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A tipologia das Constituições: a análise tomada pelos conceitos de sistema econômico, forma e regime de sistema econômico. Alexandre Walmott Borges Bernardo Morais Cavalcanti 1. Introdução – 2. O sistema econômico - 3. O conceito de sistema econômico – 4. Forma e regime do sistema – 5. A identidade normativa do sistema econômico – 6. Delineamentos do direito – as formas ou regimes do capitalismo na evolução constitucional - 7. Gênese do capitalismo – o Estado liberal clássico – 8. O constitucionalismo novecentista – monopólios, oligopólios e a questão social – 9. O Estado com ação econômica e produtor de bens de consumo social - 10. O Estado Econômico com fins Sociais – 11. Modelos alternativos ao capitalismo – 12. Crise do modelo do Estado econômico - 13. Considerações finais. RESUMO O artigo oferece critérios classificatórios das Constituições, no quadro geral da classificação das Constituições da teoria constitucional, a partir da tipologia do Estado e do sistema econômico. A tipologia do Estado utilizada é a da matriz do Estado Liberal – com a derivação do Estado Social – em contraste com os modelos do Estado do Socialismo Real e dos modelos Autoritários de Direita. Ao cotejo da tipologia do Estado, acrescenta-se à classificação das Constituições a tipologia dos sistemas econômicos e, no sistema econômico capitalista, as formas ou regimes econômicos. ABSTRACT This article offers classification criteria for Constitutions, in the general area of the classification of the Constitutions in the constitutional theory, from the typology of the State and the economic system. The typology of the State used is the one of the Liberal State - with its derivation of the Social State - in contrast with the models of the State of the Real Socialism and the Authoritarian rightwing models. Comparing with the typology of the state, the typology of the economic systems is added to the classification of the constitutions and, in the capitalist economic system, the economic forms or régimes. Professor da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Universidade de Uberaba- UNIUBE e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Advogado. Professor da União Educacional Minas Gerais – UNIMINAS e mestrando em Direito Público pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP. Advogado.

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A tipologia das Constituições: a análise tomada pelos conceitos de sistema econômico,

forma e regime de sistema econômico.

Alexandre Walmott Borges •

Bernardo Morais Cavalcanti•

1. Introdução – 2. O sistema econômico - 3. O conceito de sistema econômico – 4. Forma e

regime do sistema – 5. A identidade normativa do sistema econômico – 6. Delineamentos do

direito – as formas ou regimes do capitalismo na evolução constitucional - 7. Gênese do

capitalismo – o Estado liberal clássico – 8. O constitucionalismo novecentista – monopólios,

oligopólios e a questão social – 9. O Estado com ação econômica e produtor de bens de

consumo social - 10. O Estado Econômico com fins Sociais – 11. Modelos alternativos ao

capitalismo – 12. Crise do modelo do Estado econômico - 13. Considerações finais.

RESUMO

O artigo oferece critérios classificatórios das Constituições, no quadro geral da classificação das

Constituições da teoria constitucional, a partir da tipologia do Estado e do sistema econômico. A

tipologia do Estado utilizada é a da matriz do Estado Liberal – com a derivação do Estado Social – em

contraste com os modelos do Estado do Socialismo Real e dos modelos Autoritários de Direita. Ao

cotejo da tipologia do Estado, acrescenta-se à classificação das Constituições a tipologia dos sistemas

econômicos e, no sistema econômico capitalista, as formas ou regimes econômicos.

ABSTRACT

This article offers classification criteria for Constitutions, in the general area of the classification of the

Constitutions in the constitutional theory, from the typology of the State and the economic system. The

typology of the State used is the one of the Liberal State - with its derivation of the Social State - in

contrast with the models of the State of the Real Socialism and the Authoritarian rightwing models.

Comparing with the typology of the state, the typology of the economic systems is added to the

classification of the constitutions and, in the capitalist economic system, the economic forms or

régimes.

• Professor da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Universidade de Uberaba- UNIUBE e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Advogado. • Professor da União Educacional Minas Gerais – UNIMINAS e mestrando em Direito Público pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP. Advogado.

1. Introdução. A teoria constitucional elabora quadros classificatórios da experiência

constitucional e do constitucionalismo. Os quadros classificatórios, também designados classificação

das Constituições, buscam captar e desenvolver tipologias das Constituições mundiais. Pode-se incluir

este esforço classificatório dentro da construção conceitual da dogmática jurídica analítica, buscando

oferecer referências sistemáticas, operacionais e valorativas do fenômeno constitucional. O presente

artigo explora um dos critérios de classificação das Constituições a partir do modelo ou tipologia do

Estado ao qual se vincula: Estado Social, Estado Liberal. A ordenação desta classificação apóia-se em

dois conceitos: o sistema econômico e a forma ou regime concreto do sistema econômico. O artigo

procura descrever modelos constitucionais combinando, ao início, a matriz da tipologia da teoria geral

do Estado com, a posterior, utilização da tipologia de sistema econômico, forma e regime do sistema

econômico. Assim, vincula o critério classificatório das Constituições a estas matrizes tipológicas.

2. O sistema econômico. Iniciamos o texto procurando definir como as escolhas políticas

fundamentais estampadas na Constituição são delimitadas por uma organização econômica peculiar. A

Constituição será considerada, em nossa tarefa, documento jurídico em que são expressas as

contradições, os compromissos, as demandas e os interesses dos vários grupos da sociedade. Isso levará

o leitor à análise de uma complexa relação: entre o plano normativo e político da Constituição e o

campo econômico de organização da sociedade.

O objetivo desta parte do trabalho é transmitir um quadro compreensivo que permita a

identificação de alguns elementos que descrevam as formas de organização econômica. O que

mencionamos será bem entendido se, com ajuda desses elementos, o estudioso do Direito conseguir

interpretar, na Constituição, a série de peças que diferenciam a forma de organização da vida

econômica de sociedades primitivas e contemporâneas, de nossa sociedade, que chamamos capitalista e,

agora segundo a Constituição, capitalista de Estado de Bem Estar.

Em primeiro plano, faremos algumas ilustrações sobre a base econômica. Como acentua Robert

Wright, a história do homem é dotada de sentido e podemos analisar a longa evolução dentro de um

quadro de referência. A perspectiva de Wright é de que a referência da história humana pode ser

encontrada na teoria dos jogos em jogos de soma zero e jogos de soma não zero. Jogos de soma não zero são

aqueles nos quais os resultados tendem a ser igualmente bons ou igualmente ruins para todos os

envolvidos. As transformações da humanidade são o resultado de jogo de soma não zero. Saltos de

qualidade, tecnologia e de novas formas de satisfação das necessidades humanas são, no mais das vezes,

avanços nos quais os resultados são partilhados por todos. 1

As primeiras organizações sociais humanas - passando ao largo de mais aprofundada discussão

sobre a estrutura de clãs, famílias ou etnias, - adotaram formas de divisão de tarefas, responsabilidades,

partilhando conhecimentos e tecnologias comuns, garantindo-se a satisfação das necessidades. Hoje 1 WRIGHT, R. Não zero. A lógica do destino humano. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 16-22.

partilhamos conhecimentos por via eletrônica, oferecemos mensagens em meios impressos com

tiragem massificada (como é o caso desta revista) e partilhamos formas de satisfação de necessidades. É

o espírito do jogo de soma não zero.

Esses dados ilustrativos nos aproximam da construção singularmente importante para a

compreensão da história do homem: os jogos de soma zero. Nos jogos de soma zero o resultado de cada

participante é inverso ao do contendor. Muito de nossa pulsão criativa e dos saltos tecnológicos

encontram-se na busca por status, nas vantagens pessoais ou no destaque individual. Por isso

encontramos hierarquias, alguns com mais, outros com menos, poderosos e não tão poderosos. De

qualquer maneira, usando o exemplo de Wright, não adianta alguém desenvolver genialmente um

chapéu que crave uma seta na cabeça do usuário. O resultado favorável no jogo de soma zero depende

de aceitação e reconhecimento pelos demais. De novo as vantagens para o jogo de soma não zero. 2

Aqui há uma ironia. A concorrência por posições de alto status é um jogo de soma zero, já que

elas são, por definição, um recurso escasso. Não obstante, um modo de se lograr êxito nessa

competição é inventar tecnologias que criem novos jogos de soma não zero. 3

A vida do homem está alicerçada na tensão entre jogos de soma zero e de soma não zero. A economia

é o campo no qual verificamos o quanto a busca de perdas ou ganhos igualmente partilhados é

importante. E é claro, o direito tem papel fundamental na organização do jogo de soma não zero.

Protege-se o invento e tutela-se a propriedade individual ao mesmo tempo em que determinamos

normas para a mais ampla negociação e tráfego na sociedade satisfação individual ou, jogo de soma zero.

Normas previdenciárias determinam que arquemos com custos, todos nós, para momentos de

infortúnio de alguns de nós – jogo de soma não zero.

A satisfação das necessidades humanas pode ser mais bem compreendida na tomada da

economia numa concepção bastante abrangente. A economia deve ser entendida como o conjunto em

que o homem é a peça central do processo que tem a finalidade de suprir as próprias necessidades do

homem. São os elementos materiais, encontrados no ambiente, que lhe garantem a sobrevivência e a

satisfação das necessidades. Portanto, temos dois elementos no conjunto-processo das atividades

econômicas: elementos materiais e elementos pessoais. A integração, ou melhor, as múltiplas relações

entre os elementos pessoais (o homem que produz, o homem que consome, o homem que inova), os

elementos materiais (o que é produzido, o que é consumido, com o que é produzido, com o que é

consumido, com qual elemento tecnológico, com quais artefatos) que permitem diferenciar tipos

econômicos, ou seja, formas de organização econômica diferenciadas. As peculiaridades em que se

desenrolam as ligações pessoa-matéria vão permitir que classifiquemos vários tipos concretos de

organização econômica. 4

2 WRIGHT, R. Op. cit., p. 30-40. 3 WRIGHT, R. Op. cit., p. 38. 4 MOREIRA, V. A ordem jurídica do capitalismo. 3. ed. Coimbra: Centelha, 1978. p. 19-21.

As opções políticas de um constituinte, ao redigir uma Constituição, recaem sobre algum tipo

econômico, sobre uma peculiar forma de organização das atividades econômicas ou, em outras

palavras, sobre uma peculiar forma de organizar a relação entre os elementos materiais e pessoais.

Assim, dividem-se as Constituições ao abraçarem formas de organização diferenciadas: o capitalismo ou

o socialismo. A ordem de normas da Constituição é condicionada por elementos de cada um desses

tipos de organização da economia. Logo, devemos lançar luzes sobre os tipos econômicos,

esclarecendo o que é diferente entre eles, para uma classificação mais catalogada e ordenada. Ao se

falar em ordenação e catalogação, vai-se em busca do conceito de sistema. A peculiar forma de

ordenação das atividades econômicas permitirá que identifiquemos um sistema econômico.

3. O conceito de sistema econômico. Conceituando o sistema econômico ficará mais fácil

a identificação dos vários tipos de organização da economia. Conforme indica Vital Moreira, o conceito

de sistema econômico possibilita a visão de um conjunto de elementos ordenados unitariamente e dotados de uma

certa estabilidade 5.

Para Lajugie:

O sistema econômico é o conjunto coerente de instituições jurídicas e sociais, no seio das quais

são postos em ação, a fim de assegurar a realização do equilíbrio econômico, certos meios

técnicos organizados em função de certos móveis dominantes 6.

Tal conceito é o passo primeiro para procurarmos tipos diferentes: sistema feudal, sistema

capitalista e outros.

Segundo Vital Moreira o conceito de sistema é o ponto de partida para identificar gêneros com

constituição diferenciada. Um sistema econômico ganha contornos úteis para diferenciá-lo de outro

quando levamos em consideração a sua dinâmica. Essa dinâmica é a resposta para como se dá a relação

entre o homem e as matérias, na organização para a satisfação de necessidades. A leitura que

empreendemos desta estrutura (homem+matéria+processo) permite que confeccionemos quadros

esclarecedores de nossa própria relação com os nossos semelhantes e com os recursos naturais.

É importante compreender, todavia, que a leitura de determinada organização econômica estará

recheada de condicionamentos valorativos e ideológicos. Isso quer dizer que ao confeccionar os tais

quadros conceituais do sistema econômico podem ser enaltecidas ou criticadas certas formas de

organização econômica. Veja como Vital Moreira traça duas leituras de um sistema econômico, ora

com base no pensamento de Marx, ora com base no pensamento weberiano 7:

Para Marx é preciso atentar às relações de produção, às forças produtivas, na relação do homem

produtor e não produtor com as forças produtivas. No modo de produção capitalista, p. e., devemos

5 MOREIRA, V. op. cit., p. 17. 6 LAJUGIE, J. Os sistemas econômicos. Difusão Européia do Livro: São Paulo, 1959. Tradução de Édison Rodrigues Chaves e Gerson Souza. Coleção Saber Atual. p. 7. 7 LAJUGIE, J. op. cit., p. 18-27.

situar a posição dos produtores e dos meios e instrumentos de produção: o não produtor - capitalista -

apropria-se do sobreproduto social e o produtor não tem controle sobre os meios de produção. Marx

elabora um quadro evolutivo de sistemas econômicos sobrepujando-se historicamente.

Para Weber devemos dedicar atenção às formas de coordenação do modo de produção. Ao

contrário de Marx, aqui não tratamos de uma leitura histórica, dos estágios de desenvolvimento, da

realização histórica de um tipo (ou sistema) econômico; elaboramos tipos ideais. No modo de produção

capitalista é imprescindível visualizarmos como se coordenam os planos dos vários sujeitos

econômicos, como toda ação é pré-ordenada.

Já para outro autor, Lajugie, o conceito de sistema econômico é capaz de enxergar os quadros

jurídicos, os quadros geográficos, as formas da atividade econômica, os processos técnicos e seus tipos

de organização, e mais o móvel dominante (fator psicológico) da ação dos agentes de produção. O

conceito de sistema econômico, em suma, é prestadio à descrição abrangente dos mais largos

quadrantes da atividade econômica. 8

Procurando elucidar os elementos de um sistema econômico teríamos que responder a várias

perguntas:

- como reparte-se o produto social dentro do sistema X ou Y?

- quem toma as rédeas da direção econômica?

- como se deu a passagem para o sistema X ou Y?

- quais os meios técnicos empregados no sistema?

- em qual ambiente desenvolvem-se as atividades?

- quais os elementos motivadores de ação econômica entre os agentes?

- quais as estruturas de poder ou mando para a sustentação do sistema?

Como visto, não são poucas as perguntas para a classificação e catalogação de um sistema

econômico. Atendo-nos ao ponto central, o sistema econômico capitalista, podemos encaminhar um

esquema teórico com base nos itens abaixo: 9

- Há a separação entre o produtor e os meios de produção, a separação em duas classes

(clivagem em duas classes): a capitalista e a operária.

- O produto social não é de apropriação coletiva e sim privada, resguardada por um quadro

jurídico adequado.

- A direção do processo fica entregue às mãos do proprietário dos meios de produção.

- O produto da empresa não reverte em favor do produtor, antes é dividido entre vários atores

que colaboram no processo, resumidos na trindade: salário para o operário, juros para o financiador e

lucro para o proprietário.

- O fim da direção do processo produtivo é a busca do lucro ou acumulação do capital.

8. LAJUGIE, J. Op. cit, p. 7-8. 9. MOREIRA, Vital. Op. cit, p. 28.

- É uma economia de mercado, a produção trocada por dinheiro, sendo a renda da empresa

capitalista determinada pelos preços dos produtos no mercado.

- Surge com a revolução industrial e, ao mesmo tempo, a economia industrial surge com o

capitalismo. - O capitalismo criou-se com um método aperfeiçoado de produção que combinou a

divisão otimizante do trabalho e a substituição da ferramenta pela máquina de força externa.

Tais considerações seriam conclusivas não fosse o problema, acima levantado, da carga de

valores e ideologias na configuração do quadro. Por exemplo, o segundo item: apropriação privada do

produto social. Este item pode ser encarado tanto de maneira positiva como de maneira negativa. A

liberdade empreendedora individual é motivada por possibilidades de apropriação privada, que induzem

dinamismo e progresso material aos homens. Ou não? Induzem à exploração de reduzida escala de

pessoas que se apropriam das vantagens da produção alheia? A divisão do trabalho e a otimização de

maquinaria e tecnologia do capitalismo, com mobilidade social, não seriam formas avançadas de

cooperação social, com demonstração de integração social ilimitada? Ou seria a causa de exploração de

todo o trabalho de alguns, por muito poucos? 10

4. Forma e regime do sistema. Como não é ainda de todo satisfatória a explicação dada

pelo conceito de sistema econômico, e uma vez que os pilares do capitalismo, construídos sobre a idéia

da liberdade econômica, da livre concorrência, da liberdade de trabalho devem ser, nos dias de hoje,

relativizados, há a necessidade de completar o quadro conceitual do capitalismo. Atente que a

propriedade privada pode existir em outros sistemas, como é o caso do socialismo utópico de alguns

movimentos políticos. Há exemplos significativos de empresas estatais no capitalismo contemporâneo

que podem culminar em regime de monopólio por parte do Estado, com absorção de consideráveis

setores da produção pela empresa monopolista estatal. A existência de uma economia de mercado é

crível em outros sistemas, como é exemplo o mercantilismo, e há a possibilidade de um socialismo de

mercado. Em complementação ao conceito de sistema, Lajugie aponta que um regime econômico é o

conjunto de regras legais que, no seio de um sistema econômico, regem as atividades econômicas dos homens, isto é, seus atos

e ações em matéria de produção e troca. 11

Um sistema econômico pode reunir diferentes regimes econômicos. O capitalismo pode reunir,

historicamente, regras dessemelhantes sobre as relações de propriedade (limitações sobre a propriedade,

desmaterialização da propriedade). A liberdade econômica cristalizada na relação empregado x

empregador pode ser relativizada, como aconteceu ao se emprestar tratamento jurídico diferenciado às

relações de trabalho. E não só esta como outras relações entre as pessoas dentro do sistema: liberdade

10 .RANZOLIN, R. B. Introdução ao estudo da função social do contrato (análise histórica e sociológica). Pensamentos liberais, Porto Alegre, v. IV, p. 11-29, 1998. 11. LAJUGIE, J. Op. cit, p. 8.

econômica ou restrições para a escolha da atividade, para o exercício da atividade ou para a localização

física da atividade econômica.

Para Vital Moreira a melhor definição de um sistema deverá ser buscada na aproximação com o

conceito de forma do sistema. Aqui, mais do que nunca, deve-se prestar a devida atenção às formas de

coordenação de um modo de produção. O capitalismo, sistema econômico, integra-se à estrutura social

de diferentes formas. 12

Para melhor entender as concepções de forma, regime, indispensável a curta consideração

histórica. Houve, nos séculos XVIII e XIX, o desabrochar do capitalismo. O mote que informava a

idéia germinal do capitalismo era da concorrência entre pequenos empreendedores. O dogma central

era de que o Estado não devia imiscuir-se na ordem econômica já que esta, naturalmente, de forma

racional, equilibrava-se na livre concorrência, na livre iniciativa. A concentração espacial da fase inicial é

bastante clara. Resumia-se a revolução capitalista ao continente europeu, no primeiro momento, nas

Ilhas Britânicas. 13

A partir da segunda metade do século XIX o capitalismo assume nítido caráter monopolista –

com a estruturação dos grandes grupos industriais, cresce a sofisticação do sistema financeiro e a

expansão industrial vai ao leste europeu, Ásia e América. A hegemonia política burguesa foi vulnerada

pelos movimentos operários e o imaginário de contestação ao sistema é povoado por movimentos

coletivistas – Marxismo, Positivismo. 14

Com o final da Primeira Grande Guerra, o Estado invadiu o campo do econômico que lhe era

vedado na ordem anterior. Surgiu o Estado Econômico que se armou de quadro institucional adequado

para se tornar o maior consumidor, o maior produtor na economia. Houve uma politização do

econômico. Há o fortalecimento da convivência entre o Estado e os agentes privados, com o

apagamento de um nítido demarcador de fronteiras entre a economia privada e a pública, a iniciativa

privada e o planejamento estatal, o lucro e a satisfação das necessidades sociais. 15

A partir dos anos setenta do nosso século, assistimos ao ocaso do Estado Econômico. O Estado

Econômico sofre profundas transformações em sua estrutura. As transformações patrocinadas pela

informática facilitam o intercâmbio e celeridade nas trocas financeiras internacionais. A atuação do

Estado no campo econômico vai se tornando qualitativamente diferente: como agente financeiro - com

títulos financeiros, manipulando moedas, atraindo investimentos; patrocinando a desregulação de campos

onde o capital intenta lucros.

12. LAJUGIE, J, Op. cit. p. 55-59 e MOREIRA, V. Op. cit, p. 35-38. 13. MOREIRA, V. Op. cit, p. 38-45. 14. Ibid, p. 47-52. 15. Ibid, p. 53-54.

Eros Grau, citando Avelã Nunes e A. L. de Souza Franco, realiza a distinção entre sistema

econômico e regime econômico: 16

- Um sistema econômico é um conjunto de instituições jurídicas e sociais que realiza determinado

modo de produção, permite identificar a repartição do produto econômico. São as relações sociais de

produção que permitem a identificação de um ou outro sistema econômico.

- O sistema econômico, parafraseando Grau, é afetado por um regime econômico, ou seja, a particular

relação que o poder terá com a realidade econômica: interferência ou não do Estado, livre mercado ou

economia mista. 17

Sendo assim, a existência de um sistema econômico deve ser avaliada concomitantemente com

sua dinâmica penetração na estrutura social, podendo variar bastante. Acima vimos, em reduzidos

quatro tópicos, que o sistema capitalista assumiu formas ou regimes econômicos diferenciados. Parte desde

a rígida separação entre Estado e economia, com valorização do mercado e livre concorrência, à ação

estatal intensa com relativização do mercado, da propriedade e com interferência nas relações de

trabalho. 18

Por fim, devemos lembrar que um sistema econômico é dominante mas jamais é único.

Convivem no capitalismo produtores que são proprietários de seus meios de produção, não vendendo a

mão de obra ao não produtor (capitalista) - organizados em forma cooperativa -, bem como resquícios

de outras formas de organização – como o sistema feudal, especialmente em zonas agrárias marginais.

Um sistema econômico não se afirma inconteste e exclusivamente, como se o peso de instituições

passadas e futuras não se fizesse sentir em seu seio. 19

5. A identidade normativa do sistema econômico. A identificação de uma forma ou

regime de um sistema econômico é o ponto relevante para a interpretação das normas da Constituição.

Como o sistema pode assumir comandos ou indicações mais ou menos insinuantes, para um lado, ou

para alguns valores, se apresentam variados textos normativos constitucionais. Essa propensão ou

valorização de alguns lados ou fatores é que determina a redação de uma Constituição. Quando se fala

em capitalismo de Estado interventor, certamente as normas jurídicas desse Estado consagrarão a forte

inclinação para a empresa estatal, para os negócios empresariais estatais. Um Estado de Bem Estar, ao

seu modo, encontrará enfatizado na Constituição as políticas de saúde, proteção ao trabalho e à

assistência social. Na verdade, descobrir a forma ou regime de um Estado é conseguir enxergar os

fortes condicionamentos políticos e ideológicos que pautam a condução das atividades econômicas no

sistema.

16. GRAU, E. R. A ordem econômica na constituição de 88 - interpretação e crítica. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1990, p. 83. 17. Finalmente, completa Grau, modelo econômico é o modo peculiar assumido pela ordem econômica afetada por um regime econômico. Op. cit, p. 213. 18. MOREIRA, V. Op. cit, p 21. 19. MOREIRA, V. Op. cit, p. 33-34.LAJUGIE, J. Op. cit. p. 11-12.

O assunto da forma ou regime do sistema capitalista é particularmente importante quando

tratarmos de normas jurídicas que consagram a política econômica do Estado. Ora, falar de política

econômica é falar de um quadro de valores e diretrizes, norteadoras das atividades econômicas,

impulsionadas por certas opções políticas. Com isso, é possível entender o quão importante é saber

interpretar a Ordem Econômica da Constituição pois é justamente lá que estão os valores e diretrizes

apontados sob a forma de normas jurídicas.

O sistema econômico capitalista, em suas variantes formas ou regimes, em seus múltiplos

regimes, terá que se estruturar com um Direito que vitalize seu funcionamento sistêmico,

proporcionando os elementos que dêem forma aos seus componentes dinâmicos, que cristalizem as

opções fundamentais da sociedade, que normalizem as condutas e expectativas segundo determinados

padrões e consigam traduzir os valores que guiam os grupos humanos em suas relações.

Argumentar que o Direito do sistema capitalista deve trazer todas as características do parágrafo

acima não permite diferenciá-lo do Direito de qualquer outro sistema, já que o Direito sempre teve

função normalizadora de condutas e regulador de atividades econômicas. Dizer que o Direito fornece

as peças para o funcionamento de um sistema econômico, acabaria por viciar o texto com tautologia,

pois desde a primitiva comunidade de economia doméstico-pastoril há formas jurídicas apropriadas

para que fluam as atividades econômicas. Em maior ou menor escala, todo o Direito é tradução de

opções e valores da sociedade, podendo ser expressão de um mero padrão de normalidade autoritário e

excludente, como produção representativa dos interesses e aspirações significativas de grupos bastante

amplos da sociedade.

Curiosamente o pensamento crítico ao sistema capitalista representado pelo pensamento de

Marx, é extremamente interessante para podermos captar os pontos diferenciadores do Direito do

sistema capitalista. Embora os seus apontamentos sejam críticos ao modo como se estrutura o Direito

em nosso sistema, apresenta a vantagem de permitir compará-lo aos sistemas jurídicos de outras formas

de organização econômica. Começaremos por suas considerações para depois aprofundarmos outros

aspectos da relação entre o sistema econômico e o sistema jurídico.

Marx coloca que sobre a base econômica (ou infra-estrutura) ergue-se a superestrutura jurídica e

política. O Direito está inserido dentro do modo de produção da vida material. Segundo o filósofo

alemão, a realidade social determina a consciência social do homem. O vínculo entre o Direito e a

economia é a relação entre as relações de produção que formam a base econômica - real - e uma forma

de consciência social do homem - no caso o Direito 20.

A ligação entre a base ou infra-estrutura e a superestrutura não conduz à trocas mecânicas,

como se o Direito fosse um reflexo congelado das relações de produção. A compreensão da relação

entre a infra e superestrutura deve ser feita desde uma perspectiva dialética, como bem apontou outro

20. MARX, K. Marx. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos.Seleção de textos de José Arthur Gianotti. Tradução de José Carlos Bruni et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 127-132.

pensador marxiano, Antonio Gramsci. Hugues Portelli, analisando o pensamento gramsciano,

demonstra que não se deve colocar a discussão sobre a infra e superestrutura em planos estanques, mas

sim vislumbrando sua convivência dialética e orgânica. Sobre a base das relações de produção afirma-

se o Direito, não estático e sim dinâmico, tornando-se o motor das atividades do homem. A estrutura e

as relações de produção deixam de ser determinantes incontestes do Direito para servirem como

instrumento do mesmo Direito, que resolve e traduz as contradições surgidas na base. 21

Na continuação do pensamento de Marx, na obra de Roberto Lyra Filho, o fenômeno Direito

alcança uma representação abrangente e didática, possibilitando uma leitura crítica chamada visão

dialética do Direito. Para o jurista de O que é Direito, a síntese do fenômeno jurídico é resultante do

processo histórico-social, de uma visão dialética que abandona tanto cristalizações metafísicas como

esquemas reducionistas (reduzir o Direito à lei, tão acidamente por ele criticado). Compreende-se o

Direito:

- Se levarmos em consideração que este se determina pelos modos de produção coexistentes no

mundo (pela infra-estrutura internacional), pelos conflitos entre os povos subdesenvolvidos e

desenvolvidos, por uma superestrutura internacional 22.

- Se atentarmos que cada sociedade estabelece um modo de produção que serve de base ao seu

Direito 23.

Ao visualizarmos que a superestrutura de cada sociedade apresenta dualidade de eixos e que o

Direito é fenômeno que aparece tanto em um eixo representativo da cultura dominante como em um

eixo da cultura dominada. O Direito não é jamais estático pois o que é considerado o jurídico, por

excelência, da classe dominante, poderá não o ser mais com as transformações da sociedade. 24

A peculiaridade do Direito do modo de produção capitalista, nas palavras de Nicos Poulantzas,

é que este forma um sistema axiomatizado, composto de conjunto de normas abstratas, gerais e estritamente

regulamentadas. A particularidade do Direito capitalista reside na divisão social do trabalho e nas relações

de produção. A função do Direito no imaginário do capitalismo é promover a coesão de sujeitos que

não são possuidores dos meios de produção; toda a violência legítima, no sistema capitalista, está

deslocada para fora do espaço das relações de produção e situada no espaço estatal. Para Poulantzas o

Direito consegue realizar esse deslocamento da violência, encarnada no Estado, promovendo uma

neutralização do palco das relações de produção. A função da norma abstrata e geral é promover uma

homogeneização dos sujeitos, tomando esses sujeitos como indivíduos - isolados -; sob o manto

unificador da idéia de um Estado Nacional e de um Direito único. 25

21. PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. Tradução de Angelina Peralva. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 55-56. 22. LYRA FILHO, R. O que é Direito. São Paulo: Nova Cultural - Brasiliense, 1985. p. 100 23. Ibid, p. 101. 24..Ibid, p. 101-102. 25. POULANTZAS, N. O Estado, O Poder, O Socialismo. Tradução de Rita Lima. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990. p. 97-99.

O que todos os apontamentos críticos dos marxistas – e do próprio Marx – apontam é, na

verdade, para as falhas do sistema capitalista. Mas, como falamos, ao início, ao criticar o sistema os

autores explicitaram tão bem algumas de suas características, inclusive a relação entre a organização

econômica e o Direito. É bom, portanto, que se coloquem limites às descrições do sistema por essa

linha de pensamento. Como se poderá ver ela, apesar das tentativas de Gramsci, esconde muito e reduz

a compreensão do Direito aos fatores materiais, quase que submetendo todo o dever ser aos

condicionamentos materiais da vida em sociedade.

A compreensão do Direito do capitalismo deve levar em consideração, também, o surgimento e

afirmação de uma nova classe social - a burguesia, que segundo Wolkmer, faz com que seus múltiplos

interesses atravessem todos os campos do agir humano: economia, política, religião. Com isso abre-se o

horizonte de que o sistema econômico sofre influência de todo o universo cultural e histórico da

sociedade. A forma e exemplo de um padrão cultural capitalista burguês são revelados pelo liberalismo,

expressão de uma ética individualista voltada basicamente para a noção de liberdade total que está presente em todos os

aspectos da realidade, desde o filosófico até o social, o econômico, o político, o religioso etc.. No plano institucional o

liberalismo-burguês molda os modernos Estados, soberanos, secularizados, detentores do monopólio

de produção jurídica. Nas palavras de Wolkmer, é necessário agrupar os vários elementos para entender

o padrão de juridicidade do capitalismo, compreender o significado do capitalismo como sistema

econômico, entender os interesses dos novos atores hegemônicos - a burguesia -, entender o marco

cultural por ela projetado - o liberalismo -, e, por último, entender os planos institucionais, dispostos

nos modernos Estados nacionais. 26

Max Weber salienta que os valores da previsibilidade e do cálculo são produtos das classes que

querem ver um Direito adequado aos interesses do mercado. Uma racionalização formal do Direito

permite que, a partir de normas abstratas e de regras formais estáveis, livres de fundamentos materiais-

sentimentais, as relações de mercado ganhem a previsibilidade e a calculabilidade que lhe são

interessantes. O Direito do capitalismo integraria, em seu âmago, os valores acima referidos 27.

Se forem agrupadas as interpretações de Wolkmer e Weber, já se consegue visualizar o papel do

Direito, no sistema, como uma papel com maior autonomia. A ascensão da burguesia trouxe uma nova

forma de organização da vida social e das instituições sociais. É sabido que o advento do moderno

capitalismo trouxe, consigo, o advento do Direito legislado. A legalidade torna-se sinônimo de

legitimidade, uma legitimidade – mesmo que vazia de conteúdo - mas mantenedora da coesão e unidade

de indivíduos. A previsibilidade, ínsita ao Direito capitalista, é conseqüência de sua reprodução

ampliada, ou seja, o Direito capitalista aceita, dentro de certos limites, transformações. Por esta razão

suas normas são abstratas, gerais, formais e regulamentarizadas. As crises dentro do sistema político

26. WOLKMER, A. C. Pluralismo jurídico. Fundamentos de uma nova cultura do Direito. São Paulo: Alfa Ômega, 1994. p. 30-40. 27. WEBER, M. Economia y Sociedad. Esbozo de sociología compreensiva. 6. reimpression, Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1983. p. 603-608.

encontram no conjunto das leis um amortecedor capaz de agüentar flutuações consideráveis, sem

representar um efetivo rompimento com a ordem estabelecida 28.

Ao realizarmos o estudo do constitucionalismo vemos que as Constituições escritas, redigidas

em textos sistematizados e com edição solene vão surgir no século XVIII. Com as Constituições

escritas e sistematizadas enxergamos uma parte do universo cultural do liberalismo, trazendo ao mundo

uma nova forma de entender e regulamentar as atividades econômicas. A racionalização e formalização

do sistema jurídico só podem ser sustentadas quando vemos o mesmo sistema ordenado, por fontes

diferenciadas como a lei, a Constituição, as normas negociais, naquilo que conhecemos por Direito

legislado. As normas devem ser produzidas em edições solenes, por poderes regularmente constituídos,

que permitam catalogar o seu surgimento, que permitam verificar a sua posição no sistema (é uma lei? é

uma norma constitucional?) e seus textos descrevam, abstratamente, condutas que possam comportar

variações e transformações.

Todo esse sistema ordenado de normas escritas e abstratas, conhecido como Direito legislado,

traz consigo grandes contribuições para a história do homem e a mais sensível de todas elas é a

igualdade de todos perante a lei. Mesmo sendo alvo de críticas, por não incluir a igualdade de todos na

distribuição de riqueza, bem observa Von Mises, que o Direito do capitalismo suprimiu os grilhões

estamentais e de status de outras formas de organização econômica. Isso quer dizer que foram abolidas

as formas servis e escravocratas e há possibilidade de mobilidade social já que não há nenhuma

prerrogativa jurídica, por nascimento, que garanta privilégios. Outro ponto que Von Mises assinala é

que a acumulação de riqueza, não encontrando nenhum suporte estamental, dependerá da capacidade

de cada indivíduo trocar a sua produção no mercado, atendendo aos interesses de consumo de qualquer

pessoa, em qualquer instante. 29

É interessante notar que nesse ponto a igualdade toca em outro princípio do sistema do Direito

do capitalismo que é a liberdade. A igualdade somente se torna plausível se todos os homens puderem

participar, ativa e com liberdade, das trocas efetuadas no mercado, buscando amealhar os bens

necessários à satisfação de suas necessidades e acumular capital para outros investimentos. Como toda a

produção é trocada por dinheiro, livremente no mercado, qualquer homem compra e qualquer homem

vende, na ordenação recíproca de interesses e vontades. Há duas conseqüências interessantes quando

tomamos esses dois princípios, igualdade e liberdade, como centros irradiadores do sistema jurídico.

Primeiro, a monumental importância que as formas negociais e o estabelecimento de auto regramento,

importando no realce do Direito das obrigações e no Direito das coisas. O Direito das coisas é o que

permite que se estabeleçam as trocas, envolvendo toda a sorte de bens, e está associado ao Direito de

propriedade privada. Segundo, a colocação do consumidor como o pólo nuclear de todo o impulso

28. POULANTZAS, N. Op. cit. p. 100-103. 29 . VON MISES, L. A mentalidade anticapitalista. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. p. 8-16.

econômico, merecendo o tratamento que nós damos na proteção das relações negociais e, mais

recentemente, nas normas de proteção consumerista.

6. Delineamentos do direito. As formas ou regimes do capitalismo na evolução

constitucional. As formas ou regimes do sistema econômico são manifestações que repercutem no

quadro do sistema jurídico da sociedade. É possível, portanto, elaborar a síntese de grandes momentos

das formas ou regimes do sistema econômico capitalista. Cada momento será comentado como a

cristalização de certas características ao regime ou forma no sistema jurídico. A síntese será propícia,

inclusive, para a ilustração comparativa com sistemas econômicos alternativos e as conseqüências para

o sistema jurídico destes sistemas, assumida ou veladamente de superação capitalista. Certamente o olhar

sobre o sistema econômico do século XVIII impressiona-nos com informações bastante diferentes

daquela organização do século XXI. Impressão que marca a sensação de observadores reais como o

revolucionário socialista russo Vitor Serge:

Atravessada a fronteira polonesa, surgiram casinhas graciosas, bancas de jornal expondo as

publicações de Paris, Berlim, Londres, Nova Iorque, ferroviários limpamente vestidos, rostos

distendidos... Na Marszakowska, todas as roupas nos pareceram elegantes e o próprio

movimento da rua banhado de despreocupação e bem-estar. Descemos em Bruxelas no

pequeno alojamento de um militante sindicalista (...). Vivia com um abono de desemprego e

recebia na prefeitura a refeição dos desempregados vendida ao preço mínimo....esse

desempregado belga vivia com o padrão de um técnico bem remunerado na URSS. (...) Meu

filho e eu parávamos diante das lojinhas, indescritivelmente emocionados. (...) Essas riquezas

ao alcance da mão, ao alcance do desempregado num subúrbio operário, sem socialismo, nem

plano! Era irritante. Eu já sabia de tudo isso, mas a realidade me surpreendia com se eu não

soubesse de nada. Era de chorar de humilhação e de dó pela nossa Rússia Revolucionária. 30

O que causou tanto espanto ao nosso escritor? Victor Serge, o redator das linhas que

transcrevemos, havia abandonado a URSS, na década de 30, e retornava à Bélgica, e era vigoroso

defensor das idéias revolucionárias socialistas. A Bélgica, país capitalista, oferecia mais aos seus

trabalhadores que a União Soviética, que havia realizado a revolução, em nome dos trabalhadores, para

suprimir as formas de exploração do trabalhador por parte dos capitalistas. Teria a Bélgica se tornado

um país socialista? Estariam os trabalhadores ocupando os postos chave da direção da economia belga?

Existem no sistema econômico capitalista formas ou regimes que permitam a construção de redes de

bem estar ao trabalhador? Essas perguntas podem ser respondidas quando analisamos as etapas e fases

do capitalismo, organizando de maneira diferenciada as formas de organização jurídica do sistema

econômico.

Voltamos ao tema das formas ou regimes do sistema para que se possa entender o porquê do

Direito Econômico e qual a razão para as Constituições do século XX apresentarem uma parte

30 . Vitor Serge, Memórias de um revolucionário.

chamada Ordem Econômica e o mesmo não ocorrer nas Constituições do século XIX. Para

organizarmos as idéias vamos estabelecer uma espécie de escala, indo de um núcleo, que são aqueles

traços indicadores dos princípios do sistema econômico, os pontos originais e naturais do sistema

capitalista, em direção aos componentes que giram ao redor desse núcleo, que é a forma ou regime do

sistema. O que você perceberá é que o sistema vai modificando a sua forma ou regime, acrescentando

ou suprimindo elementos, dando, por assim dizer, roupagens diferentes ao seu funcionamento.

É claro que essas diferentes roupagens serão determinadas, principalmente, pelas normas

jurídicas que ordenam a organização econômica. É tão importante captar as formas ou regimes do

sistema por que poderemos realizar a verdadeira interpretação jurídica, a partir do momento em que

estão estabelecidas certas determinações de funcionamento do sistema econômico. Quem capta a

forma ou regime compreende todo o sistema de valores e os fins da ordem jurídica na regulação da

economia.

7. Gênese do capitalismo – o Estado liberal clássico. De uma maneira geral podemos

afirmar que o capitalismo surgiu com o desmoronar da ordem feudal e do mercantilismo, substituindo

uma economia artesanal por uma economia de mercado industrial. O capitalismo contrastou com a

ordem corporativa-estamental ao lançar os alicerces da sociedade sob o axioma da igualdade formal dos

homens. A grande acumulação de capitais ocorrida na Idade Moderna com a expansão marítima

européia, cumulada com o progresso do maquinário, permitiu a explosão do capitalismo no final do

século XVIII. 31

No plano teórico, os dogmas do sistema capitalista - gestados no século XVIII – e que

encontraram consagração no plano jurídico, podem ser assim resumidos: liberdade de empresa,

liberdade de concorrência, liberdade individual. Acreditava-se na organização racional da sociedade,

baseada nas probabilidades ilimitadas de criação e trabalho do indivíduo, que acabaria, sempre,

encontrando um ponto de equilíbrio. Um traço marcante das teorizações da época é a assertiva que o

Estado comprometia as liberdades fundamentais do sistema capitalista. O Estado era considerado

entravesà livre expansão do comércio e das possibilidades empreendedoras individuais (dicotomia

público x privado e separação Estado x sociedade). 32

Contextualizando com o Direito da época, vemos que há afinidade entre o discurso da

economia clássica e as teorizações sobre o Direito e o Estado. A partir do fim da Idade Média o Direito

começa a ser pensado como algo a serviço do indivíduo, um instrumento a ser utilizado pelos indivíduos. O

31. Conforme: GALBRAITH, J K. A era da incerteza. São Paulo: Pioneira, Brasília: Unb, 1979. p. 2-3. GRAU, E. R. Elementos de Direito Econômico. São Paulo: Atlas, 1979, p. 6-7. LAJUGIE, J. Op. cit, p. 43-53. MOREIRA, V. Op. cit, p. 30-31 e p. 38-42. 32. Conforme: CARVALHOSA, M. Direito Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972. p. 61-64 e p. 70-73. GALBRAITH, J. K. Op. cit., p. 3-14. MOREIRA, V. Op. cit., p. 38-43. VASCONCELOS, W. A. de. A intervenção do Estado no domínio econômico. Revista de informação legislativa, Brasília: Senado Federal, ano 1, n° 4, p. 60-61, dez. 1964.

Estado é visto como instrumento de utilidade, para servir na garantia dos Direitos dos indivíduos

trazidos do Status Naturalis. 33

Verdade é que a organização do poder político no Estado moderno foi de importância

fundamental para a estruturação do capitalismo. As revoluções transformadoras das ordens políticas

que ocorreram nos séculos XVII e XVIII consagraram a forma do Estado moderno. Um dos pontos

mais importantes foi a unificação territorial e sistemática do Direito, com a melhor ordenação das

fontes normativas. Essa unificação do Direito foi acompanhada de centralização administrativa e

territorial e transformação da organização da segurança do Estado – tanto a segurança externa como a

segurança interna. Todos esses fatores são cruciais para a articulação de mercados dinâmicos e de

economia industrial.

Há a ascendência dos valores individuais e comunitários sobre os valores coletivos e gerais. A

consagração da dualidade Estado x indivíduo era o desdobramento de uma separação entre o político e

o econômico, tendo como dogma que a arena econômica era ocupada por livres empreendedores. O

Estado abstinha-se de ingerências nessa área. O constitucionalismo moldava-se em bases de um

individualismo formalista, de restrições às ações estatais na economia. Era então inconcebível que o

plano normativo constitucional incluísse normas de ação estatal sobre a economia. Dentro da

dicotomia político x econômico, a ação estatal nas atividades econômicas era ruinosa. Acreditava-se que

os monopólios (de fato) não existiriam em situações de perfeito equilíbrio do mercado. 34

Pode ser apontado, sem risco de impropriedade, que algumas concepção desse período beirava

a utopia revolucionária, em certos aspectos, pois estava no meio do caminho entra utopia

revolucionária e transformadora e a realização concreta. Talvez os maiores problemas encontrassem-se

no papel reservado ao Estado na arena econômica, na comunhão de interesses entre política e

economia (que se fazia questão de suprimir) e na idéia de progresso universal que o capitalismo poderia

trazer. Isso é que permite concluir que não havia Ordem Econômica das Constituições do período, ou

melhor, nem sequer se cogitava, no plano normativo, a estipulação de normas de ação estatal na

economia, tal qual concebemos hoje em dia. O erro é afirmar que são Constituições sem determinação

de política econômica. Há essas determinações mas adequadas ao modelo da época, de absenteísmo

estatal no papel de empreendedor ou regulador ativo das atividades econômicas. 35

Outro traço curioso é que essa forma ou regime apresentava poucos elementos diferenciadores

além daquele núcleo essencial do sistema. Muitas vezes somos levados, inclusive, a imaginar que o 33. As instituições são pensadas a partir de sua utilidade - a mantença da ordem e segurança como tarefas do Estado - que não pode modelar o homem e a sociedade (que naturalmente alcançam seu equilíbrio). 34. Conforme: CARVALHOSA, M. Op. cit., p. 61. MOREIRA, V. Op. cit., p. 41-42. VILLEY, M. Filosofia do Direito - definições e fins do Direito. São Paulo: Atlas, 1979. v. I. p. 35 . É interessante que mesmo críticos do sistema acreditavam piamente no progresso universal e cosmopolitismo do capitalismo, incluindo-se Marx. Ver: FIORI, J. L. De volta à questão da riqueza de algumas nações. In: ____. Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 14-19. Cabe aqui realizar a importante distinção classificatória entre as várias vertentes do liberalismo: liberalismo continental e liberalismo clássico. Ver: MACEDO, U.B. O liberalismo moderno. São Paulo: Massao Ohno, 1997. KUJAWSKI, G. de. M., MERQUIOR, J. G. O liberalismo social –uma visão histórica. São Paulo: Massao Ohno, 1997

sistema capitalista foi aquele que ocorreu no século XVIII, e que todas as formas posteriores são

formas ou regimes deturpados. Tal afirmação é cheia de riscos e esquece de captar a dinâmica do

sistema, em suas múltiplas adaptações. 36

ORDEM JURÍDICA DO MODELO DO ESTADO LIBERAL:

ESTRUTURA BÁSICA

Impacto do jusnaturalismo; Estado: novos marcos de coesão e integração social; nova ordem jurídica e novo aparato político; o Estado como garantidor e aplicador do Direito unificado territorialmente e nacionalmente sistematizado; definição do Estado nacional.

FUNÇÕES ECONÒMICAS O Estado Gendarme tinha por função primordial manter a ordem pública (poder de polícia, serviços públicos essenciais).

MODELO CONSTITUCIONAL

Constituições pós-revolucionárias; consagração de Direitos Individuais, distribuição de competências e organização dos poderes. Idéia de Constituição do Estado (como norma básica de organização e limitação do poder do Estado) separada da sociedade (como campo da autonomia do privado)

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Direitos Individuais – liberdade, vida, igualdade, propriedade privada

ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL.

Ausência de normas da Ordem Econômica no corpo da Constituição. Idéia de separação absoluta entre o Estado e a economia; vedação de normas de ação estatal sobre a economia (laissez faire, laissez passer).

O quadro acima descrito, pode ser melhor visualizado analisando-se as Constituições

paradigma, como a dos EUA, 1787, e França, 1791. Como a descrição é genérica e não pode captar

especificidades, é bom que se diga que esse modelo de ordem jurídica estava sendo elaborado desde os

movimentos revolucionários liberais do século XVII, nos Países Baixos e Inglaterra.

8. O constitucionalismo novecentista – monopólios, oligopólios e a questão social.

A expressão capitalismo monopolista ou oligopolista quer designar a forma-regime em que as

economias do sistema foram marcadas por grandes concentrações empresariais. Ainda nesse período

seguia estranho ao plano constitucional o discurso da repressão ao monopólio privado e da formação

do monopólio estatal. A distância entre o modelo teórico, de pequenos empreendedores e de

concorrência ideal, e a realidade do capitalismo foi deixando suas marcas no século XIX. 37

36 Para a feitura do esquema baseamo-nos nas idéias gerais de: EIZIRIK, N. A Ordem Econômica na Constituinte. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano XXIV, nº 60, p. 12-13, out. - dez., 1985. GOULART, C. de S. Formas e sistemas de governo. Uma alternativa para a democracia brasileira. Porto alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. MOREIRA, V. A ordem... Op. cit. 196-218 passim. 37. Assim, podemos apontar as seguintes inconsistências entre o modelo teórico e a realidade do capitalismo do século XIX: a) Segundo o modelo, o equilíbrio natural do sistema seria conseguido por uma livre combinação dos fatores produtivos, de acordo com cálculo de conveniência dos produtores. b) A situação hipotética do modelo supunha um número indefinido de participantes no processo de produção, cada participante dono de seu produto, de seu capital, de seu trabalho. Nestas condições seria impossível qualquer foco concentrador de poder econômico, vez que nenhum produtor conseguiria individualmente macular as leis de oferta e procura. c) A organização social assentada sobre a propriedade privada dos meios de produção não trazia em seus cálculos a possibilidade da propriedade, ela mesma, tornar-se um poder, não simplesmente o poder sobre uma coisa mas sobre pessoas.

Ao longo do século XIX houve grande acumulação, substituição da pequena empresa individual

por grandes empresas - normalmente associadas ao capital financeiro. O estado de concentração

violentou a lógica da livre concorrência e levava os grandes grupos empresariais a situação de privilégio:

dispunham de melhores condições para incluir os progressos técnicos.

Aliás, fato significativo do período foi o notável progresso tecnológico e a expansão dos

sistemas de comunicação e grandes trocas comerciais, tendo por conseqüência, também, a ativação da

jornada expansionista de países europeus. As áreas industrializadas expandiram-se para além das ilhas

britânicas, no ocidente europeu (em menor proporção na região Mediterrânea) e alcançando, no final

do século XIX, os Impérios orientais, como Rússia e Japão. Ocorre, também, o salto industrializante

dos EUA.

O caso dos EUA é excepcional pois, na verdade, ditou as novas formas de organização da

produção, no final do século XIX. O incremento tecnológico foi sensível com a expansão das ferrovias

e a produção industrial seriada, com novas formas de administração e gerência, preocupadas em atender

grandes regiões de maneira inédita pela rapidez, regularidade e massa de transações (não vistas até

então). A grande escala alcançada pela moderna empresa estadunidense influenciou a adoção de novas

técnicas de administração, como é ilustrativo o fordismo. A grande escala da produção fomentou o

desenvolvimento das grandes empresas, de âmbito nacional e, não poucas vezes, de âmbito

internacional. 38

Os anos oitocentos, sobretudo na sua metade final, são marcados pelo repercutir de visões de

mundo menos centradas no indivíduo e mais preocupadas com o coletivo - o historicismo, o

positivismo e o marxismo. O coletivismo permitiu a conciliação de valores que possibilitaram a ação do

Estado a serviço da coletividade, com desdobramentos no Direito e na política. 39

A ordem jurídica vai sofrendo transformações no século XIX com a inserção de garantias

associadas aos Direitos Fundamentais e pela consagração de normas ampliadoras de Direitos políticos,

d) O jogo dos interesses privados do modelo teórico do capitalismo devia ser desenvolvido na mais absoluta transparência dos mercados. O século XIX foi pródigo em exemplos de fraudes, embustes, golpes, violências praticadas pelo jogo do capitalismo. O trecho retirado da obra de John K. Galbraith sobre a expansão das ferrovias nos EUA é bastante ilustrativo: As ferrovias foram construídas. Muita gente honesta se empenhou a fundo em sua construção e funcionamento; isso não deveria ser esquecido. Mas o negócio também atraiu uma porção de malandros e vigaristas. Estes se tornaram muito mais conhecidos e talvez tenham sido os mais bem sucedidos em se enriquecer. A seleção natural de Spencer funcionava maravilhosamente em favor de canalhas e biltres de toda espécie. Às vezes até punha à prova uma casta de velhacos em relação a outra. A ferrovia propiciava uma interessante opção entre dois tipos de furto - roubo aos usuários e roubo aos acionistas. (...) Muitos dos acionistas eram ingleses, e nenhum deles recebeu dividendo algum. Tudo isto, além do fato de que os homens que trabalhavam na estrada muitas vezes ficavam ser receber o ordenado. (...) Por outro lado, os homens que lesaram os seus clientes ou usuários de seus produtos ou serviços saíram-se muito melhor junto ao público, e suas respectivas famílias conseguiram alta distinção social. Isso se aplica a Vanderbilt. Foi o que aconteceu também em outros setores de atividade, onde encontramos os nomes de Rockfeller, Carnegie, Morgan, Guggenheim, Mellon, que fizeram fortuna produzindo a baixo custo, suprimindo a concorrência e vendendo caro. Op. cit., p. 41-46 38 . A nova empresa estadunidense conseguia produzir em massa, para o consumo em massa e, curiosamente, produzia os produtos mais baratos pagando os melhores salários. 39. Embora seja voz dissidente do sistema, não se deve colocar as propostas de Marx à margem do processo de transformação do século XIX - o coletivismo. Algumas teses esposadas por Marx no Manifesto Comunista conduzirão a preocupação com o coletivo e um ataque aos pontos de inconsistência do capitalismo: expropriação da propriedade privada das terras, banco nacional que monopolize as operações bancárias, estatização das ferrovias e dos meios de comunicação, estatização da indústria. ENGELS, F., MARX, K. Manifesto do Partido Comunista. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 87. A idéia foi extraída de: GALBRAITH, John Kenneth. Op. cit., p. 87-88

sobretudo na universalização do sufrágio e participação pluriclassista e pluripartidária. Já no final do

século XIX são perceptíveis os primeiros desenhos constitucionais de normas de Direitos sociais e

econômicos, ainda sob influência do positivismo.

Na metade final do século XIX, há o início de algumas ações do Estado na atividade

econômica, complementando as atividades empresárias particulares. O Estado forneceu peças para um

melhor funcionamento das atividades econômicas: o protecionismo às empresas nacionais,

investimentos em serviços públicos, o colonialismo. Em resumo: o Estado a serviço dos grandes

grupos empresariais, dos monopólios e oligopólios privados e com a iniciante rede de proteção social. 40

A passagem do século XIX ao século XX realça medidas para uma ação estatal de enfoque

publicístico. As tímidas medidas de correção dos mercados de enfoque privatístico - com a consagração

do papel do Estado de criador de preceitos jurídicos para as entidades econômicas comporem seus

conflitos (como os instrumentos processuais de defesa do pequeno comerciante frente à concorrência

desleal) -, são substituídas por normas jurídicas que impõem disciplina de Direito público às atividades

econômicas. Nos EUA já no final do século XIX normas de contenção do poder econômico são

inseridas no ordenamento 41.

MODELO DO ESTADO NOVECENTISTA ESTRUTURA BÁSICA

Enraizamento da idéia do Estado como fonte única de produção e aplicação do Direito. Estado como afirmação e representação das identidades nacionais (os Direitos nacionais). Impacto do juspositivismo e historicismo.

OBJETIVOS O Estado como aríete dos intesses do capital. O Estado

devia dar as condições de infra-estrutura ao capital; tutela colonialista à expansão Estado nacional.

FUNÇÕES ECONÔMICAS Ação assistemática do Estado sobre a economia: primeiras funções econômicas empresariais estatais explícitas (existência – mascarada - de funções econômicas do Estado). Expansão dos serviços públicos; ordem pública alargada (sanidade dos estabelecimentos produtivos, regulamentos das condições de trabalho); limitações à liberdade de contratar.

MODELO

CONSTITUCIONAL Constituições liberais clássicas (abandonando as dimensões

de um Direito Natural supra estatal). DIREITOS

FUNDAMENTAIS Direitos Individuais– liberdade, vida, igualdade,

propriedade privada com a ampliação dos Direitos Políticos. Direitos com Garantias para a execução.

ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL.

Mantida a ausência de normas da Ordem Econômica no corpo da Constituição. Idéia de separação absoluta entre o Estado e a economia lentamente erodida por concepções do novo liberalismo, positivismo e socialismo. Surgimento de normas infraconstitucionais de regulação da economia.

40. A partir dos anos cinqüenta do século XIX há um maciço investimento no transporte hidro e ferroviário, em grande medida com aplicação dos recursos públicos. Houve a construção dos grandes canais - Suez, Panamá - e no Brasil a expansão das ferrovias no reinado de D. Pedro II. 41. CARVALHOSA, M. Op. cit., p. 87 e 112-113. Nos EUA, na década de 90 do século XIX, surge a legislação repressora dos cartéis (embora as holdings fossem lícitas) e o programa do Partido Populista, de forte cunho intervencionista estatal, ganha corpo na representação política. A eleição de T. Roosevelt, no começo do século XX, serviu para a implementação de reformas sociais e a ação mais enérgica do Estado na repressão aos trusts.

9. O Estado com ação econômica e produtor de bens de consumo social. A Primeira

Guerra Mundial é assinalada como o estertorar do capitalismo monopolista ou oligopolista. É o divisor

de águas entre a ortodoxia e os instrumentos clássicos do liberalismo econômico e uma nova

confrontação com a realidade marcada por dificuldades preocupantes para o capitalismo.

A Primeira Guerra Mundial trouxe consigo o emprego de artefatos bélicos que exigiam para seu

desenvolvimento e produção grande quantidade de recursos, absorção de esforços que carecia de uma

correta articulação das economias nacionais com vistas ao bom desempenho da máquina de guerra.

Pela primeira vez ficou claro que vencer a guerra englobava uma coerente e racional administração dos

recursos. Dirigir a economia com a mão visível do Estado e não deixar a livre direção do processo ao

mercado. A experiência da guerra moldou o dirigismo coativo, de legislação econômica voltada às

exigências do conflito. 42

O modelo de Constituição do liberalismo foi superado pelas emblemáticas constituições do

México, em 17, da Alemanha, em 19, e da URSS, em 22. O constitucionalismo enfrentava uma

dimensão normativa inédita, qual seja, a juridicização de matérias sobre a ordem econômica - a ordem

jurídico-normativa da ação estatal na economia – e de Direitos Sociais.

10. O Estado Econômico com fins Sociais. Interessante que, logo após a 1ª Grande

Guerra, houve a tentativa de restauração da ordem pré-conflito. O constitucionalismo social e

econômico demorou a ver consagrada a atuação de suas disposições programáticas e de Direitos sociais

e econômicos. Mas, a tentativa de restauração foi abreviada por dois eventos de magnitude. O primeiro,

a depressão que marcou os anos 30. O segundo, o conflito da 2ª Grande Guerra. Esses eventos fizeram

vingar a ação do Estado na economia capitalista. Foi o Estado o agente capaz de coordenar as

atividades econômicas, planejando-as, suprindo suas carências estruturais, atendendo às necessidades

sociais, intervindo em segmentos específicos e promovendo o bem-estar nacional. É a consagração do

dirigismo racional que, segundo Carvalhosa, concilia a iniciativa privada com a ação estatal na economia -

é a formatação do Estado Econômico com Fins Sociais: preocupado com o bem-estar da população, com a

promoção do desenvolvimento, acumulando a experiência dos anos 30 e da Segunda Guerra. 43

42. Para Eric Hobsbawm as guerras do século XX envolveram, pela primeira vez, toda a sociedade, uma mobilização maciça de recursos e homens em direção à guerra total. HOBSBAWM, E. Era dos Extremos. O breve século XX - 1914 - 1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 51-55. As características do dirigismo coativo: proteção do sistema monetário, tabelamento de preços, concessão de moratórias, sistema de quotas de matérias-primas, racionamento de bens, empréstimos compulsórios. CARVALHOSA, M. Op. cit., p. 116-123. Depois de 1914 a superação da ortodoxia do liberalismo contava com armas teóricas, técnicas apuradas de economia que haviam sido gestadas ao longo do século XIX e início do século XX, tornando possível a ação do Estado com vistas à direção racional da economia, é a passagem da Economia Política à Política Econômica. GRAU, E. R. Elementos...Op. cit., p. 18. 43. A expressão Estado Econômico com fins Sociais não é acabada, sujeitando-se à série de contestações quanto ao seu alcance. A utilizamos no quadro de idéias de Modesto Carvalhosa por conveniência. Como circunlóquios podemos apontar: (a) Estado Econômico - Vital Moreira, (b) Estado Social, R. A. Amaral Vieira, (c) Estado implementador de políticas públicas ou Estado de Bem-Estar, Eros Roberto Grau.

O rompimento com os marcos do liberalismo impôs à teoria jurídica a reconsideração de alguns

postulados básicos do direito capitalista. A legislação de cunho econômico arroteava a dicotomia entre

o público e o privado e politizava a esfera do econômico. A atividade econômica passou a ser regulada

por um conjunto de normas jurídicas e não por livres condicionamentos do mercado. As Constituições

elaboradas a partir da década de 20 não deixaram de contemplar em seu corpo normas referentes ao

domínio econômico e traziam a marca de sociedades plurais, divididas em conflitos classistas, que

acabavam refletidos nas normas constitucionais. Quando não eram marcadas pela tensão dos conflitos

sociais as novas ordens constitucionais exprimiam um Estado classista e superador da ordem jurídica

capitalista (dos trabalhadores no modelo soviético) ou formas de reestruturação do sistema pelo Estado

(fascismo italiano, nazismo alemão, franquismo e salazarismo). As modalidades de ordens jurídicas e da

disciplina da ação estatal sobre a economia podem ser divididas, a partir desse período, da seguinte

maneira:

Superados os modelos do liberalismo clássico e do capitalismo monopolista/oligopolista, foi-se

generalizando, após a Segunda Guerra, o Estado Econômico com Fins Sociais. Todavia, esse modelo

vingou em países de tradição autoritária e democrática, permitindo dizer que a ordem jurídica

programática, de Direitos sociais e econômicos, apresentou variantes: democrática e autoritária.

MODELO DO ESTADO ECONÕMICO COM FINS SOCIAIS

SOCIAL DEMOCRÁTICO ESTRUTURA BÁSICA Estado com tarefas de conformação social e econômica.

Ação do Estado sobre o sistema econômico OBJETIVOS O Estado como agente de reforma e transformação

(evitando as rupturas revolucionárias). Conjugação dos interesses do trabalho e capital. Estado como promotor de políticas públicas. Estado como agente regulador coibindo abusos do mercado; serviços públicos alargados; incorporação das funções de fomento e planejamento; Estado empresário = intervenção no atividade econômica.

FUNÇÕES ECONÔMICAS Funções econômicas explícitas; ação sistemática (dirigismo racional)

MODELO CONSTITUCIONAL

Constituições dirigentes e programáticas.

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Direitos Individuais, Direitos Políticos e Direitos Sociais e Econômicos.

ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL

Inserção de capítulos, partes, seções ou títulos de normas de ação estatal sobre a economia. Consagração dos Direitos Econômicos.

Para R. A. Amaral Vieira o Estado Social pode, inclusive, apresentar-se em regimes políticos antagônicos, não se enquadrando na distinção que adotamos no texto. VEIRA, R.A. Amaral. O intervencionismo brasileiro: raízes históricas e perspectivas (ou é o estatismo um determinismo?). Revista de informação legislativa, Brasília: Senado Federal, ano XI, n ° 42, p. 303, abr.-jun. 74. A expressão dirigismo é rechaçada por Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Jr. Para os autores só encontramos o intervencionismo - estatal-, em defesa do mercado, no sistema capitalista. O melhor detalhamento de intervenção e dirigismo é encontrado no capítulo 5 do presente trabalho. CARVALHOSA, M. Op. cit., p. 144-149 e 158-163. FERRAZ JR., T. S. A economia e o controle do Estado. O Estado de São Paulo, São Paulo, 4 jun. 1989. p. 50. REALE, M. Intervenção do Estado na atividade econômica, O Estado de São Paulo, , 4 jun. 1989. p. 9.

O modelo autoritário vicejou nos países em desenvolvimento que almejavam atingir os padrões

de desenvolvimento e bem-estar das economias capitalistas desenvolvidas, muitas vezes suprimindo as

dimensões de Direitos políticos e individuais. 44

MODELO DO ESTADO ECONÕMICO COM FINS SOCIAIS

AUTORITÁRIO-SOCIAL ESTRUTURA BÁSICA Estado com tarefas de transformação da sociedade.

Necessidade de ação do Estado sobre o sistema econômico OBJETIVOS O Estado como agente de reforma e transformação. O

Estado como promotor de políticas públicas. O Estado como alavanca de desenvolvimento em simbiose ou em substituição ao mercado.

FUNÇÕES ECONÔMICAS Funções econômicas explícitas; ação sistemática

(dirigismo racional) MODELO

CONSTITUCIONAL Constituições dirigentes e programáticas.

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Direitos Individuais, Direitos Políticos e Direitos Sociais e Econômicos nominais. Ineficácia dos Direitos em nome do Desenvolvimento ou segurança nacionais.

ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL

Inserção de capítulos, partes, seções ou títulos de normas de ação estatal sobre a economia. Consagração dos Direitos Econômicos.

Assim, como ocorreu no século XIX, nas décadas de 50 e 60 o mundo viveu um espetacular

desenvolvimento e incremento da qualidade de vida, com reflexos positivos mesmo nos países mais

pobres do terceiro mundo 45. As explicações para tal fenômeno são: a) reestruturação e reforma do

capitalismo, partindo para economias mistas em que o Estado tinha melhores condições de administrar

e planejar a modernização da economia 46. b) Globalização e internacionalização da economia, com

larga expansão do comércio de manufaturas e das trocas entre as economias desenvolvidas e os países

(agora independentes) produtores de matérias-primas e alimentos. 47

Há, no período, a expansão de vários setores de atividades econômicas que passaram a ser

considerados serviços públicos - serviços públicos industriais e comerciais (típicas atividades

empresariais). Se, por um lado, a disciplina jurídica dos serviços públicos desse modelo de Estado

Econômico com Fins Sociais pode ser considerada, em síntese apertada, o esgarçamento dos conceitos

gestados desde o século XIX, explorados pelo Direito administrativo, por outro lado, algumas

modalidades de ação estatal traziam a marca do ineditismo. A ação estatal direcionada por empresas

estatais que, por vezes, competiam com empresas privadas tornou-se comum, chegando mesmo à

absorção de todo um setor da atividade - muito comum com as nacionalizações dos anos 50 e 60 -; e

44. Ibid., p. 161-164. No mundo subdesenvolvido o constitucionalismo político-social acabou amputando da ordem jurídica as garantias fundamentais do cidadão. Apresentam-se incompatíveis as garantias do cidadão e sociedade frente à razão (econômica) do Estado. BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 26. 45. HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 253-254. 46. HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 264. 47. Ibid., p. 264-265.

impedimento do exercício deste setor por parte da iniciativa privada - a formação dos monopólios

públicos. A disciplina jurídica de tal situação exigiu a percepção da nova realidade por parte da teoria

jurídica, obrigando a revisão da clássica forma das atividades estatais ao Direito público.

11. Modelos alternativos ao capitalismo. As ordens jurídicas dos Estados Fascistas e do

Socialismo real foram as experiências históricas no século XX que procuraram superar o sistema

capitalista. As ordens jurídico-constitucionais desses dois pólos fizeram-se sentir ao longo do século,

com as seguintes influências.

A organização econômica fascista, do dirigismo indiretamente coativo, de negação ao

liberalismo clássico, aliando uma concepção de sociedade corporativa e direção econômica estatal e

para-estatal. Entrou em colapso com a queda das potências nazi-fascistas restando casos isolados no

pós-guerra (franquismo, salazarismo) 48.

MODELO DO DIRIGISMO DO NAZI-FASCISMO

ESTRUTURA BÁSICA Estado como representante da nação ou do grupo nacional na construção de nova sociedade.

OBJETIVOS Transformação do sistema econômico e dos padrões culturais. Busca atingir um novo estágio de organização da sociedade erigido sobre a estrutura corporativa natural da nação.

FUNÇÕES ECONÔMICAS O Estado como agente econômico privilegiado. Amortece os conflitos de classe no seio da estrutura corporativa. Desenvolvimento de setor estatal e para-estatal da economia.

MODELO CONSTITUCIONAL

Constituições corporativas. Institucionalização dos instrumentos de cooptação e solução intra-estatal de conflitos classistas.

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Manutenção formal dos Direitos Individuais, Políticos e inclusão de Direitos Sociais e Econômicos. Desenvolvimento de formas de representação políticas classistas e corporativas.

ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL

A ordem normativa da economia como instrumento para a construção do novo Estado nacional. Títulos ou capítulos dedicados á Ordem Econômica.

O dirigismo coativo do socialismo real, das economias planificadas 49. As normas da ordem

econômica e social revestiam-se da maior importância no corpo constitucional desses países,

representando a negação do espírito clássico do liberalismo e do capitalismo e a conquista da sociedade

48. Ibid., p. 122-123. 49. Aqui cumpre realizar importante distinção: o planejamento é peça integrante do dirigismo racional, procurando dar uma direção racional à economia, própria ao Estado Social. Indica as prioridades de alocação de recursos pelo Estado e indica as ações preferenciais a serem seguidas pelos agentes privados. A planificação é a essência das economias do socialismo real, nas quais o Estado tem em seu poder todos os meios de produção, não há o planejamento como instrumento de direção racional da economia - indicativo de ações à iniciativa privada, se o Estado detem em suas mãos todos os meios de produção. O planejamento é instrumento do mercado; a planificação é a supressão do mercado. É da maior importância informar que a concepção de Direitos Econômicos do constitucionalismo do socialismo real era centrada na planificação estatal. Isso quer dizer que não havia Direitos Econômicos consagrando o livre empreender e o respeito à propriedade privada.Conforme: GRAU, E. R. A ordem econômica...Op. cit., p. 282-283. Na CF, art. 174: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.

socialista pelos trabalhadores. A associação entre a direção coativa dos períodos de guerra e a posterior

coordenação da atividade econômica nos países do socialismo real é inegável 50.

MODELO DO DIRIGISMO DO SOCIALISMO REAL

ESTRUTURA BÁSICA Estado como representante da classe trabalhadora e agente de transformações revolucionárias.

OBJETIVOS Transformação do sistema econômico. Busca atingir a sociedade sem classes

FUNÇÕES ECONÔMICAS O Estado como agente econômico privilegiado. Detentor de todos os meios de produção.

MODELO CONSTITUCIONAL

Constituições-balanço. Concepção de que a Constituição limita-se a descrever os estágios já atingidos nas transformações em direção à sociedade comunista.

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Papel destacado para os Direitos Sociais e Econômicos. Papel secundário dos Direitos Individuais e rejeição do modelo dos Direitos Políticos das democracias liberais.

ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL

A ordem normativa concebida como mero reflexo das relações concretas de produção. O plano do dever-ser como desdobramento mecânico do mundo do ser. As normas de ação estatal eram o centro do modelo constitucional

12. Crise do modelo do Estado econômico. Há o esgotamento do Estado Econômico

com Fins Sociais, tanto em sua vertente democrática como em sua vertente autoritária, nos anos setenta

do século XX. A queda dos socialismos reais combinadas às falhas do Estado Econômico com Fins

Sociais produziu a valorização de denúncias contra este modelo de Estado que já vinham se insinuando

desde os anos quarenta. Interessante que as críticas ao modelo foram, muitas vezes de formas

incorretas, compreendidas como neoliberalismo. Arnoldo Wald, por exemplo, ilustra algumas dessas

críticas, ao dizer que estamos vivendo a era da desregulação, com a falência do período keynesiano e a

tomada de consciência que a liberdade econômica é condição da liberdade política, e a hipertrofia do

Estado conduz ao empobrecimento, sem democracia e com o enfraquecimento do Estado de Direito.

Os juristas aspiram ao mundo com menos intervenção estatal em que estariam presentes um novo liberalismo,

combinado com o capitalismo social, (...) 51.

A verdade é que as principais mudanças, algumas somente propostas e outras efetivadas, têm

como propugnáculo a transformação do Estado. Verificamos ao longo de todo o trabalho que a relação

entre o sistema econômico e o Estado sofre transformações para adaptar-se às necessidades ditadas por

rupturas tecnológicas, de organização e de formas inéditas da relação do homem com o meio. Não

concordamos, portanto, que o ocaso do Estado Econômico e Social conduzam ao retorno do

liberalismo. É certo que se fala em desregulação, com novos campos para que a livre iniciativa possa

expandir a riqueza. O termo desregulaçào, todavia, não é de fácil conceituação já que engloba desde uma

mais ampla margem negocial aos agentes privados até a maior participação de delegados privados na 50. CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., p. 123. 51. WALD, A. Algumas premissas da reforma constitucional: a redução do papel do Estado, o fortalecimento da empresa privada e a limitação do poder monetário. Revista de informação legislativa. Brasília: Senado Federal, ano 30, n° 120, p. 111-114, out.-dez. 93.

prestação de serviços públicos. A ineficiência das ações empresariais estatais pode ser combatida pela

privatização e entrega ao mercado dos setores antes destacados pelo Estado:

- redução da amplitude dos serviços públicos - por concessões ou por livre exercício das atividades pela

iniciativa privada;

- privatização de empresas estatais;

- fim dos tabelamentos e controles de preços. 52

A ampliação da margem negocial dos agentes privados acompanha-se de reformas nas normas

de regulação do trabalho, aumentando a livre disposição de condições laborais, diminuindo os

comandos preceptivos de ordenação dos vínculos obrigacionais trabalhistas. Esse, talvez, seja o mais

polêmico de todos os pontos de reforma proposto pelo pensamento de reforma do Estado Econômico

e Social. E isso não se deve ao esgotamento do modelo de Bem Estar. Talvez as próprias condições de

trabalho exijam as mudanças (maior número de pessoas empregadas em serviços, expansão das

ocupações de profissionais liberais urbanos, contratação em múltiplas camadas de empresas).

Mesmo dirigindo ataques reformistas ao modelo do Constitucionalismo social e econômico,

diga-se que não houve mudanças significativas em relação aos padrões constitucionais vigentes desde o

início do século XX. Talvez possamos entender melhor o paradoxo se fizermos analogia com o que

ocorreu no capitalismo do século XVIII, em suas mudanças no século XIX. Vejamos: a forma ou

regime do capitalismo novecentista não representou a ruptura total do modelo de Constituição do

século XVIII. Foi, isso sim, uma paulatina transformação das relações econômicas e sociais que só

representariam rupturas no século XX. Então ainda estamos no aguardo de um novo padrão do

constitucionalismo.

Por outro lado não pode ser desconsiderada a variável impressionante da metade final do século

XX: a questão ambiental. O problema ecológico força, cotidianamente, a mudança de alguns marcos do

modelo do Estado Econômico-Social. As atividades econômicas devem ser orientadas, hodiernamente,

por finalidades de qualidade de vida e respeito aos padrões ambientais.

Philip Bobbit oferece a denominação bastante interessante sobre o quadro evolutivo que

abordamos nos itens anteriores. Em primeiro lugar, Bobbit traça a gênese do Estado contemporâneo

demonstrando que há evolução de várias ordens estatais, com as seguintes características: 53

52.Merecem reflexão as palavras de Hobsbawn: Para quem olha em retrospecto da década de 1990, salta aos olhos o pessimismo de comentaristas inteligentes (sobre o difícil período dos anos 20-30). Economistas capazes e brilhantes viam o futuro do capitalismo, caso ele não fosse mexido, como de estagnação. (...) Talvez historiadores, que venham a estudar o período de 1973 até o fim do Breve Século XX, fiquem igualmente impressionados com a persistente relutância das décadas de 1970 e 1980 em considerar a possibilidade de uma depressão geral da economia capitalista mundial. (...) Economistas que aconselhavam que se deixasse a economia em paz, governos cujos primeiros instintos, além de proteger o padrão ouro com políticas deflacionárias, era apegar-se à ortodoxia financeira, aos equilíbrios de orçamento e à redução de despesas, visivelmente não tornavam melhor a situação. Na verdade, à medida que continuava a depressão, argumentava-se com considerável vigor, entre outros por J. M. Keynes - que em conseqüência disso se tornou o mais influente economista dos quarenta anos seguintes -, que tais governos estavam piorando a depressão. Aqueles que entre nós viveram os anos de grande depressão ainda acham impossível compreender como as ortodoxias do puro mercado livre, na época tão completamente desacreditadas, mais uma vez vieram a presidir um período global de depressão em fins da década de 1980 e na de 1990, que, mais uma vez, não puderam entender nem resolver. Mesmo assim, esse estranho fenômeno deve lembrar-nos da grande característica da história que ele exemplifica: a incrível memória curta dos economistas teóricos e práticos. HOBSBAWM, E. Op. cit. p. 106-107

- Estado Principesco, com início no século XV, de legitimidade dinástica;

- Estado Régio, com início no século XVI, também de legitimidade dinástica;

- Estado Territorial, com início no século XVII, de legitimação baseada na administração eficiente do

país;

- Nação-Estado, com início no século XVIII, de legitimação baseada na constituição da identidade

nacional;

- Estado –Nação, com início no século XIX, de legitimação baseada na melhora do bem-estar nacional;

- Estado-Mercado, com início no século XX, de legitimação baseada na maximização de oportunidades

a seus súditos.

As classificações de Bobbit ultrapassam a linha de tempo da discussão sobre o momento de

transformações que estamos analisando. Centraremos exclusivamente no Estado-Nação e Estado-

Mercado. Para o autor, no exato momento histórico do ápice de algumas categorias do Estado-Nação,

com a derrocada dos regimes socialistas e a afirmação das democracias representativas e parlamentares,

este mesmo modelo sofre crises que apontam a mudança em direção às novas ordens constitucionais e

institucionais. O Estado-Nação sofre crises nas estruturas de segurança, bem-estar econômico-social e

cultural. O que emerge é o Estado-Mercado:

Se a função do direito no Estado-Nação é orientada para processos, despejando regras e

regulamentações imparciais a fim de promover o comportamento visado, o Estado-Mercado

persegue seus objetivos por meio de estruturas de incentivo e, às vezes, penalidades

draconianas - não tanto para garantir que se faça a coisa certa, mas para prevenir a instabilidade

social que paira sobre o bem-estar material.

Em outro trecho:

Como o Estado-Nação, o Estado-Mercado avalia seu êxito ou fracasso econômico conforme a

capacidade da sociedade de obter mais e melhores bens e serviços, mas, em oposição ao

Estado-Nação, não se considera mais redistribuidor ou provedor mínimo. Ao passo que o

Estado-Nação justificava-se como um instrumento para servir ao bem-estar do povo (nação),

o Estado-Mercado existe para maximizar as oportunidades de que usufruem todos os

membros da sociedade.

O Estado-Mercado convive com transações monetárias e relações comerciais transnacionais. A

proteção do consumidor e a maximização da proteção das oportunidades de escolha do consumidor

são pautas de primeira ordem nesta nova configuração. A isso juntam-se as já comentadas

preocupações com a segurança ambiental e a redefinição dos custos e oportunidades da rede de

proteção social do Estado-Nação (que engloba o Estado Econômico com fins sociais).

Muito interessante na classificação de Bobbit é a sub-divisão que realiza no Estado-Mercado:

53 BOBBIT, P. A guerra e a paz na história moderna. O impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 328 – 329.

- O Estado-Mercado pode organizar-se sob a forma de Estado-Mercado mercantil, que objetiva a melhor

participação no mercado, melhorando a posição relativa do Estado no grupo de Estados, em acelerada

competição;

- O Estado Mercado pode organizar-se sob a forma de Estado-Mercado empreendedor, que objetiva a

supremacia absoluta, com a ascendência colaborativa sobre os demais Estados, relativizando a

competição;

- O Estado-Mercado pode organizar-se sob a forma de Estado-Mercado gerencial, que objetiva

maximizar a posição em termos absolutos e relativos, com a competição relativizada por acordos de

blocos ou grupos econômicos. 54

NOVO MODELO

ESTRUTURA BÁSICA Novo Estado (diminuição do Estado empresário); projeção de nova proteção do Estado sobre a sociedade civil; ética ecológica

OBJETIVOS O Estado como agente regulador e não executor de atividades econômicas.

FUNÇÕES ECONÔMICAS assunção de serviços públicos por agentes privados;

função de planejamento como atendimento aos interesses ambientais; adoção de políticas de blocos econômicos; autoregulação de interesses – sob a proteção estatal

MODELO CONSTITUCIONAL

Sem grandes matrizes ou modelos; transição

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Valorização dos Direitos Individuais. Direitos Políticos. Direitos Sociais e Econômicos devem ser transformados. Ascensão de Direitos Ecológicos

ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL

Dubiedade no tratamento da Ordem Econômica: mantença de normas de garantia; rejeição das normas de ação estatal e de conteúdo programático finalístico.

13. Considerações finais. A classificação das Constituições com a combinação das

tipologias Estado e sistema econômico permite a ordenação dos tipos Constitucionais com pluralidade de

informações. Esta pluralidade é auxiliar na captação da ideologia constitucional e serve de – mais um –

modelo classificatório das Constituições (e dos modelos analíticos do Constitucionalismo).

54 BOBBIT, P. op. cit., p. 266-274. O autor cita expressamente como modelos do Estado mercantil, o Japão, e do Estado gerencial, a Alemanha. Embora procure analisar criticamente, parece inclinado a considerar os EUA o modelo de Estado empreendedor.