ALEXANDRE JUNIOR_Cor e Efeitos Retoricos

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COR E EFEITO RETÓRICOS NA TERCEIRA FILÍPICA DE DEMÓSTENES MANUEL ALEXANDRE JÚNIOR Centro de Estudos Clássicos Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Diz-se que foi a mais bela das cortesãs atenienses e uma autêntica diva do amor. Nascida em Téspia da Beócia no século IV a.C., Frine foi o modelo que inspirou Apeles na pintura de Afrodite Anadiómene, e Praxíteles na escultura de Afrodite Cnídia 1 , sendo a musa inspiradora de muitos outros escultores e pintores ao longo dos séculos e milénios. Levada um dia a tribunal por profanar os mistérios de Elêusis, Frine arriscava- se a sofrer a pena capital. Valeu-lhe o expediente do seu advogado Hiperides, sábio e experimentado orador de Atenas que, ao ver a causa perdida, se abeirou da cliente, lhe rasgou as vestes até à cintura e suplicou aos juízes piedade a favor daquela que, desnuda, com todo o encanto se apresentava diante dos seus olhos. “A imagem de Frine, a sua reputação e a piedosa lamentação de Hiperides levaram os juízes a temer esta serva de Afrodite e, cedendo aos sentimentos provocados pela visão dos seus olhos, absolveram-na” 2 . Não obstante as reacções suscitadas por um tal veredicto 3 , o facto é que Quintiliano menciona o episódio duas vezes na sua Institutio Oratoria: o primeiro, para mostrar que nem sempre a persuasão se faz com palavras, sendo em determinadas situações bem mais eloquente e tocante “a memória dos méritos de uma pessoa, o semblante digno de compaixão ou a beleza de uma forma” 4 ; e o segundo, para testemunhar que o orador deve conhecer todos os artifícios da arte retórica e ao mesmo 1 Uma estátua de Frine, obra das mãos do escultor Praxíteles, foi colocada num templo em Téspia ao lado de uma estátua de Afrodite, esculpida pelo mesmo artista (Cf. Ateneu, pp. 558, 567, 583, 585, 590, 591; Eliano, Varia. Historia ix. 32; Plínio o Velho, Naturalis Historia xxxiv. 71). 2 Richard A. Katula, “Emotion in the Courtroom: Quintilian’s Judge – Then and Now”, in Quintilian and The Law: The Art of Persuasion in Law and Politics, Leuven: Leuven University Press, 2003, p. 145. 3 Ateneu, Os Deipnosofistas, Cambridge: Harvard University Press, 1950, 6.13, p. 590. 4 Quintiliano, Institutio oratória, 2.15.6-9: “…et Phrynen non Hyperidis actionem quamquam admirabili, sed conspectu corporis, quod illa speciosissimum alioqui diducta nudaverit tunica, putant periculo liberatam” (2.15.9).

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COR E EFEITO RETÓRICOS

NA TERCEIRA FILÍPICA DE DEMÓSTENES

MANUEL ALEXANDRE JÚNIOR Centro de Estudos Clássicos

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Diz-se que foi a mais bela das cortesãs atenienses e uma autêntica diva do amor.

Nascida em Téspia da Beócia no século IV a.C., Frine foi o modelo que inspirou Apeles

na pintura de Afrodite Anadiómene, e Praxíteles na escultura de Afrodite Cnídia1, sendo

a musa inspiradora de muitos outros escultores e pintores ao longo dos séculos e

milénios. Levada um dia a tribunal por profanar os mistérios de Elêusis, Frine arriscava-

se a sofrer a pena capital. Valeu-lhe o expediente do seu advogado Hiperides, sábio e

experimentado orador de Atenas que, ao ver a causa perdida, se abeirou da cliente, lhe

rasgou as vestes até à cintura e suplicou aos juízes piedade a favor daquela que,

desnuda, com todo o encanto se apresentava diante dos seus olhos. “A imagem de Frine,

a sua reputação e a piedosa lamentação de Hiperides levaram os juízes a temer esta

serva de Afrodite e, cedendo aos sentimentos provocados pela visão dos seus olhos,

absolveram-na”2.

Não obstante as reacções suscitadas por um tal veredicto3, o facto é que

Quintiliano menciona o episódio duas vezes na sua Institutio Oratoria: o primeiro, para

mostrar que nem sempre a persuasão se faz com palavras, sendo em determinadas

situações bem mais eloquente e tocante “a memória dos méritos de uma pessoa, o

semblante digno de compaixão ou a beleza de uma forma”4; e o segundo, para

testemunhar que o orador deve conhecer todos os artifícios da arte retórica e ao mesmo

1 Uma estátua de Frine, obra das mãos do escultor Praxíteles, foi colocada num templo em Téspia ao lado de uma estátua de Afrodite, esculpida pelo mesmo artista (Cf. Ateneu, pp. 558, 567, 583, 585, 590, 591; Eliano, Varia. Historia ix. 32; Plínio o Velho, Naturalis Historia xxxiv. 71). 2 Richard A. Katula, “Emotion in the Courtroom: Quintilian’s Judge – Then and Now”, in Quintilian and The Law: The Art of Persuasion in Law and Politics, Leuven: Leuven University Press, 2003, p. 145. 3 Ateneu, Os Deipnosofistas, Cambridge: Harvard University Press, 1950, 6.13, p. 590. 4 Quintiliano, Institutio oratória, 2.15.6-9: “…et Phrynen non Hyperidis actionem quamquam admirabili, sed conspectu corporis, quod illa speciosissimum alioqui diducta nudaverit tunica, putant periculo liberatam” (2.15.9).

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tempo os saber usar com mestria para defender a sua causa5; tão íntimo é o convívio da

emoção com a persuasão e a razão, e tão intenso o apelo emocional no discurso com o

fim de conquistar não só a mente do juiz, mas também e sobretudo a sua alma e

coração!

1. COR E FLORES DA RETÓRICA

No auge patético da encenação pictórica deste quadro, as cores não podiam ser

mais vívidas quer se combinassem na tela de um hábil pintor, quer atingissem a

excelência do sublime nos lábios do orador mais eloquente. A eficácia da prova

emocional é bem visível, mas apenas nos introduz ao cerne do tema do presente ensaio,

como amostra da beleza e eficácia da cor expressa tanto na pintura como na oratória6.

Ao tentarem dar um corpo e uma face às imagens que representam, os oradores e os

pintores estão no fundo a socorrer-se, cada um a seu modo, das mesmas configurações

cromáticas.

Sentiu-se e percebeu-se, desde os tempos mais remotos, a relação entre a arte da

pintura e a de elaborar um discurso oratório ou compor um texto literário7. Quando

Aristóteles diz, no início do terceiro livro da sua Retórica, que “não basta conhecer o que

devemos dizer, é preciso que o digamos como convém”8, ele está simplesmente a afirmar

que a arte de dizer as coisas como devemos reconhece à retórica uma tarefa de

representação em que as figuras funcionam como imagens, com toda a carga expressiva

da sua coloração.

Aristóteles fez referência à analogia da cor na sua Poética9, e os discípulos de

Hermágoras chamaram cor (χρῶμα) à maneira particular de descrever uma acção10, mas

5 Quintiliano, Institutio oratória, 10.5.2-3: “id Messalae placuit, multaeque sunt abe o scriptae ad hunc modum orationes, adeo ut etiam cum illa Hyperidis pro Phryne difficillima Romanis subtilitate contenderet” (10.5.2). Cf. Propércio 2.5.6. 6 Como justamente observa Jacqueline Lichtenstein , “Rhetoric wished to control its eloquence within regulated discourse; painting, to inscribe the rules of discourse within its images. The one attempted to limit the place of the body in rhetoric by insisting on figures of speech and thought that owed nothing to elocutionary artifice; the other, to reduce the importance of the specifically visible dimension of painting, its colors and materials, by favoring the more abstract qualities of its conception and drawing” (The Eloquence of Color: Rhetoric and Painting in the French Classical Age, Berkeley, Los Angeles, Oxford: University of California Press, 1993, pp. 6-7). 7 Lucia Calboli Montefusco, “Ductus and Color: the right way to compose a suitable speech”, Rhetorica: A Journal of the History of Rhetoric 21:2, 2003, pp. 113-114. 8 Aristóteles, Retórica 3.1.1403b. 9 Aristóteles, Poética 1450 a39-b30.

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foram os retóricos romanos que mais explícita e profusamente usaram a metáfora da

cor para representar fenómenos estratégicos significativos da arte oratória, tanto na

expressão do sublime pelo recurso às figuras como na eficácia persuasiva dos

argumentos11. Cícero, por exemplo, refere-se ao elegante e agradável estilo dos sofistas

para dizer que eles profusamente recorreram às flores da retórica, servindo-se de

metáforas e da disposição das palavras como os pintores se servem da diversidade das

cores12. E concretiza: cor é o estilo ornado da oratória, tão presente no uso das figuras

que contidamente se dispersam pelo discurso, como visível na estrutura harmoniosa do

seu todo13; cores são também as características específicas de cada um dos vários estilos

e dos diferentes tons da voz.14 As figuras que se dispersam pelo discurso são como cores

a dar relevo às ideias que representam, explicita ainda o autor da Retórica a Herénio15.

Para autores como Séneca e Quintiliano, colores são ainda os modos peculiares de

descrever uma acção, discutir um assunto, interpretar um facto, ou defender uma

causa16; são também a harmonia global do discurso e a acomodação das respectivas

partes, ou mesmo o modo como cada orador defendia a sua causa. O próprio conceito de

urbanitas se realiza “na coloração integral do discurso”; onde nada se encontra fora de

tom, desalinhado ou agreste, nem nada parece estranho no sentido, nas palavras, ou

mesmo na pronúncia e nos gestos17. Os próprios traços que plasmam, perfilam e

caracterizam cada uma das partes – lógicas, psicológicas ou estéticas – na economia do

conjunto são normalmente referidos como matizes determinantes de coloração18. Cores

são, de facto, também os matizes mais ou menos expressivos das emoções quando

10 Referência de Porfírio ao comentar Hermógenes (C. Walz, Rhetores Graeci, Stuttgart and Tübingen: J.G. Cottae, 1832, 4.397.8.). Cf. Hermógenes 49.7 e seguintes (H. Rabe, Hermogenis Opera, Leipzig: Teubner, 1913). 11 Lucia Calboli Montefusco, op. cit., pp. 114-118. 12 Cícero, Orator 65. 13 Cícero, De Oratore 3.96. 14 Cícero, De Oratore 3.199; Cf. Quintiliano, Institutio Oratória 6.5.5. 15 Cícero, De Oratore 3.100. Ideia ainda mais explícita no autor da Rhetorica ad Herennium 4.16. 16 Séneca o Velho, Controversiae 1.1.16-20, 24; 1.3.11; 1.4.7-8; 2.1.30-37; 9.4.22; 9.5.10; Quintiliano, Institutio Oratoria 6.5.5; 8.5.28. Nas palavras de S. F. Bonner, “Seneca’s colores “are the Persian carpet of the declaimer; look at it from one angle and the colours are bright and clear, the pattern simple, but observe it from another angle, and the shade deepens, the pattern changes, and the whole appears in a different light” (Roman Declamation in the Late Republic and Early Empire, Liverpool: Liverpool University Press, 1949, pp. 55-56). 17 Quintiliano, Institutio Oratoria 6.3.107. 18 Quintiliano, Institutio Oratoria 12.10.71-72.

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estrategicamente exteriorizadas pelo orador e despertadas nos ouvintes até ao limite da

paixão.

O mesmo papel da imaginação que Aristóteles viu no processo da composição

dramática, viu-o Quintiliano no da retórica. “Um poeta”, diz Aristóteles, “deve ordenar

o seu material e compor as elocuções das personagens, tendo-as à vista o mais que for

possível, porque vendo as coisas claramente como se estivesse presente e assistisse ao

desenrolar dos eventos, descobrirá o que convém e não lhe escapará qualquer eventual

contradição”19. E Quintiliano acrescenta: “Daqui se deduz a ἐνάργεια, a que Cícero

chama inlustratio e euidentia, que mais parece fazer ver do que falar, e as emoções que se

seguem como se estivéssemos presentes a assistir aos mesmos acontecimentos”20. À

semelhança de um dramaturgo, o orador deve identificar-se com o seu cliente e

imaginar-se na mesma situação e circunstâncias, cumprindo também a função de actor.

O valor significativo das técnicas dramáticas para a retórica, técnicas tanto trágicas

como cómicas, está aliás presente em todo o percurso da educação retórica e da prática

oratória, tanto no que respeita à prova ética como à mais emocional prova dita

patética21. Como diz Ápsines no século III d.C., a respeito da cor dada a um argumento, o

orador especializa-se igualmente na arte de colocar em cena uma apresentação ou

representação colorida tanto pelo modo como analisa ou interpreta uma intenção como

pela eficácia da descrição de um fenómeno ou de um objecto22.

O discurso cumpre-se na evocação de uma imagem, e representar ou dar

visibilidade a essa imagem é função tanto da retórica como da pintura. Pois, como diz

Lichtenstein, “Se pensar é falar, falar é pintar e a única forma razoável de escrita é

aquela que tem a vivacidade do discurso e as qualidades representativas da pintura”23. E

19 Aristóteles, Poética 17. 1455a 22-26. 20 Quintiliano, Institutio Oratória 6.2.32. É bem possível que este texto tenha alguma ligação com o de Aristóteles ou se tenha elaborado a pensar nele (J. A. E. Bons & R. T. Lane, “Quintilian VI.2: On Emotion”, in Quintilian and the Law, Leuven: Leuven University Press, 2003, p. 142. 21 Segundo Quintiliano, há duas espécies de emoções: aquelas a que os gregos chamam pavqo", as momentâneas e mais excitadas; e aquelas a que chamam h\qo", as mais contidas e calmas. As primeiras perturbam e estimulam. As segundas persuadem e captam a boa vontade, a simpatia e a benevolência. Estas são mais próprias do proémio, tendo mais directamente a ver com o carácter do orador. Aquelas são próprias do epílogo, estando mais directamente ligadas às emoções dos ouvintes. 22 Ápsines 1.78; 5.13: Mervin R. Dilts & George A. Kennedy (eds.), Two Greek Rhetorical Treatises from the Roman Empire. Introduction, Text, and Translation of the Arts of Rhetoric Attributed to Anonymous Seguerianus and Apsines of Gadara, Leiden: Brill, 1997, pp. 101, 157. 23 Jacqueline Lichtenstein, op. cit. p. 30.

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acrescenta, citando Fénelon: “Retratar não é apenas descrever coisas, é representar os

seus contornos de forma tão concreta e vívida que o ouvinte quase se imagina a vê-los”.

É nesta arte de pintar, cita conceptualmente ainda, que “reside a diferença entre um

acto banal, puramente informativo, que meramente descreve eventos, e o relato

poético que os encena em imagens”24. Ora este poder de representação que quase

transforma o discurso oratório em pintura contempla a maior parte dos temas da

retórica, nomeadamente os que se enquadram no capítulo da elocutio, e abre caminho à

literaturização da própria retórica pela via do exercício mimético. Com palavras e sem

elas, o orador instrui, deleita, emociona, persuade, convence e move os ouvintes para a

acção. Desde a imagem ética que dá de si mesmo – não só pelo que diz, mas também

pela veemência patética do gesto, do movimento, da expressão dos olhos e da face – até

aos objectos, pessoas e imagens que coloca em cena25, o orador transporta para o seu

discurso toda a eloquência de uma arte que transforma o som em imagem e torna

possível a visualização ou visibilidade metafórica dos próprios factos.

2. ESTÉTICA LITERÁRIA E EFICÁCIA RETÓRICA DAS IMAGENS EM DEMÓSTENES

A verdadeira eloquência é, no fundo, a arte de pintar com palavras, de colorir

com metáforas, de desenhar com comparações, a fim de que o dizer se transforme em

revelar, desvendar e mostrar tanto pelo modo como se usa a cosmética do estilo, como

pela forma como por ela se dá energia e cor aos argumentos. Esta é a visão que Cícero

nos dá da verdadeira retórica, a mesma retórica que Quintiliano tanto elogiou26, e

24 Loc. Cit. Cf. Francois Slignac de La Mothe-Fénelon, Dialogues sur l’éloquence en général et celle de la chaire en particulier, avec une lettre écrite à l’Académie, Paris, 1718, 2nd dialogue. 25 Sim, porque segundo Cícero e, nas palavras de Lichtenstein, a pronunciação do discurso, à semelhança de uma representação, deve transformar o acto de comunicação em espectáculo, o orador em actor e os ouvintes em colaboradores. Pois a vitória que se almeja alcançar não o resultado de uma sedução elegante e gentil nem o desfecho feliz de beleza e prazer, mas o resultado duro e difícil de uma confrontação que assume a forma de uma batalha (Cícero, Brutus 9.37; ver Jacqueline Lichtenstein, op. cit. p. 72). 26 Num tributo entusiástico à forma como Cícero sabe pintar o objecto do seu discurso, Quintiliano interroga-se: “Acaso M. Túlio não despertou em brevíssimas palavras todas as emoções ao relatar a flagelação de um cidadão romano, não só descrevendo a posição da vítima, o lugar onde o ultraje foi cometido e a natureza da punição, mas também louvando a coragem com que ele a suportou?... Mais ainda, não conseguiu ele, ao longo de toda a descrição, despertar o fogo da mais veemente indignação sobre a desgraça de Filodemo e comover-nos até às lágrimas quando falava da punição e descrevia, ou melhor, nos mostrava como numa representação o pai a chorar sobre morte do filho e o filho sobre a morte do pai? (Institutio Oratoria 4.2.113-114).

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Demóstenes tão lapidar e paradigmaticamente cultivou; uma retórica capaz de atingir a

essência do estilo sublime; estilo “que deve ser veemente e majestoso, adornado e

grave, ricamente colorido e violentamente patético” e, ao mesmo tempo,

comedidamente temperado e contido para que o efeito resultante seja uma verdadeira

catarse ética das emoções nos limites do justo, do belo e do bom. Como diria afinal

Quintiliano, mesmo em relação aos cuidados a ter com a expressão e o gesto na

pronunciação do discurso, “não é de admirar que estes gestos que dependem das várias

formas de movimento exerçam uma impressão tão grande nas almas, quando um

simples quadro, uma obra silenciosa e estática, de tal maneira penetra nos nossos

sentimentos mais íntimos que algumas vezes parece superar em poder a eloquência da

palavra falada”27.

Como diria mais tarde Hermógenes de Tarso, Demóstenes é a expressão suprema

da competência oratória, pois jamais negligenciou o facto de que o discurso de um

orador é para ser ouvido e também para ser visto. Ao deter-se sobre a forma ideal de

estilo e definir esta como a capacidade por excelência de utilizar correcta e

adequadamente todas as formas de estilo e todos os elementos que constituem o corpo

do discurso, o jovem educador sublinha:

Conhecer e ser capaz de empregar de forma conveniente, oportuna e correcta todas as espécies estilísticas e suas contrárias, e saber que espécies de provas e pensamentos melhor se ajustam ao proémio, à narração ou ao epílogo; em suma, como dizia, ser capaz de empregar todos os elementos que constituem o corpo de um discurso de forma conveniente e oportuna, parece-me ser a essência da verdadeira habilidade oratória. […] Pois se um orador souber quando deve usar cada estilo particular e quando o não deve, onde o deve usar, por quanto tempo, contra quem, como e porquê, e não só tiver esse conhecimento mas também for capaz de o pôr em prática, ele será o mais hábil de todos os oradores e poderá superar todos os demais, como também os superou Demóstenes.28 A Terceira Filípica é bem o claro exemplo de um discurso assim. Filipe II da

Macedónia avança subtilmente em direcção a Atenas. As cidades por onde passa são

arrasadas e, dos seus habitantes, uns são mortos e outros destituídos de todos os

direitos. A sua marcha sobre as Termópilas desperta finalmente os atenienses para o

27 Quintiliano, Institutio Oratoria 11.3.67. 28 Hermógenes, As Categorias Estilísticas do Discurso 2.369-370, editato por H. Rabe, Hermogenis Opera, Leipzig: Teubner, 1913; Stuttgart 1969. Cf. Hermogenes’ On Types of Style, Translated by Cecil W. Wooten, Chapel Hill and London: The University of North Carolina Press, 1987, pp. 101-102.

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perigo que se avizinha. Os debates sucedem-se na assembleia, mas o povo persiste na

indiferença e na apatia. Era então necessário em Atenas um cidadão com o génio e o

perfil oratório de Péricles, e esse cidadão foi Demóstenes. Mesmo assim, as suas duas

primeiras Filípicas não surtiram efeito. É verdade que, na primeira, ele chegou a

surpreender pela coragem do seu desempenho e pela habilidade com que apresentava

os argumentos. Persuadido de que o perigo real estava sobretudo na inércia e

passividade dos atenienses, Demóstenes bem propôs algumas medidas práticas e

realistas, mas não havia chegado ainda a hora de ser ouvido. Foi necessária a queda de

Olinto para os atenienses se darem conta de que nem sequer tinham condições de

ajudar uma cidade aliada. Após a assinatura da Paz de Filócrates, eles viram Filipe a

fazer o contrário do que prometera enganando uns povos, destruindo outros e

penetrando enfim na própria Hélade. É neste enquadramento político de tensão que

Demóstenes profere a sua Segunda Filípica a denunciar as intenções ocultas do rei, a

aconselhar medidas eficazes de acção estratégica e diplomática, e a apelar aos

sentimentos mais nobres da defesa da liberdade e da democracia. As permanentes

incursões de Filipe em todas as direcções sem descuidar Atenas, e a sujeição de um

número cada vez maior de cidades e povos aliados, levaram Demóstenes a despertar a

consciência dos seus concidadãos para a extrema gravidade desses eventos com uma

Terceira Filípica.

Demóstenes apresenta-se neste discurso como o homem de estado que faz

frente à ambição desmedida de Filipe em defesa da glória de Atenas. O vigor das ideias

defendidas, a veemência dos sentimentos despertados, a força da argumentação

desenvolvida, a beleza e abundância das imagens representadas, e a contagiante

sinceridade da mensagem patriótica retratada transformaram esta peça oratória num

dos seus mais belos, eloquentes e poderosos discursos políticos. Cada uma das partes se

encaixa harmonicamente no todo e em cada período o estilo se ajusta ao conteúdo, qual

fiel reflexo do sentido que transporta. De sorte que o raciocínio dialéctico, ciclicamente

desenvolvido e ciclicamente secundado por uma não menos densa narração ecfrástica e

paradigmática, se reduz a um simples e grande entimema estrutural que atravessa o

discurso inteiro e lhe serve de fio condutor e sua espinha dorsal: Se Atenas corre o

mesmo risco que as cidades agora escravizadas e enferma dos mesmos males que as

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destruíram, então urge despertar da actual inércia e agir enquanto há tempo para que o

nosso povo não venha a sofrer o mesmo fim.

No proémio, o orador descreve primeiro a situação como difícil mas não

desesperada. Depois, refere as causas que a ela conduziram: a inércia, a apatia, a

indiferença, a falta de patriotismo, a desmoralização dos costumes, a ausência de

integridade nos homens públicos. E, por fim, apela a uma colaboração esforçada e

generosa. Pois, se é a indiferença e a negligência que Filipe está a conseguir dominar e

não a cidade, então ainda há esperança.

No desenvolvimento da argumentação probatória, a prova e a narração como

que se interpenetram, apresentando-se divididas em duas partes e tendo como núcleo

central o capítulo 36. Na primeira parte, os eventos narrados justificam-se e sucedem-se

a ponto de permitirem a visualização de um movimento descendente da liberdade para

a escravidão. Na segunda parte, os eventos descritos e narrados encorajam e sustentam

o movimento ascendente da escravidão para a liberdade, agora com base numa cerrada

argumentação parenética. E, no seu centro, o quiasmo dialéctico promove a transição

de um movimento para o outro na ordem inversa, mediante a referência aos

antepassados dos atenienses e às nobres lições que eles inspiram, com vista à superação

do gravíssimo risco do presente. O interior deste movimento cíclico de um então/agora

para um agora/então contempla uma brevíssima referência ao exemplo modelar dos

fundadores da pátria helénica, qual testemunho de autoridade a provocar uma viragem

radical na consciência, na atitude e na decisão para a acção. E não é só a estrutura

concêntrica deste quiasmo a falar por si, é também a sábia distribuição das partículas de

oposição e enlace a produzir e gerir os movimentos de divergência ou convergência,

aqui, como em todo o discurso, conforme a conveniência, a necessidade e oportunidade

do momento.

A – Qual é, pois, a causa desta situação? Pois não é sem razão nem justa causa que os gregos de então estavam tão prontos para a liberdade

B – como os seus descendentes hoje estão para a escravidão. C – Havia então, atenienses, na alma da maioria

B’ – uma coisa que agora não existe;

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A’ – uma coisa que triunfou sobre a riqueza dos persas e introduziu a liberdade na Hélade, que nunca foi vencida nem por mar nem por terra, mas que agora, ao ser destruída, tudo corrompeu e transtornou.29

No corpo da prova, reina o silogismo retórico e dialéctico, mas o motor essencial

do silogismo é o princípio da contradição. Numa primeira unidade argumentativa, por

exemplo, imperam o raciocínio entimemático, a antítese (palavras/acções), a inclusão e

o quiasmo (guerra/paz/guerra; paz/armas - falsa paz - guerra/paz), com especial

incidência no raciocínio que se apoia na estrutura dos períodos hipotéticos,

organizados também por vezes em estrutura quiástica (A- se/ B- então// C- mas porque//

B’- pois então/ A’- se).

Pois bem, se todos reconhecêssemos que Filipe faz a guerra à cidade e viola o tratado de paz, então não seria necessário que o orador dissesse ou aconselhasse outra coisa senão quais os meios mais seguros e eficazes de o repelirmos. Mas porque alguns são tão insensatos que – apesar de aquele tomar cidades, reter muitas das vossas possessões e afectar a todos – toleram que haja quem diga e repita na assembleia que os autores da guerra são alguns de vós, então é necessário que nos ponhamos em guarda e encaremos de frente o problema. Pois há o temor de que, se algum dia alguém propuser ou aconselhar que nos defendamos, caia na acusação de haver suscitado a guerra (6-7).

Fala de paz quem faz a guerra, para manter a inércia. Seria uma loucura esperar uma

declaração de guerra por parte de Filipe, pois se o não fez às cidades que destruiu,

também o não fará a nós.

Se é possível a nossa cidade permanecer em paz e isso depende de nós, começo por declarar que temos de mantê-la e peço a quem assim pensa que faça essa proposta, a leve à prática e não nos engane. Mas se outra pessoa, com as armas na mão e um exército poderoso ao seu redor, avança sobre vós em nome da paz e ao mesmo tempo se envolve em actos de guerra, que remédio temos senão defender-nos? (8).

Os tópicos do passado/presente e do mais/menos são uma constante em

crescendo, assim como as antítese paz/guerra e palavras/acções, o recurso à

29 Verifiquem-se as partículas no texto grego: Ti¿ ouÅn aiãtion toutwni¿; ou) ga\r aÃneu lo/gou kaiì dikai¿aj ai¹ti¿aj ouÃte to/q' ouÀtwj eiåxon e(toi¿-mwj pro\j e)leuqeri¿an oi¸ àEllhnej ouÃte nu=n pro\j to\ douleu/ein. hÅn ti to/t', hÅn, wÕ aÃndrej ¹AqhnaiÍoi, e)n taiÍj tw½n pollw½n dianoi¿aij, oÁ nu=n ou)k eÃstin, oÁ kaiì tou= Persw½n e)kra/thse plou/tou kaiì e)leuqe/ran hÅge th\n ¸Ella/da kaiì ouÃte naumaxi¿aj ouÃte pezh=j ma/xhj ou) demia=j h(tta=to, nu=n d' a)polwlo\j aÀpanta lelu/mantai kaiì aÃnw kaiì ka/tw pepoi¿hke ta\ tw½n ¸Ellh/nwnpra/gmata.

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interrogação retórica e as sequências de comparação, entimema e exemplos. Também a

narração e descrição crítica argumentada se mistura cada vez mais com a

argumentação dedutiva. Na cadeia argumentativa dos capítulos 15-20, por exemplo, o

silogismo retórico nutre-se do exemplo e, vitalizado pela interrogatio, rapidamente nos

conduz a uma conclusão óbvia: Para ver que um povo está em guerra com outro, uma

pessoa não se baseia em palavras mas em acções. Ora que acções realizou Filipe na

Trácia em prol da paz? E agora, que faz ele no Quersoneso, na Eubeia e no Peloponeso?

“Declaro que ele nos faz a guerra desde o preciso dia em que destruiu os focenses.

Declaro também que sereis sábios se vos defenderdes agora. Mas, se deixardes passar a

oportunidade, quando o quiserdes fazer já não será possível” (19). Importa, pois, deixar

as discussões e passar à acção enquanto é tempo.

Na argumentação narrativa dos capítulos 21-24, os eventos sucedem-se

vertiginosamente numa sequência de narração, descrição, interpretação, comentário e

aplicação que reflecte e provoca uma reciprocidade empática fortemente emocional e

de intenso efeito persuasivo.

Mas vejo que todos, a começar por vós, lhe consentiram o que, até agora, tem sido a causa de todas as guerras em que os gregos têm estado envolvidos. E o que é isso? É o direito de fazer o que quer – de calmamente mutilar e espoliar os gregos um a um, de atacar as suas cidades e as reduzir à escravidão. Na verdade, a vossa hegemonia na Grécia durou setenta e três anos30, e a de Esparta vinte e nove31. Também os tebanos exerceram ultimamente alguma autoridade após a batalha de Leuctras. E, contudo, nem a vós, nem aos tebanos, nem aos lacedemónios foi algum dia concedido pelos gregos o direito de fazerdes os que queríeis, senhores atenienses; bem longe disso (22-23).

3. ENERGIA CROMÁTICA DOS ARGUMENTOS

Como é que os argumentos, uma vez encontrados e ordenados, se devem

apresentar de forma viva e penetrante? A verdade penetra em nós por três vias: pela via

lógica e psicológica, e esta pelo carácter e as emoções. Antes de nos persuadir, ela deve

instruir-nos, seduzir-nos, agradar ao ouvido e deleitar. E, para produzir esse efeito, são

30 Desde aproximadamente o fim da guerra persa, 477 a.C., três anos após a batalha de Salamina, até ao fim da guerra do Peloponneso, em 405 a.C. O número exacto de setenta e três anos tem uma leitura mais flexível noutros escritores (cf. Lísias, *Epitavfio", 55; Platão, Epistulae 7, 443; e Isócrates, Panegyricus 122). 31 De 405 a.C., quando os lacedemónios venceram a batalha de Egos Pótamos, a 376 a.C., quando eles foram derrotados pelos atenienses na batalha de Naxos.

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utilizados os elementos da língua: o vocabulário, as figuras, a cadência rítmica e a

estrutura da frase. Ao nível do vocabulário, Demóstenes usa palavras muito comuns,

expressões proverbiais e poéticas, termos enérgicos, formas verbais substantivadas. As

imagens e figuras mais comuns e características do seu estilo são comparações,

metáforas, aliterações, antíteses, paronomásias, hipérbatos, quiasmos, assíndetos,

polissíndetos, etc. Quanto à cadência e ao ritmo, evita os membros curtos e antitéticos

de Górgias, e as belas mas monótonas simetrias de Isócrates. A estrutura da frase é, no

seu conjunto, nervosa acusando com alguma regularidade rupturas bruscas de

construção numa sequência por vezes tocante de frases longas e curtas. Impera a

concisão e suavidade da frase.

É com rara mestria que Demóstenes joga com a relação entre a ordem dos

argumentos e os estados de causa. Ao mesmo tempo que se ocupa da coerência interna

do discurso e da harmonia entre todas as suas partes, ele vai elucidando a questão da

stasis: quais os factos? São verdadeiros ou não? É necessário defini-los? E, uma vez

definidos, precisam ou não de ser qualificados? Saber fazer as perguntas certas no

momento certo é uma arte, e Demóstenes sabe como poucos gerir a interacção entre

estrutura e stasis nos mais diversos níveis da articulação e configuração do discurso. Daí

a frequência doseada e controlada da interrogatio e a forma como estratégias desta

natureza contribuem para assegurar a coesão e a interpretação dos factos narrados,

bem como a persuasão da verdade que eles encerram. É o caso dos capítulos 25 a 36 em

que, a uma sequência de argumentação narrativa tecida de comparação, entimema,

analogia e exemplo, se sucedem em crescendo unidades de seis (25-27), seis (32-33), seis

(32-33) e sete (34-36) erotemas. Nesta segunda unidade de argumentação, compara-se a

presente situação com a guerra entre Atenas e Esparta para mostrar que todas as

injustiças cometidas pelos lacedemónios em trinta anos e pelos seus antepassados em

setenta são menores do que os agravos agora recebidos de Filipe em apenas treze. Além

disso, eram ofensas perpetradas por filhos legítimos da Hélade, e como questões de

família se resolviam (25-31).

Certamente sabeis que tudo o que os gregos sofreram da parte dos lacedemónios ou da nossa eram ofensas perpetradas por filhos legítimos da Hélade, e podiam considerar-se actos de um filho legítimo, nascido em casa abastada, culpado de alguma falta ou erro na administração do seu património; a sua actuação pode

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por isso merecer censura e reprovação, mas ao menos não se pode dizer que o fazia sem ser da família ou sem ter direito à herança. Mas se algum escravo ou filho bastardo esbanjasse ou dissipasse um património que lhe não pertencia, por Héracles, quanto mais monstruoso e indignante o não considerariam todos! Não é, porém, assim que pensam de Filipe e da sua conduta actual, embora ele não seja grego e nada tenha em comum com os gregos, nem sequer proceda de um povo bárbaro de que se possa falar bem, antes seja um miserável macedónio, oriundo de um país onde nem se quer se pode comprar um escravo decente (30-31).

O fluir das imagens e das palavras é neste passo de tal modo denso, veemente e

penetrante que a clareza se torna ainda mais nítida e pura, a grandiosidade se mostra

solene, veemente e luminosa, a elegância e a beleza se sublimam, o carácter se perfila

nos seus traços de doçura, simplicidade e equidade, a sinceridade se visualiza nos tons

de severidade, e em todos estes modos de produzir estilo inexcedivelmente se cumpre a

habilidade e competência do orador graças ao domínio pleno de uma retórica

consumada.

A disposição dos argumentos interage com pensamentos, palavras, figuras,

coloração linguística, cadência e ritmo. O poder das ideias desvenda-se na subtil e

contida expressividade retórica e poética do estilo; pois tudo o que faz com as palavras

– quer em termos de pureza linguística, clareza de expressão e ornato, quer na

acomodação de cada uma das partes ao todo e na adaptação do discurso à respectiva

situação retórica – está ao serviço da comunicação das ideias. E, quanto mais fulgurante

e bela for a eficácia artística e a excelência estética da expressão, tanto maior será o

sucesso da persuasão32. Atente-se para as imagens contidas nos seguintes parágrafos:

Pelo contrário, assistimos com indiferença ao crescente poder deste homem, todos nós convencidos, como me parece, de ganhar tempo enquanto outros

32 É isso o que aliás sustenta Quintiliano ao dizer: “Por meio do estilo cuidado e pelo ornato da expressão, o orador recomenda-se ao mesmo tempo a si mesmo, e enquanto os demais recursos de ornamentação apelam ao juízo dos entendidos, este dom apela à aprovação entusiástica de todos, e o orador que o possui luta não apenas com armas contundentes, mas também com armas refulgentes. Se na sua defesa de Cornélio Cícero se tivesse apenas limitado a instruir o juiz e a falar em latim claro e idiomático sem um pensamento para além dos interesses do seu caso, teria ele alguma vez conseguido que o povo romano manifestasse a sua admiração não só por aclamação, mas também com aplausos? Não, foi a sublimidade e o esplendor, os brilho e autoridade da sua eloquência que evocou tão clamoroso entusiasmo e tantos aplausos… Na minha opinião, os ouvintes nem se deram conta do que estavam a fazer. Os seus aplausos nem brotaram da sua reflexão nem da sua vontade; tomados de uma espécie de delírio e, sem consciência do lugar em que se encontravam, explodiram espontaneamente num perfeito arrebatamento de satisfação (Institutio Oratoria 8.3.2-4).

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estão a ser destruídos, não nos preocupando e nenhum esforço fazendo para salvar a Grécia; quando afinal ninguém ignora que Filipe, como um ataque periódico de febre ou qualquer outra doença, acabará por atingir mesmo aqueles que agora se consideram fora do seu alcance (29). Não dita ele aos tessálios a sua forma de governo? Não envia mercenários, uns a Portmo33 para acabar com a democracia na Erétria, e outros a Oreu para estabelecer a tirania de Filípides? Todavia, os gregos vêem tudo isto e o toleram. Dá-me mesmo a impressão que olham para ele como para uma tempestade de granizo, cada um pedindo que lhe não caia em cima, mas ninguém fazendo qualquer esforço para a evitar (33).

É por isso que Demóstenes nos está continuamente a surpreender com a

fecundante diversidade do seu estilo. As categorias fundamentais que o enformam são a

clareza, a grandiosidade, a beleza, a vivacidade, o carácter, a sinceridade, a habilidade e

a veemência – categorias de estilo tão bem plasmadas na urdidura e tessitura do texto

que, contempladas no seu todo, nos transmitem a visão de uma imagem multicor que

toca por vezes as fronteiras do fascínio e do deslumbramento. A componente ética e

patética do discurso verifica-se sobretudo na apóstrofe (“senhores atenienses!”,

“cidadãos de Atenas!”), nos juramentos, nas preces, no apelo a nobres emoções

colectivas (honra, glória, amor à pátria), no apelo a sentimentos contrários como o

ódio, a cólera e a vingança, no recurso à ironia, à comparação e à antítese. Na sua arte

de fazer um apelo emocional e o usar estrategicamente, Demóstenes é capaz de

descrever e construir tão bem a representação mental de um objecto que se fica com a

impressão de o ter visto com os olhos. São os casos exemplares da traição em Olinto34,

da rendição de Erétria na Eubeia35 e o do testemunho do oritano Eufreu36.

33 Era o porto de Erétria, cidade que Estrabão diz ter sido fundada pelos atenienses antes da guerra de Tróia. 34 “Em Olinto, havia dois partidos na cena política: uns, inteiramente submissos a Filipe; outros, consagrados ao bem público, lutando por preservar a liberdade dos seus concidadãos. E qual deles arruinou a sua pátria? Quem traiu a cavalaria, cuja traição selou a ruína de Olinto? Fora os partidários de Filipe; aqueles que, quando a cidade ainda existia, tentaram difamar e caluniar os que defendiam o bem comum, a ponto de chegarem a persuadir o povo de Olinto a expulsar Apolónides” (56). 35 “Pois bem, não foi só em Olinto que este costume produziu todos esses males. Mas em Erétria, quando o povo, livre de Plutarco e seus mercenários,35 dominava a cidade e o Portmo, alguns deles encaminhavam o governo para vós, mas outros para Filipe. E, como os pobres e desgraçados erétrios davam quase sempre, ou melhor, sempre ouvidos a estes últimos, acabaram por ser persuadidos a expulsar os que falavam para seu bem. Com efeito, Filipe, seu aliado, depois de enviar Hiponico com mil mercenários, demoliu as muralhas do Portmo e estabeleceu três tiranos: Hiparco, Automedonte e Clitarco. Depois disso, expulsou por duas vezes da sua terra os que se queriam salvar, enviando primeiro Euríloco com seus mercenários, e depois Parménion com os dele” (57-58).

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Os exemplos contidos na terceira unidade de argumentação (46-75), já referidos

nos primeiros capítulos, são agora retomados e repetidos em estrutura quiástica com

nova eficácia lógica, psicológica e estética formando uma belíssima figura de simetria

concêntrica em que o fim e o princípio se tocam, e em que o exemplo paradigmático de

Eufreu dialecticamente viabiliza a transição de uma dinâmica de dor e desilusão para

uma outra de esperança e liberdade consumadas. Eles se arrumam na seguinte ordem:

Olinto, Erétria, Oreu – Eufreu/Eufreu – Oreu, Erétria, Olinto. A história de Eufreu surge

no centro desta figura quiástica numa sequência narrativa de factos, causa, efeito,

exemplo e desfecho ou conclusão. Denunciados por Eufreu, os traidores da cidade de

Oreu prenderam-no e o povo aprovou, mais interessado na defesa imediata dos seus

interesses pessoais. E qual o prémio? A queda da cidade e o suicídio de Eufreu. A ironia

fina da resposta é aqui de tal modo perturbadora e tocante que é impossível ficar

insensível à lapidar expressão “é isto o que eu temo que nos aconteça”, e sobretudo ao

apelo do argumento final.

Oh, quanto eu desejaria, senhores atenienses, que a situação não tivesse esse desfecho. É melhor morrer mil vezes do que fazer algo em adulação de Filipe e sacrificar alguns dos que falam em vosso favor. Belo prémio recebeu o povo dos oritanos por se entregar aos amigos de Filipe e rejeitar Eufreu! Belo favor alcançou também o povo de Erétria por ter expulsado os vossos embaixadores e se haver entregado a Clitarco! Agora estão escravizados, sendo flagelados e torturados. De bela maneira tratou ele os olíntios, que elegeram Lástenes como hiparco e desterraram Apolónides! (65-66).

36 “E que necessidade há de referir muitos exemplos? Basta referir que em Oreu Filístides, Menipo, Sócrates, Toas e Agapeu, os mesmos homens que agora controlam a cidade, eram, como toda a gente sabia, agentes de Filipe; mas que Eufreu, um homem que antes residiu aqui entre nós, trabalhava pela liberdade e emancipação dos seus conterrâneos. Levaria muito tempo a contar o modo como este homem foi repetidamente ultrajado e insultado pelo povo; mas, um ano antes da tomada da cidade, ao dar-se conta das maquinações de Filístides e seu partido, denunciou este como traidor E então, um número de indivíduos que eram membros do conselho e tinham Filipe por chefe, reuniram-se e meteram Eufreu na prisão sob pretexto de perturbar a cidade. Quando o povo de Oreu viu isto, em vez de o socorrer e golpear os outros, não só não se indignou contra eles, como também se alegrou e disse que este recebeu o que merecia. Depois disto, os conspiradores trabalhavam com toda a liberdade que desejavam para a tomada da cidade, e preparavam-se para a execução dos seus planos. E se alguém do povo se dava conta, calava-se e ficava aterrorizado a recordar em silêncio a sorte de Eufreu. Estavam tão abatidos que, embora o perigo se aproximasse, ninguém ousou pronunciar palavra até que o inimigo, concluídos os seus preparativos, se aproximou das muralhas. Então, enquanto uns se defendiam, outros se entregavam. E depois que a cidade foi tomada desta forma tão vergonhosa e covarde, aqueles a governavam e tiranizavam, tendo então desterrado ou morto os que, para salvar-se a si mesmos e a Eufreu estavam dispostos a fazer qualquer coisa. O bom Eufreu, porém, suicidou-se, testemunhando com o seu acto que com justiça e pureza se opusera a Filipe, a favor dos seus concidadão” (59-65).

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A figura da nau do estado é, de facto, a escolha certa para introduzir o grande

clímax da argumentação, até pelo peso das ressonâncias históricas e literárias de tal

imagem37.

Além disso, é uma vergonha ter que dizer algum dia: «porquê? Quem iria imaginar este desfecho? Por Zeus, devíamos ter feito isto e não aquilo.» Muitas coisas poderiam agora dizer os olíntios que, se então as tivessem previsto, não teriam sucumbido. Muitas também os oritanos, muitas os focenses, e muitas todos os que pereceram. Mas de que lhes serve agora? Enquanto a nau está a flutuar, seja grande ou pequena, é necessário que os marinheiros, o piloto e toda a gente resolutamente se afadiguem e cuidem de38 que ninguém, com intenção ou sem ela, a faça soçobrar; mas todo o cuidado é vão depois que ela se afunda (68-69).

A partir daqui, e num ingente e derradeiro apelo à acção, os tópicos retóricos sucedem-

se e as linhas de argumentação se nos apresentam mais elaboradas; nomeadamente, os

tópicos de causa/efeito, presente/futuro, justo, contrário, conveniente, útil e

necessário repetem-se e, nos dois argumentos, a prova primária e secundária

convergem numa sucessão de tese, razão, contrário, confirmação e exemplo.

Não digo, contudo, que exorteis os demais, se não estais dispostos a fazer por vós mesmos o que é necessário; pois seria fútil abandonar os nossos próprios interesses e pretender que cuidamos dos dos outros, ou olhar o presente com indiferença e atemorizar os nossos vizinhos com os perigos do futuro. Eu não proponho isso, mas afirmo que devemos enviar recursos às forças que estão no Quersoneso e fazer tudo quanto nos pedem; e que, enquanto nós próprios nos preparamos, devemos convocar, reunir, instruir e exortar os restantes gregos. Este é o dever de uma cidade que tem uma reputação tão grande como a vossa (73).

Também partículas e conjunções, figuras como assíndeto, o polissíndeto, a anáfora, a

enumeração e o clímax,39 as formas nominais do verbo40 e o próprio período oratório

desempenham um papel determinante. Na variação dos sons, das construções, do

37 Veja-se, a propósito, o poema lírico de Alceu (Fr. 326 Lobel-Page, vv. 1-14). 38 tou'to skopei'sqai. A avaliar pelo uso corrente que Demóstenes faz de skopei'n e skopei'sqai, parece não haver qualquer diferença perceptível de sentido. 39 Vejam-se a anáfora em articulação com o polissíndeto no capítulo 72: oujdeV... oujdeV... kaiV... kaiV... kaiV... kaiV... kaiV... kaiV... kaiV... mhvte...mhvte. 40 Das vinte e quarto formas verbais utilizadas no brevíssimo capítulo 23, treze são infinitivos, sete particípios e apenas quatro indicativos (levgw, duas vezes; fhmi, e uJpavrcei). Curiosamente, os últimos quatro infinitivos sucedem-se assindeticamente, sem recurso ao uso da copulativa.

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vocabulário, do movimento e vibração da frase nada falta: nem a harmonia rítmica do

período, nem o fulgor poético, nem a sensibilidade dramática, nem a profundidade

estética, e muito menos a força e eficácia persuasivas. Narração, descrição,

argumentação e exemplo se fundem, e expressivamente interagem no pleno exercício

retórico das cinco fontes do sublime.41 Perante este derradeiro tour de force em que as

componentes ética e patética da oratória atingem o seu clímax, a conclusão encerra

com as seguintes palavras:

Mas se cada um fica inactivo, procurando satisfazer os seus desejos e cuidando de evitar cumprir o seu próprio dever, primeiro nunca encontrará ninguém que o faça em seu lugar, depois temo que chegue o momento em que tenhamos de fazer de uma só vez tudo o que agora não queremos. É isto o que tenho a dizer e a propor. E creio que se esta proposta passar, ainda podemos salvar a situação. Mas se alguém tem alguma proposta melhor, que a faça e nos aconselhe. Imploro a todos os deuses que a decisão que tomardes seja o que mais nos convém (75-76).

Tal como no passado, também hoje importa pensar a retórica na perspectiva

certa, para justamente lhe darmos a atenção e espaço necessários. As técnicas de

sedução e a manipulação das imagens e dos factos parecem por vezes mais importantes

do que uma argumentação sólida, bem conseguida e iluminada pelas cores da retórica.

Como Van Heusden observa e se interroga, “a sedução, a coerção e a lógica da

necessidade assumiram o lugar dos debates. Somos influenciados por factos e por

imagens apelativas e ameaçadoras, mas será que ainda nos deixamos influenciar pelo

sentido das coisas, por conceitos e valores, por alvos e modelos partilhados?”42.

Aristóteles, Cícero e Quintiliano deveriam ajudar-nos a pensar de novo a retórica e a

reavaliar o verdadeiro sentido da linguagem, da representação das imagens e dos

símbolos. Parece-me mesmo que oradores como Demóstenes devem voltar a ser

41 Tal como referidas e caracterizadas por Pseudo-Longino no seu tratado Do Sublime 8-43: a capacidade de produzir pensamentos elevados, e de provocar emoções fortes ou paixões veementes, o uso apropriado das figuras de pensamento de expressão, a escolha adequada de palavras, metáforas e outra linguagem ornamental, a composição rítmica e eufónica. 42 Barend Van Heusden,”The Semiotic Minuet in Quintilian’s Rhetoric: On the Treatment of Figures in Book IX of the Institutio Oratoria”, in Quintilian and the Law: The Art of Persuasion in Law and Politics, Leuven: Leuven University Press, 2003, p. 236.

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atentamente lidos; pois os seus pontos de reflexão e a sua mensagem são hoje tão

relevantes e oportunos como o foram há bem mais de dois mil anos.