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    A Importncia daAlfabetizao na Vida

    Humana

    Snia Maria CoelhoFaculdade de Cincias e Tecnologia, Departamento de Educao

    UNESP/Presidente Prudente

    Resumo: O texto discute o que a alfabetizao representa para o ser humano. Para isso, indica a forma pela

    qual a alfabetizao mantm uma proximidade com o mbito da vida cotidiana, ao mesmo tempo em que ela

    estabelece um elo na passagem para o mbito da vida no-cotidiana, pois, sem a linguagem escrita, o ingres-

    so nesse universo quase impossvel. Da mesma maneira, amplia o estudo sobre os conceitos cientcos na

    perspectiva de Vigotski e discute a importncia da alfabetizao para a insero dos indivduos nas esferas

    no-cotidianas da vida social, como a cincia, a losoa, a arte e o que isso representa na qualicao da vida

    humana.

    Palavras-chave: Alfabetizao, Teoria do cotidiano, Conceitos cientcos, Linguagem.

    No campo dos estudos sobre a alfabetizao, no um fato raro o de que a chamada fun-

    o social da linguagem escrita seja reduzida s esferas da vida cotidiana1 caracterizada pelopragmatismo2. Fica-se com a impresso de que a alfabetizao teria pouca ou nenhuma relaocom as esferas no-cotidianas. possvel que isso seja consequncia, ao menos em parte, deuma real ambivalncia da alfabetizao. Por um lado, a aquisioda linguagem escrita possui muitos aspectos em comum com o

    pragmatismo da vida cotidiana, como, por exemplo, a necessidadeda formao de certos automatismos pela repetio, dispensandoa reexo sobre as causas e as origens de certas coisas (no preci -samos saber por que escrevemos xcara com x e chcara com ch).

    Por outro lado, a elaborao do discurso escrito exige certa supe-rao da espontaneidade prpria da oralidade do cotidiano. Apesarde seu carter parcialmente pragmtico, a alfabetizao permite aconstruo das bases intelectuais para a aquisio dos conceitoscientcos, atravs da possibilidade de desenvolvimento da lin-guagem escrita. Ao mesmo tempo em que a alfabetizao mantmuma proximidade com o mbito da vida cotidiana, ela estabeleceum elo na passagem para o mbito da vida no-cotidiana, pois,

    1. Em todo homem, h uma vida

    cotidiana e esta pode ser entendida

    como o conjunto de atividades que

    caracterizam a reproduo dos ho-

    mens singulares, que, por sua vez,

    no seu conjunto, possibilitam a re-

    produo da sociedade.

    2. Pragmatismo a vida cotidiana

    normalmente no promove a dis-

    cusso do signifcado das aes,

    no so questionadas suas cau-

    sas, sua gnese; h uma unidade

    imediata entre pensamento e ao,

    sendo que as atividades da vida co-

    tidiana so sempre acompanhadas

    de f e conana.

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    sem a linguagem escrita, o ingresso nesse universo quase impossvel. O embrio desta ideiaest na hiptese de Duarte (1993; 1996), para quem a prtica pedaggica mediadora entre ocotidiano e o no-cotidiano na vida do indivduo.

    Este texto objetiva introduzir a discussoda importncia da alfabetizao para a inser-o dos indivduos nas esferas no-cotidia-nas3 da vida social, como a cincia e a arte, eo que isso representa na vida humana.

    A m de alcanarmos este entendimento, procuramos estabelecer as possveis relaes en-tre a teoria de Vigotski (2001), sobre aquisio dos conceitos cientcos e suas caractersticas;os estudos de Heller (1970; 1991), sobre a teoria da vida cotidiana; e as anlises empreendidas

    por Duarte (1993; 1996; 2000), sobre a educao escolar.

    Uma das grandes tarefas destinadas escola o trabalho com os processos de aquisio dosconceitos cientcos pelos alunos, proporcionados por meio dos diferentes campos de saberes,como Histria, Geograa, Fsica, Qumica, Biologia, Matemtica etc.

    A aprendizagem no comea s na idade escolar, ela existe tambm na idade pr--escolar. Uma investigao futura provavelmente mostrar que os conceitos es-

    pontneos so um produto da aprendizagem pr-escolar tanto quanto os conceitoscientcos so um produto da aprendizagem escolar (VIGOTSKI, 2001, p. 388).

    Com isso, acreditamos que os conceitos bsicos, elementares, correspondentes s referidasreas de conhecimento, possibilitem que os alunos estabeleam outra forma de relacionamento

    com a vida. Essa relao, mediada pela cincia, pela arte, pela losoa, poderia ajud-los aromper com a sua cotidianidade:

    O desenvolvimento dos conceitos cientcos na idade escolar , antes de tudo, umaquesto prtica de imensa importncia - talvez at primordial - do ponto de vistadas tarefas que a escola tem diante de si quando inicia a criana no sistema de con-ceitos cientcos (VIGOTSKI, 2001, p. 241).

    Todos esses processos de aquisio de conceitos cientcos no seriam possveis sem autilizao/mediao da linguagem escrita, o que nos faz pensar na importncia que assume,na vida do indivduo, o fato de ele estar alfabetizado, podendo partilhar de situaes em que a

    escrita esteja presente e seja necessria.

    Formao e importncia dos conceitoscientficos

    Em sua obraPensamento e Linguagem, cuja traduo em portugus ganhou o novo ttulodeA Construo do Pensamento e da Linguagem, no captulo dedicado do desenvolvimentodos conceitos cientcos na infncia, Vigotski (2001) destaca a importncia de que se reveste

    3.Atividades no-cotidianas so aquelas que permitem

    o processo de humanizao, facultando ao indivduo alar

    esferas superiores de realizao e compreenso em sua

    existncia. Segundo Heller, tambm analisadas por Duarte

    (1996), so as apropriaes das objetivaes produzidas

    nos campos da cincia, arte, flosofa, moral e poltica.

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    o estudo sobre o desenvolvimento de tais conceitos, pelo fato de os mesmos terem decisivainuncia sobre todo o processo de desenvolvimento intelectual da criana:

    [...] o acmulo de conhecimentos leva invariavelmente ao aumento dos tipos de

    pensamento cientfco, o que, por sua vez, se manifesta no desenvolvimento dopensamento espontneo e redunda na tese do papel prevalente da aprendizagemno desenvolvimento do aluno escolar. [...] O curso do desenvolvimento do conceitocientco nas cincias sociais transcorre sob as condies do processo educacional,que constitui uma forma original de colaborao sistemtica entre o pedagogo e acriana, colaborao essa em cujo processo ocorre o amadurecimento das funes

    psicolgicas superiores da criana com o auxlio e a participao do adulto (VI-GOTSKI, 2001, p. 243-244, grifo nosso).

    Desta maneira, a descoberta da complexa relao entre o aprendizado e o desenvolvimentodos conceitos cientcos valiosssima para a pedagogia, pois o desenvolvimento dos conceitosno pensamento da criana deve realizar-se da mesma maneira que os pensamentos se apresen-tam em cada uma das suas fases de desenvolvimento, pois estes no so adquiridos de formamecnica, mas evoluem a partir de uma intensa atividade mental que a criana desenvolve.

    [...] um conceito muito mais que a soma de certos vnculos associativos formadospela memria, mais do que um simples hbito mental; um ato real e complexode pensamento que no pode ser aprendido por meio de simples memorizao,s podendo ser realizado quando o prprio desenvolvimento mental da criana

    j houver atingido o seu nvel mais elevado. [...] em qualquer nvel do seu desen-

    volvimento, o conceito , em termos psicolgicos, um ato de generalizao (VI-

    GOTSKI, 2001, p. 246, grifo nosso).

    Na concepo de Vigotski (2001), os dois processos desenvolvimento dos conceitos espon-tneos e dos conceitos no-espontneos inuenciam-se mtua e constantemente, como partede um nico processo, no qual o desenvolvimento de conceitos, sendo afetado por diferentescondies externas e internas, torna-se essencialmente um processo unitrio e no um coni-to entre formas de pensamento antagnicas e mutuamente exclusivas. Ainda de acordo comesse estudioso, o desenvolvimento dos conceitos cientcos exige que uma srie de funes sedesenvolvam: ateno voluntria, memria lgica, abstrao, comparao, discriminao, asquais jamais poderiam ser memorizadas ou simplesmente assimiladas

    O desenvolvimento dos conceitos espontneos e cientcos cabe pressupor - soprocessos intimamente interligados, que exercem inuncias um sobre o outro.[...] o desenvolvimento dos conceitos cientcos deve apoiar-se forosamente emum determinado nvel de maturao dos conceitos espontneos, que no podemser indiferentes formao de conceitos cientcos simplesmente porque a expe-rincia imediata nos ensina que o desenvolvimento dos conceitos cientcos s setorna possvel depois que os conceitos espontneos da criana atingiram um nvel

    prprio do incio da idade escolar (VIGOTSKI, 2001, p. 261).

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    Pela aprendizagem, principalmente, a criana na idade escolar forma seus conceitos cient-cos e desenvolve-se mentalmente. Vigotski (2001) destaca algumas evidncias sobre o papelda aprendizagem e do professor no desenvolvimento mental da criana, uma vez que

    [...] no processo de ensino do sistema de conhecimentos, ensina-se criana o queela no tem diante dos olhos, o que vai alm dos limites da sua experincia atual eda eventual experincia imediata (VIGOTSKI, 2001, p. 268).

    O estudioso indica-nos a importncia que assumem os processos de aprendizagem para odesenvolvimento geral da criana, uma vez que, hoje, se ela necessita de ajuda para a realiza-o de uma tarefa, amanh, ela a far sem auxlio. esse o signicado do famoso conceitovigotskiano de zona de desenvolvimento proximal.

    Quando fala dos conceitos espontneos, Vigotski (2001) arma que eles no se organizamem uma estrutura lgica, nem tm organizao lgica entre si, no formam um sistema, em-

    bora guardem relaes com objetos, elementos da realidade. Ele declara que sua investigaotinha como objeto a constatao de que

    [...] a curva do desenvolvimento dos conceitos cientcos no coincide com a curvado desenvolvimento dos espontneos, mas, ao mesmo tempo e precisamente emfuno disto, revela as mais complexas relaes de reciprocidade com ela. Essasrelaes seriam impossveis se os conceitos cientcos simplesmente repetissem ahistria do desenvolvimento dos conceitos espontneos (VIGOTSKI, 2001, p. 351).

    A partir desse pensamento, questiona se os conceitos cientcos podem melhorar uma reade desenvolvimento ainda no ocorrida na vida da criana ou se podem antecipar o prprio

    desenvolvimento e as possibilidades da criana.[...] neste caso, comeamos a entender que a aprendizagem dos conceitos cient-cos pode efetivamente desempenhar um papel imenso e decisivo em todo desen-volvimento intelectual da criana (VIGOTSKI, 2001, p. 352).

    Certamente, podemos reetir sobre a importncia dos conceitos cientcos no desenvolvi-mento do aluno, principalmente em face dos processos de alfabetizao a que esto sujeitos navida escolar.

    A Alfabetizao e o desenvolvimento dosconceitos cientficos

    A alfabetizao pe nas mos dos indivduos um poderoso instrumento, tanto para a apro-priao dos conceitos cientcos, como para a objetivao do pensamento cientco. O mesmopodemos armar em relao losoa e a certos campos da arte. A alfabetizao pode seconstituir em um momento preparador para o ingresso nesses universos.

    Pautando-se em pesquisas realizadas em vrios pases e em suas prprias pesquisas, Vi-gotski (2001) sustenta que

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    [...] a aprendizagem da escrita uma das matrias mais importantes da aprendi-zagem escolar em pleno incio da escola, que ela desencadeia para a vida o de-senvolvimento de todas as funes que ainda no amadureceram na criana (VI-GOTSKI, 2001, p. 332).

    [...]

    A criana comea a aprender a escrever quando ainda no possui todas as funesque lhe assegurem a linguagem escrita. precisamente por isso que a aprendiza-gem da escrita desencadeia e conduz o desenvolvimento dessas funes [psquicassuperiores. SMC] (VIGOTSKI, 2001, p. 336).

    Vigotski (2001) esclarece muitos pontos sobre a idade escolar da criana. Ele descobreque, nessa fase, a criana adquire novas formaes que so essenciais para as funes b-sicas requeridas na aprendizagem escolar. Trata-se da tomada de conscincia e da formaoda voluntariedade, que se iniciam nessa idade, mas s se desenvolvem plenamente durante aadolescncia. Arma que a idade escolar o perodo optimal da aprendizagem ou, como eledenomina, trata-se de uma fase sensvel para as aquisies de conhecimentos nas disciplinasque se apiem nas funes conscientizadas e arbitrrias.

    Todas as funes bsicas envolvidas na aprendi-zagem escolar giram em torno do eixo das novasformaes essenciais da idade escolar: da tomadade conscincia e da voluntariedade4 (VIGOTSKI,2001, p. 337).

    Apesar de tudo isso, a criana no consegue ter conscincia dos seus processos mentaissuperiores, uma vez que,

    [...] na idade escolar tambm se intelectualizam e se tornam voluntrias todas asfunes intelectuais bsicas, exceto o prprio intelecto no sentido propriamentedito da palavra (VIGOTSKI, 2001, p. 283, grifo do autor).

    Isto signica que a conscincia e a capacidade de controle aparecem apenas em um estgiomais tardio do desenvolvimento. Segundo a sua concepo, para que uma funo possa sesubmeter ao controle da vontade e do intelecto, primeiro temos que nos apropriar dela. Citandocomo exemplo o processo de aquisio da lecto-escrita, podemos vericar o modo como a

    criana utiliza a linguagem com certa complexidade, embora ainda no possua conscincia dosmecanismos e processos internos a ela, tais como a ortograa, a gramtica, a sintaxe.

    Examinando as experincias realizadas por Vigotski (2001) e colaboradores, citadas emAConstruo do Pensamento e da Linguagem, nas quais eles vericaram o nvel do desenvolvi-mento das funes psquicas necessrias para a aprendizagem das matrias escolares bsicas

    leitura e escrita, gramtica, aritmtica, cincias sociais e cincias naturais vericamos que,

    [...] at o momento de incio da aprendizagem, as crianas que as haviam estudado

    [as matrias escolares. SMC] com muito sucesso no demonstraram o menor ind-

    4. Usamos neste trabalho o termo vo-

    luntariedade ao invs de arbitrarieda-

    de, como consta nas tradues para o

    espanhol, pelo fato de que esta palavra

    defne melhor, na lngua portuguesa, o

    signifcado que o autor pretendia.

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    cio de maturidade naquelas premissas psico-lgicas que segundo a primeira teoria5, deve-riam anteceder o prprio incio da aprendiza-gem (VIGOTSKI, 2001, p. 311, grifo nosso),

    Desse modo, as crianas no tinham que evidenciar condio especial facilitadora alguma,nem inclinao pelas disciplinas consideradas ou tendncia para tais reas de estudo.

    A investigao de Vigotski (2001) mostrou que a escrita, nos traos essenciais do seudesenvolvimento, diferente da histria do desenvolvimento da fala, uma vez que possuemfunes lingusticas distintas, funcionamento e estruturas diferentes, sendo as semelhanasentre os dois processos mais de aparncia que de essncia (p. 312). A criana que aprende aescrever precisa abstrair o aspecto sensorial da fala, usar uma linguagem abstrata que subs-titui as palavras por suas respectivas representaes. Isso signica uma diculdade muitogrande para a criana. Aliado a tal fator, aparece o de que a escrita uma fala sem interlo-cutor, dirigida a uma pessoa ausente, imaginria, ou seja, no determinada especialmente. Adinmica existente em uma conversao facilita o desenvolvimento da fala pelas exignciasda prpria situao, porm, no caso da escrita, as motivaes so mais abstratas, os motivosmais intelectualizados e distantes das necessidades imediatas. Nem sempre se apresentams crianas situaes em que a necessidade da escrita seja clara e evidente, vinculadas suarealidade. Abaixo, destacamos algumas passagens nas quais Vigotski (2001) mostra o quoabstrata a linguagem escrita para a criana:

    A escrita uma funo especca da linguagem, que difere da fala no menoscomo a linguagem interior difere da linguagem exterior pela estrutura e pelo modode funcionamento. Como mostra a nossa investigao, a linguagem escrita requer

    para o seu transcurso pelo menos um desenvolvimento mnimo de um alto grau deabstrao. [...]Como mostram as investigaes, exatamente esse lado abstratoda escrita, o fato de que essa linguagem apenas pensada e no pronunciada queconstitui uma das maiores diculdades com que se defronta a criana no processode apreenso da escrita (p. 312-313). Pode-se at armar com base em dados dainvestigao que esse aluno, ao se iniciar na escrita, alm de no sentir necessida-de dessa nova funo de linguagem, ainda tem uma noo extremamente vaga dautilidade que essa funo pode ter para ele. (VIGOTSKI, 2001, p. 314-315).

    Notamos que o carter abstrato da escrita , em si mesmo, um fator de diculdade para a crian-a no processo de sua aquisio e, principalmente, como a criana utiliza outro tipo de linguagem(oral), no sente, pelo menos inicialmente, necessidade alguma de utilizao da escrita.

    Essas descobertas de Vigotski (2001) podem ser relacionadas com os fundamentos da teoriahelleriana sobre o pensamento e a estrutura da vida cotidiana, segundo os quais as atividadesdo indivduo tendem ao humano-genrico6 como parte de um processo de desenvolvimento.Conforme suas armaes constantes, as atividades cotidianas so parte integrante da vida

    5.A teoria a que Vigotski se refere considera

    a aprendizagem como independente do de-

    senvolvimento, sendo que, para essa teo-

    ria, primeiro ocorreria o desenvolvimento e,

    depois, como decorrncia, a aprendizagem.

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    do indivduo no mbito do em-si e, para atingirem um nvel derealizaes no mbito dopara-si, precisam evoluir ao nvel das

    atividades no-cotidianas. Conforme o prprio conceito de vida

    cotidiana prev, para que o sujeito possa desenvolver-se, pre-

    ciso que consiga realizar algumas tarefas, como, por exemplo,

    as que fazem parte do processo de alfabetizao, que lhe permi-tiro um nvel de realizaes mais amplas. Assim, a mediao

    entre os mbitos cotidiano e no-cotidiano, na vida do indivduo, ser facilitada pela alfabetiza-

    o, uma vez que esta poder proporcionar condies de elevao qualitativa das relaes que

    o indivduo mantm com a realidade humana da qual ele parte, j que a maioria dos contatos

    com as objetivaes superiores do gnero humano requer a mediao da linguagem escrita.

    Consideramos que, por meio da alfabetizao, a conquista da linguagem escrita favorece

    o processo de apropriao de conceitos cientcos, os quais, por sua vez, promovem de cimapara baixo uma reestruturao e reelaborao dos conceitos cotidianos. As funes mentais

    superiores, apontadas na teoria vigotskiana, desenvolvem-se de modo a propiciar o controle

    deliberado das aes, o que por sua vez ir reetir-se no processo de desenvolvimento geraldo sujeito. Esse desenvolvimento da conscincia facilita o uso deliberado da memria que,

    deixando de ser mecnica, atinge um patamar mais lgico. O conceito, dessa maneira, s pode

    tornar-se objeto da conscincia e do controle deliberado quando comea a fazer parte de um

    sistema, segundo o qual a generalizao possibilita ordenamentos de conceitos hierarquizados

    em diferentes nveis de generalidade.

    Como o prprio Vigotski (2001) arma, existe uma diferena entre inconsciente e no--conscientizado:

    [...] o no-conscientizado ainda no inconsciente em parte nem consciente emparte. No signica um grau de conscincia, mas outra orientao da atividade daconscincia (VIGOTSKI, 2001, p. 288, grifo nosso).

    Para ele, o aprendizado escolar e, para nossa compreenso, o processo de alfabetizao em

    especial, permitem uma percepo generalizante que desempenha um papel importante e de-cisivo na conscientizao que a criana ter de seus prprios processos mentais.

    A conscincia e a inteno tambm orientam desde o incio a linguagem escritada criana. Os signos da linguagem escrita e o seu emprego so assimilados pelacriana de modo consciente e arbitrrio [voluntrio, SMC], ao contrrio do empre-

    go e da assimilao inconscientes de todo o aspecto sonoro da fala.A escrita leva a

    criana a agir de modo mais intelectual. Leva-a a ter mais conscincia do prprioprocesso da fala. Os motivos da escrita so mais abstratos, mais intelectualsticos emais distantes do emprego7 (VIGOTSKI, 2001, p. 318, grifo nosso).

    6. Todo indivduo particular, sin-

    gular, no que diz respeito aos seus

    interesses prprios, mais imedia-

    tos, e passa a ser humano-genrico

    quando transcende os interesses

    imediatos e passa a se preocupar

    com a realizao do que prprio

    essncia humana.

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    Os conceitos cientcos formam um sistema hierrquico de inter--relaes, que parece constituir o modo pelo qual sua generalizaoe domnio se desenvolvem, isto , esse sistema hierrquico de rela-es mtuas que possibilita aos conceitos cientcos serem gene-

    ralizados e dominados, atravs de uma tomada de conscincia peloindivduo. Segundo Vigotski, esse sistema mais tarde poder sertransferido a outros conceitos e a outras reas do pensamento. Osconceitos cientcos so os portes atravs dos quais a tomada deconscincia penetra no reino dos conceitos infantis (2001, p. 295).Esses rudimentos de sistematizao, primeiro, entram na mente da criana por meio do seucontato com os conceitos cientcos, para serem, depois, transferidos para os conceitos cotidia-nos, mudando a sua estrutura psicolgica de cima para baixo:

    [...] poderamos dizer convencionalmente que o conceito espontneo da criana

    se desenvolve de baixo para cima, das propriedades mais elementares e inferioress superiores, ao passo que os conceitos cientcos se desenvolvem de cima para

    baixo, das propriedades mais complexas e superiores para as mais elementares einferiores (VIGOTSKI, 2001, p. 348).

    De acordo com esse pensamento, os conceitos cientcos e espontneos se desenvolvem emdirees opostas, mas so processos intimamente relacionados, pois, para absorver um concei-to cientco, preciso que a criana j tenha desenvolvido um conceito espontneo correlato.

    Desse modo, o desenvolvimento dos conceitos cientco e espontneo segue ca-minhos dirigidos em sentido contrrio, ambos os processos esto internamente

    e da maneira mais profunda inter-relacionados. O desenvolvimento do conceitoespontneo da criana deve atingir um determinado nvel para que a criana possaapreender o conceito cientco e tomar conscincia dele. Em seus conceitos espon-tneos, a criana deve atingir aquele limiar alm do qual se torna possvel a tomadade conscincia (VIGOTSKI, 2001, p. 349).

    Uma criana conjuga e declina os mais diferentes verbos e no sabe que o est fazendo. Aatividade foi assimilada da mesma forma que a composio fontica das palavras. Vigotski(2001) arma que [...] ela domina certas habilidades no campo da linguagem, mas no sabeque as domina (p. 320). Isto acontece porque ela tem um domnio espontneo sobre as opera -es que realiza, algumas vezes at de forma extremamente mecnica, porm,

    [...] na escola a criana aprende particularmente graas escrita e gramtica, a to-mar conscincia do que faz e a operar voluntariamente com as suas prprias habili-dades. Suas prprias habilidades se transferem do plano inconsciente e autnomo

    para o plano arbitrrio [voluntrio, SMC], intencional e consciente (VIGOTSKI,2001, p. 320-321, grifo nosso).

    Estas ideias podem esclarecer as ocorrncias que marcam o processo de alfabetizao,como sendo o momento determinante dessa tomada de conscincia, ou seja, da possibilidadede ocorrer a passagem das objetivaes genricas em-si s objetivaes genricas para-si.

    7. Consultando Obras Escogidas

    de Vigotski (1993) vol II, encon-

    tramos uma diferena no texto

    correspondente a este que cita-

    mos e que provoca uma mudan-

    a no seu sentido: Los motivos

    del lengaje escrito son ms abs-

    tractos, mas intelectuales, estn

    mas alejados de la necessidade

    (p.232, grifos nossos).

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    Duarte (1996) explicita esse contexto terico, defendendo uma concepo de educao es-colar como mediadora, no processo de formao geral do indivduo, que se realiza entre as es-feras da vida cotidiana e as no-cotidianas das objetivaes do gnero humano. Acrescentamosa esse pensamento a ideia sobre a alfabetizao como um processo marcadamente importante

    nessa mediao, j que atravs dela que os indivduos adquirem condies plenas de aper-ceberem-se dos carecimentos em nvel cada vez mais elevados, voltados para as objetivaesgenricas para-si.

    RefernciasDUARTE, Newton. A individualidade para-si - contribuio a uma teoria histrico social da formao doindivduo. Campinas: Autores Associados, 1993. 227 p.

    DUARTE, Newton. Educao escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski. Campinas: AutoresAssociados, 1996. 115 p.

    DUARTE, Newton. Vigotski e o aprender a aprender: crtica s apropriaes neoliberais e ps-modernasda teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2000. 297 p.

    HELLER, Agnes. Cotidiano e Histria. Traduo de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1970. 122 p. (Srie Interpretaes da histria do homem, v. 2).

    HELLER, Agnes. Sociologa de la Vida Cotidiana. 3. ed.Traduo de J. F. Yvars e E. Prez Nadal. Barcelona:Pennsula, 1991. 421 p.

    VIGOTSKI, L. S. A construo do pensamento e da linguagem. Traduo do russo Paulo Bezerra. SoPaulo: Martins Fontes, 2001. 496 p.