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Alfabetização: Aprendizagem: Psicologia educacional 370.156GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULOSECRETARIA DA EDUCAÇÃOFUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTODA EDUCAÇÃODISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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ALFABETIZAÇÃO HOJE

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA EDUCAÇÃO

FUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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1a reimpressão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, Sp' Brasil)

Alfabetização hoje/ organizadoras Elisabeth Camargo Prado, Maria Amélia Azevedo, Maria Lucia Marques. - 3. ed. - São Paulo: Cortez, 1997.

ISBN 85-249-0535-2

J. Alfabetização 2. Prática de ensino 3. Psicologia educacional L Prado, Elisabeth Camargo 11. Azevedo, Maria Amélia III. Marques, Maria Lucia.

94-2335 CDD-370.156

índices para catálogo sistemático:

I. Alfabetização: Aprendizagem: Psicologia educacional 370.156

Maria Amélia Azevedo Maria Lucia Marques

ORGANIZADORAS

, Elisabeth Camargo Prado • Heloysa Dantas de Souza Pinto •

José Juvêncio Barbosa • Leda Verdiani Tfouni • Maria Amélia Azevedo • Maria Lilcia Marques • Yves de La Taille

f/IItI

ALFABETIZAÇAO HOJE .

3º edicão,

G!!! C.ORTEZ \5'eDITOR~

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ALFABETIZAÇÃO HOJE Maria Amélia Azevedo e Maria Lucia Marques (Orgs.)

I II

Capa: Desenho de Luis Trimano

Arte-final: Agnaldo J. Soares LealRevisão: Maria de Lourdes de Almeida, Marise S.

Composição: Dany Editora Ltda. \ Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales I

\

\

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização

expressa das autoras e do editor.

© 1994 by Autoras

Direitos para esta edição

CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 387 - tel.: (011) 864-0111

05009-000 - São Paulo - SP

Impresso no Brasil- maio de 1998

,

\

Sumário

Apresentação

As organizadoras 7

PARTE I - PESQUISA

CAPíTULO 1 Quando as crianças permanecem pré-silábicas:

uma busca de explicações

Maria Lucia Marques 11

PARTE 11 - REFLEXÕES CAPÍTULO 2

I'ara a coristrução de uma teoria crítica alfabetização escolar

Maria Amélia Azevedo ..

em

31

('I\PÍTULO 3

A escrita - remédio ou veneno?

/./'{/a Verdiani Tfouni 51

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CAPÍTULO 4

Os fabricantes do sentido José Juvêncio Barbosa .. 71

PARTE IH - PROPOSTAS CAPÍTULO 5 Leitura: questão escolar ou comunitária

Maria Amélia Azevedo ......... . 79

CAPÍTULO 6 Leitores já: comentando o texto "A leitura, uma

questão comunitária", de Jean Foucambert

Yves de La T aille ............... . 84

CAP(TULO 7 Alfabetização: responsabilidade do professor ou

da escola? Heloysa Dantas de Souza Pinto Elisabeth Camargo Prado .... 93

APRESENTAÇÃO

CARTA AO LEITOR

Gostaria que um livro não se outorgasse a si mesmo o status de texto, ao qual a pedagogia ou a crítica saberão reduzi·lo; mas que tivesse a desenvoltura de se apresentar como discurso: simultaneamente, batalha e arma, estratégia e choque, luta e troféu ou ferimento , conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível.

Michel Foucault

Mais um livro sobre alfabetização? Por quê? Para quem? Enquanto o Brasil continua sem vencer o "grande não do analfabetismo"? Em parte, a resposta a essas possíveis indagações está já no próprio título que escolhe­mos: Alfabetização Hoje. Trata-se, em primeiro lugar, de um livro não para tranqüilizar, mas sim para suscitar polêmicas, debates ... , para alimentar o saudável hábito da discussão inteligente, crítica, comprometida. Em segundo lugar, trata-se de um livro voltado para aspectos bastante atuais do mundo da alfabetização escolar: a importância da escrita, o pseudodi\ema alfabetização versus leituriza-ção, os caminhos para além do construtivismo-interacionismo l',IC .

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I

ill I

Como se trata, por sua vez, de uma obra destinada principalmente a professores em exercício ou em formação, procuramos organizar didaticamente os capítulos, dispon­II do-os em três blocos temáticos. No primeiro, incluímos

I um relato de pesquisa sobre alfabetização escolar, capaz de suscitar vários questionamentos acerca das possibilidades e dos limites do processo de construção da leitura e da escrita no cotidiano de nosso sistema educacional oficial,

II e mesmo dentro de uma intervenção pedagógica constru­tivista interacionista de boa qualidade.

No segundo bloco concentramos os capítulos de caráter mais reflexivo, destinados a levantar questões direta ou indiretamente ligadas a uma abordagem histórico-crítica da problemática da alfabetização escolar. No terceiro e último bloco, finalmente, estão os capítulos que apresentam ca­minhos ainda pouco trilhados, mas que - se bem traba­lhados - poderão representar propostas interessantes. Es­colhemos, intencionalmente, propostas de trabalho no Brasil e no Exterior, a fim de estimular considerações comparativas.

Longe de favorecer a famigerada "Síndrome de Aco­modação" a modismos e/ou tradições na área da alfabeti­zação escolar, este livro se propõe a desencadear rupturas. Rupturas que redundem a curto e médio prazo em um saudável processo de repensar a alfabetização escolar, atra­vés da pesquisa, do refletir e do agir.

A expectativa é a de que, para tanto, você, leitor, leia cada capítulo em suas linhas e entrelinhas e, através desse exercício de desconstrução, crie o texto do seu próprio papel no processo inadiável de combate ao anal­fabetismo, enquanto sintoma dramático de nossa indigência cultural e política.

As organizadoras.

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11:1

PARTE 1- PESQUISA

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CAPíTULO 1

Quando as crianças permanecem pré-silábicas: uma busca de explicações

Maria Lucia Marques*

I. Introdução

Se a década de 80, na área da alfabetização escolar, teve como marco a publicação do livro Psicogênese da Língua Escrita de Ferreiro e Teberosky (1) e a apropriação de seu conteúdo por alguns educadores, podemos dizer que a de 90 assiste ao nascimento de muitas questões relativas fi aplicação da teoria construtivista-interacionista em sala de aula. '

Tais questões dizem respeito a aspectos não-contem­plados pelas autoras, ou simplesmente não-explorados o suficiente em suas diversas obras [(1), (2), (3), (4), (5), (6)], mas presentes na mente dos professores. Um desses pro­blemas diz respeito àquelas crianças que permanecem pré­

* Doutoranda em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da lIniversidade de São Paulo, Professora da Universidade Paulista e das Faculdades Costa Braga.

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silábicas durante todo um ano letivo, apesar de participarem de uma intervenção pedagógica de boa qualidade e ainda não terem experimentado o fardo do fracasso escolar.

II Compartilhando essa inquietação com muitos educa­dores, transformamos este problema em tema de pesquisai durante o ano de 1991.I

2. As escolas, as classes, as crianças

Nosso primeiro passo foi selecionar professores da rede pública que norteassem seu trabalho por uma vertente construtivista-interacionista e que estivessem dispostos a compartilhar conosco o cotidiano da sala de aula.

A opção pela rede pública deveu-se ao fato de ela atender 80% do total de crianças que ingressam na 1a sé­rie, e por considerarmos que essas crianças representam, do ponto de vista social, uma fatia bastante significativa da população.

Ao todo nossa amostra era composta por 121 crianças de ambos os sexos, que freqüentavam pela primeira vez a 1a série. Tinham em média 7 anos e eram pertencentes às classes populares.

Distribuíam-se em três escolas do município de Dia­dema, na Grande São Paulo, sendo duas classes (Turma I e Turma 11) pertencentes a uma escola próxima ao centro da cidade (Escola A), uma classe de uma escola de bairro (Escola B) e uma quarta classe de uma escola de periferia (Escola C).

I. Consulte-se a dissertação de mestrado Estudo Psicopedagógico da Criança Pré-Silábica "Resistente" dentro de uma Intervenção Pedagógica Construtivista-Interacionista (7), na Biblioteca do Instituto de Psicologia da USP.

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Desde o primeiro contato com as crianças, no iniCIO

do ano, estas foram informadas de que estávamos interes­sadas em saber como elas escreviam e que para isso nos encontraríamos pelo menos uma vez por semana durante todo o ano. Em todas as classes, a relação com as professoras e as crianças era informal e cooperativa, de forma que estas espontaneamente nos· mostravam suas produções, man­davam bilhetes, desenhavam e escreviam na lousa pequenas mensagens de carinho. Presenteavam-nos com balas, figu­rinhas e pedaços de papéis desenhados.

Como nosso interesse não era a trajetória de todas as crianças no processo de apropriação da base alfabética da escrita, e sim somente o daquelas que iniciavam o ano letivo pré-silabicamente, logo no segundo dia propunha-se a cada classe uma atividade de lectoescritura, a qual consistia na escrita e na posterior leitura de um monossílabo, um dissílabo, um trissílabo, um polissílabo e uma frase. As palavras e a frase escolhida foram extraídas do livro () Peixe Pixote (8) e deveriam ser escritas em uma folha previamente preparada com as ilustrações, sem que os alunos trocassem informações entre si. A leitura ocorria individualmente logo após a escrita.

Esta atividade - chamada de Avaliação Diagnóstica I - foi utilizada como um instrumento para sabermos em que nível da psicogênese da Língua escrita as crianças se encontravam. Nos casos em que essa avaliação não foi suficiente, pedimos que as crianças construíssem uma lista de nomes (animais, brinquedos ou doces). Na Figura 1.1 podemos ver um exemplo dessa folha de registro.

Com os resultados dessa Avaliação Diagnóstica encontramos um total de 61 crianças (aproximadamente 50% do total de sujeitos) com a concepção pré-silábica da língua escrita. Na época, pedimos para que as professoras observassem mais atentamente essas crianças e nos infor­

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Figura 1.1

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Nome: _________________________________________

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mas sem quando houvessem mudado de concepção. Em junho do mesmo ano, isto é, decorridos quatro meses de intervenção pedagógica, fomos informados de que aproxi­madamente 75% delas haviam avançado rumo à hipótese alfabética. Nesse momento realizamos a Avaliação Diag­nóstica lI, efetuada nos mesmos moldes da Avaliação Diagnóstica I, mudando apenas as palavras e a frase, as quais foram agora extraídas do livro A Pipa Pepita (9). Na Fjgura 1.2 há também um exemplo da folha-registro respectiva.111

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Figura 1.2

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* Nom,. ___

Nome: _______________________________

Nome:

Os resultados dessa avaliação, que podem ser lidos na Figura 1.3, apontam para o fato de que apenas 11 crianças permaneciam, agora, pré-silábicas (18,6%).2

Embora se estivesse em meados do ano letivo de 1991 - e fosse, portanto, um absurdo desacreditar da capacidade dessas 11 crianças saírem, ainda durante esse ano, do nível pré-silábico rumo ao alfabético - a verdade 6 que, elas eram minoria em suas classes e preocupavam os professores, já que todos os demajs haviam avançado.

2. Esta porcentagem foi encontrada considerando 59 crianças como sendo pré-silábicas no inicio do ano, visto que durante a pesquisa perdemos dois sujeitos da amostra.

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Figura 1.3 Porcentagem de sujeitos pré-silábicos nas Avaliações Diagnósticas I e 11, realizadas durante o ano letivo.

100%

69 Sujeitos

18,6%

lI Sujeitos

Avaliação Diagnóstica II - JUN.Avaliação Diagnóstica [ - FEV.

Por outro lado, essa mesma avaliação indicava que outras 11 crianças, anteriormente pré-silábicas e sob as mesmas características de intervenção pedagógica, já haviam atingido a base alfabética. Tínhamos, assim, dois extremos de um continuum: pré-silábicos e alfabéticos. Como explicar o que estaria acontecendo? i~l

I Levantamos três eixos para nortear nossa investigação dos possíveis condicionantes dessa permanência: a expe­riência prévia de escolarização, as características da pró­pria criança e o uso que suas famílias faziam da línguaI \ escrita. Como seria um estudo comparativo entre as crianças, criamos dois grupos: o Grupo dos alfabéticos (Grupo A) e o dos pré-silábicos "resistentes" (Grupo B), o qual, no fim do ano letivo, daria origem ao Grupo B1, composto

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I

Ib

pelas 3 únicas crianças que permaneceriam pré-silábicas até o fim do ano (Grupo dos pré-silábicos resistentes "residuais").

3. Os resultados encontrados nos três eixos escolhidos

Buscando a explicação na experiência prévia de escolarização da criança

A opção por buscar, no fato de as crianças terem ou não cursado pré~escola, a explicação para sua permanência no nível pré-silábico de escrita ancorou-se em uma série de discussões que já há alguns anos vinham sendo pro­cessadas no meio acadêmico e incorporadas pelo discurso oficial na política de educação pré-escolar, em torno de sua função de evitar o fracasso escolar no l° .grau. Vários são os autores que já mapearam histórica e criticamente esse assunto, como evidenciamos em outro texto (7).

Interessa-nos aqui, porém, pontuarmos que após en­trevistarmos as mães das crianças de ambos os grupos, a respeito de terem ou não feito pré-escola, verificamos que havia mais crianças que fizeram pré-escola no Grupo B pré-silábicos "resistentes" (81 %) do que no Grupo A (al­fabéticos em junho) (63%), e que 100% dos sujeitos do Grupo B 1 (pré-silábicos até o final do ano) haviam estado na pré-escola anteriormente.

O que podemos extrair desses dados?

Em primeiro lugar que a escolaridade previa dos sujeitos não pode ser considerada uma explicação satisfatória visto que o importante para o destino escolar de uma criança não é a mera presença ou ausência de uma expe­riência pré-escolar, mas sim a qualidade dessa experiência, qualidade essa que a literatura disponível sobre a pré-escola

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~

brasileira já demonstrou estar bastante deteriorada por as­sentar-se em pressupostos mais que duvidosos, tais como:

1. assistencialismo em decorrência da função com­pensatória da educação pré-escolar, com base na teoria amplamente criticada da privação cultural;

2. falta de um projeto pedagógico comprometido cri­ticamente com a educação de crianças de zero a seis anos, de maneira sistemática, intencional, voltado à trans­missão de novos conhecimentos e de novas aprendizagens;

3. inexistência de uma política de atendimento res­ponsável pela criança pré-escolar articulada com o ensino de ]O grau.

Em segundo lugar, muito provavelmente as crianças que fizeram pré-escola freqüentaram uma pobre pré-escola, estruturada com base nos pressupostos indicados. Como não nos foi possível estudar in loco a qualidade da inter­venção pedagógica a que estas crianças estiveram subme­tidas, não podemos afirmar que este eixo explicativo [não pudesse ser mais esclarecedor se utilizássemos outro artefato de pesquisa].

Buscando a explicação nas características das crianças

Quando pensamos neste eixo tínhamos em mente três frentes de análise, todas elas tendo como origem a criança enquanto sujeito, isto é: as características psicológicas das crianças, sua relação com o grupo classe e o que sabiam sobre a lectoescritura quando entraram na escola.

Em relação às características psicológicas das crianças utilizamos alguns testes diagnósticos, visto estes serem

, ~~ rotineiramente utilizados com crianças encaminhadas às

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I II ~

clínicas psicológicas públicas e/ou particulares, com sintoma de fracasso escolar, quer por dificuldades de aprendizagem, quer por problemas de comportamento na escola. Os testes utilizados por nós foram o HTP, o Bender e o CAT.3

Com esta estratégia procuramos responder às perguntas: As crianças que não conseguiram avançar rumo à hipótese alfabética (Bl) elou aquelas que se retardaram (Grupo B), seguiram essa trajetória psicogenética em decorrência de comprometimento emocional? Em caso afirmativo, ele seria de nível psicopatológico ou não?

A utilização de diferentes testes levou-nos a encontrar resultados paradoxalmente opostos, ou seja, ao mesmo tempo que o Teste Bender na versão Koppitz só apontava uma criança do Grupo B, e nenhuma do Grupo Bl, como portadora de dificuldades emocionais, o Teste da Figura Humana, analisado a partir dos indicadores emocionais propostos por essa mesma autora, sinalizava que 76% das crianças da pesquisa apresentavam dificuldades, sendo que estas se distribuíam nos três grupos, com uma por­centagem maior no Grupo B 1, seguida pelo Grupo B e pelo Grupo A.

Analisando-se as características apontadas pelo Teste da Figura Humana verificamos que a impulsividade, a instabilidade, a pequena capacidade de integração e o pobre autoconceito apareciam somente naquelas crianças que permaneceram pré-silábicas durante todo o ano letivo. Não foi possível determinar, porém, se tais características já preexistiam ao processo de escolarização.

3, Por fugir do âmbito desta publicação, a discussão detalhada desses instrumentos quanto à origem, pressupostos e limitações, sugerimos aos k,itores interessados a leitura da indicação bibliográfica (7), onde terão acesso a todo esse material.

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Com os dados obtidos a partir do RTP, verificamos que as crianças que não avançaram (Grupo Bl) tinham hipoteticamente problemas psicológicos graves, portanto de nível psicopatológico, sendo que dois deles, na ocasião em que foram avaliados, pareciam estar vivendo um momento de desintegração psíquica. O terceiro, o qual não pôde ser avaliado através do uso de testes por negar-se a sair da sala e por não manter contato com pessoas, apresentava características do quadro de autismo, tal qual é discutido

por Bettelheim (lO).

Se os instrumentos utilizados para pensarmos a relação entre o afetivo e o intelectual levaram-nos a identificar um certo paralelismo entre permanecer no nível pré-silábico e ter comprometimento emocional, esses mesmos instru­mentos apontaram que permanecer com essa concepção da escrita não é o único destino dessas crianças, uma vez que uma criança do Grupo A e outras quatro do Grupo B, não-pertencentes ao Grupo B I, também apresentaram sinais de comprometimento psicopatológico e, no entanto,

avançaram rumo à hipótese alfabética.

Assim sendo, os testes não permitiram entender como as características psicológicas das crianças se articulam com as questões relativas à vida escolar e ao processo de aprendizagem, nem tampouco explicaram a "alquimia" que permitiu que alguns sujeitos (dos Grupos A e B), também com características psicopatológicas diagnosticadas por esses mesmos testes, avançassem em seu processo psicogenético

da construção da escrita.

Embora este eixo pareça explicar parcialmente a per­manência das crianças no nível pré-silábico, sentimo-nos na obrigação de levantar alguns limites dessas conclusões,

tais como:

\~iI, 20

1. o uso de testes como um anteparo na relação pesquisador-sujeito que, muitas vezes, mais esconde do que desvela a subjetividade do sujeito;

2. a pretensa neutralidade científica de um modelo de criança universal, descontextualizado historicamente, o qual permite seccionar a criança em infinitos comporta­mentos e habilidades, na crença ingênua da possibilidade de que ao se reunir todas as partes poder-se-ia conhecer a criança, sua maneira de representar o mundo e de se representar nele;

3. a falta de pesquisas nacionais com esses instrumentos onde as populações sejam claramente definidas em termos de idade, sexo e classe social;

4. a procura de explicação para o fracasso escolar (em nosso caso permanência no nível pré-silábico ao longo do 10 ano do ciclo básico) nas próprias características da criança, pressupondo que tais características sejam univer­sais, a-históricas e que a própria criança seja a responsável por uma possível "patologia" a ela supostamente inerente;

5. a idéia de que a criança é a culpada pelo seu destino escolar, não se levantando a possibilidade de outras condicionantes, tais como: o cotidiano escolar, as condições sociais nas quais a criança está inserida e as relações político-econômicas que geram e mantêm a perversa dis­tribuição da renda característica de uma sociedade desigual como a nossa.

No segundo eixo procuramos, também, analisar a rede de relações que as crianças estabeleciam na sala de aula, no que diz respeito às trocas de informações que favore­l:essem à construção da base alfabética. Para tanto realizamos um sociograma, a partir da pergunta: Quem você escolheria para escrever junto com você? Nosso pressuposto era o de que as crianças mais procuradas fossem as alfabéticas

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e/ou as mais adiantadas no caminho da hipótese alfabética. Verificamos, porém, que o sociograma foi sensível a outros fatores, tais como: o "lobby" que algumas crianças faziam sobre as outras no processo de escolha, a localização física (muitas crianças escreviam o nome dos colegas que estavam fisicamente mais próximos) e as lideranças da classe, que não necessariamente correspondiam àqueles sujeitos que trocavam mais informações a respeito da lectoescritura. Apesar dessas influências verificamos que os sujeitos do Grupo A receberam mais escolhas que os sujeitos dos Grupos B e B1 somados, e que nos três grupos houve os que não foram escolhidos.

A conclusão que se pode tirar desses dados é a de que o sociograma não é o instrumento mais adequado para apreender as interações sociais em sala de aula, não podendo substituir a riqueza das observações sistemáticas em classe, as quais, infelizmente, não tivemos condições de realizar no âmbito desta pesquisa.

Finalmente, ainda neste eixo, analisamos o conheci­mento prévio que os sujeitos tinham sobre a língua quando entraram na escola.

Nossa hipótese era de que, embora todos os sUjeitos fossem pré-silábicos, o conhecimento que teriam sobre a língua escrita já deveria ser diferenciado. Nesse sentido verificamos que todos os sujeitos que iriam após quatro meses de intervenção pedagógica constituir o Grupo A (alfabéticos) já sabiam escrever o próprio nome e usa­vam menos pseudoletras que aqueles que pertenceriam ao Grupo B (pré-silábicos "resistentes"). Somente um sujeito do Grupo B e não pertencente ao Grupo B1 sabia, no início do ano letivo, escrever o próprio nome sem ajuda.

Tais dados corroboram a importância que Ferreiro (1) atribui ao conhecimento de certas formas fixas:

II 22

II 1:1

No curso deste desenvolvimento a criança pode ter tido a oportunidade de adquirir certos modelos estáveis de escrita, certas formas fixas que é capaz de reproduzir na ausência do modelo. Destas formas fixas o nome próprio é uma das mais importantes (se não a mais importante). Falamos de formas fixas porque, como veremos, a criança deste nível tende a rejeitar outras possíveis escritas de seu nome que apresentem as mesmas letras, mas em outra ordem. Porém a correspon­dência entre a escrita e o nome é ainda global e não analisável: à totalidade que constitui esta escrita faz-se corresponder outra totalidade (o nome correspondente), mas as partes da escrita ainda não correspondem a partes do nome. Cada letra vale como parte de um todo e não tem valor em si mesma.

A análise destes dados permitiu-nos pensar que os sujeitos do Grupo A, em algum momento de suas vidas anteriormente à entrada na la série, tiveram a informação sobre a forma fixa de escrever seus nomes. O conhecimento dessa forma fixa pode ter servido de base para questionarem a escrita de outras palavras. Não sabemos se esses sujeitos conheciam outras formas fixas além do próprio nome.

A esse respeito, Ferreiro nos diz:

...que a aqUlslçao de certas formas fixas e estáveis que podem servir de modelos de outras escritas é fato, previsível, mais freqüente em classe média do que em classe baixa, em função de influências exteriores à própria criança, e de pautas culturais que já podem ter sido incorporadas no período pré-escolar. ..

É ainda Ferreiro (1) quem nos diz:

...a aqulslçao de certas formas fixas está sujeita a contingências culturais e pessoais: culturais porque uma família de classe média oferece, com maior freqüência, contextos para essa aprendizagem (ainda que não seja mais do que pelo simples fato de escrever o nome da criança em seus desenhos, para identificá-los); e pessoais, porque às vezes a presença de um irmão maior, que começa a escola de primeiro grau,

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rm

costuma ser um fator de incitação compensador de outras

incitações culturais ausentes. II.~~1

Buscando a explicação no uso que as famílias das crianças faziam da língua escrita

Com o nosso terceiro eixo explicativo procuramos responder à pergunta: O lugar que a escrita ocupa no seio da família e a inexistência ou existência inexpressiva de portadores de texto na casa dos sujeitos poderiam cons­tituir-se em um fator obstacularizante para o avanço rumo

à hipótese alfabética?

Os resultados encontrados mostraram. que a presença de portadores de texto e a possibilidade de os sujeitos participarem de eventos de lectoescritura eram maiores nos lares dos sujeitos do Grupo A do que nos lares dos sujeitos dos Grupos B e B 1, sendo que os pais dos sujeitos do Grupo A eram em sua quase totalidade alfabetizados, enquanto nos Grupos B e B 1 existiam pais analfabetos em

porcentagem significativa.

Estes dados levaram-nos a pensar que a presença de pais alfabetizados poderia ser uma das condicionantes para o avanço mais rápido em direção à base alfabética, porém não podíamos concluir que pais analfabetos fossem um fator impeditivo, uma vez que em nossa amostra" tínhamos dois sujeitos que não contavam com pais alfabetizados e, nem por isso, deixaram de avançar rumo à hipótese alfabética (sendo um desses sujeitos elemento do Grupo A e o outro, elemento do Grupo B, mas não do B 1).

Em relação a isto, estudos anteriores realizados por Anderson e Teale (11) nos EU A mostraram que crianças de grupos minoritários, com poucos recursos econômicos, tendo o inglês como segunda língua, extraíam informações

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a respeito da função da língua escrita no contato com outras pessoas da comunidade que sabiam ler e escrever.

Nossos dados também apontaram no sentido de que em todos os três grupos, A, B e B 1, havia pelo menos uma pessoa alfabetizada em casa e que, em todos os grupos, existiam sujeitos com pelo menos um dos pais analfabeto.

Nos lares dos sujeitos do Grupo Bl havia menos portadores de texto do que nos lares dos sujeitos dos outros grupos, além de 100% das mães desses sujeitos serem analfabetas. Tais dados, embora não pudessem ser usados como sendo fatores determinantes para explicar a permanência desses sujeitos no nível pré-silábico, visto os sujeitos estarem inseridos em uma sociedade urbana letrada e por conseguinte terem se deparado inúmeras vezes com esse objeto de conhecimento, poderiam ser lidos de outra forma a partir de alguns outros dados levantados por Harari (12) quanto ao papel das famílias pobres no processo de aprendizagem de suas crianças.

Este autor, estudando as características psicológicas das populações "marginais", verificou, através de um tra­balho de grupo realizado com essas crianças, antes de elas entrarem na escola, que muitas delas, à medida que se apossavam de alguns conhecimentos, identificavam-se com dementos de outra classe social (o coordenador do grupo), !Jassando a sentirem-se culpadas por essa identificação, l/ma vez que, para elas, isso significava traição a seus pais, com todas as conseqüências psicológicas advindas desse fato.

Quanto às famílias, esse mesmo autor verificou que viviam em uma subcultura com características próprias, entre elas:

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1I1

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\ 1111

a) gravidez sem cuidados médicos ou apenas tardios;

b) crianças nos primeiros meses sem cuidados maternos e afeto maternal;

c) aquisição de doenças como: meningite, encefalite, sarampo, infecções, coqueluche, distrofia, broncopneumonia, entre outras;

d) primeira infância carente de cuidados maternos e expostos a muitos acidentes e traumatismos ;

e) mães não conseguem ajudar os filhos a se discrimi­narem, mantendo muitas situações simbióticas;

f) falta de oportunidade das crianças manipularem ma­teriais que posteriormente serão usados na escola;

g) falta de brinquedos que ajudem as crianças a elaborar situações traumáticas;

h) situação "marginal", na qual estas crianças e suas famílias são rechaçadas pela sociedade, que simultaneamente os deprecia e teme.

Mesmo ponderando que os dados de Harari diziam respeito a outra população (Argentina) e a outro contexto pedagógico (anos 70), consideramos que teria sido pertinente a análise da rede complexa de relações afetivo-sociais presentes na interação criança-família-escola, interação esta que não pôde ser apreendida no contexto deste trabalho, visto que não realizamos observações sistemáticas das interações familiares num enfoque etnográfico.

4. De posse de todos estes dados, para onde vamos?

Retomando os resultados dos três eixos de análise, que nos propusemos utilizar, concluímos que todas as explicações, da maneira como foram enfocadas nesta pes­quisa, constituíram-se em uma espécie de beco sem saída, ou seja, em explicações que ou explicam parte dos dados, ou explicam certos dados até certo ponto, seja porque são

26

válidas para algumas crianças e não para outras, seja porque colocam a própria criança com dificuldade como sendo o limite da própria explicação.

Ressalvamos também que tão perigoso quanto pato­logizar e rotular crianças, fazendo uso exclusivo e/ou predominante de um instrumental psicológico que considera o psíquico "pairando" sobre o sócio-histórico, é negar a existência de comprometimentos psicológicos, principalmen­te tratando-se de crianças que compõem uma minoria residual dentro de um grupo de crianças inseridas em um processo adequado de intervenção pedagógica.

Consideramos necessário que outros trabalhos sejam realizados e que neles os protagonistas da história possam ter a palavra, para que possamos juntos tomar a tempo as providências necessárias, visto que:

Se nada fizermos, se não interviermos de forma ativa e eficaz, ela (a criança) continuará perdendo tempo... e acabará por se desencorajar. A situação é muito grave para ela, e, como não se trata de um caso excepcional (porque as crianças com dificuldades de compreensão são muitíssimas), podemos dizer que se trata de um assunto muito grave para todos nós e para toda a sociedade. A criança que perde o gosto pelo trabalho na escola corre o grande perigo de não o adquirir quando deixar a escola (Binet, (13)].

Referências bibliográficas

(l) Ferreiro, E. & Teberosky, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986.

(2) Ferreiro, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo, Cortez, 1985.

(3) Ferreiro, E. Alfabetização em processo. São Paulo, Cortez, 1986.

27

Page 16: alfabetizacaohoje

(4) Ferreiro, E., org. Os filhos do analfabetismo. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.

(5) Ferreiro, E. & Palácio, M., orgs. Os processos de leitura e escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1987.

(6) Ferreiro, E. Com todas as letras. São Paulo, Cortez, 1992.

(7) Marques, M. L. Estudo psicopedagógico da criança pré-silábica "resistente" dentro de uma intervenção

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de mestrado. USP, 1993.

(8) Junqueira, S. O peixe Pixote. São Paulo, Ática, 1984.

(9) Góes, L. P. A pipa Pepita. São Paulo, Scipione, 1990.

(lO) Bettelheim, B. A fortaleza vazia. São Paulo, Martins Fontes, 1987.

(11) Anderson, A. & Teale, W. A lectoescrita como prática cultural. In: Ferreiro, E. & Palácio, M., orgs. Os processos de leitura e escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1987, pp. 213-230.

(12) Harari, R., org. Teoría y Técnica Psicológica de Comunidades Marginales. Buenos Aires, Nueva Vision, 1974.

(13) Binet, A. Les ldées Modernes sur les Enfants . Paris, Flammarion, 1973, p. 232.

-PARTE 11 - REFLEXOES

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CAPITULO 2

Para a construção de uma teoria crítica em alfabetização escolar

Maria Amélia Azevedo*

o pior analfabeto é o analfabeto político Bertold Brecht

1. Da infância brasileira analfabetizada

o Brasil dispõe hoje de uma das legislações mais avançadas do mundo em termos de proteção aos direitos da infância e adolescência. Trata-se do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069 de 13 de julho de 1990). Ancorado na doutrina da proteção integral dos direitos da criança, reconhece dois grupos de direitos: os que devem ser promovidos - e cuja proteção, portanto, se estende a todas as crianças brasileiras sem exceção - e os que devem ser defendidos porque violados - e cuja proteção se estende àquele segmento que denominamos infância em dificuldade. Em seu art. 53, o Estatuto assegura que "a

* Professora Livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

31

Page 18: alfabetizacaohoje

----11

criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-Ihes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola_ .."

E o art. 54 completa: "É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria".

Infelizmente essa legislação não conseguiu modificar a trágica realidade do analfabetismo brasileiro. Segundo o censo de 1980, 25,5% da população de 15 anos e mais era considerada analfabeta, contingente esse que atingiu cerca de 30 milhões em 1988.

Os dados reproduzidos na Figura 2.1 mostram um quadro sombrio no qual "A desigualdade marca o Brasil e o analfabetismo é a marca da desigualdade" (1).

. Apesar de a década de 90 ter sido proclamada como a Década Mundial da Alfabetização, a previsão é de que a marca dessa desigualdade em termos de alfabetização pesará duramente sobre nossa infância e adolescência. Es­tima-se que "no ano 2000, uma em cada quatro crianças fará parte desta estatística sombria" (1). E isso porque já agora a taxa de analfabetismo de crianças e adolescentes é bastante elevada entre nós. Dados compilados pelo UNI­CEF (2) mostram que, embora na década de 80 tenha havido uma redução na proporção de analfabetos em todas as faixas etárias e em todas as regiões do Brasil, os índices ainda são graves e intoleráveis, especialmente entre crianças e adolescentes. Basta citarmos dois indicadores para se ter uma idéia da trágica violação do direito à educação, assegurado retoricamente na lei:

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5 \.1

14.2

33

949.

146

884.

605

690.

300

1973

1198

4 6.

181.

137

3.14

4.62

0 2.

522.

638

2.09

3.20

6 2.

008.

443

1.63

5.3

65

1.36

9.6

47

1. 13

5.21

4 1.

209.

428

890.

370

707.

046

1974

1198

5 5.

702.

070

3.11

9.08

7 2.

505.

399

2.11

5.35

4 2.

091.

913

1.64

9.89

7 1.

392

.638

\.1

01.0

09

1.23

3.14

0 90

9.85

4 68

3.99

8 19

75/1

986

5.72

1.04

5 3.

109.

574

2.58

0.82

7 2.

183.

465

2.17

1.83

6 1.

706

.777

1.

371.

947

1.13

6.72

6 1.

265.

693

914.

746

674.

606

1976

/198

7 5.

816.

655

3.12

8.41

2 2.

697.

948

2.25

\.30

2 2.

273.

874

1.70

1.13

9 1.

423

.154

\.1

82.9

73

1.27

7.92

2 90

6.4

45

657.

965

1977

/198

8 6.

249.

135

3.43

0.30

7 2.

837.

660

2.36

6.11

7 2.

314.

079

1.80

5.5

30

1.48

6.6

71

\.169

.637

1.

321.

964

915

.447

70

3.76

4 19

78/1

989

6.50

2.3

23

3.64

1.78

0 3.

005

.227

2.

417.

984

2.50

3.90

1 1.

886

.347

1.

508

.801

\.

190

.888

1.

328.

853

973.

458

1979

/199

0 6.

989.

094

3.70

9.59

9 2.

976.

507

2.52

0.83

2 2.

588.

777

1.94

5.9

12

1.52

8.49

9 \.

170.

738

1.39

9.42

6 19

80/1

991

7.00

8.78

8 3.

694.

839

3.09

8.62

2 2.

594

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2.

680

.743

1.

956.

933

1.48

4.97

2 \.2

13.1

58

1981

1199

2 6.

895.

475

3.86

1.49

2 3.

174.

049

2.64

7.3

85

2.74

5.72

5 1.

936.

062

1.57

0.49

0 19

82/1

993

7.21

3.6

26

3.95

2.2

41

3.25

5.2

51

2.71

8.14

9 2.

744.

066

2.07

9.0

05

1983

/199

4 6.

657

.i98

4

.167

.170

3.

363.

217

2.67

8.81

2 2.

989.

344

1984

/199

5 7.

419.

093

4.48

2.0

69

3.33

5.59

4 2.

984

.871

19

85/1

996

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92

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3.71

4.79

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5.

Page 20: alfabetizacaohoje

30 %, - -- ­

25

20

15

10

5

O

D Brasil

Fonte: CIP/SEEC

Ao

I a Série

-IMEC.

analisarmos a

SÉRIES

Sudeste

probabilidade

_

de

2' Série

Nordeste

reprovação para

Tabela 2.2 Transcrições de série em 1982. Modelo PROFLUXO

Série R~etência PromQfão Evasão 1 0,524 0,453 0,023 2 0,342 0,616 0,042 3 0,265 0,665 0,ü70 4 0,215 0,601 0,184 5 0,318 0,597 0,085 6 0,192 0,720 0,088 7 0,165 0,729 0,107 8 0,195 0,603 0,202

Fonte: Fletcher, P. R. & Costa Ribeiro, S. PRO FLUXO.' Uma Realidade Educacional do Brasil, aplicativo para microcomputador, Brasília, 1988, Ta­bela 1.5.2.

o problema da repetência é muito mais grave na la série do 10 grau, como se observa pela Tabela 2.2. Embora o gráfico construído pela FIBGE/UNICEF (2) - reprodu­zido a seguir - mostre uma atenuação para a década de 80, como um todo, o certo é que pelo menos 1/4 dos alunos da 1a série, que permanecem no sistema, não alcançou aprovação.

Valem, portanto, os comentários de advertência e indignação feitos por Ribeiro (4) :

Os dados mostrados ( ... ) indicam que, de todos os problemas de fluxo de alunos no sistema formal de ensino, a repetência na I a série é o mais grave e preocupante, o que não tem sido devidamente levado em consideração nas pes­quisas educacionais .

Cálculos realizados recentemente ( ... ) indicam que, para o Brasil como um todo, a probabilidade de um aluno novo na la série ser aprovado é quase o dobro do que a probabilidade daquele que já é repetente na série. Isto mostra que a repetência tende a provocar novas repetências, ao contrário do que sugere a cultura pedagógica brasileira de que repetir ajuda a criança a progredir em seus estudos.

36

Figura 2.2 Taxa média de repetência na 1" e .5" séries do ensino fundamental

Década de 80

populações urbanas pobres do Nordeste, verificamos que a probabilidade de promoção para os alunos novos na la série é próxima de zero, sobe para aqueles que já têm uma repetência e só volta a cair para quem foi reprovado . mais de duas vezes . Este dado indica claramente que nas escolas das classes menos favorecidas de nossa população existe uma determinação política (ainda que não-explícita) de reprovar sistematicamente todos os alunos novos. Esta prática mostra claramente a tragédia e perversidade de nosso sistema educacional. Ala série é feita em pelo menos dois anos, com uma crueldade no meio: uma avaliação (real ou simbólica) é realizada após o primeiro ano, onde é imputado ao aluno um fracasso que já tinha sido definido a priori pela cultura do sistema edu­cacional.

37

Page 21: alfabetizacaohoje

Finalmente é preciso não esquecer que - mesmo para os que acedem e permanecem no sistema - o ensino é um ensino de qualidade comprometida, decorrente, como assinala Cunha (3), seja da existência de escolas unidocentes, seja de projetos curriculares com conceitos polêmicos. O resultado tem sido a paroquialização e rarefação do co­nhecimento, com a conseqüência de que os mais pobres acabam tendo que carregar o ônus de suprir os conteúdos não ensinados pela escola.

A conclusão inevitável desse retrato sem retoque não é a de que boa parte da infância brasileira está analfabeta porque permanece à margem do sistema escolar, e sim a de que, muito pelo contrário, passa pela escola sem aprender. Metaforicamente poderíamos dizer que a infância brasileira vem sendo, há muito tempo, analfabetizada pela escola...

2. A universidade e o desafio da analfabetização escolar

Romper o círculo vicioso da (re)produção escolar do analfabetismo a nível de crianças e adolescentes tem sido uma preocupação constante de pesquisadores brasileiros nas últimas quatro décadas.

As Tabelas 2.3 e 2.4 foram elaboradas por Soares (5) a partir da análise de 184 textos (artigos, dissertações e teses) publicados no Brasil sobre alfabetização, no período de 1954-1986.

Ambas permitem entender que a construção de co­nhecimento, na área, tem passado pela compreensão da alfabetização como um objeto passível de abordagem mul­tidisciplinar, embora os enfoques dominantes sejam os da Psicologia e Pedagogia. No campo da Psicologia pode-se constatar que até 1986 a abordagem dominante era a da

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Tabel~ 2.3 Referencial teórico

Referencial Teórico N° % Psicolo!!ia 81 43 Peda!!o!!ia Lin!!üística

51 17

27 9

Psicolin!!üística 15 8 Sociolingüística Sociologia Literatura

2 5 I

I 3 I

Educa~ão Artística: Artes Plásticas I I Educacão Artística: Música 3 2 Audiolo!!ia I I Estatística I I Interdisci DI inaridade 6 3 TOTAL 184 100

Tabela 2.4 Referencial teórico por década

~as 54-59 60-69 70-79 80-86 TOTAL Tendências .

N° % N° % N° % N° % N° % Psicologia Associacionista 4 10 5 12 12 30 19 48 40 100 Psicologia Genética I 4 I 4 22 92 24 100 Psicologia Gestalt 3 60 2 40 5 100 Psiconeurologia 2 67 I 33 3 100 Psicologia Ecletismo 2 33 I 17 3 50 6 100 Psicologia cunfr. abordagens I 33 2 67 3 100 Pedagogia 3 6 10 20 38 74 51 100 Lingüística 4 24 13 76 17 100 Psicoli ngüística 15 100 15 100 Sociolingüística 2 100 2 100 Sociologia 5 100 5 100 Literatura I 100 I lffi Ed. ArL Artes Plásticas 1 100 I 100 Ed. ArL Música 2 67 1 33 3 100 Audiologia 1 100 I 100 Estatística I 100 I 100-Interdisci plinaridade 6 100 6 100 TOTAL GERAL 9 5 12 6 35 19 128 70 1-.8.4 100

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Page 22: alfabetizacaohoje

Psicologia Associacionista, cujo poder hegemônico começou a ser abalado, sobretudo na década de 80, pela abordagem da Psicologia Genética. Isto ocorreu graças à divulgação, entre nós, dos trabalhos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, sobre a psicogênese da língua escrita (6).

Não há como negar que a teoria construtivista inte­racionista - como ficou conhecida a psicogênese da língua escrita - representou uma verdadeira revolução copernicana na área da alfabetização escolar. E isso porque significou uma verdadeira ruptura em relação ao modelo que a Psicologia Associacionista propunha paia embasar o pro­cesso de ensino-aprendizagem de aquisição da língua escrita (alfabetização no sentido estrito e técnico do termo). Assim, representou a substituição da representação do alfabetizando como um ser passivo que aprende através de associações viso-áudio-motoras, estimuladas por métodos onipotentes, por uma outra representação do alfabetizando enquanto ser ativo que pensa e, enquanto tal, constrói hipóteses sobre a escrita em interação com outros sujeitos . Ou seja, a substituição do olho que vê, do ouvido que ouve e da mão que escreve por um cérebro que pensa.

Nesse sentido, a teoria construtivista-interacionista pos­sibilitou rejeitar práticas de alfabetização tais como foram registradas por Pellanda (7) em seu estudo sobre autorita­rismo e alfabetização no Brasil pós-64 e de que reproduzimos alguns excertos:

A alfabetização ao vivo. Relato das observações em sala de aula.

"O hábito da ditadura começa com o ditado escolar"

Samir Curi Meserani

Inicio o trabalho de coleta de dados em sala de aula.

... Inicio pelas escolas que di zem estar preocupadas com liberdade e formação pessoal. Neste tipo constatei uma linha

40

de alfabetização mecânico-formal , ou seja, as crianças repetem e reproduzem palavras apresentadas pela professora, sem que estas mesmas palavras tenham se originado na própria vivência da criança. A relação texto-contexto aparece apenas espora­dicamente, não como um padrão de ensino. Poderia ilustrar estas afirmações com alguns elementos das observações co­lhidas em salas de aula.

Inicia-se um dia de atividades numa classe de alfabeti ­zação: a professora coloca a data no quadro e , a seguir, faz um ditado: barraca - pêssego - amora - crocodilo ­magro - broto - marreco - corrida (a maioria das crianças não sabia o que era amora e algumas não sabiam o que era crocodilo).

As tarefas são mecânicas e repetitivas, se sucedem umas após outras, o turno inteiro, são impostas pela professora e não propostas, como ela sugere em suas declarações à pes­quisadora. Estas tarefas não têm entre si intervalos de des­contração para as crianças relaxarem e nem apresentam um encadeamento lógico entre elas ; por exemplo: passa-se de um ditado de palavras soltas para um exercício de matemática, cujas situações não se ligam com o assunto anterior, daí para atividades de desenho, também independentes e assim suces­sivamente...

Ainda dentro das escolas do tipo A, na linha dita tradicional , observei uma modalidade extremamente rígida de escola.

A observação neste tipo de escola foi antecedida por uma entrevista com a coordenadora pedagógica sobre pressu­postos teóricos do trabalho realizado em alfabetização. Ela respondeu que não havia nenhum pressuposto teórico, pois tratava-se de um trabalho concebido pelo próprio grupo de alfabetizadoras da escola e "portanto, é um . trabalho muito nosso" , fez questão de frisar. Falou-me também a coordenadora pedagógica que o grupo realiza reuniões sistemáticas de estudos e planejamentos. Acrescentou também que o trabalho com as crianças inicia-se em março com as chamadas atividades preparatórias, que incluem recortes, movimentos com as mãos .e o corpo. A partir daí as crianças realizam um trabalho de

41

Page 23: alfabetizacaohoje

identificação do som com a correspondente letra. Explica que em cima disto há muita cópia. E afirma: "E vamos continuar com cópia, graças a Deus".

Em abril, já começa o processo de alfabetização.

Finalmente conclui que "o sucesso de nosso método é total : em maio nossas crianças já estão lendo".

Passo para a sala de aula. A paisagem é a mesma do gênero anterior, ou seja, as crianças em fila de carteiras umas atrás das outras. Aqui a sala é limpíssima. Nada absolutamente fora do lugar. Numa parede, cabides, para que cada criança coloque sua mochila e seu casaco. Nas demais paredes não vi, pelo menos nas salas onde estive, trabalhos elaborados pelas crianças. Vi cartazes já impressos com palavras ilustradas por desenhos . Um dos cartazes, este colocado ao lado do quadro-verde, continha o seguinte texto:

Bibi vê o bebê. O bebê baba. O boi bebe.

O bode é da Biba.

Este cartaz vai informando o estilo do processo: des­vinculação texto-contexto e a falta de sentido para a criança. Chega a ser ofensivo para a inteligência de uma criança. Outro cartaz no mesmo padrão:

Eu vi o boi . O boi bebe.

O boi é bobo.

Outra história idiota ...

A situação se repete nas demais turmas. Entro noutra sala de aula. Ao entrar ouço: "Abrir a cartilha na página 76". As crianças, alinhadas e em coro, como se fosse um batalhão mirim, repetem em conjunto os itens da cartilha designados pela professora. Seguem-se perguntas mecânicas, supostamente para maior compreensão do texto: "O que é carteira?", "O que é carneiro?", "O que é orvalho?" Um menino se adianta e responde: "É neve". A professora critica o menino: "Agora sou eu quem fala" . Explica então que orvalho são aquelas gotículas que caem à noite no in verno sobre as plantas:

42

informações decididamente incorretas que a professora passa para os seus alunos; segue-se a ordem para uma leitura silenciosa. Quem não obedece prontamente é repreendido com severidade. As crianças, depois da leitura silenciosa, são chamadas, aos grupos, para a frente a fim de ler em voz alta para todo o grupo. Começa o primeiro grupo e a primeira criança que lê ouve um corte crítico da professora: "Errado, volta". E, para outra criança: "Não, peraí, errado".

A leitura não tem significado nenhum para as crianças. Elas ficam muito tensas , com medo da crítica contundente da professora. Segue-se, grupo após grupo, num verdadeiro massacre. O texto trata de orquídeas ...

A prática pedagógica de alfabetização baseada na abordagem construti vista-interacionista permite transformar a tarefa de aprendizagem em um desafio intelectual sempre significativo e emocionante, e o clima da sala de aula em um espaço de encontro de competências diversas sobre a língua escrita, cujo objetivo final é o de fazer com que todas as crianças construam uma teoria adequada sobre a relação fonema-grafema na língua portuguesa, isto é, fazer com que todas cheguem ao domínio da hipótese alfabética.

Nesse sentido, ela permite escapar a vários ismos reducionistas: didaticismo, ou seja, crença na virtude mágica dos métodos em alfabetização; autoritarismo, ou seja, crença de que o professor é o único e verdadeiro detentor do conhecimento sobre a língua escrita e que, portanto, sua autoridade pedagógica não pode ser desafiada ou questio­nada, crença essa que levou Samir Meserani a afirmar que "o hábito da ditadura começa com o ditado escolar"; artificialismo, ou seja, crença de que a língua escrita é um objeto escolar e não uma prática social e que dominá-la é um exercício de arbitrariedade pedagógica.

Contudo, se a teoria construti vista-interacionista per­mite escapar a essas e outras armadilhas de uma pedagogia alfabetizadora informada por uma Psicologia Associacio­

43

Page 24: alfabetizacaohoje

nista, será ela a abordagem teórica de que o Brasil precisa para enfrentar o quadro negro da analfabetização, ou seja, a produção e reprodução de analfabetos através de uma escola antidemocrática, produto e fator de (re)produção de uma sociedade desigual?

A resposta a essa indagação exige que se examinem atentamente alguns pressupostos da apropriação pedagógica que vem sendo feita entre nós da psicogênese da língua escrita.

3. Lendo nas entrelinhas das abordagens pedagógicas de natureza construtivista-interacionista do processo de alfabetização escolar

Embora tenhamos que falar ainda no plural, todas as abordagens pedagógicas construtivistas-interacionistas do processo de alfabetização escolar experimentadas no Brasil (São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais etc.) têm em comum o fato de serem aplicações da psicogênese da língua escrita de Ferreiro e Teberosky (6).

As poucas pesquisas disponíveis - Schitano (8) e Marques (9) entre outras . - falam a favor de uma alta eficiência de programas de alfabetização escolar de base construtivista-interacionista. As porcentagens de crianças que concluem a Ia série do 10 grau sem terem construído a "hipótese alfabética" reduzem-se drasticamente. Essas mesmas pesquisas sugerem algumas questões inquietantes. Assim, por exemplo, por que continua a existir sempre uma categoria residual de crianças que sequer "franqueiam a barreira do código", a despeito de terem sido expostas a uma prática construtivista-interacionista?

Ou, então, que tipo de alfabetizado estará sendo produzido através dos programas de alfabetização constru­

44

I'" ''

. ti vistas-interacionistas: o mero ledor, decifrador de textos, ou o verdadeiro leitor, capaz de desenvolver a competência para extrair significado das linhas e entrelinhas de um texto, capaz de sentir o prazer da leitura e de desenvolver o hábito de ler?

O presente artigo não se propõe a responder a essas indagações, mas tão-somente alevantá-Ias, já que elas nos permitem questionar em que medida a teoria construtivista­interacionista da alfabetização escolar tal como vem sendo entendida e praticada entre nós pode ser considerada uma teoria politicamente correta e cientificamente válida. A hipótese é a de que, para ser politicamente correta e cientificamente válida, essa abordagem precisa partir, como propõem Lemle e Carvalho (10), da concepção de que o grande desafio do analfabetismo brasileiro decorre do fato de ser ele uma questão ideológica: interessa às forças políticas dominantes em nosso país que haja uma taxa elevada de analfabetismo como estratégia para manutenção de um exército de reserva de mão-de-obra barata, porque pouco qualificada.

Depois, precisa comprometer-se decididamente com a formação de leitores (e não ledores), mais do que com a formação de escribas, como propõe Abaurre (11), reconhe­cendo com Foucambert (12) qUe "os analfabetos não re­presentam senão um caso particular de não-leitor". Isso sem cair no excesso, denunciado por Graff (13), do mito do alfabetismo, enquanto crença no poder miraculoso da alfabetização, enquanto fator propiciador do "desenvolvi­mento de estruturas políticas complexas, do raciocínio silogístico, da pesquisa científica, das concepções lineares da realidade, da especialização acadêmica, da elaboração artística etc."

E, também, sem incorrer no pessimismo dos que concebem a escrita como veneno quando podiam muito

45

Page 25: alfabetizacaohoje

helll concebê-I(t vomo um possível remédio, tal como aponta

Ikrrida (14). Para viabil izar um compromisso dessa ordem será

preciso rever a 19uns pressupostos embutidos na prática pedagógica de ó'rientação construti vista-interacionista.

O primeil-O" é o da ênfase - que me parece despro­porcionada - rva língua escrita enquanto objeto de conhe­cimento por opc?sição à língua escrita enquanto objeto de uso. O funda~ental parece-me ser que o alfabetizando construa rapidamente a teoria adequada da língua escrita e passe a usar erssa teoria seja para compreender, seja para ' _ em menor escala - produzir textos.

O segundo pressuposto é o de que a construção dessa teoria pelo alfat1etizando tem que ser uma descoberta dele. Como muito b~m mostrou Ausubel, a compreensão ­enquanto result~nte de uma aprendizagem significativa ­não é privilégl exclusivo do ensino por descoberta. Muito o pelo contrário esse pressuposto é uma decorrência dos assim chamad~s mitos do ensino por descoberta denunciados por Ausubel CI:;) e que vão elencados a seguir:

A fl\í#tica da "aprendizagem pela descoberta" em 12 mitos

I - l'oJo verdadeiro conhecimento é autodescoberto.

11 _ () ?ignificado é um produto exclusivo da descoberta

Cti~tiva não-verbal. III _ A. consciência subverbal é a chave da transferência.

IV _ C) método da descoberta é o principal método para ttapsmitir o conteúdo da matéria.

V _ A. capacidade de resolver problemas é o objetivo

()ri fTlário da educação. VI _ C) treino na "heurística da descoberta" é mais im­

!)o(tante do que o treino no conteúdo da matéria.

VII _ <:::a-da criança deveria ser um pensador criativo ~

~dtico .

46

, I~

VIII - O ensino expositivo é autoritário.

IX - A descoberta organiza a aprendizagem eficientemente para uso futuro.

X - A descoberta é . um gerador singular da motivação da auto-confiança.

XI - A descoberta é uma fonte primária de motivação intrínseca.

XII - A descoberta assegura a "conservação da memória".

O terceiro pressuposto é o da própria Psicologia Cognitivista, enquanto princípio fundante de uma prática psicológica. A ocorrência de crianças que fracassam em programas construtivistas-interacionistas de alfabetização es­colar, embora residual, não estaria a exigir uma abordagem psicológica de um lado mais ampla, a fim de incorporar os aspectos emocionais da aprendizagem e, de outro menos subjetivista, de modo a incorporar os aspectos sociais?

Não teria razão Sampson (16) quando afirma que a falência explicativa da Psicologia Cogniti vista estaria em sua matriz ideológica?

4. Para além de Emilia Ferreiro?

Nenhum desses questionamentos têm, evidentemente, por objetivo, negar a importância da psicogênese da língua escrita para o enfrentamento do grave problema da anal­fabetização de crianças e adolescentes brasileiros. Entretanto, reconhecer o avanço não é tudo. Quando se tem a cons­ciência clara de que o problema do analfabetismo não é resolvido porque não há vontade política suficientemente forte para consegui-lo e de que se trata, portanto, de uma problemática ideológica, é preciso estar alerta para impedir que os avanços sejam apropriados como armas ideológicas . E, até onde posso enxergar, quer-me parecer que a apro­

47

Page 26: alfabetizacaohoje

w ~

priação da teoria construtivista-interacionista de alfabetiza­ção escolar corre o sério risco de transformá-Ia em mais um artefato ideológico e, enquanto tal, em um obstáculo antes que um catalisador da emancipação das classes opri­midas . Isso porque - tal como vem sendo praticada ­essa abordagem parece muito mais propícia à formação do ledor do que do leitor e, portanto, muito mais coerente com a estratégia astuciosa de uma escola de 10 grau que na tradição liberal se proclama universal, pública, gratuita, destinada à socialização do saber, mas que, na prática, se constrói enquanto uma escola de rudimentos de primeiras letras, tal como nos fala Barbosa (17). Uma escola de saber miúdo, de saber elementar, bem adequada ao ades­tramento mínimo - necessário e tolerável - do exército de reserva de trabalhadores acríticos, obedientes e pouco

qualificados ... As autoras da psicogênese da língua escrita certamente

repugnariam que sua teoria pudesse ser usada como freio à emancipação das classes oprimidas. Por isso mesmo vale a pena perguntar se não terá chegado o tempo de buscar, criticamente, o "para além de Emilia Ferreiro". E, nessa busca, começar a valorizar a leiturização mais do que a alfabetização (como defende Foucambert) e, sobretudo, um certo tipo de leiturização: a que visa à formação do leitor crítico.

Um leitor capaz de entrar em confronto com o texto para (re)construir o sentido (ideológico ou contra-ideológico) de suas linhas e entrelinhas, na melhor tradição de Vygotsky, Luria etc.

Um leitor que não leia para crer e aceitar, mas sim para ponderar sempre a quem cada texto pode beneficiar e interessar.

Um leitor, enfim, capaz de lançar um olhar proble­matizador e comprometido sobre a escrita ...

48

Referências bibliográficas

(I) Hirschberg, A. I. et alii. Analfabetismo, o grande não - estatísticas do analfabetismo no mundo, no Brasil e no estado de São Paulo. São Paulo, FDE, Apoio 4, 1990, pôs ter.

(2) Saboia, A. L. et alii. Crianças e adolescentes: indica­dores sociais. Rio de Janeiro, FIBGEIUNICEF, 1989, pp. 35-55.

(3) Cunha, L.A. Educação, Estado e democracia no Brasil . São Paulo, CortezlEduff/Flacso, 1991 , pp. 18-53.

(4) Ribeiro, S. C. A pedagogia da repetência. Estudos Avançados, 12(5): 7-2], Universidade de São Paulo, maio-ago. 199].

(5) Soares, M. B. Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento. Brasília, INEP/REDUC, 1989, pp. 50 e 73.

(6) Ferreiro, E. & Teberosky A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, ] 986.

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(8) Schitano, R. M. Alfabetização escolar e fracasso : uma perspectiva. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia da USP, 1991.

(9) Marques, M. L. Estudo psicopedagógico da criança pré-silábica "resistente" dentro de uma intervenção pedagógica construtivista-interacionista. Dissertação de mestrado. Instituto de Psicologia da USP, 1993.

(10) Lemle, M. & Carvalho, M. Os mal-entendidos da alfabetização. Ciência Hoje. 12(72):38-43, Rio de Ja­neiro, abr.-maio.

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(I I) Abaurre, M. B. M. A propósito de leitores de escribas. Idéias 3. São Paulo, FDE, 1988.

(12) Foucambert, J. Question de Lecture. s/do Mimeografado.

(13) Graff, H. J . O mito do alfabetismo. Teoria e Educação. Porto Alegre, (2): 30-64, 1990.

(14) Derrida, J. A farmácia de Platão. São Paulo, Iluminuras, 1991.

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(16) Sampson, E. S. Cognitive Psychology as Ideology. American Psychologist. 36(7): 730-743, July, 1981.

(17) Barbosa, J. Leitura e alfabetização. São Paulo, Cortez, 1990.

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CAPíTULO 3

A escrita - remédio ou veneno?

Leda Verdiani Tfouni*

As letras enrouquecem no afã de cativar, na distância do acaso, a eternidade.

Edith Pimentel Pinto

1. Introdução

Gilgamesh, rei de Uruk, chora, em desespero, e busca sem descanso alguém que lhe dê a chave da vida eterna. Assim fala ele a Utnapishtim, que · Ihe pergunta por que tem a aparência de tanto desalento e cansaço:

Por que não haveriam as minhas faces de estar famintas e o meu rosto macilento?· Há desespero no meu coração e o meu rosto é o rosto de quem fez uma longa viagem, foi tisnado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria eu de vaguear pelos pastos? O meu amigo, o meu irmão mais novo

* Professora associada do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP.

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(... ), que me era tão querido e que enfrentou perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, o que eu amava, foi alcançado pelo fim da vida mortal. Durante sete dias e sete noites o chorei, até que o verme se agarrou a ele. Por causa do meu irmão eu temo a morte. ( ... ) Como posso ficar silencioso e descansar? Ele tornou-se pó e também eu morrerei e deitarei na terra para sempre. (I)

Nosso personagem, suposto rei sumeno que viveu há quase cinco mil anos, e cuja epopéia está relatada no livro citado, teme a morte. Nenhuma novidade nisso: comparti­lhamos todos o medo do fim da vida. Mas Gilgamesh teme a morte por motivos bastante específicos: ele foi um grande herói, que realizou grandes feitos. Foi ele, juntamente com seu amigo Enkidu, que derrubou a floresta de cedro, matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba, " ... cujo nome é Grandeza, um feroz gigante". (1)

Morto Enkidu, Gilgamesh deu-se conta de que a memória dos feitos grandiosos que haviam realizado juntos desapareceria completamente quando ele, por sua vez, morresse. A causa da angústia era, então, o medo de não poder garantir a permanência, no tempo, de seus grandiosos

feitos.

O rei de Uruk, de fato, morre. Porém, algo o imortaliza, salva-o do esquecimento completo, faz permanecer durante cinco mil anos "os mistérios que viu e as coisas secretas que conheceu", e também os feitos heróicos que realizou. Como isto foi possível? Porque Gilgamesh "00. fez uma longa viagem, conheceu o cansaço, esgotou-se em trabalhos e, ao regressar, gravou numa pedra toda a história" (1) (grifo meu). Eis o que o salvou do esquecimento: a escrita.

A lenda de Gilgamesh, anterior ao Velho Testamento, foi gravada na mais antiga forma de escrita conhecida pelo homem: a escrita cuneiforme, nascida na região da Meso­

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potâmia ("entre os rios" Tigre e Eufrates), onde vIvIam os sumérios e os acádios, mais ou menos três mil antes de Cristo.

A escrita, a mais perfeita criação humana é, portanto, relativamente recente, e é somente a partir de seu apare­cimento que a história do homem pôde começar a ser contada e recuperada, como ilustra bem o relato sobre Gilgamesh.

Desde então, ela tem sido centro de discussões, debates, questionamentos, elogios e acusações.

Neste quadro, por exemplo, é que podemos contex­tualizar "a investida de Platão contra os poetas em A RepúbLica" como sendo "uma tentativa revolucionária para libertar o pensamento grego, de uma vez por todas, da tirania da 'gramática' da tradição oral". (2)

Modalidades escritas e orais da língua têm coexistido através dos séculos de maneira tensa, e, de acordo com o momento histórico, ora uma, ora outra é alçada à posição de prestígio. Por outro lado, a escrita é muitas vezes encarada com desconfiança e algumas sociedades preferem as modalidades orais de comunicação, mesmo possuindo um sistema já estabelecido de escrita.

Janet Ewald (3) cita o caso do reino de Tagali que, entre 1780 e 1884, produziu apenas cinco documentos escritos. Os reis nessa sociedade, por exemplo, não editavam documentos oficiais para governar. Por que essa preferência pela oralidade na sociedade tagali? Segundo a autora, esta questão deveria ser formulada assim: Por que as pessoas confiam em documentos em vez de confiar na fala? Segundo Ewald, "00. as pessoas escolhem a comunicação oral ou escrita na medida em que enfrentam formas particulares de relações políticas e de questões intelectuais". Assim, confiar mais na comunicação oral equivale a uma escolha

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que tem por objetivo manter intactas as relações políticas, que, em Tagali (tal como na Grécia antiga e na Inglaterra medieval, aliás), estavam intimamente relacionadas com a modalidade oral de comunicação. Deste modo, a escrita pode muitas vezes representar a ameaça de destruição de um sistema político, principalmente em sociedades onde a desigualdade é grande, e onde uma classe tenta impor seu juízo sobre outra (ou, ainda, onde um povo "mais forte" tenta subjugar outro, "mais fraco") .

Tal como acabou de ser colocado até aqui, essa questão da valorização e da lItilidade, por um lado, e das perdas acarretadas pela escrita, por outro, parece ser bastante polêmica.

Torna-se oportuno, diante do exposto, uma discussão sobre os malefícios e os benefícios da escrita.

2. Escrita e letramento

Lado a lado com a admiração e a constatação do poder da escrita (por exemplo, no caso do relato dos feitos de Gilgamesh, que faz com que possamos recuperar a História milenar), sempre existiu uma desconfiança latente na humanidade sobre os textos escritos. No mito de Tote, descrito por Platão no diálogo de Fedro, já se consegue recuperar essa ambigüidade em seu caráter mais universal. Tote, o deus egípcio que inventou a escrita, vai à presença do deus Tamus, que governava o Egito, propondo-lhe compartilhar com o povo sua descoberta. Tamus, no entanto, ao contrário de Tote, tem uma visão negativa da escrita: ela é vista com desconfiança, como uma maldição que acarretará a perda da verdadeira sabedoria: a memória.

Derrida (4), examinando o texto de Platão, detém-se na palavra "medicamento", usada por Tamus para referir-se

lJ

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à escrita, e chama a atenção do letior para o fato de que a palavra grega "phármakon" tanto pode significar "remédio" quanto "veneno". Diz o autor a respeito:

Esse "Phármakon", essa "Medicina", esse filtro, ao mes­mo tempo remédio e veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda a sua ambivalência. Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa potência do feitiço podem ser _ alternada ou simultaneamente - benéficas e maléficas (grifos meus).

Encadeada com o raciocínio de Derrida coloca-se, então, a questão seguinte: O que se perde e o que se ganha quando a fala, o pensamento, os eventos reais ou fictícios, podem ser representados por sinais gráficos que, no entanto, já não são mais idênticos aos primeiros?

Para responder de maneira adequada, é preciso intro­duzir no âmago da mesma o conceito de letramento, que venho discutindo há algum tempo [por exemplo, Tfouni (5), (6) e (7)]. Resumidamente, esclareço que o letramento é apresentado nos trabalhos citados como um fenômeno sócio-histórico, e que investigá-lo implica estudar as trans­formações que ocorrem em uma sociedade quando suas atividades passam a ser permeadas por um sistema de escrita cujo uso é generalizado.

Olhar a questão das perdas e ganhos trazidos pela escrita do ponto de vista do letramento desloca a questão: não é na escrita em si que se deve localizar o problema, mas antes nas condições de produção (sócio-históricas) onde os discursos escritos são produzidos e lidos, e nos efeitos de sentido que eles produzem.

Sendo o letramento um processo, no qual está encai­xado outro (a alfabetização), precisamos também considerar que existem Ietramento(s) de natureza variada, inclusive sem a presença de alfabetização. Estas ponderações têm a

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--------------~~~~------~======~====~------~'I __________ ,

11 ver com a visão sócio-histórica do letramento e com a discussão acerca dos benefícios e malefícios da escrita na medida em que permitem acrescentar ao que já foi discutido até aqui a perspectiva do "continuum", a qual se opõe a uma visão linear e dicotômica, visto que encara o desen­volvimento e a mudança como processos que, ao invés de romper totalmente com as aquisições anteriores, retomam­nas em um nível mais complexo e as redimensionam em termos de manifestação, uso e produtos.

11 1\

3. O "continuum"

A proposta do "continuum" tem a ver com aspectos diacrônicos do social, e será melhor explicada a seguir. Em um mesmo momento histórico, não se pode afirmar que todas as pessoas estejam no mesmo nível de desen­volvimento (qualquer que seja o aspecto de desenvolvimento que se deseje olhar). Do ponto de vista do letramento, pode-se então pensar em um eixo do tipo:

\ letramentorooooooooooooooooo-­----------------------1

1"\

menos letrado

l_

Nas várias gradações possíveis distribuídas as pessoas em um dado Não está implícito aí, nem que essa

mais letrado

alfabetização ­ J deste eixo ficariam momento histórico.

distribuição é homo­gênea, nem que essas posições sejam intercambiáveis ou equivalentes. Tanto do ponto de vista das desigualdades sociais de que falei há pouco, quanto do pon~o de vista

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das aquisições levadas a efeito em cada poslçao desse eixo, teremos diferenças. Essa idéia é semelhante ao que Heath (8) denomina "níveis de letramento", em artigo onde aborda esse fenômeno do ponto de vista de seus diferentes usos, tipos e funções em uma dada sociedade, levando em consideração as desigualdades que a permeiam. É de se notar que em uma sociedade letrada, as atividades de leitura e escrita estão na base de quase todas as outras atividades. Assim, existem tarefas de leitura e escrita (ou eventos de letramento) que permeiam a vida cotidiana e que se impõem em maior ou menor grau a todos os indivíduos que compõem essa sociedade, sejam eles alfabetizados ou não. É interessante, por exemplo, ver como crianças muito pequenas, ainda em fase de aquisição da língua oral, já sabem decodificar palavras escritas "interessantes", como COCA-COLA. Segundo Heath, " ... as crianças lêem para aprender informações que julgam necessárias em suas vidas". (8) Parodiando Heath, eu diria que as pessoas aprendem a ler informações que são necessárias para a organização de suas atividades. Por exemplo, uma das adultas não-alfabetizadas que conheci durante pesquisa de campo, uma dona de casa chamada Joana D' Arc, apesar de analfabeta, contou-me que sabia "seguir" receitas escritas. Investigando mais, descobri que o marido a havia ensinado a ler palavras-chaves típicas desse portador de texto, como "colher", "xícara" etc., e a reconhecer os números escritos, para saber as quantidades. Outro caso, relatado por uma colega (Clotilde Rossetti Ferreira), dá conta de um traba­lhador rural analfabeto que desenvolveu ' um sistema gráfico pessoal para acompanhar e registrar o nível de sacarose na plantação de cana-de-açúcar, a fim de tomar decisões sobre a época mais propícia para o corte. Outros casos desta natureza são relatados em trabalhos meus [Tfouni, (5), (7) e (9)]. Lembro-me bem, por exemplo, de um rapaz analfabeto, "bóia-fria", que morava com a mãe em um

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I

bairro da periferia de Ribeirão Preto, em uma tapera de chão de terra batida, e que teve um desempenho surpreen­dente em tarefas de reconhecimento de rimas e de eliminação de sons vocálicos e consonantais [os resultados gerais desta pesquisa estão em Bertelson et alii (10)]. Estas pessoas, apesar de não-alfabetizadas, estariam, com relação ao eixo de "continuum" que estou propondo, muito próximas do ponto referente à alfabetização. Uma das conseqüências disto é que, deste modo, em termos do "continuum", estaremos mostrando a existência de pessoas não-alfabeti­zadas, mas com um certo nível de letramento, ou seja, estaremos colocando a alfabetização como sendo sobrede­terminada pelo letramento. Relatos autobiográficos, como o de Gavino Ledda (11), são também ilustrativos. O autor conta como se tornou letrado antes de alfabetizado: pastor de ovelhas, vivendo totalmente isolado do mundo social, aprendeu a discriminar e a interpretar, ou "ler", os sons,,[: da natureza, e desta forma deu-se conta da importância da linguagem para o processo de constituição da consciência. Essa descoberta, que está intimamente relacionada com o sentir-se sujeito, determinou que Ledda, de pastor analfabeto e miserável que era, conseguisse vencer as dificuldades e preconceitos, e se transformasse (não por acaso, aliás) em um especialista em Filologia, ciência que estuda, através dos documentos escritos, a história das formas e da evolução do sentido das palavras.

Estes dados, então, servem como evidência de que há letramento(s) sem alfabetização, de natureza variada. Minha proposta é que essas aquisições estariam dispostas em "continuum" (no eixo mencionado atrás, estariam lo­calizadas à esquerda do ponto indicativo da alfabetização). À direita deste ponto, teríamos a mesma idéia de "conti­nu um", com relação aos alfabetizados. A diferença entre um lado e o outro do eixo está, é claro, em que os eventos

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de letramento à direita têm a ver com atividades de leitura e escrita realizadas pelos próprios indivíduos. É interessante notar que também aqui à direita do eixo as coisas não se dispõem de maneira homogênea (e nem poderia postular qualquer homogeneidade sem entrar em contradição com a visão sócio-histórica que estou propondo). Já é quase um lugar-comum, dentro desta perspectiva, falar em usos e funções sociais da escrita, e são esses dois aspectos que servem também de parâmetro para defender a proposta do "continuum". A esse respeito, Heath (8) coloca que existem diferenças na percepção que diferentes sociedades possuem dos benefícios e funções, das atividades de leitura e escrita. A autora ilustra seu ponto de vista com vários casos, entre eles o dos tuaregues, que têm um sistema antigo de escrita denominado "tifinagli", o qual é usado em atividades tais como: escrever grafitos nas pedras, bilhetes de amor e talismãs.

Desta discussão, sobressai claramente a idéia de que, considerando-se do ângulo do letramento, há também uma heterogeneidade nos usos da leitura e escrita por pessoas alfabetizadas, heterogeneidade que se distribui em um "con­tinuum", uma gradação que vai desde práticas e usos menos sofisticados, como escrever um bilhete, até outros bastante sofisticados. Neste último caso, incluo minha própria sen­sação de analfabetismo diante de um microcomputador, e de total impotência por não saber operá-lo, apesar de possuir um grau de alfabetização letrada que não é des­prezível... Outro parâmetro ilustrativo para mostrar essa distribuição heterogênea, desta vez com relação à literatura, seria conseguir ler um livro de Paulo Coelho e um de Guimarães Rosa (considere-se aqui a ambigüidade inten­cional de "conseguir").

Retornando à discussão sobre os "poderes" da escrita, cabe observar agora que a escrita alfabética em si, enquanto

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código de sinais gráficos convencionais que simbolizam os sons da fala, não tem qualquer relação direta de causa com tudo o que foi colocado até aqui. Em verdade, a causa está no aparecimento de uma "ordem social" onde . isto se tornou possível, e pôde organizar-se enquanto dis­curso. Trata-se, portanto, de um fenômeno atinente ao

letramento.

4. A "transparência" do discurso escrito e a distribuição social de sentidos

Colocada a questão da produção de discursos escritos que podem ser mais ou menos eficazes, tem-se paralelamente uma discussão acerca da história da determinação dos sentidos. Claudine Haroche (12) chama a atenção para o fato de que, durante o século XVII, o Estado, como distribuidor e determinador de sentidos, colocou-se como objetivo estatuir a literalidade da escrita, ou seja, sua transparência absoluta. Por trás dessa aparente boa intenção, de permitir a leitura igual para todos, pode-se resgatar, no entanto, a necessidade de tornar o indivíduo e seu pensa­mento transparentes e, por extensão, tornar controlável o cidadão que pensa, através da domesticação das formas discursivas e da pregação do ideal cartesiano da raciona­lidade. Do ponto de vista estilístico, esse movimento deu origem a regras "do bem escrever", como, por exemplo, regras sobre como evitar a indeterminação do sujeito, assim como a condenação do conteúdo elítico, de um lado, e do inciso, por outro, o primeiro porque "esconde" , o segundo porque "transborda" além da informação "necessária". A única leitura (que restou) possível era aquela que tomasse o texto "ao pé da letra", ou seja, aquela que não "subisse até a cabeça", portanto, que não fizesse pensar. ..

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À parte uma discussão sobre o que deva ser informação necessária, ou mesmo sobre a ilusão, presente nesse caso, de que o pensamento equivale à linguagem, concluímos que os sentidos e as formas da escrita não são constituídos espontaneamente, e que "um discurso muitas vezes percebido como transparente diz seu assujeitamento cultural até pela forma sintática de sua escrita". (13)

Assim, podemos estender o conceito de letramento, por ser sócio-histórico por definição, para abranger estas questões, que tocam também o ideológico. Todos sabemos que a dominação cultural faz-se principalmente com base na "força", no "poder" e na "autoridade" das práticas escritas.

O que isto tem a ver com a nossa discussão central? Considerando-se os aspectos já colocados, podemos começar a pensar, por exemplo, que até mesmo um artifício apa­rentemente carregado de boas intenções, como o uso da nota de rodapé, ganha dimensão nova. Eni Orlandi (14), por exemplo, diz que a sua verdadeira função não é esclarecer os leitores sobre pontos obscuros, porém secun­dários do texto, e sim, em um certo sentido, domesticar a leitura. As notas de rodapé são colocadas em lugares onde existem "pontos de fuga" do sentido, e aí então sua função é exatamente impedir outras leituras possíveis, e garantir aquela que o autor deseja que seja feita.

A "transparência" do sentido, que encaminha para uma leitura exclusiva, ou no máximo dualística, tem sua contrapartida, atualmente, na proposta de opacidade do texto, o qual seria carregado de "vestígios textualizados" , de intertextualidade, interdiscursividade. Deste último ponto de vista, as condições sócio-históricas de produção são alçadas ao lugar prioritário e determinante. Como conse­qüência, o conceito de subjetividade "indizível", inacessível, cede lugar ao multifacetado e historicizado, e esta posição

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teórica muda radicalmente a idéia do texto escrito como um produto fechado, e do leitor como alguém inerte, passivo. Como afirma Hutcheon (15), neste tipo de discurso o próprio texto "questiona suas condições de produção e recepção" .

Isto não significa, no entanto, que não continuem sendo produzidos discursos escritos que tentam instituir a paráfrase, o sentido único, baseando-se na crença do "ob­jetivo" e "verdadeiro" que tão freqüentemente está associada aos mesmos. Temos aí discursos, totalizantes, "científicos", "descentrados" que implicam uma imposição de quem os produz e uma submissão de quem os recebe. São discursos monológicos, que não admitem leituras múltiplas, sob pena de se pagar uma multa, ir para a cadeia, ou perder o "Reino dos Céus" .... Esses discursos não admitem tampouco alegação de inocência (ou ignorância), isto é, mesmo sem serem lidos, pairam sobre o social, determinam comporta­mento e prescrevem castigos. Não é à toa que as palavras "autor", "autoria" e "autoridade" estão etimologicamente ligadas.

É preciso cuidado, no entanto, para não tomar essas colocações ao pé da letra, e pressupor que esse processo de "alfabetização letrada", assim como o desenvolvimento individual decorrente, estão acessíveis a todas as pessoas. Com efeito, como diz Orlandi (16), os conhecimentos não são compartilhados homogeneamente; eles são distribuídos socialmente. Assim, pode-se visualizar esse processo ideal de alfabetização letrada dentro de uma "cadeia social" de distribuição de conhecimentos, onde muitos grupos sociais, mesmo vi vendo em uma sociedade letrada, e tendo, portanto, um certo grau de letramento, são, no entanto, marginalizados do processo de produção e estão colocados nos elos terminais dessa cadeia de distribuição. E deve-se notar que estas colocações são válidas apenas para aquela população que

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II I

ainda pode ser chamada de "pobre". Não pretendo me referir aos miseráveis, cujo número aumenta neste país na proporção direta do aumento da corrupção e dos desmandos políticos. É claro que não estou me referindo, por exemplo, ao "homem gabiru", que sobrevive da coleta de sobras de lixo em Recife, nem aos meninos e meninas de rua, que têm a vida "encurtada" pelos grupos de extermínio. As condições subumanas de vida destes miseráveis colocam-nos à margem da margem, ou seja, excluem-nos totalmente do processo que descrevi acima.

5. A eficácia do letramento

Voltando à questão inicial, que coloca uma dúvida acerca dos benefícios e/ou malefícios da escrita, talvez se possa, neste ponto, concluir que a escrita, enquanto código, não traz, em si, nem poderes de vida, nem poderes de morte. Já com o letramento, na medida em que configura práticas sociais que são mais ou menos eficazes, o caso muda de figura. É a respeito dessa eficácia que falarei a seguir.

Tal como qualquer outra atividade organizada social­mente, o letramento produz sentidos, que se materializam em práticas discursivas, as quais, por sua vez, vão deter­minar esquemas de papéis, quando colocadas em ação. Como já discuti anteriormente, no entanto, esses sentidos não estão distribuídos homogeneamente no social. Assim, existem graus variados de participação possível (permitida). O sujeito não é livre, não escolhe conscientemente o sentido que produz. Entram nessa determinação mecanismos in­conscientes (no sentido psicanalítico) e ideológicos. Assim, as posições discursivas que podem ser ocupadas não estão à disposição de "qualquer pessoa".

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\

No caso do letramento, como existe envolvida nele a questão das produÇões escritaS, há então todo um co­

\ nhecimento complementar que também deve ser atingido: saber o que são os portadores de texto, para que servem e comO usá-los, por exemplo, ou saber como situar-se dentro dos papéis embutidos nos chamados "eventoS de letram "_ A complexidade das formações sociais (e

entodiscursivas) produzidaS pela escrita determina, na mesma medida, uma complexidade de papéis a serem assumidos

pelo sujeito. Esses papéis, na entanto, como já discuti acima, são determinados por práticas sociais e, portanto, discursivas.

\ Equivalem a "lugares sociais:', os quais não se encontram

à disposiçãO de todos de maneira igual. Em uma sociedade altamente letrada, essa distribuição

social não_homogênea do conhecimento e das práticas I sociais organizadas pelo letramento garante, de um lado,\ a participação eficaz dos sujeitoS que dominam a escrita,

e, por outrO, marginalizo aqueles que não têm acesso a\ esse conhecimento. Neste último caSO, portanto, estão os

analfabetoS.

\ Não nego que o letramento traZ coisas positivas, e

possibilita o desenvolvimento de todas as pessoas que vivem em uma sociedade letrada. Mostrei atrás casOS de adultoS analfabetoS que podem ser consideradoS como sendo um "mais letrados" (dentro da linha do "continu ") do que outros. Do mesmo modo, há aqueles alfabetizados "pouco letrados", assim coma há outrOS alfabetizados, "altamente \, letrados". A proposta do "continuum" parece, então, ajuS­

I, tar-se a esta discussão das práticas sociais e discursivas \ que o letramento produz, e da sua distribuiçãO desigual. ento

A marginalização também é produzida pelo letram ,\ assim como a participação. E uma das práticas discursivas

64\ \ \

que marginalizam, especialmente os analfabetos, é aquela do discurso "objetivo, lógico e formal", materializado nas formações discursivas "científicas" de maneira geral, as quais, por sua vez, são produzidas predominantemente pela escola.

O fato central a ser enfocado aqui, para fugir a uma visão romântica, é que existem formações discursivas mais letradas que são mais eficazes do ponto de vista da participação dos sujeitos que as usam, e que essas formações não estão à disposição de todos os indivíduos em uma formação social dada.

A eficácia maior desses discursos está, como já vimos, no fato de que criam a ilusão do sujeito e do sentido transparentes, e dão maior poder àqueles que os usam, porque produzem um efeito de sentido através do qual é atingida a descentração: a figura do sujeito fora de si mesmo, olhando para aquilo que diz, e examinando seu discurso como um objeto que pode ser compartilhado "tal e qual" com seu interlocutor.

Esta reflexão apenas mostra com maior força como é poderosa a prática letrada que se materializa no discurso teórico, visto que ela permite, inclusive, esse movimento de auto-reflexividade. E este só é possível porque o discurso é escrito, e não oral.

Carlo Ginzburg (comunicação pessoal) não tem dúvida nenhuma de que saber ler e escrever torna as pessoas mais fortes. Segundo ele, a capacidade para suspender as regras, colocá-Ias fora de si, não está ligada ao raciocínio lógico, mas à escrita enquanto prática social, ou seja, ao letramento. As práticas escrita.s mais letradas possibilitam o poder de abstração, e a abstração, por sua vez, é a "verdadeira arma simbólica" que permite a eficácia, tanto do ponto de vista enunciativo, quanto do ponto de vista histórico-discursivo.

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Historicamente, é ainda possível verificar essa questão em obras recentes, que procuram mostrar como muitas vezes "o outro" é uma criação do discurso escrito e, por extensão, do letramento. É o caso de Edward W. Said (17) e de Or1andi (14).

o primeiro escreveu um livro cujo título já nos introduz no tema acima: Orientalismo - O Oriente como Invenção do Ocidente, onde defende a tese de que o Oriente, tal como o pensamos e (achamos que) conhecemos na sociedade ocidental moderna, não passa de um construto discursivo, elaborado pelo Ocidente e concretizado na pro­dução escrita de historiadores, literatos, teóricos em geral, filósofos etc. O "orientalismo" é, então, esse conjunto de generalizações que acabam produzindo um outro, e uma forma de falar (escrever) sobre esse outro, que se revela por fim como uma projeção especular do próprio homem ocidental.

Do mesmo modo, Orlandi (14) analisa a produção do discurso colonialista escrito sobre o Brasil como uma forma de prover " ... o brasileiro de uma definição que, por sua vez, é parte do funcionamento imaginário da sociedade brasileira". Deste modo, esse discurso produz sentidos que nos constituem como "identidades" para nós mesmos, só que ele é, em essência, um processo de produção de sentidos feito pelo colonizador acerca do colonizado. Nesse processo, diz a autora:

o europeu nos constrói como seu "outro" mas, ao mesmo tempo, nos apaga. Somos o "outro", mas o outro "excluído", sem semelhança interna. Por sua vez, eles nunca se colocam na posição de serem nosso "outro". Eles são sempre o "centro", dado o discurso das des-cobertas, que é um discurso sem reversibilidade. Nós é que os temos como nossos "outros" absolutos.

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A eficácia da escrita, então, aquilo que a torna ao mesmo tempo remédio e veneno, está no jogo do letramento: um jogo ideológico regrado, ligado à produção de sentidos que, ao mesmo tempo que garantem a permanência, a difusão e a atemporalidade do conhecimento (materializados em discursos pretensamente "objetivos"), acabam por gerar um mecanismo de exclusão (e dominação) onde o "mais fraco" (antropologicamente falando) nunca leva a vantagem. É o que acontece com os analfabetos, e também com todos aqueles alfabetizados excluídos das práticas mais sofisticadas de letramento.

6. Observações finais

Como resgatar isso?

Em geral, nota-se que as teorias sobre o desenvolvi­mento enfatizam muito os ganhos e esquecem-se das perdas. Pensando dialeticamente, no entanto, sabemos que sempre que se ganha algo, também alguma coisa se perde. Assim, do ponto de vista científico, seria preciso que fossem produzidos discursos teóricos também sobre as perdas ad­vindas do processo de letramento. Por exemplo, investigar como vivem e interagem com uma sociedade letrada esses grupos analfabetos e alfabetizados que citei atrás: como é, e como é usado, seu conhecimento do mundo, como estão organizadas suas práticas discursivas? Em que situações esse conhecimento pode aflorar, e em quais ele é calado?

Esta tarefa com certeza só pode ser realizada por aqueles cientistas que estão particularmente preocupados com as questões sociais (ideológicas) que envolvem o processo de letramento.

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Referências bibliográficas

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(6) Tfouni, L. V. Escrita, alfabetização e letramento. i Cadernos CEVEC. n. 4, pp. 18-34, 1988. I (7) Tfouni, L. V. Letramento e analfabetismo. Tese de

livre-docência. FFCLRP-USP, 1992.

(8) Heath, S. B. The functions and uses of literacy. In: Castell, S. de Luke, A. & Egan, K. (eds.). Literacy. Society and Schooling: A Reader. Cambridge, Cam­bridge University Press, 1988, pp. 15-26.

(9) Tfouni, L. V. Estudo de caso de uma mulher negra, analfabeta, de terceira idade, do ponto de vista só­

J8Qcio-interacionista. Anais da Reunião Anual da SPRP. 1988, pp. 207-213.

(lO) Bertelson, P., De Gelder, B., Tfouni, L. V. & Morais, J., Metaphonological abilities of adult illiterates: new evidence of heterogeneity. European Journal of Cog­nitive Psychology. (3): 239-250, 1989.

(11) Ledda, G. Pai patrão. São Paulo, Círculo do livro, s/do

68

(12) Haroche, C. Da anulação à emergência do sujeito: os paradoxos da literalidade no discurso (elementos para uma história do individualismo). In: Orlandi, E. et alií. Sujeito e texto. São Paulo, EDUC, 1988, pp. 61-85.

(13) Maziere, L O enunciado definidor: discurso e sintaxe. In : Guimarães, E. (org.). História e sentido na lin­guagem. Campinas, Pontes Editores, 1989, pp. 47-59.

(14) OrIandi, E. Terra à vista - discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo, Cortez, Campinas, Editora da UNICAMP, 1990.

(15) Hutcheon, L. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro, Imago, 1991, p. 80.

(16) Orlandi, E. O sentido dominante: a literalidade como produto da história. In: Orlandi, E. A Linguagem e seu Funcionamento. Campinas, Pontes, 1987, pp . 135­147.

(17) Said, E. W. Orientalismo - o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

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CAPíTULO 4

Os fabricantes do sentido·

José Juvêncio Barbosa**

Os vestígios mais antigos de um sistema gráfico de comunicação foram encontrados há 5.000 anos em Uruk, região arenosa situada entre os rios Tigre e Eufrates. Mas a sua gênese parece ser mais remota; tão remota que chega a adquirir um caráter mágico, divino. Para os babilônios foi o deus Nabu quem inventou a escrita. Para os gregos, teria sido Seshat, deusa da escrita. Lendas chinesas atribuem o evento a Fohi ou, ainda, ao sábio Ts'ang Chien, figura antológica com rosto de dragão e quatro olhos. Uma saga nórdica faz referência a Odin; segundo lendas irlandesas, o inventor da escrita teria sido Ogmios. Já para os hindus, foi Brahma quem ensinou as letras aos homens. Mais recentemente, em urri conto de um escritor argentino, essa invenção foi atribuída a um deus que, logo nos primeiros

* Publicado anteriormente no Catálogo da Base de Dados sobre Alfabetização, São Paulo, FDE, 1992. v. 111; e também na revi sta Les Actes Lecture, Pari s, Association Française pour la Lecture, n° 39. 1992.

** Técnico da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE).

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dias da criação, escreveu uma sentença mágIca, capaz de conjurar todos os males do fim dos tempos. A sentença era composta de um conjunto enigmático de quarenta sílabas e quatorze palavras casuais, formada pelas manchas negras gravadas na pele amarela do tigre. Porém, sem poder precisar o seu aparecimento, supõe-se que o homem, desejoso de ordenar o mundo em que vivia e tornar público e durável o seu pensamento, inventou uma série complexa de sinais que evoluíram elJl direção aos sistemas gráficos utilizados até hoje.

U ma vertente desse s~stema buscou reproduzir a fala dos homens. As primeiras plaquetas com marcas de um sistema alfabético de sinai~ foram encontradas em Ugarit, região situada no monte Ras Shamra, ao norte da Síria. Com a escrita, a linguagem deixou de ser matéria volátil, fugaz, substância sonora que se evapora no ar. Cristalizou-se na areia, nas conchas, nas pedras, no mármore, no perga­minho, no papiro, no papel, na celulose, no néon, nas telas do computador. Com a escrita, a linguagem passou a ser vista.

E sob mais esse novo signo de distinção, o mundo atravessou mil e uma noites - noites inteiras - até a escrita encontrar o seu suporte privilegiado: o livro, um meio portátil de circulação de idéias. Nele, a palavra é impressa em letras pontuais, delicadas, negríssimas, que permitem a sua visualizaçã~ instantânea, em um lance do olhar. Com o livro, a escrita: se espalhou pelo mundo como veneno na água. O livro deu origem aos construtores de labirintos (os escritores) e àos fabricantes do sentido (os leitores), cativos da circularidade dos textos escritos.

A escrita é um sistema gráfico de armazenamento e recuperação da informação. No caso das escritas alfabéticas, o sistema permite codificar dois tipos de informação: a sonora e a semântica. O alfabeto promove uma estranha

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mistura entre VIsao e audição. Letras sem significado são utilizadas como correspondentes a sons também sem sig­nificado. Uma estranha miscelânea de tecnologia óptica com tecnologia auditiva. Daí, o seu caráter econômico: dois em um. Ao contrário das escritas ideográficas - que permitem um único tipo de acesso - as escritas alfabéticas possibilitam duas modalidades de uso, baseadas em técnicas antagônicas de processamento da informação. Usufruindo do aspecto duplo das escritas alfabéticas, parte do mundo ocidental conseguiu generalizar uma das · técnicas de acesso ao sistema de escrita através do processo de alfabetização. Privilegiando uma de suas facetas - a faceta sonora ­o processo de alfabetização desenvolve uma das possibili­dades de acessar o sistema de escrita e foi promovido por uma instituição projetada com essa finalidade: a escola. Na escola, a criança aprende uma modalidade de leitura rudimentar, massificada pelas metodologias tradicionais.

Leitura é o termo genérico, vago e ambíguo que designa uma série de estratégias para acessar o sistema escrito. Ora designa uma técnica de produção sonora, ora de produção semântica. Assim, existem dois tipos distintos de utilizadores das escritas alfabéticas: o alfabetizado e o leitor. O alfabetizado utiliza a escrita através de estratégias fonéticas (ou alfabéticas). Tal como o leitor Kurstweil, estranha máquina que converte mecanicamente sinais grá­ficos em sinais sonoros da voz humana, o alfabetizado decodifica a escrita buscando recuperar a informação sonora embutida no sistema. Para o alfabetizado, a escrita funciona como porta-voz e, graças a um processamento adequado, ele consegue transformar letras em fonemas, grafias em sons. Com essa técnica, o alfabetizado recupera a fala da escrita para, a partir do oral, tentar reproduzir o que está escrito, o que o escritor quis dizer e codificou no sistema. Como se o significado de cada palavra estivesse gravado

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em cada uma das letras que a formam - letras que correspondem a sons da palavra falada - o alfabetizado examina minuciosamente a escrita, procurando identificar seu som correspondente. Nessa investigação minuciosa ele busca identificar índices fonográficos. A leitura é monótona, vascilante, balbuciante, tentando obedecer ao fluxo temporal da fala. O desconhecimento dessa técnica de utilização da escrita, específica dos sistemas alfabéticos, ficou sendo conhecido por analfabetismo. E, mesmo tendo sido alfa­betizado, o indivíduo pode perder essa competência por falta de uso: socialmente ele continua excluído do circuito da comunicação impressa. Esse fenômeno ficou conhecido por analfabetismo funcional e atinge tanto os países do Primeiro Mundo, quanto aqueles de outros mundos. Essa técnica de utilização da escrita foi importante durante um longo período da história do mundo ocidental, quando o impresso era o único meio de comunicação a distância. A função da escrita, nesse caso, era justamente a de um portador da voz do emissário. Um veículo mensageiro. Mas, com o desenvolvimento de poderosos meios de co­municação a distância, essa função da escrita caiu em desuso e aquela técnica de utilização da escrita torr;lOu-se anacrônica: hoje, quem lê o bilhete simples para o analfabeto distante dos centros de decisão do país é o Cid Moreira, em edição nacional.

Antes de determinar o fim da era da escrita, o avanço dos meios de comunicação redimensionou o papel da cultura impressa no mundo contemporâneo. A cobertura global e instantânea do rádio e da televisão ocupou o lugar tradicional - e antes exclusivo - do texto impresso, deslocando a sua função. Daí, paradoxalmente, a nova configuração eletrônica do mundo ter sido acompanhada pela explosão da comunicação escrita, que passou a se manifestar nos mais variados suportes, diversificando e multiplicando a

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sua utilização. Desse modo, cada vez mais o texto passou a se interpor entre o indivíduo e suas aspirações, entre o indivíduo e sua efetiva participação social. E, diante da profusão do material impresso, uma modalidade de uso da escrita - mais eficaz e dinâmica - se firmou, superando e tornando obsoleta a técnica da leitura proporcionada pela .concepção de alfabetização veiculada pela escola. Esse modo de usar a escrita era exclusividade e privilégio de poucos: os leitores.

Enquanto o alfabetizado tem o ouvido atento, o leitor tem os olhos em movimento; enquanto o alfabetizado não sabe o que procura, o leitor prevê o que vai ler; enquanto o alfabetizado busca o rumor da língua, o leitor contempla o silêncio do texto escrito; enquanto o alfabetizado aprende o suporte sobre o qual se realiza o ato de ler (a língua escrita), o leitor constrói estratégias de leitura. A língua escrita é um objeto de conhecimento para o alfabetizado; para o leitor ela é um objeto de uso: seus olhos estão habituados a identificar diferenças visuais significativas e se movimentam aos saltos, fixando-se nos índices perti­nentes. Para ler, o leitor mobiliza estratégias gráfico-se­mânticas (ou ideográficas), utilizando a escrita como uma espécie de sistema lexicográfico. As palavras e fráses se agrupam em padrões familiares que podem ser facilmente retidos em uma única fixação ocular porque foram previstos. Esses padrões compõem a memória seletiva de configurações gráficas do leitor. O pensamento conservado pela escrita interage com o pensamento do leitor através de técnicas que incorporam aspectos perceptivos e intelectuais : os olhos processam a informação gráfica e os processos mentais operam a compreensão. A leitura é um processo ideovisual. Nesse processo - no ato de ler - o leitor constrói o significado do texto escrito, é um fabricante do sentido. Sendo assim, aprender a ler é aprender a fabricar sentidos

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a partir do estímulo da palavra impressa: ler é um meIO de produção do sentido.

A explosão da comunicação impressa, a invasão dos meios tecnológicos de difusão da informação, as exigências para que o indivíduo cumpra o seu novo papel social suscitam as questões atuais que envolvem todos aqueles que trabalham em Educação. E, diante do desacerto do mundo, esses trabalhadores procuram basicamente responder à pergunta: Quais as condições sócio-culturais e escolares para distribuição igualitária dos meios de produção do sentido?

PARTE 111- PROPOSTAS

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CAPíTULO 5

leitura: questão escolar ou comunitária

Maria Amélia Azevedo*

Foi em 1976 que Jean Foucambert, inspetor do Ministro da Educação Nacional e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Pedagógicas (INRP), iniciou na França um movimento teórico e prático cujo futuro - superando a antiga "querela dos métodos" - está na substituição de uma Pedagogia da Alfabetização (voltada e limitada à formação do decifrador) para uma Pedagogia da Leiturização (comprometida com a formação do leitor) . Esse posicio­namento foi surpreendente, na medida em que se opunha frontalmente ao posicionamento até então vigente.

Quase duas décadas depois, os principais textos de Foucambert chegam ao Brasil, divulgados no livro A Leitura em Questão, publicado em 1994 pela Editora Artes Médicas. Coletânea de textos polêmicos produzidos ao longo de vários anos, publicados em livros e em revistas diversas, mas principalmente na Actes de Lecture, órgão da AFL

* Professora Livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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(Associação Francesa pela Leitura), de que Jean Foucambert é membro ativo.

Partindo das seguintes constatações:

• "Há cem anos a escola vem permitindo que todos os franceses se virem com a escrita, mas apenas 20 a 30% são leitores" (Nadine Etcheto).

• "Todo mundo diz 'eu sei ler'; isto é, todo mundo é capaz de entender, com mais ou menos facilidade, um texto curto, um artigo de jornal etc ... Mas daí a utilizar a leitura e a escrita como meio privilegiado de informação ou diversão..." (Foucambert: 1994).'

Partindo dos seguintes pressupostos:

1. "o acesso à informação escrita é realmente um desafio democrático em todos os níveis...

2. "o livro é feito por quem sabe ler, para quem sabe ler, isto é, para 30% das pessoas... '

3. "quem é leitor não considera o livro como um objeto sagrado; já os que freqüentam o livro esporadicamente têm uma atitude inferiorizada em relação a ele: o livro está com a razão e eles estão errados" (Foucambert: 1994), e, dentro do que Juvêncio Barbosa - prefaciando a obra A Leitura em Questão, denominou com muita propriedade destruição ativa - Jean Foucambert propõe como uma de suas idéias-força a desescolarização da leitura: "deses­colarizar a leitura significa que, tanto em relação às crianças quanto aos adultos, todas as instâncias educativas devem ter o cuidado de formar o leitor sob o ângulo da técnica e do manuseio do livro ... A idéia de desescolarização da leitura é, pois, a de formação permanente do leitor a ser assumida por todas as instâncias educativas" (Foucambert:

1. Esses percentuais referem-se à realidade francesa.

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III

1994). Daí porque, para esse autor, a leitura é um assunto comunitário, porque, para ele, "a leitura é uma maneira de estar presente ali onde a escrita funciona" (Foucambert: 1994). Para desenvolver uma Pedagogia da Leiturização, Foucambert propõe a articulação de um programa de de­sescolarização da leitura e educação popular, cujos oito pontos principais estão desenvolvidos no capítulo "Leitura, assunto comunitário", da obra A Leitura em Questão. Embora um tanto extensos, esses pontos vão reproduzidos a seguir:

1. Os países ocidentais chegaram ao final da fase de alfabetização, iniciada há um século e em função da qual organizaram seu sistema escolar.

2. Estão fadadas ao fracasso todas as tentativas para que a escola obtenha resultados diferentes daqueles em função dos quais foi concebida, se ela não sofrer uma transformação fundamental. Em outras palavras, a escola, instrumento da alfabetização, não pode continuar sendo o que é, para poder assumir uma função de leiturização.

3. A leiturização é um desafio capital em qualquer processo de democratização da vida política, sindical, cultural, econômica, da tomada do poder sobre seu destino; numa palavra, em qualquer desejo de promoção coletiva.

4. A transformação radical da escola não pode ser realizada nem por ela mesma, nem pelos professores, que são recrutados, formados e regidos por um outro projeto, mesmo que parte importante deles tenha papel determinante no ques­tionamento do corpo social, na procura de alianças e na sacudida de que o sistema precisa desde dentro.

O processo de transformação da escola virá da conjunção de uma expectativa social diferente e de novas possibilidades de respostas que estão começando a ser esboçadas pelas inovações.

5. Conferir a responsabilidade pela leiturização à escola atual resultaria num duplo fracasso. Não somente lhe é im­possível "produzir a leitura", como seu sistema de alfabetização,

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como ela não poderá transformar-se, se não for momentanea­mente libertada da angustiante limitação que pesa sobre ela .

Para ajudar a escola a operar uma mutação decisiva, é fundamental aliviá-Ia dessa pressão que a remete para seu passado.

6. É preciso, pois, desescolarizar a leitura. Se a alfa­betização era, por bons motivos, um aprendizado escolar, a leitura é um aprendizado social, da mesma natureza que o aprendizado da comunicação oral. Com a leitura será como na fala: se o aprendizado se realizar através das práticas familiares e sociais, então e somente então, a escola poderá cumprir um papel fundamental de ajuda e de redução das desigualdades. Quando se afirma que a leitura é um aprendizado social, não se está criando uma situação nova, apenas elucidam os mecanismos da desigualdade escolar. Pelo contrário, ao continuar atribuindo à escola tarefas que ela não pode realizar, é que se perpetuariam as injustiças e as ilusões.

7. O indispensável corolário da desescolarização da leitura demanda um esforço considerável em relação ao corpo social para que este adquira comportamentos de leitura efetivos. Esse esforço deve concentrar-se nos meios tradicionalmente excluídos do acesso à leitura. Em suma, leiturização e trans­formação da escola dependem de uma política de ação co­munitária por parte das instânciaS 'e movimentos de educação popular. O mais urgente é suscitar práticas de leitura nas camadas sociais que até aqui foram apenas alfabetizadas .

8. Essa ação de educação popular deve se desenvolver em múltiplas instâncias : empresas, associações de bairro, grupos de lazer, bibliotecas, formação contínua, meios de comunicação etc. Ela deveria avançar em três direções:

- Desenvolvimento das estratégias de leitura e abandono dos comportamentos alfabéticos. Técnicas adaptadas e eficien­tes permitem emborcar os hábitos de oralização e criam outras relações com a escrita. Um esforço sistemático poderia rapi­damente atingir esses objetivos.

- Multiplicação dos encontros com diversificados tipos de escritos sociais. A política de animação em torno de livros, revistas e jornais deveria ser ampliada e descentralizada nos

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~/.- r- b

locais de trabalho,. de vida comunitária c de lazer. O importante é descobrir a qúalidade do elo que se estabelece entre as preocupações das pessoas e a variedade de respostas a elas oferecidas pela escrita. Ou seja, fazer os livros viverem no cotidiano.

- Reapropriação comunitária das práticas educativas. Trata-se de informar e apoiar todos os co-educadores em suas intervenções quanto à escrita, em vez de persuadi-los de que esse assunto é prioridade da escola. Trata-se do movimento inverso ao que foi feito em relação à alfabetização. A educação deve voltar a ser uma ação comum, que se tentou confiscar em proveito de uma instituição especializada (Foucambert: 1994).

Ao lê-los, a expectativa principal é a de que o leitor se comprometa com essa luta e contribua como espera Foucambert para "colocar a escola em situação de trans­formação [e para tanto levando a ...} optar por uma outra aliança" (Foucambert: 1994).

Referência bibliográfica

Foucambert, J. A leitura em questão. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1994, pp. 14-7, VL, 115-7.

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CAPíTULO 6

leitores já: comentando o texto: "A leitura, uma questão comunitária", de

Jean Foucambert

Yves de La Taille*

1. Introdução

Um menino, vivendo o dia-a-dia severo e cruel de uma cidade russa do final do século XIX ... Em volta dele, pessoas pragmáticas e místicas, preocupadas com dinheiro, rezas, heranças, revelações, bens materiais, cultos, sexo, pecados e sanções etc. Comunidade de tradição oral, onde se contam e se apreciam lendas e desgraças. Comunidade de fronteiras intelectuais e morais estreitas, entre as quais se permanece para não ser humilhado e surrado.

O menino, Alexey, de sensibilidade e inteligência feridas, sofre e assiste a tudo com espanto. Adulto, ele escreverá: "Hoje ainda, quando evoco o passado, tenho

* Professor Doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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dificuldade de crer que tudo foi realmente assim; há tanta coisa que eu gostaria de discutir e negar, pois a vida obscura de uma 'raça estúpida' é demasiadamente fértil em crueldades". Alexey tinha um só refúgio: os livros. Quando lhe davam sossego, quando o deixavam descansar, ele lia. O que lia? Todo e qualquer texto que lhe caísse nas mãos, toda e qualquer brochura que conseguisse em­prestada. E assim, aos poucos, Alexey conseguia ultrapassar as fronteiras de sua vida cotidiana, conhecia outros lugares, outras pessoas, outros pensamentos, outras referências . Os adultos aconselhavam-no a deixar este hábito estranho e suspeito. Para que servem os livros? Não dão dinheiro e corrompem a alma. Mas Alexey não dava ouvidos, lia. Até que, um dia, resolveu ir embora, andar pelo mundo, este mundo que conhecera pelos textos. Mais tarde, decidiria retribuir a coragem e a riqueza que eles lhe haviam trazido, tornando-se, ele mesmo, escritor, com o nome de Maxim Gorki.

Hoje, os tempos são outros . Mas deve haver, em vários lugares, em várias classes sociais, outros pequenos Alexey que intuem que é necessário ir além das fronteiras do dia-a-dia, ir além das imagens fragmentadas e fugazes da televisão, além das mensagens vazias e histéricas dos locutores de rádio, da vida como ela é aqui e agora, dos "deles e dos delas" da TV Globo (expressão de Caetano Veloso na canção Língua), do horizonte místico da tecno­logia, do determinismo astrológico, do consumo insaciável etc. Mas como realizar tal façanha? Não será justamente pela televisão e seus jornais? Não será pelos filmes? Pelos computadores? Pelos novos recursos de multimídia e outros apetrechos tecnológicos?

Um saudosista responderia que não. Responderia que é melhor ler Flaubert a assistir, no cinema, Madame Bovary; que é melhor ler Einstein do que assistir a Jornada nas Estrelas; que é melhor ir à Grécia do que visitar Saint

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Tropez; que é melhor apaixonar-se por Machado de Assis "alfabetizadas" , é também um país de poucos leitores e

do que por Airton Senna. E assim por diante. Será que muitos decifradores. Mesmo lá, a leitura permanece sendo

ele tem razão? Eu (ainda) responderia que sim, embora um privilégio social.

sem aderir ao purismo que se traduz pela negação do valor E no Brasil? da novidade. As novas tecnologias podem produzir bons Antes de pensarmos a nossa realidade, é importanteefeitos. Por que não aprender com a televisão? Com a ressaltar algumas teses de Foucambert, teses estas quemultimídia? Com filmes e vídeos? Não há dúvidas de que podem nos ajudar a pensar a alfabetização no Brasil. sonhos de avançar para além das fronteiras estreitas do cotidiano podem ser alimentados e fortalecidos pelo extenso leque de imagens que estão, hoje, à nossa disposição. Não 2. Alfabetização e política se diz que uma imagem vale por mil palavras?

Contrariando algumas análises ingênuas que costumamSim, uma imagem vale por mil palavras.. . Porém, explicar todos os problemas da educação referindo-se acomo disse, se não me engano, Millôr Fernandes, é im­problemas de método, Foucambert aponta para a dimensãopossível expressar tal comparação com uma imagem! So- . histórica da questão da alfabetização. Se foi dada a opor­

mente uma frase pode fazê-lo . A palavra sempre pode tunidade aos franceses de terem relativo acesso à língua

falar de mil imagens! A palavra fala de tudo e de todos, escrita, não foi por generosidade de alguns estadistas, mas

e de si própria. A imagem não. A palavra é mais. Portanto, sim por necessidades dos meios de produção, do sistema a leitura é mais. E, mesmo hoje, para escaparem da econômico. Acredito que não se deve ver aí uma espécieheteronomia que os sufoca, nossos pequenos Alekse·j pre­ de plano maquiavélico elaborado pelas elites: as própriascisam saber ler, saber navegar nos diversos textos, e assim relações de produção permitem explicar como a "superes­viajar intelectualmente. trutura" é construída. Na prática, a comunicação oral deixou

E sabem fazê-lo? de ser "produtiva", e teve de ser substituída por rudimentos de escrita. E fornecer tais rudimentos definiu e ainda define

O texto de Foucambert responde que não. Na França! a função da escola, notadamente para a parte "proletária" Na França? Para entender as "denúncias" do autor, é dos alunos.

preciso lembrar a diferença que faz entre "decodificadores" Tem-se, como decorrência, que uma transformação da e " leitores" . Nosso pequeno Gorki era um leitor, isto é, escola para torná-Ia formadora de genuínos leitores também alguém capaz de, em pouco tempo, usufruir de um conhe­ passa pela questão política: deve ser uma reivindicação cimento que, se fosse transmitido oralmente ou por imagens, popular, uma exigência ligada à qualidade de vida. Vale,.1

! demoraria muito mais tempo para ser assimilado - o que dizer que o projeto da educação, isto é, o objetivo do acarretaria o fato de não sê-lo. O decifrador não lê, apenas ensino, deve ser redefinido. Bons métodos de se ensinar abstrai, com muita dificuldade e demoradamente, algumas a ler (verdadeiramente) não serão suficientes para reverter informações básicas. Entende algumas partes, mas não a situação. Para que o projeto da escola seja redefinido,

possui o sentido do todo. Ora, a França, um país de pessoas é o próprio modelo de sociedade que deve sê-lo. Em

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resumo, melhorar as condições de ensino para garantir boa formação dos alunos não passa apenas por sofisticadas experiências em laboratórios de uni versidade: também passa pela luta social por uma redistribuição das riquezas culturais.

3. Alfabetização e democracia

Ser leitor, e não apenas decifrador, é condição ne­cessária para usufruir e participar da democracia. Uma democracia pode se satisfazer com 30% de leitores?, pergunta Foucambert. Não se trata apenas de democratizar a leitura, assegurando a todos o acesso a ela como se fosse um bem como outro qualquer. Não! Trata-se de sublinhar que uma democracia somente merece este nome se seus participantes tiverem acesso à cultura, aos conhe­cimentos. Ora, a melhor forma de se ter esse acesso é a leitura. Do contrário, uma minoria de leitores determina a informação a ser proposta ou imposta aos não-leitores.

4. Leitura e modificações educacionais

Agora, a tese é afirmar que ensinar alguém a ser leitor pede estratégias pedagógicas diferentes daquelas que se contentam com a alfabetização básica. Do jeito que está, o ensino da verdadeira leitura será um fracasso. E mais, não se deve contar apenas (nem essencialmente) com

In a escola nesta empreitada: deve acontecer uma reapropriação do ensino pela comunidade. A educação deve voltar a ser uma ação comum; enquanto tentou-se confiscá-la em pro­veito de uma instituição especializada.

5. No Brasil

A rigor, as análises e denúncias de Foucambert sobre o baixo nível da leitura pouco têm a ver com a maioria

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.

da população brasileira. Na realidade, o problema do Brasil é que grande parte da população é não-leitora no sentido radical do termo: grande parte é analfabeta! Está, portanto, justificada nossa obsessão pela a(labetização, condenada por Foucambert

Então, para que se ler os diagnósticos e as idéias deste autor? Ora, acredito ser relevante, justamente em função das teses acima escolhidas. Eis as lições que eu retiraria para pensar a realidade brasileira:

1. Em primeiro lugar, não se deve pensar o analfa­betismo brasileiro apenas em termos de "descaso" das autoridades competentes : alguém deve ter algum interesse em mantê-lo! Será que a alguém interessa que a maioria da população não venha a saber ler, não venha a ter esse mínimo de autonomia representado pela capacidade de, de forma autônoma, procurar as informações? Certamente este "alguém" existe! Portanto, não se deve ver o analfabetismo de forma exclusivamente negativa, ou seja, como falta de responsabilidade, de competência etc. Historicamente, in­teressou a muita gente que grande parte da população não tivesse acesso autônomo às informações e à cultura de forma geral; interessou a muita gente permanecer com a exclusividade da capacidade de ler e escrever. Deram um pouco de peixe, mas nunca ensinaram a pescar.

Deste fato . decorre que a luta pela alfabetização é mais complexa do que se pode pensar. Não se trata apenas de se colocarem métodos modernos no lugar dos antigos, de se trocarem as cartilhas pelas decorrências pedagógicas das descobertas de Ernilia Ferreiro. É preciso exigir o direito (real - o direito formal já existe) do acesso à leitura e à escrita; e exigi-lo de quem não o quer dar.

2. Em segundo lugar, devemos pensar nas condições reais da possibilidade da prática democrática. Ser alfabe­tizado é condição necessária para o exercício consciente

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da cidadania? Certamente o é, aqui no Brasil como em qualquer país. Porém, aqui é importante lembrar a diferença, feita por Foucambert, entre decifradores e leitores. Somente os últimos podem realmente aspirar à condição de cidadania ativa e esclarecida. Eu acrescentaria que, para que tal condição possa existir, é todo o desenvolvimento cognitivo que está em jogo.

Tomemos o exemplo da Matemática. Fazendo um paralelo com os conceitos de Foucambert, eu diria que aquele que sai da escola sabendo apenas manejar as quatro operações é um "decifrador" na área da Matemática. E, por conseguinte, sofre das mesmas limitações apontadas em relação aos decifradores da escrita. Por exemplo, como apreciar o real valor das inúmeras estatísticas com as quais somos bombardeados cotidianamente? Como conceber o que seja "margem de erro" das pesquisas de opinião? Como julgar os diagnósticos dos economistas? Apenas uma formação matemática mais avançada - que permita, não resolver equações de vários graus, mas sim apoderar-se da lógica implícita nas diversas manifestações da Matemática _ pode levar alguém a ter o mínimo de autonomia para poder julgar por si só as informações que lhe são veiculadas. E tal raciocínio é válido para todas as áreas do conhecimento.

Vale dizer que uma "bandeira" de luta no Brasil de hoje deve ser: leitores já. Não nos contentemos com decifradores (O que ainda seria um ganho!). Estamos muito

1 mais longe do ideal do que imaginamos. E, no tangente às pesquisas sobre alfabetização, que elas não se limitem

II aos mecanismos da construção da alfabetização, analisando os milhares de detalhes que a compõem. Pesquisemos

II também a gênese do genuíno leitor.

1' 1 3. Em terceiro lugar, devemos repensar a escola. A 11\ participação popular nas reformulações dos projetos edu­" : 1 cacionais, preconizada por Foucambert, evidentemente vale

para nós, no Brasil. '11

90"

Todavia, ponderações devem ser fcitas em relação a duas idéias do autor: o papel da escola e o papel da escrita.

a. Foucambert afirma que se aprende a ler como se aprende a falar... falando. E que, decorrentemente, deve haver uma "desescolarização" da leitura. Não quero discutir aqui mecanismos de aprendizagem. Porém, enquanto os pais franceses sabem ler e escrever - por mais que sejam apenas decifradores -, enquanto o ambiente escrito está por toda parte (basta ver os franceses no metrô: a metade, de pé ou sentada, lê durante todo o percurso), enquanto as livrarias são' vitrine corriqueira na maioria das cidades, em resumo, enquanto as diversas manifestações da língua escrita fazem - ainda - parte do universo cultural das crianças francesas, I no Brasil, a situação é diametralmente oposta. Portanto, esse "banho" de leitura que se pode esperar na França, aqui está totalmente descartado. Em decorrência, o papel da escola torna-se crucial. Se, na França, pode-se conclamar a população a compensar as limitações do sistema escolar, no Brasil a situação é diferente, pelo menos no que tange à aprendizagem da leitura e da escrita. Passar de uma cultura alfabética para uma cultura da leitura é uma coisa; fazer o mesmo percurso partindo do analfabetismo (não apenas individual, mas coletivo) é outra. Nesse sentido, a instituição escola ­com seu papel de alfabetizadora - permanece sendo preciosa no Brasil, tão preciosa que não podemos descartá-Ia. Evidentemente, deve-se procurar colocar a escola em sin­toniacultural com as classes sociais que ela atende. Porém, não acredito que, no Brasil, isto signifique abandonar a alfabetização básica.

I. Foucambert propõe que práticas novas de leitura sejam suscitadas nas camadas sociais até então alfabetizadas (grifo meu). Este adjetivo faz muita diferença.

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b. Também devemos dar importância à escrita. Fou­cambert pouco se remete a ela, permanecendo centrado na leitura. No seu contexto, ele talvez tenha razão, na medida em que a maioria dos alunos sabe escrever, se não uma dissertação, pelo menos o bastante para suas necessidades: escrever uma carta para pedir emprego, para fazer alguma reclamação, para se comunicar com parente ou amigo distante, para pedir informações a uma instituição etc. No Brasil, nem ao menos isto acontece! Parecem ser detalhes, mas não são: quantas pessoas não permanecem "caladas" e impotentes por não saberem minimamente escrever? Aqui, de novo, a "obsessão" pela alfabetização tem sua razão de ser. E, de novo também, o papel da escola aparece como fundamental pelas razões apontadas acima.

Em resumo, quando lemos o título do artigo de Foucambert - A leitura, uma questão comunitária ­devemos ter claro que, no Brasil, a escola permanece sendo o espaço fundamental (embora não único - comunidades de bairro, por exemplo, podem organizar formas alternativas de ensino) para que a comunidade possa fazer valer seu direito à cidadania, e que a aprendizagem da leitura e da escrita permanece sendo essencial para adquirir um minimo de autonomia. Talvez se possa ensinar a ler e a escrever sem passar pelo trabalho básico de alfabetização. Talvez... Porém, acho difícil tal "método" ser minimamente viável em um meio onde a presença da língua escrita é raridade. Criada por mudos, a criança não aprenderia a falar... falando. Como aprender a ler... lendo, se ninguém em volta lê, se não se tem nada ou quase nada para ler! Mas vale o alerta: alfabetizar não é ainda ensinar a ler no sentido pleno do termo, e, portanto, não é garantir um passaporte para a cidadania de fato. O caminho é longo e vamos, desde já, ter consciência de todo seu percurso. Nossos pequenos (e grandes) Alexey vão agradecer.

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CAPíTULO 7

Alfabetização: responsabilidade do professor ou da escola?

Heloysa Dantas de Souza Pinto* Elisabeth Camargo Prado**

A solução para os problemas da alfabetização das crianças das escolas públicas em nosso país tem sido buscada através da formação dos professores. Implícita está a afirmação: enormes contingentes de crianças não se alfabetizam em um ano porque os alfabetizadores não são qualificados. É preciso, portanto, "capacitá-los", reciclá-Ios, expô-los às mais recentes teorias sobre leitura e desenvol­vimento cognitivo. Certamente não há mal nisso: reuni-los em seminários, informar e discutir, será sempre produtivo, a não ser quando - e isto ocorre ~ for percebido como acusação e desconfiança.

* Professora Doutora do Departamento de Filosofia e Ciências da Educação da USP; assessora do Núcleo de Orientação Educacional da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da lJSP.

** Coordenadora do Núcleo de Orientação Educacional da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP.

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A paisagem da década de 90 oferece aos olhares do observador uma grande mudança, em relação aos anos 70, nesta matéria. A "criança carente", necessitada de "educação compensatória", cede lugar ao professor malformado, no banco dos réus. Sem dúvida isto é um avanço: no mínimo traz a responsabilidade para o campo da ação do adulto. Mas esta interpretação acerca da origem da "fabricação do fracasso escolar" continua personalista, e se a instituição escolar começa a assumir a sua parte de responsabilidade, isto tem sido feito basicamente de forma a colocar sobre os ombros do professor individualmente a culpa: quando ele for competente o problema da alfabetização estará resolvido.

Entretanto, supor que O virtuosismo de um professor . bem-formado dará conta de alfabetizar classes de quarenta

crianças, sozinho, é abusivo, contraria todas as análises psicopedagógicas, contraria o texto original do nosso projeto de LDB (1), que entende "qualidade de ensino" como algo que se mede também em termos quantitativos: não menos de quatro horas de aula por dia, não mais de vinte e cinco crianças nas classes de alfabetização, não mais de cinqüenta por cento do tempo de trabalho do professor dentro da sala de aula etc. Isto sem mencionar a exigência de infra-estrutura escolar, basicamente laboratório e biblioteca, dos quais esta última é equipamento indispensável a qualquer tentati va séria de alfabetizar.

Além destas condições de trabalho, que se adicionam à formação profissional como requisitos, parece-nos que um terceiro tipo de providência se requer quando há a intenção genuína de solucionar o problema. Trata-se de atividades de apoio à ação do professor, que se adicionam às da sala de aula.

Referimo-nos a algo que tem sido denominado "re­cuperação" ou "reforço". que é mencionado no texto do

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projeto de LDB da Comissão, mas que tem sido mal entendido e pior executado. Quase sempre é feita uma "pseudo-recuperação" posteriormente a uma avaliação ne­gativa, como forma de confirmar uma reprovação já deci­dida. Ela costuma ser uma reiteração daquilo que, na sala de aula, não deu certo, feita por um professor que a vê como um ônus adicional ao seu já aviltado salário.

E, no entanto, este espaço, já demarcado legalmente mas ainda inaproveitado, tem condições de ser o lugar da psicopedagogia dentro da escola, despojada de qualquer caráter clínico ou elitista. A escola elementar é a instituição socialmente incumbida de alfabetizar todas as crianças, o que tem como corolário a necessidade de assumir uma postura psicopedagógica, isto é, de garantir espaços de atenção individualizada onde estes se fizerem necessários . Não estamos falando de um delírio irrealizável, de um luxo de Primeiro Mundo: a presença de um professor sem classe na primeira série, que disponha de uma modesta biblioteca e possa dar atenção, sucessivamente, às crianças que necessitem disto, é algo compatível com as condições reais da maioria das nossas escolas públicas. Obstáculo maior parece ser a idéia, tão fortemente arraigada que ganha dimensões de preconceito, de que trabalho pedagógico é algo que se faz em situação coletiva, e que espaços de intimidade têm a ver com a clínica, com a psicoterapia e não com a pedagogia. Lamentável engano, que faz perder uma diferença muito essencial: trabalho pedagógico é aquele que é feito antes do fracasso . Não se trata de coletividade versus intimidade, e sim de prevenção versus remediação.

A incompreensão deste fato leva a um duplo desper­dício: a perda da situação de privacidade, que pode ser mais decisiva para a catalisação do processo de decifração que é a leitura do que o método empregado; e a perda da disposição confiante e favorável que quase sempre existe na criança antes do fracasso.

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A efetivação da responsabilidade da escola neste plano é algo que está fora das mãos do professor: ela depende da direção ou dos serviços de orientação educacional e pedagógica. Não é possível apostar tudo na formação dos professores: a experiência do primeiro mundo já demonstrou que, mesmo onde ela é boa, e condições de trabalho adequadas existem, permanece um resíduo quantitativamente previsível de casos que requerem atenção particular, e que continuam sendo responsabilidade da escola, já que o século XX incorporou solidamente a idéia de que é preciso alfabetizar todas as crianças, e que a instituição investida desta função é a escola. Não faz sentido, portanto, "enca­minhar" para fora dela as situações difíceis.

O Núcleo de Orientação Educacional da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo vem demonstrando a viabilidade de uma proposta deste tipo, através de um projeto que batizamos de "Letras

2a e Livros" e atinge os alunos de Ia e séries.

Ele surgiu com a intenção de trabalhar a leitura daquelas crianças que a professora indicava como tendo dificuldade.

A princípio (1989) elas eram retiradas da sala de aula, de uma em uma, sucessivamente, e trabalhava-se (nesta fase tivemos a colaboração preciosa de uma estudante de Pedagogia) na biblioteca, por aproximadamente meia

hora.

Em breve as professoras eXIgIram que este trabalho fosse feito fora do horário de aula, no período da manhã, e assim ele passou a configurar-se como algo que de fato se acrescentava ao trabalho de classe. Atualmente ele se articula também com o reforço, de modo que as crianças que necessitam de muito apoio vêm três períodos para reforço e dois para o projeto, além do período normal.

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Outra mudança que ocorreu foi a tendência cada vez mais preventiva que o projeto assumiu com o passar dos anos. Os primeiros casos foram crianças repetentes, e, embora houvesse progresso, ele era muito lento: algumas vezes mais de vinte sessões foram necessárias para que se fizesse visível algum avanço. A necessidade de começar o trabalho antes da reprovação tornou-se evidente, e atual­mente a orientação educacional indica crianças desde a entrevista de ingresso na la série. Outras vão sendo depois indicadas pelas professoras (há duas primeiras séries na escola). Há também algumas que, tendo sido promovidas

2apara a série, necessitam também de apoio para acom­panhá-Ia. A intenção do projeto é precisamente reduzir a reprovação na Ia série, de modo que os membros da equipe participam dos conselhos de classe com as professoras, e tem havido a disposição de aprovar crianças condicional­mente à participação no projeto desde o início da 2a série.

Isto porque a escola não aceita a promoção automática, preferindo envidar todos os esforços para que a aprovação seja uma conseqüência do efetivo atingimento dos critérios .

Em função desta dupla exigência: a da redução da reprovação sem perda de qualidade - a escola está in­vestindo intensamente nas duas primeiras séries, realizando um esforço que significa para algumas crianças (durante alguns semestres) praticamente uma escola de tempo inte­graI. Na maioria dos casos, as famílias têm atendido a esta solicitação, colocada desde a entrevista da matrícula. A concepção de que o investimento intensivo nas duas séries iniciais é produtivo tem sido recompensada por índices baixíssimos de reprovação nesta etapa.

Há uma atuação tripla: a da sala de aula, a do reforço e a do projeto. No reforço a própria professora de classe atua com um grupo menor (entre dez e quinze, habitual­mente); no projeto, a atenção é individualizada, e, embora

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haja espaço para atividades em grupos pequenos (em torno de cinco) aqui a intenção é garantir a possibilidade de um trabalho a sós, onde os gostos e fantasias pessoais possam ser expressos e atendidos.

Cada um dos participantes do projeto tem se incumbido de cinco crianças, duas vezes por semana. Em uma manhã de três horas, porém, seria possível dar meia hora de atenção a seis, o que permite a um professor incumbido disto atender trinta crianças uma vez por semana ou quinze, duas vezes. A Escola de Aplicação tem duas classes de 1a série com trinta alunos, e o projeto está atendendo atualmente dezoito, isto é, mais de vinte por cento da I" série. Este número deve-se ao fato de termos muitas crianças de 2a série, mas a experiência tem mostrado também que, se houver investimento maciço na primeira, haverá poucos casos necessitando do projeto na segunda. E~tamos garan­tindo dois atendimentos semanais desde o início da 1a

série, o que permite realizar trinta sessões por semestre; sessenta parece ser um número suficiente para que a grande maioria atinja o critério: leitura autônoma de textos simples.

Estas são, em linhas gerais, as exterioridades do projeto: elas foram apresentadas com a intenção de tornar visível o fato de que a realização de um trabalho deste tipo envolve, essencialmente, a necessidade da compreensão, por parte da escola, de dois fatos. O primeiro é que a sua responsabilidade em relação à alfabetização envolve a oferta de serviços de apoio; o segundo é a necessidade de intensificação de esforços nos dois primeiros anos. Fora isto, o que se requer é apenas um professor treinado e,.I uma biblioteca.

Substancialmente, o projeto se propõe a resgatar não só a competência em leitura, mas o gosto por ela. Isto requer uma atitude deliberada de sedução, palavra aqui empregada com o sentido não de mistificação, mas de

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resgate do prazer. Pareceria fácil, mas, no entanto, tem sido a principal dificuldade no treino dos participantes: A disposição para evidenciar a utilidade e a necessidade da leitura, e assim adotar procedimentos conscienciosos e metódicos, parece ser muito forte, talvez por causa do altc grau de ansiedade que se liga atualmente a esta taret: Fica assim muito fácil deixar evaporar a atmosfera leve que permite borboletear de um livro para outro, em função da fantasia. Abandonar a história "chata" em busca de outra mais atraente é algo inquietante para a maioria dos adultos. É preciso ter vivido com intensidade e freqüência o encantamento das histórias bem narradas para ser capaz disto. Talvez esta seja a qualificação mais necessária ao profissional para este trabalho.

Outro ponto delitado é uma certa resistência do pro­fessor (ou da escola) em relação à situação individual. A forte correlação, já mencionada, entre pedagógico e coletivo, por um lado, e clínico e individual, por outro, provavelmente responde pela dificuldade das escolas em implantar um trabalho tão simples. Em muitos casos, meia hora de trabalho individual ajustado às possibilidades e gostos pode ser mais produtiva do que muitas horas de trabalho coletivo. Encontrar formas de trabalhar sucessivamente e não apenas simultaneamente é algo tão óbvio que a dificuldade em percebê-lo só pode ser atribuída a algum tipo de preconceito.

É claro que o construtivismo com razão aponta a vantagem do convívio das crianças entre si; não se cogitaria de dispensá-lo. Trata-se apenas de acrescentar pequenos espaços de intimidade criados em torno da situação de leitura.

A insistência neste ponto liga-se à natureza da atividade básica, em torno da qual se organizam as demais: leitura complementar. Lê-se a princípio para a criança, depois com a criança, um livro de sua escolha. A leitura com ela

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é pura e simplesmente uma leitura em atraso: o adulto completa as lacunas, quando necessário. Esta cooperação, que um vigotskiano chamaria de trabalho na zona proximal do desenvolvimento, consiste em fazer, ajudada, o que em breve será capaz de fazer sozinha, em uma cooperação em que sua parte cresce progressivamente. O fundamental é completar sempre a leitura de uma história, conversar sobre ela, discuti-la. Se o texto tiver sido bem escolhido, as possibilidades de identificação com os personagens en­riquecerão a experiência com possibilidades catárticas.

Aqui, as habilidades requeridas do adulto são duas. A primeira consiste em oferecer à escolha do leitor vários livros, todos eles adequados à sua competência do momento, assim como aos seus interesses. Isto pode significar, a princípio, livros bem ilustrados, com pouco texto escrito, onde a leitura das imagens inaugure imediatamente um certo tipo de codificação. As qualidades plásticas do livro assumem aí o primeiro plano: trata-se do livro de olhar,

do livro-quadro.

Mas há outro aspecto não menos importante: aquele do conteúdo do texto propriamente, aspecto substancial e definitivo. Aí a função se reveste de um sentido de assessoria bibliográfica que depende de um largo conheci­mento de literatura infantil: é preciso encontrar o livro cer­to para o momento peculiar de cada leitor. O "livro certo" é aquele com cujo personagem principal o leitor pode se identificar, aquele no qual ele pode se projetar e elaborar suas próprias vivências e conflitos, protegido e sem se expor mais do que deseje. Em torno da leitura é possível travar um diálogo muito íntimo, que simultaneamente dá expressão aos temas do leitor naquele momento, e revela outros para o futuro. Conversa deste tipo não pode ocorrer na situação coletiva da classe. Não se trata de "avaliar a sua compreensão do texto", situação na qual ele é julgado,

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onde, portanto, é o réu, e sim, pelo contrário, de colocá-lo na situação do juiz que avalia e julga os personagens e o autor. A história é para ele, leitor, e não o contrário. Esta sutilíssima diferença escapa a muitos, é preciso resgatar este caráter lúdico da leitura.

A experiência tem indicado que os contos de fadas do repertório clássico são um caminho seguro para a elaboração dos conflitos básicos infantis. Neles se trata da rejeição (João e Maria); da pobreza (ainda João e Maria); do ciúme entre irmãos (A Gata Borralheira); da rejeição e da perda (Branca de Neve); da orfandade (Branca de Neve), dos sentimentos de pequeneza diante do mundo dos grandes (João e o Pé de Feijão) etc. O medo e a esperteza, encontrados nos pequenos, aí aparecem muitas vezes, e com freqüência esta última surge compensando a fraqueza. A literatura infantil moderna também é capaz de mobilizar temas muito próximos das vivências cotidianas, embora peque por evitar toda a intensidade afetiva e assim veja reduzidas as suas possibilidades catárticas.

A relação que se trava ao longo da leitura complementar é feita de sutilezas invisíveis a "olho nu": a delicadeza de sugerir o livro que atende à curiosidade do momento, ou que permite dar expressão a uma situação dolorosa, é percebida como um ato de amor. Conhecê-Ia, lembrar-se de algo que a interessa ou perturba, cria um vínculo poderoso; quando isto se exprime através da leitura de uma história, o vínculo transita da pessoa para a literatura.

Outra sutileza que requer o controle da ansiedade do adulto é a dosagem do tempo. (Passei pela experiência de descobrir que, lendo comigo, uma criança decodificava aproximadamente trinta por cento das palavras; lendo com uma estagiária, estudante de Pedagogia, ela conseguia muito mais, simplesmente porque a moça, menos ansiosa, esperava alguns décimos de segundo a mais, antes de ler a palavra.)

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A necessidade de baixar a ansiedade do adulto fez com que, a princípio, o trabalho se fizesse sem muita conexão com os resultados em classe (as notas) . Os pequenos progressos que as crianças realizavam no projeto e nos faziam comemorar muitas vezes não eram visíveis na situação coletiva, onde elas continuavam abaixo da média. Acabamos por verificar que, para as crianças que ainda não tinham sido reprovadas, eram necessária.s aproximada­mente dez sessões para que a professora começasse a perceber progressos em sua atitude e competência. Com os repetentes este número aumentava exponencialmente.

O problema da articulação do projeto com a atividade normal de classe vem sendo objeto de muita reflexão. Ele se colocou, desde o início, como uma prestação de serviço à professora: são atendidos os casos solicitados por ela, enquanto julga necessário. Quem decide a aprovação é ela, embora participemos do conselho de classe dando infor­mações e opiniões. Por outro lado, a orientadora educacional julga conveniente que a participação da criança no projeto se faça ao longo de todo um semestre, para facilitar a organização da família. Em alguns casos isto representa ônus para os pais, a necessidade de levar e buscar a criança duas vezes por dia, mas, na maioria das vezes, elas acabam ficando na escola o dia inteiro. Para elas, o projeto parece representar um privilégio e não um castigo, não só por causa da política deliberadamente sedutora que ele desen­volve, mas também pelo fato de lhes sobrar bastante tempo para brincar com os colegas no pátio e jardim da escola, benefício não-intencional mas importante. Já tivemos várias crianças que literalmente se impuseram.

Para além desta relação de subordinação, o que se procura é uma complementaridade entre as atividades de sala de aula e o nosso trabalho. Vale dizer, buscamos completar o que não pode ser feito na situação coletiva,

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e nunca repetir. Isto, que é uma tendência forte quando a preocupação com as notas assume o primeiro plano, é, a nosso ver, simultaneamente um desperdício e um erro. Desperdício porque o trabalho de classe é de muito boa qualidade; erro porque impede a busca de estratégias novas e de procedimentos personalizados.

Não é por força de expressão que o projeto se denominou "Letras e Livros". Com a inclusão de crianças recém-chegadas à I" série, que ai nda não conhecem o alfabeto, foi necessário incluir jogos com letras, antecedendo à manipulação de livros. Basicamente o que se utiliza são letras móveis, maiúsculas e minúsculas, em quantidade suficiente para que se possa escrever com elas. Usamos material encontrado no mercado a baixo custo, que onera pouco por ser de uso permanente. Existe uma falha de mercado que torna difícil conseguir minúsculas, justamente as mais necessárias porque mais difíceis de discriminar. Nossas tentativas de produzi-las foram canhestras e insa­tisfatórias. Estamos usando (doação de um membro da equipe) um brinquedo que consiste em um quebra-cabeça onde a letra maiúscula deve ser colocada sobre a minúscula, só se encaixando aí. Ele pode ser usado pela criança sozinha, e é suficientemente atraente para permitir o uso repetido necessário à memorização, permitindo ainda avaliar o progresso em função da diminuição do tempo necessário à completação. Mas é ainda insuficiente: vários jogos deste tipo são necessários para o domínio completo do alfabeto pelas crianças com maior dificuldade. Bingo, dominó, jogos de maiúsculas e minúsculas fazem falta no mercado.

Utilizamos também jogos onde palavras devem se encaixar nas respectivas figuras; eles oferecem pistas visuais que tornam possível o encaixe antes da leitura, e permitem uma evolução na direção do reconhecimento da palavra e suas letras. Introduzindo formas de contagem de ponto e

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desafios no sentido de identificar as palavras sem as figuras (a que chamamos de "jogo de detetive"), o material pode ser utilizado reiteradas vezes sem tédio.

No início, somos obrigados a consagrar grandes espaços ao desenho. Aí as crianças se sentem à vontade, não-amea­çadas, e exprimem temas que podem ser captados para

sugestão de novos textos.

Quanto à escrita, ela se IniCia da mesma forma que a leitura: escrevemos para a criança aquilo que ela quiser ditar. Habitualmente encorajamos a correspondência, tam­bém algo difícil de realizar em situação coletiva, e assim resgatamos permanentemente a sua função de comunicação: as crianças ditam (ou escrevem) quase sempre declarações de amor e ódio, pedidos e convites. A possibilidade de dar expressão escrita a sentimentos de hostilidade, que parecem assim se dissipar, ensejou mais de uma vez uma espécie de revelação: escrever, afinal, serve para alguma coisa. Quando bilhetes enviados são respondidos por escrito a alegria é imensa.

Mas é a alegria da leitura o principal objetivo visado. Em tudo o mais parcimonioso e singelo, a riqueza que se deseja para o projeto é a grande quantidade de livros , diversificados em sua apresentação gráfica e temática.

A Escola de Aplicação é privilegiada neste ponto: não só dispomos de uma biblioteca que foi organizada por alguém que gostava de crianças e de livros, como também de uma bibliotecária que, formada em Biblioteconomia e não em Pedagogia, compreende mesmo assim as particu­laridades de uma biblioteca infantil, e permite um clima agradável em que as crianças circulam à vontade entre as estantes, folheiam e escolhem os livros que as atraem em uma real intimidade com eles. Como se trata, afinal , de biblioteca pública, não é impossível pensar que ela poderia

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abastecer, em forma de "biblioteca itinerante", outras escolas públicas menos aquinhoadas.

A biblioteca é de fato equipamento indispensável e o cenário ideal. Trabalhando aí, quando as crianças se distraem da atividade em curso, geralmente é porque des­cobriram outro livro mais interessante, e a "dispersão" é com freqüência mais produtiva do que a proposta.

A experiência destes anos tem levado a construir uma espécie de gradiente de dificuldade de leitura. São neces­sários, a princípio, livros com muitas (e belas) gravuras, pouco texto e letras grandes. Algumas coleções da Editora Ática atendem a estes requisitos (Coleção Gato e Rato, por exemplo). Material adequado para os leitores iniciantes não é muito fácil, porém. A maioria das editoras comete o erro de imprimir textos compactos de letra miúda, extremamente desencorajadores.

A exigência das próprias crianças faz com que se use e abuse da Coleção Joinha, livros extremamente atraentes, coloridíssimos, de páginas duras, que resumem os contos clássicos. São os favoritos dos jovens leitores, que deixam claro que, a princípio, são as características plásticas dos livros, muito mais do que as literárias, que pesam, como se pintura e literatura não estivessem ainda diferenciadas enquanto formas de arte.

Algumas crianças revelam-se mais sensíveis à poesia do que à prosa. Depois de tentar, sem êxito, interessar um garoto em todas as histórias com cujo pérsonagem achá­vamos que ele poderia se identificar (desde Pinóquio), tivemos a agradável surpresa de ver o garoto exigir a leitura de Cecília Meireles (2).

A experiência de quase cinco anos tem trazido reforço constante para a afirmação, deliberadamente radical, de que é possível alfabetizar (seria melhor dizer " Ieiturizar")

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qualquer criança, no prazo maxlmo de dois anos, se o trabalho começar imediatamente, na 1a série, antes da reprov<lção: trata-se apenas de decidir se ela vai requerer, além do ensino normal de classe, trinta, sessenta ou noventa

sessõe~ individuais. Estivemos até agora descrevendo procedimentos con­

cretos, adotados em uma escola concreta que se dispôs (e conseguiu) a praticamente zerar a reprovação na la série,

11 cuja e~colha se orienta pela sua viabilidade nas condições média~ das nossas escolas públicas: daí a recusa sistemática

1 das tendências à sofisticação. Estes procedimentos não resultam do senso comum,

nem Se baseiam nos conteúdos usuais da metodologia do ensino da leitura. Na verdade, chegam a desqualificar um pouco a questão metodológica, na medida em que supõem que a situação é mais importante do que o método.

C) projeto se baseia, substancialmente, na psicogenética, mais especificamente em uma visão do desenvolvimento como integração das dimensões afetiva e cognitiva, biológica e social. Estou me referindo à psicogenética de Henri Wallon, especialmente fecunda para alimentar a ação pe­dagógica, uma vez que tem como propósito o entendimento da pessoa completa e concreta. Admitir que a construção da afetividade (subjetividade) incorpora as conquistas da inteli~ência (objetividade) dá à aprendizagem uma dimensão que tJltrapassa a esfera cognitiva. Ela passa a ser vista como uma necessidade da pessoa, vital para a sua ampliação e diferenciação. Neste sentido, o fracasso da escola torna-se duplamente trágico: ele priva a criança não apenas de instnl;mentos de sobrevivência, mas também de si mesma; trata-se de algo que deve ser encarado corno uma verdadeira amputação da personalidade.

Ela admite ainda uma alternância de preponderâncias: ora [)revalece a subjetividade, ora a objetividade. A fase

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escolar constitui um dos momentos privilegiados para "a construção da inteligência, que, ao entrar em sua etapa categorial, requer alimento, isto é, informação, conheci­mento. Esta necessidade, se as exigências do desenvolvi­mento foram respeitadas, deve se manifestar em forma de curiosidade, desejo de conhecer. A inaparência dela deve ser interpretada, então, como um desacerto da proposta adulta, ou como um represamento; por vicissitudes biográ­ficas, da energia na esfera da subjetividade.

Neste último caso, a responsabilidade escolar não desaparece: pelo contrário, ela cresce e torna imperativa a utilização de outra hipótese fecunda que está latente na psicologia walloniana. Trata~se da reutilização da idéia de direções inversas (subjetiva e objetiva), agora atribuída à relação com os objetos de conhecimento. Pode-se dar ênfase, no desenho, à expressão de vivências e sentimentos, ou à observação minuciosa de um objeto a reproduzir; na dança, à execução exata de uma coreografia, ou à chamada "expressão corporal"; a escrita pode mobilizar a compreen­são de um texto, ou a manifestação de estados íntimos. Mesmo a leitura, à primeira vista atividade de direção essencialmente objetiva (uma vez que corresponde a um processo de absorção), tanto pode informar sobre a realidade quanto realizar verdadeiras catarses, expurgos da subjeti­vidade, quando a identificação com personagens e situações é possível.

É nesta última função que ela é útil, e mesmo vital, às crianças presas em algum sofrimento pessoal; a sua elaboração indireta, a simples constatação da existência dele fora de si,.e por conseguinte a redução do isolamento na dor, constituem possibilidades de alívio que dão à leitura um potencial terapêutico muito pouco explorado.

Se a teoria de alternâncias esti ver correta, será, en­tretanto, um erro utilizar apenas a dimensão subjetiva das

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atividades, uma vez que a demanda da objetividade também faz parte do desenvolvimento, e pode mesmo ser encarada como um indício muito positivo.

Desejar ser ensinado a desenhar "direito" alguma coisa, ou a realizar "certo" o passo da dança, ou ainda a escrever a palavra "do jeito certo", e não "como você acha que é", são demandas que também fazem jus a atendimento.

O tato pedagógico consiste na sensibilidade para iden­tificar o momento, e na agilidade para acompanhar a sua mudança.

A leitura cooperativa que propomos, e que poderia ser vista como uma decorrência das idéias de zona proximal de desenvolvimento e internalização de funções, à luz da concepção walloniana se entende como a realização do padrão básico de relação criança-adulto na espécie. O bebê atende às próprias necessidades através da intervenção do adulto, em sua fase de insuficiência de meios; o leitor incipiente pode atender à sua necessidade de fantasia e conhecimento também através do adulto, durante o seu período de insuficiência de meios. Quando a relação, durante a leitura, é tão próxima que permite acompanhar o dedo que aponta cada palavra lida, ter-se-á uma situação de efeito duplo: ao mesmo tempo que se atende à necessidade ficcional, alimenta-se o processo de decifração que tenderá a levar a uma antecipação, se Emilia Ferreiro (3) tiver razão.

Uma situação deste tipo tende a criar uma verdadeira cumplicidade entre o adulto e a criança, que, muito satis­fatória para ambos, eleva a temperatura afetiva da relação o suficiente para catalisar a reação de aprendizagem. A preocupação de integração recíproca entre inteligência e afetividade leva à mesma conclusão dos psicopedagogos

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...

de formação psicanalítica, como Sara Paim (4), que entende que a criança só aprende dentro de um vínculo afetivo.

Processo inverso deve ser realizado em relação ao fenômeno emocional (e aqui é preciso distinguir com clareza afetividade de emoção), pelo menos no que se refere às emoções catabólicas como a ansiedade, o medo, e a cólera decorrente da frustração. Nada ilustra com tanta nitidez a hipótese walloniana de antagonismo entre razão e emoção do que o bloqueio cognitivo das crianças assustadas. Muitas vezes são necessárias várias sessões apenas para derreter as resistências provenientes dos sentimentos de "não posso" ou "não quero" . É preciso demonstrar reiteradamente que não há ameaça de fracasso, não há avaliação, mas apenas jogos ou histórias lidas e contadas.

É utilíssima a suposição de que "a emoção é pro­prioplástica", isto é, esculpe o próprio corpo e por conse­guinte se faz visível do exterior. Temos nos tornado muito sensíveis a tais indicações, muito sutis às vezes: a leve contratura do rosto, o olhar que não se fixa, a respiração curta, e, sobretudo, o cansaço rápido, indicativo da hipertonia característica das emoções catabó I icas .

Quando a indagação: "Você está cansado?", que uti­lizamos com freqüência, é respondida negativamente, há motivo para festejo.

Procuramos levar em conta as necessidades tônico­posturais não só através da escolha de cadeiras adequadas 3.0 tamanho da criança (acabamos por sentar-nos nas delas) , da variação das posições (sentado, em pé, em outra cadeira etc.), . como por sugestões, quando parece necessário, do cipo: "Vá dar uma corrida pelo pátio e depois volte".

A possibilidade de permanecer imóvel por períodos prolongados, ensina Wallon, é tardia e pode estar prejudi­cada; ela pode, entretanto, ser forjada pela própria atividade

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da leitura, pelo envolvimento na história que tende a fortalecer o processo ideati vo. A conduta de uma garota de dez anos, certa vez, ilustrou isto de maneira impres­sionante. Extremamente inquieta, mas voraz devoradora de histórias e apreciadora de platéia a quem pudesse exibir seus recentes talentos de leitora, a menina começou, sentada, a ler um texto. Dentro de poucos minutos , não conseguia mais permanecer sentada; então, sem interromper a leitura, que acompanhava com o próprio dedo, ergueu-se e continuou a ler em pé. De novo "cansada" daí a pouco, mas ainda sem se interromper, ajoelhou-se (a mesinha era baixa) e conseguiu assim completar a leitura. Utilizamos com fre­qüência a leitura em pé, que tem, aliás, nobres precedentes históricos.

Ansiedade e cólera (frustração) são sistematicamente minimizadas; inversamente, a alegria e o prazer são buscados por todos os meios, entre eles o da dificuldade vencida. "Enfrentar" um livro grande é algo que, dep~is de robus­tecido o ego com grandes doses de êxito inicial , alguns garotos se propõem como prova de "macheza".

Observar o que a criança faz sozinha e fazer sugestões a partir daí, é a estratégia básica, embora muitas vezes seja necessário adequar às próprias possibilidades objetivos irrealistas dos que se avaliam mal.

A teoria walloniana leva ainda a admitir que há períodos críticos na formação da personalidade, entre os quais se inclui aquele que corresponde precisamente ao final dos anos pré-escolares e 1a série. Um fracasso pessoal tão profundo e público como é uma reprovação tende a se incorporar indelevelmente à noção de si mesmo. A verdade disto é ilustrada reiteradamente pela conduta dos repetentes; passou por nós um garoto que, tendo feito em outra escola a Ia série por duas vezes, e vendo-se ameaçado de nova reprovação, apresentava-se como "alguém que fez

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~,

a Ia sene três vezes", e parecia descrer profundamente da possibilidade de vir um dia a dominar a difícil arte da leitura.

Nossa política é, por conseguinte, se não evitar, pelo menos adiar a reprovação para momento menos crítico; não suprimi-Ia por decreto, mas através de um esforço concentrado que a torne desnecessária.

Chega-se, assim, pela via da Psicogenética, à conclusão semelhante a de analistas do nosso sistema educacional, escandalizados com o desperdício representado pelas re­provações em massa., "É proibido repetir!"

Referências bibliográficas

(I) Projeto de LDB da Educação Nacional. São Paulo, Cortez, 1991 .

(2) Meireles. C. Ou isto ou aquilo. 2. ed . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992.

(3) Ferreiro, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo, Cortez, 1988.

(4) Paim, S. Diagnóstico e tratamento dos distúrbios de aprendizagem. Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.

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José Juvêncio Barbosa Professor formado pela Universidade de São Paulo. Trabalha atualmente na Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), coordenando o projeto de documentação sobre alfabetização. É autor de Alfabetização: catálogo da base de dados (FDE, 1989) e do livro Alfabetização e leitura. São Paulo, Cortez, 1990.

Yves de La Taille Doutor e professor de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Tem publicadas as seguin­tes obras: Computador e ensino: uma aplicação à língua portuguesa (co-auto­ria). São Paulo, Ática, 1986; Ensaio sobre o lugar do computador na

. Educação. São Paulo, Iglu, 1990; Piaget, Vygotsky e Wallon. Teorias psicogenéticas em discussão (co-autoria). São Paulo, Summus, 1993.

Heloisa Dantas Souza Pinto Doutora e professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente vem desenvolvendo trabalho conjunto com alunas do curso de peda­gogia e crianças da Escola de Aplicação da FEUSP. Suas obras publicadas são: A infância da razão, uma introdução à psicologia da inteligência de Henry Wallon. São Paulo, Manole , 1990; Piaget, Vygotsky e Wallon. Teorias psicogenéticas em discussão (co-autoria). São Paulo, Summus , 1993.

Elisabeth de Camargo Prado

Professora formada pela Universidade de São Paulo. Atualmente coordenadora do Núcleo de Orientação da Escola de Aplicação da FEUSP.

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