ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

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223 SIMPÓSIO SIMPÓSIO SIMPÓSIO SIMPÓSIO SIMPÓSIO 15 15 15 15 15 ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Telma Weisz Ana Teberosky José Rivero

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SIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIO 1515151515

ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTODAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Telma Weisz

Ana Teberosky

José Rivero

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No Brasil, recém se descobriu que a repetênciareiterada gera um fantástico desperdício de di-nheiro público. No entanto, desde que dispomosde estatísticas1 temos a seguinte situação:

Esses dados estão e sempre estiveram dis-poníveis. No entanto, só muito recentementecomeçou-se a considerá-los, a reconhecer o ab-surdo neles expresso e a pensar concretamenteem buscar caminhos para mudar essa situação.

Considerando que nenhum país do mundo,mesmo aqueles mais pobres que o Brasil, tem índi-ces de fracasso escolar no 1ª ano de escolaridadecomo os nossos, as questões que se colocam são:

1. Como foi possível aceitar esses índices pas-sivamente por quase cinqüenta anos?

2. Que explicações se construíram para o fe-nômeno?

3. O que se fez – do ponto de vista das políti-cas públicas – para mudar essa situação?

Vamos tentar responder a uma questão decada vez, se é que isso é possível.

Para refletir sobre a primeira: “Como foipossível aceitar esses índices passivamente porquase cinqüenta anos?”, torna-se necessáriopensar o funcionamento do sistema escolar bra-sileiro anterior à Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional atual.

Alfabetização no contextodas políticas públicas

Telma Weisz

PROFA/MEC

A LDB anterior, de 1971, quando eliminoua separação entre primário e ginásio, acaban-do com o exame de admissão e tornando obri-gatório o ensino até a 8ª série, produziu uma

política de garantia deacesso – o que foi essen-cial – mas não de sucesso.Ela garantiu a todas as cri-anças a entrada na escola,mas não a progressão. Nãogarantiu que elas chega-

riam ao fim da escolaridade obrigatória de oitoanos nem que aprenderiam o que precisavamaprender na escola.

O mecanismo pelo qual era possível dar aces-so sem garantir o sucesso era a crença na repro-vação como único dispositivo capaz de garantira qualidade da educação. A idéia, muito popularainda hoje, como se pode notar quando se lêemos jornais dirigidos à classe média, é que a ame-aça da reprovação é a única forma de obrigar osalunos a estudar. Que sem ela ninguém vaiaprender nada e a qualidade da educação vai fi-car péssima. Aliás, da mesma forma que em 1971,com a LDB anterior, dizia-se que, sem o examede admissão, deixando qualquer um entrar emmassa no ginásio, ia cair a qualidade.

Vemos hoje muita gente, inclusive jornalis-tas que prestam serviços educacionais à classemédia, a discorrer com saudade sobre a mara-vilhosa escola pública dos tempos de antanho,esquecidos do fato de que para entrar em umginásio público de boa qualidade como, porexemplo, aquele no qual eu estudei, era neces-

1 As estatísticas do IBGE são anteriores a 1956, mas os dados parecem mais seguros a partir desse ano.

2 Não temos estudos que permitam afirmar com segurança, mas o ganho de 11 pontos percentuais que aparece entre 1988 e 1996 poderia seratribuído à introdução dos ciclos em vários estados. Por exemplo, no estado de São Paulo, a simples introdução do Ciclo Básico, em 1984,diminuiu em 10% a retenção, que passou a acontecer apenas ao fim de dois anos.

Taxa de reprovação ao final da 1ª série do Ensino Fundamental2

1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996

56,6% 51% 52% 49% 48% 48% 48% 49% 46% 46% 41%

Fonte: IBGE – Inep

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sário concorrer, como eu concorri, com 3.500candidatos por uma das 120 vagas disponíveis.Da mesma forma que as outras 119 meninasque, como eu, foram premiadas com uma vaga,precisei fazer curso de admissão, isto é, um cur-so preparatório para o exame, onde se estuda-va durante um ano. Um curso vestibular parti-cular, inacessível aos alunos da escola pública.Os maravilhosos ginásios públicos de antiga-mente, pagos com os impostos de todos, eramfreqüentados principalmente pelos alunos demaior poder aquisitivo, como eu, que vinhamdas escolas privadas. Exatamente como acon-tece hoje com as universidades públicas.

Ainda tentando responder à nossa primeiraquestão: “Como foi possível aceitar esses índi-ces passivamente por quase cinqüenta anos?”,torna-se necessário considerar que os formado-res de opinião, que lêem jornais e têm poder deinfluir nas políticas governamentais, sempre ti-veram uma visão elitista da educação. Uma vi-são excludente, fantasiada de meritocrática.Pois via-se como “natural” um ginásio (5ª a 8ªséries) de alto padrão de excelência para os pou-cos, pouquíssimos, capazes de competir por elee nenhum ginásio para os outros todos, a abso-luta maioria.

É apenas dentro dessa falsa meritocracia quese pode entender o massacre intelectual de me-tade dos alunos no fim do primeiro ano da esco-laridade obrigatória. A escola era obrigatória masisso não significava que era para todos: apenaspara os mais capazes. Que por acaso são os maisricos. Ou melhor, os menos pobres.

Agora vamos tentar responder à segundaquestão: “Que explicações se construíram parao fenômeno?” Sem querer esgotar a questão,podemos classificar essas explicações em doisgrupos: as científicas e as do senso comum.

O fracasso escolar é fonte de preocupação emmuitos e diferentes países. Em especial nos EUA,onde a questão da igualdade de oportunidadescostuma ser levada a sério. Nos anos 1960 essapreocupação se acentuou e muito dinheiro foiinvestido em pesquisa para tentar compreendero que havia de errado com as crianças que nãoaprendiam. Buscava-se no aluno a razão de seufracasso. Desse período são as teorias que hojechamamos “teorias do déficit”. Supunha-se que

a aprendizagem dependeria de pré-requisitos(cognitivos, psicológicos, perceptivo-motores,lingüísticos...) e que as crianças que fracassavamo faziam por não dispor dessas habilidades pré-vias. O fato de o déficit se concentrar nas crian-ças das famílias mais pobres era explicado poruma incapacidade das próprias famílias para es-timular suas crianças, tanto cognitiva quantolingüisticamente. Baterias de exercícios deestimulação foram criados como remédio paracurar o fracasso, como se ele fosse uma doença.Esta abordagem, que já se anunciava no testeABC de Lourenço Filho, teve muita penetraçãono Brasil onde, nos anos 1970, foi largamentedifundida a idéia de que todas as crianças deve-riam passar, no início da escolaridade, por essesexercícios aqui conhecidos como “prontidão (doinglês readiness) para a alfabetização”. Uma es-pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-felizmente, era inócua.

Uma outra explicação, esta especificamen-te brasileira, relacionava o fracasso à pobreza:era a explicação nutricional. Segundo essa ex-plicação, as crianças não aprendiam porque ti-nham fome. Portanto era preciso alimentá-las.No entanto, quando se perguntava diretamen-te às professoras por que seus alunos eram re-provados em massa, a explicação campeã é aque fala em problemas afetivos e familiares ena falta de interesse da família pela vida esco-lar dos filhos, que se expressaria nas faltas fre-qüentes e no fato de as famílias não ajudaremnas lições. Famílias com baixíssima ou nenhu-ma escolaridade eram responsabilizadas pornão ensinar os conteúdos escolares aos filhos.

Em resumo: a culpa seria da família que nãoestimula, não alimenta e não cuida adequadamen-te dos filhos, nunca da escola. É interessante ob-servar que no Brasil, em São Paulo pelo menos, aschamadas famílias desestruturadas (pais separa-dos, famílias chefiadas pelas mães) são igualmen-te freqüentes nas classes altas e baixas. Quando seconversa com orientadores educacionais das es-colas da elite, o que se ouve é uma enxurrada dequeixas com relação às famílias e aos problemasemocionais dos alunos. No entanto, os númerosdo fracasso se concentram nas classes baixas.

Vamos cuidar agora da nossa terceira ques-tão: “O que se fez – do ponto de vista das políti-

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cas públicas – para mudar essa situação?”.A crença de que o fracasso escolar era fruto

da fome, que incapacitava os alunos para a apren-dizagem, levou os sucessivos governos a expan-dir continuamente o Programa da Merenda Es-colar. Travestido de programa educacional, tor-nou-se um dos maiores programas sociais do país:é a maior cadeia de restaurantes do mundo. Comoos pesquisadores da área médica cansaram deavisar, não fez nenhuma diferença nos númerosdo fracasso escolar. Nada contra alimentar as cri-anças brasileiras, mas o fato é que a fome não eraresponsável pelas dificuldades de aprendizagem,nome que se dava então ao problema.

Políticas públicas voltadas para o fracasso es-colar e mais especificamente para o fracasso de50% dos alunos na alfabetização inicial estãoagora dando os primeiros passos. Um dos fato-res que contribuiu para isso foi a mudança noolhar da sociedade brasileira para a questão daeducação. Finalmente se começa a compreen-der o papel econômico da educação no desen-volvimento do país e, com isso, ela começou aser levada mais a sério. Também a crescente pre-ocupação com as questões da cidadania, da par-ticipação social e a compreensão, pela elite, deque a exclusão de grandes contingentes da po-pulação volta-se contra essas próprias elites deduas formas: em primeiro lugar, porque só umgrande mercado consumidor permite a econo-mia de escala sem a qual as empresas não sãocompetitivas e, em segundo lugar, o medo. Porisso a Bolsa-Escola, uma política pública de as-sistência social com focona permanência das cri-anças na escola.

Essas preocupaçõespermitiram que se rom-pesse o imobilismo e seconseguisse, finalmente,aprovar no Congressouma nova Lei de Diretri-zes e Bases. Nesta novaLDB, buscou-se garantirnão só o acesso universal

à escola mas também favorecer a progressão den-tro dela. O esforço de desmontar a armadilhaexcludente da repetência aparece na LDB comopossibilidade. É a progressão continuada dentro deciclos. É interessante notar que foram os estadosmais desenvolvidos que optaram pela organizaçãoda escola em ciclos.

E com ela recomeça a gritaria sobre a perdada qualidade da escola pública. Revistas e jor-nais têm andado cheios de matérias sobre alu-nos analfabetos na 6ª e na 7ª séries. Como é pos-sível que alguém passe cinco ou seis anos naescola e não aprenda nem a ler?

Em recente experiência acompanhandoprojeto de formação em serviço em um muni-cípio nordestino3 foi possível analisar um fenô-meno de que tínhamos notícia, mas que nuncahavia sido empiricamente verificado e, princi-palmente, nunca tinha sido quantificado: osprofessores têm dificuldade para reconhecer oquanto seus alunos aprenderam e se estão ounão em condições de serem aprovados para asérie seguinte.

O que vemos no quadro abaixo é o resulta-do de uma ação cujo objetivo era ao mesmotempo de avaliação e de formação. A intençãoprimeira era informar o olhar dos educadoresem formação, utilizando um instrumento quepermitisse analisar as idéias dos alunos sobreo sistema de escrita – e, portanto, avaliar comrazoável precisão se todas as crianças do mu-nicípio que estavam na escola estariam ou nãoalfabetizadas.

3 Projeto desenvolvido no município de Batalha, Alagoas. Alguma informação sobre esse projeto pode ser encontrada no número 129 (mar./abr. 2000) da revista Nova Escola, Editora Abril.

1ª série 586 (45%) 276 (22%) 189 (15%) 225 (18%) 1.276 (49%)

2ª série 30 (4%) 21 (3%) 103 (14%) 578 (79%) 732 (28%)

3ª série — — — 452 (100%) 452 (17%)

4ª série — — — 162 (100%) 162 (6%)

Total 2.622 (100%)

Alunos com escritasanteriores àfonetização

Alunos comescritassilábicas

Alunos comescritas silábico-

alfabéticas

Alunos comescritas

alfabéticas% de alunos

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O que encontramos aponta para a enormedificuldade que têm os professores de verificaro que os alunos já sabem e o que eles não sa-bem. Se considerarmos os alunos que produ-zem escritas silábico-alfabéticas e alfabéticas na1ª série, no início do ano – 414 alunos, 33% dosalunos da 1ª série – e que poderiam perfeita-mente acompanhar uma 2ª série pois podem lere escrever, ainda que com precariedade, verifi-camos que esses alunos foram retidos porqueos professores não tiveram condições de avali-ar adequadamente e acabaram utilizando indi-cadores como “letra bonita” ou “caderno bemfeito” para decidir o destino escolar de seus alu-nos. Quando o professor trabalha com este tipode indicador, até avanços na aprendizagem aca-bam prejudicando o aluno. Por exemplo, quan-do o aluno aprende a ler, é comum que ele co-mece a “errar” na cópia. Isto é, deixa de copiarletra por letra e começa a ler e a escrever gran-des blocos de palavras, em geral unidades desentido, o que faz com que cometa erros de or-tografia ou escreva palavras grudadas. Isto, queé na verdade indicador de progresso, acaba sen-do interpretado como regressão, pois o profes-sor não tem clara a diferença entre copiar e es-crever. Constatação reforçada por outro dadointeressante: a presença de 51 alunos não-lei-tores (7%) na 2ª série. Estes alunos foram pro-movidos porque eram bons copistas e isso pa-rece ter impedido o professor de perceber quenão sabiam ler e escrever.

Os números da última coluna da tabela aci-ma, que não são tão diferentes do que aconteceno resto do país, mostram o impacto da culturada repetência: 49% dos alunos estão na 1ª série,28% estão na 2ª série, 17% na 3ª série e apenas6% conseguiram chegar à 4ª série.

É de situações como essa que estamospartindo ao buscar saídas para a cultura darepetência, com a ambição de criar uma edu-cação menos exclusora. E nossa falta de cla-reza sobre a questão vem, também, de longadata. Darcy Ribeiro costumava dizer que atri-buir nossos extraordinários índices de fracas-so escolar a uma hipotética incompetência daescola era uma rematada tolice. Que a nossaescola era não só competente como eficientepois preparava 50% da população para acei-tar a exclusão social e atribuí-la à sua própriaincapacidade.

Na mesma época em que os dados acimaforam colhidos, começou a ser desenvolvidoum programa do MEC chamado PCN emAção, que tinha dois objetivos:

1. Oferecer – principalmente às SecretariasMunicipais de Educação – uma referênciametodológica para a formação de profes-sores em serviço.

2. Ajudar a compreender os marcos teóricosdos Parâmetros Curriculares Nacionais.

À medida que o Programa era desenvolvi-do em dois mil municípios, foi ficando clara– principalmente para os próprios professo-res – a dificuldade que eles tinham com a al-fabetização. Começou-se então a produzir umprograma específico de formação de profes-sores alfabetizadores, com duração de umano, que ficou conhecido como PROFA. Es-pera-se que este Programa – que está, nestemomento, sendo desenvolvido em 1.188 mu-nicípios de 22 estados, atingindo 75.436 pro-fessores – ajude a desmontar a armadilha quetem tornado a escola pública brasileira umafábrica de analfabetos. Um instrumento po-deroso na perpetuação da miséria.

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As últimas reformas educacionais propuse-ram objetivos como o de lograr melhores resul-tados escolares, acomodar as respostas instrucio-nais à diversidade dos estudantes e fazer com queos alunos aprendam criativa, produtiva e reflexi-vamente. Esses objetivos educacionais implicamenormes pressões e exigências tanto para os alu-nos como para os professores. Exigem professo-res muito bem formados, com muitas capacida-des e habilidades, professores que entendam tan-to de aprendizagem como de ensino, que este-jam familiarizados com perspectivas interdisci-plinares e possam criar pontes entre as experiên-cias dos alunos e os objetivos curriculares(Darling-Hammond, 1994: 5). A área de ensino dalinguagem oral e escrita apresenta, além das exi-gências anteriores, algumas particularidades. Éuma área na qual ocorreram, nos últimos anos,profundas mudanças em decorrência dos novosconceitos e resultados de pesquisas sobre apren-dizagem e também da reflexão sobre a importân-cia do papel que ela desempenha na cultura e naeducação. Essas mudanças suscitam uma série denecessidades no terreno da formação dos profes-sores: a necessidade de um conhecimento maisformal e teórico para que os professores se atua-lizem e adquiram mais conhecimentos diversifi-cados; e a necessidade de desenvolver esse co-nhecimento no contexto menos formal da práti-ca na sala de aula.

A formação do professor implica um aspec-to teórico e formal e outro prático e contextual.Embora freqüentemente influenciemos o pri-meiro tipo de conhecimento (o teórico), o co-nhecimento que se desenvolve com a práticageralmente não é assistido. Nesse contexto, oprofessor continua isolado e sozinho com umconhecimento prático não contrastado ou de-batido publicamente e que muitas vezes é im-

A alfabetização e a formaçãode professores nas diferentesetapas educacionais

Ana Teberosky

Universidade de Barcelona/Espanha

plícito. Contudo, as maiores exigências profissio-nais impostas aos docentes dizem respeito a estesegundo tipo de conhecimento: o conhecimen-to prático e a habilidade necessária para desen-volver aprendizagens nos alunos, fazer uma ava-liação razoável dessas aprendizagens e ser flexí-vel para adaptar-se ao desenvolvimento de no-vas tecnologias da informação e da comunica-ção, entre outros aspectos. Na oportunidade des-te seminário, pretendo abordar algumas ques-tões relacionadas ao ensino da linguagem, levan-do em consideração esses dois aspectos da for-mação. Essas questões se referem:

• às adaptações necessárias dos conhecimen-tos teóricos para adequar a formação dosprofessores ao estado atual da questão; e

• a algumas experiências de intervenção queexemplificam adaptações introduzidas nonível da prática na sala de aula.

Adaptações de conhecimentosteóricos na formaçãodos professoresEntre as adaptações dos conhecimentos

necessários para adequar a formação dos pro-fessores à situação atual, vamos abordar o queos professores precisam saber sobre a lingua-gem e o que precisam saber sobre os processosdos alunos na aprendizagem e sobre seus pró-prios processos psicológicos.

O que os professores precisam sabersobre a linguagem para ensiná-la

Todos os locutores, como falantes de umalíngua, possuem um conhecimento intuitivo ouespontâneo da linguagem, que é diferente do

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conhecimento abstrato, reflexivo e formal do es-pecialista (Reichler-Béguelin, 1993). Um tipo deconhecimento é implícito, o outro, explícito.Entre um e outro não existe uma dicotomia to-tal, e sim um contínuo, uma gradação de situa-ções que tomam a linguagem como objeto semchegar a uma representação reflexiva totalmen-te analítica. No meio desse contínuo podemossituar a linguagem escrita, a linguagem poéticae determinadas criações que subvertem o usocotidiano (como a ironia, as piadas).

Onde situamos a aprendizagem do alunonessa gradação? As discussões sobre a aprendi-zagem, por exemplo, da leitura ou do vocabulá-rio dividem os autores entre os que defendemuma aprendizagem intencional e reflexiva e osque defendem uma aprendizagem incidental eimplícita. Os primeiros defenderiam o ensinofônico na leitura inicial e os segundos defende-riam a linguagem integral. No entanto, muitosestudos demonstraram que pouco se aprendecomo resultado de uma instrução direta.

Onde podemos situar as exigências impos-tas ao professor nessa gradação? É suficiente queo professor seja um locutor intuitivo, com per-cepções intuitivas ou ele deve ser um locutorreflexivo, analítico e consciente de sua língua?Durante muito tempo, acreditou-se que o conhe-cimento intuitivo seria suficiente e que a utili-zação de um método introspectivo de consultaproporcionaria um acesso objetivo a esse sabersubjetivo. Essa consulta permitia ao professordiferenciar o correto do incorreto, o gramaticaldo não-gramatical. No entanto, muitos autoresatuais questionam essa idéia: além de não ser su-ficiente, a intuição do adulto freqüentementeinterfere. Interfere na compreensão do processode aprendizagem dos alunos. Pesquisassociolingüísticas, por sua vez, evidenciaram quenem todas as pessoas têm a mesma intuição so-bre a língua, por tratar-se de um conhecimentoque não está homogeneamente distribuído en-tre a população: ele varia de acordo com diver-sos fatores contextuais, como a idade, a classesocial, o nível educacional, o gênero, a profissão,o lugar e a situação (Duranti, 2000).

O que provoca essa interferência? Quando sefaz uma consulta ao saber intuitivo para se deci-dir se algo é correto, gramatical, adequado etc.,

já ocorre um mínimo de reflexão. No entanto, aque podemos atribuir a heterogeneidade na re-flexão sobre a linguagem, na representação so-bre as unidades da língua? Existe alguma rela-ção entre a capacidade de reflexão e as práticasletradas? Esse problema é diferente em gruposhumanos nos quais a escrita está reservada auma pequena parcela da sociedade? Ele é dife-rente em países que apresentam um baixo nívelde alfabetização? (Blanche-Benveniste, 1998).

Entre o conhecimento intuitivo e o reflexivo,entre o conhecimento do aluno e o conhecimen-to do professor e entre os conhecimentos dosmesmos professores, considerados em suas di-ferenças individuais e sociais, está a escrita(Halliday, 1993; Blanche-Benveniste, 1998). Aaprendizagem e o uso da escrita marcam dife-renças claras entre os locutores; por exemplo,não se pode estudar (refletir, analisar, ensinar) alinguagem sem a ajuda da escrita. Não se podefazer uma análise das palavras, dos componen-tes de uma palavra ou de diferentes formas deconsciência lingüística sem a ajuda de algum tipode representação escrita.

O reconhecimento do papel fundamental de-sempenhado pela escrita na reflexão e análise dalíngua provoca uma segunda tensão no ensino dalinguagem: o que os professores estão ensinandoem suas aulas de linguagem? Durante muito tem-po, essa tensão foi deixada de lado pela orienta-ção prescritiva do ensino: ensinava-se o que anorma convencional estabelecia. No entanto,muitos autores atualmente acreditam que a re-presentação normativa escrita da língua tambéminterfere no seu ensino. Novamente, esses auto-res evidenciaram, por exemplo, que a represen-tação normativa escrita impede que o professor“ouça” o verdadeiro discurso oral do aluno e afe-ta sua capacidade de “ler” os textos escritos dosiniciantes ou de “permitir” erros como constru-ções provisórias e o espontâneo como expressãodo nível real de produção etc. Essa representaçãonormativa escrita interfere porque exige que oprofessor assuma uma atitude de correção dasproduções dos alunos, e não de interpretaçãonum contexto de aprendizagem.

As pesquisas educacionais e sociolingüísticasmostraram que a norma lingüística não é neutrado ponto de vista social e cultural: alguns gru-

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pos estão mais próximos que outros da normaescolar porque receberam instrução de acordocom essas convenções.

Portanto, hoje sabemos que o conhecimen-to necessário da linguagem para o ensino nãopode consistir na intuição do professor e tam-pouco num saber inconsciente da diferença en-tre norma e dados lingüísticos. No entanto, in-tuição, reflexão e norma intervêm no ensinocomo conhecimentos necessários, ainda quedistribuídos de outra maneira. Dissemos acimaque as necessidades de formação dos professo-res consistiam num conhecimento formal e te-órico e num conhecimento prático e contextual.No ato de ensinar, esses conhecimentos não sãosimples. Na verdade, são bem complexos. O co-nhecimento teórico implica um saber sobre umsaber: um saber sobre o saber intuitivo e implí-cito do aluno como sujeito que aprende no pro-cesso de apresentarmos a ele o saber da língua,como objeto de ensino. No entanto, em seu de-senvolvimento contextual e prático, não é umsimples processo de transmissão direta, e simum complexo processo de participação ativatanto do professor como do aluno, no qual oprofessor desempenha um papel de modelo euma função de modelação. Na função demodelação, o professor participa como sujeito,como ouvinte/falante e leitor/escritor da lín-gua. Por isso, todo ato de ensino e aprendiza-gem é intersubjetivo, numa intersubjetividadedesigual no que diz respeito ao conhecimentoe diferente no que diz respeito às funções.

Portanto, os professores precisam ter um co-nhecimento psicológico e um conhecimento doconteúdo (a linguagem oral e escrita) que lhes per-mitam fundamentar suas decisões curriculares esua função pedagógica. Alguns desses conheci-mentos que o professor deve possuir e funções queele deve desempenhar para satisfazer as necessi-dades atuais do ensino e da aprendizagem da lín-gua são os que seguem (Fillmore e Snow, 2000).

Conhecimento lingüísticoe função comunicativa

A mudança nas perspectivas de ensino da lín-gua pode ser descrita como da normativa ao in-tercâmbio comunicativo e deste à linguagem for-

mal. De fato, já se reconhece, há muito tempo,que o conhecimento lingüístico do professor nãoreside somente na gramática ou na ortografianormativa, mas também em suas habilidadespragmáticas de intercâmbio comunicativo, rela-cionadas a sua função de promover a maior par-ticipação possível dos estudantes em situaçõesde produção e intercâmbio de linguagem. Paraalcançar esse objetivo, segundo Fillmore e Snow(2000), o professor precisa estruturar sua próprialinguagem com clareza e, ao mesmo tempo, en-tender o que os alunos dizem.

No entanto, sabemos atualmente que esseprincípio de intercâmbio comunicativo entreprofessor e aluno não é suficiente para se alcan-çarem os objetivos de ensinar a linguagem. Osrequisitos acadêmicos exigem que se vá além dasituação comunicativa, porque nem todo regis-tro de linguagem serve para a aprendizagem aca-dêmica. Somente o discurso formal e os textosescritos oferecem o vocabulário, as estruturasgramaticais, a fraseologia e a retórica que se as-sociam ao registro acadêmico (Fillmore e Snow,2000), ou seja, os contextos acadêmicos exigemuma linguagem oral formal e uma linguagem es-crita que são diferentes da linguagem cotidiana.

Conhecimento pedagógicoe função avaliadora

Uma das maiores responsabilidades dosprofessores está relacionada à função de avalia-ção: um juízo do professor pode ter enormesconseqüências para a vida das crianças, afir-mam acertadamente Fillmore e Snow (2000).Por exemplo, a afirmação de um professor deque um aluno é disléxico, imaturo ou lento podeter grandes repercussões em seu destino edu-cacional. As decisões pedagógicas relacionadasà avaliação, como a promoção ou a repetição, aclassificação para a inserção de um aluno numgrupo ou outro etc. também têm grandes con-seqüências para ele.

O conhecimento pedagógico que intervém noprocesso de avaliação não reside somente na pron-tidão para detectar erros e corrigi-los; reside nacapacidade de distinguir diferentes tipos de erros,de diferenciar erros e desvios, de separar o conhe-cimento insuficiente do obstáculo cognitivo.

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Conhecimento letrado e função desocialização

O objetivo do professor é a aprendizagem doaluno. Poucas dessas aprendizagens podem seradquiridas por meio de uma instrução direta; agrande maioria ocorre em conseqüência de pro-cessos de reorganização de conhecimentos an-teriores. Esses processos são individuais, mastambém sociais.

Por exemplo, a aprendizagem inicial da lei-tura e da escrita pode ser vista como uma ini-ciação num código por instrução direta oupode ser orientada como a aprendizagem decomportamentos letrados, na qual não existeuma delimitação clara entre pré-leitor e leitor,entre pré-escritor e escritor, e na qual tambémnão há um início, um ponto zero. A separaçãoem dois momentos só é aceitável para os quetêm uma postura normativa e esperam quetodas as aprendizagens sejam convencionais.É por isso que o professor deve desempenharuma função de socialização, para dar lugar àelaboração de conhecimentos a partir de prá-ticas letradas: uma função de interação comleitores, com material escrito e com os conhe-cimentos socialmente transmitidos pelos adul-tos. Esses conhecimentos parecem estar influ-enciados pelas condições do ambiente: desen-volvem-se melhor quando o ambientealfabetizador é rico em materiais escritos e eminterações e práticas letradas.

O conhecimento psicológico necessáriono ato pedagógico

A intersubjetividade do ensino que mencio-namos anteriormente implica uma capacidadeprópria dos seres humanos: a capacidade deatenção conjunta que lhes permite entrar numatríade de interação com outro ser humano, apartir de um objeto. Davidson (1985, apudOlson e Kamawar, 1999: 160) chama essa capa-cidade de “metáfora da triangulação”. Trata-sede uma capacidade que exige duas perspecti-vas e um objeto, ou seja, duas criaturas que cri-am um conhecimento comum sobre uma reali-dade objetiva compartilhada. Diferentementede qualquer ação casual, uma ação com finspedagógicos entre duas pessoas, com duas pers-

pectivas e um conteúdo, implica intenção.A intenção nas relações triangulares pode ter

diversas formas de expressão. Por exemplo, elapode expressar-se por ações ou por ações e pa-lavras. Essas formas de expressão têm significa-dos (Feldman, 1999). Ao ter significados, exigemuma interpretação, porque, para compreender aintenção, é preciso que se tenha uma interpre-tação de seus significados. Isso se aplica tanto àintenção simples de uma ação individual comoa um complexo conjunto de intenções sociais.

A intencionalidade não pode estar desvin-culada da interpretação (Feldman, 1999: 312),mas a aprendizagem da interpretação é umexercício psicológico complexo, que implica acapacidade de entender a vida interna de ou-tra pessoa, a partir da expressão verbal ou daação. Interpretar é um exercício complexo, masele ajuda o intérprete a considerar as ações ouos enunciados dos outros antes ou depois desua ocorrência.

Qual seria, então, a relação entre a linguageme a intenção? A linguagem depende da intenção,porque falar é expressar idéias, crenças, pensa-mentos e interpretar é atribuir idéias, crençasetc. Inversamente, a intenção não depende dalinguagem, ou seja, pode haver intenção sem lin-guagem, como vemos, por exemplo, ocorrer en-tre primatas, que são capazes de entender e deexpressar intenções (Tomasello, 1998).

Na relação educacional entre um adulto euma criança, a interpretação da intenção apre-senta algumas particularidades. Podemos atri-buir à criança conhecimentos (crenças, senti-mentos e intenções) que ela não pode atribuira si própria; inversamente, ela pode atribuir-se conhecimentos quando lhe atribuímos erroou ignorância. Olson e Kamawar (1999: 157)analisam essas assimetrias: no primeiro caso,a criança está numa posição intencional dife-rente da do adulto, mas o adulto decide atuarcomo se estivessem na mesma posição, comose ela tivesse conhecimentos, sentimentos eintenções. Por exemplo, a mãe que fala comseu bebê como se ele pudesse entender tudoque ela diz. No segundo caso, a criança já de-senvolveu a capacidade de se atribuir inten-ções, embora possa equivocar-se no conteú-do. Quando percebe o erro, ela pode sofrer uma

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decepção ou reconhecer seu erro; em ambosos casos, ela é capaz de saber que sabe, ou seja,ela é capaz de uma metarrepresentação ou deuma representação sobre a representação (umconhecimento sobre o conhecimento). Porexemplo, quando as crianças dizem “achei quese escrevia com ‘s’, mas depois vi que era com‘c’”. É o “dar-se conta” de sua própria crença.O adulto aproveita essa capacidade para influ-enciar as crenças, sentimentos e conhecimen-tos das crianças. Portanto, o ato de ensinar éum ato psicológico.

A distinção entre o conhecimento intuitivodo usuário da linguagem, a intervenção do pro-fessor para ampliar os contextos de uso no sen-tido de que inclua não só a linguagem cotidia-na, mas também a linguagem oral formal e a lin-guagem escrita, e a atuação sobre o “dar-se con-ta” ou a metarrepresentação corresponde à dis-tinção feita por M. Halliday (1982) entre trêsfases do desenvolvimento da linguagem e dospropósitos educacionais relacionados: aprendera linguagem (conhecimento intuitivo), apren-der por meio da linguagem (linguagem oral for-mal e escrita) e aprender sobre a linguagem(metarrepresentação).

Experiências de intervençãoque exemplificam adaptaçõesde diferentes etapaseducacionais na práticaAs pesquisas atuais sobre propostas de in-

tervenção educacionais fazem dos processospsicológicos de aprendizagem dos alunos ocentro e foco do currículo escolar. Hiebert eTaylor (2000; Hiebert, 2000) chamam de “in-tervenção” os projetos que consistem: a) naanálise desses processos de aprendizagem dosalunos; e b) na análise das tarefas escolarespara adaptá-las a esses processos de aprendi-zagem. Seu objetivo é programar a instruçãocom base no conhecimento dos processos psi-cológicos, e não tanto no estudo de uma téc-nica ou método específicos.

Atualmente, dispomos de modelos deaprendizagem da linguagem, da leitura e da es-crita, bem como de experiências de ensino nos

contextos escolares. Apoiados em ambos, osprogramas de intervenção com adaptação deobjetivos e atividades aos diferentes níveisevolutivos começaram a oferecer respostas eresultados alentadores (Snow, 1998). Mais quedar suporte exclusivo a um processo singular,esses programas pretendem considerar o con-junto dos processos de aprendizagem simulta-neamente. Nesse sentido, as propostas de in-tervenção (que procuram integrar diferentes as-pectos) constituem um bom ponto de partidaem relação às propostas instrucionais do pas-sado, que enfatizavam exclusivamente um com-ponente, como, por exemplo, o ensino dadecodificação de forma explícita e exclusiva.Esses projetos geralmente são experimentais eimplicam a formação de professores(as) e a as-sistência de pesquisadores.

Para exemplificar essa consideração simul-tânea de todos os componentes, podemos pen-sar nas competências dos alunos e dos profes-sores como usuários da linguagem: sua capaci-dade de ouvir, falar, ler e escrever e os conteú-dos sobre o que se ouve, fala, lê ou escreve. Umadas funções do professor é criar contextos nosquais essas competências se relacionem e se de-senvolvam. Uma segunda responsabilidade re-side na intervenção para oferecer modelos quedirecionem esses desenvolvimentos, como vi-mos no parágrafo anterior. E, finalmente, umaterceira função consiste em escolher conteúdosapropriados e de interesse para os alunos(Richmond, 1990).

Experiências que exemplificamadaptações do ponto de vista darelação entre componentes

Uma consideração simultânea dos compo-nentes do ponto de vista dos contextos deveapresentá-los de maneira estreitamente relacio-nada, como proposto na figura à direita (adap-tada de Richmond, 1990).

Vejamos alguns exemplos dessa abordagemda consideração simultânea.

Na pré-escolaEmbora na pré-escola os programas de in-

tervenção sejam díspares, muitos deles promo-

233

Alfabetização no contexto das políticas públicasSIMPÓSIO 15

vem essa abordagem integral com atividadescomo: a) leituras em voz alta de narrativas ecomentários orais sobre essas leituras; b) es-crita de palavras de um vocabulário estabele-cido como vocabulário-chave extraído dessasleituras; c) identificação dessas palavras e co-mentários sobre a relação letra/som em algu-mas palavras aprendidas. Alguns estudos in-cluem também: d) atividades de consciênciametalingüística de forma indireta, com tarefascomo a recitação oral de poemas, rimas ealiteração e atividades diretas como o “canti-nho da escrita”; e e) reescrita das narrações li-das. Outros estudos enfatizam aspectos soci-ais, como, por exemplo, as relações com a fa-mília e o empréstimo de livros nos fins de se-mana, bem como a releitura desses livros naescola e em casa.

Entre os objetivos dessas intervenções,Hiebert e Taylor (2000) e Teberosky (2001)mencionam o desenvolvimento de concei-tos sobre a palavra impressa, experiênciacom a linguagem escrita, experiências comlivros e sua manipulação, aprendizagem dosnomes das letras, desenvolvimento da cons-ciência fonológica, reconhecimento e escri-ta de palavras.

lido, juntamente com leituras e releiturasrepetidas de forma independente por par-te da criança;

• escrita de palavras, pequenos enunciadose textos, após a leitura;

• reconhecimento de palavras;

• jogos de palavras e reconhecimento de re-lações entre letras e sons.

No primeiro grauSeguindo a linha da pré-escola, as propostas

para o primeiro grau incluem leituras de livrosfamiliares e não-familiares, escrita de palavras etextos, instrução sobre a relação letra/som e re-conhecimento de palavras. A seleção de livros ea utilização de diversos textos, e não de um úni-co texto, são muito enfatizadas. Os programascaracterizam-se por tentar integrar os diferen-tes aspectos da alfabetização: leitura e escrita,linguagem oral, metacognição e automatismos,consciência fonológica e escrita etc.

Os objetivos consistem em garantir os pa-drões da relação entre letras e sons, a denomi-nação das letras, o desenvolvimento de estra-tégias adequadas ao sistema de escrita, o re-conhecimento de palavras e o desenvolvimen-to de estratégias de compreensão.

No segundo grauNesse período, enfatiza-se, principalmente,

o desenvolvimento de automatismos de reco-nhecimento de palavras, mas não no sentidoestreito da ênfase fonológica, com exclusão dosignificado, e sim num sentido amplo, sem pre-judicar a leitura e a compreensão de textos.

Os objetivos dessa etapa concentram-seem promover o reconhecimento de palavras,a fluidez e a automatização, e também a com-preensão dos textos.

Nos graus médiosUma consideração simultânea dos compo-

nentes do ponto de vista dos conteúdos deveapresentá-los no contexto de sua relação comoutras áreas do currículo escolar.

Nas últimas décadas, o enfoque do ensinoda linguagem mudou no sentido de enfatizar

LER

Relações entre ouvir, falar, ler e escrever

OUVIR

ESCREVER

O U V I R E F A L A R S O B R E O E S C R I T O

L E R E E S C R E V E R S O B R E O FA L A D O

FALAR

L E R P A R A E S C R E V E RE S C R E V E R P A R A L E R

As atividades mais freqüentes são:• leitura de livros, incluindo períodos de

conversação e comentários sobre o que foi

234

mais a diversidade de tipos de textos e gêneros,em oposição à pedagogia do texto único; e deestabelecer uma maior relação entre alfabeti-zação, literatura e outras áreas do currículo, emoposição à pedagogia baseada no ensino diretode habilidades específicas. A inclusão de textosliterários nos currículos de leitura e escrita foifavorecida pela disponibilidade de literaturainfantil de qualidade, pela difusão de movimen-tos pedagógicos do tipo “linguagem integral” epela importância da resposta do leitor, propos-ta pela teoria da leitura participativa (Morrow eGambrell, 2000). Esse movimento aponta pararesultados promissores, como observado emdiferentes pesquisas. Esses resultados indicamque o interesse das crianças aumentou, quesuas atitudes mudaram e que elas apresenta-ram desenvolvimentos importantes em relaçãoa aspectos lingüísticos (vocabulário, sintaxe) ecognitivos (conhecimento conceitual).

Essa mudança exige uma melhor forma-ção dos(as) professores(as) em relação à li-teratura infantil, à sua capacidade de selecio-nar livros adequados (diferentemente do tex-to único previamente selecionado pelo Mi-nistério da Educação e pelas editoras), aotipo de materiais, ao ambiente na sala deaula e às relações sociais com as crianças esuas famílias.

Propostas para a relação entrealfabetização e ciência

Vamos descrever mais detalhadamente arelação entre a alfabetização e a Ciência. Alémda literatura, o ensino da linguagem podetambém estar relacionado à Ciência. A Ciên-cia e a linguagem oral e escrita não são domí-nios fechados e separados no contexto da ati-vidade cognitiva da criança; pelo contrário, ointeresse pelos objetos do mundo é um bomaliado da leitura e da escrita. A leitura e a es-crita são instrumentos básicos para a apren-dizagem, a reflexão e a comunicação do co-nhecimento científico.

Atualmente, fala-se em “alfabetização cien-tífica” (por exemplo, o Project 2061) como ummeio de se alcançarem objetivos letrados naárea da Ciência. Para lograr uma “alfabetiza-

ção científica”, um aspecto importante é a ca-pacidade de compreender e representar pro-blemas científicos em termos lingüísticos e derecursos gráficos escritos na forma de textos,tabelas ou diagramas.

Como podemos alcançar esses objetivos da“alfabetização científica”? Para alcançá-los,os(as) professores(as) precisam estar bem in-formados sobre o desenvolvimento dos conhe-cimentos científicos da criança e sobre sua re-lação com a linguagem e a escrita.

Precisam saber, por exemplo, que entre oscinco e seis anos de idade os meninos e as me-ninas estão em pleno processo de descobri-mento e exploração do mundo. Os objetos eos espaços, o mundo dos seres vivos, os fenô-menos da natureza e os outros seres huma-nos atraem sua atenção e interesse. Do pontode vista do conhecimento, cada tipo de obje-to do mundo tem suas particularidades. Omenino ou a menina percebe, por exemplo,que os seres vivos se diferenciam dos objetosinertes por sua capacidade de (auto) movi-mento, que as plantas têm capacidade decrescimento e que os seres humanos se dife-renciam dos objetos inertes e das plantas pe-las intenções que colocam em seus movimen-tos e ações (Wellman e Gelman, 1998). As cri-anças desenvolvem conceitos ao perceberemos distintos conteúdos do mundo, constroemesses conceitos sobre explicações causais (porexemplo, um ser vivo é caracterizado como tal“porque se move”) e aprendem que os conteú-dos do mundo têm nomes diferentes. Ou seja,para entender o mundo, as crianças desenvol-vem conceitualizações que relacionam con-ceitos, causas e nomes.

A linguagem intervém nessas conceitua-lizações do mundo num conhecimento quechamamos de declarativo, para diferenciá-lodo conhecimento procedimental e do conhe-cimento estratégico. Por exemplo, numa situa-ção de interação entre crianças, Josep, de cin-co anos, aponta para um letreiro e diz a umamiguinho: “Ali diz ‘elefante’. É seu nome”. Essetipo de intercâmbio pode ser categorizadocomo conhecimento declarativo, porque indi-ca que Josep “sabe” o que o letreiro contém esua função.

235

Alfabetização no contexto das políticas públicasSIMPÓSIO 15

Em suas atividades, as crianças tambémdemonstram conhecimento sobre como fazeralguma coisa ao desenvolverem uma série deações relacionadas. Por exemplo, o mesmo me-nino Josep abre um livro, gira-o de modo acolocá-lo na posição correta para a leitura, co-meça a lê-lo pela página da esquerda e depoispassa para a página da direita; em ambos oscasos, orienta seu olhar de cima para baixo eda esquerda para a direita. Essa série de açõesindica que o menino tem um conhecimentoprocedimental, que ele “sabe como” se deve lerum livro, que tem informação sobre a rotinada leitura de livros.

Além disso, Josep tem objetivos comuni-cativos com seu colega. Por exemplo, ele ocorrige quando está escrevendo um texto:“Não é assim que se escreve B. Olha como sefaz (pega o lápis e escreve B)”. Apresenta, tam-bém, comportamentos de controle sobre seupróprio processo de aprendizagem quandoafirma: “Droga! Errei. Queria colocar ‘elefan-te’ e coloquei… Não sei, errei”. Comentáriosdesse tipo indicam conhecimento estratégi-co, indicam saber sobre como algo deve ser ousobre como se deve fazer algo para se chegara um fim. Como vimos anteriormente, trata-se de um tipo de conhecimento intencional,que revela consciência de objetivos e compre-ensão do que se deve fazer para alcançá-los.O controle da própria conduta, a ajuda, aautocorreção, a correção de coisas que outrosestão fazendo, são expressões desse tipo deconhecimento estratégico.

A aprendizagem da linguagem, da leiturae da escrita, bem como a aprendizagem daCiência, implicam esses três tipos de conhe-cimento.

A alfabetização científicaA resposta mais clássica do ensino da Ci-

ência consistia em encará-la como conteú-do: um conjunto de fatos, princípios e leisque descrevem o mundo. Essa perspectiva di-ficultava a alfabetização científica dos maispequenos, pois eles não têm a capacidade deentender e aprender esse conteúdo em tex-tos escritos. Como reação a essa postura

enciclopedista, uma segunda resposta con-sistiu em recomendar aos professores queencarassem a Ciência como ela é vista nocontexto do próprio método científico. A re-comendação é que eles deveriam “fazer ci-ência” imitando o método científico, maisque ensinar ou aprender fatos, princípios ouleis. Nessa segunda perspectiva, enfati-zavam-se os aspectos mais ativos da apren-dizagem, mas ainda assim a alfabetizaçãocientífica era difícil. Um exemplo consistiaem encarar o contato com a Ciência comoum processo prático que oferecia ao meninoe à menina oportunidades para observar, ex-perimentar e manipular as coisas do mundo,começando pelo ambiente mais próximo,sem afastar-se demasiadamente do saber in-tuitivo e usando “as próprias palavras” dosalunos (Halliday e Martin, 1993). Uma dasconseqüências dessa segunda perspectiva foiuma aprendizagem totalmente prática e oral,que adiava qualquer contato com textos ci-entíficos para um momento posterior do pro-cesso de escolarização.

Essas duas perspectivas passaram ao lar-go do que hoje é conhecido como “alfabeti-zação científica”, que faz referência ao fatode que a Ciência é texto científico também.A representação que se tinha da Ciência es-tava associada ao laboratório, ao uso de apa-relhos, à observação e à experimentação.Muito raramente ela era associada à lingua-gem ou à escrita. No entanto, os instrumen-tos dos cientistas não se resumem a apare-lhos: as palavras e os textos são instrumen-tos técnicos também, particularmente os ter-mos técnicos e os textos explicativos. Paraexplicar e comunicar resultados científicos,são necessários textos e diagramas, tabelasetc., que normalmente os acompanham. Paraaprender Ciência são necessários textos pe-los quais resultados, processos e fatos sãodifundidos. Atualmente, a perspectiva é maisequilibrada e se enfatiza igualmente tanto aaprendizagem oriunda da experimentaçãocomo aquela oriunda do conteúdo e dos tex-tos científicos.

A alfabetização científica exige um tipo deescrita diferente da escrita de outras discipli-

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nas do currículo. Ela exige um gênero próprio,o expositivo, com termos técnicos e um tipoespecial de gramática. Por exemplo, paracompreender termos técnicos, precisamos in-troduzir sua definição.

As definições implicam enunciadosrelacionais que geralmente condensam mui-tas informações. A função das definições étrasladar o conhecimento de sentido comumao conhecimento científico por meio dessacondensação. Por exemplo, em vez de expli-carmos que “a fêmea do canguru não tem pla-centa e sim uma bolsa externa no ventre ondeocorre o desenvolvimento embrionário desuas crias”; essa explicação é compactada naexpressão “o canguru é um mamífero marsu-pial”. A aprendizagem do vocabulário e dasdefinições é ampla e complexa: usa-se um ter-mo técnico para definir outro termo técnico.Assim, para sabermos o que um “canguru” é,precisamos saber o significado das palavras“mamífero” e “marsupial”.

Além de definições, os textos científicosutilizam diagramas, que servem para tornaruma classificação visível, como os diagramasda taxonomia dos seres vivos, que indicam re-lações entre classes e subclasses, ou as tabelasde duas colunas, que tornam visível uma cor-respondência entre termos não-relacionados.Usam, também, desenhos para mostrar rela-ções entre partes e o todo. Esses diagramas,tabelas ou desenhos são acompanhados portextos explicativos. Ser capaz de ir do diagra-ma ao texto e do texto ao diagrama é um as-pecto fundamental da alfabetização científica.

Os textos que apresentam conhecimentoscientíficos também têm suas particularidades.De acordo com os diferentes aspectos científi-cos que abordam, suas características são dife-renciadas. Ser capaz de ler e escrever diferen-tes tipos de textos relacionados aos diferentescampos científicos é um aspecto fundamentalda alfabetização científica. Existem relatórios depesquisas, artigos científicos, relatos de expe-rimentos, cada um dos quais com suas particu-laridades “gramaticais”. De todos os tipos detextos usados no campo da Ciência, o relato deexperimentos é o mais adequado para se traba-lhar com crianças em idade escolar.

Vejamos o seguinte relato de experimen-to: “A haste do ramo foi cortada e colocada emágua e depois inserida num tubo de cristal fe-chado numa de suas extremidades. A outra ex-tremidade foi conectada a um outro tubo deborracha flexível onde se colocou água”.

A característica mais importante do rela-to de um experimento consiste no uso de ver-bos na voz passiva, em vez do modo impera-tivo próprio da linguagem que acompanha ouorganiza a ação. Ao passar a ser um texto es-crito, a atividade desenvolvida na realizaçãodo experimento, que exigia imperativos (cor-tar, colocar, inserir, fechar, conectar, colocar),passou a ser um relato do que se fez. Trata-se,assim, de uma modificação que dá lugar a umtexto instrutivo expositivo.

Os alunos mais novos entram em contatocom domínios pouco familiares quando co-meçam a estudar a partir de textos. Inicial-mente, possuem pouco conhecimento sobreo tema ou sobre o domínio apresentado notexto; além disso, esse pouco conhecimentoé fragmentado e superficial. Em grande par-te, seu esforço é canalizado no sentido deconstruir uma base de conhecimentoconceitual em relação ao vocabulário. Con-seqüentemente, eles têm dificuldade paradistinguir uma informação relevante de umainformação irrelevante, ou o grau de impor-tância de diferentes conceitos. O pouco co-nhecimento que têm costuma também gerarpouco interesse pelo que lêem. Um terceirofator reside na falta de conhecimento estra-tégico para procurar e localizar informaçõesimportantes no livro e no texto, a partir deindicadores estruturais (lingüísticos) e/ougráficos.

Os livros têm uma ordem racional (têm di-visões) e sua apresentação varia de acordocom seu tipo (ou gênero) para cada campo deconhecimento. Além disso, têm outros ele-mentos, como notas de rodapé, referências ecitações, que indicam registros textuais visi-velmente distintos. A função desses elemen-tos gráficos é validar as informações que apre-sentam, citando fontes e referências.

O problema dos leitores mais novos é queeles têm pouco conhecimento do conteúdo e

237

Alfabetização no contexto das políticas públicasSIMPÓSIO 15

desconhecem a função das divisões, dos gê-neros e das referências; por essa razão, preci-sam de uma assistência maior (do professor edo texto) para poderem construir uma repre-sentação das informações que leram.

ConclusãoOs requisitos culturais, educacionais e so-

ciais impostos à escola são cada vez maiores,a população escolar apresenta uma diversida-de crescente e as autoridades educacionaiscontinuamente sugerem reformas que pres-sionam os professores no sentido de dar umainstrução adequada aos alunos. Para que pos-sam oferecer essa instrução adequada, os pro-fessores precisam ter uma formação sempreatualizada e constante. Nesta apresentação,defendemos a noção de que a preparaçãodeve ser tanto teórica como prática, tanto deinformação sobre o conteúdo quanto da for-mação psicológica necessária para fundamen-tar decisões pedagógicas.

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238

O analfabetismo é a expressão máxima davulnerabilidade educacional. O problema doanalfabetismo reside na desigualdade. A desi-gualdade no acesso ao conhecimento está vin-culada à desigualdade no acesso ao bem-es-tar. Observa-se, nos mapas, uma estreita coin-cidência entre a localização das populaçõesmais pobres e a das populações analfabetas esem instrução suficiente.

A origem do analfabetismo está associadaà realidade socioeconômica e ao grau de de-senvolvimento das diferentes regiões de umpaís, às diferenças entre os processos de urba-nização e o atraso rural, às desigualdades edu-cacionais e aos problemas étnico-culturais nãoresolvidos.

A concepção tradicional que definia as po-pulações analfabetas em função da ausência daescrita contrapõe-se à vigência e influência daspráticas orais na região. Essa oralidade, alémde ser um patrimônio de culturas indígenaságrafas – com seus modos concretos de criar,organizar, transmitir e conservar conhecimen-tos –, também está presente em pessoas de co-munidades rurais e urbanas que permanece-ram vários anos no sistema educacional e apre-sentam sérias dificuldades para utilizar códi-gos escritos.

No entanto, o analfabetismo também estáassociado à ausência de oportunidades deacesso à escola e sua problemática tem vin-culação com a baixa qualidade do ensino es-colar e com os fenômenos da repetência e da

evasão. As concepções tradicionais e a aplica-ção insuficiente de diversos métodos utiliza-dos na didática da leitura-escrita não possibi-litaram a muitos estudantes o desenvolvimen-to de leitura e escrita adequadas.

O fenômeno do analfabetismo “funcional”é um dos principais resultados dessa situaçãoacumulada. É produto tanto de insuficiênciasno ensino da leitura e da escrita a criançascomo de processos deficientes de alfabetiza-ção para adultos que, ao não contemplaremações sustentadas de reforço e acompanha-mento, geram consideráveis contingentes deanalfabetos “regressivos”, ou seja, de pessoasque em algum momento aprenderam a ler,mas, por falta de reforço e uso prático da lei-tura, perderam a leitura e a escrita como ar-mas fundamentais para transformar suas con-dições de existência.1

O alfabetismo tem sido, por sua vez, fre-qüentemente qualificado como “direito huma-no fundamental”, por constituir um bem ines-timável para o indivíduo e para a sociedadecomo um todo. Um melhor nível de alfabeti-zação representa um dos principais indicado-res do estado de desenvolvimento humano deum país. No entanto, para influir na melhorados distintos níveis da vida humana, a alfabe-tização precisa caminhar lado a lado com osdemais fatores sociais.

Valorizando-se cada vez mais as expressõesculturais orais e admitindo-se a existência denovos códigos de comunicação que podem ser

As diferentes facesdo analfabetismo

José Rivero*

Unesco/Peru

* José Rivero é educador peruano e consultor internacional na área de educação.

1 Luis Oscar Londoño (1990) apresenta uma concepção atualizada do analfabetismo funcional: “O analfabetismo funcional deve ser entendidoa partir de duas perspectivas. Em primeiro lugar, a partir da modernização e ‘tecnologização’ da sociedade, que exigem o domínio maiscompleto possível das habilidades, das atitudes, do gosto pela leitura, pela escrita e pela Matemática e, acima de tudo, o desenvolvimento deprocessos de pensamento associados à sua aprendizagem: a lógica, a gramática, a argumentação, o diálogo, a crítica, o método. Emsegundo lugar, dado o caráter excludente e de discriminação do modelo vigente em quase todos os países da América Latina, precisamosentender o analfabetismo funcional a partir de uma perspectiva de transformação, de busca de modelos alternativos de economia, de cultura,de educação e de sociedade”.

239

Alfabetização no contexto das políticas públicasSIMPÓSIO 15

mais amplamente usados por pessoas que nãopossuem códigos escritos, os conceitos de “al-fabetização”, “alfabetismo” e “analfabetismo”começam a ser relativizados. É mais adequadofalar em “alfabetismos” e “analfabetismos” paraexpressar as diferentes formas de expressão eos distintos níveis que exigem, bem como amultiplicidade de sentidos que podem adqui-rir em diferentes culturas. Seguindo essa linhade raciocínio, todos somos, de alguma manei-ra, “analfabetos” em relação a alguns tipos deinformação e de conhecimento. O desenvolvi-mento tecnológico e a expansão ilimitada dainformação disponível ou o uso generalizado demeios eletrônicos, como computadores, acres-centam novas matizes à idéia do alfabetismo.

O analfabetismo em númerosDados da Unesco para 1995 indicam que

nossa região tem 43 milhões de pessoas emcondição de analfabetismo absoluto – nenhumacesso ou domínio de códigos de leitura e es-crita – e que a idade média das pessoas analfa-betas aumentou de 43 anos em 1980 para 45anos em 1995. A América Latina é a única re-gião do hemisfério sul que registra uma quedano número total de analfabetos nos últimosquinze anos; em 1980, esse número era de 44milhões de pessoas analfabetas (Unesco, 1995).

O caso mais dramático em matéria de anal-fabetismo é o do Haiti, que apresenta taxa dealfabetização inferior a 50%. A Guatemala e aNicarágua ainda não chegam a ter uma taxa de70% de alfabetização. O Brasil, embora apre-sente taxas de alfabetização entre 70 e 90%,ainda tem 20 milhões de analfabetos absolu-tos, situados, principalmente, em áreas caren-tes da Região Nordeste. Áreas indígenas depaíses como Bolívia, Equador, Peru, México eGuatemala continuam apresentando conside-ráveis percentuais de analfabetismo feminino.

De acordo com projeções da mesma fonte,os seguintes países entrarão no século 21 comtaxas superiores a 10% de analfabetismo: Jamaica(13,6%), Brasil (14,6%), Bolívia (14,4%), Repúbli-ca Dominicana (16%), Honduras (24,4%), El Sal-vador (25,9%), Nicarágua (32,8%), Guatemala(42,1%) e Haiti (50,6%).

Duas situações merecem uma análise maisdetalhada:

• Esses dados foram extraídos de censos na-cionais de países nos quais basta que umapessoa responda que sabe ler e escreverpara ser registrada como alfabetizada.Além disso, não se sabe que qualidade dealfabetização ou que nível da capacidadede ler e escrever é registrado. Por isso, osníveis de analfabetismo podem ser maissignificativos e preocupantes que os indi-cados nos dados estatísticos oficiais.

• O problema do analfabetismo caracteriza-do como “funcional” não é registrado ape-nas em países com taxas mais altas de anal-fabetismo absoluto, mas também nos queregistram taxas elevadas de escolarização(na Argentina, no Chile, na Costa Rica e noUruguai, a proporção de adultos com es-colaridade básica incompleta situa-se nafaixa de 40%).

A necessidade de promoverpolíticas públicas e desuperar preconceitosinstitucionais e ideológicosEm que pesem os avanços registrados no

reconhecimento e na análise desses fatores, sãoesporádicas as iniciativas empreendidas paraenfrentar o analfabetismo como um problemaque envolve múltiplos atores e soluções, quenão está centrado exclusivamente nas pessoasadultas e exige políticas públicas concretas.

Há muitos obstáculos a serem superados,um dos quais merece particular atenção. Re-firo-me à clara tendência, observada em nú-cleos tecnocráticos influentes em administra-ções centrais do setor público educacional eem organismos internacionais de financia-mento, de minimizar e até ignorar o proble-ma do analfabetismo em suas prioridadespara ação. Essa atitude pode ser observada,inclusive, em países com importantes bolsõesde analfabetismo absoluto.

As razões apresentadas para sustentar es-sas decisões são a considerável ampliação dacobertura escolar, o fato de que uma propor-

240

ção considerável do volume total de analfabe-tos absolutos corresponde a uma população emfaixa etária acima dos 35 anos, com idades quedificultam processos de aprendizagem, e o ar-gumento de que o desenvolvimento dos paísesdeve estar assentado nos setores mais moder-nos da sociedade. Sem declarar explicitamen-te, estão aplicando a teoria do “custo-benefício”exigida pelo mercado e sugerindo que esse pro-blema pode ser resolvido pela simples amplia-ção da matrícula escolar.

Os que assumem essa postura esquecem-sede vários elementos importantes.

Em primeiro lugar, esquecem-se de que oproblema do analfabetismo tem raízes estrutu-rais e históricas e envolve relações complexas –como as relações étnico-culturais, que exigemtratamento cuidadoso e necessário. A vigênciae a gravidade do problema expressam-se no fatode que, apesar dos avanços registrados na am-pliação educacional, o volume total de analfa-betos se manteve, nos últimos 20 anos, no pa-tamar de cerca de 43 milhões de pessoas e deque – como efeito da crescente pobreza e misé-ria na região – essa cifra tende a manter-se nosmesmos níveis e até a crescer na ausência deuma ação decidida e integral que abranja tam-bém a alfabetização das crianças.

Outro elemento-chave a ser considerado éque o analfabetismo de adultos repercute dire-tamente na baixa escolaridade, num menor ren-dimento e no analfabetismo de crianças. As cri-anças em situação de pobreza exigem espaços eclimas familiares nos quais seus próprios paissejam seu principal estímulo para freqüentar aescola. Não é por acaso que a maior persistênciade mães de família em programas de alfabetiza-ção se deve ao fato de que um bom número de-las deseja alfabetizar-se e educar-se para poderajudar seus filhos em suas tarefas escolares.

Um terceiro contra-argumento está relacio-nado à necessidade de visualizarmos a alfabe-tização e educação básica de jovens e adultoscomo um extraordinário investimento econô-mico e cívico, e não como um problema de es-cassez de recursos, pois, em que pese a moder-nização registrada nas sociedades latino-ame-ricanas ou em grande parte delas, o domínio daleitura e da escrita continua sendo um fator in-

dispensável para a sobrevivência e a competên-cia social e cidadã. O jovem e o adulto bem al-fabetizados terão, como indicado acima, maiorpossibilidade de optar por um posto de traba-lho, de melhorar sua qualificação como produ-tores, de participar ativamente na solução deproblemas sociais e de exercer seu direito à par-ticipação política.

Por último, uma importante razão coloca-da por Jacques Hallak: os especialistas eplanejadores freqüentemente ignoram quequanto maior a proporção de adultos alfabeti-zados, mais fácil será ampliar a educação pri-mária, e vice-versa. “Em termos puramenteeconômicos, é provavelmente menos dispen-dioso, em termos de tempo e recursos, com-partilhar as prioridades entre programas deeducação primária e de adultos, desde queatendam às mesmas famílias da população”(Hallak, 1991).

Não se pode, portanto, reduzir o problemado analfabetismo a índices, variáveis e proje-ções estatísticas ou abordá-lo com base em cri-térios estritamente econômicos ou “de eficácia”.Precisamos reconhecer que ele constitui umaparte importante da dívida social interna quenossas sociedades têm obrigação de conside-rar e assumir.

No entanto, como veremos, será necessário,também, definir claramente as idéias vigentessobre o analfabetismo e a alfabetização e, fun-damentalmente, evitar os sucessivos erros deestratégia que têm caracterizado a abordagemdo problema na região.

O alfabetismo funcional:resultados deuma pesquisa regionalA preocupação com o analfabetismo fun-

cional tornou-se patente na América Latinanos últimos anos. Várias recomendações dereuniões ministeriais mencionam o problema.Na Declaração Presidencial da Reunião de Cú-pula das Américas II, o problema do analfabe-tismo foi reduzido ao nível funcional. No en-tanto, além da plena vigência, assinalada nadeclaração, do analfabetismo absoluto, que

241

Alfabetização no contexto das políticas públicasSIMPÓSIO 15

contradiz o otimismo dos mandatários, a au-sência de estudos sobre as características dochamado analfabetismo “funcional” dificultasua abordagem.

A Unesco desenvolveu uma primeira pes-quisa regional sobre alfabetismo funcionalem sete países da região.2 O objetivo da pes-quisa foi dimensionar e analisar esse fenô-meno por meio de abordagens quantitativase qualitat ivas, estabelecendo, em basesempíricas, um perfil da população quanto asuas habilidades de leitura e relacionandoessas habilidades com determinadas compe-tências sociais e profissionais supostamenteexigidas nos centros urbanos onde foi desen-volvida. O estudo aplicou instrumentos queenvolveram os campos da economia, da pro-dução e da vida cotidiana e se propôs a indi-car níveis de escolaridade necessários parase alcançarem os domínios que possibilitemuma alfabetização efetiva.

Com os instrumentos de leitura/escrita eMatemática, a pesquisa procurou, fundamental-mente, avaliar níveis de desempenho nas habi-lidades relacionadas a diferentes domínios.3

Os resultados preliminares indicam que,embora os itens do teste preliminar fossem con-siderados relativamente “fáceis”, apenas umpercentual flutuante de 39% (no caso do Méxi-co) a 72,3% (no caso da Argentina)4 da popula-ção pesquisada conseguiu apresentar respostascorretas para os itens necessários.5

Nesses resultados, as variáveis mais asso-

ciadas aos níveis de alfabetismo foram a esco-laridade e o posicionamento no trabalho.

A escolaridade determina fortemente os ní-veis e afeta significativamente os resultados emtodos os domínios. Nos sete países, os que ti-nham seis ou sete anos de escolaridade aindase situam, numa proporção de 50% ou mais, noprimeiro e no segundo níveis.

Isso significa que, para uma pessoa se situ-ar no terceiro nível – com algum domínio doalfabetismo –, ela deveria ter cerca de oito anosde escolarização e mais anos ainda em algunspaíses da amostra. Quanto ao quarto nível decompetência em todos os domínios, quecorresponde a uma inserção alta no trabalho,verificou-se que, na maioria dos países, as pes-soas precisavam ter onze, doze ou mais anos deescolaridade.

Um dos resultados mais importantes dapesquisa foi a constatação efetiva de que po-demos distinguir, na população adulta dospaíses envolvidos, níveis estatisticamente di-ferentes de habilidades nos domínios da pro-sa, dos documentos e da Matemática. Isso éprojetado para toda a população adulta. Poressa razão, a clássica diferenciação estatísti-ca entre pessoas alfabetizadas e analfabetasnão é suficiente. De acordo com a pesquisa,todos nós temos algum grau de alfabetismo,segundo nosso grau de escolaridade, a qua-lidade de nossas aprendizagens e o uso quefazemos de nossas habilidades, principal-mente no trabalho.

2 A pesquisa foi coordenada pela pesquisadora Isabel Infante e abrangeu os seguintes sete países: Argentina, Brasil (Estado de São Paulo),Colômbia, Chile, México, Paraguai e Venezuela. As amostras selecionadas, em número não inferior a mil pessoas, foram representativas dapopulação adulta de zonas urbanas na faixa etária de 15 a 54 anos (no Paraguai, a pesquisa limitou-se à faixa etária dos 15 aos 34 anos).

3 O instrumento de leitura/escrita procurou medir algumas das habilidades que as pessoas adultas devem ter para lidar com textos escritos emdiferentes formatos, com diferente organização e diferentes graus de complexidade lingüística. Eles consistiram em textos curtos sobresinais de um ataque de coração, notícias de jornais sobre indígenas e o meio ambiente e anúncios em jornais para diferentes empregos emrestaurantes. Na área da Matemática, a pesquisa incluiu operações de numeração, adição, subtração, multiplicação, proporções, adição edivisão seqüenciada (cálculo de médias), quadro de distâncias aproximadas em quilômetros, leitura de textos esquemáticos, como tabelasgráficas e níveis de habilidades na compreensão de textos com informações numéricas (depósitos bancários, ingredientes para receitasculinárias).

4 No Brasil, 67% da amostra conseguiram apresentar respostas corretas para os itens exigidos. No Chile, 70%; na Colômbia, 55%; na Venezuela,43%; e no Paraguai, 49,7%.

5 Em seu relatório preliminar sobre a pesquisa, Isabel Infante assinala as seguintes possíveis explicações para esses fracos resultados:– os que responderam não tinham familiaridade com provas escritas ou fazia muito tempo que não se submetiam a uma prova;– as pessoas deviam seguir instruções, e essa “talvez seja a primeira das habilidades exigidas”;– para muitos, os formatos podem ter sido novos;– possivelmente, medo de provas dessa natureza.

242

Em direção a políticas públicasque incluam estratégiasintegrais de alfabetizaçãoA alfabetização dos mais pobres continuará

sendo uma tarefa prioritária. O analfabetismonão constitui apenas expressão da pobreza, mastambém impedimento para a sua superação epara o acompanhamento e estímulo da própriaeducação dos filhos. Além disso, apesar da alen-tadora queda nos índices de analfabetismo ab-soluto, os efeitos da crescente pobreza na re-gião serão decisivos para o aumento desses ín-dices em determinadas áreas das populaçõesnacionais.

Ainda prevalece alguma imprecisão em tor-no da noção de analfabetos e de pessoas alfa-betizadas. A noção de analfabeto está exclusi-vamente associada à falta de escolaridade. Li-mita-se à aprendizagem formal de um alfabe-to que possibilite a leitura e a escrita. Precisa-mos insistir no sentido de que a alfabetizaçãoseja vista como um processo mais longo e com-plexo, que envolve a aprendizagem de diferen-tes níveis de domínio da linguagem escrita ede outros códigos, e que se perceba que as no-ções de “alfabetismo” e “alfabetização” não têmidade. Por isso, quando se fala de analfabetos,não devemos pensar apenas em alguém semcompetências básicas de leitura, mas em al-guém que não possui as competências e des-trezas básicas para sua inserção social e nomercado de trabalho e para assumir tarefas sig-nificativas, capazes de melhorar sua qualida-de de vida.

A alfabetização teve que enfrentar, comoprimeiro obstáculo, o fato de ter sido assumidacomo problema que podia ser abordado pormeio de campanhas nacionais, que foram seesgotando por si próprias. O caráter estruturaldo analfabetismo coincidente com a pobreza ea miséria dos analfabetos e a necessidade deassociar a alfabetização a conquistas econômi-cas e político-sociais só foram regionalmente

reconhecidas na década de 1970. A bem-suce-dida campanha nacional cubana mobilizou ou-tros intentos nacionais e não levou em consi-deração a impossibilidade de “modelos”replicáveis sem contextos originários seme-lhantes. Vários esforços de alfabetização con-seguiram mobilizar vontades e criar condiçõespara maior conscientização das desigualdadesnacionais e a necessidade de maior integraçãonacional. A prioridade de alfabetização na re-gião está orientada para a necessidade de açõeslocalizadas no Nordeste do Brasil, em paísescomo Haiti, Honduras, Guatemala, Nicarágua,República Dominicana e El Salvador e tambémnas populações indígenas femininas da Bolívia,do Equador, do Peru e do México.

A necessidade de uma melhorcompreensão da alfabetizaçãoNas sociedades onde coexistem a oralidade

que perdura como experiência cultural iniciale uma “oralidade secundária” alentada pelo rá-dio, pelo cinema, pela televisão, pelo vídeo epelo computador, não se pode limitar a alfa-betização à escrita alfabética. No entanto, essacultura alfabética continua sendo insubs-tituível para que se tenha acesso aos códigosda modernidade, incluindo a comunicação ele-trônica.

A compreensão do significado da alfabeti-zação progrediu consideravelmente com asidéias propostas por Paulo Freire desde as dé-cadas de 1960 e 1970, que a associavam a umprocesso pelo qual os analfabetos tomam cons-ciência de sua situação pessoal e aprendem acriar ou a utilizar meios para melhorá-la. ParaFreire, a aprendizagem da leitura, das contas eda escrita está associada a etapas que dão aces-so a direitos políticos, econômicos e culturais,afetando ou modificando a forma pela qual opoder é compartilhado na sociedade. A influ-ência de Freire ultrapassou muito as fronteiraslatino-americanas.6

6 A figura e a obra de Freire receberam homenagem póstuma mundial em ato especial realizado na Confitea V, na presença de representantesde todos os continentes, que reconheceram o valor de suas ações e as repercussões de sua obra em seus países.

243

Alfabetização no contexto das políticas públicasSIMPÓSIO 15

Emilia Ferreiro contribuiu, com suas pes-quisas e estudos sobre alfabetização inicial decrianças, com a mais importante solução parao problema da alfabetização paliativa de ado-lescentes e adultos. Ela nos indica elementossubstantivos sobre a natureza do objeto de co-nhecimento envolvido na aprendizagemalfabetizadora. A distinção que faz entre siste-ma de codificação e sistema de representaçãopressupõe conseqüências na concepção e naação alfabetizadora. Quando a escrita é conce-bida como simples transcrição do sonoro paraum código visual, a linguagem é reduzida a umasérie de sons e os programas de preparação paraa leitura e a escrita ficam centrados na discri-minação das formas audiovisuais e auditivas“sem jamais questionar sua natureza”.

O sentido da alfabetização será outro seconcebermos a aprendizagem da língua escritacomo a compreensão da construção de um sis-tema de representação. “Em última análise, aconseqüência dessa dicotomia se expressa emtermos ainda mais dramáticos: se a escrita éconcebida como um código de transcrição, suaaprendizagem é concebida como a aquisição deuma técnica; se a escrita é concebida como umsistema de representação, sua aprendizagem setransforma na apropriação de um novo objetode conhecimento, ou seja, numa aprendizagemconceitual” (Ferreiro, 1989).

Na Conferência Regional de Brasília, prepa-ratória para a Confitea V, a alfabetização foi vin-culada “ao acesso aos códigos da modernidade”.A conferência propôs, também, que se deveria“revisar o conceito de ‘alfabetização’ como açãodescontínua e limitada no tempo, bem comoseu conteúdo, no sentido de se promover umaconcepção mais ampla de ações inseridas nosprocessos de educação básica contínua duran-te toda a vida”.

A declaração de Hamburgo assinala que “aalfabetização, concebida em termos geraiscomo os conhecimentos e as capacidades bási-cos que todas as pessoas que vivem num mun-do em rápida evolução precisam ter […] e comofundamento dos demais conhecimentos exigi-dos pela vida diária […] é, além disso, umcatalisador da participação em atividades soci-ais, culturais, políticas e econômicas”.

Na estratégia regional de acompanhamentodos acordos de Hamburgo, uma das sete áreasdefinidas como prioritárias na estratégia regio-nal acordada para a América Latina é a da “Alfa-betização: acesso à cultura escrita, à educação eà informação”. Judith Kalman, como especialis-ta encarregada da coordenação técnica dessaárea, assinala que a recente discussão em tornoda alfabetização indica que devemos abandonara visão mecanicista da aprendizagem da leiturae da escrita, que presumia unicamente – numprocesso linear – a apropriação do código, o tra-çado das letras e sua correspondência sonora eposteriormente, por meio da apropriação de ora-ções controladas, o uso da língua escrita.

A postura atual, sem negar as letras ou ossons, aborda o problema da alfabetização comoum processo sociocultural mais complexo, queassume uma multiplicidade de formas, usos esignificados e se insere ou é aplicado em dife-rentes contextos sociais. Esse processo consi-dera a diversificação de usos e formas e de en-tendimentos em relação às raízes da vida co-municativa das pessoas. A aprendizagem da lei-tura e da escrita é vinculada à vida cotidiana eseu uso constitui uma forma de participação nomundo.

Ser um leitor e escritor competente implica a

possibilidade de participação em situações so-

ciais nas quais a utilização da língua escrita tem

um peso fundamental; significa ler e escrever

para relacionar-se com outros, para aprender,

para conhecer e para expressar-se. Por isso, já

não se pode falar da alfabetização e da pós-al-

fabetização como um processo linear, pelo qual

primeiro se aprendem as letras e, depois, como

usá-las. Atualmente, sabemos que a língua es-

crita é um conjunto de práticas contextualiza-

das que variam de forma, significado, uso e pro-

pósito de acordo com situações específicas.

O desafio que enfrentamos atualmente é de pro-

por políticas públicas e levar a cabo as ações

necessárias para promover uma melhor distri-

buição da língua escrita, da educação e da in-

formação no sentido de garantir o direito à edu-

cação mediante a criação de oportunidades edu-

cacionais viáveis para as pessoas jovens e adul-

tas no contexto de suas vidas. (Kallman, 1998)

244

A necessidadede respostas integraisUm problema de longa data é a crença de

que a alfabetização deve ser coordenada e as-sumida exclusivamente por unidades adminis-trativas responsáveis pela educação de adultos,sem recursos suficientes. Hoje em dia, o anal-fabetismo não é exclusivamente associado aomundo adulto e sua necessária vinculação comos baixos resultados dos sistemas educacionaisé reconhecida.

Os elementos mencionados anteriormenteexigem uma estratégia qualitativamente distin-ta e de caráter prospectivo, baseada no reconhe-cimento de que não podemos resolver o pro-blema do analfabetismo presente e futuro – quetem suas raízes numa educação básica defici-ente – unicamente pela via da educação deadultos e de que é necessário que a alfabetiza-ção inicial das crianças em centros escolares eas diversas expressões do problema do analfa-betismo sejam abordadas no contexto de umaestratégia integral ou global que considere osfundamentos indicados anteriormente.

Trata-se de promover, nos países, a formu-lação e execução de uma estratégia nacionalintegral de alfabetização, envolvendo açãointerinstitucional representativa de setores pú-blicos e de organismos da sociedade civil, em-presariais e universitários, associações de pro-fessores e igrejas.

Essa estratégia teria que ser convocada eliderada pelos Estados, por meio de seus mi-nistérios ou secretarias de Educação, que de-veriam assumir o problema como uma políti-ca pública que preveria níveis e modalidadesde ações complementares entre setores edu-cacionais, sociais e produtivos, linhas conver-gentes de ação entre diferentes níveis e moda-lidades educacionais e convênios com entida-des de caráter técnico, investigativo oupromocional e com associações de professo-res para o desenvolvimento das diferentes ati-vidades contempladas.

Os diferentes elementos dessa estratégiaintegral estariam vinculados aos seguintes âm-bitos:

1. Esforços para promover melhor rendimen-

to na alfabetização escolar de crianças po-bres nos primeiros graus de instrução:

• Centralizando a ação da mudança edu-cacional nos três primeiros graus da edu-cação primária e básica, no bom ensino ena aprendizagem da leitura, da escrita edo cálculo básico.

• Fazendo com que a leitura não fique as-sociada apenas às atividades escolares eestimulando o prazer de ler e a seleção deleituras pelas próprias crianças.

• Qualificando os docentes, em sua forma-ção inicial, em metodologias e práticaspedagógicas que garantam bons resulta-dos na primeira alfabetização e traba-lhando com grupos heterogêneos, comcrianças de idade mais avançada e semestímulos pedagógicos em suas famílias.

• Distribuindo materiais de leitura que es-timulem a imaginação infantil e o gostopela leitura e montando bibliotecas nassalas de aula.

• Oferecendo atenção especial a criançascom dificuldades de aprendizagem.

• Motivando os pais a desenvolver sua pró-pria alfabetização e exercício da leitura.

2. Ações estratégicas de alfabetização emnúcleos populacionais sem escolaridade,atendendo, preferencialmente, à popula-ção adolescente e juvenil – de núcleos ur-banos marginais, rurais e indígenas – emsituação de analfabetismo absoluto:

• Redefinindo o que se entende por alfa-betização e o que se propõe fazer paraalcançá-la.

• Enfocando a ação de alfabetização emáreas geográficas e faixas etárias defi-nidas.

• Organizando, com vista à coordenação eexecução de ações de alfabetização, ma-pas de instituições estatais, organizaçõesnão-governamentais e associações quedesenvolvam ou tenham a possibilidadede executar diversas tarefas para comba-ter o analfabetismo.

• Desenvolvendo convênios entre ministé-rios ou secretarias de Educação e organi-zações não-governamentais de fomento,

245

Alfabetização no contexto das políticas públicasSIMPÓSIO 15

universidades e outros centros de educa-ção superior e associações de professo-res, visando organizar estratégias e a pró-pria execução da alfabetização para che-gar a acordos sobre os propósitos, os pro-cedimentos e os métodos a seremadotados para a certificação.

• Criando mecanismos que possibilitem aparticipação dos educandos jovens e adul-tos em decisões que afetem tanto os pro-gramas como os processos educacionais.

• Organizando registro de materiais utili-zados e sistematizando experiências eintercâmbios desses materiais.

• Priorizando programas especiais para aalfabetização feminina em populaçõesindígenas e rurais.

3. Conhecimento do problema dos níveis dealfabetismo funcional e estratégias paraenfrentar os baixos resultados escolares:

• Desenvolvendo diagnósticos e pesquisaspara caracterizar as distintas expressões ediferentes níveis de alfabetismo alcança-dos, no sentido de visualizar a gravidadedo problema do analfabetismo funcional.

• Formulando uma estratégia nacional comelementos locais e municipais para fazerfrente aos efeitos de má educação básicaem populações em situação de pobreza.

• Optando por dar atenção preferencial ajovens com baixa escolaridade.

• Promovendo modalidades semipre-senciais de educação básica e média parajovens e adultos em situação de margi-nalidade.

• Promovendo, nos últimos graus da edu-cação primária e secundária, mais estí-mulos para a leitura de romances, contose lendas, superando a leitura exclusiva eobrigatória de textos escolares.

• Desenvolvendo estratégias para progra-mas educacionais de aprendizagem ace-

lerada para quem apresente, reconheci-damente, uma aprendizagem por expe-riência de vida.

• Desenvolvendo acordos com estações pri-vadas de televisão para desenvolver pro-gramas educacionais contra o analfabetis-mo funcional caracterizado em cada país.

• Gerando ambientes favoráveis à leiturae à educação básica com o apoio dosmeios de comunicação e de bibliotecaspopulares.

4. Assumir as demandas de alfabetização as-sociadas ao conhecimento e acesso àinformática e aos meios de comunicaçãonos setores populares:

• Promovendo ações educacionais com se-tores populares tendentes à alfabetizaçãocientífico-tecnológica, ao domíniocomputacional, à “audiovisão” crítica dosmeios de comunicação, particularmentea televisão, ao conhecimento de deverese direitos da cidadania e do que fazer paraproteger o meio ambiente.

• Transformando a escola pública no princi-pal mecanismo institucional para que asnovas gerações de crianças e jovens em si-tuação de pobreza tenham acesso àinformática e ao uso dos meios eletrônicos.

BibliografiaFERREIRO, Emília. Los hijos del analfabetismo: propuestas

para la alfabetización escolar en America Latina. Méxi-

co: Siglo XXI, 1989.

HALLAK, Jacques. Investir en el futuro. Definir las priorida-

des educacionales en el mundo en desenvolvimento.

Pnud/IIPE. Madrid: Tecnos/Unesco, 1991.

KALMAN, Judith. Alfabetização: acesso à cultura escrita,

à educação e à informação (Área Temática 1.). In:

Guías de discusión para las reuniones nacionales e

subregionales. Estratégia regional de seguimiento a

Confitea V. Santiago de Chile: Unesco/Ceaal/Crefal/

Inea, 1998.

UNESCO. Compendium of statistics on illiteracy. Paris, 1995.

247

SIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIO 1616161616

PROJETO PEDAGÓGICO:POR QUÊ, QUANDO E COMO

Márcia Cristina da Silva

248

IntroduçãoA apresentação estará centrada na tentativa

de fazer uma reflexão sobre como um projetode formação de educadores pode contribuircom algumas transformações do projeto peda-gógico da escola. A partir dessa reflexão, tenta-rei contextualizar o Projeto Escola que Vale.

Contextualização do PEQV: o que é,diretrizes e funcionamento

O Programa de Formação de Educadores(professores, supervisores e diretores) foi ela-borado pela equipe do Cedac e financiado pela

Como um programa de formação podeauxiliar na reflexão sobreo projeto pedagógico da escola

Márcia Cristina da Silva

PEQV/Fundação Vale do Rio Doce/Cedac

ResumoO Programa de Formação do Programa Esco-

la que Vale (PEQV) – parceria entre a Fundação Vale

do Rio Doce e o Centro de Educação e Documen-

tação para a Ação Comunitária (Cedac), organiza-

ção não-governamental ligada à educação – ini-

ciou seu trabalho em junho de 1999, em seis cida-

des brasileiras, com professores de escolas muni-

cipais de 1ª a 4ª séries. Inicialmente privilegiou o

trabalho de formação de professores e teve como

eixo a realização de projetos didáticos em sala de

aula, centrados na área de Língua Portuguesa.

Essa escolha deve-se ao fato de acreditarmos que

tal modalidade organizativa garante o sentido das

aprendizagens dos alunos e, ao mesmo tempo, resga-

ta o sentido do ensino por parte dos professores.

Colocar em prática os projetos em sala de aula

fez com que o paradigma vigente nas escolas envol-

vidas fosse, pouco a pouco, sendo revisto. Esse pro-

cesso de revisão de algumas práticas já institucio-

nalizadas partiu da análise e reflexão de ações

implementadas pelo PEQV: a necessidade de esco-

las e profissionais se encontrarem semanalmente

para planejar suas ações, a inserção da comunidade

nas diferentes etapas dos projetos, a utilização de al-

guns recursos tecnológicos como ferramentas para a

aprendizagem, o desenvolvimento de projetos liga-

dos à gestão escolar por parte dos diretores, a forma-

ção de supervisores, a necessidade de estabelecer par-

ceria entre os diferentes interlocutores participantes

(técnicos da Secretaria de Educação, diretores,

supervisores, professores, outros funcionários da es-

cola, alunos, pais e comunidade escolar em geral). A

implantação paulatina dessas ações fez com que

muitas questões gerenciais, de concepção, de atitu-

des fossem revistas para que os projetos pudessem

ser desenvolvidos.

Esta palestra tem como objetivo central a apre-

sentação desse histórico do PEQV sob a ótica da

mudança de paradigma vigente e da formação de

equipes reflexivas que se comprometam e se respon-

sabilizem por essas transformações, necessárias

para reinventar o papel do professor e da escola.

Fundação Vale do Rio Doce. Atualmente esseprograma desenvolve-se em 8 municípios bra-sileiros e atende a 33 escolas, 300 professores,8.500 alunos, 114 diretores e 116 supervisores.

O projeto deve ser desenvolvido em dois anosde trabalhos intensos em cada município, contan-do com mais meio ano de manutenção. O PEQVtem uma intencionalidade clara no sentido de pro-mover a autonomia dos profissionais envolvidos,uma vez que uma intervenção externa ao sistemaescolar costuma ser provisória e ter um tempo deduração definido. Por essa razão, há uma preocu-pação explícita em criar mecanismos para que asaprendizagens se institucionalizem de fato.

249

Projeto pedagógico: por quê, quando e comoSIMPÓSIO 16

Contexto de formação: trabalho comprojetos didáticos de leitura e escrita

O contexto da formação de professores cria-do pelo programa consiste no trabalho com pro-jetos didáticos de leitura e escrita e na supervi-são permanente do desenvolvimento dessesprojetos pelos professores.

Projetos de leitura e escrita. Ao iniciar o tra-balho, os professores recebem um “cardápio”com diversos projetos didáticos de leitura eescrita e escolhem um deles para ser desen-volvido em classe. Todos obedecem a umaestrutura básica, com sugestões didáticas quedevem ser detalhadas e transformadas emseqüências de atividades específicas juntocom cada grupo de professores. O que garan-te a transformação do “cardápio” inicial noque acontece em aula é o planejamento se-manal realizado pelos professores e super-visores. Nesse percurso, os professores apro-fundam diversos conteúdos de leitura e escri-ta com seus alunos. Os alunos aprendem deforma contextualizada, sabendo o que, paraque e para quem estão escrevendo. Os pro-fessores aprofundam conhecimentos, já que,para a realização do projeto, é preciso plane-jar, prever, dividir responsabilidades, adqui-rir conhecimentos específicos relativos aotema em questão, desenvolver capacidades eprocedimentos determinados, usar recursostecnológicos, aprender a trabalhar em grupo,de acordo com as normas, os valores e as ati-tudes esperados, organizar o tempo, dividir eredimensionar as tarefas e avaliar os resulta-dos em função do plano inicial. Tudo isso fa-vorece ao sujeito que se comprometa com suaprópria aprendizagem, pois essa é muito maisprodutiva quando o grupo que realiza tal pro-jeto conta com a participação de cada um paraalcançar a meta comum.

Para que o projeto pedagógicoda escola e por que o projetopedagógico na escolaO projeto pedagógico de uma escola torna-

se visível no próprio acontecer cotidiano da es-cola. Ao entrarmos em uma escola, já é possí-vel antecipar qual o seu projeto pedagógico.

Basta observar as aulas dadas ou olhar o que estáexposto nas paredes, por exemplo, pois tudo issorevela o que as professoras ensinam e o que ascrianças aprendem e, portanto, qual a concep-ção de criança e o que esta escola pensa e faz arespeito da aprendizagem delas, ou seja, qual oseu projeto pedagógico.

Sabemos que até há pouco tempo, pouquís-simos profissionais de educação sabiam qual oprojeto pedagógico da sua instituição que, quan-do o tinha, desempenhava função puramenteburocrática. O que víamos, então, era os profis-sionais trabalharem, sem saber explicar o quefaziam, por que optaram por trabalhar daquelamaneira e não de outra, e a única explicaçãopossível para sustentar sua prática estaria pau-tada na tradição: “Faço assim porque sempre fi-zemos desta forma”.

Quando a política nacional de educação pas-sou a exigir que as escolas apresentassem seusprojetos pedagógicos registrados, as instituiçõesentraram em desespero, porque não sabiam nemcomo nem para que fazer tal tarefa. Muitas escre-veram o projeto, mas sem atribuir sentido ao do-cumento e sem fazer uso dele para a reflexão con-tínua. O projeto pedagógico, então, passou a sermais uma tarefa burocratizada e realizada pelodiretor da escola, mas não se transformou emreferencial a ser consultado cotidianamente pe-los membros da equipe, seja para recuperar seusprincípios ou para reformulá-los de acordo comas reflexões realizadas a partir das práticas e es-tudos realizados pelos funcionários da escola.

Atualmente, diversas frentes de formaçãotêm contribuído para que a instituição escolarpare, pense e reflita sobre seu projeto pedagógi-co: PCN em Ação, PROFA e programas diversoscontratados pelas prefeituras locais.

Sabemos que a formação é importante, por-que auxilia os profissionais a tomarem consci-ência do conhecimento didático e faz com queas ações relacionadas ao ensino e à aprendiza-gem ganhem sentido. Por meio da formação, épossível que os profissionais parem para pensarno porquê, no para que e no como fazer. Ao dis-cutir as práticas realizadas na escola, é possívelavaliar qual a concepção de ensino, de aprendi-zagem e de criança que a escola assume; con-frontar essa realidade com as intenções da esco-

250

la será um fértil caminho para que ela reflita so-bre o seu próprio projeto pedagógico.

O PEQV faz um recorte na formação: traba-lha somente com os conteúdos de Língua Por-tuguesa. Essa opção está relacionada à impor-tância social e política dessa área. Um outro pon-to é que sabemos que, para trabalhar com umaárea de conhecimento com um grau relativo deaprofundamento, é necessário tempo.

Ao optarmos em trabalhar com projetos di-dáticos de língua, é inevitável o confronto entrediferentes concepções, assim como o questiona-mento da gestão de sala de aula, da rotina daescola, da relação entre família e escola, comu-nidade e escola, além da concepção de criança.As transformações ocorridas até o momento ain-da são pequenas e podem ser efetivas dentro dasescolas, mas para isso é preciso que estas saibamcomo manter o grau de reflexão e discussão quejá vem sendo conseguido pelos seus profissio-nais. A questão fundamental é comoinstitucionalizar essa reflexão dentro da escola,porque só assim os profissionais terão como pre-ocupação cotidiana o que querem para seus alu-nos. Tudo isso passa pela reinvenção do papeldo professor, do supervisor, do diretor, da rela-ção que a escola estabelece com os pais e com acomunidade. Sabemos hoje que a reflexão per-manente é fonte de conhecimento importantepara o professor e isso não está necessariamen-te nas mãos de especialistas, mas, sim, na for-mação contínua desse profissional, que faz par-te de uma escola com identidade e tem, comoum dos princípios de seu projeto pedagógico, aformação de uma equipe reflexiva e autora desuas práticas.

O projeto pedagógicoe o papel do professor,do supervisor e do diretorO programa de formação trabalha com esses

três profissionais. Vou especificar o trabalho comcada um deles, mas não descreverei o processode trabalho, e, sim, as principais questõesdesencadeadas pelo programa de formação – nosentido da reflexão da prática educativa que te-nha relação com o projeto educativo da escola.

Reflexão sobre o trabalhocom professores

O trabalho com projetos. O que é projeto? Aprimeira questão apontada pelos professoresdizia respeito ao próprio trabalho com proje-tos, pois, afinal, até então desenvolviam pro-jetos predeterminados pela supervisão, dire-ção ou secretaria e eram realizados em prazocurto de tempo, sem produto final, com eta-pas fixas, sem a possibilidade de reavaliar oplanejamento e também sem pensar na toma-da de decisões por parte dos alunos. Assim, oprimeiro choque referia-se a essa maneira di-ferente de trabalhar com a Língua Portugue-sa, onde há uma seqüência lógica que privile-gia as situações de aprendizagem com umsentido social. Essa prática confrontou-secom a proposta vigente na qual o trabalhocom temas geradores aspirava a uma falsa in-terdisciplinaridade e apresentava uma lista deconteúdos sem fim, além da proposta de tra-balhar, a cada dia, com um conteúdo, semimportar o sentido de por que fazer aquilo epara que fazer daquela forma, tanto para osalunos quanto para os professores.

A realização de projetos sugere problemasconcretos e o formador atua em função dasquestões que emergem desse processo deimplementação. O importante para os profes-sores é compreender o que eles têm de ensi-nar e por que ensinar. Se é isso que faz senti-do para os professores, torna-se necessário,então, conciliar duas classes de propósitos: ados que ensinam e a dos que aprendem.

Para que planejar? Um outro ponto queavaliamos nestes quatro semestres de tra-balho com os professores refere-se à neces-sidade do planejamento. Inicialmente, al-guns grupos de profissionais pouco plane-javam: ou porque não tinham prática de pla-nejamento e/ou porque pouco se encontra-vam para discutir sobre o próprio trabalhoe/ou o próprio espaço físico da escola nãofavorecia esses encontros. Outros gruposconseguiam produzir e compartilhar maisas idéias entre os participantes. Iniciamostrabalhando com grupos da própria escolae pouquíssimas experiências agrupavamduas escolas numa mesma reunião. Perce-bemos rapidamente que propiciar maiorinteração entre escolas seria o melhor, por-

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Projeto pedagógico: por quê, quando e comoSIMPÓSIO 16

que poderia haver troca de experiências,além da observação de como se posicio-navam, como organizavam o material. Tudoisso fez com que todos no grupo tentassemimitar uns aos outros, trocassem materiais,endereços; enfim, começaram a ver que ha-via outras formas de se relacionar com osaber e a organização. Ou seja, o fato de ve-rem outros colegas de outras escolas expli-citava que cada instituição poderia ter a suaprópria forma de organização e construçãode saberes, que muitas vezes é necessáriosair do próprio universo para ampliar expe-riências e referenciais para, posteriormen-te, poder voltar para a sua própria institui-ção e refletir sobre seus pressupostos.

Formação de uma equipe colaborativa. Deforma geral, os professores tinham pouca ounenhuma prática de trabalho reflexivo feitocoletivamente, sofriam muito no planeja-mento individual a ser compartilhado pos-teriormente. Mudamos o pedido e autoriza-mos que planejassem em duplas e, depois,as duplas compartilhavam com o grupo todopara chegar a um planejamento comum. Asdiscussões sobre a elaboração desses plane-jamentos procuravam antecipar quais difi-culdades/desafios os alunos enfrentariamem determinadas situações, assim comoquais intervenções os professores poderiamfazer para atingir as aprendizagens dos alu-nos. Essas discussões eram coletivas e base-adas na prática já vivenciada.

Neste semestre, a estratégia de colocarjuntos os diferentes grupos de escolas e exi-gir de maneira mais enfática a realização deplanejamentos por parte dos professores fezcom que, inicialmente, houvesse muitas re-sistências, porque até então estavam habi-tuados ao planejamento realizado pelosupervisor ou ditado pelo livro didático. Co-locar-se como autor de sua prática foi umagrande novidade para todos e avaliar quesuas decisões, no momento do planejamen-to, poderiam ou não favorecer a aprendiza-gem dos alunos foi um grande marco no per-curso de formação desses professores.

O que se aprende quando se escolhe. A partirdo 2º semestre, os projetos escolhidos foramrestritos a um por série. Para isso se efetivar, osprofessores das quatro escolas se juntaram e

tiveram de discutir e decidir entre 13 propos-tas por apenas um projeto por série. Essa reu-nião foi bastante difícil, porque os professoresnão estavam acostumados a negociar entre sie nem a argumentar sobre suas escolhas. Fi-cou evidente que não sabiam como exerceressas ações. Esta foi, então, a primeira questãodo semestre: o professor é o responsável tam-bém pelo que desenvolve em sala de aula e temde ter poder de voz e decisão, pois estará à fren-te das crianças cotidianamente. Tudo isso podeparecer óbvio, mas, dependendo do projeto pe-dagógico da escola, o poder de decisão nuncapassa pelo educador.

Tematização da prática. A análise de vídeode sala de aula foi uma das estratégias utili-zadas na formação. Pudemos observar queos professores já conseguem ver a si mesmosnos encaminhamentos que deram certo,como também entender os equívocos e falarsobre isso. O grande avanço aqui é o fato depoderem se expor, conseguirem ouvir unsaos outros e saberem que isso não é pura gen-tileza, mas, sim, a própria construção de co-nhecimento do grupo sobre pedagogia.

A questão da discussão sobre o confrontoentre o que se planeja e o que se realiza em salade aula também desestabilizou não só os pro-fessores, como também os supervisores, já que,até então, as observações de sala de aula e aanálise das produções das crianças não eramvistas como ferramentas importantíssimaspara refletir sobre como se faz e por que se faz.Um outro mito que veio abaixo é que não bas-ta um planejamento burocrático, mas, sim, queeste precisa estar vinculado a avaliações peri-ódicas de como cada criança aprende. Ou seja,uma escola que tem como projeto pedagógicoa concepção de que a avaliação está centradano percurso, e não apenas no resultado final,está preocupada não só com o planejamento,mas também como esse planejamento ganhasentido no cotidiano da sala de aula.

Um outro ponto importante foi a utiliza-ção da análise de produção das criançascomo instrumento de investigação sobrecomo as crianças aprendem e pensam.

Essa supervisão constitui um dos grandesdiferenciais que o PEQV oferece para que osproblemas advindos da prática em sala de aulasejam nomeados, interpretados e transforma-

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dos. Nessa interlocução, o professor é ajudadotanto do ponto de vista da implementação daprática, quanto da compreensão da teoria quea sustenta. A configuração de um espaço detroca e de aprendizagem dessa natureza é mui-to comum em diversas profissões e em muitasescolas que oferecem ensino de qualidade.Para quase todos os profissionais, o seu desen-volvimento conta com a possibilidade de diá-logo entre pares, pois isso estimula a troca desaberes. O fato de configurar uma arquiteturade funcionamento do programa apoiada naidéia de que a possibilidade de troca, a refle-xão compartilhada e o acesso à informaçãodevam ser pilares do processo tem feito comque as respostas e o nível de compreensão dosprofessores envolvidos nessa experiência se-jam surpreendentemente rápidos.

Construção de autonomia. Todo programade formação precisa refletir sobre o encerra-mento de suas atividades no município etambém sobre como poderá multiplicar pelarede as suas ações. Para conseguir atingir es-ses pontos, é importante que a clientela for-mada conquiste sua autonomia em relaçãoaos formadores e passe a criar a própria redede comunicação e formação na cidade.

No caso do PEQV, pudemos perceber que,nos municípios em que houve maior integra-ção entre Secretaria e PEQV, essa passagem seefetivará com maior consistência, porque ine-vitavelmente refletirá na mudança de algumaspráticas vigentes dentro das secretarias: defi-nir de quadros fixos para supervisores, garan-tir hora-atividade, saber priorizar o que sequer com relação ao ensino e à aprendizagem,saber priorizar onde investir recursos pró-prios, saber que uma política municipal nãoé equivalente a querer homogeneizar todas asescolas – afinal todos nós queremos o fortale-cimento da escola como “uma organização-aprendiz que tem que ser alvo de uma forma-ção adaptada para ela e suas característicaspróprias e do conjunto de seus professores”.

Reflexão sobre o trabalho desenvolvidocom supervisores

Redefinição de função e tempo para o tra-balho. Em relação aos supervisores, até en-tão a maioria das escolas ignorava a neces-sidade da prática de planejamento e de re-

flexão coletiva, ou seja, eram escolas quenão valorizavam a formação. Isso se refletiana representação que o supervisor tinha deseu papel: aquele que deve fornecer o tra-balho pronto para os professores, se possí-vel até com as matrizes de atividades jáprontas; aquele que entende como obser-vação de sala aquela passada rápida paraverificar a lista de presença, se o professorestá sentado ou em pé, se o professor estádando a aula correspondente à lista de con-teúdos elaborados pelo supervisor, que sim-plesmente copiou o que a Secretaria indi-cou como um possível currículo.

Atualmente, alguns supervisores aindaoscilam entre esse paradigma de escola eoutro, em construção, que é aquele em quea escola tem tempo para planejar e refletirsobre a coerência do trabalho pedagógico eque, por conta disso, cria um contexto de for-mação e desenvolvimento profissional. Ossupervisores estão em plena reinvenção doseu papel e atuação dentro das escolas, es-tão sendo cobrados sistematicamente pelosprofessores assim como pelos diretores. Al-guns já conseguiram montar uma rotina maispróxima da necessidade real de formação deseus profissionais. Estão iniciando filmagensem salas de aula, transferindo para outrasáreas alguns procedimentos vistos no desen-volvimento do trabalho com o projeto emlíngua; outros estão fazendo registros e co-locando questões para além das descriçõese percebendo que algumas questões, antesvistas como problema de um determinadoprofessor, são, na realidade, de mais profes-sores e que, portanto, a melhor estratégia épromover uma reunião geral com os profes-sores e com uma pauta de reunião em que sediscuta o assunto a partir das observações emsala de aula. Alguns supervisores estão en-contrando dificuldades em desenvolver o tra-balho nestes moldes, porque os diretores es-tão se sentindo ameaçados e exigindo que ossupervisores saiam do PEQV, uma vez queeste implica mudanças que inicialmentedesestabilizam e fazem com que todos pre-cisem rever suas propostas, assim como aprópria escola.

Um exemplo de atuação de supervisorese professores de uma escola que está em fasede transição e não aceita mais alguns padrões

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Projeto pedagógico: por quê, quando e comoSIMPÓSIO 16

externos de forma impositiva é a resoluçãode eles não fazerem remanejamento de alu-nos de 1º ciclo durante o ano (ainda há esco-las que transferem alunos até quatro vezesao ano). Esses profissionais apresentaramsuas justificativas por meio da produção dosalunos e do quanto a heterogeneidade é umacondição importante para o processo de al-fabetização. O diretor dessa escola concor-dou com os profissionais e argumentou como técnico da Secretaria sobre a não-partici-pação da escola nessa tarefa. Nessa situação,podemos ver uma escola utilizando-se de ex-periências práticas dos professores esupervisores, assim como dos conteúdos deformação já incorporados e transferíveis paraoutras situações. Por meio dessa atitude, aescola deixa de ser anônima e passa a cons-truir sua identidade, diferenciada de tantasoutras da cidade – e essa ação passa a fazerparte do projeto pedagógico da escola.

Trabalho com diretoresO trabalho com projetos e a eleição de prio-ridades. A partir de algumas avaliações, oPEQV elaborou também um cardápio de pro-jetos para diretores: Comunidade leitora, Re-lação família e escola, Lazer e convívio e Co-municação no espaço da escola. Os direto-res de toda a rede foram convidados a parti-cipar e a desenvolver o projeto que mais seaproximava de suas realidades. O desenvol-vimento dos projetos colocou, logo de início,diversos problemas para os diretores:

• até então, os diretores só desenvolviamprojetos pontuais – desfile, festa para pais,festa para alunos;

• esses projetos pontuais geralmente eramdeterminados e já planejados pelas Secre-tarias de Educação;

• escolher o projeto e executá-lo demandariaparticipar de reuniões sistemáticas e fazer re-gistros das ações desencadeadas na escola.

O próprio fato de o diretor ter de esco-lher um projeto já demanda uma série dedecisões que o coloca em outro lugar, atéentão não vivenciado por muitos profissio-nais: eleger uma prioridade e persegui-lapor um tempo mais longo (alguns diretoresdesistiram de continuar no PEQV, porque

não conseguiram sustentar o projeto comoprioridade, e continuaram atuando nasemergências do cotidiano), saber escolherum projeto que tenha relação com a neces-sidade real da escola e fazê-lo por meio dadiscussão com a equipe escolar. Deve fazerparte de qualquer projeto pedagógico deuma escola saber olhar a realidade para de-finir em quais prioridades investir, seja nocampo do ensino-aprendizagem seja emquestões operacionais e administrativas.

O papel do diretorFormação de uma equipe colaborativa. Oprojeto de diretores proposto pelo PEQVcomo estratégia freqüentemente utilizadatem de ser o tempo todo compartilhado comos profissionais da escola, e as ações futurastêm de ser fruto das reflexões do grupo. Essaestratégia utilizada (que é favorecida por meiodo trabalho com projetos) fez com que os di-retores enfrentassem dificuldades até entãonão vivenciadas por eles: a impossibilidade deter um horário para encontro com o grupo daescola ou, então, a descoberta de que os re-sultados alcançados não foram os esperados,porque as decisões tomadas foram unilaterais.Essa questão de formação de equipecolaborativa é um dos pressupostos não só doprojeto de diretores, mas de todos os outrossegmentos do PEQV. Nesse caso, porém, al-guns estereótipos surgiram e até impediramo andamento do projeto com maior eficiên-cia. Por exemplo, uma escola que não valori-za, no seu projeto pedagógico, a formação deuma equipe reflexiva e colaborativa acaba cri-ando dentro de si nichos que não interagem,a não ser quando obrigados pela Secretaria;ou seja, houve escolas em que os supervisoresou professores não participaram das ações ediziam: “Aquele é o projeto de diretores e, por-tanto, é ele que tem que fazer e não eu, comoprofessora!”.

Um outro ponto importante desencade-ado pela própria prática do projeto foi quan-to à representação que os diretores tinhamsobre a comunidade escolar. Para eles, essacomunidade era composta pelos diretores,supervisores, professores, pais e alunos, ex-cluindo os profissionais de limpeza, cozi-nha, portaria e outras pessoas da comuni-

dade. Contudo, algumas etapas, para seremdesenvolvidas, necessitavam dos saberes,da contribuição e da reflexão destes impor-tantes profissionais, que também compõema comunidade escolar, como ocorreu noscasos do projeto Família e escola e do em-preendimento do Self-Service. Atualmente,alguns diretores estão fazendo roda de his-tórias com os setores operacionais.

Essa questão da formação de equipe,que surgiu na própria ação do projeto e evi-denciou-se na reflexão, fez com que algu-mas escolas, que estavam funcionando sobo paradigma que privilegia ações compar-timentalizadas e isoladas, passassem a re-fletir e a tentar elaborar estratégias em queo trabalho colaborativo em equipe fossefundamental para o desenvolvimento dasações, como, por exemplo, o trabalho de re-creio monitorado.

Saber avaliar o processo. Alguns diretoresnão realizaram registros e sempre justifica-vam o não-fazer ou os fracassos, assumindouma postura de alunos que deixaram de fa-zer a lição de casa, enquanto outros direto-res passaram a querer observar o insucesso,o fracasso de outra forma. Uma escola, porexemplo, dentro do projeto Comunidade deleitores, planejou como uma etapa as leitu-ras, nas segundas séries, de obras de Mon-teiro Lobato para, no final do projeto, fazeruma exposição do autor, de reescritas, ilus-trações e recontos, mas, durante o desenvol-vimento do trabalho, as professoras disse-ram, em uma das reuniões de equipe, que osalunos estavam detestando o autor e a reali-zação do projeto Comunidade de leitoresestava ficando inviável. A partir dessa infor-mação dos professores, a diretora e a viceresolveram observar os momentos de leitu-ra e descobriram que os professores não pre-paravam a leitura previamente, escolhiamlivros inadequados para a faixa etária, nãosabiam ler em voz alta, ou seja, as duas pre-cisariam refazer o planejamento inicial, in-cluindo nele um trabalho sistemático de lei-tura com os professores. Aqui a aprendiza-gem foi bastante grande, porque a escola saiudo lamento, procurou avaliar o próprio tra-balho e, a partir disso, buscar novos encami-nhamentos.

O papel dos diretores e a identidade das es-colas. Alguns problemas iniciais enfrentadospela formação estavam relacionados à con-cepção que se tem do papel de diretor dentrode uma escola: é aquele profissional respon-sável pelos eventos, que executa as normas daSecretaria, que está ligado a questões buro-cráticas, como matrículas e transferências,mas não registra nenhuma ação da escola;também está ligado ao bom andamento daescola (entendendo por isso a presença detodos os profissionais da escola no horário detrabalho, o fornecimento da merenda, etc.).

Com o andamento do projeto de forma-ção, o papel do diretor passou a ser refor-mulado na própria ação, já que, pela primeiravez, os diretores passaram a elaborar um pro-jeto a longo prazo, registrando suas ações, re-fletindo sobre a prática realizada, elaborandoações diferenciadas em relação às que até en-tão vinham sendo feitas. Isso fez com que essegrupo de profissionais passasse a olhar parasuas escolas de outra forma. O desafio, nestemomento, do programa é fazer com que osdiretores passem a refletir sobre quais estra-tégias devem utilizar para garantir a manuten-ção de algumas ações já conquistadas, assimcomo também discutir e refletir sobre o fatode que alcançar um resultado positivo inicialnão significa que o projeto está concluído. Ouseja, dentro de uma escola tudo precisa serrevisto o tempo todo, porque novas idéias econcepções surgem e é preciso estar em con-sonância com as reflexões externas parautilizá-las e até mesmo refutá-las, de acordocom os pressupostos do projeto pedagógicoadotado pela escola.

ConclusãoEstamos finalizando o projeto-piloto do PEQV

e podemos avaliar que, com todos os acertos eequívocos nos encaminhamentos da formação,sabemos, hoje, que, se um programa de forma-ção pretende criar uma metodologia de trabalhoque discuta a formação de uma maneira mais pro-funda, é necessário que inclua, em suas estraté-gias, ações que auxiliem a escola no aprimora-mento sistemático de seu projeto pedagógico reale que essas escolas passem a valorizar a reflexãocontínua como parte de sua ação pedagógica.

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SIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIO 1717171717

LEITURA NA ALFABETIZAÇÃOIsabel Cristina Alves da Silva Frade

Priscila Monteiro

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ResumoMediante análise de alguns movimentos de

pesquisa e de inovações pedagógicas dos últimos

anos e sua materialização na sala de aula, preten-

de-se analisar o que se lê na alfabetização do pon-

to de vista de gêneros, que materiais são lidos, do

ponto de vista dos suportes, onde são lidos, quais

são as modalidades de leitura e quais são os leito-

res. Num contexto teórico em que se discutem o

letramento e novos letramentos e numa conjun-

tura de implantação de ciclos, pretende-se solu-

cionar alguns problemas que permanecem no en-

sino da leitura e outros que surgem pela introdu-

ção de novas práticas culturais de leitura e que

constituem desafios a serem enfrentados pelos

professores alfabetizadores.

Problematizando o tema “leitura na alfabe-tização” para comunicação neste simpósio,ocorre perguntar: o que há de novo sobre otema “leitura na alfabetização”, nestes últimosanos, que já não tenha sido explorado ou de-batido? Na tentativa de encontrar alguns pon-tos de reflexão – talvez de inquietações –, op-tei por fazer uma breve análise de como os mo-vimentos de inovação pedagógica na alfabeti-zação têm tratado a leitura, uma vez que par-ticipo de movimentos de alfabetização e tam-bém tenho feito pesquisas sobre inovações.Além disso, os trabalhos de extensão possibi-litam tomar conhecimento de dilemas dos pro-fessores em torno dos problemas de ensino eaprendizagem da leitura. Como as escolas li-dam com problemas de ensino da leitura?Como as práticas sociais de leitura vêm alte-rando as práticas escolares? Como as práticasescolares de leitura reordenam os modos de

Leitura na alfabetização –velhos e novos problemas

Isabel Cristina Alves da Silva Frade*

Ceale/UFMG

ler? Quais são os velhos/novos problemas quesurgem no contexto atual?

Assim, mediante análise de alguns movimen-tos de pesquisa e de inovações pedagógicas dosúltimos anos e sua materialização na sala de aula,pretende-se aqui analisar o que se lê na alfabeti-zação, do ponto de vista de gêneros, que materi-ais são lidos, do ponto de vista dos suportes,onde são lidos, quais são as modalidades de lei-tura e quais são os leitores. Num contexto teóri-co, em que se discutem o letramento e novosletramentos, numa conjuntura de implantaçãode políticas, como a de ciclos, pretende-se solu-cionar alguns problemas que permanecem noensino da leitura e outros que surgem pela in-trodução de novas práticas culturais de leitura,constituindo desafios a serem enfrentados pe-los professores alfabetizadores.

O que se lê na alfabetização?Partindo do ponto de vista de que a escrita

e a leitura são práticas sociais, das quais fazemparte as práticas escolares, constata-se que seampliou, sobremaneira, a entrada de textos naescola. Nos últimos anos, pode-se afirmar quea abertura para os textos que circulam na so-ciedade está presente, seja porque se pergun-ta aos alunos sobre os textos que circulam emseu ambiente e solicita-se que sejam trazidosalguns para a sala de aula, seja porque os pro-fessores levam esses textos para a sala de aula,fazendo uso pedagógico deles. Assim, pode-sedizer que circulam na escola panfletos, folhe-tos publicitários, cartazes, folders de divulga-ção, revistas, jornais, livros de literatura, bu-las, entre outros.

* Doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Ceale/FAE/UFMG.

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Leitura na alfabetizaçãoSIMPÓSIO 17

Como conseqüência, percebe-se uma am-pliação dos tipos de suporte, como jornal, li-vro, cartaz, folheto, revista, embalagens, e dosgêneros que são lidos: textos narrativosjornalísticos e l iterár ios, publicitár ios,epistolares, informativos, instrucionais, entrevários outros. Nesse conjunto de novos supor-tes, permanece o livro didático, hoje estrate-gicamente denominado “livro de alfabetiza-ção”, em contraponto a uma idéia de cartilha,que se pretende combater simbolicamente, jáque o problema não é o nome, mas o conteú-do existente no suporte “livro didático” oumesmo o uso que se faz dele.

Onde e como se lê e quem lê?Uma observação sobre os espaços de lei-

tura revela sua concretização em espaços va-riados, mediante esforço dos professores paracriar um “ambiente lingüístico/alfabetizador”.Esse ambiente comporta sala de aula, corre-dores, pátios escolares, bibliotecas, escritos dobairro e da cidade, ou seja: onde quer que ostextos existam, também existem espaços deleitura. Parece óbvio dizer que os espaços deleitura acompanham a presença dos escritosna sociedade. Entretanto, não basta que exis-tam materiais escritos em diversos lugares, seesses materiais não se tornam observáveiscomo objeto de interesse e façam sentido paraos alunos.

Nesse caso, faz diferença o trabalho do pro-fessor: como esse profissional trabalha com atarefa de criar um motivo para que os apren-dizes olhem com outros olhos coisas (supor-tes/textos) aparentemente “naturais”, que fa-zem parte do cotidiano da escola e da socie-dade, da zona urbana e mesmo da zona rural?O relato de uma professora sobre o desconhe-cimento do suporte “embalagem” por criançasde uma favela do inter ior de Minas éelucidativo dessa tarefa: as crianças não ti-nham acesso a embalagens porque seu contex-to era “pobre” em estímulos ou porque nuncatinham parado para observá-las? Uma pesqui-sa nos locais de moradia evidenciou que essasembalagens chegavam às casas dos alunos,mas não eram evidenciadas nas práticas cul-

turais vividas no bairro ou no espaço domésti-co. Essa constatação levou a professora a criarum projeto de estudo, envolvendo outros alu-nos de outra escola, que passaram a enviarembalagens para troca.

Em um curso de formação de professores,listamos alguns tipos de textos existentes nazona rural e conseguimos encontrar muitomais textos do que se imaginava circular na-quele ambiente: a Bíblia, folhetos religiososutilizados nas missas ou em outras celebra-ções, calendários da Folhinha Mariana, instru-ções sobre uso de produtos agrícolas, embala-gens de alimentos e de produtos usados na-quele contexto, contas de água e luz, informa-tivos dos movimentos rurais e de sindicatos,cartas, entre outros. Também nesse caso, cres-ce a responsabilidade dos professores em fa-zer dessa circulação um objeto de curiosidadee investigação.

Nas regiões urbanas, vem se diversifican-do o trabalho com leitura mediante a visita alivrarias, bancas e a eventos como feiras de li-vros, demonstrando que, para a compreensãode determinados aspectos da leitura, tambémcontribui o conhecimento sobre as instituiçõesenvolvidas na fabricação, distribuição e divul-gação dos impressos e sobre determinadas so-ciabilidades criadas em torno dos livros, comoa de falar sobre eles e a de saber que existemautores e ilustradores, entre outros. Essa pers-pectiva é reforçada por Chartier (1996), quan-do apresenta uma série de atividades de dis-cussão sobre o funcionamento do mundo daescrita no espaço urbano, doméstico e esco-lar. Uma parte das propostas de intervençãoenvolve a descoberta e a identificação de su-portes, a convivência com eles e a compreen-são do modo como os textos circulam, comosão armazenados e classificados, atividadesque podem ser desenvolvidas paralelamenteao trabalho de construção do sentido dos tex-tos e da decodificação. Essas são práticas quetrabalham não só a leitura em si, mas tambémo que a antecede e o que pode prolongá-la.

Houve e há também uma crescente amplia-ção das situações pelas quais a leitura ganhasignificado na própria escola. Josette Jolibert,autora que enfrenta a dimensão didática do

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trabalho com leitura e escrita de forma maisexplícita e é, por isso, muito utilizada por pro-fessores, apresenta, em seu livro Formando cri-anças leitoras (1994: 31), um tipo de classifi-cação para esses usos escolares, tais como osde ler:

• para responder à necessidade de viver com os

outros na sala de aula e na escola;

• para se comunicar com o exterior;

• para descobrir informações das quais neces-

sita;

• para fazer (brincar, construir, levar a termo

um projeto ou empreendimento);

• para alimentar e estimular o imaginário;

• para documentar-se no quadro de uma pes-

quisa em andamento.

A introdução de novos usos escolares daleitura também é decorrente de outros tiposde preocupação, que extrapolam seus aspec-tos específicos. Os professores têm se preocu-pado em introduzir materiais que respondama alguns desafios inerentes às inovações peda-gógicas, com foco na interdisciplinaridade, emnovas metodologias – como a de trabalho comprojetos –, em conteúdos próprios da con-temporaneidade, respondendo a uma neces-sidade de contextualização das aprendizagens.Com essas inovações, os materiais de leiturasão reordenados no âmbito das necessidadespedagógicas gerais. Algumas dessas necessida-des também vão interferir nas práticas cultu-rais de leitura na escola. Essas preocupaçõestêm se baseado nos seguintes focos:

Funcionalidade: materiais de leitura queapresentam valor funcional, com ênfasenos aspectos práticos e em necessidadespedagógicas e de leituras mais emergentes,a partir da utilização de manuais de jogose de instruções para trabalhos, de listas, re-ceitas, cartazes, obras de referência etc.

Atualidade: materiais de leitura, como jor-nais e revistas, que focalizem aspectos daordem do dia e que possam, ao mesmotempo, informar e manter a escola e os alu-nos em ligações mais estreitas com deter-minados acontecimentos sociais.

Foco na ficção, no humor e no imaginário:material de leitura que possibilita a saídado real e do emergente, com foco no

ficcional, no imaginário, no nonsense, nohumor. São os livros de literatura, os qua-drinhos, que têm o potencial de trabalharcom representações, com sentimentos ecom a dimensão estética.

Aspecto interdisciplinar: material que pos-sibilita o trabalho com diversos aspectos daformação e não apenas com a leitura.

Produção coletiva: materiais produzidospor professores, por alunos e por turmas,que passam a ser lidos, socializados e con-sultados por outras turmas.

Por motivos pedagógicos, mais do quelingüísticos ou de alfabetização, verifica-se,nos últimos anos, uma certa tendência de uti-lização de materiais de leitura de uso mais prá-tico e/ou informativo, na sala de aula. Issopode contribuir para uma ampliação dos usos,mas pode também fazer com que certos tex-tos, antes mais presentes e valorizados na es-cola (como as poesias, as narrativas), percamespaço. O fato de serem também utilizadosmateriais produzidos no interior da escola co-loca em dúvida se têm sido bem consideradosdeterminados aspectos editoriais que se con-figuram nos impressos e constituem elemen-tos importantes para os sentidos e para suaapreciação estética.

Por outro ângulo, quando se consideram aspráticas de leitura realizadas a partir de dife-rentes suportes e gêneros, cabe perguntar: asleituras são as mesmas para todos? Com queconcepção de leitura se trabalha? Nesse aspec-to, constata-se que a produção de sentidos naleitura extrapola o próprio texto, uma vez quenão é necessário lê-los para ter acesso a deter-minadas camadas de sentido. Quando os pro-fessores alfabetizadores introduzem diferentessuportes nem sempre o foco a ser privilegiadoé o conteúdo textual. Muitas vezes, o uso pe-dagógico é o de classificar materiais de leitu-ra, identificando sua materialidade, como ob-jetos, seus usos sociais, suas semelhanças e di-ferenças talvez para antecipar, assim, o seuconteúdo. Essa pode ser considerada uma novaforma de leitura, introduzida em sala de aulade alfabetização.

E a leitura dos textos, propriamente dita,como vem se dando? Uma primeira mudança

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Leitura na alfabetizaçãoSIMPÓSIO 17

nesse aspecto é a de que não se espera que ascrianças saibam ler para que tenham acessoaos conteúdos dos textos. Os professores as-sumem, eles mesmos, o papel de leitores, me-diando o aspecto da decodificação para que osalunos tenham acesso aos diferentes aspectosda significação. Os textos também são lidos poralunos que “já sabem ler” (da mesma turma oude outras turmas, ou ciclos e séries), alteran-do papéis e posições de quem pode ler para ooutro.

Verifica-se grande crescimento no uso damodalidade oral e coletiva da leitura, emcontrapartida a uma prática de leitura silencio-sa e individual, priorizada em outras situaçõese momentos da história da escola, porque nãose faz mais leitura oral para verificação de com-petências, ou seja, para avaliar leitura, mascomo uma prática que visa a favorecer e de-mocratizar o acesso a conteúdos e gêneros,logo nas primeiras oportunidades, sem que seestabeleça a velha lógica dos pré-requisitos –no caso, a decodificação. Essa lógica de pré-requisitos excluiu, por muito tempo, os alunosdo acesso a textos plenos de sentidos e a usosmais elaborados da leitura. Isso não quer di-zer que a ênfase nas modalidades individual esilenciosa deixe de ser buscada e de ser um dosprincipais objetivos da leitura.

O que falta pesquisare tratarNos últimos anos, vêm-se alterando as prá-

ticas culturais de leitura e modos de ler, sina-lizando para novos desafios de letramento,pouco enfrentados nas práticas de alfabetiza-ção. Magda Soares (1998: 47) consideraletramento “estado ou condição de quem nãoapenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exer-ce as práticas sociais que usam a escrita”. Se asações de cultivar e exercer práticas sociais deleitura são também vinculadas ao movimentode transformação dos textos e das formas deler, novos desafios se colocam. Ler em telas decomputadores ou de televisão, por exemplo,envolve outros movimentos de leitura. A lei-tura de legendas de filmes, de games e devideoquê exige, entre outras habilidades, ra-

pidez e coordenação entre a recepção do texto(às vezes fixo, às vezes em movimento) e daimagem em movimento.

Apesar da ampliação de usos e de supor-tes, novas linguagens devem suscitar, em pro-fessores e alunos, intervenções pedagógicasespecíficas. É crescente, nos textos oferecidosà leitura, a introdução de apelos gráficos e vi-suais que alteram os movimentos dos olhos eos sentidos do texto, assim como a presençade uma certa esquematização na apresentaçãodas informações. De forma especial, destaca-se um outro desafio que precisa tornar-se ob-jeto de reflexões: a iconização e/ou a introdu-ção de imagens. Não se pode dizer, a partirdessa constatação, que a aprendizagem de ou-tros códigos não altere as formas de recepção.A imagem não possibilita apenas a entradaplástica nos livros de leitura, sobretudo comoum substitutivo para quem “ainda não sabeler”, mas constitui, junto com o texto, signifi-cados especiais para qualquer leitor.

As necessidadesde decodificaçãoe da sistematização:o ler para aprender a lerVerifica-se, então, que se ampliam os espa-

ços de leitura, os tipos de suportes, os usos so-ciais dos textos, assim como são ressignificadasas modalidades coletiva/individual, oral e si-lenciosa de leitura na escola, entre outros as-pectos ainda não explorados.

No discurso teórico, é comum a idéia deque se aprende a ler lendo e se aprende a es-crever escrevendo. Entretanto, a afirmação deque devemos ler “para valer” na escola e o re-forço da perspectiva de que os textos para serlidos estão por todo lado, desde que saibamosprocurá-los, resolvem os problemas do “lerpara aprender a ler”. Estaríamos falando dasmesmas coisas? Qual o sentido que os profes-sores e as pesquisas vêm dando às necessida-des pedagógicas de ensinar a decodificação eàs necessidades de o leitor aceder a ela para setornar cada vez mais autônomo em relação àleitura de outrem?

260

Alguns aspectos metodológicos e técnicosenvolvidos no ato de ler têm ficado esqueci-dos, em função do trabalho com determinadosaspectos da compreensão e do letramento. As-sim, precisamos fazer diversas perguntas: Qualo significado da decodificação após certasapropriações construtivistas que se negaram aenfrentar aspectos metodológicos desse apren-dizado? Por que a necessidade de decodifi-cação e de abordagem didática dessa faceta doato de ler não tem sido claramente tratada nasdiscussões teóricas e em pesquisas acadêmi-cas, no momento atual? Talvez, se estivéssemosenfrentando esse tipo de demanda do proces-so de alfabetização e, conseqüentemente, dosprofessores, não estaríamos negando uma ne-cessidade legítima e constitutiva do ato de en-sinar e aprender a ler: a decodificação. Deve-ríamos, no momento atual, acrescentar maispolêmicas às discussões entre métodos analí-ticos e sintéticos presentes, no Brasil, desde ofinal do século 19, e não negar a relevânciadesses processos de ensino para a construçãode uma história da alfabetização e das práti-cas pedagógicas.

Deveríamos perguntar hoje: como garan-tir o trabalho com a decodificação e com o sen-tido, sem cair na ausência de sentido do tra-balho escolar, respeitando os resultados denovas pesquisas sobre o aprendizado da leitu-ra? Ao analisar as práticas de muitos professo-res, mesmo daqueles bem informados sobrenovas descobertas em alfabetização, encontra-mos necessidades mais perenes, que não po-dem ser compreendidas como contra-sensos,mas como forma de conhecimento pedagógi-co que pode nos auxiliar na compreensão dosprocessos de ensino. Em recente pesquisa so-bre escolha de livros de alfabetização, em duasescolas públicas, apareceram dados que de-monstram alguns desses “paradoxos” de leitu-ra na alfabetização.

Uma escola de periferia de uma capital nãotinha recebido livros de alfabetização para to-das as turmas, em 2001. Constatou-se, então,que nem mesmo o objeto livro didático faziaparte do processo de alfabetização para deter-minados alunos. O interessante é que a pro-fessora sentia-se indignada, porque sua turma

não havia recebido os livros. Para ela, o livrodidático teria sido um dos primeiros livros aosquais os alunos teriam acesso e de que teriamposse, sendo fundamental a oportunidade derecebê-lo.

No entanto, ao avaliar o livro a que sua tur-ma não tivera acesso, apareceram outros ques-tionamentos. Para essa professora de 1ª série,o livro didático utilizado pela outra professo-ra – que “foi mais rápida e pegou os livros” – émelhor que o do ano anterior porque é inte-grado e interdisciplinar, mas não atende à cli-entela, pois se destina a crianças que já sabemler textos longos. É bom, mas não dá para se-gui-lo. É usado para tirar algumas atividades emais para consulta. Segundo seu depoimento,“o livro didático não atende às necessidadesdos alunos, apesar de ser bom. Para os alunosdaqui trabalharem nele, tem que ser para asséries subseqüentes”. Ela se util iza deparlendas e de músicas para alfabetizar, por-que avalia que o livro didático que sua escolarecebeu não traz essa abordagem relativa amúsicas. Complementa suas aulas com ativi-dades xerocopiadas de outros livros, literatu-ra, jornal, revista, letras de macarrão, jogos,enfim, segundo ela, “todas as bugigangas queum professor tem que produzir”. Além disso,essa professora baseia suas atividades numaapostila elaborada de acordo com um métodomusical para alfabetização, por uma professo-ra de Belo Horizonte, há mais de vinte anos.

É interessante observar pelo menos duasquestões a respeito desse episódio. A primeiraé o reconhecimento, pela professora, de algu-mas qualidades do livro que viera para a outraturma. Essa professora é uma profissional quesabe avaliar a qualidade de um livro de leitura(ou de alfabetização?). No entanto, quando setrata de ensinar a ler/decodificar, precisa va-ler-se de determinada metodologia e de avali-ar “negativamente” livros que vêm com textoslongos para crianças que ainda não domina-ram a decodificação. Triste também é consta-tar que, apesar de uma séria política de livrodidático no Brasil, ainda existem alunos semlivro.

Essa escola não adota postura muito alter-nativa para a alfabetização e algumas profes-

261

Leitura na alfabetizaçãoSIMPÓSIO 17

soras chegaram a entender, mediante a análi-se de alguns livros enviados por editoras, quenão havia mais cartilhas no PNLD, desmo-bilizando-se para a escolha, que ficou a cargode alguém que, na falta de “cartilha”, escolheuum livro de alfabetização para 2001. Antes al-gum livro do que nenhum.

Seriam essas professoras conservadoras? Oque procuram num livro de alfabetização paraseus alunos?

Uma segunda escola pesquisada, que já ha-via vivenciado significativas inovações nosanos 1980, optando naquela época por banir acartilha em favor de textos de uso social, en-contra-se, em 2001, em outro processo. Apa-receu, no discurso das professoras, o mesmoargumento da necessidade de textos de leitu-ra mais curtos. Explicitando melhor os senti-dos de tais comentários, algumas professorasalegaram que, se é para o professor ler para osalunos, é melhor que peguem bons livros deliteratura ou que os textos venham como ane-xos no livro, para que os alunos não tenhamque enfrentá-los sozinhos, no começo. Umadelas mencionou que alguns de seus alunos lhedisseram: “Adoro quando você lê, porque as-sim eu entendo” (referindo-se às dificuldadesde enfrentamento de um texto longo, que fazos alunos perderem o sentido devido à dificul-dade de decodificar).

Destaco, a seguir, alguns argumentos emtorno do tamanho dos textos: “Os textos têmque ser pequenos senão os alunos se cansam,vão apenas até a metade”; “Os textos menoresfuncionam melhor, todos lêem e dão conta”;“Textos menores, porque textos grandes abor-recem e queremos que os alunos iniciem len-do, porque é preciso que criem coragem de ler,para que mantenham a disponibilidade de ler”.

Foram destacados também os gêneros deum texto e evidenciou-se que alguns gênerosfacilitam a leitura, como pequenas trovas,parlendas e poesias, que agradam pelo ritmo,entonação e musicalidade. “Os alunos gostame favorece a pontuação, que ajuda na compre-ensão. No texto maior, o aluno, em período ini-cial, passa de uma frase para outra, sem per-ceber o significado.”

Nota-se, nessa segunda escola, um proces-

so diferenciado. Até 1987, já havia experimen-tado diferentes formas de ensinar a leitura,com diversos processos, entre eles o global, omusical, o silábico e os ecléticos. Passou tam-bém por um processo de inovação com umrompimento da idéia de métodos rígidos paraensinar a leitura. As professoras mantêm de-terminadas posições, quando destacam a im-portância de respeitar o processo de constru-ção do aluno e a necessidade de que as tare-fas escolares tenham significado. Não dizemque seus alunos têm problemas de compre-ensão dos textos, quando as professoras sãoas leitoras. Em contrapartida, deparam-secom a necessidade de ensinar a decodificaçãopara muitos alunos, o que significa questio-nar a idéia de que “se aprende a ler lendo”. Ar-gumentam justamente sobre a necessidade deque os alunos criem coragem de ler, tenhamdisponibilidade para ler e não se cansem como esforço.

As alfabetizadoras precisam negociar pon-tos de convergência entre o sentido e adecodificação. Poderíamos dizer, então, que seaprende a ler lendo, mas isso não é válidoigualmente para todos?

Anne-Marie Chartier et al. (1996) dedicam,em seu livro, uma parte para atividades maisamplas com os textos, incluindo-se aí associabilidades inerentes ao mundo da leitura.Apresentam também formas de leitura quebuscam destacar mais o sentido que adecodificação. No entanto, não negam asdificuldades que os aprendizes possamapresentar no esforço de juntar decodificaçãoe compreensão. Exemplificam os problemas decompreensão, destacando que, enquanto osaprendizes concentram-se na decodificação,podem perder o sentido do conteúdo do textoou mesmo esquecer o que leram antes. Leituracom compreensão envolve memorização, efacilita-se a compreensão se a leitura é feitacom maior rapidez e quando se podemantecipar conhecimentos em relação aoconteúdo e ao gênero textual.

A partir dessa breve argumentação teóri-ca, poderíamos entender a preocupação dasprofessoras das duas escolas como legítima?Ou continuaríamos a enquadrar suas necessi-

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dades pedagógicas e funcionais comoconservadorismo no ensino da leitura paraprincipiantes?

Os professores estariam indo na contramãodas discussões teóricas, quando fazem essetipo de demanda ou consideração, ou estari-am demonstrando um conhecimento pedagó-gico que precisa ser mais bem compreendidopor nós, formadores e pesquisadores?

Cabe ainda perguntar: o que fizemos nes-tes últimos vinte anos para dialogar com as ne-cessidades metodológicas dos professoresalfabetizadores, em relação ao ensino da lei-tura? Ao tentar garantir o trabalho com senti-do e funcionalidade, jogamos fora o bebê e aágua do banho?

Algumas políticas deorganização da escolae a leitura: novos problemasou velhos dilemas?Na década de 1980, tivemos o embrião de

uma nova forma de organizar a alfabetização,com a introdução dos ciclos básicos em váriosestados, como Rio Grande do Sul (especial-mente no município de Porto Alegre), Rio deJaneiro, São Paulo e Minas Gerais. Essa deman-da vinha de professores inovadores, com seusquestionamentos sobre os tempos de apren-dizagem e a rigidez do sistema de ensino.Quando reduzidos a meros discursos, os ciclosnão foram implantados, de fato, em muitasescolas. Quando levados a termo, com umapolítica de formação consistente, o saldo depossibilidades dos ciclos para o ensino da lei-tura foi grande. Não basta criar estratégias par-ticulares para resolução do problema de inclu-são dos ciclos em cada classe ou estabeleci-mento, se também não se quebra a ossatura daescola no período da alfabetização inicial.

Anos depois, precisamente em meados dadécada de 1990, a implantação de ciclos con-tínuos fez deslocar o problema da alfabetiza-ção para a questão do direito à permanênciana escola. Assim, ampliaram-se as discussõespedagógicas para outras esferas, sendo umadas mais importantes a da formação humana.

Trata-se não apenas de ensinar determinadosconteúdos, mas de fazer da escola um espaçode sentido, onde se estuda para conhecer e nãopara “passar de ano”, em que a convivênciacom grupos da mesma idade é um critério tãoimportante como o da aquisição de determi-nadas habilidades.

Recentemente as escolas vêm buscandoinovações em suas metodologias, num senti-do mais amplo. Se era para romper com a ló-gica transmissiva e de pré-requisitos, os alu-nos agora iriam para a frente e aprenderiamo que fosse possível, em todos os sentidos.Assim, alguns problemas de aprendizagem,entre eles o da leitura, que antes ficavam re-presados no universo de alguns professores –sobretudo daqueles que sempre enfrentaramdiretamente o processo de aquisição inicial,passaram a ser de todos. Alunos com proble-mas de aquisição do código estão em todosos ciclos e a aposta de que “se aprende a lerlendo” provou não funcionar para muitos de-les. O depoimento de uma coordenadora deescola pública evidencia claramente essaconstatação: “Só agora é que a escola vemtomando conhecimento de que a alfabetiza-ção dos alunos de outros ciclos não aconte-cerá naturalmente e que vai ser necessáriopriorizar a alfabetização nessas salas”.

Em recente curso de formação, uma pro-fessora relatou-me que, trabalhando com o ci-clo intermediário e enfrentando problemas dealfabetização de vários alunos de mais de 11anos de idade, teve uma idéia: usar com aque-le grupo um pré-livro antigo, com pequenashistorietas em seqüência narrativa. Destacava,em seu trabalho, a decoração e o reconheci-mento do texto, assim como a garantia desuspense para o “conto” a seguir. No momen-to do relato, apareciam resultados inesperados,com uma metodologia e conteúdos tão “anti-gos”: muitos alunos passaram a reconhecer ea ler palavras e a se sentir incluídos, de fato.Outra professora relatou-me como vinha dan-do certo a abordagem com um método silábi-co, em situação individual, para alunos comdificuldade de aprendizagem. Não se trata dedesenterrar “fantasmas” ou de ressuscitar umadiscussão restrita quanto aos métodos de en-

263

Leitura na alfabetizaçãoSIMPÓSIO 17

sino da leitura, mas de começar a enfrentardiscussões negadas ou não priorizadas, nosúltimos tempos. É preciso reconhecer que de-terminados aspectos técnicos do trabalho coma aquisição do código podem ser reapro-priados no contexto de novos suportes, de no-vos conteúdos, temas e gêneros, enfim, numcontexto de novos modos de ler.

Reflexões finaisAlguns resultados de hoje nos obrigam a

uma reflexão. Os alunos de muitas escolas ino-vadoras presenciam atos de leitura, têm aces-so a vários gêneros, com níveis de complexi-dade compatíveis com seus interesses e pro-cessos cognitivos, mas falta ainda para muitosa autonomia de leitura. Os resultados para aauto-estima não são os esperados. Os alunossabem que não sabem ler, apesar de toda avalorização em outros aspectos. Também osprofessores que trabalham em ciclos posterio-res sabem que não sabem alfabetizar. Ou seja,há também um conhecimento metodológicosobre o ensino da leitura, entre eles o dadecodificação, que precisa ser enfrentado come por quem entende de alfabetização. Os ma-teriais e conteúdos temáticos podem ser apro-priados a diversas idades de formação, masalgumas condutas metodológicas de sistema-tização precisam ser recuperadas, sem radica-lismos.

A história da utilização dos métodos de al-fabetização no Brasil, desde o final do século19, demonstra-nos que a pretensão do novo/moderno contra o tradicional marca diferen-ças nos campos teórico e prático e intenta eli-minar, a cada disputa, um tipo de conhecimen-to pedagógico anterior, muitas vezes pertinen-te para determinadas situações. No entanto,percebe-se até hoje, no plano prático, a buscapela conservação de saberes que funcionampedagogicamente.

Contudo, com o advento de tantas pesqui-sas sobre os processos de construção do senti-do na leitura, não é mais possível empregarapenas as estratégias de antes. Se alguns pro-fessores se reapropriam de estratégias ditastradicionais de forma menos sistemática e es-pontânea, mesmo negando-as, e obtêm suces-so no ensino da leitura, é preciso que outrosas tomem sistematicamente, abordando ques-tões do sistema sem se sentirem intimidadose entendendo a especificidade de um conhe-cimento pedagógico para ensinar leitura para“iniciantes”, seja com crianças, com adolescen-tes ou com adultos.

Pode-se interpretar, mediante texto deMagda Soares (1990), que as propostas socio-interacionistas não são incompatíveis comcondutas metodológicas específicas para alfa-betizar. Afinal, o conceito de letramento com-porta o conceito de alfabetização, tambémdefinido pela mesma autora (1998: 47) como“ação de ensinar/aprender a ler e a escrever”.

BibliografiaCHARTIER, Anne-Marie et al. Ler e escrever: entrando no

mundo da escrita. Porto Alegre: Artmed, 1996.

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e

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Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.

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JOLIBERT, Josette et al. Formando crianças leitoras. Por-

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SOARES, Magda. Alfabetização: em busca de um méto-

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. Letramento: um tema em três gêneros. Belo

Horizonte: Autêntica, 1998.

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O que é o Crer para VerO Programa Crer para Ver é uma iniciativa

da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criançae da Natura Cosméticos. Essa parceria foi cri-ada em 1995, com a missão de contribuir paraa melhoria da qualidade do ensino público noBrasil, por meio da participação da sociedadecivil e do diálogo com o poder público.

Os recursos arrecadados voluntariamentepelas consultoras Natura são destinados aoapoio financeiro e pedagógico de projetos que,vindos da comunidade, contribuam para a me-lhoria da escola pública brasileira e possam serreferência para a elaboração de políticas pú-blicas em educação.

O acompanhamento pedagógico se dá pormeio da leitura de relatórios, troca de e-mailsou telefonemas, visitas aos projetos, reuniões

ResumoNão podemos falar de leitura na alfabetização

sem nos remetermos à importância da leitura de

mundo que cada um de nós tem, que se encontra

encharcada do nosso contexto sociocultural, mar-

cando nosso corpo e revelando, assim, a forma

como aprendemos e apreendemos o mundo.

É na relação dialética entre a leitura de mundo e a

leitura da palavra que construo e reconstruo significa-

dos. É na gostosura das brincadeiras e dos encontros

marcados entre esses dois tipos de “leituras” que me

“experiencio” no aprendizado de ler a palavra escrita.

Isso porque: o que é ler, senão construir signi-

ficados?

Se acreditamos que leitura é construção de sig-

nificados, o desafio que temos, então, em sala de

aula, é o de ensinar a ler sem realizar a dicotomia

Leitura na alfabetizaçãoPriscila Monteiro

Programa Crer para Ver/Fundação Abrinq/São Paulo

entre a leitura do mundo e a leitura da palavra. É

possibilitar que uma seja a continuidade da outra,

permitindo, assim, que a leitura da palavra seja a

leitura da “palavramundo”.

Outro aspecto importante da leitura é o apren-

dizado daquele que se exercita como leitor, a dialo-

gar com o texto. É por meio do exercício desse diálo-

go que se descobre a inter-relação existente entre

texto e contexto. Relação essa que, quando negada,

leva-nos a uma leitura não-crítica. Porém, quando

reconhecida, possibilita o aprendizado de tecer per-

guntas sobre o que se lê. É muito mais interessante

aprender a fazer perguntas sobre o texto lido do que

responder às perguntas do professor. Não é a habili-

tação à leitura que torna o aluno um leitor crítico; é

necessário o intercâmbio de idéias e de significados.

regionais e encontros nacionais.Anualmente o Programa Crer para Ver rea-

liza um seminário de divulgação das experiên-cias apoiadas e de prestação de contas à socie-dade e elabora publicações impressas eaudiovisuais como forma de sistematização dosprojetos e estímulo da comunicação entre eles.

Números.1 Desde 1995, são 142 os proje-tos apoiados, beneficiando 770 mil crianças,3.500 escolas em 21 estados (não temos proje-to em Sergipe, Maranhão, Roraima, Piauí, Dis-trito Federal e Rio Grande do Norte).

O protagonismo da comunidadeescolar

O Programa Crer para Ver acredita que a so-lução para os problemas de cada escola vem daprópria comunidade escolar. A comunidade es-

1 Números referentes a 18 de outubro de 2001, quando foi ministrada a palestra.

265

Leitura na alfabetizaçãoSIMPÓSIO 17

colar precisa se organizar para pensar nas suasnecessidades e possíveis soluções para elas.

Por isso, os projetos apoiados pelo Crerpara Ver, espalhados por todo o Brasil, dão umpanorama da escola pública brasileira.

De acordo com essa característica, o Pro-grama Crer para Ver tem como objetivos: ofe-recer à sociedade oportunidades concretas departicipação em ações que levem à sua pró-pria transformação, contribuindo para umaescola de qualidade; apoiar a iniciativa e acriatividade da comunidade escolar, assimcomo sua capacidade de diagnosticar os pró-prios problemas e apontar, ela mesma, as so-luções; financiar e apoiar tecnicamente pro-jetos que contribuam para melhorar as rela-ções de aprendizagem na Educação Infantil eno Ensino Fundamental das escolas da redepública, que sejam referências positivas paraa criação de políticas educacionais de boaqualidade; sistematizar, avaliar e divulgar ex-periências educacionais bem-sucedidas.

É importante ressaltar que a metodologiade cada projeto não é imposta pelo Progra-ma Crer para Ver, mas discutida com cadaproponente.

A leitura nos projetosapoiados pelo Crer para VerA escola tem a responsabilidade social de

ensinar significativamente os objetos de co-nhecimento. É sua responsabilidade ensinara ler e a escrever, assegurando uma amplagama de textos e de situações permanentes deleitura para que as crianças tenham a opor-tunidade de se transformar em leitores críti-cos de nossa cultura.

Um dos grandes problemas de nosso paísé garantir o letramento para todos os cida-dãos. Muitas crianças saem da escola alfabe-tizadas de forma precária ou não-alfabetiza-das. A impossibilidade de ler ou ler precaria-mente aprisiona e confina. Nega-se a essascrianças a ampliação dos limites, a possibili-dade de conhecerem novas realidades, do in-tercâmbio de idéias e de significados, de es-tabelecerem novos sentidos para a vida.

Ler não é decifrar. Ler é construir signifi-cados. Não é a habilitação à leitura que trans-forma uma pessoa num leitor crítico. É neces-sário o intercâmbio de idéias e de significados.

A leitura supõe um processo ativo de cons-trução de significados, um processo comple-xo de coordenação de informações de distin-tas naturezas, de reorganizações e ressig-nificações de saberes em jogo, em que o tex-to, o leitor e o contexto contribuem para acompreensão.

É por meio desse diálogo que se descobrea inter-relação existente entre texto e contex-to. Relação esta, que, negada, nos leva a umaleitura não-crítica. Porém, quando reconhe-cida, possibilita o aprendizado de tecer per-guntas sobre o que se lê. É muito mais inte-ressante aprender a fazer perguntas sobre otexto lido do que responder às perguntas doprofessor. Fazer perguntas quer dizer signifi-car o que se lê – no que este texto me toca,por que eu gosto ou não gosto dele, ao queele me remete, por que eu quero compartilhá-lo com os outros –, pois a mágica da leituranão está no livro nem no leitor. Está justa-mente na significação, no diálogo único quecada um estabelece com o livro.

No momento em que um leitor pega umlivro, traz vida a ele pois estabelece seus pró-prios sentidos.

A autonomia para escolher o que se querler, a possibilidade de identificação com o quese lê, passa, necessariamente, pela diversida-de e riqueza de um acervo de livros.

Mas ler o quê? A maioria de nossas esco-las só tem acesso a livros didáticos. O livro di-dático pede respostas fechadas, exclui a inter-pretação e, nesse sentido, exila o leitor.

Porém tampouco basta prover as escolasde acervos de livros; é necessário que os pro-fessores saibam trabalhar com eles.

A identificação com a leitura passa pelasensibilidade de cada um; portanto, para tra-balhar com leitura na escola, sem impor, maspropondo, é necessário que o professor tam-bém se identifique com a leitura. Por ser umprocesso de identificação pessoal, não se en-sina a gostar de ler.

Projetos apoiados2

Selecionamos alguns projetos apoiados peloPrograma Crer para Ver para exemplificar otema em questão:

• Lazer e Recreação Infantil: Círculo de Pais eMestres da Escola Estadual de 1º e 2º GrausModelo, Ijuí/RS. A introdução na oficina deleitura e a recuperação da pracinha infantilda escola estimulam a descoberta e a apren-dizagem infantis.

• Capacitação dos Professores Leigos paraAlfabetização do Projeto Seringueiro: Cen-tro dos Trabalhadores da Amazônia, RioBranco/AC. Na Amazônia, as lendas, casose histórias dos seringais viram livros a par-tir dos relatos de professores.

• Aprender a Ler Lendo: Associação de Pais eMestres da Escola Municipal “Bairro Planal-to”, Pato Branco/PR. Biblioteca circulanteleva livros às escolas, introduzindo criançasno mundo mágico da leitura.

• Oficinas de Leitura: Aprendendo a Gostar deLer: Centro de Cultura Luiz Freire, Olinda/PE. A partir da literatura infanto-juvenil, pro-fessores e alunos estão debatendo temas so-ciais e pedagógicos em Pernambuco.

Compartilhando significadosPor fim, gostaria de compartilhar com vocês

uma história do professor Noberto Sales TeneKaxinawa (projeto Uma Experiência de Autoriados Índios do Acre – Comissão Pró-Índio do Acre):

História do mundo

Vou escrever sobre a história do mundo nomeu pensamento quando eu era menino.

O mundo que eu pensava era que nem tocaia.

A Terra remendava com o céu.O Sol, eu pensava que eram muitos, passan-

do dias e dias. A noite, eu pensava que era que

nem fumaça, porque quando o Sol ia embora anoite vinha cobrir o mundo. O céu eu pensavaque era que nem ferro. Que nunca acaba.

A chuva eu pensava que era alguma pessoaque mora no céu e derramava água.

A água eu pensava que era alguns bichos

mijando, em cima do rio. Bichos: queixada, vea-do, anta.

O trovão eu pensava que era alguns bichos

grandes estourando em cima do céu.O homem, eu pensava que só nós mesmos

vivíamos, só nós o povo Kaxinawa.

A língua eu pensava que todo mundo só fa-lava a língua kaxinawa.

Um dia eu vi um branco chegando na nossa

casa falando diferente, mas pensei que eu che-gasse na casa dele ele ia falar kaxinawa.

Um dia fui viajar com meu pai para ver onde

estava a terra remendando com o céu. Fomosviajando e, no segundo dia de viagem, pergunteipara meu pai onde a Terra remendava com o céu.

Meu pai disse que não está remendando, não.Que o mundo é muito grande e não tem fim. Hojeem dia eu entendo isso mais ou menos. É estu-

dando Geografia que entendemos sobre a Terra,sobre seu movimento

Norberto Sales Tene Kaxinawa

2 Para saber mais sobre os projetos apoiados, consulte o site do Programa – <www.fundabrinq.org.br/crerparaver>

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SIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIO 1818181818

LETRAMENTOVera Masagão Ribeiro

Rosaura Soligo

268

ResumoA exposição tem como objetivo geral discu-

tir o conceito de letramento e suas implicações

pedagógicas. Para isso, discute-se, em primeiro

lugar, o surgimento do conceito de letramento,evidenciando a natureza interdisciplinar do cam-

po teórico em que é desenvolvido. Nesse campo,

o letramento se configura como um fenômenocultural complexo, com diversas implicações psi-

cológicas e sociais. Em segundo lugar, defende-

se que a apropriação desse conceito pelo campopedagógico encerra grandes potencialidades, à

medida que favorece o cotejo entre práticas es-

colares e práticas socioculturais, provocando odesenvolvimento curricular no sentido de con-

ferir maior relevância às aprendizagens escola-

res. Defende-se, por último, a posição de que oconceito de letramento pode ser o eixo condutor

do desenvolvimento curricular de toda a Educa-

ção Básica e que, portanto, as problemáticas neleenvolvidas não dizem respeito apenas a alfabeti-

zadores e professores de Português.

O conceito de letramento foi desenvolvi-do num campo teórico para o qual contribuí-ram diversas disciplinas das ciências huma-nas: a Sociologia, a História, a Antropologia,a Psicologia, a Lingüística e os Estudos Lite-rários. Mais recentemente, no Brasil, vem sen-do também apropriado pelo campo pedagó-gico, no qual ganha novas conotações, passan-do a ser referência principalmente para a re-flexão sobre práticas de alfabetização e deensino de língua.

A tese central que animou esse campo teó-rico na década de 1960 foi a de que a dissemi-nação da linguagem escrita na sociedade e suaaquisição por parte dos indivíduos tinham umimpacto crucial no desenvolvimento social epsicológico. Uma posição clássica nessa linha

é a de Jack Goody, antropólogo americano, queelaborou uma teoria segundo a qual a escritaseria um elemento-chave para diferenciar associedades ditas primitivas ou tradicionais dassociedades modernas ou históricas (Goody eWatt, 1968). Argumentava esse autor que o re-gistro do legado cultural por meio da escritapermitiu que as sociedades desenvolvessemsua consciência histórica, a autoconsciência,o pensamento crítico e científico, além daautonomização das instituições.

Um autor mais conhecido entre nós, brasi-leiros, que também assumiu essa perspectivano âmbito da Psicologia, foi Vygotsky. Combase em estudos realizados por Luria comcamponeses analfabetos, esse autor postulouque a aquisição da escrita promovia o desen-volvimento psicológico dos indivíduos, espe-cialmente no que se refere ao raciocínio lógi-co-científico (Vygotsky e Luria, 1993). Influen-ciados pelo materialismo dialético, tantoVygotsky quanto Luria reconheciam tambéma coletivização do trabalho, no contexto da re-volução soviética, como fator de desenvolvi-mento cognitivo. Mesmo assim, não deixaramde conferir um papel crucial à escolarização eà aquisição da escrita, o que se coaduna comsua teoria sobre o papel dos instrumentos sim-bólicos no desenvolvimento da psique huma-na. No âmbito dos estudos da linguagem, nãofaltaram também estudos que trataram de de-finir as características da linguagem escrita emcontraposição à linguagem oral, agregando ar-gumentos para os que postulavam o poder doregistro escrito de moldar o pensamento e acomunicação (Ong, 1993).

Esse tipo de otimismo em relação ao valorda escrita impulsionou diversas campanhas dealfabetização de adultos em todo o mundo e

O conceito de letramento esuas implicações pedagógicas

Vera Masagão Ribeiro

Ação Educativa/São Paulo

269

LetramentoSIMPÓSIO 18

sempre esteve presente nos discursos em prolda universalização da educação elementar. En-tretanto, não tardaram a surgir questionamen-tos a essa posição, baseados em estudos his-tóricos, antropológicos, psicológicos elingüísticos mais rigorosos. Demonstrou-se,por exemplo, com base em análises históricasde dados estatísticos, que as relações entre ní-veis de alfabetização e desenvolvimento eco-nômico ou decréscimo de taxas de natalidadeou criminalidade, para citar alguns exemplosde indicadores sociais, não eram nada linea-res e dependiam sempre de outros fatores so-ciais (Graff, 1994). No campo da Psicologia,Scribner e Cole (1981) demostraram que o tipode habilidade cognitiva que até então se atri-buíra ao aprendizado da escrita era, de fato,resultado da escolarização de tipo ocidental.O inglês Brian Street (1993) elaborou uma dasmais contundentes críticas a essa visão deletramento, segundo a qual a escrita encerra-ria em si o poder de transformar as pessoas eas sociedades. Ele denominou essa perspecti-va sobre o letramento de modelo autônomo e,em contraposição, propôs o modelo ideológi-co, que compreende o letramento como fenô-meno cultural complexo, cujos efeitos estãorelacionados aos contextos sociais em que serealiza.

Desse modelo emerge o interesse pela di-versidade das práticas culturais relacionadasà escrita: passa-se então a falar em “letra-mentos”. Além de Scribner, Cole e de Street,que estudaram o letramento em sociedadestradicionais, Shirley Heath (1996) realizou pes-quisas interessantes em segmentos da socie-dade americana, demonstrando que, ao ladodas práticas escolares – normalmente tomadascomo padrão único para a análise do fenôme-no do letramento –, existiam outras modalida-des de uso social da escrita, às quais estavamassociadas outras habilidades cognitivas, ou-tros modos de relação entre os participantesda interlocução e desses com o texto, outrasrepresentações e atitudes por parte dos leito-res e escritores.

Outro resultado das críticas ao modelo au-tônomo de compreensão do letramento foi arelativização da dicotomia rígida entre

oralidade e escrita e um crescente interessepelo tema dos gêneros textuais. O conceito degênero aparece como mais apropriado para aanálise das diferentes práticas sociais nas quaisa linguagem escrita participa, implicando mo-dos específicos de se posicionar na situaçãodiscursiva. Evidencia-se, por exemplo, que cer-tos gêneros orais, tais como essa exposição quefaço agora, têm muitos elementos em comumcom o gênero ensaístico escrito, enquanto umacarta pessoal guarda muitas das característi-cas de uma conversa entre amigos.

David Olson (1997) sintetiza bastante bemessa mudança de perspectiva verificada nos es-tudos sobre o letramento, expressando a posi-ção de que não importa tanto o que a escritafaz com as pessoas, mas, sim, o que as pessoasfazem com a escrita.

Mas que implicações esse desenvolvimen-to teórico em torno do conceito de letramentopode ter para as práticas pedagógicas? Antesde tentar responder diretamente a essa per-gunta, vale a pena fazer uma retomada sinté-tica das múltiplas dimensões que o conceitoabarca. Para isso, é útil adotarmos a análiseproposta por Magda Soares (1998), que distin-gue basicamente duas dimensões doletramento: a individual e a social. A dimen-são individual diz respeito à posse individualde capacidades relacionadas à leitura e à es-crita, que incluem não só a habilidade dedecodificação de palavras, mas um amplo con-junto de habilidades de compreensão e inter-pretação, como, por exemplo, estabelecer re-lações entre idéias, fazer inferências, reconhe-cer linguagem figurada, combinar informaçãotextual com informação extratextual etc. Taishabilidades podem ainda ser aplicadas a umaampla gama de textos. A dimensão social doletramento diz respeito às práticas sociais queenvolvem a escrita e a leitura em contextosdeterminados. O que está em jogo, nesse âm-bito, são os objetivos práticos de quem utilizaa leitura e a escrita, as interações que se esta-belecem entre os participantes da situaçãodiscursiva, as demandas que os contextos so-ciais colocam, as representações e os valoresassociados à leitura e a escrita que um deter-minado grupo cultural assume e dissemina.

270

As pesquisas na área vêm enfocando umaou outra dessas dimensões e ainda, dentro deuma delas, uma infinidade de aspectos espe-cíficos. Quando se trata de estabelecer parâ-metros para a prática alfabetizadora, entre-tanto, é fundamental buscar as conexões en-tre essas duas dimensões, pois o fazer peda-gógico consiste exatamente na orientação sis-temática do desenvolvimento de indivíduosno sentido de sua inserção num contextosociocultural específico. No caso da educaçãoescolar própria das sociedades letradas, esseprojeto consiste prioritariamente na capaci-tação dos indivíduos para transitar, com al-gum nível de autonomia, nesse contexto ca-racterizado pelo uso intenso e diversificadoda linguagem escrita.

Este é, sem dúvida, o aspecto crucial dasimplicações pedagógicas do conceito deletramento: ele nos convida a refletir sobre ograu de autonomia que as práticas escolarestêm podido promover por meio da alfabetiza-ção inicial e, posteriormente, por meio do en-sino das disciplinas curriculares. Tradicional-mente, a educação escolar concentrou-se nodesenvolvimento de um conjunto delimitadode habilidades de leitura e escrita: na alfabeti-zação inicial, o foco eram os mecanismos decodificação e decodificação de letras, sílabase palavras. O professor de Português seguiacom o treino da ortografia, fluência da leituraem voz alta e, finalmente, compreensão e in-terpretação de textos principalmente narrati-vos e literários. Os professores das demais dis-ciplinas, por sua vez, apesar de fazerem usointenso de textos didáticos para ensinar e ava-liar os conteúdos, não focalizavam os proces-sos de leitura propriamente ditos.

Esse tipo de prática escolar não produziuos resultados esperados em um grande núme-ro de alunos: eles não adquiriam o hábito daleitura, não se tornavam leitores e escritoresautônomos, não conseguiam utilizar, com efi-ciência, a leitura como meio de aprender osdemais conteúdos escolares nem a escritapara demonstrar as aprendizagens realizadas.Essa crise do ensino da leitura ficou mais pa-tente à medida que chegavam à escola alunosoriundos de famílias com baixo grau de

letramento, que não podiam contar com oambiente familiar para sua socialização nacultura da escrita.

Ao evidenciarem que não é a aprendizagemda linguagem escrita em si que transforma aspessoas, mas, sim, os usos que elas fazem des-se instrumento, os estudos sobre o letramentoabrem novas perspectivas para a reflexão crí-tica sobre o papel da escola e também para odesenvolvimento de práticas pedagógicas querespondam com mais eficiência às demandassociais relativas ao letramento. Esses estudosconvidam a escola a refletir sobre os gênerostextuais que circulam no meio social, sobre osdiversos usos sociais da leitura e da escrita etambém sobre as habilidades cognitivas, ati-tudes e valores neles implicados. Convidam,ainda, a uma a análise das inter-relações entreoralidade e escrita e entre o letramento e ou-tras esferas da cultura.

A preocupação de que a escola trabalhe commaior diversidade de gêneros textuais já apare-ce plasmada nas orientações curriculares e noscritérios de avaliação dos livros didáticos que seimplantaram recentemente em nosso país (MEC,1997). Essa orientação é especialmente valiosapara alunos oriundos de ambientes familiarespouco letrados, que podem encontrar na escolaoportunidade única de se familiarizarem comsuportes de escrita, tais como, por exemplo, re-vistas, jornais, sites de internet, livros outros alémdos didáticos, com toda a diversidade de gêne-ros que neles figuram.

Com relação à diversidade de usos sociaisda escrita, às habilidades cognitivas e aos con-teúdos culturais a eles associados, há ainda umcampo enorme de pesquisa e experimentaçãoa ser explorado pelos educadores. Em estudosobre o letramento realizado com a populaçãopaulistana, identificamos quatro domíniosatitudinais relacionados ao uso da leitura e daescrita no cotidiano de pessoas jovens e adul-tas: a expressão da subjetividade, o planeja-mento e controle, a busca de informação e aaprendizagem. O domínio da subjetividade dizrespeito à leitura e escrita de cartas, diários,livros religiosos ou de auto-ajuda, atividadesnas quais o que está em jogo é expressar a pró-pria experiência e evocar sentimentos ou fé.

271

LetramentoSIMPÓSIO 18

Trata-se de usos que mesmo pessoas com bai-xo grau de escolarização realizam em algumamedida em seu cotidiano. Já a utilização da lin-guagem escrita para planejar e controlar pro-cedimentos é a dominante no universo do tra-balho e das organizações sociais. Podem sertomados como exemplos desse domínio des-de o ato de fazer uma lista de compras até es-tratégias mais complexas de controle de pro-cessos coletivos, tais como a contabilidade deuma empresa, o plano de um curso etc.

Esses são usos da escrita que muitas pes-soas fazem, lidando com textos de complexi-dade variável, dependendo do grau de exigên-cia das atividades, da maior ou menor neces-sidade de planejamento e possibilidade decontrole das atividades pelo próprio indivíduo.Finalmente, a utilização da linguagem escritapara se informar, tanto para orientar a açãoimediata como para atualizar-se e formar opi-nião sobre assuntos públicos, é prática restri-ta a pessoas com níveis mais altos de escolari-zação, assim como o ler para aprender, paraadquirir novos corpos de conhecimento. Pu-demos observar que esses usos da linguagemescrita exigem atitude específica do leitor di-ante do texto: postura analítica, disponibilida-de para examiná-lo e retomá-lo na busca deinformações e relações específicas, interessepelo cotejo objetivo entre as idéias expressasno texto e os conhecimentos prévios do leitor.

Essa tipologia parece útil para analisarmosaté que ponto a escola oferece as oportunida-des para as pessoas se desenvolverem em cadaum desses domínios. Quais são as oportunida-des de expressão de subjetividade e, principal-mente, quais são as oportunidades dadas aosestudantes de planejar e controlar algo nos es-paços escolares? Certamente, serão muito limi-tadas se a aprendizagem dos conteúdos é pra-ticada, dominantemente, como uma atividaderepetitiva, controlada pelo livro didático ou peloprofessor. Mesmo a leitura realizada para apren-der ou informar não é suficientemente tratadado ponto de vista pedagógico, embora sejamessas duas funções da leitura as dominantes nocontexto escolar. Professores das diversas dis-ciplinas quase sempre partem do princípio deque, tendo aprendido a decodificar as palavras

e oralizar o texto com certa fluência, o alunoestá pronto para utilizar esse instrumento paraaprender os conteúdos das ciências e encontrarinformações em quaisquer tipos de texto. Ora,o estudo mencionado acima e outros que foca-lizam a temática (Kleiman, 1989) mostramquantas habilidades cognitivas específicas edisposições detêm aqueles que normalmente seservem da escrita para aprender ou informar-se, conservando o interesse por aprender e seinformar após o período da escolarização. É pre-ciso que todos os professores estejam consci-entes de que a capacidade de ler para buscarinformação e aprender com autonomia é nor-malmente resultado de um investimento edu-cativo alongado, que pode durar toda a Educa-ção Básica ou ainda a educação superior, quan-do se requer um maior grau de aprofundamen-to e especialização.

Uma proposta pedagógica que certamen-te abre um amplo leque de possibilidades deaproximar as práticas escolares dos usos daescrita mais relevantes socialmente é ametodologia dos projetos. Envolvidos numaproposta dessa natureza, alunos e professo-res são incitados a estabelecer um projeto deconstrução de conhecimento ou intervenção,definir produtos esperados e um plano parachegar a eles. O livro Leitura e interdiscipli-naridade, de Angela Kleiman e Silvia Morais(1999), ilustra o potencial dessa metodo-logia, focalizando especialmente a leitura detextos jornalísticos como base de exploraçãodas relações entre as disciplinas, entre dife-rentes textos escolares e não-escolares quedevem compor o universo de um leitor au-tônomo e criativo, com maiores possibilida-des de utilizar suas aprendizagens para alémdos muros da escola. As autoras destacam apresença, nas revistas e jornais, de diversosrecursos comunicativos e fontes de informa-ção, que ampliam o universo de relações pos-síveis e dão lugar a experiências com muitosmodos de ler e escrever.

Um último aspecto que os estudos sobreo letramento destacam e que as práticas pe-dagógicas podem tratar de modo mais produ-tivo é o da relação entre a oralidade e a escri-ta. Muitos alunos jovens e adultos, ao

272

reavaliarem a sua passagem pelo Ensino Fun-damental, destacam ganhos relativos à capa-cidade de comunicação oral entre os princi-pais benefícios que a escola lhes trouxe, por-que, mesmo sem intervenção mais sistemáti-ca sobre o desenvolvimento da oralidade, aescola promove ocasiões de fala em contex-tos públicos ou de trabalho coletivo, quasesempre permeados por referências a textosescritos, que certamente ampliam os recur-sos expressivos dos alunos. Esse desenvolvi-mento da oralidade, por sua vez, apóia oaprendizado da leitura e da escrita, possibili-tando a partilha do trabalho de compreensãoe interpretação da palavra escrita, principal-mente por meio do comentário oral.

Não circunscrito aos problemas da alfabe-tização ou do ensino de línguas, portanto, oprocesso de letramento, ou seja, de apropria-ção da linguagem escrita como ferramenta depensamento e comunicação, pode ser tomadocomo o vetor principal do currículo de toda aEducação Básica. A leitura direcionada para aexploração das relações intertextuais presta-secomo base comum para o tratamento interdis-ciplinar dos temas, para o desenvolvimento deprojetos de ensino e aprendizagem que favo-reçam a formação dos alunos não só como lei-tores e escritores autônomos, mas tambémcomo sujeitos criativos e aptos a formulareme realizarem seus projetos de vida.

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273

LetramentoSIMPÓSIO 18

Um pouco de históriaO modelo escolar de alfabetização1 nasceu

há pouco mais de dois séculos, precisamenteem 1789, na França, após a Revolução France-sa. A partir de então,

[...] crianças são transformadas em alunos,

aprender a escrever se sobrepõe a aprender a

ler, ler agora se aprende escrevendo – até esse

período, ler era uma aprendizagem distinta e

anterior a escrever, compreendendo alguns

anos de instrução através do ensino individua-

lizado. É, então, no jogo estabelecido pela Re-

volução entre a continuidade e a descontinui-

dade do tempo, onde a ruptura vai sendo atro-

pelada pela tradição, que a alfabetização se tor-

na o fundamento da escola básica e a leitura/

escrita, aprendizagem escolar. (Barbosa, s. d.)2

Analisando a evolução da investigação e dodebate em relação à alfabetização escolar noséculo XX, é possível definir, em linhas gerais,três períodos.

O primeiro período corresponde, aproxi-madamente, à primeira metade do século,quando a discussão dava-se estritamente noterreno do ensino. Buscava-se o melhor “mé-todo” para ensinar a ler, com base na suposi-ção de que a ocorrência de fracasso se relacio-nava com o uso de métodos inadequados. Adiscussão mais candente travou-se entre osdefensores do método global e os do métodofonético.3 No Brasil, essa discussão caiu em

O direito de se alfabetizar na escola*

Rosaura Soligo

PROFA/MEC

desuso a partir da difusão do método que, naépoca, foi identificado como “misto” – nadamais que nossa conhecida cartilha, baseadaem análise e síntese e estruturada a partir deum silabário.

O segundo momento, cujo pico foi nos anos1960, teve por centro geográfico os EstadosUnidos. A discussão das idéias sobre alfabeti-zação foi levada para dentro de um debatemais amplo, em torno da questão do fracassoescolar. A luta contra a segregação dos negros,com a conseqüente batalha por sua integraçãonas escolas americanas, contribuiu para quese tornassem mais explícitas as dificuldadesescolares dessas minorias. Muito dinheiro foiinvestido em pesquisas para tentar compreen-der o que havia de errado com as crianças quenão aprendiam. Buscava-se no aluno a razãode seu próprio fracasso.

São desse período as teorias que hoje cha-mamos “teorias do déficit”. Supunha-se quea aprendizagem dependeria de pré-requisitos(cognitivos, psicológicos, perceptivo-moto-res, lingüísticos…) e que certas crianças fra-cassavam por não disporem dessas habilida-des prévias. O fato de o fracasso concentrar-se nas crianças das famílias mais pobres eraexplicado por uma suposta incapacidade deas próprias famílias proporcionarem estímu-los adequados.

Baterias de exercícios de estimulação fo-ram criadas como “remédio” para o fracasso,como se ele fosse uma doença. Essa aborda-

* Este texto é um fragmento do documento Apresentação do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, desenvolvido, em todo opaís, pelo Ministério da Educação, em parceria com Secretarias de Educação e Universidades, a partir de 2001.

1 Embora o termo “alfabetização” tenha diferentes sentidos, neste documento ele está usado com o significado de “processo de ensino eaprendizagem do sistema alfabético de escrita”, ou seja, o processo de ensino e aprendizagem inicial de leitura e escrita.

2 A referência é apenas ao Ocidente: Europa e Américas do Norte e do Sul.

3 O método global ou analítico defendia que o melhor era oferecer ao aluno a totalidade, ou seja, palavras, frases ou pequenos textos, para queele fizesse uma análise e chegasse às partes, que são as sílabas e letras. O método fonético ou sintético, ao contrário, propunha que o alunoaprendesse primeiro as letras ou sílabas e o som delas para depois chegar à palavra ou frase.

274

gem, que já se anunciava no teste ABC, de Lou-renço Filho – um conjunto de atividades paraverificar e, principalmente, medir a “maturida-de” que a ciência de então supunha necessáriaà alfabetização bem sucedida –, teve muita in-fluência no Brasil. Nos anos 1970, foi largamen-te difundida a idéia de que, no início da escola-ridade, toda criança deveria passar pelos exer-cícios conhecidos como “prontidão” (do inglês,readiness) para a alfabetização. Seria uma es-pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-felizmente, era inócua.

O terceiro período começa em meados dosanos 1970, sendo marcado por uma mudançade paradigma. O desenvolvimento da investi-gação nessa área mudou radicalmente seuenfoque, suas perguntas. Em lugar de procurarcorrelações que explicassem o déficit dos quenão conseguiam aprender, começou-se a ten-tar compreender como aprendem os que con-seguem aprender a ler e a escrever sem dificul-dade e, principalmente, o que pensam a respei-to da escrita os que ainda não se alfabetizaram.

Um trabalho de investigação que desenca-deou intensas mudanças na maneira de os edu-cadores brasileiros compreenderem a alfabeti-zação foi o coordenado por Emilia Ferreiro e AnaTeberosky (1985). A partir dessa investigação, foinecessário rever as concepções nas quais seapóia a alfabetização. Isso tem demandado umatransformação radical nas práticas de ensino daleitura e da escrita no início da escolarização, ouseja, na didática da alfabetização. Já não é maispossível conceber a escrita exclusivamente comoum código de transcrição gráfica de sons, já nãoé mais possível desconsiderar os saberes que ascrianças constroem antes de aprender formal-mente a ler, já não é mais possível fechar os olhospara as conseqüências provocadas pela diferen-ça de oportunidades que marca as crianças de

diferentes classes sociais. Portanto, já não sepode mais ensinar como antes.

[...] as mudanças necessárias para enfrentar so-

bre bases novas a alfabetização inicial não se

resolvem com um novo método de ensino, nem

com novos testes de prontidão, nem com novos

materiais didáticos. É preciso mudar os pontos

por onde nós fazemos passar o eixo central das

nossas discussões. Temos uma imagem

empobrecida da língua escrita: é preciso

reintroduzir, quando consideramos a alfabetiza-

ção, a escrita como sistema de representação da

linguagem. Temos uma imagem empobrecida da

criança que aprende: a reduzimos a um par de

olhos, um par de ouvidos, uma mão que pega

um instrumento para marcar e um aparelho

fonador que emite sons. Atrás disso há um su-

jeito cognoscente, alguém que pensa, que cons-

trói interpretações, que age sobre o real para

fazê-lo seu. (Ferreiro e Teberosky, 1985)

A alfabetizaçãoe o fracasso escolarInfelizmente, não é injusto afirmar que, ao

longo da história, a escola brasileira tem fracas-sado em sua tarefa de garantir o direito de to-dos os alunos à alfabetização. Em um primeiromomento, porque o acesso à escola não estavaassegurado a todos; depois, porque, mesmocom a democratização do acesso, a escola nãoconseguiu – e ainda não consegue – ensinar efe-tivamente todos os alunos a ler e escrever, es-pecialmente quando provêm de grupos sociaisnão letrados.

Desde a época em que as estatísticas estãodisponíveis, é possível constatar que aproxima-damente metade das crianças que entra na 1ªsérie do Ensino Fundamental é reprovada nofinal do ano, como indica a tabela abaixo.

1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997* 1998*

41,8% 47% 46% 49% 51% 51% 51% 50% 53% 53% 58% 65% 68,7%

Fonte: IBGE – Inep. * Nos anos de 1997 e 1998 algumas secretarias de Educação passaram a adotar o sistema de ciclos, previsto na Leide Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Taxa de aprovação ao final da 1ª série do Ensino Fundamental

275

LetramentoSIMPÓSIO 18

O fato é que, há muito tempo, os índices defracasso escolar na alfabetização são inaceitá-veis e as medidas tomadas no âmbito dos siste-mas públicos não têm contribuído para trans-formar esse quadro de forma significativa. Atabela anterior parece indicar que é completa-mente falsa a crença de que “antigamente to-dos aprendiam na escola”. Desde 1956, com es-tatísticas mais precisas a respeito dos índicesde promoção e retenção na escola pública bra-sileira, constata-se que os alunos reprovados(ou “retidos”, como se preferiu chamar anosdepois) já representavam mais da metade dototal – e isso sem contar o grande número decrianças brasileiras que nem freqüentava a es-cola.

A falta de explicações para as causas do fra-casso da escola em alfabetizar todos os alunosfez com que essa responsabilidade, direta ouindiretamente, fosse a eles atribuída (à sua su-posta incapacidade de aprender e e/ou às suasperversas condições de vida). Apesar de todasas razões sociais e políticas para não se deposi-tar a responsabilidade pelo fracasso apenas noaluno, as teorias do déficit cognitivo e/ou da“carência cultural” acabaram por consolidar acrença de que a possibilidade de os indivíduosaprenderem teria direta relação com a sua con-dição econômica, social e cultural.

Em oposição a uma concepção de escola“conteudista”, ou seja, preocupada, acima detudo, com a transmissão de conteúdos escola-res, foi se configurando uma concepção – e vá-rias experiências – de uma escola transforma-dora, progressista. Mas, infelizmente, nem as-sim se conseguiu garantir a todos os alunos odireito de desenvolver diferentes capacidadesna escola, o que, evidentemente, pressupõeaprender a ler e a escrever.

Com isso, consolidou-se progressivamenteuma cultura escolar da repetência, da reprova-ção, que acabou por ser aceita como um fenô-meno natural. O país foi se acostumando como fato de cerca de metade de suas crianças nãose alfabetizar ao término do primeiro ano deescolaridade no Ensino Fundamental.

Essa cultura teve uma enorme influência nouniverso de representações que os educadoresforam construindo sobre o fracasso escolar e

sobre os alunos que fracassam, bem como nasua relação com eles: freqüentemente, essasrepresentações expressam-se em falta de con-fiança nas reais potencialidades que eles têmpara as aprendizagens de um modo geral. Se éverdade que esses alunos chegam à escola semmuita intimidade com os usos sociais da escri-ta e com os textos escritos, também é verdadeque eles trazem um repertório de saberes queas crianças e jovens de classe média e alta nãopossuem, saberes que não são valorizados enem validados do ponto de vista pedagógico.Todo aluno tem direito a uma educação escolarque, pautada no princípio da eqüidade, garan-ta o conhecimento necessário para que desen-volva suas diferentes capacidades – uma edu-cação que não acentue as diferenças provocadaspela desigualdade de oportunidades sociais eculturais, que não as tome, sob nenhum pretex-to, como diferenças relacionadas às suas possi-bilidades de aprendizagem. Não se pode espe-rar que os alunos iniciem a escolaridade saben-do coisas que nunca tiveram a chance de apren-der: quando eles não sabem o que se espera, épreciso ensiná-los.

Por que é tão difícilalfabetizar todos os alunos?A análise de quem são os alunos que a esco-

la não tem conseguido alfabetizar ao longo dosanos (em geral, 50%) indica que não se trata deuma metade qualquer, aritmeticamente neutra:essa metade é formada, majoritariamente, pe-los mais pobres. E por que seria mais difícil al-fabetizar esses alunos?

Como se sabe, até vinte anos atrás, profes-sores, especialistas e pesquisadores se empe-nhavam em tentar compreender o que havia deerrado com esses alunos, em descobrir por queeles não aprendiam. A compreensão dos pro-cessos pelos quais se aprende a ler e a escrever,possível somente a partir das últimas duas dé-cadas, foi fundamental para que se deixasse deolhar para as crianças das classes popularescomo se não pertencessem à raça humana. Sim,porque até então um dos raros consensos entreos estudiosos brasileiros acerca dessa questãoera: o que servia para ensinar as crianças de

276

classe média e alta não servia para as criançaspobres. Acreditava-se que os processos deaprendizagem das diferentes classes sociais se-riam decididamente diferentes, e isso explica-ria desempenhos tão díspares.

No entanto, a descrição psicogenética doprocesso de alfabetização mostrou que o pro-cesso pelo qual se aprende a ler e escrever é omesmo, em linhas gerais, para indivíduos dediferentes classes sociais – inclusive, tanto paracrianças como para adultos. A aparente diferen-ça é conseqüência da diferença no repertóriode conhecimentos prévios, que faz que os alu-nos pobres cheguem à escola geralmente emfase menos avançada do processo, o que lhesdificulta a assimilação de certas informações.

Se antes se acreditava que o fundamentalpara alfabetizar os alunos era o treino de deter-minadas habilidades – memória, coordenaçãomotora, discriminação visual e auditiva, noçãode lateralidade –, a recente pesquisa sobre aaprendizagem da leitura e da escrita mostrouque a alfabetização (como tantas outras apren-dizagens) é fruto de um processo de constru-ção de hipóteses; que esse não é um conteúdosimples – ao contrário, é extremamente com-plexo – e demanda procedimentos de análisetambém complexos por parte de quem apren-de; que, por trás da mão que escreve e do olhoque vê, existe um ser humano que pensa e, porisso, se alfabetiza.

Hoje sabemos que, no processo de alfabeti-zação, as crianças e adultos – independente-mente da classe social a que pertencem e daproposta de ensino do professor – formulamhipóteses muito curiosas, mas também muitológicas. Progridem de idéias bastante primiti-vas pautadas no desconhecimento da relaçãoentre fala e escrita para idéias surpreendentessobre como seria essa relação: alguns preocu-pados com a quantidade de letras, outros coma qualidade das letras, outros em conflito coma coordenação entre quantas e quais letras seusam para escrever.4

Depois de uma longa trajetória de reflexãoa respeito dessas questões, finalmente é possí-vel compreender a natureza da relação entrefala e escrita, desvendando o mistério que ofuncionamento da escrita representa para to-dos os analfabetos, quando se alfabetizam, nosentido estrito da palavra.

E por que, então, os alunos pobres custammais a conquistar a condição de alfabetizados,se nada deixam a desejar do ponto de vista dacapacidade intelectual? O que têm a menos queos demais? Em geral, esses alunos começam tar-diamente a pensar sobre a escrita e desenvol-vem procedimentos de análise desse objeto deconhecimento muito depois das crianças declasse média e alta.

São as situações de uso da leitura e da es-crita e o valor que se dá a essas práticas sociaisque configuram um ambiente alfabetizador, umcontexto de letramento e um espaço de refle-xão sobre como funcionam as coisas no mundoda escrita: os materiais em que se lê, as situa-ções em que se escreve e se lê, a forma como osadultos lêem e escrevem, a direção da escrita eda leitura em nossa língua (da esquerda para adireita), como se escrevem os nomes das pes-soas queridas, quantas e quais letras se colocampara escrever, por que há mais letras do queparece necessário nos textos escritos, o que estáescrito aqui e ali, que letra é essa, como se lêessa escrita, e assim por diante.

Enquanto as crianças de classe média e altapassam a primeira infância aprendendo coisasdesse tipo, em suas casas, com seus pais, tios eavós, as crianças pobres estão aprendendo oque seria impensável a uma criança pequena declasse média e alta: cozinhar para os irmãosmenores, dar banho sem derrubá-los, acordarde madrugada para ir trabalhar na roça ou narua, vender objetos nos semáforos. As primei-ras ocupam seu tempo desenvolvendo proce-dimentos que as farão se alfabetizar muito cedo;as últimas, por sua vez, estão desenvolvendoprocedimentos que permitem sua sobrevivên-

4 Quando ainda não tinha sido possível conhecer as razões de os alunos terem essas idéias e escritas estranhas, dizia-se que eles eramportadores de “dificuldade de aprendizagem”. Os índices desses “distúrbios” chegavam a 30%, segundo os especialistas. Depois que se pôdecompreender o que acontecia com os alunos ainda não alfabetizados e que revelavam as suas hipóteses, esses percentuais caíram muitíssimo,oscilando de 1% a 3%, segundo os mesmos especialistas (Cadernos Idéias, n. 2 e 19, FDE-SEE/SP, 1989 e 1993, respectivamente).

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LetramentoSIMPÓSIO 18

cia como crianças pobres que são. O repertóriode saberes é outro, é outra a bagagem de vida,como se dizia há algum tempo.

Em outras palavras, as crianças pobres nãoaprendem a ler e a escrever aos seis ou sete anospela mesma razão que as outras não aprendema cozinhar, lavar, passar, cuidar da casa, carpiro roçado, desviar-se dos carros na rua, porquea vida exige delas coisas muito diferentes e lhesoferece oportunidades de aprendizagem mui-to diferentes.

Quando a escola não valoriza os saberes queos alunos pobres trazem, fruto de sua experi-ência anterior, faz que eles se sintam entrandoem novo mundo, estranho e hostil. Por não po-derem corresponder ao que os professores es-peram deles e percebendo que frustram as ex-pectativas da escola, é de se esperar que aca-bem se sentindo incapazes. Respeitar e, de fato,considerar as diferenças, valorizar os saberesque os alunos possuem e criar um contexto es-colar favorável à aprendizagem não são apenasvalores de natureza ética: são a base de um tra-balho pedagógico comprometido com o suces-so das aprendizagens de todos.

Uma cultura escolar centradano direito de aprenderNas duas últimas décadas, a pesquisa a res-

peito dos processos de aprendizagem da leitu-ra e da escrita vem comprovando que a estraté-gia necessária para um indivíduo se alfabetizarnão é a memorização, mas a reflexão sobre aescrita. Essa constatação pôs em xeque umaantiga crença, na qual a escola apoiava suas prá-ticas de ensino, e desencadeou uma revoluçãoconceitual, uma mudança de paradigma. Esta-mos agora passando por esse momento, com asvantagens e os prejuízos que caracterizam umperíodo de transição, de transformação de idéi-as e de práticas cristalizadas ao longo de mui-tos anos.

Mas, se não é por um processo de memo-rização, como funciona o aprendizado da lei-tura e da escrita?

Em primeiro lugar, é preciso considerar quealguns conteúdos escolares são, de fato, apren-didos por memorização. Tudo o que não requer

construção conceitual, por ser de simples assi-milação, depende da memorização de informa-ções: nomes em geral (das letras, por exemplo),informações e instruções simples (como, “emportuguês, escrevemos da esquerda para a di-reita”), respostas a adivinhações, números detelefone, endereços.

O grande equívoco, no qual a concepção tra-dicional de ensino e aprendizagem se apoiounas últimas décadas, consiste em acreditar queos conteúdos escolares de modo geral sãoaprendidos por memorização. Não são, hojesabemos.

Para aprender a ser solidário, a trabalhar emgrupo, a respeitar o outro, a preservar o meioambiente, a gostar de ler e escrever é precisovivenciar situações em que essas ações repre-sentam valores. Não adianta memorizar infor-mações, como a de que é preciso ser solidário,respeitar os outros, dar importância à leitura eà escrita. Isso pouco representa, pois a consci-ência de quais atitudes são necessárias e ade-quadas não garante que elas existam.

Para aprender a interpretar textos, redigirtextos e refletir sobre eles e sobre a escrita con-vencional, não basta memorizar definições eseqüências de passos a serem desenvolvidos. Épreciso exercitar essas atividades com freqüên-cia para chegar a realizá-las com habilidade edesenvoltura. Procedimentos – quaisquer pro-cedimentos – são aprendidos com o uso.

Para aprender conceitos e princípios com-plexos – como é o caso do sistema alfabético deescrita –, ou seja, para se alfabetizar, não bastamemorizar infinitas famílias silábicas. Proporque se aprenda a ler e escrever dessa forma sig-nifica tratar um conteúdo de alto nível de com-plexidade como se fosse uma informação sim-ples, que supostamente poderia ser assimiladacom facilidade apenas pela memorização.

A compreensão das regras de geração do sis-tema de escrita em português depende de umprocesso sistemático de reflexão a respeito desuas características e de seu funcionamento.Quer dizer: para se alfabetizar, o indivíduo pre-cisa aprender a refletir sobre a escrita (um pro-cedimento complexo, que requer exercício),além de compreender o funcionamento do sis-tema alfabético da escrita (um conteúdo tam-

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bém complexo, cujo aprendizado requer a cons-trução de interpretações sucessivas, que se su-peram umas às outras).

Portanto, a afirmação de que se aprende aler e escrever lendo e escrevendo textos nãoquer dizer que se trata de um processo simples,como o enunciado pode enganosamente suge-rir. Aprender a ler e escrever lendo e escreven-do requer um conjunto de procedimentos deanálise e de reflexão sobre a escrita – um objetode conhecimento que, por suas característicase seu funcionamento, exige alto nível de elabo-ração intelectual por parte do aprendiz, seja elecriança ou adulto.

Para poder ler textos quando ainda não sesabe ler convencionalmente, é preciso utilizaro conhecimento de que se dispõe sobre o valorsonoro convencional das letras e ter informa-ções parciais acerca do conteúdo do texto, po-dendo assim fazer suposições a respeito do quepode estar escrito. Em outras palavras, é preci-so utilizar simultaneamente estratégias de lei-tura que implicam decodificação, seleção, an-tecipação, inferência e verificação e, em algunscasos, ajustar o conteúdo que se sabe de cor aoque está escrito.

Para poder escrever textos, quando aindanão se sabe escrever, é preciso escolher quantase quais letras utilizar e, se a proposta for escre-ver junto com um colega que faz outras opçõesde uso das letras, refletir a respeito de escolhasdiferentes para as mesmas necessidades.

Para poder interpretar a própria escrita (lero que escreveu), quando ainda não se sabe ler eescrever, é preciso justificar as escolhas feitas,para si mesmo e para os outros, com todas asexplicações que isso demanda: por que sobramletras, por que elas parecem estar fora de ordem,por que parece estar escrito errado conformeseu próprio critério etc.

Como se pode ver, nada há de fácil ao se al-fabetizar lendo e escrevendo textos, como tam-bém nada há de fácil (aliás, é seguramente mui-to mais difícil) ao se alfabetizar memorizandosílabas: em ambos os casos, trata-se de umaaprendizagem complexa.

O desafio consiste em organizar as propos-tas didáticas de alfabetização a partir do quehoje se sabe sobre as formas de aprender a lín-

gua. Não basta ensinar aos alunos as caracte-rísticas e o funcionamento da escrita, pois, em-bora fundamental, esse tipo de conhecimento,por si só, não os habilita para o uso da lingua-gem em diferentes situações comunicativas. Enão basta colocá-los na condição de protago-nistas das mais variadas situações de uso da lin-guagem, pois o conhecimento sobre as carac-terísticas e o funcionamento da escrita não de-corre naturalmente desse processo. Em outraspalavras, isso significa dizer que é preciso pla-nejar o trabalho pedagógico de alfabetização,articulando as atividades de uso significativo dalinguagem com as atividades de reflexão sobrea escrita. Isso significa dizer que a alfabetiza-ção – tomada como aprendizagem inicial da lei-tura e escrita – deve ocorrer em contextos deletramento que potencializem o domínio da lin-guagem.

É a resposta ao desafio de promover, aomesmo tempo, um processo de alfabetizaçãoe de letramento que pode conferir eficácia aoensino nas séries iniciais, instaurando umacultura escolar centrada no direito à apren-dizagem.

Para assegurar aos alunos seu direito deaprender a ler e escrever, é indispensável queos professores tenham assegurado seu direitode aprender a ensiná-los. Cabe às instituiçõesformadoras a responsabilidade de preparartodo professor que alfabetiza crianças, jovens eadultos para:

• encarar os alunos como pessoas que preci-sam ter sucesso em suas aprendizagens parase desenvolverem pessoalmente e para te-rem uma imagem positiva de si mesmos,orientando-se por esse pressuposto;

• desenvolver um trabalho de alfabetizaçãoadequado às necessidades de aprendizagemdos alunos, acreditando que todos são ca-pazes de aprender;

• reconhecer-se como modelo de referênciapara os alunos: como leitor, como usuárioda escrita e como parceiro durante as ativi-dades;

• utilizar o conhecimento disponível sobre osprocessos de aprendizagem dos quais de-pende a alfabetização, para planejar as ati-vidades de leitura e escrita;

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LetramentoSIMPÓSIO 18

• observar o desempenho dos alunos duran-te as atividades, bem como as suasinterações nas situações de parceria, parafazer intervenções pedagógicas adequadas;

• planejar atividades de alfabetização desafia-doras, considerando o nível de conhecimen-to real dos alunos;

• formar agrupamentos produtivos de alunos,considerando seus conhecimentos e suascaracterísticas pessoais;

• selecionar diferentes tipos de texto, que se-jam apropriados para o trabalho;

• utilizar instrumentos funcionais de registrodo desempenho e da evolução dos alunos,de planejamento e de documentação do tra-balho pedagógico;

• responsabilizar-se pelos resultados obtidosem relação às aprendizagens dos alunos.

O desenvolvimento dessas competênciasprofissionais é condição para que os professo-res alfabetizadores ensinem todos os seus alu-nos a ler e a escrever. Não é possível ensinar atodos quando se sabe ensinar apenas àquelesque iriam aprender de qualquer forma, por vi-verem em um contexto que provê condições efavorece suas aprendizagens.

A importância e a insuficiênciada formação de professoresÉ certo que a qualidade da formação dos

educadores não garante, por si só, a qualidadeda educação escolar, mas é condição indispen-sável a ela. As outras condições são: valoriza-ção profissional, adequadas condições de tra-balho, contexto institucional favorável ao espí-rito de equipe, ao trabalho em colaboração, àconstrução coletiva e ao exercício responsávelda autonomia. As transformações que a reali-dade hoje exige só poderão ser conquistadascom investimentos simultâneos em todos essesaspectos – já, há alguns anos, a prática vemcomprovando que são bem poucos os efeitos dapriorização de um determinado aspecto emdetrimento dos demais.

Isso significa que as políticas públicas para aeducação só terão eficácia real se tiverem comometa melhorias relacionadas, ao mesmo tempo:

• ao desenvolvimento profissional e às condi-ções institucionais necessárias para um tra-balho educativo sério: consolidação de pro-jetos educativos nas escolas, formas ágeis eflexíveis de organização e funcionamento darede, quadro estável de pessoal e formaçãoadequada dos professores e técnicos;

• à infra-estrutura material: adequação doespaço físico e das instalações, qualidadedos recursos didáticos disponíveis, existên-cia de biblioteca e de acervo de materiaisdiversificados de leitura e pesquisa, tempoadequado de permanência dos alunos naescola e proporção apropriada na relaçãoalunos–professor;

• à carreira: valorização profissional real, sa-lário justo e tempo previsto na jornada detrabalho para o desenvolvimento profissio-nal permanente, o planejamento, o estudoe a produção coletiva.

Sempre que se põe em foco a formação doseducadores, é fundamental contextualizá-la,considerando o conjunto de variáveis que inter-ferem na qualidade das aprendizagens dos alu-nos. Do contrário, corre-se o risco de responsa-bilizar unicamente os educadores por resultadosque, apenas em parte, lhes dizem respeito.

Evidentemente, os educadores são, sim, res-ponsáveis pelo fracasso escolar, mas não pes-soalmente responsáveis. A grande pergunta aser respondida é: por que os cursos de forma-ção inicial não habilitam adequadamente osprofissionais da educação para o exercício domagistério? É essa distorção (cursos de habili-tação que, de fato, não habilitam) que provoca,em nosso país, uma outra distorção, com a qualtemos nos debatido há vários anos: o papelcompensatório da formação em serviço.

Em geral, os jovens professores – que sãomaioria em várias regiões do país – já foram alu-nos de uma escola pública que não lhes garantiuos conteúdos básicos a que todo cidadão brasi-leiro tem direito (conforme revelam os indica-dores de desempenho escolar das últimas dé-cadas); passaram por um curso de Magistérioque, além de não habilitá-los adequadamentepara o exercício profissional, roubou-lhes o di-reito à formação de nível médio (ao ocupar oespaço do Ensino Médio com as disciplinas di-

tas profissionalizantes); e não contam com umprocesso assistido de inserção na carreira, comoprofessores iniciantes. Não é raro que essa in-serção ocorra por “tratamento de choque”: nasescolas mais distantes, nas classes mais difíceis,sem apoio para o trabalho pedagógico.

Nessas condições, manter-se professor é umato de valentia. Não seria justo que os sistemasde ensino e seus gestores assumissem uma po-sição de responsabilizar pessoalmente os edu-cadores pelo fracasso do ensino. Se a sociedadedemanda profissionais bem formados para

prestarem serviço de qualidade à população, épreciso que as instituições formadoras cum-pram a tarefa de habilitá-los adequadamentepara o exercício da profissão.

BibliografiaBARBOSA, José Juvêncio. A herança de um saber: a alfa-

betização. In: Alfabetização – Catálogo de base de da-

dos. São Paulo: FDE, s. d. v. 1.

FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da lín-

gua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1985.

281

SIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIOSIMPÓSIO 1919191919

ESCOLHA E USO DO LIVRODIDÁTICO –IMPLICAÇÕES PARA AFORMAÇÃO DO PROFESSOR

Lucília Helena do Carmo Garcéz

Marildes Marinho

Lívia Suassuna

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Estaria nossa professorapreparada para lidar comessa situação?A formação do professor, no que se refere

ao trabalho com a língua portuguesa, com a ex-pressão, com a autoria, exige uma sólida basede conhecimentos lingüísticos em todos osseus aspectos: especialmente os discursivos.Além disso, é essencial uma fundamentaçãopedagógica que lhe permita, com tranqüilida-de e segurança, tomar decisões adequadas,originais, flexíveis e eficientes nas diversas si-tuações. Mais que isso, exige profissionalismoe compromisso com os objetivos educacionaistransformadores.

Na educação comprometida com a cons-trução da cidadania, o professor favorece ascondições para que o aluno possa desenvolvere ampliar continuamente seu universo existen-cial, cognitivo e de ação interindividual. É oprofessor que catalisa o processo pelo qual osindivíduos se constituem como sujeitos, comcapacidade de pensar sobre as questões domundo e, conseqüentemente, com capacida-de de agir sobre o mundo e no mundo, condi-ção imprescindível para o exercício pleno da

O livro didático e a construçãosocial da autoria na produçãode textos

Lucília Helena do Carmo Garcéz

Universidade de Brasília/DF

Em uma terceira série do Ensino Fundamental de uma pequena escola

pública da periferia, próxima a um hospital, uma jovem professora aplica

um exercício de redação do seu livro didático: redigir um texto a respeito

de projetos pessoais para o futuro a partir do poema “Verbo ser”,

de Carlos Drummond de Andrade, que começa assim:

“Que vai ser quando crescer? vivem perguntando em redor”.

Antônio, de 11 anos, entrega seu texto em poucos minutos.

Nele estava escrito um único período:

“Eu queria ser doutor, mas sei que não dá”.

cidadania. Sob esse ponto de vista, o papel doeducador é o de interlocutor privilegiado, ca-paz de diagnosticar as necessidades dos alu-nos, de orientá-los interativamente, reorien-tando também suas próprias diretrizes peda-gógicas para criar situações favoráveis ao cres-cimento e à reflexão sobre a linguagem, o co-nhecimento e o mundo social.

Todo o percurso de aquisição, desenvolvi-mento e construção do conhecimento inicia-se na interação social para então realizar-se,consolidar-se no interior do indivíduo, ou seja,internalizar-se, não como cópia, mas comoreelaboração. É assim, nesse movimento do so-cial para o individual, pela mediação do ou-tro, que se constroem o pensamento abstrato,a memorização, a atenção voluntária, o com-portamento intencional, as ações consciente-mente controladas, a generalização, as associa-ções, o planejamento, as comparações, ou seja,as funções superiores da mente, as que nos fa-zem humanos, como afirma Vygotsky.

O trabalho pedagógico atual têm procura-do, cada vez mais, privilegiar o desenvolvimen-to do raciocínio, em detrimento da memori-zação e da automatização pura e simples deconteúdos isolados e descontextualizados, in-centivando a construção de competências e

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Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professorSIMPÓSIO 19

vos conteúdos com conceitos, idéias e conhe-cimentos que o aluno já adquiriu em experi-ências anteriores. Leva o aluno a reformularidéias anteriores, substituindo-as por uma vi-são nova e diferente, e assim a adquirir as ha-bilidades necessárias à constituição das com-petências básicas, que serão gradativamenteconsolidadas de acordo com o grau de matu-ridade e que são essenciais para uma educa-ção integral de qualidade.

Tendo como horizonte essa concepção deeducação e de aprendizagem, para que o pro-fessor escolha com segurança o livro didático,que poderá ser um auxiliar efetivo do seu tra-balho, o ideal seria que ele desenvolvesse umaampla reflexão sobre o próprio objeto de aná-lise, em consonância com suas concepções delíngua e de aprendizagem. Inúmeras são asquestões que podem orientar essa reflexão, noque se refere, por exemplo, ao livro de LínguaPortuguesa.

Uma ordem preliminar de indagações di-ria respeito à própria validade do instrumen-to: O livro didático (LD) é necessário? Poderiaser dispensado? Por que, quando, em que cir-cunstâncias? Por que não poderia ser dispen-sado? Como o LD tem sido escolhido na práti-ca? Como o LD é usado na prática? Qual a suarelação com os programas de ensino? Ele fun-ciona como “o” programa de ensino propria-mente? Qual a relação entre LD, em geral, eprojeto pedagógico do professor e da escola?

Tais reflexões, evidentemente, exigem doprofessor desnaturalização da rotina e amplavisão de suas próprias potencialidades e com-petências, bem como das condições de traba-lho em que atua.

Quanto ao conhecimento da proposta pe-dagógica do LD, seria importante analisar: OLD apresenta um projeto pedagógico claro,explicitado, organizado? Quais são as informa-ções de apoio ao professor? Elas contribuempara o processo educacional? Há sugestão deestratégias de trabalho por aula, por semana,por unidade ou por mês e semestre? Sãoexeqüíveis? Quais os fundamentos psico-pedagógicos e lingüísticos implícitos no LD?Qual a visão da escola refletida no LD? A pro-posta pedagógica é crítica e flexível ou acrítica

habilidades. Em decorrência dessa postura,são favorecidas as atividades interativas einterdisciplinares.

Esses procedimentos situam a aprendiza-gem significativa como aquela em que concei-tos mais inclusivos, ou seja, com maior poderde generalização e aplicação, funcionam comobase prévia à qual vêm se articular e agregar osconceitos novos, a partir de intensas operaçõescognitivas do próprio aprendiz mediadas pelooutro. Nesse processo há uma profundainteração entre os conhecimentos novos e osprévios, por meio de uma adesão total do su-jeito à atividade de incorporação desses novosconceitos, e é essa participação individual quetorna a aprendizagem realmente significativa.Para que seja assim, o processo exige um en-volvimento real do educador no empreendi-mento pedagógico, pois é nessa interação hu-mana, nessa mediação qualificada e solidária,que os limites dos conhecimentos prévios re-ais são revelados e pode ser determinado o ho-rizonte em que o desenvolvimento é possívelcom maior apoio e participação do professor,ou seja, o que Vygotsky (1930) chama de zonaproximal de desenvolvimento.

Essa nova atitude pedagógica está em fran-ca oposição aos procedimentos tradicionais,behavioristas, que privilegiam a memorizaçãode itens isolados, arbitrários, pouco inclusivos,com menor poder de generalização e baixa pos-sibilidade de articulação com conhecimentosanteriores. Tais práticas, que a reflexão atualprocura afastar de forma definitiva do cotidia-no escolar, enfatizam o adestramento, aautomatização e exigem do professor uma ati-tude de treinador, caçador de erros, cobrador,repressor, vigia, punidor, e não propriamentede educador. Nesse universo, a interação fica-ria excluída em nome da hierarquia e daassimetria entre professor e aluno. Compreen-de-se hoje que tal método não assegura a du-rabilidade, a solidez e a utilidade dos conheci-mentos, de forma que esses se tornam voláteise desaparecem logo depois da “prova”, pois nãotêm raízes nem aplicabilidade ou significaçãoreal no repertório cognitivo do estudante.

Em contraposição, a aprendizagem signi-ficativa acontece com a combinação dos no-

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e imobilizante?No que diz respeito à área de conhecimen-

to específica – Língua Portuguesa –, há aspec-tos extremamente relevantes que devem serobservados no LD: Quais as concepções de lín-gua, de linguagem, de aprendizagem implíci-tas no LD? O LD contempla as diversas verten-tes da língua: expressão oral, leitura informa-tiva, literária e história literária; a produçãoescrita em todas as suas habilidades; a siste-matização gramatical?

Expressão oral: Estão previstas atividadesde expressão oral? O LD considera as diferen-ças entre modalidade oral e escrita da língua?As atividades estabelecidas prevêem o desen-volvimento do discurso oral de forma plena ouapenas da leitura em voz alta e da declamação?

Leitura: Quais as concepções de leiturasubjacentes à proposta do LD? Qual o tipo deleitura privilegiado? Qual a variedade e a quan-tidade de textos versus gênero versus temasversus autores? Os textos são integrais? Qual éa qualidade dos textos? São adequados às ha-bilidades de leitura dos alunos e ao interesse?Há valorização da literatura brasileira? Quaissão os temas enfatizados? Eles configuram umaideologia predominante? Qual? A proposta deinterpretação de textos é coerente? Há coerên-cia nos princípios teóricos focalizados? Há va-riedade ou conduzem à rotina e à reproduçãomecânica? Há oportunidade de reflexão e in-terpretação ou a ênfase está na decodificação?Os exercícios auxiliam o desenvolvimentocognitivo e afetivo? Há estímulo à leitura deoutros textos?

Produção de textos: A produção de textosé vista como um processo? As várias etapas daprodução são contempladas: enriquecimentode informações, motivação, planejamento, or-ganização das idéias, idealização dointerlocutor, estabelecimento de objetivos,elaboração, análise, revisão, reescritura? Hácritérios de avaliação? Há variedade de propos-tas e de objetivos?

Reflexão sobre a língua: Qual a relação dagramática com o texto? Qual a concepção delíngua e de aprendizagem subjacente aos exer-cícios? Quais os conceitos enfatizados? A vari-ação lingüística é considerada? Há coerência

teórica? Há variedade de exercícios? Como é aseleção e ordenação dos assuntos? Quais sãoas capacidades cognitivas enfatizadas? Qual arelevância dos tópicos em relação às dificul-dades reais dos alunos? Como se dá a contex-tualização quanto à função estilística dos ele-mentos enfocados? Há progressão e articula-ção entre os exercícios e as explicações? Hárelação com a escrita real do aluno? O livropropõe atividades complementares de enri-quecimento? Há coerência entre os objetivosestabelecidos na proposta do autor e as ativi-dades realmente apresentadas no livro?

O professor deve levar em conta também aqualidade material do LD: A durabilidade dematerial do LD é satisfatória? A programaçãovisual é interessante, atraente e adequada aosobjetivos? O tipo de letra está de acordo com onível de leitura do aluno? A ilustração tem qua-lidade estética? É apropriada? Relaciona-se deforma ideal com os textos? Pode ser utilizadacomo uma introdução à linguagem visual? Olivro é consumível ou não-consumível?

Essa listagem preliminar de questões de-monstra como a análise do LD depende de co-nhecimentos, valores, representações, concei-tos e atitudes do professor diante do seu obje-to de ensino, diante do ato de ensinar e do queentende por aprender. Ou seja, depende de suaformação como profissional, de sua clareza emrelação aos objetivos que estabelece para a suaprática em sala de aula e da amplitude de suareflexão a respeito dos diversos aspectos de suaprópria ação como professor.

Vamos focalizar mais detidamente a ques-tão do desenvolvimento da produção de tex-tos. Durante muito tempo, a escola enfatizou,no ensino da escrita, o produto, a redação, aprimeira versão do texto. As práticas didáticastradicionais ignoravam a natureza recursiva es-sencial da escrita (cheia de idas e vindas) econsideravam a redação do aluno o momentoem que ele demonstrava seus conhecimentosde língua e de organização de textointernalizados nas aulas e nas tarefas voltadaspara a leitura e para as noções gramaticais. Apartir de um tema, geralmente escolhido peloprofessor, o aluno deveria demonstrar suacompetência na produção de textos corretos,

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Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professorSIMPÓSIO 19

sem que, para o desenvolvimento dessa habi-lidade, tivesse compartilhado uma reflexãodirecionada para os aspectos discursivos ourecebido orientações mais específicas sobre oato de escrever. Esse texto, em sua primeira ou,no máximo, segunda versão, serviria natural-mente para o processo de avaliação.

O livro didático de Língua Portuguesa cris-talizou essa tradição, localizando a produçãode textos como simples adendo, exercício fi-nal, encerramento da unidade de ensino. Casoo professor acompanhasse rigorosamente aspropostas do LD, todo o processo de desenvol-vimento da escrita ficaria reduzido ao mínimo,e muitas das habilidades necessárias para aconstituição da competência na produção detextos seriam ignoradas.

O resultado disso foi que a pesquisa de de-sempenho na escrita, nas décadas de 1970 e1980, explorou as possibilidades de constituirum inventário de problemas a partir da análi-se de textos produzidos em situação de exa-me, teste, concurso. Compreendeu-se, com oavanço dos estudos dos resultados dos candi-datos aos exames vestibulares, que aquela prá-tica tradicional de ensino de redação estavasendo insuficiente e que a escrita exigia novasperspectivas de trabalho.

Hoje, a questão que se coloca retrocede àsorigens da construção da autoria no percursoescolar do aprendiz. As novas investigaçõesprocuram compreender como e por que elechega a produzir um texto empírico com de-terminadas características insatisfatórias ecomo seria possível transformar práticas esté-reis em um trabalho interativo e produtivo.Nesse sentido, compreender a natureza da es-crita foi o passo inicial.

Uma primeira aproximação revela que oaprendiz apresenta uma dificuldade básica deadaptação do gênero/modelo à situação deação (Bronckart, 1999), em vista de o “textoescolar” ter sido assimilado como um formu-lário a ser preenchido, o que impedia o exercí-cio da autoria. O texto somente se constrói etem sentido inscrito em uma prática social, emque o envolvimento do redator se realiza emvários níveis, pois lida com a capacidade sim-bólica e com a habilidade de interação media-

da pela palavra, mas também com a experiên-cia de vida do indivíduo.

Escrever é um processo complexo inseridoem práticas sociais que elegeram, no decorrerda história coletiva, formas relativamente es-táveis de ação pela linguagem, a que chama-mos gêneros. Por meio dos gêneros disponí-veis na sociedade, o redator pode agir: expres-sar, imaginar, informar, expor, relatar, narrar,persuadir, descrever, dialogar, dissertar, argu-mentar, contratar, atestar, declarar, convidar,solicitar, registrar etc.

Empreender uma ação de escrita envolve:motivação, interesse e necessidade; a configu-ração do destinatário e o estabelecimento dosobjetivos do texto; o uso intenso da memória;múltiplas e infinitas escolhas e decisões base-adas no conhecimento acerca do tema, da lín-gua e das estruturas textuais e discursivas pos-síveis; diversas releituras avaliativas parareformulação e reescrita, até que o produtordo texto se sinta satisfeito na comparação en-tre seus objetivos iniciais e o resultado obtido.

O redator estabelece inicialmente um basede orientação: Qual é o assunto em linhas ge-rais? Qual o gênero mais adequado aos objeti-vos? Quem provavelmente vai ler? Que nível delinguagem deve ser utilizado? Que grau de sub-jetividade ou de impessoalidade deve ser atin-gido? Quais as condições práticas de produção:tempo, apresentação, formato?

Cada redator desenvolve, na sua históriapessoal de consolidação da habilidade de es-crever, determinado percurso de trabalho, queé diferente de pessoa para pessoa. Não há umúnico caminho a ser percorrido e é necessárioconhecer seus próprios procedimentos: fazeranotações soltas, independentes; fazer umalista de palavras-chaves; anotar tudo o que vemà mente, desordenadamente, para depois cor-tar e ordenar; elaborar um resumo das idéiaspara depois acrescentar detalhes, exemplos,idéias secundárias; construir um primeiro pa-rágrafo para desbloquear e depois ir desenvol-vendo as idéias ali expostas; escrever a idéiaprincipal e as secundárias em frases isoladaspara depois interligá-las; elaborar inicialmen-te uma espécie de sumário ou esquema geraldo texto; organizar mentalmente os grandes

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blocos do texto, escrevê-lo e reestruturá-lovárias vezes.

Qualquer que seja o procedimento utiliza-do, ou o conjunto de procedimentos conjuga-dos entre si, para que o autor fique satisfeitocom o seu próprio texto, o trabalho de ajuste éimprescindível. Nesse momento, que é o maisprodutivo em termos de aprendizagem do fun-cionamento do texto, a colaboração de um lei-tor próximo com o qual seja possível trocaridéias é fundamental (Garcez, 1998). As trans-formações percebidas como necessárias peloautor ou sugeridas pelo leitor/colaboradorpodem levar a: enfatizar as idéias principais;reordenar as informações; substituir idéiasinadequadas; eliminar idéias desnecessárias;alcançar maior exatidão para as idéias; acres-centar exemplos, conceitos, citações, argu-mentos; eliminar incoerências; estabelecerhierarquia entre as idéias; criar vínculos entreuma idéia e outra.

Para efetivar esses aperfeiçoamentos, ge-ralmente é preciso: acrescentar palavras ou fra-ses; eliminar palavras ou frases; substituir pa-lavras ou frases; transformar períodos, unin-do-os por meio de conectivos ou separando-os por meio de pontuação; acrescentar transi-ções entre os parágrafos; mudar elementos delugar, reagrupando-os de forma diferente; cor-rigir problemas gramaticais, entre outrastransformações.

Nessa etapa do processo de escrita, há umaadesão total do sujeito à atividade, uma inten-sa participação do autor. Essa atitude permitea interação entre situações novas de inter-locução e os conhecimentos prévios em rela-ção à lingua, ao tema, ao gênero e à práticasocial e torna a aprendizagem realmente sig-nificativa. É o momento também de um envol-vimento real do educador no empreendimen-to pedagógico, já que é a interação humana, amediação qualificada e solidária, que cria aoportunidade para que os limites dos conhe-cimentos prévios reais sejam revelados e sepossa determinar o horizonte em que o desen-volvimento é possível com maior participaçãodo professor. Uma leitura compartilhada(Garcez, 2001) com o professor levará o apren-diz a analisar as decisões tomadas e o nível de

sucesso da realização dessas decisões no textoquanto:

ao leitor: Inseri-lo no texto ou tratá-lo deforma neutra e distanciada. A opção esco-lhida foi mantida durante todo o texto? Oleitor que se tem em mente é atendido du-rante todo o texto?

ao gênero de texto: Que plano de escritautilizar para a situação. O formato é ade-quado à situação? As exigências referentesao gênero foram respeitadas ou há ambi-güidades e inconsistências?

às informações: O que informar e o queconsiderar pressuposto. As informaçõesfornecidas são suficientes ou o texto ficoumuito denso, exigindo muito do leitor? Aintrodução de informações novas é bemrealizada? Há informações irrelevantes quepodem ser dispensadas? Há excesso de in-formação? Há informações incompletas ouconfusas? As informações factuais estãocorretas?

à linguagem: Formal ou informal. A lingua-gem está adequada à situação? A opção es-colhida tornou o texto harmonioso ou háoscilações súbitas e inadequadas? Os efei-tos de sentido construídos são satisfatórios?

à impessoalidade ou subjetividade: Oposicionamento adotado como predomi-nante mantém-se ou essa opção não ficouconsistente no texto?

ao vocabulário: As escolhas estão adequa-das ou há repetições enfadonhas e pobre-za vocabular? Algum termo pode ser subs-tituído por expressão mais exata? Háclichês, frases-feitas, excesso de adjetivos,expressões coloquiais inadequadas, jargãoprofissional?

às estruturas sintáticas e gramaticais: Otexto está correto quanto às exigências dalíngua padrão? As transições entre as idéiasestão corretas e claras? Os conectivos sãoadequados às relações entre as idéias? A di-visão de parágrafos corresponde às unida-des de idéias?

ao objetivo e à situação: Está de acordocom o objetivo estabelecido inicialmente?As idéias principais estão evidentes?

Como é evidente, produzir um texto envol-

287

Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professorSIMPÓSIO 19

ve diversas etapas, não necessariamenteseqüenciais, e múltiplos aspectos discursivosque precisariam ser considerados no processopedagógico e na formação inicial e continua-da do professor (Nóvoa, 1999). Para que o re-dator aprendiz vivencie a constituição da au-toria pelas decisões e escolhas pessoais, é im-prescindível a participação colaborativa doprofessor e é essencial que esse professor tam-bém tenha tido oportunidade de constituiçãode sua própria autoria.

Tanto na formação inicial, como nas situa-ções de qualificação contínua em serviço, quan-do o professor vivencia a escrita de diversos gê-neros, com diversos objetivos, aprofundando suaprópria experiência de produtor de texto, com-preende melhor o objeto com o qual trabalhacom o aluno e amplia suas condições de colabo-ração efetiva no crescimento do outro.

Nesse sentido, tanto a escolha como o usodo livro didático serão enriquecidos a partir deuma formação que considere o professor nãosó como mediador da produção do aluno, mascomo efetivo autor.

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288

A temática desta mesa nos sugere abordaras implicações decorrentes da escolha e do usodo livro didático na formação do professor. Aofinal do percurso que tracei para a reflexão so-bre esse tema, percebi que ele foi de muitasperguntas e de poucas respostas; talvez umaresposta apenas, se é que podemos considerá-la assim. O próprio título já é uma interroga-ção: Livro didático: uma possibilidade de for-mação do professor?

O lugar do livro didático nocenário da cultura brasileiraUm novo momento para a história do li-

vro didático no Brasil parece ter começado.Basta observar o quanto ele tem se tornadoalvo das atenções em conferências, seminá-rios, pesquisas, políticas governamentais,ações do mercado editorial, da mídia etc. Esteseminário é um exemplo. Mas essa atençãonão parece capaz de atribuir ao livro didáticoos mesmos significados e valores que são atri-buídos a outros livros e aos sujeitos que delesse ocupam. Ou seja, o livro didático não gozade prestígio nem no âmbito das práticas deleitura a que se destina, nem no âmbito dapesquisa. Batista (2000: 529-30) define comperspicácia esse desprestígio:

Não são poucos, portanto, os indicadores do

desprestígio social dos livros didáticos. Livro

“menor” dentre os “maiores”, de “autores” e não

de “escritores”, objeto de interesse de “colecio-

nadores” mas não de “bibliófilos”, manipulado

por “usuários” mas não por “leitores”, o pres-

suposto parece ser o de que seu desprestígio,

por contaminação, desprestigia também aque-

les que dele se ocupam, os pesquisadores ne-

les incluídos.

Diante desse interesse, seria razoável suporque os tempos mudaram, mas isso não é bemverdade, quando se observa que esse interessetem endereço bastante conhecido e forma bemdirecionada, as políticas de melhoria das con-dições de existência (seu conteúdo e seu uso“eficaz” na escola), de renovação de determina-do olhar sobre o livro didático: “como deve ser”,o que fazer para aperfeiçoar um manual esco-lar específico, que seleciona e organiza, de ma-neira progressiva, os conteúdos e as atividadesque os alunos realizam no dia-a-dia da sala deaula; de um manual que, normalmente, se di-vide em dois, o do aluno e o do professor.

Ao observar essa tendência histórica comque se olha para o livro didático, no Brasil, Mag-da Soares (1996) chama a atenção para a ausên-cia de um olhar distanciado da pesquisa sobreo livro didático, um olhar que reflita sobre assuas condições sócio-históricas, saindo do “de-ver ser” para “o que tem sido” esse livro na his-tória da educação e da cultura brasileiras. Umapesquisa dessa natureza poderia, quem sabe,aprofundar a desconfiança de que o livro didá-tico teria um prestígio compatível ao prestígioatribuído à escola, às funções, aos papéis e àsrepresentações a ela atribuídos no campo doletramento. Nesse sentido, a escola despres-tigiaria os próprios objetos e práticas que pro-duz, como ocorre com a escolarização da lite-ratura, da “ciência” etc.

Provavelmente, em função desse interessevisivelmente pragmático do foco com que setoma o livro didático, nesse momento pode-seobservar uma tendência a não problematizar asua forma de existência, a sua concepção; aocontrário, busca-se solução para os problemasda “vida cotidiana” desse objeto, como se elafosse naturalmente dada e necessária. Que ra-zões políticas, ideológicas e pedagógicas esta-

Livro didático: uma possibilidadede formação do professor?

Marildes Marinho

Universidade Federal de Minas Gerais/MG

289

Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professorSIMPÓSIO 19

riam por detrás desse movimento histórico emque – diferentemente de um outro anterior –bastante se escreve e se fala, com convicção, danecessidade do livro didático, ou seja, de umlivro didático com características bem especí-ficas?

Quem não se lembra da “ousadia” daquelesque imaginavam uma escola sem livro didáti-co, com um professor mais autônomo nas suasações pedagógicas? Mesmo nesse momento,parece que pouco se escreveu a favor do livrodidático e, provavelmente, nada se escreveucontra ele. Encontram-se, sim, análises sobre aideologia e o preconceito do livro didático ousobre os conteúdos específicos a cada área deensino (Faria, 1991; Molina, 1987; Nosella,1988). No entanto, foram significativas as expe-riências que ensaiaram essa “liberdade” e “au-tonomia”. Que fim e que sentidos teriam tidoessas experiências? Teríamos mesmo superadoessa polêmica ou existiriam razões ainda pou-co compreendidas para o seu esfriamento ouaté mesmo “esquecimento”? Teria o professorsuperado essa polêmica (para ele, dificuldade)ou ele estaria lançando mão de novas estraté-gias de relação com esse objeto, deixando cadavez mais de utilizá-lo, a exemplo do que aquirelatou o pesquisador Jean Hébrard sobre o li-vro didático na França? O que sabemos sobreos usos do livro didático na sala de aula é mui-to pouco.

Enfim, a pergunta maior entre todas queaqui vêm se apresentando poderia ser assimresumida: como transformar o livro didático emobjeto de estudo para melhor compreensão dahistória das práticas escolares, compreensãoesta que possa se reverter em ações para areinvenção do aprendizado da leitura e da es-crita por meio de um novo livro didático?

Para compreender as condições de existên-cia desse objeto escolar, seria importante: a)conhecer as características desse livro e comoele se insere no conjunto dos objetos pedagó-gicos e das práticas escolares de ensino-apren-dizagem; b) conhecer a história de construçãodo modo de ser desse livro, particularmente noque diz respeito aos sujeitos a quem se destina(professor e aluno). Essas e outras pesquisaspoderiam, certamente, sustentar discussões e

ações transformadoras do livro didático e da suainserção na história das disciplinas escolares edas políticas educacionais. Enquanto elas nãoexistem, continuamos ousando algumas postu-ras e perspectivas, a exemplo das posições con-tra ou a favor do uso do livro didático.

Contra ou a favor do livrodidático. Por quê?Posicionar-se contra o uso de um manual

didático na escola foi e será por algum tempouma ousadia. Uma das explicações – como jádito antes – para essa ousadia é o investimentoainda tímido das pesquisas das universidadescom o livro didático, a não ser para destinar aele críticas severas. Se a pesquisa ainda é pou-co significativa, o que falar da própria produ-ção de livros ou textos didáticos para o profes-sor e para o aluno? A escrita acadêmica legíti-ma, que rende tributos para o acadêmico, é ada pesquisa, aquela que ele produz para os seuspares, principalmente se for publicada no mer-cado editorial estrangeiro (Soares, 2000).

Assim, temos que nos reportar a um antigo(e ainda muito importante) refrão para justifi-car por que é ousadia ser contra o livro didáti-co. Do ponto de vista do professor, as suas con-dições de exercício da profissão: para sobrevi-ver, ele se ocupa quase que estritamente da ta-refa de ministrar aulas, ou seja, não pode pla-nejar as suas aulas, escolher e produzir o seumaterial. As escolas não disponibilizam, ade-quadamente, materiais didáticos de que o pro-fessor possa lançar mão, de forma ágil, dentrode uma condição de trabalho “sem planejamen-to prévio”, “improvisado”. Não há livros, jornais,revistas, internet, vídeos, etc. e, quando há, elesnão se encontram organizados de forma a per-mitir o seu uso no cotidiano da sala de aula. Olivro didático torna-se, então, o material maisvisível e garantido, porque ou está na mochilado aluno, ou no armário/estante da sala de aula.Dessa forma, a ausência de planejamento, a“improvisação” não seria também o resultadodessas condições precárias de organização edisponibilização dos espaços e dos materiaisindispensáveis para o trabalho na “sala de aula”?

Do ponto de vista do aluno, como ousar di-

290

zer “não” ao livro didático, quando se reconhe-ce, por explicações sociológicas, políticas, an-tropológicas, o significado da posse de livros,ainda que de um livro desprestigiado e doado?(Ou também desprestigiado porque é doado?)A grande maioria de alunos só conta com esselivro didático como material de leitura. Esse li-vro, por sua vez, extrapola o seu espaço escolare ganha função específica nas práticas de leitu-ra fora da escola, na família.

A questão do valor do livro didático em es-colas e em grupos sociais distintos – tanto parao professor quanto para o aluno – é muito im-portante para se pensar a política do livro di-dático no Brasil. Que efeitos tem uma políticagovernamental de doação de livros, e de quaislivros? Que relações os estudantes, as famíliasdos estudantes e os professores mantêm comos livros distribuídos gratuitamente pelo gover-no? Seriam diferentes, se comprassem os livros?Se os retirassem emprestados na biblioteca pú-blica, na biblioteca da escola? Como se compor-tam as famílias e os estudantes que compramos seus livros? Por que se atribui – se é que seatribui – tanto valor à posse de livros? Seria re-sultado das políticas precárias de socializaçãodo livro por meio das bibliotecas, dos emprés-timos? O que significaria para os gruposdesfavorecidos socioeconomicamente, ou seja,pais e filhos desses grupos, entrarem em umalivraria para comprar o seu material escolar, osseus livros, assim como o fazem os outros gru-pos? Ou também o contrário: seria possível re-criar formas mais coletivas de uso de livros, deleitura, também nesses grupos de elite econô-mica e intelectual que fazem do livro um obje-to de posse, um fetiche? Em pesquisa sobre osusos da escrita no cotidiano de camadas popu-lares, pude observar famílias queimando livrosescolares ou porque, segundo elas, não tinhamespaços para guardá-los, ou porque não tinhamtido e não teriam mais utilidade, diante do “fra-casso” escolar dos filhos.

Em síntese, as políticas públicas de distri-buição do livro didático têm um efeito simbó-lico e precisam ser mais bem analisadas, se qui-sermos desfazer alguns nós historicamente ata-dos em torno das práticas sociais de leitura eescrita em nosso país. Que efeitos teriam essas

políticas de compra e distribuição de livros –didáticos ou não – sobre o processo de leitura,sobre os usos que se fazem deles?

Ainda assim, neste momento, acredito queas dificuldades de relação com o livro no Brasil– particularmente quando se trata do poderaquisitivo da grande maioria de professores ealunos – não permitem ousar romper com umalógica das políticas de leitura e de acesso ao li-vro, neste caso, de acesso a um livro didático.Paradoxalmente, um livro que teria uma funçãoespecífica de organizar e sistematizar determi-nados conteúdos de uma disciplina escolarpode se transformar em símbolo e instrumen-to de outras práticas de leitura fora da escola.

Contudo, mesmo se essas apropriações oureinvenções dos modos de ler livro didático sus-pendem, de certa forma, nossas descrenças emrelação a efeitos positivos, é necessário reco-nhecer que os problemas que a sua história nostem apresentado são graves. O professorLevinson, ontem, apresentou-nos alguns deles.O mais evidente desses problemas se fez visívelno mercado editorial, que, apoiado pelas polí-ticas de produção e distribuição do livro didá-tico, pelas precárias condições de formação doprofessor e do exercício da profissão docente,tornou-se o responsável mais visível pelo perfildesqualificado do livro escolar.

Nesse sentido, a avaliação do livro didático,conforme o Programa Nacional do Livro Didá-tico (PNLD), tem um papel fundamental ao atu-ar diretamente na modificação do perfil dessesmanuais. Penso que, neste momento, as conse-qüências dessa avaliação recaem preferencial-mente sobre os editores, que tentam adequaros seus livros às orientações teórico-metodo-lógicas indicadas por instituições de ensino epesquisa. No entanto, a influência dessas avalia-ções na escola, no processo de seleção dos li-vros, ainda vai levar algum tempo, por questõesde implementação de todo o processo de avalia-ção e de escolha. Já sabemos de algumas difi-culdades de finalização do processo de avalia-ção, na distribuição do manual de resenhas, nadistribuição dos livros, na organização do tra-balho de seleção nas escolas etc.

Imaginando, então, um momento em que oprocesso de avaliação (do ponto de vista das

291

Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professorSIMPÓSIO 19

ações das equipes avaliadoras: MEC e universi-dades) esteja consolidado, o foco de atençãopassa a ser o professor e a escola onde se dá aescolha. O professor estaria preparado para ava-liar um manual didático? É importante lembrarque os critérios e as estratégias de escolha dosprofessores estarão marcados pela sua forma-ção inicial e capacitação em serviço. Já existemdados disponíveis de pesquisas sobre escolha euso do livro didático que apontam a dificulda-de de professores em adotar livros que exigemum conhecimento de que eles não dispõem.1

Disso se pode concluir que o conhecimen-to sobre livro o didático, a sua história, as suascondições de produção, os seus conteúdos de-veriam fazer parte da formação desse profes-sor. No entanto, sabemos (embora não tenhafeito uma pesquisa e nem tenha levantado pes-quisas existentes sobre o assunto) que, mesmonos cursos de Pedagogia, esses manuais têmpresença tímida. Nos cursos de licenciatura, aausência do livro didático é conseqüência daprópria concepção de que a licenciatura é umacomplementação dos bacharelados.

Assim, deixam-se para o final do curso osconteúdos de natureza pedagógica, que têm re-lação com a escola, com o ensino-aprendizagem.Assim também, mesmo que se queira abordar aquestão do livro didático, ela só pode se apre-sentar no interior de um conjunto de todos es-ses conteúdos. O mais provável é que o livro di-dático ganhe existência, de fato, no momento emque o aluno for para o estágio e esbarrar inevita-velmente com esse objeto. Por isso, além dosprocessos de avaliação e mudanças do livro, éimportante o processo de avaliação e de mudan-ças nos cursos de licenciatura e nos processosde capacitação em serviço dos professores.

É nesse espaço que se poderia pensar tam-bém em reconfiguração do conceito ou da con-cepção do livro didático. Ao livro didático ain-da se atribui uma função centralizadora,monopolizadora do trabalho em sala de aula, oque exige cobrar dele conteúdos, procedimen-tos e materiais que a sua própria natureza nãopermite assumir. Exemplos:

1. Um livro didático tende a selecionar umaperspectiva teórico-metodológica, enquan-to que a prática de sala de aula permite (ouaté mesmo exige) a diversidade; a prática deensino na sala de aula envolve uma história(sujeitos e ações, num determinado mo-mento, com determinadas expectativas,objetivos e conhecimentos), enquanto o li-vro é um material previamente definido,endereçado a um perfil projetado de alunoe de professor. Portanto, não pode ser o úni-co material a ser “seguido”.

2. O livro didático não é o material e nem oconteúdo de ensino-aprendizagem, nem osrepresenta na sua amplitude: os livros, osjornais, as revistas, os filmes, os cd-roms queos alunos devem e podem ler, ver, ouvir nãopodem estar dentro dos livros didáticos,assim como não estão as bibliotecas, as li-vrarias, as ruas, as editoras etc. Os livros di-dáticos podem representar apenas parte doconteúdo e dos procedimentos que envol-vem o ensino-aprendizagem de uma disci-plina.

3. Mesmo no espaço em que um livro didáti-co pode operar, ainda existem restrições sig-nificativas, pela própria diversidade de con-cepções que o objeto de ensino em uma dis-ciplina pode apresentar, além dos proble-mas já cristalizados na história do livro di-dático, o maior deles relacionado às orien-tações dadas pelos próprios editores e àcompetência ou ao perfil de autores que es-crevem livros didáticos no Brasil.

Magda Soares (1996: 63) destaca o processode “desprestígio do lugar da autoria de livros di-dáticos” no Brasil, em função da democratiza-ção do ensino que amplia “enormemente omercado para o livro didático”:

Como conseqüência dessa ampliação, altera-se

o valor social e cultural atribuído aos livros di-

dáticos, afastando-se por isso da autoria deles

os intelectuais de alta qualificação científica e

educacional, principalmente responsáveis por

sua produção na primeira metade do século.

Cresce, entretanto, o número de autores didáti-

1 O MEC/Ceale está finalizando uma pesquisa sobre o processo de escolha do livro didático em escolas brasileiras.

292

cos, quase sempre professores dos níveis em que

ensinam.

Além das questões que envolvem a produ-ção do livro didático, outros fatores comprome-tedores da sua qualidade e do seu uso na escolageram dúvidas, sim, sobre a sua utilidade pe-dagógica e cultural. Um desses fatores são ascondições de formação do professor e de exer-cício da sua profissão. Ou seja, muitas vezes,vemos um professor com uma competênciamaior do que a do próprio livro submetendoseus alunos ao livro didático, porque é o recur-so mais rápido e eficiente que ele tem para quea sua aula aconteça. Ele só toma conhecimentodo conteúdo e da atividade que propôs ao alu-no no momento de “corrigir” os exercícios.

O livro didático é tambémuma possibilidade para aformação do professorConcluindo, no seu sentido mais amplo (o

que se produz para a escola), o livro didáticotambém tem, historicamente, se constituído eminstrumento para a formação do professor. Es-ses impressos têm papel significativo nessa for-mação, se considerarmos que é principalmen-te por meio deles que o professor exerce e, mui-tas vezes, aprende a sua profissão. Contudo,nem sempre se pode garantir a qualidade des-sa formação.

Nesse sentido, mais do que os seus conteú-dos, é importante pensar como esses materiaisa que podemos chamar manuais didáticos es-tão organizados e são utilizados na prática desala de aula. Atualmente, as demandas e pro-postas políticas têm se pautado preferencial-mente pelos guias curriculares e pelo livro di-dático, ou seja, por uma definição mais clara dosconteúdos e procedimentos didáticos que de-vem reger a prática de ensino na sala de aula.São importantes, sim, essas ações, mas elas po-dem perder o seu alcance, quando tendem a servistas como redutoras de todo o conjunto dasquestões que cercam o universo pedagógico.

Nesse sentido, o problema do conteúdo dolivro didático não se encontra apenas no mer-cado editorial, nos seus autores, mas tambémnas condições históricas do seu leitor. O pro-fessor, como leitor e usuário do livro didático,define, de certa forma, os conteúdos e as estra-tégias editoriais de produção desse livro. É prin-cipalmente por ele e para ele que os editores/autores formulam uma imagem de leitor, com-patível com seus conhecimentos, expectativase condições de exercício da profissão.

O que adiantariam, então, propostas inova-doras, materiais sofisticados nos livros didáti-cos, se o professor (ou a escola) não apresentaras disposições esperadas – entendendo-se dis-posições como o conhecimento desejável paraa disciplina em que atua e as condições de exer-cício da sua profissão (carga horária, númerode alunos, salário, infra-estrutura, materiaisetc.) – para utilizá-lo?

Dessa forma, somente uma mudança nascondições de formação e de exercício da pro-fissão docente pode propiciar uma melhoria naconcepção e no conteúdo do livro didático, jáque esses livros, a produção editorial, os pro-cessos de escolha e seus usos refletem com bas-tante evidência o estado da educação e da pro-fissão docente no Brasil.

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293

Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professorSIMPÓSIO 19

Escolha e uso do livro didático:implicações para a formaçãodo professor

Lívia Suassuna

Universidade Federal de Pernambuco/PE

ResumoNeste trabalho, pretendemos discutir o tema do

livro didático de Português – e, eventualmente, de

qualquer outra disciplina escolar, – a partir de pres-

supostos teóricos da análise do discurso. Em virtu-

de das muitas correntes de pensamento que se

estruturaram em torno do rótulo “análise do discur-

so”, esclarecemos que será adotada aqui a linha fran-

cesa de estudo, caracterizada, grosso modo, pela ar-

ticulação do discurso com a história e a ideologia.

Inicialmente, faremos um rápido levantamen-

to de alguns estudos sobre livro didático para sali-

entar que, seja qual for a especificidade de seus

subtemas – produção, circulação, avaliação, escolha,

uso –, em grande parte deles é apontada ou persiste

a polêmica questão sobre se é válido ou não adotar

o livro didático nas aulas de Língua Portuguesa.

Em seguida, exporemos alguns conceitos bási-

cos da análise do discurso, a partir dos quais é pos-

sível pensar o livro didático e sua inserção na escola

brasileira, dando especial ênfase ao conceito de au-

toria. Nessa segunda parte, nosso objetivo é, de um

lado, ampliar o campo de análise do livro didático

para além de sua dimensão propriamente didático-

pedagógica e, de outro, relacionar alguns pressupos-

tos da análise do discurso com a prática pedagógica

e o papel do professor como elaborador de aulas e,

supostamente, responsável pela escolha e uso do li-

vro didático (daí a ênfase no conceito de autoria).

Nas conclusões, tal como sugerido no título do

trabalho, indicaremos algumas implicações do de-

bate para a formação do professor. Nosso foco re-

cairá sobre questões do tipo: o que significa, em

termos discursivos, adotar um livro didático? Como

os sentidos se constroem e circulam no livro didá-

tico e por meio dele? O que há de singular na práti-

ca pedagógica/discursiva de cada professor, ainda

que ele adote um livro didático? Há lugar para a

autoria no livro didático?

Alguns estudossobre o livro didáticoe uma persistente questãoHistoricamente, o livro didático (LD) tem

sido objeto de inúmeros estudos e pesquisas, re-alizados sob os mais diferentes enfoques teóri-cos e metodológicos. Para além da paixão que otema desperta, os autores desses estudos pare-cem ter em conta, freqüentemente, que o LDconstitui, de fato, material instrucional impres-cindível ao professor do Ensino Fundamental eMédio, chegando mesmo a orientar a práticapedagógica nesses níveis de instrução.

Dado que, como parte integrante de uma

mesa-redonda, este trabalho não pode ser mui-to extenso, citaremos aqui alguns desses estu-dos sobre LD, que consideramos relevantes eexemplares da multiplicidade de perspectivasem que as discussões se embasaram.

Um primeiro texto, datado de 1987, é, naverdade, uma entrevista que João WanderleyGeraldi deu a Ezequiel Theodoro da Silva,publicada no periódico Leitura – teoria e práti-ca. Nessa entrevista, Geraldi expôs algumas po-sições que marcaram fortemente o debate emtorno do LD. Entre elas, figuram as seguintes:

a. “[...] a adoção de um LD [...] significa, nateoria e na prática, a alienação, por partedo professor, de seu direito de elaborar suasaulas” (p. 4);

294

b. “[...] uma vez adotado, o LD passa a condu-zir o processo de ensino: de adotado passaa adotar o professor e os alunos” (idem);

c. “O LD se organiza em função dos conteú-dos a serem ensinados, não em função domovimento do processo de ensino-apren-dizagem.” (p. 5);

d. “[...] o LD é adotado [...] porque dá as aulasprontas, dispensando de criá-las segundoas necessidades concretas do movimentodo ensino-aprendizagem.” (idem);

e. “[...] os professores de Língua Portuguesa eos professores de Linguagem das séries ini-ciais do 1º

grau deveriam, a meu ver, trocar

o LD pelo livro (sem adjetivos)” (p. 7).

Outro trabalho importante é o de Britto(1997). Depois de fazer uma retrospectiva dodebate nacional em torno do LD, o autor salien-ta que alterações mais recentes na produção demateriais didáticos (tais como a incorporação denovas linguagens e o tratamento politicamentecorreto de temas sociais) não evidenciam a exis-tência de mudanças substanciais nos livros, nosmanuais e nas cartilhas. Para Britto, a questãocentral repousa na relação que se estabeleceuentre o LD e a prática pedagógica, e essa relaçãointerfere no estabelecimento de conteúdos eprogramas, nas práticas de ensino e na própriadinâmica do cotidiano escolar.

O vínculo entre o LD e a prática escolar seexplica por três razões principais: 1) aestruturação do sistema escolar na sociedadeindustrial de massa (que obriga a uma produ-ção em série e faz o LD se impor como necessi-dade pragmática para as políticas de educação eos agentes pedagógicos); 2) o papel ideal e ideo-logicamente atribuído à escola (que faz o LD to-mar para si a tarefa de estabelecer uma ponteentre as instâncias produtoras do conhecimen-to e o processo pedagógico e funcionar comoformulador do currículo); 3) a visão do alunocomo ser em formação (que dá origem a um pro-cesso de simplificação e padronização da expo-sição do conteúdo, na forma de um “didatismoreducionista”, segundo o autor).

O que também vale destacar do estudo deBritto é a riqueza de seus exemplos, queextrapolam os manuais didáticos tradicionais ese estendem aos livros paradidáticos, incluindo

análises de produções, traduções e adaptaçõespara o público infanto-juvenil.

Dentro da linha de pesquisa sobre o conteú-do ideológico do LD, citamos os trabalhos deBonazzi e Eco (1980), Nosella (1981) e Faria(1986). Ressalvadas certas peculiaridades decada estudo, os três apontam para a mistifica-ção da realidade presente no LD, que funciona-ria como veículo de transmissão da ideologiadominante e, por extensão, da reprodução dasrelações de produção da sociedade capitalista.

O estudo de Perez (1991) tem como objetivoidentificar e compreender o projeto de ensinode Língua Portuguesa e de Literatura Brasileirasubjacente a alguns manuais, pela análise desuas fontes teóricas e das relações dessa produ-ção com o contexto social, em geral, e com a in-dústria cultural em particular. Segundo o autor,a pretensão era captar o diálogo entre o “antigo”e o “novo” saber, isto é, verificar como os discur-sos contemporâneos sobre língua e literaturaforam incorporados ao LD, ou, como disse Joa-quim Fontes, no prefácio da obra, como essesdiscursos foram deslocados das universidades ecentros de pesquisa para o livro escolar.

Perez concluiu, em sua análise, que esses sa-beres constituem, na verdade, uma série de frag-mentos sobre língua e literatura, agrupados emdois blocos estanques. Considerando o LD umfetiche cultural, ele afirma que mudar o LD im-plica uma nova concepção de cultura e a trans-formação desse material em instrumento quepropicie o enriquecimento cultural, a reflexãosobre a sociedade e o acesso a formas efetivasde participação no capital cultural.

O livro de Freitag, Costa e Motta (1997) cons-titui um marco dos estudos acerca do LD. As au-toras realizaram um “estado da arte” do LD noBrasil, tomando para análise manuais e pesqui-sas produzidos nos últimos quinze a vinte anos.Nessa obra, defende-se que o estudo do LD nãofaz sentido se isolado dos demais componentesdo sistema educacional e que, por isso, a exposi-ção se organiza em torno dos seguintes eixos:histórico do LD, política do LD, economia do LD,conteúdo do LD, uso do LD pelo professor e peloaluno, o LD em seu contexto.

Em cada um dos eixos, as autoras procura-ram indicar os trabalhos de maior projeção, as

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Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professorSIMPÓSIO 19

lacunas de cada um e as críticas que merecem, àluz do debate internacional, do funcionamentodo sistema educacional brasileiro e do LD nocontexto da alfabetização e da leitura em geral.

Por fim, as autoras apresentam as conclu-sões, salientando que a pesquisa sobre LD noBrasil tem longa tradição e veio apresentar mai-or importância nos últimos cinco a dez anos. Elasainda ressaltam, ao lado da quantidade, a quali-dade, a profundidade e a heterogeneidade dostrabalhos empreendidos, dos quais tentaram fa-zer uma síntese, agrupando conhecimentosdispersos e buscando “inserir cada peça dessaprodução no imenso painel que representa aquestão do LD no Brasil, com vista à elaboraçãode um quadro básico para a formação e infor-mação do leitor”.

Mais recentemente, o LD passou a ser estuda-do na perspectiva teórica da análise do discurso.Na coletânea Interpretação, autoria e legitimaçãodo livro didático: língua materna e língua estran-geira, busca-se compreender o LD e seus usoscomo parte e momento do discurso escolar.

Destacamos, na obra, o trabalho de Coracini(1999a), que considera o LD um lugar de estabi-lização de sentidos – na medida em que ele mas-cara a constitutividade heterogênea e polifônicado sujeito do discurso – e de homogeneizaçãodo discurso – na medida em que veicula verda-des tidas como absolutas e inquestionáveis, res-paldadas que são pela Ciência.

Outra autora que se refere, nesses termos, aoLD é Souza (1999), para quem esse tipo de ma-terial constitui elo importante na corrente dodiscurso da competência, pois funciona comoespaço de um saber definido, pronto, acabado,correto e, por isso, fonte última e, às vezes, úni-ca de referência.

Citamos, ainda, dessa mesma coletânea, oartigo de Carmagnani (1999), que tematiza asconcepções de professor e aluno no LD e o ensi-no de redação em língua materna e língua es-trangeira. Diz Carmagnani que o professor e oaluno não são vistos como sujeitos situados po-lítica e ideologicamente, como ocupantes de lu-

gares específicos numa dada sociedade; ao con-trário, ambos são encarados como “executoresde tarefas” preconcebidas e padronizadas.1

Para concluir esta parte, reafirmamos quesão múltiplos os enfoques a partir dos quais sevem estudando e pesquisando o LD. Mas, a des-peito dessa diversidade, de um modo ou de ou-tro, os autores sempre colocam, para si e paraseus leitores, questões relativas à adoção ou nãodo LD e ao que se poderia fazer diante de suaslimitações e problemas (Mudar ou melhorar oLD? Aboli-lo? Preparar melhor o professor? Dar-lhe outras condições de vida e trabalho?).

No caso deste ensaio, por já termos feito umoutro estudo em que discutimos a adoção ou nãodo LD e possíveis critérios de análise, avaliaçãoe escolha (Suassuna, 1994), vamos propor umdeslocamento no eixo do debate e nos interro-gar sobre outros aspectos pertinentes ao tema.

Análise do discursoe livro didático:autoria e subjetividadePensamos que, embora já existam estudos

sobre o LD embasados em conceitos e pressu-postos teóricos da análise do discurso (AD),como já mostramos no item 1, não seria demaispropor mais este. A AD tem-se mostrado umcampo de conhecimento bastante produtivo noque diz respeito à investigação sobre o ensino-aprendizagem de línguas.

Em termos muito gerais, pode-se dizer que aAD tem como objeto de estudo específico o dis-curso como efeito de sentidos entre locutores. Alíngua seria, na verdade, o lugar material em quese realizam esses efeitos de sentido (Gregolin,1995). Assim, diante do texto, tomado como for-mulação do discurso, o analista deve-se perguntarnão apenas o que texto diz e como diz, mas tam-bém por que o texto diz o que diz (idem, ibidem).É ainda em Gregolin (1995: 20) que podemos ler oque significa empreender AD: “[significa] tentarentender e explicar como se constrói o sentido de

1 Silva e outros (1997) compartilham da mesma opinião e se referem à monofonização do discurso do aparelho escolar, cujo tom único é dadopelo material didático.

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um texto e como esse texto se articula com a his-tória e a sociedade que o produziu”.

A AD coloca-se diferentemente em relação àLingüística tradicional não apenas por articularos campos da língua e da ideologia, mas tam-bém porque parte de uma outra concepção desujeito (Possenti, 1995): não se trata mais do su-jeito idealizado, consciente, fonte dos sentidos,mas de um sujeito dividido, heterogêneo, cons-tituído pelo outro (e aqui se vê claramente a in-fluência da psicanálise na AD).

A questão que nos interessa de perto nesteartigo é exatamente a do sujeito (da autoria, maisprecisamente), no seguinte sentido: consideran-do que o processo de ensino-aprendizagem deLíngua Portuguesa é um discurso, que lugar (po-sição discursiva) cabe ao professor que escolhe/adota/usa o LD na aula? Seria o professor umautor (sujeito do discurso)?2

Para empreender a discussão, vamos tomarcomo referência um trabalho ainda inédito emque Possenti (2000) coloca questão parecida aotratar de textos de vestibulandos.

O autor inicia seu artigo afirmando que es-crever (bem) é mais uma questão de como doque uma questão de o quê. Segundo ele, houveum tempo em que a escola valorizava mais oconteúdo das redações, seja pela necessidadede tornar o aluno sujeito de um discurso críti-co, seja porque, a partir de um pressuposto bá-sico da Teoria da Informação, sem mensagemnão haveria texto. O autor defende, todavia,que, do mesmo modo como ler não é exatamen-te captar o conteúdo de um texto e, sim,desmontá-lo para ver como ele se constrói, paraverificar a relação entre seu modo de serconstruído e os efeitos de sentido que ele pro-duz, escrever seria, mais do que expor umamensagem, articular informações, idéias, dis-cursos; trabalhar sobre e a partir de outros tex-tos ou de textos de um outro.

A autoria residiria exatamente nessa opera-ção de construção do dizer a partir de outros di-

zeres. Há, portanto, uma relação intrínseca en-tre autoria e locutor (como falante responsávelpelo que diz) e a singularidade (forma peculiarpela qual o autor se faz presente no texto).

Possenti indaga em seu trabalho: Como co-locar a questão da autoria nas redações de ves-tibular?3 Se antes se considerava bom um textogramaticalmente correto, pois as categorias dejulgamento eram claramente estabelecidas nasgramáticas normativas, agora se trata de ir adi-ante: um texto só pode ser avaliado em termosdiscursivos, mais exatamente, “[...] a questão daqualidade do texto passa necessariamente pelaquestão da subjetividade e de sua inserção numquadro histórico – ou seja, num discurso – quelhe dê sentido” (Possenti, 2000: 3).

Trata-se, pois, para Possenti, de singularida-de e de tomada de posição do sujeito. Isso por-que o sujeito sempre enuncia a partir de posiçõeshistoricamente dadas, num aparelho discursivoinstitucionalizado e prévio. Assim, assumindouma posição histórico-ideológica, o sujeito, em-bora heterogêneo, cindido, pode ser ele mesmo,ou seja, diferente de outro que esteja numa mes-ma posição discursiva. O que vai distingui-los,conforme Possenti, é exatamente o como.

Prosseguindo em sua argumentação, o autortenta mostrar como seria possível identificar apresença do autor num texto, ou mesmo distin-guir textos com e sem autoria. Para tanto, ele fazalgumas afirmações:

1. Não basta que o texto satisfaça exigênciasde ordem gramatical.

2. Não basta que o texto satisfaça exigênciasde ordem textual.

3. As verdadeiras marcas de autoria são da or-dem do discurso, e não do texto ou da gra-mática.

Isso posto, Possenti estrutura sua tese: pode-se dizer que alguém se torna autor quando as-sume, fundamentalmente, duas atitudes:

a) dá voz a outros enunciadores, incorpora aoseu texto discursos correntes;

2 Souza (1999) também aborda essas questões, mas de um ângulo diferente. Ela mostra que a autoria do LD está associada, predominante-mente, ao sujeito escritor, considerado autor desde que sua autoridade seja legitimada pela editora que o valida. Souza ainda situa o autorcomo um “intérprete de conteúdos complexos”, responsável pela configuração do conhecimento a partir da seleção do conteúdo a serveiculado na escola.

3 Pensamos que a indagação é cabível também na discussão sobre os textos escolares em geral.

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Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professorSIMPÓSIO 19

b) mantém distância em relação ao própriotexto.

Em termos da primeira atitude, o discurso doautor, na verdade, não lhe pertence; pertence atoda uma comunidade cultural; seu discurso éatravessado pelo do outro. No entanto, nessegesto de dar voz a outros enunciadores, há algodo autor: o jeito, o como. Quanto a manter dis-tância, o locutor/enunciador constitui-se comotal por marcar sua posição em relação ao que dize também ao seu interlocutor. Essa marcação deposição é uma exigência do próprio discurso,decorrente do fato de que a língua não é um có-digo transparente e sua relação com a posição/ideologia não é direta.

Assim, o discurso e a intervenção no discur-so se estruturam:

a) no sentido histórico, pois não se trata deinvenção individual (há um já-dito posto nasociedade);

b) no sentido da singularidade, pois não se tra-ta de intervenção idêntica à de um outrosujeito que esteja na mesma posição.

Uma questão importante, então, passa a ser:como dar voz ao(s) outro(s)? Para Possenti, é ocaso de fazer isso de modo variado, tomandoposições ou fazendo sentido de outras formas.O sujeito adequaria as suas escolhas ao contex-to, conferindo densidade ao seu discurso e rela-cionando-o com outros discursos e com a me-mória social em que ele está inscrito.

Para finalizar, o autor afirma que há indíciosde autoria quando os diversos recursos da línguasão agenciados de modo mais ou menos pessoal.Simultaneamente, o apelo a tais recursos só pro-duz efeitos de autoria quando eles são agencia-dos em contextos históricos definidos, pois sóassim é que fazem sentido.

ConclusãoNosso intuito, já anunciado, foi discutir o LD

com base em conceitos e fundamentos da análi-se do discurso. Especificamente, nossa questãodizia respeito à autoria e a questão teórica quenos preocupava era: o professor de Português, aousar o LD, é um autor?

A resposta, conforme nosso ponto de vista eo diálogo com o texto de Possenti (2000), é não.

Retomemos o pressuposto de que o processo deensino de Português é um discurso. Acrescente-mos que a aula seria um espaço de construçãoda autoria do professor. Argumentemos agoraem defesa desse não.

O professor não é autor da aula, primeiramen-te porque o como não cabe a ele e, sim, ao autordo LD, ou seja, este é quem articula discursos eos entrega ao professor, mero repassador do já-dito e já-articulado.

Em segundo lugar, pensando o professorcomo um leitor e tomando a concepção de leitu-ra de Possenti (2000), verifica-se que o professornão é o sujeito que desmonta os textos para vercomo eles são construídos, verificando a relaçãoentre a sua construção e os efeitos de sentido queproduzem. Estão fora do controle do professor aescolha e a desmontagem dos textos, tendo emvista que suas aulas são como momentos de umprojeto pedagógico. Os textos do LD, previamen-te escolhidos por um outro leitor, devem fazersentido em qualquer aula pensada em abstrato.

Outro aspecto a ser pensado é o da relaçãoautoria–locutor–singularidade. O professor nãoé o responsável pelo dizer do LD e, de modocorrelato, não se faz presente no fluxo do discur-so escolar de modo peculiar, não havendo aímarcas (indícios) de subjetividade.

Em quarto lugar, podemos fazer um paralelocom o que Possenti diz sobre a qualidade de umtexto. Esta passaria, necessariamente, pela ques-tão da subjetividade e de sua inserção num qua-dro histórico que lhe dê sentido. Se, de um lado,como já visto, não há subjetividade, por outro ladoé difícil acreditar que o professor (re)assumiria aautoria da aula – esta, um quadro histórico – aoreproduzir e repassar as escolhas de um outrosujeito, o autor do LD.

Mais um ponto a debater: “As verdadeirasmarcas de autoria são da ordem do discurso, e nãodo texto ou da gramática”. Transpondo a tese paraa sala de aula, vemos que o LD, por mais bem fun-damentado e elaborado que possa ser, por maisque tenha coerência interna, está fora da ordemdo discurso instituída na aula e por ela. Sua ado-ção é incompatível com a idéia do processo edu-cativo e da linguagem como eventos discursivos.

Quanto às duas atitudes que fazem de alguémum autor – dar voz a outros enunciadores e man-

ter distância em relação ao próprio texto –, não édo professor a “operação de caça” aos dizeres dosoutros;4 eles já estão ali, no LD, escolhidos, recor-tados, configurados; e, como a articulação dessesdizeres já está dada, não se pode dizer que o pro-fessor mantenha distância em relação ao seu pró-prio texto, já que este não existe como produto dareflexão e do trabalho docente (como manter dis-tância em relação ao meu dizer se eu não digo?).

Por último, e sem a pretensão de esgotar odebate, retomemos a idéia de Possenti, de queser autor é agenciar os recursos da língua demodo mais ou menos pessoal e de que esseagenciamento só produz efeitos de autoria quan-do se dá num contexto histórico definido. Háaqui uma questão bastante interessante: quaisrecursos (textos, informações, conceitos cientí-ficos, crenças, ideologias, conteúdos, dados cul-turais etc.) o professor agencia de modo mais oumenos pessoal em contextos históricos defini-dos (suas aulas)? Seria isso possível quando a elecabe, quando muito, escolher um LD a partir decatálogos pouco informativos? Seria isso possí-vel com o salário que ele ganha e com as condi-ções em que vive e trabalha? Seria isso possívelnuma escola sem biblioteca (o que significa di-zer livros, revistas, jornais, mapas e tambémaconchego, curiosidade, alegria de aprender)?5

Fica assumido aqui, portanto, que um impe-rativo da formação inicial e continuada do profes-sor é que ele seja um articulador de dizeres e umcrítico de seu próprio dizer. Isso só é exeqüível sehouver livros (sem adjetivo, como diria Geraldi),idéias a mancheias e um clima de vivência demo-crática em que a crítica seja uma constante. Comosugere Coracini (1999b), trata-se de abrir espaçopara a alteridade, para o estranhamento do outro;de promover a disseminação dos sentidos. Assimtalvez nos desobrigássemos da repetição de umavelha frase que sempre nos soou incômoda: “O li-vro didático é um mal necessário”.

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SUASSUNA, L. Contribuições ao debate sobre o material didá-tico de Língua Portuguesa. Leitura – teoria e prática, n. 24,p. 83-90, ano 13, dez. 1994.

4 A expressão “operação de caça” é de Michel de Certeau (1994), que a empregou para descrever o processo de leitura.

5 Cf. também Silva et al. (1997: 81): “Tal independência [a do professor em relação ao LD] só será conquistada pelo professor se este desenvol-ver suas próprias habilidades de leitura. É preciso gostar de ler – seja pelo prazer pessoal ou pelo comprometimento com a sua opção detrabalho – e criar um repertório significativo, que dê respaldo à necessidade prática do cotidiano escolar, incluindo obras literárias, oschamados paradidáticos, ensaios críticos e outros subsídios que o façam refletir sobre o exercício de sua atividade”.