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I A lessandro Rocha um novo lugar para a linguagem Vida ACADÊMICA

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  • IAlessandro Rocha

    um novo lugar para a linguagem

    VidaA C A D M I C A

  • Teologia sistemtica no horizonte ps-moderno

  • A lessa n d r o R o c h a

    Teologia sistemtica no horizonte ps-modernoum novo lugar para a linguagem teolgica

    Vida

  • If./Vida

    2007, de Alessandro Rodrigues Rocha

    Todos os direitos em lngua portuguesa reservados por Editora Vida

    E d i t o r a V i d a

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    Todas as citaes bblicas foram extradas da Nova Verso Internacional (NV1),2001, publicada por Editora Vida, salvo indicao em contrrio.

    Coordenao editorial: Snia Freire Lula AlmeidaEdio: Judson CantoReviso: risGardinoDiagramao: Set-up TimeCapa: Marcelo Moscheta

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    R ocha, A lessandrp R odriguesTeolog ia sistem tica n o horizonte p s-m o d ern o : um novo lugar para a lin gu agem teo lg ica / A lessan d ro R od rigu es R ocha. S o P au lo : E d ito ra

    V id a , 2 0 0 7 .

    Bibliografia.I S B N 9 7 8 -8 5 -7 3 6 7 -9 7 4 -8

    1. L in guagem - F ilosofia 2 . T eolog ia - M eto d o lo g ia 3 . T eolog ia sistem tica 1. T tu lo .

    C D D -2 3 0 .0 1

    ndice para catlogo sistemtico

    1. T eolog ia sistem tica : F ilosofia e teoria : C ristian ism o 230 .01

  • A Adriana, que me acompanhou de perto nas

    dores e alegrias da pesquisa que resultou nesta obra.

  • AClemir Fernandes, Douglas Conceio, Eduardo Rosa Pedreira, Elcio SantAnna,

    Haroldo Reimer, Lauro Bayard, Luiz Longuini N eto, M anoel M oraes, M aria Eduarda, Marlene Gorni (Geni), O lga SantAnna,

    Renata Portela.

  • 4 C o n c l u s o

    Glossrio

    Bibliografia

  • Prefcio

    Todo professor, como qualquer outro profissional, tem sonhos

    e ideais! Como professor de teologia, tenho os meus. Um deles

    no ser mero transmissor de contedo, mas encontrar alunos que,

    por meio de um dilogo profundo, permitam que as aulas deixem

    de ser monlogos chatssimos, para se transformar em rias e cria

    tivas conversaes teolgicas. Acontece que, em razo do empo

    brecimento da reflexo teolgica mais slida no mbito das nossas

    igrejas locais e subseqentemente dos nossos seminrios, vai fi

    cando cada vez mais raro encontrar alunos assim (e professores

    tambm!).

    Alessandro uma feliz exceo que infelizmente confirma a regra! Trata-se de algum com quem se pode dialogar, pela rique

    za de contedo, seriedade acadmica, brilhantismo de idias e

    abertura de reflexes. Com a ajuda dele, algumas das aulas trans-

    formaram-se em ricos colquios que me fizeram descer do pedes

    tal de professor e me colocar como um igual, um companheiro ao

    lado de outro na construo de um saber teolgico mais slido,

    porm mais arejado.O texto que o leitor tem as mos o resultado de sua disserta

    o de mestrado, da qual tive a honra de ser seu orientador. No

    pode ser lido de uma sentada; ao contrrio, em virtude de seu

    pensamento tentacular, de sua linguagem apurada, precisamos

    ler e reler alguns pargrafos para captar seu significado. Nem por

    11

  • isso um texto obscuro, hermtico, compreendido apenas pelos

    iniciados. Ao contrrio, quando vamos chegando ao seu mago e

    compreendendo sua proposta, ento vai-se descortinando diante

    de ns um novo caminho.

    O que aqui se chama de novo caminho a percepo do autor

    de que a nossa Teologia Sistemtica tem produzido um discurso

    de uma s voz (univocidade), desconsiderando as inmeras vozes

    que nascem dos diferentes contextos dentro dos quais a vida acon

    tece e a teologia tambm. N a tentativa de tornar a f crist mais

    inteligvel ao mundo greco-romano, os primeiros esforos teolgicos dentro do cristianismo fizeram uso da metafsica grega, ele

    mento que apontado pelo autor, como responsvel por esta tendncia univocizante e universalizante da Teologia Sistemtica.

    Com a opo radical pela metafsica, a teologia afastou-se radicalmente do outro plo da cultura grega, o mito, que nada mais era

    do que uma linguagem metafrica e que, por causa das suas imen

    sas possibilidades de interpretao, por natureza polissmica, car

    regada de muitas vozes. Usando a linguagem do autor, eu diria que a sublevao da metafsica na teologia sistemtica fez que ela se esquecesse de que a metfora por excelncia a linguagem do mis

    trio, mistrio pelo qual a teologia deve existir. Obviamente, essa

    univocidade trouxe para nossa maneira de fazer teologia um pro

    fundo empobrecimento, por ser seu mtodo um samba de uma nota s e, por isso, deixa de ecoar a riqueza infinita de outras

    notas que, quando harmonicamente unidas, sempre produzem belas e diferentes sinfonias.

    De posse dessa percepo, e no querendo ser refm de uma

    perspectiva somente crtica que descreve a doena sem preocupa

    o alguma de apontar remdios, o autor constri, com o brilhan

    tismo que lhe peculiar, uma proposta de superao dessa

    12

  • univocidade da teologia sistemtica. Revelar neste prefcio que

    proposta essa seria como contar ao leitor o final do filme. Este um prazer que deixo reservado a todos os que mergulharem com a ateno devida neste texto e, ento, puderem como eu ter o prazer de dialogar com Alessandro!

    E d u a r d o R o s a P e d re ir a Doutor em teologia pela PUC-R] e professor de tica corporativa

    na Fundao Getlio Vargas. E pastor da Comunidade Presbiteriana da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro.

    13

  • Introduo

    Este estudo sobre a teologia sistemtica manualista e seu discurso univocizante tem como ponto de partida a filosofia, passa pela fenomenologia da religio e pela antropologia, e visa proposio de uma abordagem que abrigue em seu interior a multiplicidade dos locais hermenuticos.

    Nossa preocupao fundamental foi a compreenso da importncia das mediaes culturais (v. Glossrio, mediao culturai) no discurso teolgico, sobretudo do ponto de vista dogmtico. Para esse fim, valemo-nos do suporte terico da filosofia, da antropologia e da fenomenologia numa dupla tarefa: evidenciar a tendncia universalizante (v. Glossrio, abordagem totalizante-universalizante) da teologia sistemtica como herana das tradies metafsicas e propor, em contraposio a essa tendncia, uma abordagem teolgica que contemple as vivncias regionais da f, em suas inmeras possibilidades pedaggicas valorizando sobretudo a multiplicidade da linguagem metafrica como viabilizadora da autonomia dos saberes teolgicos locais.

    Por percebermos que a teologia sistemtica manualista (v. Glossrio, manualstica) vive um momento de esgotamento de sentido, em que a f crist se restringe repetio dogmtica de reflexes histrico-sociais do passado, vimos a necessidade de abordar criticamente a gestao dos mtodos e situ-los como construtos sociais. O resultado desse labor foi, em ltima instncia, este livro, que pode vir a oxigenar a disciplina, possibilitando aborda

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  • gens originais dos temas da f que contemplem os novos sujeitos

    histricos (v. Glossrio, sujeito histrico).As reflexes aqui contidas justificam-se tambm socialmente,

    considerando-se a distncia existente entre os postulados da teo

    logia sistemtica manualista e as questes vivenciadas pelo povo

    de Deus em sua caminhada de f. Os grandes temas da f crista

    no comunicam sentido existencial, passando a ser seu estudo

    to-somente um exerccio apologtico de ilustrao. Nesse senti

    do, a teologia perde seu carter dialtico profundo e sua dimen

    so encarnacional.Nas tentativa de reabilitar os saberes locais, buscamos mini

    mizar a distncia entre a teologia e os cristos e, o mais importan

    te, reabilitar o terreno da existncia cotidiana como elemento e

    ponto de partida para o fazer teolgico. Isso porque constatamos

    ser o sistema manualista (e seus mtodos) inadequado em relao

    s questes prprias das realidades locais, fato evidenciado tam

    bm na docncia teolgica e na catequese. Em suma, propomo-

    nos a dar respostas a perguntas que no esto sendo feitas .Toda esta obra baseia-se na seguinte questo central: Como se

    deu a formao do discurso de tendncia universalizante utiliza

    do pela teologia sistemtica na abordagem dos temas da f cris

    t? . E, com a resposta encontrada, procuramos desenvolver uma

    abordagem crtica que permita sua superao.Em decorrncia do problema central, surgiram indagaes

    pertinentes: Como verificar e compreender o processo que le

    vou a comunidade crist antiga a privilegiar o uso da metafsica

    em detrimento da metfora na comunicao dos temas da f? ;

    Qual o resultado sobretudo metodolgico desse processo para o discurso teolgico dogmtico-sistemtico e como

    mensurar essa contribuio para a teologia?; Como desenvol

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  • ver uma possvel crtica a procedimentos metodolgicos que universalizam um local (histrico-social) em detrimento de ou

    tros e quais contribuies se podem receber dos aportes tericos assumidos neste estudo?. Para responder a isso, apoiamo-nos em

    dois argumentos:

    1) A formao do discurso teolgico dogmtico deve filosofia grega os elementos fundamentais de sua elaborao metodolgica.

    2) A filosofia grega, contrapondo-se mentalidade escorada em mitos, que acentuava a equivocidade (v. Glossrio) hermenutica e valorizava a metfora como forma adequada de expressar as realidades que escapam ao cotidiano, esta- beleceu-se sobre a necessidade de uma afirmao da univocidade (v. Glossrio) da verdade.

    O unvoco, porm, s poderia ser afirmado com base em uma fonte fidedigna que transcendesse as realidades culturais (que so equvocas). Somente dessa forma seria possvel afirmar uma resoluo de abrangncia universal. E a fonte fidedigna que a filosofia grega elaborou para afirmar a univocidade universal foi a metafsica.

    Dessa hiptese central, surgiram ainda outras, de carter complementar. Primeira, ao tomar dessa filosofia (ou seja, da mediao cultural v. Glossrio) os elementos para a comunicao de sua experincia de f, transformando-a em discurso sistemtico, a teologia percorreu o mesmo caminho. Abandonando a equivocidade e a metfora, aproximou-se gradativamente da univocidade e da metafsica. Segunda, como resultado desse processo temos a dogmatizao dos temas da f, ou seja, a ascenso de compreen- ses elaboradas na cultura ao status de verdades ltimas e fundamentais.

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  • Diante desse discurso teolgico, que potencializa, com base na metafsica, uma mediao cultural, cristalizando-a e transforman

    do-a em norma de alcance e vigncia universais, imperioso que se afirme o distanciamento da teologia das vivncias histricas e

    culturais. Isso feito na afirmao das mediaes culturais como fator determinante para novas abordagens metodolgicas e exigiu a transferncia da elaborao do mtodo do locus (v. Glossrio) metafsico para o mago dos processos culturais.

    Finalmente, como resposta condio univocizante em que se encontra a teologia sistemtica manualista, causada pela cristali

    zao de uma mediao cultural normatizante, preciso afirmar o local como princpio de uma nova abordagem metodolgica. Assim, pudemos desenvolver o tema principal em trs captulos.

    O primeiro captulo, de carter descritivo, versa sobre o processo de sublevao da metafsica (v. Glossrio) em detrimento da metfora na comunicao dos temas da f crist . Para evidenciar esse processo, percorremos a seguinte trajetria:

    a) O caminho da univocidade: o surgimento da metafsica na filosofia grega

    Herclito e Parmnides como possibilidades na construo de uma teoria do conhecimento

    Afirmao de uma possibilidade: a metafsica em Plato e Aristteles

    b) Da metfora metafsica: o caminho da afirmao da univocidade na teologia crist

    A metfora no horizonte das vivncias e da comunicao da f

    Aproximao do pensamento cristo filosofia grega

    O caminho da metafsica como instrumento sustentador da univocidade

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  • c) Abordagem metodolgica resultante da afirmao metafsica no interior da teologia dogmtico-sstemtica

    O segundo captulo, que articula descrio e proposio, trata

    da ascenso, potencializao e evocao: processo de gestao da univocidade universalizante.

    a) Aproximao ao ncleo do discurso teolgico

    A experincia de f e a necessidade/o desafio de cognosci- bilizao (v. Glossrio)

    Mediao cultural como locus metodolgico

    Discurso sistemtico como produto de uma reflexo sobrea experincia de f

    b) Abordagem totalizante-universalizante (v. Glossrio) como cristalizao de uma mediao cultural

    Desistoricizao (v. Glossrio) do discurso teolgico

    Mecanismos de controle do discurso teolgico

    No ltimo captulo, buscamos a elaborao de uma abordagem metodolgica que d conta dos resultados obtidos. Assim, propomos uma afirmao do local como princpio de uma nova abordagem metodolgica em teologia sistemtica. O caminho percorrido para a proposio dessa abordagem metodolgica foi o seguinte:

    a) A morte de Deus como ponto de partida para a libertao da metfora

    Nietzsche, Deus e a metafsica

    Vattimo e a libertao da metfora

    b) O local como locus metodolgico

    Reabilitao da mediao cultural ou: reistoricizao (v. Glossrio) do discurso teolgico

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  • Contribuies de Geertz com base em sua compreenso acerca do local como espao hermenutico de cultura

    c) Consideraes sobre a possibilidade de uma nova abordagem metodolgica para o discurso teolgico sistemtico

    Desse modo, partindo da sensao incmoda da inadequao do discurso sistemtico da manualstica protestante s realidades do local , apresentamos uma proposio metodolgica (ainda

    que embrionria), cujo propsito reabilitar a multiplicidade discursiva das comunidades locais em suas mediaes culturais. Para isso, convidamos o leitor a trilhar o caminho que conduz a uma terra comum, porm desconhecida, que a prpria realida

    de, a prpria cultura, a prpria f ;,em suma, aos elementos que

    possibilitam a existncia da prpria teologia.

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  • 1Processo de sublevaao da metafsica em detrimento da metfora na comunicao dos temas da f crist

    Tentar seguir radicalm ente a lgica no-vitim ria e

    antimetafsica da revelao crist significa permanecer pura e

    simplesmente sem limites e sem orientaes racionais? Talvez

    sim, poderamos afirmar [...] porque confiamos na certeza das

    evidncias metafsicas mais do que na interpretao que a co

    munidade dos crentes e cada crente em sua prpria liberda

    de fornece da palavra divina em relao ao mutvel porvir

    da histria? As respostas a esta pergunta podem ser apenas

    duas: ou porque acreditamos que Deus imutvel, mas, en

    to, ele o Deus da metafsica ao qual seria difcil atribuirmos

    a criao do mundo no tempo, e, ainda menos, a criao de

    seres livres por amor, ou porque as evidncias metafsicas es

    to em reparo de qualquer eventualidade da liberdade, coloca

    das todas nas mos da autoridade que sua depositria para

    sempre, e que, alis, chamada a imp-las mesmo quando a

    livre busca descobre a sua insubsistncia. Estas duas respostas

    no so alternativas; em vez disso, na histria antiga e recente

    da Igreja, elas se entrelaam em um modo difcil de ser des-

    trinado. Por isto, tambm, a sua prevalncia, ainda to maci

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  • a no nosso presente, no pode ser atribuda de forma simplista

    astcia perversa dos clrigos. O que no quer dizer, porm,

    que no devamos preparar continuamente a sua superao,

    ainda que apenas na forma da Verwindung, com um esforo

    de crtica radical.

    V a t t im o , Depois da cristandade, p. 149-50.

    O que propomos no presente captulo percorrer o itinerrio

    da sublevao da metafsica (v. Glossrio) no mbito da teologia crist e na construo de seu discurso, apontando o gradativo abando

    no da metfora como forma adequada de comunicar os temas da f.

    Para tanto, indispensvel conhecer o desenvolvimento da

    metafsica na cultura grega, sobretudo pelo fato de que a teologia crist refez esse mesmo caminho ao aproximar-se do mun

    do greco-romano, na tentativa de tornar compreensvel sua

    mensagem.O que se pretende com a indicao de um itinerrio seme

    lhante na construo desses discursos filosficos e teolgicos apontar as conseqncias imediatas na formulao de uma teoria do conhecimento subjacente a eles. Caracterstica fundamental dessa teoria do conhecimento a afirmao da univocidade (v. Glossrio) que, alm de sustentar a metafsica, assenta os fun

    damentos da lgica e seu princpio da no-contradio.1O itinerrio da filosofia grega compartilhado pela teologia crist

    produziu elementos nos mbitos do contedo e do mtodo. De um lado, acham-se os temas incorporados sincreticamente pela

    teologia; de outro, as prprias tcnicas de pesquisa que possibilitam determinados temas.2

    1 Urbano ZlLLES, Teoria do conhecimento, p. 43-61.2 Nicola A bbagnano, Dicionrio de filosofia, p. 668.

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  • Neste captulo objetivamos a discusso do mtodo.3 funda

    mental, portanto, rastrear o itinerrio da metafsica, que estruturou

    o discurso teolgico-cristo desde seus primeiros passos, em Parmnides, at sua construo ltima, em Aristteles; das pri

    meiras aproximaes de Clemente de Alexandria at Toms de Aquino.4 Esse itinerrio , a um s tempo, o da afirmao da

    metafsica e o da negao da metfora; o do abandono da polissemia

    pela afirmao da univocidade.

    O caminho da univocidade: o surgimento da metafsica

    na filosofia grega

    A univocidade como forma de linguagem para expressar a rea

    lidade no o tronco da existncia do discurso, mas um ramo que

    parte de outro tronco, polissmico e, portanto, mais voltado

    equivocidade (v. Glossrio): o mito.5Galimberti estabelece a diferena entre o mito e o mtodo cien

    tfico que advm da filosofia, indicando o mito como um cami

    nho com as seguintes peculiaridades:

    Por isso necessrio seguir um caminho, mas como no se

    indica o lugar a que se deve chegar, no se pode entender o

    caminho como simples meio para alcanar a meta que deixa o

    3 No s no primeiro captulo como em todo o texto, ns nos deteremos, sempre que possvel, na influncia metodolgica da metafsica grega sobre a teologia crist. Com isso, foca-se o presente trabalho no mtodo e deixa-se a discusso dos contedos para etapa posterior ou para outras leituras.

    4 Aniceto MOLINARO, Metafsica: curso sistemtico, p. 22,3.5 Nesse caso, a realidade no sustentada metafisicamente, mas metaforica

    mente. Os discursos estruturantes no dependem tanto de sua capacidade uniformizadora, mas antes de sua capacidade de articular a multiplicidade. A metfora torna-se aqui a mais relevante forma de produo de discurso.

    23

  • caminho para trs. Este o motivo por que no h um mtodo

    para ler os mitos. Deixando para trs ironia, maiutica, epoch,

    dvida, numa palavra os mtodos do Ocidente, o mito inaugu

    ra aquele encontrar-se o caminho, aquele entreter-se no cami

    nho, sem possibilidade de que o resultado possa se oferecer

    como meta alcanada.6

    O mito, portanto, na perspectiva desse autor, consiste numa

    via que afirma a caminhada mais que a meta, a vivncia mais que a definio, a existncia mais que a essncia, a possibilidade desestruturadora da equivocidade mais que as certezas produzidas pela univocidade. Para ele, o mito instaurador de realidades,

    e no definidor delas.O mito, com efeito, nunca este ou aquele, no sentido

    em que a lgica conecta um predicado a um sujeito. A expres

    so , atribuda ao mito, tem sempre e apenas um significa

    do transitivo. S se pde dizer que o mito isto ou aquilo no

    sentido em que a aventua, a faz acontecer. A impossibilidade

    de definir o mito com a lgica da razo testemunha a impos

    sibilidade lingstica intimamente ligada incapacidade da ra

    zo de falar sem suprimir a fonte mesma da linguagem, pelo

    que a relao com a linguagem se torna relao privilegiada,

    em que o mito vem ou no luz como fato lingstico, en

    quanto ocasiona ou no vocbulos, exprime ou no culturas,

    institui ou no linguagens.7

    Nesse sentido, necessrio relacionar-se com o mito no como instrumento para desvendar a realidade, mas como palavra que fala palavra grvida de sentido existencial.

    6 Umberto G alimberti, Rastros do sagrado, p. 48-9.7 Idem, ibidem, p. 48.

    24

  • contra essa impossibilidade lgica que o mito se instaura e

    que a filosofia se apresenta como discurso acerca da verdade.8 Como afirma Zilles: At certo ponto se pode dizer que, na filosofia, se

    expressa a autoconscincia de determinada poca. Assim, filosofias expressam o ser homem em sua histria .9

    A autoconscincia expressa na filosofia grega resultado de um

    processo histrico-poltico-cultural que se foi firmando sobre a necessidade de emancipar esses elementos do universo mtico, o

    qual estruturava uma ordem social que gradativamente foi substituda. Como diz Vernant:

    Advento da plis, nascimento da filosofia: entre as duas

    ordens de fenmenos os vnculos so demasiado estreitos para

    que o pensamento racional no aparea, em suas origens,

    solidrio das estruturas sociais e mentais prprias da cidade

    grega.10

    A filosofia grega como discurso acerca da realidade fruto de

    uma cultura, sem a qual no pode ser eficazmente compreendida. Para alm da pesquisa sobre o deslocamento do mito em direo filosofia (que atende aqui ao propsito de percepo de seus de

    terminantes culturais), importa indicar a complexidade desse processo, que a assuno das normas produtoras de discurso

    a uma esfera atemporal, legitimadora das falas temporais uma fonte de autoridade para as pretenses do discurso unvoco.

    8 H uma discusso entre os historiadores da filosofia se esta nasceu de uma transformao gradual dos mitos gregos ou de uma ruptura radical (Marilena Chau, Introduo histria da filosofia, v. 1; Danilo M arcondes, Introduo histria da filosofia).

    5 Teoria do conhecimento, p. 45.10 As origens do pensamento grego, p. 141.

    25

  • Importa ento compreender o surgimento da metafsica no mbi

    to da filosofia grega como caminho de afirmao da univocidade.

    Para legitimar a possibilidade de um discurso unvoco em

    contraposio a outro, de carter equvoco, prprio da potica

    mtica, a filosofia passa a afirmar a unidade como essencial a toda

    a existncia. Essa unidade evocada como princpio universal ca

    paz de abarcar toda a multiplicidade. Dessa forma, dizer sobre a

    unidade , ao mesmo tempo, dizer sobre a multiplicidade. O

    mltiplo dito no por ele mesmo, mas por uma pretensa essncia

    que o antecede e, em ltima instncia, institui-o.

    Inaugura-se dessa forma, na dimenso da racionalidade, a

    dicotomia entre essncia e existncia. A existncia, num primeiro

    momento, destituda de um ncleo em si mesma e, posteriormen

    te, reduzida sombra de uma instncia superior. E exatamente

    a metafsica que prope essa abordagem, a qual posteriormente

    granjearia para si o status de filosofia primeira.

    A metafsica no considera o ente enquanto este ou aquele

    ente, no o ente na sua diferena, variedade, diversidade, nos

    seus setores ou regies ou categorias determinadas e particula

    res; ela estuda o ente sob este nico aspecto ou ngulo, segundo

    o qual o ente simplesmente ou ente. Sob este aspecto a

    metafsica estuda o ente precisamente naquilo que o determina

    como ente, naquilo que faz com que o ente seja ente, naquilo

    que faz com que o ente se tome ente. Assim fazendo, a metafsica

    estuda o ser do ente: o ser aquilo pelo qual o ente ente.11

    O ser da existncia encontra-se fora dela. Nesse sentido, a existncia entificada (v. Glossrio, existncia entificada), estando assim

    11 Aniceto M o lin a ro , Metafsica, p. 7.

    26

  • sua compreenso ltima alienada a ma essncia que se identifica com o prprio ser. Dessa forma, a metafsica cincia da totalidade do ente visto a partir do ser .12 E ainda: Neste caso sendo a cincia da totalidade do ente, a metafsica a cincia total: cincia da totalidade do ser e a totalidade da cincia.13

    A filosofia grega, distanciando-se da polissemia geradora de plurivocidade (v. Glossrio), encontra na metafsica um instrumento adequado, capaz de sustentar um discurso unvoco que, por ser unvoco, pode ser referido como universal. Uma vez potencializado e legitimado numa esfera de autoridade a-histrica, ele evocado como fundamento ltimo da existncia, ou seja, como sua prpria essncia. Nesse sentido, discurso e realidade so identificados como parte de uma mesma coisa. O discurso a mesma realidade que anuncia. Por isso, ele acaba identificando-se com a prpria essncia da existncia que inaugura.

    Desse modo, a investigao metafsica conduzida pela

    preocupao de descobrir as razes supremas da realidade.

    Quem faz metafsica perscruta o mistrio do ser dos entes

    com a finalidade de descobrir o que lhes d consistncia e os

    preenche com a realidade.14

    A metafsica est para a filosofia como um mtodo de com

    preenso da verdade. Essa verdade alcanada pela filosofia com base na metafsica absoluta, porque se identifica com o ser (funda

    mento ltimo da existncia). Ser e verdade so a mesma coisa, e a metafsica, enquanto cincia do ser como tal, cincia da verda

    12 Aniceto M olinaro, Metafsica, p. 7.13 Idem, ibidem, p. 8.14 Mareio Bolda da Silva, Metafsica e assombro: curso de ontologia, p. 30.

    2 7

  • de como tal .15 Para completar seu mtodo de produo de co

    nhecimento de carter unvoco, a filosofia, alm da metafsica, gerou a lgica, que marcaria a impossibilidade da contradio no

    mago de uma proposio que se pretendesse verdadeira.Embora tenha sido essa a caminhada feita pela filosofia em seu

    perodo clssico, no era ela a nica possibilidade. A assuno da

    metafsica (e tambm da lgica) como mtodo de produo de conhecimento na filosofia grega deu-se com base na afirmao do pensamento de Parmnides em detrimento do de Herclito. Importa agora evidenciar a compreenso da realidade que subjaz ao pensamento desses filsofos, pois, com base nessa compreenso, torna-se possvel entender a construo da teoria do conhecimento em cada um deles.

    Herclito e Parmnides como possibilidade na construo de uma teoria do conhecimento

    Dentro da filosofia pr-socrtica, salienta-se a filosofia de Herclito e Parmnides. Trata-se de duas construes opostas, situadas em dois pontos geogrficos extremos: feso, na Grcia asitica, e Elia, no Sul da Itlia. Essas duas localidades tm em comum o ponto de partida, herdado dos filsofos jnios: Existe um princpio nico que explique o mundo em seus diversos e mltiplos aspectos? . De feso, Herclito apregoa que os contrrios formam uma unidade; de Elia, Parmnides afirma que os contrrios jamais podem coexistir.16

    Tanto Herclito quanto Parmnides buscam afirmar uma teoria do conhecimento que possibilite ordenar a vida. A diferena fundamental entre os dois o ponto de partida para essa tentativa

    15 Aniceto M olinaro, Lxico de metafsica, p. 132.16 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 55.

    28

  • de ordenao e afirmao da verdade. Herclito parte da experin

    cia da existncia por assim dizer , e Parmnides busca afirmar a verdade das coisas no plano metafsico, naquele prprio da

    essncia.

    A doutrina de Herclito pode se resumir nos princpios seguintes: 1) O elemento primordial o vir-a-ser. Tudo se acha em perptuo fluxo, a realidade est sujeita a um vir-a-ser contnuo. O nico princpio estvel da realidade a lei universal do prprio devir [...] 2) O vir-a-ser anttese, luta, revezar-se de vida e de morte [...] 3) A unidade do real est na lei dialtica, racional, do vir-a-ser; a causa da diferenciao das coisas est no devir.17

    O devir, mobilismo como princpio fundador, o centro do

    pensamento de Herclito. Os fragmentos de sua obra possibili

    tam essa compreenso. O fragmento 8 registra: Tudo se faz por

    contraste, da luta dos contrrios nasce a mais bela harmonia.18

    O 49A apresenta: Descemos e no descemos para dentro dos

    mesmos rios; somos e no somos .19 O 91 expe: No se pode

    entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e se junta novamen

    te, aproxima-se e se distancia.20 E o 53 acrescenta: A guerra (gr.

    polemos) o pai de todas as coisas .21Em Herclito, deve-se entender o devir desde seu ponto de

    partida cognoscitivo. Herclito parte do dado da experincia: o

    fluxo incessante das coisas e do sujeito cognoscente. Ao fluxo da

    17 Umberto Padovani & Luis C astagnola, Histria da filosofia, p. 101.18 Danilo M arcondes, Textos bsicos de filosofia,'p. 15.19 Ibidem, p. 16.20 Ibidem, p. 17.21 Ibidem, p. 16.

    29

  • experincia Herclito ope a exigncia da razo e a necessidade

    religiosa da unidade permanente. A f e a autoconscincia, segun

    do ele, permitem descobrir, no homem e nas coisas, a razo eter

    na, harmonia oculta e identidade dos contrrios.22Partindo da experincia (Prefiro tudo aquilo que se pode

    ver, ouvir, e entender.23), Herclito afirma poder encontrar no homem e nas coisas a verdade. Essa verdade realiza-se no devir,

    ou melhor, faz-se e refaz-se no devir, no espao prprio e concre

    to da existncia. Uma teoria do conhecimento advinda do pensamento de Herclito consagra a concretude da vida como espao nico da afirmao e compreenso da verdade, no como coisa acabada, mas como um processo (devir contnuo), por assim

    dizer, equvoco.Parmnides, ao contrrio de Herclito, tenta eliminar tudo o

    que seja varivel e contraditrio. Ele contrape os conceitos de opinio (doxa) e verdade (gr. althei). Descarta o conhecimento por meio dos sentidos como meras opinies e opta pela certeza

    que a razo produz por meios lgicos e dedutivos.Sua obra principal, o poema Sobre a natureza, expe, no frag

    mento 8, essa separao ao propor a existncia de dois caminhos, o da opinio e o da verdade. A deciso sobre este ponto recai sobre a seguinte afirmativa: ou ou no . Decidida est, portanto, a necessidade de abandonar o primeiro caminho, impensvel e inominvel (no o caminho da verdade); o outro, ao contrrio,

    presena e verdade.24Analisando a contraposio de opinio e verdade no poema de

    Parmnides, Chau comenta:

    22 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 56.23 Danilo Marcondes, Textos bsicos de filosofia.24 Idem, ibidem, p. 13.

    30

  • sintomtico que o poema-fale em duas vias ou dois cami

    nhos que correspondem palavra inspirada (a verdade como

    no-esquecimento do que foi contemplado no invisvel) e

    palavra leiga das assemblias (a verdade como deciso e opi

    nio compartilhada nas discusses pblicas). Altheia e doxaP

    O simples enunciado de dois caminhos revela uma tendncia afirmao das categorias de verdadeiro e falso. Uma delas ser to-somente o depositrio de todos os vcios que no se encontram na outra. Na teoria do conhecimento, advinda do pensamento de Parmnides, isso est amplamente evidenciado.

    E agora vou falar; e tu, escuta as palavras e guarda-as bem pois vou dizer-te dos nicos caminhos de investigao concebveis. O primeiro diz que o ser e que o no-ser no ; este o caminho da convico, pois conduz verdade. O segundo, que no , , e que o no-ser necessrio; esta via digo-te, imperscrutvel; pois no podes conhecer aquilo que no r isto impossvel , nem express-lo em palavras [...] afasta, portanto, o teu pensamento desta via de investigao, e nem te deixes arrastar a ela pela mltipla experincia do hbito.26

    A distino que Parmnides faz entre verdade e opinio, ser e no-ser, imobilismo e mobilismo aponta para a necessidade de afirmao de um nico aspecto, um nico caminho como correspondente realidade. Algumas questes, no entanto, impem-se a esse pensamento. Como afirmar o uno em meio ao mltiplo? Como falar de imobilismo num ambiente marcado pela mobilidade? Do ponto de vista do mtodo de produo de conhecimento, quais instrumentos podem ser utilizados nesse intento?

    25 Marilena C hau, Introduo histria da filosofia, p. 89.26 Danilo M arcondes, Textos bsicos de filosofia.

    31

  • O pensamento de Parmnides inaugura na filosofia grega um mtodo de conhecimento da verdade. Se esta no pode ser verificada na multiplicidade das interpretaes nem na mobilidade (aparncias) das coisas sensveis, necessrio busc-la em instncias outras, com instrumentos capazes de aferi-la em meio s opinies. Nesse sentido, Parmnides considerado o primeiro a formular os princpios da lgica e da metafsica.27

    Tanto a lgica (com seus princpios de identidade e no-con- tradio) quanto a metafsica (em sua identificao da verdade como no-esquecimento do contemplado no invisvel) permitem

    que Parmnides afirme a univocidade da verdade, a qual se funda

    no no interior da existncia, mas em outra dimenso, prpria da

    essncia. Para encontrar a verdade, o filsofo deve fixar-se no ser

    alm de toda multiplicidade.28

    O caminho da univocidade encontra na inaugurao da

    metafsica as condies necessrias sua afirmao. A metafsica

    passa a ser um instrumento de conservao da verdade nica que

    se estabelece na negao de toda multiplicidade. Dessa forma, o

    pensamento de Parmnides apresenta-se fundador. Molinaro afirma a respeito de Parmnides:

    Relativamente multiplicidade, todo outro diferente do ser

    deve ser negado: a planta outro diferente do ser, e assim por

    diante. Toda diferena, diversidade, variedade, enquanto ou

    tro diferente do ser, decai na negao, porque decai na anula

    o do ser, ou seja, no no-ser: afirmar a multiplicidade das

    coisas eqivale a afirmar que o no-ser . Se, portanto, o no-

    ser no pode ser e se a multiplicidade necessariamente, pelo

    27 Marilena C hau, Introduo histria da filosofia, p. 90-5.28 Aniceto M olinaro , Metafsica: curso sistemtico, p. 23.

    32

  • menos no plano do rigor lgico e lingstico, no ser foroso negar a multiplicidade: ela no passa de opinio, iluso.29

    A univocidade lgico-metafsica de Parmnides, para no dizer o ser (essncia), precisa negar a existncia. Multiplicidade, mudana, nascimento e perecimento so aparncias, iluses dos sentidos.30

    Tanto Herclito quanto Parmnides propem uma teoria do conhecimento. Ambos se apresentam com possibilidades filosofia. O pensamento de Parmnides, porm, sobretudo a lgica e a metafsica, ser aquele que a influenciar em seu perodo clssico.

    Afirmao de uma possibilidade: a metafsica em Plato e Aristteles

    Interessa neste momento no uma exposio exaustiva das obras de Plato e Aristteles, mas a afirmao do pensamento de Parmnides, principalmente a metafsica, no interior da filosofia grega clssica em seus dois principais representantes.31 Alm de trabalhar a continuidade de Parmnides, importa tambm evidenciar a teoria do conhecimento (mtodo) formulada por esses pensadores.

    Plato (428-347 a.C.), em sua teoria do conhecimento, aproxima num primeiro momento o pensamento de Herclito ao de Parmnides. Na metafsica platnica, h lugar para o ser esttico

    29 Idem, ibidem, p. 23.30 Marilena C hau, Convite filosofia, p. 212.31 Dada a extenso dos textos desses dois autores e de um interesse especfico

    deste trabalho, as citaes deste tpico sero, quase sempre, de comentaristas, e no dos prprios autores, para evitar transcries muito longas, que desvirtuariam nosso foco, tornando este texto, alm de enfadonho, extenso demais. Na Bibliografia, o leitor encontrar todas as obras pesquisadas.

    33

  • de Parmnides e para o mundo em devir de Herclito.32 Isso,

    contudo, no significa a assuno da existncia ao status de dignidade, mas a organizao da existncia e da essncia.

    Plato considerou que Herclito tinha razo no que se refe

    re ao mundo material e sensvel, mundo das imagens e das

    opinies. A matria, diz Plato, por essncia e natureza algo

    imperfeito, que no consegue manter a identidade das coisas

    [...] o mundo material ou de nossa experincia sensvel mutvel

    [...] e, por isso, dele s nos chegam as aparncias das coisas e

    sobre ele s podemos ter opinies contrrias e contraditrias.

    Por esse motivo, diz Plato, Parmnides est certo ao exigir que

    a filosofia deva abandonar esse mundo sensvel e ocupar-se com

    o mundo verdadeiro, invisvel aos sentidos e visvel apenas ao

    puro pensamento. O verdadeiro o Ser, uno, imutvel, idntico

    a si mesmo, eterno, imperecvel, puramente inteligvel.33

    Plato toma o pensamento de Herclito e Parmnides e arru-

    ma-os num edifcio de dois andares. Atentando para o erro de Parmnides em desconsiderar o devir, identificando-o com o no- ser,34 Plato afirma que o devir legtimo de ser considerado, porm prprio da dimenso da existncia em que as coisas so imperfeitas. As perfeies ou essncias, que Parmnides identifica com o ser, esto em outra dimenso da realidade, em outro mun

    do, numa dimenso superior.Essa proposio de dois mundos que Plato apresenta em seu

    dilogo, A Repblica, revela sua compreenso acerca da apreenso da verdade e como e onde ela possvel.

    32 Batista M o n d in , Curso de filosofia., p. 63, v. 1.33 Marilena C hau, Convite filosofia.34 Gabriel Garcia M orente, Fundamentos da filosofia, p. 220.

    34

  • O mundo das idias o mundo do ser, o objeto do conhecimento verdadeiro, universal e necessrio, isto , a sede da verdade [...] nosso mundo sublunar uma simples sombra do mundo das idias, ou seja, no tem ser, mera aparncia, ou seja, objeto de um conhecimento que no passa de doxa (opinio). Com a teoria das idias, Plato sustenta, pois, que o sensvel s se explica mediante o recurso ao supra-sensvel, o relativo mediante ao absoluto.35

    A verdade s possvel com base na essncia, nunca na existncia. A essncia forma que comunica sentido existncia. Mas como possvel entrar em contato com o mundo das idias para tomar delas a compreenso da verdade?

    Esse parece ser um problema para a demonstrao do mundo das idias (mundo inteligvel) e para uma relao epistemolgica que se possa ter com ele. Como o homem que se encontra preso no mundo das sombras (mundo sensvel) pode falar da existncia de uma dimenso que ele desconhece? Plato trabalha essa questo principalmente em dois de seus dilogos: Repblica (com o mito da caverna) e Mnon, nos quais desenvolve o argumento da reminiscncia ou anamnese.36 Temos Idias de verdade, de bondade, de igualdade, a Idia universal de homem, etc. Ora, estas Idias ns no tivemos da experincia; logo, o conhecimento atual recordao de uma intuio que se deu em uma outra vida.37

    35 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 71.36 Reminiscncia (ou anamnese) o mito platnico que diz que a alma imortal

    e, portanto, nasce e renasce muitas vezes, de tal modo que j viu tudo neste mundo e no outro, pelo que pode lembrar, em certas ocasies, o que j sabia. E como toda a natureza congnese e a alma aprendeu tudo, nada impede que quem se recorde de uma s coisa (que aquilo que se chama de aprender) encontre em si todo o resto, se tiver coragem e no se cansar na busca, j que buscar e aprender no so mais que reminiscncia (Mnon, p. 80-1).

    37 Batista M ondim, Curso de filosofia, p. 60.

    35

  • O necessrio , portanto, aprender a recordar. H no argu

    mento de Plato uma espcie de inatismo da verdade. A alma

    preexistia no mundo das idias, tendo-as contemplado. Por uma

    sentena condenatria, foi unida ao corpo no mundo das som

    bras. Como conseqncia dessa queda, a alma j no mais recorda

    as idias que contemplou, porm ainda as traz em si. O argumen

    to da reminiscncia garante a possibilidade do conhecimento da

    verdade por imagens ou simulacros.

    Se aprender recordar, a ocasio, para isso, o encontro

    com as coisas deste mundo. As quais so cpias das idias. No

    sistema de Plato, a doutrina da reminiscncia exerce trs fun

    es: a) fornece uma prova d pr-existncia, da espiritualidade

    e da imortalidade da alma; b) estabelece uma ponte entre a

    vida antecedente e a vida presente; c) d valor ao conhecimen

    to sensitivo, reconhecendo-lhe o mrito de despertar recorda

    es das idias.38

    Novamente, possvel perceber a aproximao que Plato promove entre o pensamento de Herclito e o de Parmnides. Os

    dois sistemas so valorizados hierarquicamente, produzindo uma

    teoria do conhecimento que parte das imagens para as idias, da

    existncia para as essncias, das opinies e crenas para a cincia.

    Marilena Chau, em Introduo histria da filosofia, reproduz sistematicamente a teoria do conhecimento de Plato, dividindo-a

    em duas partes: os objetos do conhecimento e os modos de co

    nhecimento aplicveis aos objetos.39

    38 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 74.39 P. 249-257, v. 1.

    36

  • Os objetivos do conhecimento

    M UNDO INTELIGVEL

    Bidos (do gr., formas, idias)

    Nosis (do gr., intuio intelectual): episteme

    Ta mathma (do gr., objetos matemticos)

    Dinoia (do gr., raciocnio dedutivo)

    Os modos do conhecimento

    M UNDO SENSVEL

    Za (do gr., coisas vivas e coisas visveis)

    Pistis (do gr., crena) e Dox (do lat., pinio)

    Eikones (do gr., imagens)

    Eikasia (do gr., imaginao, simulacros)

    Com base nessa sistematizao, possvel compreender como o conhecimento da verdade se d na filosofia platnica. De baixo para cima, os graus de conhecimento vo se tornando mais com

    plexos. Ao mundo sensvel das imagens, coisas vivas e visveis eqivalem os simulacros, as crenas e opinies acerca da verda

    de. Ao mundo inteligvel aplica-se o raciocnio dedutivo e a intuio intelectual como forma de apreenso da verdade em sua essncia. O mundo sensvel to-somente um simulacro do inteligvel. Aquele s legtimo como ponte para alcanar este.

    Dessa forma, Plato estabelece um paradigma na filosofia grega no que diz respeito teoria do conhecimento.40 Nesse

    paradigma, o mundo inteligvel a forma de toda existncia no

    mundo sensvel. A verdade s pode ser dita por meio das essn

    cias. A multiplicidade das coisas visveis ganham unidade em sua

    essncia. Assim, o mltiplo s pode ser dito com base em sua

    unidade, que se encontra fora dele. Todo conhecimento com esse

    40 Paradigma: modelo ou exemplo. Plato emprega essa palavra no primeiro sentido (Timeu, 29b, 48e) ao considerar paradigma o mundo dos seres eternos, do qual o mundo sensvel imagem (Nicola Abbagnano, Dicionrio de filosofia, p. 752).

    37

  • paradigma privilegia as essncias de tal forma que as identifica

    com o real. O real no o visvel, mas o invisvel. No o sensvel,

    mas o inteligvel. O realismo platnico , portanto, estritamente

    metafsico.

    Em Aristteles (384-322 a.C), a metafsica ganha sistematiza-

    o em seu nvel mais complexo. Envolvido na busca do verdadei

    ro, ele afirma ser a metafsica a cincia capaz de dizer o ser como

    ser. Na opinio dele, a metafsica :

    Uma cincia que investiga o ser como ser e os atributos que lhe so prprios em virtude de sua natureza. Ora, esta cincia diversa de todas as chamadas cincias particulares, pois nenhuma delas trata universalmente do ser como ser.

    Dividem-no, tomam uma parte e dessa estudam os atributos: o que fazem, por exemplo, as cincias matemticas. Mas, como estamos procurando os primeiros princpios e as causas supremas, evidentemente deve haver algo a que eles pertenam como atributos essenciais. Se, pois, andavam em busca desses mesmos princpios aqueles filsofos que pesquisaram os elementos das coisas existentes, necessrio que esses sejam elementos essenciais e no acidentais do ser. Portanto, do ser enquanto ser que tambm ns teremos de descobrir as primeiras causas.41

    Essa cincia (episteme) qual aspirava Aristteles em toda a sua obra expressa um saber fundado ,42 um saber ciente de que necessariamente sempre assim, j que conhece a razo daquilo que conhecido, seu fundamento ltimo, sua causa.

    41 Umberto Padovani & Luis C astagnola, Histria da filosofia, p. 125.42 Mareio Bolda da S ilva, Metafsica e assombro, p. 74.

    38

  • O prprio lugar da verdade 0 ser assim como . Nesse sen

    tido, a metafsica, como fdosofia primeira,43 ser impreterivel-

    mente uma filosofia do ser. Ela responde necessidade de

    conhecer o verdadeiro, radical necessidade de averiguar o por

    qu ltimo.

    O pensamento de Aristteles, no que diz respeito metafsica,

    no consiste numa ruptura com seus antecessores pr-socrticos,

    sobretudo Herclito e Parmnides, muito menos com Plato. H

    uma complexidade crescente da metafsica desde Parmnides at

    Aristteles. Assim como Plato, que havia aproximado Herclito e

    Parmnides e sistematizado a teoria desses filsofos em sua com

    preenso da realidade (mundos sensvel e inteligvel), Aristteles

    tambm o faz, porm observa que Plato, com seus mundos, ins

    taurava um dualismo entre essncia e existncia, que destinava

    toda a compreenso da verdade a uma instncia separada da

    inteleco humana.

    nesse sentido que o pensamento aristotlico atinge seu maior

    grau de complexidade: todo o edifcio metafsico que vinha sendo

    construdo de Parmnides a Plato, no sentido da afirmao da

    essncia como elemento fundador de toda a existncia, agora

    43 Poder-se-ia perguntar se a Filosofia Primeira universal ou se trata de um gnero, isto , de uma espcie de ser, pois nem mesmo as cincias matemticas so todas iguais a esse respeito tanto a Geometria [quanto a] Astronomia estudam uma espcie particular de ser, enquanto a Matemtica universal se aplica igualmente a todos. A isto respondemos que, se no existe substncia alm das que so formadas pela Natureza, a Fsica ser a cincia primeira; mas, se existe uma substncia imvel, a cincia que a estuda deve ser anterior, e essa ser a Filosofia Primeira, universal no sentido de ser a primeira. E a ela competir a considerao de ser enquanto ser tanto da sua essncia como dos atributos que lhe pertencem enquanto ser {Metafsica VI, 1026a, p. 25-30).

    39

  • introjetado no prprio ser humano. Essncia e existncia no habitam dimenses distintas nem longnquas: elas coexistem num

    mesmo espao . O dualismo externo de Plato internalizado

    com Aristteles. na coisa44 que esto, na compreenso de Aristteles, a existn

    cia e a essncia, que ele identifica como matria e forma. A matria o elemento de que as coisas da natureza, os animais, os homens,

    os artefatos so feitos .45 A matria tem como principal caracterstica o possuir virtualidades [...] possibilidades de transformao, isto , de mudana.46 J a forma o que se individualiza e determina uma matria, fazendo existir as coisas ou os seres particulares .47 A

    particularidade da forma ser aquilo que uma essncia .48Partindo dessa compreenso, o dualismo externo platnico s

    se diferencia do dualismo interno aristotlico no tocante ao lugar para onde se dirige a pergunta pelo ser se para fora ou para dentro das coisas. Permanece, contudo, o dualismo, assim como a hierarquizao da essncia (forma e existncia)/matria, na medida em que forma essncia necessria ou substncia das coisas que tm matria. Nesse sentido, que est presente em Aristteles, forma no s se ope matria, mas a pressupe.49

    matria e forma correspondem, na teoria do conhecimento de Aristteles, os conceitos de particular e universal (v. Glossrio). O particular/matria prprio da dimenso das sensaes e opinies, enquanto ao universal/forma corresponde a razo cientfica.

    44 Nicola A bbagnano , Dicionrio de filosofia, p.149-151. Coisa o objeto natural, tambm denominado corpo.

    45 Marilena C hau, Convite filosofia, p. 220.46 Idem, ibidem.47 Idem, ibidem.48 Idem, ibidem.49 Nicola A bbagnano , op. cit., p. 468.

    40

  • O conhecimento cientfico, a um s tempo, ope-se s sensaes, valorizando a razo. Matria, portanto, espao da opinio (doxa), enquanto forma digna de cincia (episteme).

    Assim como Parmnides valoriza o imobilismo em detrimen

    to do mobilismo, que Plato hierarquiza, elevando ao absoluto a essncia sobre a existncia, Aristteles elege como necessrio o universal em relao ao particular.

    Por universal, Aristteles entende o que pertence a todos e a cada um por si e porquanto tal. Portanto, o universal no s o que comum a todos, mas o que pertence a todos e a cada um por essncia. Por isso, quando Aristteles diz: No h cincia seno do necessrio, pode dizer igualmente: No h cincia seno do universal.50

    O ser que objeto da filosofia primeira de Aristteles (aquele que vem antes da fsica) a forma/ universal que d sentido matria/particular. Toda cincia que queira conhecer a verdade dever

    dirigir-se ao ser/forma/universal e no ao ente/matria/particular. Voltar-se ao universal e no ao particular permite, no que tange produo de conhecimento, dizer o discurso unvoco sobre a multiplicidade. Todo mltiplo, a particularidade, encontra sua unidade no universal, assim como todo ente encontra sua essncia no ser. Qualquer discurso que trilhe a senda da equivocidade, voltando-se ao particular, no cincia, apenas opinio.

    Em Aristteles, o caminho da univocidade sustentado pela elaborao da metafsica, iniciado em Parmnides, encontra-se em seu momento de maior sofisticao. A filosofia grega clssica encontra-se sistematizada. Embora haja uma tentativa de superao em

    50 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 84.

    41

  • cada uma dessas escolas, possvel afirmar um princpio comum a elas: a separao de essncia e existncia e a identificao da essncia como lugar prprio do ser. O que se diz de verdadeiro

    dito com base no ser.Sobre essa compreenso funda-se o conceito de cincia, capaz

    de conferir confiabilidade a um discurso. Essa cincia a metafsica,

    ento apresentada como paradigma na busca da verdade. Poste

    riormente, esse paradigma seria expandido para alm das linhas

    limtrofes da Grcia e atingiria outras terras, at mesmo aquelas

    que viam brotar a teologia crist.51

    Da metfora metafsica: o caminho da afirmao da univocidade na teologia crist

    Aps ter evidenciado o caminho da metafsica na filosofia grega clssica e sua contribuio para a afirmao de uma teoria do conhecimento sustentadora de univocidade, s alcanvel na dimenso da essncia e nunca na multiplicidade da existncia concreta, interessa neste momento a tarefa de evidenciar a similaridade do caminho trilhado pela teologia crist comparado ao grego.

    A filosofia grega clssica expandida no helenismo, somada sincreticamente a outras prticas filosficas e religiosas do mundo romano, constituiu o suporte cultural do discurso teolgico- cristo. No h determinismo cultural nessa teologia, e sim uma forte influncia, sobretudo na dimenso da teoria do conhecimento, que s possvel com a linguagem. A linguagem teolgica

    do tesmo cristo nasce do encontro da mensagem proftico-

    51 O paradigma metafsico, prprio da filosofia grega, seria expandido no perodo da filosofia chamado helenstico ou greco-romano, que durou do final do sculo III a.C. at o sculo IV d.C. Nesse longo perodo, a teologia dos padres da Igreja seria amplamente influenciada.

    4 2

  • evanglica da divina monarquia cm o mundo da cultura grega,

    especialmente com a filosofia do platonismo.52O encontro da mensagem evanglica com a cultura grega pre

    cisa ser compreendido, diferentemente das religies de iniciao com base no carter missionrio do cristianismo e de sua tendn

    cia apologtica.

    Ao encontrar o mundo grego, o cristianismo tinha diante de si a tarefa de demonstrar que o Deus revelado da aliana era tambm o Deus desconhecido e misterioso, objeto transcendente do sentimento religioso universal, coincidindo inclusive com o princpio ltimo da realidade (arch), buscado na ontologia grega. Assim, os apologetas do cristianismo pensaram encontrar na filosofia grega da religio, particularmente no platonismo, estoicismo e neoplatonismo, uma linguagem adequada para descrever o carter exttico da experincia religiosa.53

    A teologia crist encontra na filosofia grega o instrumental terico capaz de lhe permitir comunicar sua experincia de f de forma cognoscvel. Para alm dos contedos intercambiados nessa aproximao,54 fundamental perceber a apropriao das estru

    52 Flix Alexandre Pastor, A lgica do inefvel, p. 11-2. Tambm Tillich discute a influncia da filosofia grega na teologia crist ao longo de todo o primeiro captulo de sua Histria do pensamento cristo. Kng, em A Igreja catlica, afirma: Os apologistas, que escreviam todos em grego, foram as primeiras figuras literrias a apresentar o cristianismo como crvel a todo grupo interessado empregando termos, vises e mtodos helensticos que podiam ser entendidos por todos, p. 52. Libnio, em Introduo teologia, volta a esse tema repetidas vezes por exemplo, quando discute a teologia patrstica e suas caractersticas, p. 115-26.

    53 Op. cit., p. 13.54 V. nota 3.

    43

  • turas interiores do pensamento grego, identificadas aqui, principalmente, como metafsica e lgica. A primeira, em sua nfase na afirmao do ser como essncia dos entes e na negao do mltiplo e conseqente afirmao do uno, identifica a verdade em sua nica possibilidade, em sua condio unvoca. A segunda, com sua lei de no-contradio, oferece os elementos de coero/exclu- so, capazes de manter a univocidade dos discursos.

    Falar sobre a similaridade das trajetrias da filosofia grega e da teologia crist , portanto, propor que ambas tenham percorrido o caminho da afirmao da metafsica como mtodo adequado na construo da univocidade da verdade. Essa afirmao cons- tri-se sobre os escombros de outra compreenso acerca da realidade uma compreenso mais consciente de sua equivocidade,55 manifesta sobretudo no amplo uso da metfora como forma aproxi- madora do real.

    Existe aqui uma contraposio entre metfora e metafsica que precisa ser explicada. No ambiente da filosofia grega, ambas esto intimamente relacionadas.56 O uso da metfora constitui o discurso alegrico, prprio do mundo sensvel. Ele necessrio diante da impossibilidade de os no-filsofos compreenderem as idias puras.57 A metfora vlida medida que no se identifica com as idias, mas sempre um instrumento necessrio em relao incapacidade da existncia concreta e mltipla, que no pode conhecer a verdade, mas apenas opinies e crenas.

    Ela , portanto, um instrumento pedaggico necessrio, mas no ideal. A metafsica que pode apresentar a realidade. Ela

    55 V. nota 5.56 At Plato, a metfora trabalhada ao lado da metafsica. Ela tem o papel de

    comunicar significados mais profundos, prprios do mundo das Idias. J Aristteles destina o uso da metfora dimenso da potica.

    57 Francisco Garcia B a z n , Aspectos incomuns do sagrado, p. 33-6.

  • pode falar do ser, das idias perfeitas em suma, da verdade.

    Isso se d porque o ser, a perfeio, a verdade esto fora da existn

    cia concreta. Nesse sentido, a metfora oferece sempre um simu

    lacro, enquanto a metafsica desvela a verdade que no est no

    mltiplo apreendido em instncia metafrica, mas no um encerrado na essncia.

    H na qualificao da metfora uma desqualificao da

    multiplicidade. Na filosofia, seu uso no mais aquele da dimen

    so mtico-religiosa, mas apenas um passo para seu abandono, o que em Aristteles se evidenciar. Na trajetria crist, isso pode ser verificado num processo muito semelhante, j que, ao tomar

    dessa filosofia os elementos para a comunicao de sua experincia, transformando-a em discurso sistemtico sobre a realidade, a teologia percorreu o mesmo caminho. Abandonando a equivocidade da metfora (embora a mantivesse como elemento possvel ao seu discurso), aproximou-se gradativamente da univocidade da metafsica.

    Falar sobre essa trajetria da teologia no consiste aqui em

    outra coisa seno na tentativa de compreender a teoria do co

    nhecimento construda pelo discurso teolgico-cristo em sua

    relao com a filosofia grega. Em suma, como a compreenso

    unvoca acerca da verdade, to acentuada na teologia dogmtica,

    pde surgir numa religio marcada to fortemente pelo uso da

    linguagem metafrica.

    A metfora no horizonte das vivncias e da comunicao da f

    A metfora , a servio da funo potica, a estratgia de dis

    curso pela qual a linguagem se despoja de sua funo de descrio

    direta para aceder ao nvel mtico no qual sua funo libera

    45

  • da.58 Como diz Ricoeur, a metfora uma estratgia de discurso, na qual a linguagem est despojada de sua condio descritiva e conceituai. Por isso ela to cara experincia religiosa, que se articula sobre a subjetividade. A experincia religiosa indiz- vel do ponto de vista conceituai e, mesmo assim, chamada a comunicar-se. Como, ento, dizer o indizvel? Certamente, no mbito conceituai da linguagem isso no pode ser feito. Nesse sentido, a metfora apresenta-se como instrumento fenomeno- lgico para a compreenso das experincias religiosas, com suas vivncias e sua comunicao.

    A pertinncia da metfora no discurso teolgico (sistematiza- o de experincias religiosas) acha-se nas palavras de Boff: As metforas no falam de uma equivalncia formal e essencial, mas sim de uma equivalncia funcional e dinmica.59 Sua relevncia est na capacidade de produzir significado no interior de grupos que partilham os mesmos signos e comungam de um mesmo universo de significao. Dentro desse universo, a metfora permite a elaborao de discursos que, mesmo partilhados, j que os signos so comuns, podem ser reelaborados medida que os significados se tornam literais, perdendo o sentido existencial e passando a ser compreenses padronizadas, conceituais. Depois que as expresses so dicionarizadas, elas perdem alcance simblico, e nega-se a elas a polissemia.

    O uso metafrico da linguagem contrasta com seu uso literal, que simplesmente o uso-padro em vigor dentro de uma comunidade lingstica e emprega palavras para transmitir sentidos convencionados, adequados ao registro em dicionrio. Assim, os sentidos literais de uma palavra so, em termos aproximados, seus

    58 R icoeur , Metfora viva, p. 376.59 Teoria do mtodo teolgico, p. 332.

    4 6

  • sentidos lexicais e falar literalmente eqivale a pretender que

    nossos enunciados sejam compreendidos em seu sentido-padro ou dicionarizado. Em contraste com isso, a metfora uma forma de discurso no literal, isto , figurativa. O discurso metafrico,

    portanto, uma forma de linguagem em que o sentido empregado pelo falante difere daquele constante do dicionrio.60

    A contraposio entre linguagem literal e metafrica e seu uso no discurso teolgico tm como pano de fundo uma questo epistemolgica. Por um lado, a linguagem literal pretende um

    discurso unvoco fundado numa perspectiva essencialista das coisas. Por outro, a linguagem metafrica permite uma equivocidade no discurso teolgico, que se fundamenta na existncia mltipla das coisas. Em suma, para ser relevante e verdadeiro, o discurso

    teolgico deve fundamentar-se na essncia ou na existncia? Se na essncia, a linguagem deve ser literal, capaz de identificar o discurso com a realidade, produzindo a univocidade da verdade. Se na existncia, a linguagem ser metafrica, compreendendo a teologia como cincia hermenutica aberta equivocidade e, por assim dizer, ao carter provisrio de seu discurso.

    Ao comentar a condio hermenutica da teologia e de sua relao com a semitica (v. Glossrio), Croatto aponta para a importncia da polissemia, que aqui pode ser metaforicamente identificada com a equivocidade.

    Na semitica, diz-se que o sentido no algo objetivo e

    palpvel que est no texto em estado puro, de modo que o

    exegeta pudesse encontr-lo graas a sua habilidade tcnica e

    seus recursos filolgicos e histricos. Assim, quando h mui

    tas interpretaes, todas menos uma estariam erradas. A deci

    60 John HlCK, A metfora do Deus encarnado, p. 136-7.

    47

  • so sobre qual a verdadeira viria de uma autoridade extra- textual [...] E o que pior: a mensagem resulta atrofiada e no se pode depreender em novas leituras criativas. Talvez at deixe de ser mensagem.61

    Embora Croatto esteja tratando do assunto no mbito da exegese, sua reflexo bastante apropriada a esta discusso. Quando ele afirma que, ao julgar haver um s sentido verdadeiro, a mensagem fica atrofiada, ou seja, destituda da possibilidade de novas leituras, coincide com o que se afirma aqui acerca da capacidade de literaliza (v. Glossrio) da metfora, que apresenta o discurso teolgico unvoco. Seja na exegese, seja na dogmtica, o encerramento da polissemia pretendido pela univocidade serve ao empobrecimento de sentido e irrelevncia da teologia.

    Embora o argumento para a fixao de discursos histrico- culturais seja a necessidade da preservao da verdade doutrinria contra as heresias, Hick declara que, na verdade, a heresia bsica sempre foi a de tratar a metfora religiosa como metafsica literal .62 Aqui possvel identificar um problema fundamental. A metfora religiosa, isto , o discurso teolgico resultante das experincias religiosas das primeiras geraes crists, foi transmutada em metafsica literal no processo de sistematizao e de proselitismo resultante da aproximao da cultura helnica com sua filosofia.

    A univocizao do discurso teolgico tem sua gnese: no de forma alguma ontolgica. As primeiras geraes crists no a conheciam, como fica evidente na linguagem utilizada na poca. Desde o uso da metfora potica nas parbolas neotestamentrias, da linguagem equvoca das cartas paulinas, da escatologia e do gnero apocalptico at os escritos ps-apostlicos, amplamente

    61 Hermenutica bblica, p. 23.62 A metfora do Deus encarnado, p. 145.

    48

  • voltados para a dinmica da comunidade e para a funo litrgica nela presente, o que se constata a polissemia teolgica, no como

    fragmentao destrutiva, mas como instrumento estruturador das mltiplas experincias de f com o Cristo e a necessria comunicao delas.63

    Faz-se necessrio neste momento precisar a gnese da univo-

    cizao da polissemia presente nos discursos das primeiras geraes crists.

    Aproximao do pensamento cristo filosofia grega

    O processo de univocizao do discurso teolgico-cristo confunde-se com sua aproximao ao pensamento filosfico grego presente no helenismo, a qual fortemente marcada pela aceitao da filosofia platnica apresentada no mdio-platonismo.64 O pensamento platnico, sobretudo sua metafsica, serviu ao discurso

    teolgico-cristo em seu estgio at ento mais elaborado.65

    63 Esse tema pode ser aprofundado no estudo da literatura patrstica feita por Hubertus R. Drobner em seu Manual de patrologia. Especificamente sobre o tema do uso das parbolas no NT, o texto de As parbolas de Jesus, de Joaquim Jeremias, trata com profundidade a importncia da metfora. No que diz respeito ao uso da metfora na elaborao do discurso teolgico, em A metfora do Deus encarnado, de John Hick, discute-se no mbito do dogma a necessidade de rever o papel fundador da metfora, ofuscado pela univocidade metafsica.

    64 Este termo designa a corrente de pensamento platnico dominante nos dois sculos do tempo imperial, destinada a desaguar no sculo III, no neoplatonismo [...] justamente esse tipo de filosofia que exerce uma influncia determinante nos apologetas gregos do sculo II d.C. (Atengoras, Justino Mrtir, Clemente de Alexandria e Orgenes). As apreciaes sobre as vrias escolas filosficas, a admirao por Plato, os elementos caractersticos da doutrina da transcendncia de Deus, a doutrina das idias como pensamentos de Deus contidos em sua inteligncia e em seu logos, a concepo do nascimento do universo pela imposio das formas e da ordem sobre a matria no gerada... (Mdio-platonismo, Dicionrio patristico e de antiguidades crists, p. 920,1).

    65 Paul T illich, Histria do pensamento cristo, p. 44.

    49

  • A Igreja, que recebera o mandato de tornar presente a mensa

    gem do evangelho at as extremidades da Terra, para poder esten

    der-se, tinha de traduzir seu contedo religioso em termos racionais,

    para que fosse acessvel ao pensamento e tradio gregos. No

    segundo sculo, iniciou-se a helenizao do ensinamento cristo e

    da linguagem teolgica, nascida desse encontro. Preparou-se des

    se modo a expanso do cristianismo.66

    As condies histrico-culturais daquele momento so funda

    mentais para a compreenso desse movimento teolgico, chama

    do apologtica.67 O encontro do cristianismo, com sua literatura

    amplamente marcada por traos metafrico-poticos e destinada

    liturgia e catequese, com a cultura grega presente no helenismo

    e no Imprio Romano, bastante contrria s narrativas mitolgi

    cas j contrapostas teoria da transcendentalidade de Deus, pro

    duziria uma adaptao um tanto sincrtica daquela a esta, gerando

    um discurso teolgico bastante peculiar.

    O cristianismo que, no dizer de Tillich, teve que se expressar

    em forma de respostas a certas acusaes particulares [...] que

    ameaava o imprio romano e que era, do ponto de vista filosfi

    co, pura tolice, no mais que superstio misturada a fragmentos

    66 Fernando Antnio F igu eired o , Teologia da igreja primitiva:o homem na viso histrica do mrtir Justino, p. 17-20.

    67 Tillich, na introduo sua Teologia sistemtica, discute a compreenso mais adequada que se deve ter da apologtica. Ele diz que a teologia apologtica, que teve posio to elevada na igreja primitiva, caiu em descrdito por causa dos mtodos empregados nas tentativas abortivas para defender o cristianismo contra ataques do humanismo moderno, do naturalismo e do historicismo. Tentou descobrir lacunas em nosso conhecimento histrico e cientfico para encontrar um lugar para Deus e suas aes dentro de um mundo de outra forma completamente calculvel e imanente [...] Esse procedimento indigno desacreditou tudo que chamado apologtica (p. 45).

    50

  • filosficos,68 precisou dialogar, explicando sua experincia de f

    para ser entendido e aceito naquela cultura.Aquilo que na literatura teolgica ps-apostlica era dito pela

    perspectiva metafrica, ou seja, que transbordava a capacidade delimitadora da palavra, passaria a ser submetido gradativamente necessidade de definio, tendo a palavra, como recipiente dos sentidos, de abrigar todos eles. O dizer metafrico aberto equivocidade seria substitudo pelo dizer metafsico gerador de conceitos unvocos. Nesse sentido, h uma subtrao dos elementos propriamente religiosos e um impedimento s interpretaes espontneas e populares.

    Para evidenciar essas aproximaes e a conseqente sublevao do pensamento platnico,69 e com ele sua metafsica, impe-se a necessidade de verificar seus principais interlocutores no interior do cristianismo.70

    O primeiro deles , sem dvida, Justino Mrtir. Nascido de pais pagos, estudou filosofia antes de se converter ao cristianismo. Em suas obras, transparece o esforo de adaptao de um homem formado segundo a filosofia grega e depois convertido para apresentar a f aos seus contemporneos. Por causa de sua teoria do logos espermticos,71 foi-lhe possvel afirmar que no s no existe

    68 Histria do pensamento cristo, p. 45.69 A influncia platnica estendeu-se at a plena recepo teolgica do

    aristotelismo filosfico pela escola dominicana, em que Toms de Aquino se destaca como principal sistematizador.

    70 O pensamento filosfico no foi acolhido pela unanimidade dos telogos, tampouco aceito de forma passiva. Homens como Taciano e principalmente Tertuliano opuseram-se a tal aproximao. Famosa a sentena deste ltimo: Que tem [que ver] Atenas e Jerusalm? Que tem [que ver] a academia e a igreja?.

    71 Justino afirma que em todos os homens est o esperma tou logou. Este no s a capacidade ou aptido para apreender a verdade, mas a prpria verdade nsita no homem [...] O ponto alto destas manifestaes so os

    51

  • oposio entre filosofia e cristianismo, mas pode-se afirmar at

    uma substancial identidade entre a primeira e a segunda.72

    Justino busca na filosofia o mtodo capaz de lhe permitir o

    desenvolvimento da tarefa de defender o cristianismo ante o de

    safio externo e interno que este experimentava. Esse desafio,

    do ponto de vista interno, consistia em combater as heresias73 e, do

    ponto de vista externo, superar a crtica que o considerava pura

    tolice [...] superstio misturada com fragmentos filosficos.74

    O impacto da filosofia platnica sobre sua formao foi to

    grande que ele confessou: Eu exultava principalmente com a con

    siderao do incorpreo. A contemplao das idias dava asas

    minha inteligncia.75 E ainda: Que obra maior devemos reali

    zar seno a de mostrar como a idia dirige todas as coisas? Conce

    bida em ns, e deixando-nos conduzir por ela, podemos

    contemplar o engano dos outros e ver que em suas ocupaes no

    h nada de so, nem de agradvel a Deus.76

    Sob essa influncia, o discurso teolgico-cristo, representa

    do em Justino, volta-se para a metafsica, distanciando-se das

    fontes de reflexo teolgica ps-apostlicas. Os espaos de pro

    profetas e os filsofos (Fernando Antnio FIGUEIREDO, Curso de teologia patrstica I, p. 120). Para Justino, a verdade est no logos, portanto externa cultura e dada aos homens por sua reta ordenao. Assim, do ponto de vista da teoria do conhecimento, Justino alcana a verdade pela metafsica. Nisso ele se assemelha teoria da intuio intelectual de Plato.

    72 Mdio-platonismo, Dicionrio patrstico e de antiguidades crists, p. 920,1.73 O termo heresia bastante questionvel. Seu uso veiculado em

    contraposio ao que se denomina ortodoxia. Aqui, deve-se entender heresia como pensamento teolgico que se coloca ou colocado margem da interpretao teolgica oficial.

    74 V. nota 64.75 Justino Mrtir, Dilogo com Trifo, p. 112.76 Ibidem, p. 114.

    52

  • duo teolgica vo-se deslocando 'do interior das comunidades de f, de sua liturgia e da ao pastoral na direo de outros centros, de reflexo mais conceituai. Os prprios agentes dessa reflexo iro diminuir, cedendo espao gradativamente a especialistas.

    Esse deslocamento da teologia que na metfora se comunica numa dimenso mais funcional e dinmica para outra, de tendncia mais conceituai, encontra em Justino seu primeiro interlocutor. Ele mesmo declara: Filosofia a cincia do ser e do conhecimento da verdade, e a felicidade a recompensa dessa cincia e desse conhecimento.77

    Na tarefa de aproximar o discurso teolgico-cristo da filosofia grega, sobretudo a platnica, para alm das contribuies de Justino, esto aquelas dadas pela escola de Alexandria, representada por dois nomes da maior relevncia. O primeiro Clemente. Filho de pais gentios, nascido provavelmente em Atenas por volta do ano 150. Convertido ao cristianismo, estudou com diversos professores at conhecer Panteno, em Alexandria, onde iria desenvolver seu ministrio.78

    Em Clemente a venerao por Plato e a influncia do platonismo contemporneo assumem uma dimenso ainda mais ampla e desenvolvimentos ainda mais ricos do que em Justino.79 Em Protrptico, Clemente pede a Plato que se torne seu companheiro na busca de Deus.80

    Longe de ser obra do demnio, dizia ele, a filosofia grega , ao contrrio, um bem. A ela coube a tarefa propedutica de conduzir os gentios a Cristo. O que a Lei fora para os judeus, a filosofia

    77 Justino M rtir, ibidem, p. 114.78 Phototheus Boehner & Etiene G ilson, Histria da filosofia crist, p. 33.79 Platonismo e os padres, Dicionrio patristico e de antiguidades crists, p.

    1157-1170.80 Ibidem, p. 1157-1170.

    53

  • foi para os gentios.81 Boehner e Gilson citam Clemente nas

    Stromatas nos seguintes termos:

    A f em Cristo, a que agora se pretende restringir o alcance da razo humana, no existiu antes do advento do Salvador, quando se dispunha apenas da lei e da filosofia grega. A lei era, indubitavelmente uma expresso da vontade de Deus [...] Tambm os gregos, a despeito de todas as diferenas, encontravam- se numa situao semelhante. No possuam nem a lei nem a f; a verdade lhes vinha do uso da razo natural [...] Isso se pode colher sem dificuldade da leitura de Plato [...] No que Deus lhes falasse diretamente; mas nem por isso deixou de gui-los indiretamente pela razo, que tambm uma luz divina. De forma que a razo era para os pagos o que a lei era para os judeus.82

    Na compreenso de Mondin, com a doutrina da funo propedutica da filosofia para a revelao, Clemente teve o mrito de ter superado a antinomia entre pensamento humano e verdade crist e de ter dado assim o direito de cidadania, no seio do cristianismo, filosofia grega e com ela a tudo o que pertence razo e natureza humana.83

    O outro grande nome da escola de Alexandria foi Orgenes. Nascido no Egito, por volta do ano 185 d.C., foi educado primeiramente pelo pai e, logo depois, em Alexandria, tornou-se discpulo de Clemente, vindo mesmo a super-lo. Como dizem Boehner e Gilson: Com Orgenes, a escola catequtica de Alexandria atinge o seu ponto mais alto [...] Orgenes supera Clemente em todos

    81 Phototheus Boehner & Etiene G ilson, Histria da filosofia crist, p. 35.82 Idem, ibidem, p. 35-6.83 Curso de filosofia, p. 124.

    54

  • os pontos de vista, e sobretudo pela penetrao especulativa. Sobre os fundamentos lanados por Clemente pde erguer o pri

    meiro edifcio sistemtico doutrinai .84Com isso tambm concorda BofF, ensinando que a primeira

    escola de teologia sistemtica foi o Didaskaleion de Alexandria, fundado no fim do Sculo II. Orgenes, seu maior representante,

    nos d a primeira sntese dogmtica, em Dos Princpios" .85Da mesma forma que Justino e Clemente, Orgenes mantm

    proximidade com a filosofia grega, principalmente a platnica, como mediao cultural (v. Glossrio) no processo de produo teolgica. Eusbio menciona-o, bem como sua relao com Plato,

    afirmando: Ele vivia em trato contnuo com Plato.86Sendo impossvel, como j afirmamos, mensurar a influncia

    dessas aproximaes do ponto de vista dos contedos, evidente que elas marcam profundamente o mtodo de construo do discurso teolgico-cristo, tanto em seu carter apologtico devedor

    das leis da no-contradio quanto em sua tarefa, ainda incipiente em Orgenes, de sistematizao dos temas da f.

    Seria necessrio dizer que essa tarefa apologtica, mesmo levando em considerao as observaes feitas por Tillich,87 consis

    te na eliminao da pluralidade epistemolgica. A polissemia encarada como ameaa verdade, pois esta no se encontra na

    dimenso das opinies ou das crenas (que seriam admitidas como heresias), mas na dimenso da episteme, da cincia das idias. E daqui ela h de ser afirmada, para alm de toda multiplicidade,

    em sua univocidade.

    s4 Histria da filosofia crist, p. 48.85 Teoria do mtodo teolgico, p. 628.86 Histria Eclesistica, p. 209.87 Ver nota 67.

    55

  • Tudo fica muito claro naquelas que sero as instncias ltimas da apologtica: os conclios.88 Neles, est presente a objetivao mais radical da influncia da filosofia grega sobre o pensamento cristo, tanto na linguagem construtora das sentenas dogmticas, to estranhas ao mundo bblico, quanto na formulao dos ante- mas, amplamente devedora dos princpios da no-contradio.

    Nos conclios, as perguntas so pela essncia das coisas, na clara inteno de delimitar e definir o discurso teolgico, atendendo s exigncias de justificao racional dos temas da f em relao ao mundo greco-romano. Submete-se, portanto, a multiplicidade das experincias de f, geradoras de narrativas polissmicas, s exigncias de categorias unvocas. Neles se estabelece uma hierarquia que a um s tempo epistemolgica e poltica. Ao definir, isto , ao afirmar conceitualmente os temas da f, cria-se um princpio hermenutico nico, administrado pelo centro de controle dos sentidos hermenuticos: a Igreja.

    Na continuao do momento apologtico do discurso teol- gico-cristo, est o momento dialtico. O discurso teolgico dialtico, j presente em Orgenes, em sua obra Dos princpios, tem como nfase no s articular respostas pontuais a temas em conflito, mas propor uma sistematizao dos temas da f em forma de tratados. Esse fato cumpre o intento de sistematizao da univocidade epistemolgica, j presente de forma incipiente no discurso apologtico. Como afirma Zilles:

    Os primeiros padres cristos no fizeram filosofia ex professo. S recorriam a ela quando lhes ajudava a compreender

    88 Fundamentais sio os quatro primeiros conclios (Nicia I, Constantinopla I, feso e Calcednia), nos quais foram discutidos os principais temas da f e elaborada a linguagem teolgica apologtico-dogmtica (Justo C ollantes, A f catlica: documentos do magistrio da Igreja).

    56

  • melhor a revelao crist ou para defender-se contra os pagos. Agostinho de Hipona, chamado mestre do Ocidente e o gnio do cristianismo, contudo elabora uma filosofia junto teologia. A filosofia patrstica representa o esforo de munir a f de argumentos racionais. Entre os padres cristos, Agostinho leva mais longe a conciliao entre a f e a razo.89

    Se Justino, Clemente e Orgenes foram os primeiros interlocutores da filosofia no interior do cristianismo, para se produzir uma teoria do conhecimento capaz de introduzir o discurso teolgico- cristo no ambiente greco-romano, Agostinho quem o far de forma mais complexa, erigindo um sistema epistemolgico de influncia definitiva sobre a teologia crist.

    Agostinho90 procede da tradio platnica, da qual herdeiro por intermdio do neoplatonismo de Plotino.91 Mas ele a in

    89 Teoria do conhecimento, p. 99.90 Agostinho nasceu em Tagaste, em 354, de me crist e pai ainda pago, que

    recebeu o batismo em 371, pouco antes de morrer. A primeira educao de Agpstinho foi estritamente humanstica, feita de gramtica e retrica. Tendo iniciado os estudos em Tagaste, foi complet-los em Cartago, onde, depois da leitura do Hortnsio (uma introduo filosofia), de Ccero, comeou a interessar-se tambm pela filosofia. Em Cartago, a filosofia ento dominante era a maniquia. Agostinho no tardou em fazer-se ardoroso defensor desse sistema, para grande desgosto de sua me. Aos 19 anos, comeou a ensinar retrica em Cartago, rodeado por um grupo de discpulos inteligentes e por muitos amigos, mas tambm por alunos indisciplinados. O comportamento destes e o desejo de fma levaram Agostinho a transferir-se para Roma. Assim, depois de dez anos de ensino em Cartago, deixou a cidade (em 383) e foi para Roma. Por esse tempo, seu entusiasmo pelo maniquesmo foi diminuindo lentamente. Em Roma, abandonou-o definitivamente para abraar, por um breve perodo, o ceticismo da Academia. Depois de um ano em Roma, foi para Milo, onde Sfmaco lhe ofereceu a faculdade de retrica. Em Milo, leu Plotino e sentiu-se fascinado pelo seu ensinamento sobre a incorporeidade de Deus e a imortalidade da alma. Assim, de ctico, tomou-se logo neoplatnico. Mas a leitura de Paulo e os contatos com Ambrsio, bispo de Milo, convenceram Agostinho de que a verdade no estava nos livros dos filsofos, mas no evangelho de Jesus Cristo.

    91 Agostinho dedica quase toda a stima seo do primeiro tomo de A cidade de Deus importncia de Plato e influncia de Plotino, tanto em sua formao

    57

  • corpora no contexto cristo e, por esse motivo, transforma-a profundamente, ao mesmo tempo que a completa e aprimora, nela corrigindo o que havia de mais discutvel.

    Agostinho no admite, com efeito, nem o universo inteligvel das idias subsistentes, nem o inesmo platnico. Mas estas duas opinies errneas lhe pareciam envolver magnficos pressentimentos da verdade. Pois de fato verdade que deve existir um mundo inteligvel ou mundo das idias, uma vez que o nosso pensamento procede por meio das idias eternas e necessrias e por meio de referncias a normas absolutas e imutveis, que no descobriremos, evidentemente, no universo da percepo mvel, mutvel e essencialmente mltiplo. Unicamente este mundo das idias a razo divina com a qual preciso que estejamos de algum modo em comunicao, pois unicamente por esta via que se conseguir explicar que pensamos e julgamos segundo normas que transcendem o espao e o tempo.92

    E exatamente esse ponto o da teoria do conhecimento tambm salientado por Jolivet, que precisa ser aprofundado aqui. Como e onde a verdade pode ser alcanada? Sua contribuio crtica do conhecimento foi a de fornecer as linhas gerais de uma justificao metafsica da verdade.93

    Para Agostinho, o conhecimento humano observa trs operaes: os sentidos, a razo inferior e a razo superior. A estes eqivalem trs grupos de objetos a serem conhecidos: qualidade dos corpos, leis da natureza e verdades eternas.94 Aos sentidos, cabe o

    intelectual quanto na necessria compreenso e utilizao deles no pensamento teolgico-cristo.

    92 Rgis J ouvet, Metafsica, p. 44.93 Idem, ibidem, p. 46.94 Batista M on d in , Curso de filosofia, p. 136-40.

    58

  • conhecimento dos corpos; razo inferior, as leis da natureza; razo superior, as verdades eternas.

    Como diz Mondin: Agostinho tem realmente a convico de que a alma absolutamente superior ao corpo e de que, por isso, no pode depender dele em nenhuma de suas atividades, nem mesmo na sensitiva .95 Agostinho assume o dualismo platnico, remetendo instncia externa toda a possibilidade de conhecimento da verdade, que reside no mundo das idias.

    No sem razo Zilles afirma: J que as idias que regulam a verdade dos nossos juzos transcendem a mente humana, elas devem existir independentemente da alma humana. Deve existir uma espcie de mundo das idias eternas que, como princpio absoluto e metafsico, garante a veracidade dos nossos conhecimentos.96 Isso significa que o fundamento do conhecimento humano e, portanto, teolgico est fora da existncia concreta. Mesmo as operaes dos sentidos e da razo inferior precisam de um auxlio externo para serem realizadas.

    A teoria de Agostinho guarda inmeras semelhanas com a idia platnica do conhecimento. Para Plato, o conhecimento d-se por intuio intelectual, s possvel por causa de sua doutrina da reminiscncia.97 Agostinho, no podendo concordar com esta, prope a doutrina da iluminao, que consiste no auxlio divino que torna compreensveis as verdades eternas.

    O conhecimento das verdades eternas obtido por meio de iluminao divina e no por meio da reminiscncia. Agostinho, como Plato, est convencido de que as verdades eternas no podem vir da experincia, seja por causa da contingncia do

    55 Ibidem, p. 138.96 Teoria do conhecimento, p. 105.57 V. nota 36.

    59

  • objeto conhecido, seja por causa da contingncia do sujeito que conhece. Mas como ele no admite a preexistncia das almas no Hiperurnio, no lhe possvel explicar o conhecimento das verdades eternas pela doutrina da reminiscncia como fizera Plato; recorre, por isso, doutrina da iluminao.98

    A doutrina agostiniana da iluminao consagra a metafsica como instrumento adequado de conhecimento da verdade no in

    terior do discurso teolgico-cristo. A contingncia do objeto e

    do sujeito do conhecimento negativos, para Agostinho, legitima a

    exterioridade dualstica da verdade. negada teologia qualquer

    identificao da relevncia nas vivncias concretas da f no inte

    rior da comunidade crist.

    Para alm das vivncias da f, o discurso teolgico deve partir

    de uma iluminao que lhe permita dizer a verdade sobre os te

    mas da f. Essa verdade no admite contradio, pois no parte da

    multiplicidade, na qual idias contraditrias so possveis, antes

    afirma-se na univocidade decorrente da unidade que lhe oferece a idia perfeita. Assim, tem-se pronta uma teoria do conhecimento capaz de produzir um discurso teolgico complexo, amplo e

    sistematizador.

    Assim, ao processo de sublevao da metafsica no interior da

    teologia crist resta somente um nico passo, possvel de ser iden

    tificado no aristotelismo tomista. Toms de Aquino" empresta

    98 Batista M ondin, Curso de filosofia, p. 139.95 Tratamos aqui do pensamento de Toms de Aquino somente em relao

    teoria da iluminao de Agostinho, uma vez que consideramos aqui ametafsica presente na teologia sistemtica protestante (ou dogmtica) eminentemente platnico-agostiniana e devemos ao pensamento aristotlico- tomista apenas a disposio lgica e esttica. Isso se acentua, sobretudo, pelo fato de nosso olhar situar-se no mbito protestante da reflexo teolgica, que, com Lutero e Calvino, d total notoriedade ao agostinianismo em detrimento

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  • do pensamento agostiniano a teoria da iluminao e torna-a absolutamente sua. A certeza, diz ele, em ns uma participao da luz divina. O humano no pode possuir, por si s, a regra infalvel

    da verdade, embora a possua em si mesmo, a saber, luz do intelecto agente, do qual procede toda a certeza.100

    Toms, no entanto, fxel s anlises de Aristteles, afasta-se de Agostinho quanto maneira de conceber o modo de iluminao. Como afirma ele prprio, se verdade que ns conhecemos todas as coisas nas razes eternas, isto no requer nenhuma luz especial distinta da luz da inteligncia .101 Enquanto para Agostinho a alma recebe uma luz que a informa extrinsecamente, para Toms a alma possui em si mesma a regra infalvel da verdade, dando-se esta intrinsecamente na inteligncia humana, que o frum apropriado ao seu conhecimento.

    Aquino faz, em relao a Agostinho, o mesmo caminho que Aristteles trilhou em relao a Plato. Ele toma o dualismo externo da tradio platnica assumido por Agostinho e interioriza-o. A verdade, que s podia ser encontrada no mundo das idias e alcanada por intuio intelectual, agora est na mente humana, e pode ser conhecida pela inteligncia, ela prpria um dom de Deus.

    O caminho da metafsica como instrumento sustentador da univocidade

    A formao do discurso teolgico dogmtico deve filosofia

    grega os elementos fundamentais de sua elaborao metodolgica.

    do tomismo. Uma contribuio tomista para ns , sem dvida, sua teologia natural e, principalmente, suas provas testas amplamente encontradas no sistema manualista. E at mesmo esse tema acha-se circunscrito na valorizao da inteligncia como instrumento capaz de conhecer a verdade.

    100 Rgis J olivet, Metafsica, p. 47.101 Idem, ibidem, p. 47.

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  • Essa filosofia, em contraposio compreenso mtica, que acentuava a equivocidade hermenutica e valorizava a metfora como forma adequada s realidades que escapam ao cotidiano, estabeleceu-se sobre a necessidade de afirmao da univocidade da verdade.

    O unvoco, porm, s poderia ser afirmado com base numa fonte fidedigna que transcendesse as realidades culturais (que so equvocas). Negando dessa forma toda multiplicidade e considerando-a apenas sombra de uma realidade fundamental (no-ser), seria possvel afirmar uma proposio de abrangncia universal. A fonte fidedigna que a filosofia grega elaborou para afirmar a univocidade foi a metafsica.

    Isso se explica de forma relativamente simples. Na multiplicidade, no h um princpio que possa ser usado como instrumento para afirmar o unvoco. A multiplicidade geradora de interpretaes: qualquer leitura que se faa dela produzir polissemia hermenutica. A criao da metafsica , portanto, a maneira mais adequada de afirmar a univocidade. Fora do espao fsico, mltiplo na mais singela observao, possvel conceber uma essncia que corresponda s coisas mltiplas e encerre a verdade acerca de todas as representaes concretas, todos os simulacros. O discurso que parte da essncia suficiente para expressar as representaes. Nesse sentido, o discurso unvoco de abrangncia universal plenamente possvel.

    No a metafsica, portanto, que cria a univocidade que possibilita a universalizao do discurso, mas a necessidade de negar o mltiplo, embutida na afirmao do unvoco e por ele gerada. da insegurana desestabilizadora dos discursos cientficos e religiosos, que temem a convivncia