Alencar: Vida, Obra e Milagre

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"Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravesseihá muitos anos na aurora serena e feliz de minha infância? Quandotornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nasquais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?"

Com esse apelo nostálgico, Alencar começa um dos seus roman-ces mais populares: O Sertanejo. E em nota, no fim da obra, elucida:"Refere-se à viagem que fez o autor do Ceará à Bahia, por terra, nosanos de 1838a 1839".

Tendo nascido a 1? de maio de 1829, em Mecejana (Ceará) , oescritor era, portanto, menino, na época em que realizou tão longa jor-nada através do sertão. Já possuía algumas letras, recebidas na escolaprimária, e sehabituara a respirar no ambiente austero de um lar bembrasileiro, sob o olhar vigilante do pai, o Senador José Martiniano deAlencar, e oscuidados da mãe.

Assim ia crescendo, no quadro estreito do burgo natal, quando, àsemelhança de um daqueles heróis das histórias que lhe contavam,começou a viver essa aventura feérica. É fácil imaginar o que seria tãolonga caminhada pelo sertão nordestino, na primeira metade do Século19. Dias de fadiga no lombo de um animal viajeiro por estradas quenão passariam, muitas vezes, de estreitas veredas em matagais cer-

rados; ora sob um sol de fogo - o sol do Nordeste - a crestar o verdedos campos; ora ao luar, para aproveitar-se o frescor da noite, numcenário de lenda, entre sombras misteriosas e cintilações de prata.Depois, a parada nos ranchos, os bivaques improvisados, as fogueirasacesas para espantar os animais ferozes, o descante melancólico doscomboieiros, os trenos da viola, e o menino a adormecer ante o fulgordas labaredas, como sob o efeito de um encantamento. Quantos impre-vistos e encontros inesperados, quantas descobertas no mundo estranhodo sertão! Imensidade que sópode comparar-se à do mar, cheia comoeste de perigos e incertezas! Findo o repouso, a jornada recomeça, epara um menino de dez anos vivoe imaginoso, as impressões nunca se

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repetem, os dias nunca são iguais nessa interminável caminhada. Bos-ques, rios atravessados a vau, árvores gigantescas, colinas, planícies,desfiladeiros; animais a correr, afugentados pela caravana; uma cobramorta a cacetada com grande alvoroço; pássaros desconhecidos a cor-tar o silêncio com grifes estridentes; e, no meio de tudo, perdido,surgindo como por encanto, o homem, à porta de uma choupana - ohomem pequenino, enfezado - no qual a fantasia do pequeno, exal-

tada pelas visões do sertão, descobre um herói semelhante aos Cava-leiros da Távola Redonda e dos Doze Pares de França.

1839 - grande data do Romantismo brasileiro! Alencar confessaque de tão longa viagem, ante "as mais vigorosas impressões da natu-reza americana", lhe veio a inspiração dO Guarani, de Iracema e dOSertanejo.

Essa natureza, vista pelo prisma feérico dos olhos deslumbradosde um menino de dez anos, ficará sendo para sempre a "natureza" doromancista, a única que ele pode sentir. Mais tarde, evocar o sertãoserá para ele retomar ao maravilhoso da infância. De onde o idealismoiluminado da maioria dos seus romances indianistas e campesinos,verdadeiras pastorais, em que há muito de conto de fada.

O Estudante Arredio

No velho casarão da Corte, onde vai residir com a família, omenino se entretém à noite, findas as tarefas escolares, com leituras denovelas folhetinescas, ouvidas atentamente pelos mais velhos. Quadropatriarcal o desse pequeno grupo em torno de um lampião a acom-panhar as aventuras e as peripécias do Saint-Clair das Ilhas. Em dadomomento, numa passagem mais triste, uma lágrima brota dos olhos deum dos presentes. E a visita que chega inesperadamente estranhaaquele ambiente de emoção. Há gente chorando na sala. Que teria

acontecido? A voz comovida do garoto diz tudo: o herói acabava depassar por um transe pungente. Estávamos nos meados do Século 19,em pleno Romantismo. Mas a cena comporta uma perfeita transpo-sição para os nossos dias. A novela melodramática ainda continua aarrancar lágrimas de leitores de romances e de ouvintes de rádio.

Na Corte, José de Alencar freqüenta o Colégio de Instrução Ele-mentar, do Professor Januârio Mateus Ferreira, velho educador , quelhe deixará as melhores recordações. Muito criança ainda, vai para SãoPaulo continuar os estudos, levando na bagagem um bom cabedal denovelas. São Paulo era naquele tempo uma cidade de província tris-tonha e brumosa, cuja vida urbana se fazia toda ela em função da

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Academia de Direito. E quem ia da Corte, onde havia mais sol e maislargueza, estranhava aquela atmosfera melancólica e cinzenta, propí-cia ao movimento romântico que ali floresceu. Os estudantes impri-miam um caráter típico à cidade, promovendo reuniões, tertúlias,serenatas e imitando Byron, em noitadas satanistas que apavoravam osburgueses. Quando Alencar para ali se transferiu, o Byronismo estavaem pleno apogeu; era moda andarem os estudantes de capa e cabe-leiras, blasfemando contra a vida e o amor, numa atitude mais oumenos semelhante à dos existencialistas de Saint-Germain-des-Prés,em nossos dias. Seria uma espécie de Existencialismo daquela época.Falava-se dos desvarios de Bernardo Guimarães, das bebedeiras deManeco de Azevedo, e devia prevalecer em tudo isso muito de fantasiae de lenda. Os· byronianos certamente posavam, como posam hoje osfreqüentadores do Café de Flore.

De Alencar sabe-se que a princípio, ainda adolescente, manteve-se distanciado do "bulício acadêmico", desse "viver original", inteira-mente desconhecido para quem nunca fora "pensionista de colégio" enem havia, até então, deixado o "regaço da família". Mais tarde,

parece que se aproximou algum tanto do ambiente, sem chegar a iden-tificar-se plenamente com ele. Numa imagem romântica, bem a seugosto, o escritor procura explicar a maneira por que reagia ante o meio."As palestras à mesa do chá; as noites de cinismo conversadas até oromper d'alva entre a fumaça dos cigarros; as anedotas e aventuras davida acadêmica, sempre repetidas; as poesias clássicas da literatura

paulistana e as cantigas tradicionais do povo estudante; tudo isso - dizele - sugava o meu espírito adolescente, como a tenra planta que

- absorve a linfa, para mais tarde desabrochar a talvez pálida florinha."Mas a imagem é meio imprecisa; não se compreende bem até ondeAlencar participa do espetáculo, até onde nele figurava apenas comoespectador.

Logo adiante, considera ele a "página acadêmica", "riquíssimade reminiscências", abrangendo-lhe a melhor "monção da existência".Será, no entanto, o caso de perguntarmos: romancista que se tornoumais tarde, por que não aproveitou essa página riquíssima num ro-mance? É que ele preferia imaginar, idealizar a realidade a repro-duzi-Ia. E a vida acadêmica como outros assuntos "reais" não lheseduziria muito o espírito criador inclinado a trabalhar no imagi-nário.

Ferreira de Resende, contemporâneo de Alencar na Academia,descreve-o como um estudante arredio, pouco amigo das tertúlias e semgrandes intimidades entre os colegas.

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Passou pelos bancos acadêmicos quase obscuro - informa-nosAraripe Júnior. Assim ter-se-ia dado tanto nos quatro anos que estu-dou em São Paulo como no terceiro que fez em Olinda. Formado emDireito em 1851, foi para a Corte trabalhar no escritório de advocaciado Dr. Caetano Alberto.

oGuarani e o Retorno à Infância

Tive um professor no curso secundário muito dado às letras -afeição na qual não era plenamente correspondido - que costumavadizer-nos haver feito sua iniciação na atividade literária pela charada.Sempre me pareceu original e estranho isso. Como poderia a charadaconstituir ponto departida de um escritor? Sómuitos anos depois vim acompreender tudo. O meu professor procurava, certamente, imitar oromancista do Guarani, por quem nutria a maior admiração. "O domdeproduzir - declarou Alencar -, a faculdade criadora, sea tenho, foia charada que a desenvolveu em mim, e eu teria prazer em referir-lheesse episódio psicológico, senão fosse o receio de alongar-me demasiado,

fazendo novas excursões fora do assunto que me propus." Pois nadamais lamentável do que esse receio. Seria interessantissimo ver Alencarexplicar-nos o mecanismo psicológico que o levou da decifração decharadas à criação depersonagens poéticas, como a maior parte dos seusheróis. A crítica perdeu com isso um precioso subsídio.

Quando surgiu o escritor em José de Alencar? Diz ele ter sidonum "timido ensaio de romance histórico", ainda na infância, extra-viando-se o rascunho com os folguedos da época que o viram nascer.Em São Paulo fez ainda outra tentativa deromance, sem conseqüência.O que particularmente pareceu atraí-lo nos tempos de estudante foi acrítica. Escreveu vários artigos na revista Ensaios Litterarios, da qualnão encontramos um só número na Biblioteca Nacional. Artur Motafala num estudo subre A Pátria de Camarão e outro sobre Questões de

Estilo. Foi na cr ítica ainda que se iniciou no Jornalismo, quando setransferiu para o Rio, escrevendo no Correio Mercantil do seu colega eamigo dos bancos acadêmicos Francisco Octaviano. Em setembro de1854, passa a substituir Francisco Octaviano, no folhetim hebdoma-dário do referido jornal. Sabe-se o que se chamava um folhetim naqueletempo. Era um gênero de comentário lítero-jornalís tico, indo da polí-tica nacional e internacional " à apreciação de um fait-divers, dos últi-mos acontecimentos sociais mundanos e teatrais ou do romance aca-bado de aparecer nas montras das l ivrar ias. Alencar revelou-se umfolhetinista ágil, lúcido e elegante para o tempo e algumas de suas

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páginas, como a referente aofamoso sermão de Monte-Alverne, ficarammesmo célebres.

Em 1856, Gonçalves de Magalhães regressa da Europa com opoema A Confederação dos Tamoios, editado a expensas do Impera-dor. Alencar, já agora, escrevendo no Diario do Rio, inicia a críticasis temática da obra, analisando-a peça por peça, mostrando-lhe as

frouxidões, as imperfeições métricas, a incapacidade do autor paradominar poeticamente o tema e realizar uma epopéia, como haviasonhado. A questão do Indianismo preocupava-o muito no caso. Gon-çalves de Magalhães não se desfizera da maneira de ver e sentir dohomem civilizado para identificar-se com os selvagens, cujas reaçõesprocura exprimir em verso. Alencar denunciava, com muita razão, ocaráter facticio do poema, a ausência de uma verdadeira inspiração.Sentir-se-ia ele roubado num assunto que, desde muito tempo, o viriatrabalhando: o de uma epopéia indianista? .Ou fora a idéia de Maga-lhães, mal realizada, que lhe trouxera a consciência de estar particu-larmente qualificado para levar avante, com êxito, essa empresa?

Sabe-se do empenho com que Dom Pedro 11procurou defender o

seu protegido, arregimentando intelectuais para responder às críticasde José de Alencar, chegando ele próprio, o Imperador, sob o pseudô-nimo "Outro amigo do poeta", a escrever um dos artigos de revide, noJórnal do Commercio. Infelizmente, de Portugal, Alexandre Hercu-lano, a quem o monarca também apelara, enviava-lhe, confidencial-mente, uma carta bem desanimadora, considerando o poema de Ma-galhães uma obra fracassada.

Foi esse, embora de maneira indireta, o primeiro choque deAlencar com Dom Pedro 11.Nunca haveriam de entender-se.

Em dada altura de sua crítica a Magalhães, Alencar escrevia quese pretendesse compor um poema daquele gênero, pediria a Deus quelhe fizesse esquecer suas idéias de homem civilizado. "Filho da natu-reza, embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria asmaravilhas de Deus; veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a luadeslizar-se no azul docéu."

Para conseguir isso, bastava retornar à infância, reviver aquelaviagem maravilhosa através do sertão. Sugestões de leitura de Chateau-briand, Fenimore Cooper e Walter Scott fariam o resto.

Num artigo incluído novolume IV dosEstudos, Tristão de Athay-de vai de encontro à versão de um Alencar instintivo, em que oromancista surgisse por uma necessidade natural do temperamento.Personalidade multiforme, Alencar teria sido romancista, como logrouser tudo aquilo que quis - conclui Tristão. Não concordando intei-

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ramente com esse ponto de vista, reconhecemos, pelo menos, que o autorde Iracema não foi tão instintivo, como muita gente imagina. O espíritocrí tico nele despertou cedo, correndo parelha com o romancista e,nunca, durante toda a carreira li terária, o escritor deixará de críticar ejustif icar os próprios romances, em prefácios e notas em apêndices.

No ano seguinte ao do requisitório contra a Confederação dos

Tamoios inicia-se, no Diario do Rio, a publicação dO Guarani, Se nãose pode negar a essa criação romanesca o caráter de necessidade, tãointimamente está ela ligada ao passado e ao temperamento de Alencar,será lícito assinalar também o que nela prevalece de demonstração. Oautor procurou mostrar como se devia fazer em romance a epopéiaindianista do Brasil. O êxito prodigioso da obra diz da maneira felizpela qual foi alcançado o objetivo.

Todo o Brasil, de norte a sul, leu O Guarani, publicado em vo-lume no mesmo ano. As figuras de Ceci e Peri popularizaram-se e oautor, que se escondera sob o anonimato, tornou-se famoso de ummomento para outro. Era, talvez, o primeiro grande êxito literário noBrasil, numa época em que o comércio editorial ainda não dispunha de

aparelhamento de publicidade.Consagrado romancista, Alencar, a exemplo de quase todos os

escritores brasi leiros no século passado, volta-se para o teatro.A 5 de setembro do mesmo ano de 1857, em que aparecia O

Guarani, faz ele representar no Teatro Ginásio a comédia em quatroatos O Demônio Familiar, pondo em cena um dos tipos curiosos danossa sociedade escravocrata: o do moleque matreiro que, se tornandomensageiro dos recados de amor das sinhás, ata e desata. intrigassentimentais. Ainda em 1857, no mesmo teatro, apresenta ao públicouma nova comédia, Verso e Reverso. Era a nomeada do teatrólogo quetambém se consolidava. No ano seguinte, porém, tem ele o dissabor dever a sua peças As Asas de um Anjo, com o competente visto da censurado Conservatório Dramático, ser proibida pela Polícia, após três diasde representações. O motivo alegado era a imoralidade. Abordando umtema semelhante ao de Dumas Filho, "o da reabilitação pelo amor damulher culpada", o escritor escandalizava o público e as autoridadespoliciais, que não hesitavam ante a violência de revogar uma decisão doConservatório. Alencar protestou com energia em artigos no Diario do

Rio e o caso suscitou discussões, repercutindo não só na Corte, comoaté em São Paulo, onde vários órgãos acadêmicos manifestaram soli-dariedade ao teatrólogo. Um dos pontos em que Alencar insistia, aodefender-se, era o ambiente de tolerância que se fazia geralmente emtorno das escabrosidades das peças estrangeiras, enquanto em peças de

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costumes nacionais e de autor brasileiro não se suportava a revelaçãode certas chagas sociais. Com seu caráter sobranceiro e altivo, o escri-tor teria sido rudemente ferido por essa arbitrariedade. Talo primeirogolpe a sofrer ele na vida literária. Não tardaria a ser atingido pormuitos outros, sabendo sempre aparâ-los e revidâ-Ios sem tibieza. Masnesta altura já se encontra em vias de penetrar num terreno perigoso,

pelo qual enveredará heroicamente, sem que toda a bravura o impeçade retornar mutilado. Em 1861 Alencar começa a viver o seu dramapolítico.

A A ventura Política

Mais do que por tradição de família, por um desdobramento na-tural da atividade intelectual, o autor dAs Minas de Prata enveredoupela Política. Não experimentaram essa sedução quase todos os escri-tores brasileiros no século passado, sobretudo durante a Monarquia? Aelite intelectual sentia-se no dever de concorrer para a boa marcha dosnegócios públicos no país em formação.

Filiado ao Partido Conservador, Alencar parte em 1860 para oCeará a fim de fazer a propaganda de sua candidatura a deputado-geral. De há muito que o romancista não visitava a Província natal, cujasimagens conservava somente através das lembranças de infância. Reto-mando o contacto com aquela natureza bárbara, reacenderá as lem-branças, colhendo inspiração para o seu segundo romance indianista:Iracema.

Com o apoio dos chefes conservadores, regressa do Ceará depu-tado. Numa página célebre, o Visconde de Taunay relembra a estréiaparlamentar do autor dO Tronco do Ipê, Estréias como essa eramgrandes espetáculos sociais e públicos naquela época. A Câmara estavarepleta no dia 23 de maio de 1861, quando José de Alencar, pela pri-meira vez, subiu à tribuna. E o 'próprio Taunay conta-nos o' que foi adecepção do auditório - decepção confirmada por Francisco Octa-viano, amigo íntimo de Alencar - ante a voz baixa e pausada, a gesti-culação quase nula do orador. "Nem de longe lembra o pai" - teriadito Teófilo Ottoni. Mas o fato é que o romancista, mesmo sem adqui-rir as qualidades de orador que a época exigia, conseguiu, logo depois,o domínio da tribuna, fazendo-se ouvir em meio do silêncio e do res-peito gerais, enfrentando os adversários mais calcinados na est ratégiaparlamentar, como Zacarias e Cotegipe.

Em novembro de 1865, Alencar inicia a publicação de uma sériede epístolas polí ticas dirigi das ao Imperador, sob o título de Cartas de

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Erasmo, a que se seguiu, dois anos depois, outra série. Nelas o autorpintava a triste situação do Brasil, para concluir que, nessa completaderrocada, só havia uma esperança: o Imperador . Afirmando sua con-dição de amigo sincero, declarava ele: "Monarca, eu vos amo e res-peito. Sois nestes tempos calamitosos de indiferentismo e descrença umentusiasmo e uma fé para o povo". Sempre no mesmo tom, invocava a

ação do Imperador, chegando a considerá-Io um desses apóstolos esco-lhidos por Deus "para salvar, no meio da geral dissolução, a dignidadeda razão humana". "O povo inerte, os partidos extintos, o Parlamentodecaído" - clamava Alencar. Que devia pois fazer o monarca? Impora sua autoridade, valendo-se dos direitos que lhe dava o Poder Mode-rador, a fim de atalhar os males por meio de uma intervenção enérgicae radical. Como vêem, Alencar desejava, mais ou menos, o que nosacostumamos a chamar hoje de governo forte. Opondo-se aos queacusavam Dom Pedro 11de exorbitar a autor idade, reclamava ele desteúltimo ainda mais autoridade, vendo no pleno exercício do PoderModerador o único remédio para tão calamitoso estado de coisas.

Através desse apelo, as Cartas iam criticando os atos dos Gabi-

netes que se sucediam, abordando problemas de suma importância,como do cativeiro, no qual, embora propondo soluções humanas,Alencar se opunha à abolição completa e imediata, ponto de vista quesustentaria mais tarde frente a Rio-Branco.

As cartas eram lidas, comentadas, discutidas, mostrando, sob oaspecto sisudo de homem interessado na vida do País, de conhecedordos problemas da nacionalidade, o artista, o novelista romântico, oescritor, enfim, que não podia ser visto com muita seriedade pelos diri-gentes do Império, numa época em que a Literatura não tinha grandecotação entre nós.

oEscritor-Ministro

Em julho de 1868, em plena Guerra do Paraguai, com a crisepolítica determinada pela queda dos liberais, o monarca chama osConservadores ao poder, encarregando o Visconde de Itaboraí de orga-nizar o novo ministério. Há uma versão muito vulgar izada, segundo aqual Dom Pedro 11, pela influência das Cartas de Erasmo, teria suge-rido a Itaboraí a inclusão de Alencar no Gabinete. Num fragmento dediário íntimo, comunicado pela família do romancista a Osvaldo Oricoe reproduzido na Vida de José de Alencar deste escritor, não figuranenhuma referência à propalada indicação feita pelo Imperador. Alen-car remem ora apenas que, se encontrando a IS de julho de 1868 no seu

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escritório de advocacia da Rua do Carmo, viu entrar o Dr. Silva Me-neses, dizendo-lhe que Muritiba e Paulino de Sousa contavam com ele,Alencar, para o novo Ministério. O romancista observa nessa página decaráter confidencial: "O cargo de Miriistro já não tinha estímulos paramim, depois de o haverem ocupado homens sem títulos; ao invés dehonra, tornara esse posto elevado suplício. A glória que pode resultar

do cargo não compensa, na minha opinião, o sacrifício de exercê-lo".Mas confessava o seu receio de não poder esquivar-se ao reclamo. Seem lugar de declinar de uma honra recusava-se a um sacrifício, nãopraticaria um ato de desinteresse e sim de fraqueza ecovardia.

Logo depois, chegou Paulino de Sousa, contando que Itaboraí,encarregado de formar o Ministério, dirigi ra-se a São Cristóvão, à casade Paranhos, e, de volta, mandara chamar a ele, Paulino, declarandonão compor o Gabinete se Alencar não aceitasse a pasta do Império. Oromancista insiste na recusa, embora Paulino afirme que ela irá in-fluenciar nocivamente o espír ito de I taboraí. Pensa em escrever umacarta a este último e a retirar-se para Botafogo. Mas hesita, anotandono diário: "Não, eu não podia deixar correr à revelia a causa do Brasil,

próxima a ser julgada". Resolve então ir à casa de Paranhos, onde seachavam reunidos Cotegipe, Lima e Silva, Cândido Borges, à espera deItaboraí, "que não tarda a chegar, sucumbido ... " A página interrompe-se nesse ponto, truncando-se assim um documento essencial para abiograf ia do escritor no que concerne à sua ação política.

Como quer que seja, o Gabinete ficou constituído no dia se-guinte, 16 de julho de 1868, com Itaboraí na presidência e José deAlencar na pasta da Justiça. Nesse posto manteve-se ele até 9 de janeirode 1870, quando se demitiu. Não se pode negar a atividade do escritorno Governo, as diversas medidas que tomou, entre as quais deverádestacar-se a proibição da venda de escravos, debaixo de pregão eexposição pública, no Valongo, triste espetáculo que aumentava o cará-ter já de si tão degradante do cativeiro. .

Mas uma vez no poder, esse homem que tanto reclamava a auto-ridade do Imperador, tornou-se também autoritário, o que não poder iadeixar de provocar alguns atritos não só entre ambos, como entre oMinistro e os companheiros de Gabinete. Pela sua envergadura intelec-tual, Alencar estava indiscutivelmente acima dos colegas, os quais, porsua vez, julgando-se superiores a ele, por possuírem maior tirocíniopolítico, viam-lhe sob um aspecto de arrogância insuportável certasatitudes. Tal, por exemplo, a inovação pleiteada pelo escritor de,segundo a usança do Parlamentarismo inglês, o Ministério debater pri-meiro as questões na intimidade, sem a presença do monarca, para só

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depois lhas submeter à apreciação. Era o romancista a vir ensinarpraxes e técnicas politicas àquela gente tão carregada de títulos epresumida experiência.

Alencar ocupava o lugar de ministro, quando, em 1869, resolveucandidatar-se a senador pelo Ceará. Comunicando a decisão ao mo-narca, teria travado com este o diálogo famoso que um jornalista

reportou ao Visconde de Taunay e não vamos repetir aqui por já seachar muito divulgado, além de que não se pode garantir-lhe a auten-ticidade. O Imperador desaprovar-lhe-ia a idéia, dizendo-lhe:

- No seu caso eu não me apresentaria; o senhor é ainda muitomoço.

Esse gesto tem sidojulgado um tanto apaixonadamente, vendo-senele o desejo deliberado do monarca de obstar os passos do politicoavesso ao aulicismo, do escritor vitorioso a quem invejava. Na verdade,como observa Heitor Lyra (Hist6ria de Dom Pedro ll), o Imperadornão queria que ministros de Estado se candidatassem à senatoria, pormotivos fáceis de compreender: era disputar uma eleição no poder. Semuitos casos desses houve é que o monarca se via obrigado a concordar

para atender a conveniências politicas inelutáveis; isto é, aos própriosinteresses do Gabinete ao qual preferia sustentar. Não seria o caso deJosé de Alencar, que além de tudo, como Ministro da Justiça, iria elemesmo presidir a eleição. Embora ciente das disposições de DomPedro 11, o escritor disputou a senatoria, sendo eleito em primeirolugar na lista sêxtupla, com 1185 votos.

A 9 dejaneiro de 1870, Alencar demite-se, declarando ao Impe-rador assim proceder "para deixar-lhe mais liberdade na questão doCeará, em que era parte". Na realidade, o escr itor já estava incom-patibilizado com os colegas de Ministério, sobretudo com o terrívelCotegipe. A 27 de.abril do mesmo ano, o monarca, usando das atri-

buições do Poder Moderador, escolhe na lista sêxtupla Jaguaribe eFigueira de Melo. Era um golpe brutal na carreira politica do roman-cista.

Sem Pasta e Sem Senatoria

A decisão imperial - como observa Taunay nas Reminiscências

causou realmente espanto e lástima. Os escolhidos, Jaguaribe eFigueira de Melo, não podiam comparar-se nem de longe com Alencar.E seeste tinha agido demaneira precipitada e sem habilidade politica ocerto é que Dom Pedro 11fora de um rigor um tanto estreito no seuponto de vista. Não se encontrou, aliás, para o gesto outra explicação

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senão o de uma vingança pessoal, tanto mais que a escolha costumavaconsultar quase sempre os interesses partidários e o romancista eramais prestigiado por seus pares do .que os preferidos, embora todospertencessem ao bloco conservador. Muritiba dirá, mais tarde, haverempregado todos os esforços junto ao monarca, vendo-se, no entanto,obrigado a respeitar as decisões do Poder Moderador.

Quanto à demissão do romancista, concedida, enfim, em janeirode 1870, não teria ela sido pedida a fim de dar ampla liberdade deescolha ao Imperador, mas imposta pelas divergências que de há muitose vinham agravando entre Cotegipe e Alencar. Um dos dois deveria sersacrificado, e como Itaboraí declarara a impossibilidade do ministérioficar sem Cotegipe, Alencar é quem tinha de afastar-se. Perde eleassim, de uma sóvez, o cargo de ministro e a senatoria almejada. Durogolpe para sensibilidade tão delicada como a do autor dO Guarani,

Mas não se abate ele por isso a princípio. Fora derrotado numabatalha decisiva, quando já havia conquistado os melhores redutos.Que importa? Continuaria a luta e ainda havia de dar muito trabalhoaos adversários.

Retomando à Câmara dos Deputados em 1870, rompe com oscorreligionários do Partido Conservador, então no poder, para assumiruma atitude de aguerrida oposição. O orador, que não era nele bemdotado, vai apurar-se nessa refrega. Movido pela necessidade da luta,num esforço de vontade prodigioso, acabará por ombrear-se com osmaiores tribunos parlamentares da época. Teve dias de verdadeirasglórias oratórias - dirá Araripe Júnior.

Ao mesmo tempo, volta à atividade jornalistica nO 16 de Julho,

órgão que fundara para rebater os ataques doDiario do Rio - onde jáhavia trabalhado, agora sob a inspiração de Cotegipe, enquanto Para-nhos e Paulino de Sousa movem outros jornais contra o ministro

demissionário.Na Câmara, Alencar defende seus atos no Gabinete, justifica,entre outros, os motivos que o levaram a candidatar-se a senador,alegando já ter havido muitos precedentes de candidatos ministros.Cotegipe, um dos principais alvos dessas tiradas, perde, por vezes, o arirônico de velha raposa, ante as enérgicas arremetidas do orador. Eergue-se para charnâ-Io de teimoso e dizer que a incompatibilidadeentre ambos provinha do fato de Alencar insistir sempre em fazerprevalecer a própria opinião.

São grandes dias no Parlamento esses em que o romancista-deputado, "o Fanadinho", como lhe apelidara um adversário, en-frenta Cotegipe, ergue uma "armadura rija" contra os petardos de Za-

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carias, revida as invectivas de Silveira Martins - o "Sansão dosPampas", homem que na tribuna devia ser um mestre em dós de peito- e coloca-se à altura da eloqüência elegante e ponderada do Viscondedo Rio Branco. Sua mágoa ia, porém, mais diretamente contra o mo-narca. Reconhecia que já nada lhe era dado esperar daquele quedetinha nas mãos o Poder Moderador - esse Poder para o qual tanto

apelara nas Cartas de Erasmo, como o único instrumento capaz desalvar o Brasil. Não havia pois outro meio senão colocar-se em posiçãocontraditór ia à que assumira anteriormente, e atacar o autoritarismodo Imperador - as excessivas prerrogativas de que este se valia nogoverno para impor os próprios caprichos -, vendo, afinal, no PoderModerador já não mais a esperança de salvação do país e sim a pers-pectiva de todas as calamidades.

Em tudo Alencar encontrava um pretexto para atingir o mo-narca . Denunciou até o protocolo imperial, como antiquado e ridículo,achando que se as pompas, em cortes como a da Inglaterra, justifi-cavam-se pelas tradições, no Brasil, país visceralmente democrata ejovem, des toavam de maneira grotesca . E em 1871, quando Dom Pedro

II pede licença à Câmara para realizar sua primeira viagem à Europa,a voz de José de Alencar é uma das que se fazem ouvir com maior vigorcontra a idéia. Correu, então, em folheto incorporado hoje à obra doescritor, o famoso discurso que pronunciou. Depois de mostrar toda ainoportunidade da viagem - combatida, aliás , pelos próprios Conser-vadores que se achavam no poder - acaba por considerá-Ia umaaprendizagem útil ao Imperador, "desde que ela lhe oferecia ocasião dever os homens e as coisas não somente de alto a baixo, mas tambémhorizontalmente". O Conde Ludolf, Ministro da Áustria no Rio, emcarta para o seu governo, citada por Heitor Lyra, na História de Dom

Pedro Il,acusa Alencar de ostentar o seu despeito - "por não ter sidonomeado senador" - nesse discurso que lhe parece altamente incon-veniente.

Alencar e o Imperador

A questão da animosidade entre Dom Pedro II e José de Alencaré um capítulo comum de nossa história política e literária, e como osque têm trazido contribuições para esclarecê-lo se mostram, freqüente-mente, apaixonados, não se pode ainda dizer a última palavra sobreele. Fala-se em ciúme da glória literária do escritor. A expressão será,talvez, exagerada. Realmente, o monarca gostava de adotar os talentosque porventura surgissem no Brasil e fazer depender da proteção im-

ENSAIOS DA MÃO CANHESTRA 169

perial o êxito dos mesmos, excedendo-se, às vezes, um pouco nessa

tutela.Em 1883, na publicação semanal Lucros e Perdas, Sílvio Ro-

mero, com aquela sua linguagem destabocada, increpava o Imperadorde intervir em todas as iniciativas literárias, como se quisesse dizer :"Ou aceitam o meu conselho ou suas pretensões se dissolvem em

fumo". Ora, José de Alencar era dos que não aceitavam conselhos nemorientações vindos do alto. Mas a ponta de despeito que podia provocarno espírito do monarca uma glória feita à revelia do seu beneplácito,não seria poss ivelmente suficiente para indispô-lo contra o escritor seeste não aliasse a independência à altivez. O Imperador suportava, porvezes, certas impertinências dos seus ministros, nem sempre subser-vientes, como se imagina, e chegara a chamar para o poder políticosque lhe haviam dirigido os mais pesados ataques na imprensa e noParlamento. Alencar agira, porém, sem tato político, ferira natural-mente aquela corda do amor-próprio que fizera o Imperador insistir naperseguição de López e na condenação de Dom Vital.

Não se diga que a animosidade do soberano contra o escritor se

tivesse originado nos ataques de Alencar à Confederação dos Tamoios.Depois, vieram as Cartas de Erasmo, e se Dom Pedro não indicouAlencar para o Gabinete Itaboraí, também não se opôs à inclusão doescritor. Mas, na Pasta da Justiça, Alencar, como já observamos,mostrou-se muito autoritário, assumindo atitudes que não podiamdeixar de ferir a suscetibilidade do monarca. Basta um exemplo:Nabuco de Araújo, no Gabinete da Conciliação, estabelecera a praxe.do Minis tério da Justiça enviar ao Imperador os recor tes dos jornais daprovíncia em que se tratasse de assuntos políticos e administrativos, afim de que o mesmo, orientado sobre o que passava nos recantosdistantes do país pudesse melhor fiscalizar os atos dos ministros.Alencar rompeu com essa praxe, justificando-se numa carta, em ter-mos um tanto bruscos, em que, depois de alegar outras razões, dizia:"Essa inspecção minuciosa que V. M. I. deseja exercer sobre o País, namelhor das intenções e com o pensamento de bem usar de sua alta ebenéfica atribuição moderadora, toma aos olhos da Nação um aspectoque não se coaduna nem com o espírito constitucional do Soberano,nem com a dignidade do seu Ministro da Justiça". Por aí se podeavaliar o tom de semelhante carta, que muito devia irritar Dom Pedro,fato que nos leva, junto a outros, a desculpar a sua frase tão mesquinhapor ocasião da morte do escritor: "Era um homenzinho muito mal-criado" .

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170 OBRAS REUNIDAS DE BRITO BROCA

o Escritor e a Crítica

Que o fracasso, abatendo profundamente o ânimo do roman-cista, teve sensível repercussão na sua carreira l iterária, é indiscut ível .Alencar teria perdido muito do entusiasmo, do élan espiritual, mergu-lhara na neurastenia, tornara-se um ressentido, fatores todos esses

que haviam de refletir-se na atividade criadora do escritor. AraripeJúnior alude ao pess imismo que daí em diante passou a ensombrar- lhealguns romances, como O Gaúcho e Til.

O certo é que o acabrunhamento moral minou-lhe o organismo jápouco res istente, abrindo caminho para a doença que devia arreba tá-loem plena maturidade.

De 1870 em diante, aliás, Alencar começa a sofrer várias agres-sões, cujos efeitos não seriam desprezíveis numa sensibilidade del icadacomo a sua; isso embora ele sempre se defendesse com energia ebravura.

Já na Câmara dos Deputados a sua condição de romancista, em

lugar de elevâ-Io aos olhos dos confrades, oferecia motivo para a cha-cota dos adversários. Em certa altura de um debate, Teófilo Ottonimandava-o volver aos seus romancetes e Zacarias tinha a pretensão decorrigir-lhe a pronúncia da palavra inglesa pall-mall, impertinência naqual levou a pior, pois, no dia seguinte, Alencar, com o dicionário empunho, veio provar-lhe que es tava com a razão. O Visconde de Taunay,nas suas Mem6rias, alude a um deputado do Rio Grande do Norte,"um desfrutável Raposo", que fazia alarde de nunca haver lido ro-mances. "Decerto, Sr. Presidente - dizia ele em dada ocasião -nunca saíram da minha imaginação tipos como os que engendrou o Sr.José de Alencar, nenhum guarani, à guisa do célebre ... " E interrompeuneste ponto, não atinando com o nome. "Como é que se chama o tal

índio?" - perguntou a dois colegas ao lado, e como estes respon-dessem, um após o outro, Peri, continuou muito alto: "Como o célebrePeri- Peri... ", o que provocou enorme gargalhada no recinto. Tambémnaquela casa, - acrescenta Taunay - entre mais de cem represen-tantes da mentalidade brasileira apenas uns cinco ou seis teriam lido OGuarani.

Os poetas e romancistas eram encarados pelos políticos, na épo-ca, como espíritos sonhadores , alheios à vida prática, sem a ser iedadesuf iciente para enfrentar os problemas de interesse nacional, E não é deadmirar que assim fosse, quando, em nossos dias, Afrânio Peixoto,pelo fato de escrever romances, foi alvo na Câmara dos Deputados,

ENSAIOS DA MÃO CANHESTRA 171

onde tinha assento como representante da Bahia, de chacotas seme-lhantes às que feriram Alencar.

Acusa-se Dom Pedro IIde haver empreitado o jornalista portu-guês José Feliciano de Castilho pará realizar uma campanha de demo-lição contra José de Alencar. Não se verificou, até hoje, até on~e issopode ser exato. Tudo nos leva a crer, no entanto, que a campanha

movida por Castilho teve um propósito sensacionalista: o de visar oescritor aclamado por todo o Brasil, o homem do dia, cuja consagraçãoera unanimemente reconhecida. Araripe Júnior fala num revide dojornalista português, que se intrometendo no Parlamento, a .f~~~ntarintrigas que irritaram Alencar, foi por este fuim inado com a mjuna de"gralha imunda". .

José Feliciano de Casti lho voltou-se, então, contra o romancista,numa série de panfletos em forma de cartas sob a assinatura de Cinci-nato e publicadas nas Questões do Dia. Era uma análise minuciosa daobra de Alencar, com o propósito malévolo de cata r impropr iedades ,vícios de linguagem, erros de gramática , deslizes , lapsos, pequenesas.A essa tarefa veio associa r-se um escritor brasileiro, Franklin Távora,

com o pseudônimo de Semprônio, e ambos se empenharam no esforçorenitente de desmontar a reputação literária do romancista. Esmiu-çavam-lhe os pontos fracos e sobre estes faziam carga impiedosamente.Quem ler hoje as cartas de Cincinato e Semprônio verificará que emmuitos pontos os dois agressores de Alencar tinham razão. Mas subme-tido a idêntico processo de análise muito romancista poderá ter sua gló-

ria abalada. O que Castilho e Távora não reconheciam era o valor poéti-. co da prosa de Alencar, e na ignorância deste seria possível reduzira um amontoado de peças defeituosas todo o arcabouço mágico.

Antônio Henriques Leal, Tobias Barreto e Sílvio Romero tambémassestaram suas baterias contra o autor dAs Minas de Prata, logo após

a campanha de Cincinato e Semprônio. Mas foram ataques isolados,sem o espírito metódico e per tinaz de demolição. Esse espír ito iria reve-lar-se, de novo, em 1873, na série de rodapés em que Joaquim Nabuco,nO Globo, se ergueria para realizar aquilo que ele dizia não ter .sidofeito até então: a crítica da obra de Alencar. Dessa vez o ataque VInhade um homem inteligente e o romancista o reconhecia, certamente,po is não hes itava em revidar a agressão. O caso teve origem no fracassode bilheteria da peça de José de Alencar, O Jesuíta, representada pelaprimeira vez, em setembro de 1873. A anistia dos Bispos Dom Vital eDom Antônio de Macedo Costa era recente e a questão estava, porassim dizer, ainda a sangrar. A peça de Alencar exaltava o Clero sob oponto de vista patriótico, fazendo de um jesuíta um precursor da nossa

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independência. Era atingir de maneira indireta, mas nem por issomenos sensível, o debate político-religioso criado pela Questão dosBispos. A peça foi representada para salas quase completamente va-zias. A 26 de setembro, em longo artigo nO Globo, Alencar vem clamarcontra a indiferença do público, em termos amargos e severos. "Umaobra escrita por um brasileiro que não é maçom nem carola - consi-

dera ele -, um drama cujo pensamento foi a glorificação da inteli-gência e a encarnação das primeiras aspirações da independência destapátria repudiada; semelhante produção era, em verdade, um escárnio,atirado à face da platéia fluminense. Ela não podia proceder commaior sobranceria. Não se dignou nem mesmo a dar à peça as honrasde comparecer em sua augusta presença para ser pateada; voltou- lhe ascostas com frio desdém. Se se tratasse de um assunto estrangeiro, comoa 'restauração portuguesa' - continuava o romancista -, decerto opúblico se interessaria, porque nunca nos interessamos pelo que énacional." E nesse tom descamba a queixar-se dos compatriotas, de-clarando não ter jeito "para agradar os outros e assim não saberconquistar elementos de propaganda em torno do seu nome"; mostra-

se ressentido, principalmente, com o público fluminense, reconhecendoser mais apreciado na Província do que na Capital.

No dia 3 de outubro, em rodapé no mesmo jornal, JoaquimNabuco, então elemento brilhante da nova geração, oferece réplica aoescritor consagrado, anunciando uma série de estudos em que prometeexaminar, imparcialmente, a obra de Alencar, sem respeitar a "con-venção literária que o protege". O romancista treplica em novo folhe-tim e a polêmica prossegue em vários rodapés até 14 de novembro.Nabuco, no começo de sua carreira literária, já se mostra um escritorelegante, ático e incisivo nesse debate, e se a sua crítica denuncia, emcertos pontos, muita acuidade, é inegável que Alencar soube defender-se com extraordinária bravura, e será difícil dizer-se quem levou amelhor na contenda. Se os antagonistas descambaram, por vezes , parao terreno dos remoques pessoais - Alencar atribuindo a N abuco um"beâtico sonambulismo", a imaginar-se "um Apolo ainda mesmo degesso" - a polêmica não deixa de ter por isso o mais alto interesseliterário. No último rodapé, Nabuco dizia que entre o romancista e oseu "obscuro crítico" o futuro decidiria. Mais tarde; porém, numa pá-gina da Minha Formação, reconsiderou o ataque a Alencar , peniten-ciando-se de haver sido injusto para com o autor dO Sertanejo. Quemler, porém, os rodapés dO Globo hoje, verá que o futuro não tinha quedecidir, pois bem diversos seriam os lugares reservados a esses doisespíritos na Literatura Brasileira.

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Tédio e Indiferença

Desiludido, doente, Alencar encerra-se no seu retiro da Tijuca.De agora em diante, passará a assinar os livros com o pseudônimo deSênio, Sente-se agora precocemente envelhecido. À paisagem do bairroflorestal que tanto ama dedica um romance; Sonhos d'Ouro, Dali

escreve a famosa carta a Machado de Assis, apresentando-lhe CastroAlves. E dali sai um dia, em 1876, para uma viagem à Europa. Asúnicas informações que possuímos dessa excursão de Alencar, atravésdo Velho Mundo, é Araripe Júnior quem no-Ias fornece, no excelentelivro que escreveu sobre o romancista. Seria de grande interesse, porexemplo, ler as cartas que Alencar teria naturalmente dirigido a paren-tes , nas quais transmitiria decerto impressões dos países que vis itava.Araripe Júnior pinta-nos o escritor a percorrer a Europa num estadode verdadeira hipocondr ia, sem a curiosidade sôfrega e inteligente queum espírito como o seu deveria forçosamente exper imentar ante o espe-táculo das velhas civilizações . Onde teria colhido o crítico as informa-ções que nos transmite? Nada nos diz ele a respeito, no livro em

questão, mas é provável tenha sido pelas cartas do escritor, talvez atéhoje em poder da famíl ia e ignoradas pelos biógrafos.

Em Portugal, o romancis ta não se sentiu bem, evitando o contatocom os elementos que ali o haviam atacado. Em Paris ficou, a prin-cípio, excelentemente impressionado com a delicadeza e a educação dopovo. Mas logo, ao visitar os bairros populares, como Bellevue, horro-rizou-se com a rudeza dos operários, e da multidão promíscua, na qual

julgou distinguir os apaches de Eugêne Sue e Ponson du Terrail. Não sesabe que tivesse procurado contacto com qualquer escritor francês,nem mesmo com Octave Feuillet, de quem sofrera a influência nosromances urbanos como A Pata da Gazela e Senhora.

Em Londres entonteceu-o o movimento da cidade, a expressão depoderio técnico que ela lhe revelou. Julgou tudo aquilo obra de forçasmalignas e viajando, certa vez, num metropolitano, sentiu-se tomadode verdadeira angústia.

Araripe Júnior atribui a Alencar uma sensibilidade muito deli-cada para poder suportar os aspectos ciclópicos das grandes cidadeseuropéias, na época. A Europa, em lugar de deslumbrar, teria pertur-bado a mente sonhadora do escritor, habituado a ver o mundo atravésde um prisma róseo. As civilizações do Velho Mundo, onde irrompia aindustrialização, afetando os usos e os costumes, traduziriam para eleuma realidade demasiado brutal. No entanto, parece-nos que se Alen-car tivesse realizado essa viagem nos anos 60 ou 65, quando se encon-

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trava num estado moral e físico bem diverso, em plena ascensão naLiteratura e na Política, suas reações ser iam inteiramente opostas. Adoença e a desilusão fizeram-no decerto perder o interesse por tudo. Efora um neurastênico, indiferente às surpresas do mundo, que passearao seu tédio mórbido pela Europa.

A 12 de dezembro de 1877, pouco depois de regressar ao Brasil, oescritor veio a falecer. Morria de uma tuberculose pulmonar. Era. aPolítica que o matava - poderíamos também dizer.

"Você Acha que Chegarei à Posteridade?"

"Você acha que chegarei à posteridade?" - perguntara Alencar,cer ta vez, a Alfredo de Taunay, numa dúvida angustiosa. Já então seencontrava ele no período de descrença e acabrunhamento que lheantecedera a morte. Desesperava-o, evidentemente, a idéia de que suaobra pudesse ficar esquecida e essa reputação, que tanto se esforçarapor construir, se apagasse bem depressa, sem deixar vestígios sensíveis.Vaidade, ambição, orgulho ... Tais as acusações que têm sido articu-

ladas freqüentemente contra Alencar. Atribui-se à sua vaidade umcaráter excepcional, quase monstruoso, como se sentimento idênticonão encontrássemos em quase todos os escritores. As queixas, os melin-dres e mesmo as cóleras do romancista seriam, em grande parte,conseqüência da luta que ele tratava com um meio onde a Literaturaainda não encontrava o devido lugar. Que sua ambição era grande, nãores ta a menor dúvida. Jornalista, romancista, poeta, jurista, professor,político, é difícil encontrar outro brasileiro na época que abarcassetão largo campo de atividade e revelasse tantas e tão diferentes aptidõesno século passado. Mas, se tinha a fibra de lutador, não possuía, certa-mente, a capacidade de resistir a um fracasso. E toda a tragédia dessaexistência parece vir do obstáculo irremovível que deitou por terra ohomem em triunfante e vertiginosa carreira. Trotski refere-se nas suasMemórias à tranqüilidade e à fortaleza de ânimo com que, logo depoisde apeado do poder, voltou aos trabalhos intelectuais. E aos amigosque procuravam ampará-lo, inquietos por saberem como poderia ele,dali em diante, suportar o ost racismo pol ít ico, respondia: "Mas vocêsignoram que sou um escritor, que encontro entre os livros o meu climapróprio, e semelhante transição nada representa para mim?" (cito dememória). Intelectual cem por cento muito mais do que Trotski, oromancista de Iracema não possuía, entretanto, um temperamentocapaz de resistir ao golpe, sem fraquejar. Voltou para a mesa de tra-balho, sim, mas voltou definitivamente combalido! Já agora, a dúvida

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cruel assalta-o em todo sentido. O homem derrotado na Política receiaínm bém a derrota na Literatura.

"Você acha que chegarei à posteridade?"As gerações de hoje responderão pela palavra sutil de Augusto

Mcyer: "Por que motivo, pois, não poderá ser o nosso mundo interiorlima espécie de Mil e Uma Noites, um romance de todos os romances?Il por que razão não podemos considerar o romancista a principalp .rsonagem da sua obra? Assim debatia comigo ao reler o impetuosoAlencar, Ou melhor, ao ver: a sua obra entra pelos olhos como umfilme, ela é, sobretudo, sugestão visual, sucessão de quadros vivos eousados, com vigorosa concentração de luz sobre os episódios princi-pais e, de vez em quando, o emprego do estratagema oportuno. Quesoberano desprezo da verossimilhança! Que insolência admirável noS iu vá como for, em que o poder de inventiva leva tudo de arrasto e ap esia tudo encobre!" I

Eis o segredo da durabilidade dessa obra. Alencar deu-nos ump uco daquilo que poderíamos chamar "as mil e uma noites" brasi-leiras. Das histórias maravilhosas da infância, passamos, na adoles-

.ência e na juventude, para os seus romances; e depois, retornar a eles,sempre ir em busca das ilusões perdidas, num doce movimento de

recuperação sentimental. Os es trangeiros nunca poderão julgá-Io nemsenti-lo da mesma forma, porque lhes fal ta a aderência lírica, mercê daqual o romancista nos acompanha pela existência afora, como umvelho companheiro de colégio. De Dickens já se disse que não criouseres humanos, criou uma mitologia. Coisa semelhante poderíamosdizer do autor dO Sertanejo, nós que o sentimos de forma muitoparticular. Peri, Ceci, Arnaldo, Dona Flor , Alina, Estácio, Cristóvão,Inezita ... que galer ia infindável de seres mitológ icos, em quem acredita-mos, a quem amamos e com quem já trocamos confidências algum dia!Podem ser inverossímeis e absurdos. Pouco importa. Como se explica alinguagem civilizada de Peri para com Ceci? De que maneira Arnaldoconsegue viver sozinho pelos campos, dormindo nos ga lhos de árvores eadorando Dona Flor tal um herói de romance de Cavalaria? E essessentimentos de nobreza e altaneria que o escritor empresta aos índios?Não cogitemos disso. Ler Alencar é para nós um estado de alma: acostureirinha tem O Guarani na sua bolsa; o ginasiano devora As

Minas de Prata nos intervalos do estudo; aos quarenta anos, calei-

(1) "De um Leitor de Romances - Alencar", no número da Revista do Brasil

dedicado ao romance brasileiro, maio de 1941.

' .

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176 OBRAS REUNIDAS DE BRITO BROCA

nado s de exp eriên cia, aco mp anha mos a inda com int eress e a s p roez as

mirabolantes de Arnaldo; e num velho lar brasileiro é s empre f ác il

encontrar, num fundo de gaveta, alguma brochura amarelada e já

treslida do romancista ...

Rio, fevereiro de 1951.

Coelho Netto, Romancista

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CIP-Brasil

Broca, Brito, 1904-1961.B881e Ensaios da mão canhestra : Cervantes, Goethe, Dostoievski, Alencar,

Coelho Netto, Pompéia / Bri to Broca ; prefác io de Antonio Cand ido ;[coordenação de Alexandre Eulalio]. - São Paulo : Polis; Brasllia :INL,1981.

(Coleção estética: Série obras reunidas de Brito Broca; v.lt)

1. Ensaios brasileiros 2. Literatura brasileira - Hist6ria e crí tica3. Literatura - Hist6ria e crítica I. Cândido, Antônio, 1918-11. Eulâlio,Alexandre, 1932-m. Instituto Nacional do Livro. IV. Título.

CCF/CBLlSP-81-lt35

CDD:869.945:809:869.909

CDU:869:<X81)-4

Indices para catálogo sistemático (CDD):1. Ensaios: Século 20: Literatura brasileira 869.9452. Literatura: Hist6ria e crítica 8093. Literatura brasileira: Hist6ria e critica 869.9094. Século 20: Ensaios: Literatura brasileira 869.945

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Ensaios da Mão Canhestra