

    J para o musiclogo Renato Almeida, as cantigas urbanas, semi-eruditas,

    expressando o vai-e-vem entre a cultura erudita e a cultura popular, no envolviam

    forosamente a idia de adulterao ou banalidade, antes a de inveno numa

    determinada ordem esttica... (Almeida, 1942: 4). Quanto produo sertaneja de

    Catulo, Almeida a considerava admirvel.

    Nos anos 50, sob a gide do nacional-desenvolvimentismo, ocorreu a retomada do

    expansionismo do perodo 30-45, agora centrado na construo de Braslia e na

    transferncia da capital para o serto. A partir de ento, a rede rodoviria cortou a regio,

    repercutindo sobre a economia regional, pois, pela primeira vez, o isolamento comeava a

    ser ultrapassado.

    Por outro lado, o pas se abria ao capital estrangeiro. A importao de bens de

    consumo facilitava, nas grandes cidades, a adeso msica das grandes orquestras

    internacionais, que divulgavam ritmos feitos para danar. Comeavam, no Brasil, os anos

    dourados, que marcaram o perodo do ps-guerra at o advento da ditadura militar, em

    1964.

    No Rio de Janeiro, jovens de classe mdia da zona sul da cidade esboaram um

    movimento de reao penetrao da msica estrangeira, em fins dos anos 50: a bossa

    nova. Mais tarde, a msica de protesto marcou a posio de jovens compositores contra

    a situao do pas, dominado pelos governos militares. Dirigidos s camadas mdias

    urbanas, esses gneros passaram a disputar espao, nos meios de comunicao, com a

    msica tradicional, a includos o samba, o frevo, o baio e os gneros sertanejos

    (Tinhoro, 1998). Esses ltimos, entretanto, no desapareceram do cenrio musical.

    Duplas como Alvarenga e Ranchinho, Tonico e Tinoco e mais tarde Pena Branca e

    Xavantinho, mantiveram-se em cartaz at os anos 70, com poucas alteraes em relao

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    s caractersticas originais da msica caipira. Por outro lado, rdios locais abriam espao

    para duplas amadoras da regio (Reily, 1992).

    A ltima fase do avano do capital para o serto, j na vigncia dos governosmilitares, teve incio nos anos 70. A nfase, nesse perodo, recaiu na modernizao do

    setor agropecurio, com altos ndices de participao de capitais externos. A nova poltica

    exigia a consolidao de novas reas agrcolas, incorporando-se, ento, regies como as

    do alm So Francisco (oeste baiano) e, mais intensivamente, o Centro Oeste e a

    Amaznia no quadro da expanso do capitalismo no Brasil. A abertura do serto ao

    capital correspondia, tambm a uma internacionalizao da msica caipira/sertaneja.

    O fim dos anos 60 marcou uma ruptura na msica caipira quando a dupla Leo

    Canhoto e Robertinho introduziu a guitarra eltrica, baixo e bateria -instrumentao bsica

    do rock- associando-se imagem do cowboy norte-americano e incluindo o ritmo jovem

    nas suas composies. Ulha identifica a uma fase de transio para a msica sertaneja

    romntica, que se afirma nos anos 80 (Ulha, 1999). A temtica cantada, nessa fase de

    transio, essencialmente urbana, individualista, predominando narrativas sobre o

    cotidiano de migrantes nas grandes cidades. A partir dos anos 80, os temas romnticos

    predominaram. O recurso tradicional da dupla caipira tambm foi substitudo, em muitos

    casos, pelo cantor solista. Mais uma vez, o sucesso da frmula levou as gravadoras a

    lanar inmeras duplas com repertrio e imagem semelhantes.

    Entre os compositores da MPB observa-se, a partir da dcada de 70, uma outra

    vertente que, buscando no mundo rural sua fonte de inspirao, tem procurado

    (re)produzir o imaginrio do serto. Compositores do interior do pas, com uma vivncia

    urbana mas ainda ligados ao mundo do serto, incorporaram elementos da cultura

    erudita, mesclado-os cultura popular, recuperando a tradio iniciada com Catulo da

    Paixo Cearense, como apontei atrs. Chamo essa produo de msica regionalista,

    por extenso da literatura regionalista. Seu pblico, diferente da msica sertaneja

    romntica, encontra-se geralmente entre universitrios e segmentos da elite intelectual do

    pas. Nesse aspecto, enquanto a msica sertaneja romntica se volta para os interesses

    da indstria cultural, inscreve-se na cultura de massa, a msica regionalista sofre grandes

    restries na mdia. Raramente tocada nas rdios e os shows dos artistas que

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    defendem esse repertrio realizam-se num circuito pr-determinado de pequenas e

    mdias cidades do interior. Seus discos, com freqncia, so produes independentes,

    que esbarram em grandes dificuldades de distribuio. Raramente so encontrados na

    lojas e sua comercializao feita nos shows.

    Entre os compositores que podem ser includos nesse grupo, destacamos, pela

    radicalidade de sua obra, Elomar Figueira de Melo, arquiteto de formao pela

    Universidade Federal da Bahia. Elomar nasceu em Vitria da Conquista, no serto

    baiano, em 1937. Em determinada fase de sua vida interessou-se pela literatura e teve

    acesso a autores medievais, principalmente da Pennsula Ibrica, alm de autores

    clssicos. Foi aluno da violonista Edy Cajueiro e a partir da comeou a estudar msica

    erudita no Conservatrio de Salvador.

    O conjunto da obra de Elomar revela um trnsito muito livre entre o popular e o

    erudito, muitas vezes reproduzindo o linguajar sertanejo, outras vezes escrevendo peras,

    cantos sacros, concertos. Mas a temtica sempre o serto, a caatinga, lugar que

    escolheu para viver e escrever sua obra musical. Em 1962 Elomar gravou seu primeiro

    disco, independente, mas o reconhecimento s veio em 1973, quando lanou o LP Das

    barrancas do Rio Gavio, com apresentao de Vincius de Moraes. Sobre compositor

    baiano, escreveu o poeta-diplomata :

    Pois assim Elomar Figueira de Melo: um prncipe da caatinga, que o mantmdesidratado como um couro bem curtido, em seus 34 anos de vida e muitossculos de cultura musical, nisso que suas composies so uma sbia misturado romanceiro medieval, tal como era praticado pelos reis-cavalheiros (sic) emenestris errantes ... e do cancioneiro do Nordeste, com suas toadas emteras plangentes e suas canes de cordel... .

    (Moraes, 1973)

    Mestre Elomar, como hoje chamado por seus companheiros mais jovens, pode

    ser considerado um precurssor da gerao que se seguiu a ele, qual pertencem, por

    exemplo, em Minas Gerais, Drcio Marques e Paulinho Pedra Azul, em Gois, Nars Chaul

    (letrista) e Fernando Perillo, em So Paulo, Renato Teixeira e Simone Guimares e no

    Mato Grosso do Sul, Almir Sater, alm de inmeros compositores/cantadores nordestinos,

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    como Xangai, Vital Farias e Geraldo Azevedo. Com esses ltimos Elomar participa, h

    vrios anos, do Projeto Cantoria, apresentando-se em diversas cidades do pas.

    Perfil semelhante tem o mineiro Renato Andrade, que lanou seu primeiro lbumem 1977 -A fanttica viola de Renato Andrade na msica armorial mineira,que conquistou

    o trofu Villa-Lobos.Ex-violinista clssico, Renato Andrade uniu o popular e o erudito em

    sua obra, influenciado msicos como Almir Sater e Roberto Corra.

    Do conjunto da obra desses autores, destacam-se alguns temas recorrentes, que

    podem ser reunidos em seis grandes grupos, girando em torno do cotidiano da vida rural

    ou da nostalgia do exlio:

    Natureza: terra, rios, gua, cu, estaes do ano, sol, chuva, vento, peixes, aves, o gado.

    Festa:viola, cachaa, congraamento entre companheiros.

    Folclore: animais do folclore regional.

    Amor: amor romntico, idealizao da mulher.

    Religiosidade:romarias, santos da devoo popular.

    Questes sociais: liberdade, fome, seca, luta pela terra, retirantes, ecologia.

    Joo Marcos Alem, analisando a vasta produo industrial e mercantil de bens

    culturais disseminados atravs dos meios de comunicao de massa e consumidos em

    larga escala, afirma que:

    Em anos recentes, a sociedade brasileira vem passando por uma experinciacultural inusitada: voltamos a ser quase todos meio caipiras... Exposies efeiras rurais, festas, rodeios, shows, festivais de msica, eventos esportivos,

    rituais cvicos, religiosos e outros eventos envolvendo grandes pblicosexpandiram certas prticas, representaes e o consumo de smbolos domundo rural em diversos espaos sociais... Formou-se uma verdadeira redesimblica da ruralidade... .

    (Alem, s/d)

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    Alem indica que a ruralidade no se situa mais unicamente no campo, tendo-se se

    expandido at o socialmente impreciso, at a indefinio, com predominncia nas regies

    Sudeste (interior de So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro) e Centro-Oeste (Gois e

    Mato Grosso), alm de algumas reas dos estados da regio Norte, atingidas mais

    intensamente pelo processo de modernizao da produo rural. O fenmeno no est

    ausente nas grandes cidades, como So Paulo ou Rio de Janeiro, mas mais ntido nas

    regies interioranas indicadas.

    A expanso da msica sertaneja romntica (e mais recentemente da msica

    country) e a atualidade do que chamo msica regionalista apontam para uma ruralidade

    re-significada, numa sociedade em que a transio do rural para o urbano ainda muito

    recente. As novas representaes, valorizando positivamente o homem do interior doBrasil e a sua cultura, esto muito distantes das construes negativas feitas desde os

    sculos iniciais da colonizao.

    As manifestaes vigorosas da cultura e da identidade do serto reforam a crtica

    ps-colonial, que nos ensina no ser necessrio assumir a sndrome da subjugao, que

    manteve atitudes e sentimentos atrelados a complexos de inferioridade e subservincia.

    Considerada como o mais recente desdobramento da modernidade, a globalizao

    assume formas novas e originais, quando transportada para a periferia do sistema

    capitalista. Como afirmou Rouanet:

    ... a globalizao no deve ser vista apenas como um processo inexorvel denivelamento do mundo segundo os padres da cultura ocidental. Sabe-se hojeque o processo de globalizao gera suas contrapartidas particulares ... Aocontrrio de uma lgica imperativa de homogeneizao, podem ser observadasa complexificao e as disjunes das interfaces entre as diversas esferasconstitutivas da sociedade, tais como a cultura, a economia e a poltica.

    (Rouanet, Prefcio, In Madeira e Veloso, 1999: 24-25)

    Para o antroplogo norte-americano James Clifford, cultura no uma totalidade

    integrada no espao e contnua no tempo, dotada de uma identidade e de fronteiras bem

    definidas, fundada em razes e portadora de autenticidade. Para esse autor, Uma

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    Cultura e identidade nos sertes do Brasil

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    cultura , concretamente, um dilogo em aberto, criativo, de subculturas, de membros e

    no-membros, de diversas faces(Clifford, 1998: 49).

    Podemos constatar, atravs do vis da msica, que, de acordo com o enfoqueproposto por Clifford, cultura e identidade do serto no so autenticidades em perigo,

    pureza ameada diante de novos valores que chegam. A cultura regional tem aberto

    espao para caminhos especficos atravs da modernidade e da globalizao, num

    processo inventivo e intercultural. As diferenas no desaparecem -so reafirmadas de

    novas maneiras. No se trata de simples resistncia diante do novo, mas de uma nova

    elaborao, de uma afirmao de ser caipira ou sertanejo de novas maneiras, no

    mundo moderno, no sculo XX. A desconstruo do discurso nico do capitalismo como

    dominador e destruidor, produz, necessariamente, a construo de outras histrias.Identidade, nessa perspectiva que venho apontando, um problema cultural complexo,

    relacional e inventivo. Para Clifford, no sculo XX, no existem autenticidade puras e as

    diferenas no podem ser localizadas apenas na continuidade ou tradio de uma cultura.

    A identidade conjuntural, no essencial (Clifford, 1998: 10-11).

    Segundo essa linha de interpretao, a cultura ocidental aparece como

    matria-prima para a construo de novas ordens de diferenas, tambm impuras,

    sujas. Razes tradicionais so cortadas e reatadas, smbolos coletivos apropriados das

    influncias externas. A ambigidade mantm o futuro das culturas locais em aberto. A

    msica, entre outras manifestaes vigorosas da cultura e da identidade do serto so

    presentes-etnogrficos-se-tranformando-em-futuros (Clifford, 1988: 15). Se certas ordens

    de diversidade de fato desapareceram, outras foram criadas ou traduzidas. Tambm no

    sculo XXI, o futuro no (apenas) a monocultura.

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    Maria Amlia Garcia de Alencar

    Actas del III Congreso Latinoamericano de laAsociacin Internacional para el Estudio de la Msica Popular

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