Algumas Visoes Da Antiguidade

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algumas visões da antiguidade Coleção Estudos Clássicos Volume 2

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ANTIGUIDADE CLASSICA

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  • algumas vises da antiguidade

    Coleo Estudos ClssicosVolume 2

  • algumas vises da antiguidade

    organizadores

    Paulo Martins

    Henrique F. Cairus

    Joo Angelo Oliva Neto

    Coleo Estudos ClssicosVolume 2

    Coleo Estudos Clssicos volume 2 fbn pec | proaera/ufrj | iac/usp | VerVe/usp

    A Coleo Estudos Clssicos um projeto editorial do Polo de Estudos Clssicos do Rio de Janeiro (pec-rj) que rene alguns laboratrios e programas de estudos em Filosofia e Letras, com fomento da Fundao de Amparo Pequisa no Estado do Rio de Janeiro (faperj) e apoio de duas das mais prestigiosas instituies culturais brasileiras: a Fundao Biblioteca Nacional e a Sociedade Brasileira de Estudos Clssicos (sbec).

  • Este livro segue as normas do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

    Coordenao editorial Isadora Travassos

    Produo editorialEduardo SssekindCristina PargaLarissa SalomRodrigo FontouraSofia SoterSofia Vaz

    RevisoJulieta Alsina

    2011Viveiros de Castro Editora Ltda.R. Goethe, 54 | Botafogo Rio de Janeiro RJ cep 22281-020Tel. (21) [email protected] | www.7letras.com.br

    2011 Paulo Martins, Henrique F. Cairus e Joo Angelo Oliva Neto Sumrio

    Siglas de autores e obras 7

    Prolegmenos viso 11Paulo Martins e Henrique Cairus

    Imagines Physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de Marcial 14Alexandre Agnolon

    Eikones de Filstrato, o Velho: um mtodo 31Rosngela Santoro de Souza Amato

    A viso de arte em De signis, de Ccero: uma reflexo tradutolgica 46Anna Carolina Barone

    A imagem de Domiciano em Marcial e em moedas de seu tempo 62Fbio Paifer Cairolli

    De Visu hipocrtico 88Henrique Cairus

    Jlio Csar por ele mesmo 106Gdalva Maria da Conceio

    O retrato de Anbal entre dois gneros historiogrficos: seu thos em Lvio e Nepos 118Cynthia Helena Dibbern

    A fraqueza de Flaco no Livro dos Epodos 133Alexandre Pinheiro Hasegawa

    cip-brasil. catalogao-na-fontesindicato nacional dos editores de livros, rj

    Algumas vises da antiguidade / organizadores Paulo Martins, Henrique F. Cairus, Joo Angelo Oliva Neto. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2011.

    236 p. : il. ; 23 cm. - (Estudos clssicos ; v.2)

    Inclui bibliografia

    isbn 978-85-7577-850-0

    1. Literatura clssica - Histria e crtica. 2. Civilizao clssica. 3. Literatura antiga - Histria e crtica. 4. Viso na literatura. 5. Imaginao na literatura. I. Martins, Paulo. II. Cairus, Henrique F. (Henrique Fortuna), 1967-. III. Oliva Neto, Joo Angelo, 1957-.

    11-5048. cdd: 809 cdu: 82.09

    Imagens da capa: impressas sob permisso Trustees of the British Museum

  • 7Siglas de autores e obras

    obras de referncia

    ap Antologia Palatinadelg P. Chantraine, Dictionnaire tymologique

    de la Langue Grecquedell A. Ernout et A. Meillet, Dictionnaire tymologique

    de la Langue Latinelsj H.G. Liddell, R. Scott and H. S. Jones,

    A Greek-English Lexiconls C. T. Lewis and C. Short, A Latin Dictionaryold P. G. W. Glare, Oxford Latin Dictionary

    obras gregas

    Arist., en Poet.

    Aristteles, tica a Nicmaco Potica

    Hdt. Herdoto, Histrias[Hes.], Sc. [Hesodo], EscudoHom., Il. Homero, Ilada[Hom.], In Ven. [Homero], Hino Homrico AfroditePhil., Im. Filstrato, o Velho, ImagensPlu., Cic. Lic. Luc., Pom.

    Plutarco, Ccero Licurgo Lculo Pompeu

    Plat., Prot. Plato, ProtgorasPlb. Polbio, HistriaSapph. Safo, FragmentosTuc. Tucdides, Histria da Guerra do Peloponeso

    Uma leitura metapotica de Amores, 1,5 o retrato da Elegia 145Cecilia Gonalves Lopes

    Reflexes sobre duas dimenses das imagines ou eiknes 151Paulo Martins

    A imagem da criana e uma criana destituda de imagem: consideraes sobre a infncia nas cartas de Plnio o Jovem 160Marly de Bari Matos

    Bibliotextos: o livro e suas imagens na antiguidade 177Joo Angelo Oliva Neto

    Imagem verbal ocorrncias da cfrase na Eneida 188Melina Rodolpho

    Estratgias polmicas de persuaso nos scriptores artium do sc. i a.C. 211Adriano Scatolin

    Militia Amoris: uma figura do Amor 221Lya Valria Grizzo Serignolli

    Sobre os autores 230

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    obras latinas

    Cat., Carm. Catulo, CarminaCaes., Civ. Gal.

    Jlio Csar, Guerra Civil Sobre a Guerra da Glia

    Cic., Ad Att., Brut. Cat. CM. De Amic. De Div. De Fin. De Nat. De Off. De Or. De Part. De Rep. Or. Inv. In Ver. Tusc

    Ccero, Correspondncia a tico Bruto Contra Catilina Sobre a Velhice Sobre a Amizade De Divinatione De Finibus Sobre a Natureza dos Deuses Sobre os Deveres Sobre o Orador Sobre as Parties da Oratria Sobre a Repblica Orador Sobre a Inveno Contra Verres Tusculanas

    Her. [Annimo], Retrica a HernioHor., Ars. Ep. Epod.

    Horcio, Arte Potica Epstolas Epodos

    Hyg., Higino, FbulasMart. Marcial, EpigramasNep., Ag. Han.

    Cornlio Nepos, Agesilau Anbal

    Ov., Am. Ovdio, AmoresPhysiog [Annimo], Livro sobre a FisiognomoniaPetr., Satyr. Petrnio, SatriconPl., Ep. Paneg.

    Plnio, o Jovem, Epstolas Panegrico

    Prop. Proprcio, Elegias

    Quint., Inst. Quintiliano, Instituies OratriasSal., Jug. Salstio, A Guerra contra JugurtaSen., Ep. Sneca, Cartas a LuclioSuet.,Cal. Dom.

    Suetnio, Calgula Domiciano

    Liv. Tito Lvio, Ab Urbe ConditaTac., Agric. Ann Hist. Dial.

    Tcito, Vida de Agrcola Anais Histrias Dilogo dos Oradores.

    Tib. Tibulo, ElegiasVerg., A. Virglio, Eneida.

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    Prolegmenos visoPaulo Martins e Henrique Cairus

    O que viam e como viam os gregos e os romanos, ou, ainda, como diziam o que viam, o que julgavam ver e o que imaginavam ver ou poder ver, mesmo que no vissem: eis o nosso tema neste livro que apresentamos sua apreciao.

    A viso era o sentido nuclear em nossa Cultura Clssica grega e romana. Por isso, frequentemente os antigos chamavam de visveis todas as coisas que eram apreendidas por quaisquer sentidos.

    Nosso livro, no entanto, cuida de uma via de mo dupla: se vamos dos olhos ao texto, vamos tambm do texto aos olhos. Afinal, privilegiando o tema da cfrase, fiamo-nos nos autores da Segunda Sofstica, que parecem estar de acordo com Aftnio (Progymnsmata, 10,36,22), quando este diz (cfrase o lgos descritivo que coloca sob a vista, de forma evidente, o que explicitado).

    Seguimos, no livro, um roteiro que se inicia com uma apresentao, feita por Henrique Cairus, do breve tratado hipocrtico De uisu (Acerca da viso), que, embora diminuto, tem o valor de ser o mais antigo registro de um texto mdico ocidental sobre a viso. O tratado aqui apresentado e traduzido pela primeira vez para o portu-gus traz tambm uma cfrase do olho doente a partir no s da viso que tem, mas tambm da viso que se lhe tem.

    No captulo seguinte, Paulo Martins apresenta a leitura da viso como ponto de vista do enunciador, que formula verbalmente imagines / , produzindo, de um lado, as effigies, decalcadas em modelos reais e vividos do cotidiano romano ou grego. De outro, os simulacra, afeitos produo ou reproduo daquelas imagens men-tais fantasiosas (os ), distantes de modelos reais de uma construo que, por muito tempo, foi ligada figurao idealizada, rtulo que, no caso especfico da materialidade, procura evitar, posto que tal termo evoca justamente a imaterialidade, ambientada na memria ou na ideia. Tais simulacra operam frequentemente a perso-nificao divina ou a correo da imagem do real-referente pelo ingenium e pela ars, na clave de uma amplificatio retrica e poeticamenta legitimada.

    No caso das effigies, podemos refletir materialmente sobre as mscaras de cera apostas aos rostos dos mortos, em Roma. Polbio as nomina como , e sua funo era a invocao dos ancestrais da gens, modelos de uirtus / , como exempla da domus sociedade, os patres patriae, que possuem, em sua vertente ver-

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    paulo martins e henrique cairus

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    prolegmenos viso

    bal, figurao registrada nos gneros historiogrfico, filosfico ou pico, nos quais homens ilustres, epiditicamente construdos, evidenciam, perfis nobilssimos, retra-tos verossmeis, que ensinam, comovem e deleitam; logo, doces e teis. dessa ordem a construo das imagines de Anbal, levadas a termo por Lvio e Nepos (con-forme se pode notar a partir da leitura do capitulo que Cynthia Helena Dibbern escreveu para este livro), bem como as que temos de Scrates, a partir dos textos de Plato, Xenofonte ou Aristfanes, ou mesmo as imagens de Domiciano em verso epigramtico e em numismtica (como se l no captulo de autoria de Fbio Paifer Cairolli). O suporte material desses textos, sua diversidade de gnero e seus fins diversos pouco interferem nesse processo de representao.

    Os simulacra, por sua vez, se desdobram como reflexos ou resultados mate-riais das / uisiones. A figurao divina, que, apesar de antropomrfica para gregos e romanos (assim como para quase todos os povos do ocidente), dista de modelos reais, operando, no raro, a soma de mltiplas realidades a que poder-amos at entender como effigies, que, formada de fragmentos do real pr-existente, no reproduz nenhuma de suas unidades. No de outra forma que observamos, guiados pelo captulo escrito por Lya Grizzo Serignolli, a representao da milcia do Amor, ao modo elegaco.

    O complexo jogo de representao imagtica em que o verbo constri muito mais a imagem do que se supunha h no muito tempo radicalizado pela experi-ncia sofstcia de Filstrato, o Velho, que, neste volume, ganha especial ateno de Rosngela Santoro de Souza Amato.

    Curiosamente, esses tipos de imagens, epidticas por excelncia, operam no s o louvor, como tambm a deformao calculada do vituprio. Se verbalmente o pri-meiro matiz pode estar ligado ao hino, ao epincio, pica e at mesmo elegia, no h como o segundo se distanciar do vcio e, portanto, prximo do improprio epdico/imbico, satrico, epigramtico ou cmico, como deformaes morais e fsicas, figura-das nos epigramas de Marcial, como podemos ler no captulo que Alexandre Agnolon dedicou a esse tema, e nos epodos de Horcio, conforme nos ensina Alexandre Pinheiro Hasegawa, neste volume. Os estudos aqui recolhidos sobre esse tema em particular confirmam que tais construes verbo-imagticas esto respaldadas em tratados de physiognomonia que circulam na Antiguidade, j que atendem no s a vcios fsicos, plasticamente operados, como tambm s tortuosidades da alma.

    No volume que o leitor tem em mos, procurou-se estar atento s artes figurati-vas, sejam elas produtos da cultura material, sejam elas produtos descritos. A leitura e a interpretao das imagines / so o ponto axial deste livro. Por essa razo, a passa a ser o principal mote a glosarmos, como faz Rosngela Amato, em seu j referido captulo sobre Filstrato, e tambm Melina Rodolpho, que ana-lisa esse expediente retrico na Eneida.

    Mesmo a representao imagtica plasticamente realizada do texto enquanto objeto puramente fsico mas no menos pleno de significaes recebeu ateno no presente volume, em que Joo Angelo de Oliva Neto escreve um captulo acerca da ico-nografia antiga suprstite dedicada representao do objeto livro e dos demais supor-tes da escrita, e, em contrapartida, promove a confrontao dessa iconografia com os elementos observados nas cfrases, sobretudo poticas, dessa matria temtica.

    Ccero legou-nos um texto de alto valor rerico, o De signis, em que procede a belas cfrases das estatuas que acusa Verres de roubar. Em tudo o texto atrai o lei-tor de hoje: ao leigo, pela engenhosidade e pela prpria beleza do discurso, como ao classicista, que, para alm de todas as impresses de leitor, ainda encontra o espe-cial encanto de ver o gnero epidtico visitar garbosamente o gnero judicirio. Ana Carolina Barone, neste livro, dedica ao De signis um estudo que lhe lana novas luzes a partir do estudo de seu lxico. No h obra, pois, que, ao focar a relao entre texto e imagem na Antiguidade, possa margear displiscente o De signis ciceroneano.

    Para alm das imagines vistas, a ver, a imaginar, a supor e a inspirar primeiro na imaginao e depois na arte , h aquelas que se projetam no campo do significado, nesse vasto campo abstrato do imaginrio social, quando se entende imaginrio pre-cisamente pela galeria de imagines que regem nosso estar no mundo. Duas autoras exploram esse aspecto: Marly de Bari Matos, com o captulo sobre a representao da infncia na epistolografia de Plnio, o Jovem, e Gdalva Maria da Conceio, que, em seu texto, desvela os procedimentos retricos utilizados por Jlio Csar para cons-truir discursivamente a figura de seu prprio thos.

    A construo discursiva de uma imagem e a sua projeo num imaginrio cole-tivo no tarefa de pouca monta. Em seu princpio e em seu fim, paira a gide da auctoritas, que, neste volume, ser estudada, em suas implicaes retricas, por Adriano Scatolin.

    No raro, a imagem do objeto-referencial encontra seu retrato verbal entre-laado a outras representaes, mas o que Ceclia Gonalves Lopes analisa neste volume o entretecimento de duas imagens no texto potico de Ovdio: a de Corina e a prpria elegia.

    Quisemos, pois, dar a este livro que nos coube organizar o destino de contribuir para o mosaico de estudos acerca do ver na Antiguidade, oferecendo, assim, mais um ponto de apoio terico e ilustrativo para o estudo do tema. Olhares variados sobre variados olhares o que temos a oferecer, para que seja este um livro que explora o encontro entre o discurso e a viso, que, como j foi dito, tratada aqui como via de mo dupla, posto que, se decodifica, tambm codifica pelo canal discursivo.

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    imagines physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de marcial

    Imagines Physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de MarcialAlexandre Agnolon

    Em diversos epigramas invectivos de Marcial, h o concurso de procedimentos discursivos que ultrapassam o simples vilipndio. Ou seja, o ataque pode consubs-tanciar-se mediante o emprego de tcnicas elocutivas cujo efeito seja visualizante, como a kphrasis, que no se constituem simples ornato, mas se associam, justamente pela constituio de imagens, inveno por estabelecer, na descrio do sujeito vicioso, devida adequao entre suas aes vis, responsveis por compromet-lo no plano dos costumes, e sua aparncia fsica (habitus corporis), o que enfim amplifi-cao do vituprio na medida em que o vcio moral ganha evidncia (euidentia) por ser engendrado pelo poeta em termos pictricos. Nesse sentido, a euidentia , a um s tempo, virtude da elocuo e meio gerador de pthos.1 A prtica aconse-lhada amide em tratados de Retrica. O annimo da Retrica a Hernio prescreve que a descrio, quando construda de maneira perspcua e clara, demasiado til causa, uma vez que capaz de suscitar na audincia indignao ou misericrdia (uel indignatio uel misericordia) na representao de aes, afetos e caracteres.2 Ora, nesse sentido, o poeta intenta, na descrio, estabelecer estreita relao entre os caracte-res fsicos e anmicos da personagem vituperada, como se a suposta torpeza fsica

    1 Ver Quint., Inst., 6, 2, 32-33: Segue-se a enargia, denominada por Ccero ilustrao e vivacidade, a qual parece menos dizer-nos algo que nos apresentar algo vista; e nossas paixes [apenas] emanaro com a condio de que sejamos introduzidos em meio aos prprios acontecimentos. Acaso, paixes tais no advm destas pinturas [de Verglio]: de suas mos arrojam-se a lanadeira e o feixe de l j desenredado, e no peito brando uma ferida jaz aberta? E aquele corcel com adornos depostos no funeral de Palantes? Qu? Perfeitamente, o mesmo poeta no captou a imagem do derradeiro destino de tal maneira que disse: e morrendo, repassa-lhe na memria a doce Argos?; Insequetur , quae a Cicerone inlustratio et euidentia nominatur, quae non tam dicere uidetur quam ostendere, et adfectus non aliter quam si rebus ipsis intersimus sequentur. An non ex his uisionibus illa sunt: excussi manibus radii reuolutaque pensa,/ leuique patens in pectore uulnus, equus ille in funere Pallantis positis insignibus? Quid? non idem poeta penitus ultimi fati cepit imaginem, ut diceret: et dulcis moriens reminiscitur Argos? (traduo nossa). Quintiliano, Institutio Oratoria, with an English translation by H. E. Butler, Cambridge, ma: Harvard University Press; London: William Heinemann, books i-iii, 1996; books iv-vi, 1995; books vii-ix, 1996; books x-xii, 1998.2 Ver Her., 4, 51: Com esse gnero de ornamento podem ser suscitadas indignao ou misericrdia quando todas as consequncias reunidas se exprimem brevemente num discurso perspcuo, Hoc genere exortationis uel indignatio uel misericordia potest commoueri, cum res consequentes conprehensae uniuersae perspicua breuiter exprimuntur oratione. [Ccero]. Retrica a Hernio. Traduo e introduo Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra. So Paulo: Hedra, 2005.

    refundisse imediatamente em torpeza moral. Ainda que articule tpicas j bastante conhecidas tanto por poetas quanto por oradores, como, por exemplo, os lugares do retrato prescritos por Quintiliano nas Instituies Oratrias (5, 10, 23-27), a constru-o de imagens em Marcial pode relacionar-se tambm com tratados de fisiognomo-nia. justamente essa relao que pretendo explorar no presente trabalho. Tomarei como ponto de partida o epigrama 39 do livro 6 de Marcial em cujos versos Marula invectivada por adultrio. Em seguida, a partir da breve descrio dos filhos da mulher, todos eles bastardos, apontarei os efeitos cmicos que o poeta busca evidenciar pela relao dos traos fsicos dos sujeitos descritos a disposies humanas, disposies estas discutidas em tratados de fisiognomonia, especialmente no De physiognomonia liber3, de autoria annima e composto provavelmente no sculo iv d.C.; vez ou outra, farei referncia a outros tratados, como o atribudo a Aristteles e a fisiognomonia composta por Adamncio (iv d.C). Alm de outras obras antigas, como a Retrica a Hernio e as Instituies Oratrias, reportarei tambm a fontes posteriores, como o De humana physiognomonia de Giambattista della Porta4 (1541-1615), dada a lume em Npoles em 1586, bem como a Iconologia de Cesare Ripa (1555-1622), editada pela primeira vez em Roma em 1593, a fim de demonstrar a longa tradio das fisiog-nomonias para a constituio de modelos de representao de afetos e caracteres humanos de que se serviram tanto poetas, quanto pintores e escultores.

    Marcial,5 6, 39

    Pater ex Marulla, Cinna, factus es septem non liberorum: namque nec tuus quisquamnec est amici filiusue uicini, sed in grabatis tegetibusque conceptimaterna produnt capitibus suis furta. 5 Hic qui retorto crine maurus inceditsubolem fatetur esse se coci Santrae. At ille sima nare, turgidis labrisipsa est imago Pannychi palaestritae. Pistoris esse tertium quis ignorat, 10quicumque lippum nouit et uidet Damam? Quartus cinaeda fronte, candido uultuex concubino natus est tibi Lygdo:

    3 Annimo. De physiognomonia liber. Traduo anotada de Leonardo Davine Dantas. Iniciao Cientfica. (Graduando em Letras) Universidade Estadual de Campinas, Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo. Orientador: Paulo Srgio de Vasconcellos, 1999.4 De humana physiognomonia. Iohannis Battistae Portae Neapolitani. Libri iv. Francofurti, 1618.5 Martial. Epigrams, edited and translated by D. R. Shackleton Bailey. The Loeb Classical Library. Cambridge, ma: Harvard University Press, vol. i ii iii, 1993.

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    imagines physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de marcial

    percide, si uis, filium: nefas non est.Hunc uero acuto capite et auribus longis, 15 quae sic mouentur ut solent asellorum,quis morionis filium negat Cyrtae? Duae sorores, illa nigra et haec rufa,Croti choraulae uilicique sunt Carpi. Iam Niobidarum grex tibi foret plenus 20si spado Coresus Dindymusque non esset.

    Com Marula, Cina, te tornaste pai de sete, mas no de filhos teus e livres, pois nenhum filho teu, nem de amigo ou vizinho, mas, concebidos em esteiras e pobres camilhas,nas feies revelam os amores furtivos da me. 5 Um, que caminha como mouro de crespa cabeleira, confessa que rebento do cozinheiro Santra. Outro, porm, de nariz chato e trgidos lbios, a imagem mesma do palestrita Pnico. Quem ignora quem quer que conhea e veja Dama remelento 10que o terceiro do padeiro? O quarto de aspecto de bicha e rosto plidonasceu-te de Ligdo, teu amante: se desejares, vara este filho: no sacrilgio.Sem dvida, este de cabea em ponta e orelhas longas 15 que se movem como soem mover-se as dos asnos,quem nega que filho de Cirta, o bufo? As duas irms uma negra, a outra, ruiva so de Croto, o flautista, e do caseiro Carpo. J te estaria completa a grei dos Nibidas, 20no fossem Coreso e Dndimo eunucos.

    Diferentemente de outros poemas de Marcial, no h indicativo algum de que seja a mulher feia, mas o ataque existe e em dimenso sexual, j que o poeta arrola os amantes da mulher, todos eles de baixa extrao: cozinheiros, padeiros, flautistas, caseiros, histries etc. Portanto, a prova irrefutvel do adultrio da mulher so os pr-prios filhos, que carregam em suas feies os traos dos verdadeiros pais, de origem servil, constituindo-se, pois, crimes contra sua gens, supondo, evidentemente, que a personagem seja proveniente de extrato elevado nada inferido a esse respeito, mas de se supor que assim seja, uma vez que, no plano da composio, a descrio dos filhos bastardos de Marula segue de perto a de um busto romano tradicional.6 Ora,

    6 Estratgia similar encontramos em Hor., Ep. 8, vv. 11-14 em que a mulher, j idosa, associada ao patri-ciado pela aluso, em seu cortejo fnebre, a bustos de antepassados: S tu feliz, e que as imagens triunfais/ ao funeral, ao teu, precedam,/ nem haja esposa que caminhe carregada/ de perlas mais arredondadas., esto

    incorporando o retrato romano, restrito pelo menos no perodo republicano aos optimates,7 o que se associaria tambm categoria estirpe do gnero epidtico para a caracterizao de pessoas,8 o poeta amplifica o vcio na medida em que a represen-tao buslesca, pardica mesmo dos bustos tradicionais, s faz torn-la mais viciosa, pois a fala epigramtica pe em cena, de um lado, a origem patrcia de Marula e consequentemente as uirtudes prprias da aristocracia e, de outro, a impudiccia da mulher que, enganando o marido, mancha a honra da gens.

    Acresce ainda que a invectiva pode recair sobre o marido. O poeta inicia o epi-grama mediante apstrofe: Com Marula, Cina, te tornaste pai de sete, Pater ex Marulla, Cinna, factus es septem (v. 1). Marcial estabelece Cina como interlocutor do epigrama e lhe apresenta a traio da mulher no somente com o fim de aler-t-lo acerca do adultrio da esposa e da origem espria de seus filhos caso Cina j no saiba a esse respeito, de sorte que o adultrio teria ocorrido com o seu consen-timento ,9 mas sobretudo exort-lo a restituir a legitimidade de sua descendncia, tomando Latona como exemplo, indiciado pela aluso, na concluso do epigrama

    beata, funus atque imagines/ ducant triumphales tuum/ nec sit marita quae rotundioribus /onusta bacis ambulet. (traduo de Alexandre Pinheiro Hasegawa).7 [...] o direito de cultuar imagens restrito aos patrcios e apenas eles detm o ius imaginum e, como coro-lrio, a possibilidade de realizar os gentilicia funera. O termo ius reflete, pois, a consuetudo como privilgio de poucos, regulando atividade privada, o funeral e a prpria representao, com um direito que essencialmente pblico. Da mesma maneira, a pompa dos funerais atinge apenas uma camada da sociedade, pois que gen-tilicia, isto , algo que s admitido para aqueles que pertencem a uma gens. Martins, P. Imagem e Poder: consideraes sobre a representao de Otvio Augusto (44 a.C. 14 d.C.). Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da fflch da Universidade de So Paulo sob orientao da Profa. Dra. Ingeborg Braren, So Paulo, 2003. p. 138.8 Quint., Inst., 5, 10, 23-24: 23. Assim, em primeiro lugar, os argumentos devem ser amide extrados da pessoa, visto que, como eu j disse, dividimos todos eles em duas partes: a primeira, relativa s matrias e a segunda, s pessoas, de modo que a causa, o tempo, o lugar, a ocasio, o instrumento, o modo, etc. sejam consequncia das aes. Entretanto, no devo tratar tudo que sucede s pessoas, tal como fez a maioria dos autores, mas s aquilo de que se podem retirar argumentos. 24. Ei-los: origem, pois quase sempre os filhos julgam-se semelhantes aos pais e aos antepassados e por vezes disto que emanam as razes de viver honesta ou torpemente, 23. In primis igitur argumenta saepe a persona ducenda sunt, cum sit, ut dixi, diuisio, ut omnia in haec duo partiamur, res atque personas: ut causa, tempus, locus, occasio, instrumentum, modus et cetera rerum sint accidentia. Personis autem non quidquid accidit exequendum mihi est, ut plerique fecerunt, sed unde argumenta sumi possunt. 24. Ea porro sunt: genus (nam similes parentibus ac maioribus suis plerumque filii creduntur, et nonnumquam ad honeste turpiterque uiuendum inde causae fluunt). (traduo nossa).9 Mart., 1, 73: Ningum houve em toda Roma que quisesse trepar/ de graa, Ceciliano, com tua esposa,/ enquanto era permitido. Mas agora, depois de postos os guardas,/ enorme a turba de fodedores: s um homem engenhoso. Nullus in urbe fuit tota, qui tangere uellet/ uxorem gratis, Caeciliane, tuam,/ dum licuit; sed nunc positis custodibus ingens/ turba fututorum est. Ingeniosus homo es. (Traduo nossa). Neste epigrama, evidente que o marido tem cincia do adultrio da esposa e que, principalmente, perfaz papel de seu proxeneta, lucrando com o adultrio. Repare-se que, da mesma maneira que Cina, Ceciliano tambm o interlocutor do poeta.

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    imagines physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de marcial

    (vv. 20-21), ao mito de Nobe:10 J te estaria completa a grei dos Nibidas,/ no fos-sem Coreso e Dndimo eunucos., Iam Niobidarum grex tibi foret plenus/ si spado Coresus Dindymusque non esset. O poeta vitupera o marido porque este no fora firme o suficiente para manter a fidelidade da esposa ou mesmo para restituir devidamente a referida legitimidade de sua descendncia, haja vista a dessemelhana dos prprios filhos, que se constituem enfim indicadores de caracteres viciosos, tomados direta-mente dos escravos e libertos da domus com quem Marula manteve relaes sexuais. Assim, o adultrio e a origem bastarda dos filhos so consequncia no s da licen-ciosidade de Marula, mas tambm do carter permissivo de Cina.

    At aqui tratamos brevemente acerca de alguns aspectos do epigrama 6, 39 de Marcial. Vimos que o poeta vitupera a mulher adltera mediante constituio de imagines, mas no dela e, sim, de seus filhos, que so ndices de sua traio, pois fisicamente se assemelham a seus supostos amantes, todos eles de baixa extrao; que o poeta, por possivelmente incorporar caractersticas das representaes imag-ticas de carter aristocrtico, potencializa os vcios de Marula e talvez do prprio marido , uma vez que ela pertenceria a uma gens romana; e que as descries se associam aos lugares-comuns do retrato de pessoas, prescrito pela retrica epidtica. Discorreremos a partir de agora sobre as relaes entre os procedimentos descritivos empregados pelo poeta e os preceitos dos tratados de fisiognomonia, particularmente aqueles a que nos referimos no incio do presente trabalho.

    Dos tratados de fisiognomonia antigos, subsistem somente os atribudos a Aristteles e a Apuleio; as lies de Adamncio (iii d.C.) e o De physiognomonia liber, de autoria annima, como vimos, e composto provavelmente no sculo iv d.C. Os demais de que temos notcia, compostos pelo mdico Loxo, datado do iii a.C., e pelo rtor Polemo, ativo no sculo ii d.C., perderam-se. No se sabe exatamente que autor foi o primeiro a delinear os aspectos principais da doutrina, ainda que por vezes sejam associados tradio pitagrica. Alm disso, as lies dos fisiogno-monistas frequentemente incorporam a doutrina hipocrtica dos humores. O autor annimo do De physiognomonia liber (12), por exemplo, demonstra que a complei-o mdia, ou seja, o perfeito equilbrio a melhor para o bem-estar do sujeito na medida em que a fora e a sade correm a par da sabedoria. Ora, nesse sentido, seus caracteres fsicos, que se refletem na devida proporo entre as partes e o todo do

    10 Eram doze os filhos de Nobe: seis rapazes e seis moas. Nobe julgava-se mais feliz que Latona, me somente de Apolo e rtemis, de modo que a deusa se ofendeu e ordenou a seus filhos que matassem a grande prole da filha de Tntalo. Algumas verses referem que teriam sobrevivido um ou dois filhos. Por causa de to grande dor, Nobe foi transformada em rocha, de onde brotavam incessantemente suas lgrimas. Em outras verses do mito, no somente era maior o nmero de filhos e filhas (quatorze ao todo), mas tambm a ofensa teria se dirigido diretamente a Apolo e rtemis (cf.: Hyg., Fab, 9).

    corpo some-se aqui o devido equilbrio dos humores corporais constituem-se ndices de fora e beleza, mas sobretudo representao da prpria virtude, da jus-ta-medida, porquanto o homem seria incapaz de desempenhar aes justas e nobres sem o intermdio da fora, sem os meios exteriores que lhe possibilitariam levar a cabo aes virtuosas.11 No entanto, no mesmo passo, ainda que julgue a compleio mdia a melhor, o annimo tambm nos apresenta os temperamentos dominantes associados aos quatro humores. O sanguneo, pese a grande fora, o rubor e a fir-meza e densidade dos cabelos, tem constrangidas a inteligncia e a agudeza de senso, ao passo que aquele que possui escassez de sangue da o melanclico e o fleum-tico teria, ao contrrio, aguadas a inteligncia e o esprito, conferindo-lhe viva-cidade aos rgos sensitivos da face,12 ainda que a dita escassez de sangue fosse res-ponsvel por lhe extenuar as partes do corpo, enfraquecendo-o e lhe alterando a cor da tez. Percebe-se, assim, que os tratados de fisiognomonia, ressalvadas as pequenas diferenas entre eles, versavam basicamente acerca dos caracteres morais e anmicos do sujeito que pudessem ser observados e significados a partir de ndices fsicos. Para os fisiognomonistas, portanto, o signo era motivado; eliminavam, em certo sentido, a arbitrariedade dele. o que se pode entrever pela definio da doutrina que nos oferecida no prlogo do De physiognomonia liber (2). Nela, a alma no se constitui entidade absolutamente independente e abstrata, mago da inteligncia e disposi-es humanas. Pelo contrrio, o corpo que d forma alma de acordo com as qua-lidades ou os vcios deste mesmo corpo: maneira do ar que soa diversamente na gaita, na flauta ou na tuba, ainda que exista um s ar.

    Os tratados especializaram-se. Por analogia, os autores relacionaram as caracte-rsticas fsicas de animais a disposies humanas, a zoognomonia: quando a base do nariz slida como que obtusa e redonda, aponta o forte e o magnnimo. So deste modo os focinhos dos lees e dos ces de caa. Narizes longos e finos se aproximam

    11 Arist., en, 1099b: [...] impossvel, ou pelo menos no fcil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em muitas aes utilizamos como instrumento os amigos, a riqueza e o poder poltico; e h coisas cuja ausncia empana a felicidade, como a nobreza de nascimento, uma boa descendncia, a beleza. Com efeito, o homem de muito feia aparncia, ou mal-nascido, ou solitrio e sem filhos, no tem muitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos. tica a Nicmaco. Traduo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1973. (Grifo nosso).12 A fisiognomonia, incorporando a teoria dos humores, influencia a pintura. Esses ndices, fisiognomnicos e hipocrticos, transparecem, por exemplo, no autorretrato de Albrecht Drer (1471-1528), datado de 1493, que se encontra atualmente no Museu do Louvre, em Paris. No retrato, o pintor se representa com a tez plida, mas com os olhos vivos e inquiridores; nas mos, carrega um cardo seco. A representao provavelmente segue a imagem do melanclico: a bile negra liga-se terra, da ser escura e seca. O engenho, a inteligncia e agudeza de senso do pintor so representadas, pictoricamente, pela melancolia.

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    ao das aves e produziro costumes desta maneira.13 Os tratadistas tambm propu-nham curiosas relaes entre as caractersticas do clima de determinada regio e as disposies morais de seus habitantes, espcie de fisiognomonia climtica: e o sinal de uma cor quente [a negra], como acima dito, das regies meridionais, e, da fria, atributo das setentrionais.14 Eles tambm discorriam amide acerca das naes e dos supostos caracteres que sua origem tnica poderia transmitir aos homens: os trcios, por exemplo, poderiam ser figurados como preguiosos, brios e inquos. Ambas as categorias de fisiognomonia se associam, retoricamente, como se pode ver, aos tpoi do retrato de pessoas, especialmente s categorias estirpe e nao.15

    No epigrama de Marcial que citamos h pouco, o 6, 39, podemos perceber cla-ramente as relaes que o poeta epigramtico estabelece entre a descrio dos aman-tes de Marula e caractersticas tnicas, climticas e mesmo animalescas dos indiv-duos, o que se coaduna com os preceitos das fisiognomonias antigas. Nos versos 6 e 7 do epigrama, que retomamos aqui Um, que caminha como mouro de crespa cabeleira,/ confessa que rebento do cozinheiro Santra., Hic qui retorto crine maurus incedit/ subolem fatetur esse se coci Santrae. , Marcial apresenta-nos a brevssima des-crio do primognito de Marula cujas feies remetem diretamente ao cozinheiro Santra: o caminhar de mouro e os cabelos crespos, ainda que simplesmente consti-tuam notaes,16 so dados suficientes para no somente apontar, como vimos ante-

    13 Physiog., 51. (traduo de Leonardo Davine Dantas). Baltrusaitis. J. Aberraes ensaio sobre a lenda das formas Fisiognomonia Animal, traduo de Luiz Dantas. In: Revista de Histria da Arte e Arqueologia. n. 2. ifch-unicamp, 1995/ 1996, p. 331-353, brevemente exemplifica outras caractersticas animais amide arroladas pelos tratadistas: Os sinais da magnanimidade so os cabelos duros, o corpo reto, a constituio robusta, o ventre largo e no proeminente; os sinais da timidez os cabelos macios, o corpo entorpecido, a barriga da perna achatada, olhos fracos que piscam (pseudo-Aristteles). Os olhos azuis com pupilas pequenas pertencem aos malvados e aos srdidos. Os olhos completamente azuis so os melhores olhos (Adamncio). Um raciocnio como este, onde se confundem matria e esprito, volta incessantemente naquelas dissertaes, embora tambm exista quem faa a deduo comparando os traos do homem com as formas dos animais, cujas aptides e instintos acredita-se conhecer melhor. (p. 331-2)14 Idem, 88. 15 Cf. Quint., Instit., 5, 10, 23-25. 16 Ainda que breve, a notao prtica prescrita em tratados de retrica antigos e se constitui do apontamento de marca, de trao distintivo do sujeito. Portanto, espcie de perfrase que determina a pessoa como virtuosa ou viciosa e, por isso, associa-se aos lugares-comuns de descrio de pessoas da retrica epidtica. Em Her., 4, 63 assim se define: A notao a descrio da natureza de algum pelos sinais distintivos que, como marcas, so atributos daquela natureza; [...]. Caracterizaes desse tipo, que descrevem o que conforme natureza de cada um, trazem, forosamente, muito deleite, pois do a ver tudo o que caracterstico de algum, seja um vanglorioso [...], um invejoso, um soberbo, um cobioso, um adulador, um amante, um dissoluto, um ladro, um delator, enfim, com a notao, as inclinaes de quem quer que seja podem ser exibidas aos olhos de todos. Notatio est, cum alicuius natura certis describitur signis, quae, sicuti notae quae naturae sunt adtributa [...] Huiusmodi notationes, quae describunt, quod consentaneum sit unius cuiusque naturae, vehementer habent magnam delectationem: totam enim naturam cuiuspiam ponunt ante oculos, aut gloriosi [...] aut invidi aut tumidi aut avari, ambitiosi, amatoris, luxuriosi, furis, quadruplatoris; denique cuiusvis studium protrahi potest in medium

    riormente, a origem espria e servil dos amantes, mas sobretudo indiciam sua origem estrangeira, muito provavelmente egpcia ou sria a julgar pela cabeleira crespa e a tez morena. O annimo do De physiognomonia liber informa que os cabelos crespos ou encaracolados so prprios de homens enganadores, avarentos, medrosos e sedentos de lucro, e que homens assim so geralmente egpcios notoriamente medrosos ou srios conhecidos por serem gananciosos e cobiosos.17 Ora, o tpos se repete no fim do epigrama (vv. 18-19), a articular os preceitos fisiognomnicos associados origem tnica com o tpos origem / nao do retrato epidtico: As duas irms uma negra, a outra, ruiva / so de Croto, o flautista, e do caseiro Carpo., Duae sorores, illa nigra et haec rufa,/ Croti choraulae uilicique sunt Carpi. Repare-se que, na fala epigram-tica, evidente a origem estrangeira de Croto provavelmente etope e de Carpo que, com os cabelos vermelhos, de certo provm da Glia ou da Europa Setentrional. Igualmente, as particularidades fsicas das personagens, e tnicas por seu turno, so entendidas nas fisiognomonias como caractersticas prprias de homens vis: Croto, pela origem africana, covarde e ardiloso: A cor negra indica o covarde, o que foge do combate, o homem ardiloso. Ela se refere queles que habitam os litorais meri-dionais, como os etopes, os egpcios e os povos prximos a eles18; e Carpo, avarento, mas tambm feroz, indcil e estpido: aqueles, porm, que possuem cabelos ruivos, bem vivos, [...] so geralmente prprios de homens detestveis, gananciosos e fero-zes, difceis de se ensinar.19

    Nos versos 8 e 9 (Outro, porm, de nariz chato e trgidos lbios,/ a imagem mesma do palestrita Pnico, At ille sima nare, turgidis labris/ ipsa est imago Pannychi

    tali notatione. Cic., De Or., 2, 58, 236, vincula o riso a notao de alguma torpeza, explicitada por alguma deformidade caracterstica: J quanto ao lugar e regio, por assim dizer, do ridculo [...], eles residem na torpeza e na deformidade. Ri-se unicamente, ou quase apenas, do que assinala e aponta alguma torpeza de maneira no torpe. Locus autem, et regio quasi ridiculi [...] turpitudine et deformitate quadam continetur: haec enim ridentur uel sola, uel maxime, quae notant et designant turpitudinem aliquam non turpiter. scatolin, A. A inveno do Do orador de Ccero: um estudo luz do Ad Familiares, 1, 9, 23. So Paulo: fflch-usp. Tese de doutoramento defendida para obteno do ttulo de doutor em Letras Clssicas, sob orientao da Profa. Dra. Zlia L. V. de Almeida Cardoso, 2009.17 Physiog., 14.18 Ibidem, 79.19 Ibidem, 73. As tpicas do retrato bem como os preceitos fisiognomnicos de carter tnico articulados no poema de Marcial parecem repercutir na tradio potica posterior relativamente ao vituprio. o caso de Gregrio de Matos, em que amide a invectiva explora certos esteretipos associados a nacionalidades, como prope Hansen, Joo Adolfo. A Stira e o Engenho: Gregrio de Matos e a Bahia do sculo xvii. 2. Ed. So Paulo: Ateli Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004. p. 400: articulada no topos nao, a tipificao atribui qualidades naturais da nao muito comum, por exemplo, a referncia do mal glico, efetuada como exclusiva do francs. A referncia s nacionalidades encena, alis, os esteretipos morais e polticos correntes sobre elas. Assim, italianos so sodomitas, franceses tm sfilis ou so peritos nas artes meretrcias, holandeses so selvagens hereges, tudescos (alemes) so burlescos etc.

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    palaestritae.), o nariz chato do atleta Pnico sinnimo de luxria, e seus lbios tr-gidos, ndices de sua baixeza de carter, imundcie, voracidade e estupidez, haja vista que, nas fisiognomonias, estas caractersticas so prprias dos porcos.20 O prprio nome do atleta j indicia tambm a lascvia de seu carter. Pnico remete a pannychs, noite inteira, festividade cuja evidente licenciosidade pode ter integrado o culto de diversas divindades no mundo antigo. Oliva Neto afirma que uma delas poderia ter sido Priapo.21 Alm disso, o fato de ser palestrita, e a prpria atividade da palestra por sua vez, pode aludir a prticas sexuais, como o caso do epigrama 67 do livro vii de Marcial,22 em que no somente a mulher l vituperada, Filnis, descrita como um atleta a fim de se amplificar seu vcio, o lesbianismo, da sua representao masculi-nizada, mas sobretudo o poeta estabelece relao entre os atletas do ginsio e inter-curso sexual,23 o que se intensifica pelo emprego de verbos pertencentes ao campo semntico de bater, dar golpes, no caso uapulo no verso oito. provvel que ver-bos dessa espcie tenham gerado as principais metforas sexuais em latim.24

    O terceiro filho de Marula tem as mesmas feies do padeiro: Quem ignora quem quer que conhea e veja Dama remelento / que o terceiro do padeiro?, Pistoris esse tertium quis ignorat,/ quicumque lippum nouit et uidet Damam? De maneira similar, a breve descrio aponta elementos que rebaixam a origem do filho de Marula, haja vista o carter escatolgico da aluso, especificamente imundcie de Dama que, alm de entrever provvel doena e falta de cuidados com o corpo caracteres transmitidos ao descendente , anloga baixeza social da personagem,

    20 Cf. baltrusaitis, j. op.cit., p. 335; Physiog., 48 e 51.21 Cf. oliva neto, j. a. Falo no Jardim, Priapeia Grega, Priapeia Latina. Cotia: Ateli Editorial / Campinas: Editora da unicamp, 2006, p. 196. 22 Filnis roadeira enraba rapazotes /e, mais furiosa que a libido dum marido,/ fode por dia onze menininhas./ Cingida, joga com a pla tambm/ e, amarela com o p, halteres,/ pesados para atletas, gira com brao ligeiro;/ e toda emporcalhada do p da palestra/ se submete aos golpes do mestre untado./ Nem janta ou se pe mesa antes/ de ter vomitado sete medidas de puro vinho!/ Julga ela, ento, que lhe lcito repeti-los,/ quando comeu dezesseis nacos de carne./ Aps tudo isso, ao se entregar aos prazeres,/ ela no chupa julga ser pouco viril / mas as meninas no meio devora-as por inteiro./ Que os deuses te deem juzo, Filnis,/ tu que julgas viril lamber bocetas., Pedicat pueros tribas Philaenis/ et tentigine saeuior mariti/ undenas dolat in die puellas./ Harpasto quoque subligata ludit/ et flauescit haphe, grauesque draucis/ halteras facili rotat lacerto,/ et putri lutulenta de pala-estra/ uncti uerbere uapulat magistri:/ nec cenat prius aut recumbit ante/ quam septem uomuit meros deunces;/ ad quos fas sibi tunc putat redire,/ cum colyphia sedecim comedit,/ post haec omnia cum libidinatur,/ non fellat putat hoc parum uirile / sed plane medias uorat puellas./ Di mentem tibi dent tuam, Philaeni,/ cunnum lingere quae putas uirile. (traduo nossa). 23 Procedimento anlogo ocorre em Mart., 1, 96, vv. 11-14: Tomamos banho juntos: ele nunca olha para cima,/ porm, aos atletas observa com olhos devoradores e/ no observa suas picas com lbios ociosos./ Desejas saber quem ? Mas seu nome me escapa., Una lauamur: aspicit nihil sursum,/ sed spectat oculis deuorantibus draucos/ nec otiosis mentulas uidet labris./ Quaeris quis hic sit? Excidit mihi nomen. (traduo nossa).24 Cf. adams, j.n., The Latin Sexual Vocabulary. Baltimore: John Hopkins University Press, 1982. p. 145-149.

    intensificada pela atividade exercida por ela que, como a exercida por Santra, con-siderada vil e prpria de escravos e libertos, o que pode se associar, no retrato epid-tico, ao tpos relativo natureza do nimo (animi natura).25 Na passagem em ques-to, com o referir a secreo que se desprende de Dama, pode ser que Marcial sugira ser a torpeza consequncia do viver desregrado da personagem, causa mesma de sua intemperana. Nesse sentido, a estratgia do poeta coincide com o que aconselha o annimo da Retrica a Hernio,26 quando, ao se elogiar ou vituperar, necessrio comear pelas circunstncias externas pessoa (ab externis rebus), no somente tra-tar de sua ascendncia, mas tambm daquelas qualidades inerentes ao prprio corpo. Assim, a feiura, antes de ser meramente torpeza fsica, entrev vcios morais, percep-tveis nas aes do sujeito vituperado, assim diremos que carece no s de beleza, mas de todas as outras vantagens, por sua prpria culpa e intemperana. Em outras palavras, a provvel doena, causa imediata da torpeza fsica, a secreo, seria conse-quncia da imoderao da personagem, que se entrega a excessos de toda a sorte.

    A feio do quarto filho assim descrita pelo poeta (vv. 12-14): O quarto de aspecto de bicha e rosto plido/ nasceu-te de Ligdo, teu amante:/ se desejares, vara este filho: no sacrilgio., Quartus cinaeda fronte, candido uultu/ex concubino natus est tibi Lygdo:/ percide, si uis, filium: nefas non est. evidente a condio de Ligdo: amante no s da mulher, mas do prprio marido, Cina. E certamente, pela refe-rida condio, tambm escravo. Os caracteres de Ligdo, portanto, a baixa extra-o, sua aparncia efeminada e plida, so transmitidos ao bastardo a ponto de a fala epigramtica aconselhar o marido a submet-lo sexualmente. Alm disso, a palidez do filho, e de Ligdo consequentemente, sinal de lascvia, como sugerido em tra-tados de fisiognomonia:27

    25 Quint., Inst., 5, 10, 27: 27. natureza do nimo: com efeito, a cobia, a clera, a severidade e outros [caracte-res] semelhantes a estes, amide, inspiram credibilidade ou a retiram, assim como quando se questiona se os hbitos de algum so excessivos, moderados ou miserveis. Importam tambm os ofcios, pois o campons, o advogado, o negociante, o soldado, o marujo e o mdico desempenham atividades muito diferentes entre si. 27. animi natura: etenim auaritia, iracundia, misericordia, crudelitas, seueritas aliaque his similia adferunt fidem frequenter aut detrahunt, sicut uictus luxuriosus an frugi an sordidus quaeritur; studia quoque (nam rusticus, forensis, negotiator, miles, nauigator, medicus aliud atque aliud efficiunt). (Traduo nossa).26 Her., 3,1427 Suet., Cal., constri o retrato de Calgula de maneira semelhante. de reparar que, segundo o historiador, o princeps propositalmente compunha sua aparncia a fim de gerar temor em quem o visse: Era de alta estatura, tez palidssima, corpo enorme, o pescoo e as pernas delgadas. Os olhos, assim como as tmporas, fundos. A fronte larga e carrancuda. Cabelos ralos e o alto da testa desguarnecido. O resto do corpo, cabe-ludo. Constitua crime capital olh-lo quando ele passava, por cima, e pronunciar, por qualquer motivo, a palavra cabra. Seu rosto era naturalmente horrvel e repelente. E ele procurava torn-lo ainda mais feroz, compondo-o diante de um espelho para inspirar terror e espanto. Statura fuit eminenti, colore expallido, corpore enormi, gracilitate maxima ceruicis et crurum, oculis et temporibus concauis, fronte lata et torua, capillo raro at circa uerticem nullo, hirsutus cetera. Quare transeunte eo prospicere ex superiore parte aut omnino quacumque

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    Libidinosi et intemperantes libidinum ita sunt: color albus, corpus hispidum retis capillis, partes oris hispidae directis et solidis capillis et nigris, item tempora hspida similibus capillis, oculos habebunt pinguiores humidos, crura tenuia neruis intenta atque hispida, uentrem piguem, mentum reflexum ad nares ita ut inter nares et mentum caua sit quaedam plani-ties, et quibus uena in brachiis est, et qui in palpebris capillos raros et defluentes habent.28

    os libidinosos, isto , os descomedidos na libidinosidade, assim so: cor branca, corpo peludo de plos retos, bigode de plos retos, slidos e negros, tambm as tmporas peludas de plos semelhantes. Tero os olhos mais preguiosos, midos, pernas finas, tensas por nervos e peludas, o ventre gordo, o queixo voltado para o nariz a tal ponto que entre o nariz e o queixo haja certo espao cncavo, e os que tm uma veia nos bra-os, e os que tm nas plpebras plos raros e que vo caindo.

    Caracteres animalescos tambm so explorados pelo poeta. Vejamos novamente a seguinte passagem do epigrama 6, 39, vv. 15-17: Sem dvida, este de cabea em ponta e orelhas longas/ que se movem como soem mover-se as dos asnos,/ quem nega que filho de Cirta, o bufo?, Hunc uero acuto capite et auribus longis,/quae sic mou-entur ut solent asellorum,/ quis morionis filium negat Cyrtae? O carter burlesco da per-sonagem Cirta mencionado claramente no poema pela condio de histrio, mas tambm por sinais distintivos, incongruentes da face de Cirta que j antecipam ele-mento ridculo: as orelhas de abano que se movem da mesma maneira que as de asnos e a deformidade do crnio. Ora, dois aspectos chamam a ateno: em primeiro lugar, o elemento cmico, causa mesma do vcio da representao do retrato do filho de Cirta e Marula, motivado primeiramente pela prpria incongruncia das partes,29 ou seja, dos rgos faciais, que compem o retrato: a falta de unidade aqui anloga

    de causa capram nominare, criminosum et exitiale habebatur. uultum uero natura horridum ac taetrum etiam ex industria efferabat componens ad speculum in omnem terrorem ac formidinem. Suetnio. As Vidas dos Doze Csares. Traduo de Sady-Garibaldi. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.28 Physiog, 112.29 Godofredo de Vinsauf (sculos xii-xiii), Documentum de modo et arte dictandi et versificandi, 2, 3, 154-155: quando se prope que se deve tratar determinada matria, consideremos em primeiro lugar de que ma-neira desejamos trat-la, entenda-se, se brevemente ou difusamente. [...] Se, em verdade, queremos trat-la difusamente e lhe oferecer amplo tratamento, devemos considerar primeiramente o corpo todo da matria e perscrutar todos os delineamentos deste corpo, a fim de que todas as partes de nosso assunto, ou seja, o princpio, o meio e o fim, sejam coerentes entre si no tratamento de uma matria difusa. Ora, assim evitaremos aquele vcio que se chama amide disposio incongruente das partes. Vcio este j referido por Horcio na Arte Potica nestes termos: Se um pintor quisesse juntar a uma cabea humana um pescoo de cavalo [...]. Cum matria tractanda proponitur, in primis consideremus qualiter uelimus eam tractare, scilicet na breuiter na diffuse. [...] Si uero diffuse tractare uelimus et amplum tractatum construere, in primis consideremus universum corpus materiae, et omnia linamenta corporis illius prosequamur ut in tractatu materiae diffusae omnes partes materiae sibi cohaereant, scilicet principium, medium et finis. Et ita uitabimus uitium illud quod appelatur incongrua partium dispositio. Quod uitium tangit Horatius in Poetria sub his uerbis: Humano capiti ceruicem pictor equinam [...]. Ver tambm martinho dos santos, Marcos. O Monstrum da Arte Potica de Horcio In: Letras Clssicas, ano 4, nmero 4, So Paulo: Humanitas/ fflch-usp, 2000, p. 191-266.

    pintura viciosa que d incio ao prlogo da Arte Potica de Horcio.30 Alm disso, pelo ridculo, pela feira e a deformidade animalesca da representao, pode-se cotej-la com a definio que Aristteles, na Potica31, oferece ao ridculo, matria da Comdia: o ridculo apenas certo defeito, torpeza andina e inocente; que bem o demons-tra, por exemplo, a mscara cmica, que, sendo feia e disforme, no tem [expresso] de dor. (trad. de Eudoro de Souza; grifo nosso). Nesse sentido, diferentemente de outros caracteres postos em cena por Marcial (ardilosos, traidores, sodomitas, etc.), o filho de Marula ele prprio a consubstanciao da profisso do verdadeiro pai: bufo, perso-nagem de Comdia. Em segundo lugar, a constituio do misto monstruoso, em par-ticular a presena de naturezas distintas convivendo ambas num s ser vivente, cons-titui tambm figurao da torpeza da personagem que, por ser burlesco e ridculo, tambm estpido e sem senso, intemperante bem entendido, pois incapaz de jul-gar a justa-medida, a medida da virtude. Em outras palavras, a imagem viciosa, no que se assemelha ao monstrum da Arte Potica horaciana, representa tambm a ausn-cia de unidade de suas disposies morais.32 No De physiognomonia liber, o defeito fsico, figurado pela proeminncia da parte superior do crnio, indica homem est-pido, sem sabedoria e imprudente;33 as orelhas longas so prprias de sujeitos estpi-

    30 Hor., Ars., 1-5: Se um pintor quisesse juntar a uma cabea humana um pescoo de cavalo e a membros de animais de toda a ordem aplicar plumas variegadas, de forma a que terminasse em torpe e negro peixe a mulher de bela face, contereis o riso, meus amigos, se a ver tal espetculo nos levassem?, Humano capiti cervicem pictor equinam / iungere si velit et varias inducere plumas / undique conlatis membris, ut turpiter atrum /desinat in piscem mulier formosa superne, /spectatum admissi risum teneatis, amici? Horcio. Arte Potica. Introduo, Traduo e Comentrio de R. M. Rosado Fernandes. Lisboa: Editorial Inqurito, 1984.31 Arist., Poet., 1449a. aristteles. Potica. Traduo, comentrio e ndices analtico e onomstico de Eudoro de Souza. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1973.32 O preceito de unidade propugnado por Horcio na Arte Potica, no prlogo em particular, ainda que trate diretamente da unidade do poema ou, relativamente a uma descrio, da beleza desta como consecuo da devida proporo, ou melhor, da correta dispositio das partes e o todo, ser conceito incorporado nas artes pictricas. No sculo xvi, diversos tratados aconselham que a beleza do corpo humano alcanada median-te o mesmo preceito proposto por Horcio, proporo e unidade. o que se pode depreender a partir da seguinte passagem de pino, Paulo. Dilogo sobre a Pintura. Traduo, apresentao e notas de Rejane Bernal Ventura. Cadernos de Traduo, n. 8. So Paulo: Humanitas, 2002 em que se discute a beleza do corpo fe-minino: Parece-me que, para um corpo feminino ser perfeitamente belo, necessrio que a natureza no seja impedida ao produzi-lo e que a matria seja bem disposta em qualidade e quantidade; que seja gerada em boa conjuno com as sete estrelas e sob o benigno influxo dessas segundas causas; de igual compleio com apropriada proporo; que os humores superficiais sejam temperados de modo que deles se cause uma carne delicada, sem mcula, lcida e cndida.. Repare-se tambm que h confinidade entre os preceitos discutidos por Paolo Pino e tpicas fisiognomnicas, especificamente aquelas relacionadas aos humores do corpo e sua repercusso para a beleza e as disposies morais. 33 Physiog., 16.

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    imagines physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de marcial

    dos e impudentes;34 alm disso, a comparao com os asnos tambm faz entrever que se trata de homem canhestro, grosseiro e, principalmente, indcil.35

    O elemento animalesco na descrio, bem como o aspecto desagradvel do ter-ceiro rebento de Marula, herdado do padeiro Dama cuja imundcie prpria dos porcos, tpos dos tratados de fisiognomonia. O pseudo-Aristteles preceitua que homens de olhos grandes e a ponta do nariz grossa costumam ser lentos e preguiosos da mesma maneira que os bois; ao passo que associa certas virtudes, como a coragem e a magnanimidade, a homens que, como os lees, tiverem a ponta do nariz achatada e redonda e os olhos fundos. Adamncio compreende que homens vorazes, cruis, mpios e insensatos costumam ter a boca rasgada e desmesurada da mesma maneira que os ces; j aqueles de maxilares pequenos, como os das serpentes, so engana-dores e cruis.36 No entanto, ainda que esses tratadistas dediquem grande espao fisiognomonia zoolgica, sabemos ser antiga a associao de caracteres prprios dos animais a disposies puramente humanas. Ora, Semnides de Amorgos (sculo vi a.C.), na Stira contra as mulheres, discorre acerca dos vcios inerentes natureza feminina relacionando-os a diversos animais; nesse sentido, o poeta imbico, como um fisiognomonista, estabelece certa afinidade entre as supostas disposies morais viciosas das mulheres e os instintos dos animais, compondo inusitada galeria: por exemplo, a mulher cuja vida imersa na imundcie, sem lavar-se, com a casa toda dissolvida em lama aquela cujo esprito Zeus forjou a partir da porca (vv. 1-6); a mulher perversa e excitvel provm da cachorra (vv. 12-15); j a lasciva, mpia e deso-nesta tem o esprito plasmado por Zeus a partir da doninha (vv. 50-56) etc.

    A tradio dos tratados de fisiognomonia no se manteve restrita Antiguidade. A Idade Mdia tambm faz referncia a eles, seja diretamente, pela leitura das fisiog-nomonias antigas, seja pela mediao de autores rabes que no somente traduziram esses tratados, mas sobretudo compuseram fisiognomonias prprias, muitas delas de carter astrolgico.37 No entanto, particularmente a partir do sculo xvi que as fisiog-

    34 Ibidem, 47.35 Ibidem, 90.36 Baltrusaitis retoma os preceitos do pseudo-Aristteles e Adamncio, op.cit., p. 332.37 A Idade Mdia reencontrou as fisiognomonias greco-romanas tanto diretamente quanto atravs do Islam. Polmon, cujo captulo ii trata da semelhana do homem com os animais, do carter dos dois sexos e do modo de deduzir o carter do homem por sua semelhana com o animal, foi traduzido em rabe j no sculo x. deve-se tambm aos muulmanos uma verso resumida do tratado de Aristteles (Sirr-al-Asrr ou Segredo dos Segredos), sob a forma de uma carta a Alexandre, em que o filsofo d conselhos ao rei sobre a escolha dos ministros, dos amigos e dos escravos. Porm, a fisiognomonia rabe tinha tambm a prpria tradio e literatura abundante. O manual de medicina (Al-Tibb Al-Mansr) de Rhazs, consagra-lhe cinquenta e oito captulos. Entre os livros importante, o Kitb Al-Firsa, de Al-Rz (1209), ultrapassa os demais na especulao sobre a natureza e as formas animais do homem, ao passo que Al-Damashk (1327) alia fisiognomonia propriamente

    nomonias passaro a ser estudadas de maneira mais aprofundada e incorporadas de vez prtica da pintura e estaturia no Ocidente. ndice do que acabamos de dizer so as inmeras tradues de tratados antigos e outros pertencentes tradio rabe que pas-sam a circular na Europa e tambm a composio de fisiognomonias contemporneas que no somente retomam os tratados antigos, medievais e rabes, mas principalmente propem verdadeiros estudos anatmicos, o caso do De humana physiognomonia de Giambattista della Porta (1541-1615), publicada em 1586.38 O autor trata das paixes humanas, estabelecendo correlao com os instintos dos animais que, acredita-se, so explicitadas por sinais fsicos. Assim, os homens que possurem traos similares a cer-tos animais compartilham com estes os mesmos afetos. O estudo fisiognomnico em della Porta ao mesmo tempo em que incorpora os estudos anteriores, do pseudo-Aris-tteles e Adamncio principalmente, relaciona-os s paixes, o que, alm de ser mat-ria do livro ii da Retrica de Aristteles39, configura-se exerccio para pintores e esculto-res que devem explicitar afetos humanos mediante os traos da face, geralmente pelo movimento conferido expresso humana, ou mesmo por caracteres fsicos anlogos ao de animais em cujos traos distintivos resida a disposio adequada:

    De humana physiognomonia, homem-leo

    dita os elementos astrolgicos que presidiro durante muito tempo sua propagao e desenvolvimento. O pensamento islmico sempre esteve preso a todas as formas de adivinhao. (Idem, Ibidem, p. 332).38 A obra teve um sucesso prodigioso. As edies sucederam-se em Npoles (1588, 1598, 1602, 1603, 1610, 1612), em Veneza (1644), em Hanover (1593), em Bruxelas (1601), em Leyde (1645). Duas tradues francesas (1655 e 1665) seguem a sua publicao latina (1650) em Rouen. Uma fisiognomonia astrolgica na tradio medieval e rabe mais pura, publicada parte em 1603, ser frequentemente acrescentada ao livro (Idem, Ibidem, p. 336).39 Aristteles, Retrica, introduo e traduo de Manuel Alexandre Jnior, Paulo Farmbouse Alberto e Abel de Nascimento Pena, Lisboa: Casa da Moeda/ Imprensa Nacional, 1998.

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    imagines physiognomonicae: a repercusso de lies de fisiognomonia em epigramas de marcial

    Outra obra do perodo de grande importncia a Iconologia40 de Cesare Ripa (1555-1622), publicada em fins do sculo xvi. O texto de Ripa espcie de compn-dio: uma longa lista em que o autor arrola, em ordem alfabtica, preceitos para a composio imagtica de virtudes e torpezas humanas, bem como toda a sorte de alegorias, aconselhando a maneira de represent-las e discorrendo acerca dos aspec-tos simblicos que as compem. No se trata exatamente de tratado de fisiogno-monia ou de pintura, ainda que faa amide referncia a autores contemporneos e mesmo antigos; no entanto, claramente perceptvel que Ripa incorpora elementos fisiognomnicos em suas descries das paixes humanas que por seu turno se asso-ciam aos lugares-comuns do retrato propostos pela retrica epidtica, como vimos em Quintiliano e na Retrica a Hernio. Vejamos, por exemplo, a alegoria da indoci-lidade proposta por Ripa:

    Indocilidade, Iconologia, Ripa (1593)

    40 Iconologia di Cesare Ripa Perugino, cavalier di SS. Mauritio et Lazaro divisa in tre libri. Venetia: Presso Cristoforo Tomasini, 1645.

    A indocilidade, aqui, representada por uma jovem, com trajes camponeses e sentada no cho, que em uma das mos segura um asno pela rdea e sob a outra tem um javali. Ripa explica que a jovem, de rosto spero, deve estar sentada na pr-pria terra, uma vez que a indocilidade vcio baixo e no apta para caminhar na mesma via que da virtude, pois prefere manter-se de maneira vil sempre na ignorn-cia, da mesma maneira que estpido e indcil o asno, e sujo e insensato, o javali. Assim, os ndices animalescos aqui figurados, e significados, associam-se tambm baixa extrao da moa que, de rosto spero e com vestes camponesas, teatraliza rudeza e falta de urbanidade e refinamento; alm disso, os outros elementos, causas em si do ser indcil, s fazem entrever que a indocilidade consecuo da intempe-rana resultante dos referidos vcios associados ao asno e ao javali, a saber, a estupi-dez e a insensatez respectivamente. A alegoria de Ripa pe em cena as circunstncias de pessoa da retrica epidtica, representando a baixeza do vcio mediante a origem humilde da moa figurada, ao mesmo tempo em que, fisiognomonicamente, vin-cula a indocilidade a caracteres prprios de certos animais, no caso, o javali e o asno, que so tambm ndices de rudeza e grosseria.41 Repare-se que o procedimento de Cesare Ripa, fisiognomnico que seja, anlogo ao epigrama de Marcial que anali-samos no presente trabalho, especificamente descrio do filho de Cirta que, como o pai, intemperante, burlesco e estpido, caractersticas no somente figuradas pela torpeza fsica, no caso a deformidade craniana, mas sobretudo por suas orelhas de asno. Assim, nas imagines construdas pelo poeta ou mesmo pelo pintor ou escul-tor no est em pauta uma concepo imagtica baseada exclusivamente na exata representao de um modelo, tomada aqui como dado emprico, mas, sim, como resultado de procedimentos textuais, de imago sensorialmente construda (phanta-sa), cujo critrio de verossimilhana reside na emulao da dxa, isto , da opinio considerada verdadeira em relao determinada matria. Em outras palavras, as lies de fisiognomonia medida que tornam o signo motivado, j que lhe atribuem certas significaes que reverberam nas aes e no thos da personagem, associam-se, discursivamente, aos lugares do retrato do gnero epidtico da Retrica de maneira que, pictoricamente, remetem ao elogio ou, no caso, ao vituprio.

    Percebemos, em Marcial, o emprego de preceitos provenientes de tratados de fisiognomonia antigos que, como vimos, associam caracteres fsicos distintivos do sujeito a disposies morais; e que esses preceitos, retoricamente, tm relao no somente com a descrio, a entendida como tcnica elocutiva cara inveno, mas

    41 Mart., 7, 59: Tito, nosso querido Ceciliano no janta sem um javali./ Ceciliano tem um belo convidado., Non cenat sine apro noster, Tite, Caecilianus./ Bellum convivam Caecilianus habet. (traduo nossa). O epigrama tem graa, pois a fala epigramtica associa a intemperana, rudeza e falta de decoro do javali a Ceciliano que, supe-se, afeta sem sucesso refinamento e urbanidade nos banquetes.

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    sobretudo com os lugares do retrato de pessoa, prescritos por diversos tratados, como as Instituies Oratrias de Quintiliano e a Retrica a Hernio. Procurei chamar a ateno tambm, ainda que indiretamente, a certo aspecto prprio das representa-es anteriores ao Romantismo, ao fato de que eram as preceptivas mediadoras do engenho prprio de poetas, pintores e escultores e a especificidade de seu meio de produo e circulao. O presente trabalho em si, tomando como ponto de partida o epigrama vi, 39 de Marcial, props-se, em alguma medida, a contrapor poetas e pintores, pari passu ao clebre smile da Arte Potica de Horcio, ao ut pictura poe-sis, tanto no sentido do decoro adequado que deve ter a poesia e a pintura, e mesmo leitor/espectador, situando-o na distncia devida para a fruio da obra, quanto no que tange emulao entre poeta e artfice, nos elementos que aproximam e ao mesmo tempo distanciam poesia e pintura, poeta e pintor. Assim, os tratados de retrica que prescrevem o retrato, descrio, euidentia e outras estratgias de carter visualizante, os tratados de fisiognomonia a que nos referimos, bem como tratados de pintura renascentistas, o De Humana Physiognomonia de della Porta ou mesmo a Iconologia de Ripa possuem liames, conexes que tornam apta e verossmil a consti-tuio de modelos de representao que podiam ser empregados no somente no dis-curso, e em particular na poesia, como o faz Marcial e o fizeram tambm Catulo, Ovdio, Virglio, Dante, Ariosto, Cames , mas tambm na pintura e estaturia, como assim fizeram Drer, Botticelli, Michelangelo, da Vinci, Caravaggio. Ou seja, perceber os elementos que conectam a Biblioteca Pinacoteca.

    Eikones de Filstrato, o Velho: um mtodoRosngela Santoro de Souza Amato

    introduo

    Filstrato, cidado romano, nascido na Grcia, recebeu pelo menos parte de sua educao em Atenas. Segundo o Suda,1 exerceu sua carreira de sofista em Atenas e Roma. Nasceu por volta de 170 d.C e cresceu em uma Atenas onde a sofstica tinha presena constante, tanto em performances ao vivo como em textos escritos, seguindo uma tradio que remonta pelo menos ao sculo v a.C. Desde as ltimas dcadas do primeiro sculo d.C, retores de outras cidades iam a Atenas para se exibir, pronun-ciando seus discursos, invariavelmente, epidticos. Essas exibies constituam-se especificamente de declamaes (meltai) e oraes menos formais (dialxeis) muitas vezes precedidas por pequenos discursos introdutrios, que serviam como amostra do que viria a seguir (prolalia).

    As meltai eram discursos fictcios, em que o orador assumia o papel de algum personagem histrico ou mitolgico e criava situaes em que se propunha alguma questo retrica. Para ser bem sucedido, era necessrio que o orador demonstrasse talentos variados, desde talento dramtico at capacidade de anlise e argumentao alm de obrigatoriamente pronunciar seus discursos em grego tico do sculo v a.C.

    Esperava-se que um cidado educado (pepaideumnos, em oposio aos falantes de grego no educados, iditai e aos no falantes de grego, brbaroi) fosse capaz de debater ideias e apreciar criticamente textos, obras de arte e discursos.

    So essas as circunstncias em que Filstrato produziu sua obra, que vasta e diversificada e abarca grande espectro genrico, o que nos d elementos para melhor compreender o que era ser grego ou o que se considerava ser grego no perodo, alm de nos oferecer matizes para compreender as interferncias mtuas entre o universo cultural helenstico e o romano, que esto na base da cultura helnica do perodo, revitalizada no principio da era crist.

    Atualmente, so aceitas como suas: Vida dos Sofistas, Vida de Apolnio de Tiana, Heroico, Imagens, Cartas, Ginstica e Nero. Vrias serviram como modelo de emu-lao posterior. Por exemplo, A Vida de Apolnio de Tiana foi modelo de toda a hagiografia crist.

    1 bowie, E.. Philostratus: the life of a sophist. In: bowie, E; elsner, J. (ed.) Philostratus. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p.19

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    eikones de filstrato, o velho: um mtodo

    Tratarei, no entanto, de apenas um dessas obras: Imagens. Compe-se de des-cries em prosa de pinturas, e, embora seja o primeiro livro a ter como foco cen-tral o tropo retrico cfrase (), no uma obra sobre cfrases: a obra no se configura como um tratado, mas sim como um livro de cfrases, as quais constituem sua nica e total matria potica, em sentido lato: a cfrase , digamos provisoria-mente, a matria literria da obra.

    Resumidamente, podemos dizer que cfrase recurso retrico-potico, que por meio da enrgeia (que Quintiliano traduziu para o latim como evidentia, que pode-mos entender por vividez no discurso) traz para diante dos olhos de um ouvinte algo que est ausente, fruto da phantasa (ou imaginao/impresso de algo concreto ou fictcio) presente na mente de quem fala e que por sua vez, produz phantasa na mente de quem ouve ou l. Esta uma definio bastante simplificada e resumida de conceitos bastante complicados e com diferentes acepes para diferentes auto-res ou escolas filosficas que foram estudados, esmiuados e definidos exausto por Melina Rodolpho em sua Dissertao de Mestrado.2

    Mas, em suma, o que precisamos ter em mente aqui que a cfrase um recurso que transforma ouvintes em espectadores, ou seja, produz algum que v. O essen-cial o efeito produzido, o impacto causado e o controle adquirido por meio desse recurso sobre a imaginao do ouvinte.

    Desta forma, a cfrase no reproduz uma realidade concreta, mas sim a percep-o dessa realidade por quem a realiza. O ouvinte imita o prprio ato de ver e cria sua prpria phantasa.

    preciso salientar que essa capacidade de visualizao era algo esperado j dos prprios jovens estudantes ao lerem Homero ou Tucdides, por exemplo. Aprendiam a ler criticamente as obras, sem assumir um distanciamento crtico. Deviam par-ticipar delas, entrar na cena, por assim dizer, fazendo uso de sua imaginao. Subsequentemente, ao iniciarem seus estudos de retrica, aprendiam a provocar esse mesmo efeito em outros.

    Para ilustrar essa exigncia quanto capacidade de visualizao, Quintiliano, cita uma passagem das Verrinas e afirma que a imagem formada em sua mente contm detalhes no descritos por Ccero3. Em seguida se pergunta se pode existir algum to incapaz de (tam procul abest) formar imagens de coisas que no parece ver.4

    2 rodolpho, M. cfrase e Evidncia nas Letras Latinas: Doutrina e Prxis. Dissertao de Mestrado apre-sentada junto ao dlcv/ppglc/fflch da Universidade de So Paulo sob a orientao do Prof. Dr. Paulo Martins. 2010.3 Quint., Inst., 8,3, 64-5.4 webb, R. Ekphrasis, Imagination and Persuasion in Ancient Rhetorical Theory and Practice. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2009. p. 21

    Feitas essas consideraes introdutrias, gostaria de fazer um pequeno excurso sobre o prprio ato de ver.

    excurso

    H alguns anos, li um relato de caso de um neurofisiologista, Oliver sacks que me causou grande impacto. Esse relato chamava-se, na traduo em portugus, Ver ou No Ver5 (parte do livro Um Antroplogo em Marte). Tratava o caso de um homem j de meia-idade, que havia perdido a viso quando ainda muito criana, com menos de um ou dois anos e, portanto, passado quase toda sua vida cego. Surgiu ento a oportunidade da realizao de uma cirurgia que lhe restituiria a viso. Esperava-se que ao trmino da cirurgia, quando da retirada dos curativos, esse homem fosse abrir os olhos e enxergar. No entanto, o que ocorreu foi algo bem diverso ele enxergava, mas no sabia ver. No conseguia entender e reunir os fragmentos que via em unidades coerentes. Ao ver um gato, por exemplo, ele via uma cauda, uma das patas, uma orelha, mas no sabia que isso constitua um gato. Isso, claro, foi motivo de angstia e sofrimento intenso ao paciente. Mas, no a histria dele que me interessa aqui, e sim, o fato de que nos esquecemos de que a viso no algo dado, mas antes, um enorme esforo de aprendizado que fazemos ainda bebs.6 Fazemos parte de uma cultura visual, com informaes variadas, mltiplas e complexas que nos chegam a todo instante e pouco nos damos conta da amplitude da tarefa que nossos crebros realizam no simples ato de ver.

    Isto , preciso aprender a ver e ainda que isso se faa enquanto ainda bebs, ver um aprendizado.

    Outro ponto que me chamou bastante a ateno por simplesmente jamais ter refletido sobre ele, foi a observao de que para algum que no enxerga, o mundo perceptual composto de sequncias de impresses tteis, olfativas, auditivas. Quem

    5 sacks, O. To See and Not See, in: An Anthropologist on Mars. New York: Vintage, 1995.6 We achieve perceptual constancythe correlation of all the different appearances, the transforms of objectsvery early, in the first months of life. It constitutes a huge learning task, yet is achieved so swiftly and automatically that its enormous complexity is scarcely realized (though it is an achievement that even the largest supercomputers can-not begin to match).

    Adquirimos constncia perceptiva a correlao entre as diferentes aparncias, as variadas formas dos objetos- muito cedo, nos primeiros meses de vida. Isto contitui uma enorme tarefa de aprendizagem e no entanto, adquirida to rpida e automaticamente que sua enorme complexidade quase no percebida (apesar de ser uma conquista que mesmo os maiores supercomputadores no chegam nem perto de alcan-ar) Traduo nossa.

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    desprovido do sentido da viso vive em um mundo definido pelo tempo apenas.7 Ns, seres visuais, vivemos num mundo de tempo e espao, recebemos estmulos visuais simultneos e nossa viso e percepo de imagens , assim, sincrnica.

    Da, parece bvia a analogia que podemos inferir entre o mundo de algum que no v e a poesia que linear, sequencial, diacrnica e aquele de algum dotado da viso sinttico-sinttico, sincrnico e as artes visuais.

    Assim, para descrevermos algo em palavras, preciso traar um caminho inverso ao da viso e linearizar aquilo que simultneo, assim como um cego precisa tocar sequencialmente um objeto/pessoa (ou algo que a prpria mo no consiga tomar como um todo) para reconhec-lo.

    questes

    Chego ento, finalmente, de volta ao autor e sua obra Eikones Imagens. Estou ainda nas fases iniciais da pesquisa, mas creio ser possvel j afirmar que Imagens, alm da funo de agradar o leitor, delectare, cumpre tambm fins pedaggicos o docere. Alm do fato dessas descries poderem ser tomadas como paradigmas do tropo e, portanto, ensinarem como realizar uma cfrase bem sucedida, consti-tuem-se tambm educao do olhar, pelo olhar.

    O autor no apenas descreve as pinturas como faz uso de toda a variedade de possibilidades do tropo passa de narrativas mticas a descries de paisagens, de personificaes a naturezas mortas e apresenta como pinturas temas literrios que fazem parte de outros gneros pico, buclico, trgico que continham, por sua vez, cfrases em si mesmos.8

    Podemos assim dizer que a cfrase, com Filstrato, se autonomiza, deixa de ser recurso e passa a ser um fim, constituindo-se num gnero.

    7 We, with a full complement of senses, live in space and time; the blind live in a world of time alone. For the blind build their worlds from sequences of impressions (tactile, auditory, olfactory), and are not capable, as sighted people are, of a simultaneous visual perception, the making of an instantaneous visual scene. Indeed, if one can no longer see in space then the idea of space becomes incomprehensibleand this even for highly intelligent people blinded relatively late in life.

    Ns, com todos os nossos sentidos operantes, vivemos no espao e tempo; o cego vive em um mundo de tempo apenas. Pois o cego controi seu mundo a partir de sequncias de impresses (tteis,auditivas,olfativas) e no capaz, como aqueles que enxeram, de percepo visual simultnea, de construir uma cena visual instantnea. De fato, se algum no pode mais ver no espao, ento a ideia de espao se torna incompreen-svel e isto acontece mesmo com pessoas extremamente inteligentes e que ficaram cegas em relativamente tardiamente na vida. Traduo nossa.8 elsner, Ja. A Protean corpus. In: bowin, E.; elsner, J. (Eds.) Philostratus. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p.15.

    Imagens contm a descrio de 65 pinturas, todas com cenas retiradas de auto-res gregos anteriores ao sec. iv a.C: Homero, Esopo, os trgicos e at mesmo algumas figuras histricas ou mticas. Esses autores e temas faziam parte dos textos pressupos-tos pela paideia, isto , o processo de educao que constitua a identidade de uma elite grega no mundo antigo. So, portanto, descries que buscam referentes na memria daqueles que o ouviam ou liam. Mais que uma galeria de quadros, citando aqui Ruth webb, Filstrato nos guia por uma galeria da memria.9

    Segundo o prefcio do autor, as descries foram feitas a um menino de dez anos de idade (a seu pedido) e a um grupo de potenciais pupilos um pouco mais velhos. Para o prprio Filstrato, sua funo naquele momento ensinar a inter-pretar a pintura, formando seu gosto.10 Assim, considerando-se a audincia interna, temos um primeiro grupo que v as obras enquanto o autor as descreve. Neste grupo vemos, por um lado, um menino interessado principalmente nas explicaes e inter-pretaes das pinturas. Por outro, os demais jovens esto interessados no s nesse aspecto das descries como tambm na arte retrica do orador. Alm disso, se a obra foi escrita como registro dessas exposies orais ela ter como destinatrios ouvin-tes11 e leitores que no mais tm as obras diante dos olhos e que alm das pinturas, devem imaginar tambm como parte da cena o prprio autor a descrever as pintu-ras, o menino e o grupo de jovens.

    Tanto para sua audincia interna como externa, o autor utilizar a memria e a imaginao (phantasa) de seu pblico para obteno do efeito desejado, isto , a visualizao. Isto ele faz no simplesmente descrevendo em palavras aquilo que est sendo visto, mas recriando as pinturas e situaes, educando e direcionando o olhar (seja o olhar fsico, seja o olhar da mente), dando a ver tanto aquilo que est como aquilo que no est reproduzido graficamente no quadro.

    Transita entre a descrio e a narrativa, transformando-nos ora em espectadores, fazendo-nos ver o quadro, ora em ouvintes.

    Dessa forma, se o autor bem sucedido, podemos ento dizer que todos estando ou no diante dos quadros reais de fato visualizam as pinturas da forma como ele deseja. Cumpre, portanto, a funo precpua da cfrase: trazer diante dos olhos. Entretanto, acrescenta a isso o ensino de como se deve observar e entender

    9 webb, R. Mmoire et imagination: les limites de lenargeia dans la thorie rhtorique grecque. In: Dire lvidence, texts runis para Carlos Lvy et Laurent Pernot. Cahiers de philosophie de lUniversit de Paris xii Val de Marne Num. 2. Paris, LHarmattan, 1997, p. 241.10 Phil., Im., Proem., 3.11 Provavelmente a obra foi apresentada em outras ocasies a um auditrio anlogo ao primeiro (Introduo da traduo francesa: (1995). Les Images ou tableaux de platte peinture, 2 volumes. traduction et commentaires de Blaise de Vigenre (1578), prsent et annot par graziani, Franoise Paris, Honor Champion.

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    eikones de filstrato, o velho: um mtodo

    uma obra de arte. Se est criando um novo gnero est tambm, ao mesmo tempo, criando seu pblico ideal.

    Apresento, em seguida, a leitura da primeira traduo de uma das descries, a pintura nmero 6, chamado Erotes, ou Amores.

    Antes, gostaria de chamar a ateno para que se observe como continuamente o autor apostrofa ao menino (que seu destinatrio primrio) e como frequentemente o convida (e tambm a ns, que passamos a assumir o ponto de vista do menino) a entrar no quadro. Ainda, que se note a alternncia entre as partes descritas e as nar-radas, o uso abundante de verbos de movimento, o uso da sinestesia e os pronomes demonstrativos (que tm tanto uma funo ditica, se considerarmos o pblico que est diante das pinturas, como de demonstrativos catafricos, se considerarmos o pblico que ouve ou l a obra).

    Optamos na traduo pelo uso do tratamento na terceira pessoa do singular, mantendo uma linguagem simples (dirigida a um garoto), porm na medida do pos-svel literria (pronunciada por um orador, um professor de retrica) que utiliza, por-tanto, a norma culta.

    traduo e notas 6a imagem do primeiro livro

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    12 : segundo Chantraine (delg): s.v., p. 625, o futuro do verbo pode significar expor, contar, descrever, e tem assim aspecto durativo.

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    filstrato, Imagens13

    6. amores

    Olhe! Os Amores esto colhendo mas! Se h muitos, no se espante. So filhos das ninfas, governam tudo o que mortal e so muitos, pois muitas so as coisas que os homens amam. Dizem que um deles, celeste, rege at mesmo os assuntos divinos. Voc no sente um doce aroma que vem do pomar ou isso lhe imperceptvel? Mas escute com boa vontade: pois as mas, com minhas palavras, vo atingi-lo.

    Estas fileiras de rvores alinham-se perfeitamente e h espao entre elas para caminhar. Uma relva recobre suave os caminhos e serve de leito macio aos que nela se deitam.

    Da ponta dos galhos, brilham mas cor de ouro, vermelho-fogo e amarelo-sol oferecendo-se a todo o bando de Amores para serem colhidas. Aljavas cravejadas de ouro guardam flechas ureas, e o bando esvoaa, leve, aps pendur-las nas macieiras. Suas capas,14 bordadas, estendem-se pela relva e delas emana o brilho de mirades de cores. Guirlandas no lhes enfeitam a cabea, bastam os cabelos.15 As asas azul-mar, prpura e em alguns, douradas, vibram o ar e, em harmonia, produzem quase msica.

    13 A edio utilizada foi elder philostratus, Imagines. In philostratus the elder, Imagines. philostratus the younger, Imagines. callistratus, Descriptions. With an English translation by Arthur Fairbanks. Cam-bridge, Massachusetts / London England: Harvard University Press, 1931. (Loeb Classical Library no 256).14 capas: parte da imagem.15 bastam os cabelos: tpica da beleza natural; ver Prop., Elegias, 1, 2.

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    Veja as cestas, que lindas, crivadas de sardnicas,16 esmeraldas e prolas verdadeiras! Decerto obra de Hefesto!17 Ali guardam as mas. Mas de escadas, feitas pelo deus, os Amores no precisam: voando, alcanam as mas no alto das rvores.

    Nem vou falar dos que danam em roda, dos que correm, dos que esto deitados e dos que se alegram comendo as mas, mas vejamos o que estes 18outros significam.

    Olhe! Quatro dos mais belos Amores escapam discretamente dos outros. Dois deles brincam jogando uma ma de um para o outro; os outros dois, um flecha o outro, que

    revida. No rosto, nenhuma raiva, mas oferecem o peito um ao outro para que as flechas acertem bem ali. Belo enigma! Agora, veja se eu consigo compreender o pintor.

    Menino, isso o Amor, e o desejo que tm um pelo outro! Os que brincam com a ma, esto comeando a se desejar. O que primeiro lana a ma, a beija e o outro, com as mos estendidas para beij-la, se a pega, joga-a de volta.

    A dupla que desfere flechas est confirmando um amor j existente. Por isso, eu digo que os que brincam esto comeando a se amar; os outros dois, atiram-se flechas para que o desejo no acabe.

    Aqueles outros, em torno dos quais h muitos espectadores, caem um sobre o outro, com ardor, a lutar. Vou descrever a luta, j que assim voc tanto quer: voando, um deles segura o oponente por trs, sufocando-o e prendendo-lhe as pernas. Mas este no desiste e se levanta. Solta a mo que o sufoca torcendo-lhe um dos dedos, o que tira a fora dos outros, que aliviam o aperto e a asfixia. O que tem o dedo torcido, sentindo dor, empurra o oponente com a mo mordendo-lhe a orelha. Mas, os expectadores, no tolerando o lutador desleal, apedrejam-no19 de mas.

    No deixemos que aquela lebre nos escape! Vamos ca-la, junto com os Amores. Ela est sentada sob as macieiras, comendo as mas cadas no cho, deixando muitas comidas apenas pela metade e eles a caam e perseguem. Este aqui, batendo as mos; aquele gritando, aquele outro agitando o manto. Alguns, gritando, voam

    16 sardnicas: ; calcednia vermelho-parda usada nos camafeus helensticos e romanos.17 obra de hefesto: a observao graciosa, pois so de Hefesto / Vulcano os escudos de Aquiles (Hom., Il., 18, 478-608) e de Eneias (Verg., Aen., 8, 626-731), passagens que j so, elas mesmas, cfrases.18 estes: . Para a audincia interna o menino e as outras personagens ouvintes pronome propria-mente demonstrativo; para a audincia externa os leitores e eventuais ouvintes da leitura anafrico.19 apedrejam-no: apesar de tratar-se de mas, mantive apedrejar pelo timo do verbo grego, em que se v , pedra.

    sobre a lebre, outros do-lhe caa a p. Um deles se lana sobre ela. O animal se esquiva, outro deles tenta peg-la pelas patas de trs e pega, mas ela escapa.

    Ento, rindo e se jogando no cho, uns de lado, outros de bruos e outros ainda de costas, todos se mostram desapontados. Nenhum deles despede flechas, mas todos tentam pegar a lebre com a mo, viva, para oferec-la em sacrifcio e deleitar Afrodite.

    Voc sabe que se diz sobre a lebre: que nela h muito de Afrodite. Diz-se da fmea que amamenta os que gerou e concebe novamente enquanto ainda est amamentando.20 E at emprenha quando j se encontra prenhe e em nenhum momento seu ventre encontra-se infecundo.

    O macho gera filhotes conforme a natureza dos machos e tambm fica prenhe, contrariamente ao que natural. Assim, os pervetidos dentre os amantes reconheceram na lebre alguma persuaso ertica, ao caar meninos com artifcios agressivos...

    Mas deixemos esses assuntos aos homens injustos e indignos de serem correspondidos no amor e voc, junto comigo,21 olhe para Afrodite. Mas onde est e em que parte do pomar? Voc v uma gruta, donde corre um fio de gua do mais puro azul, fresca e potvel, que se ramifica para matar a sede das macieiras? Perceba Afrodite l: creio que as ninfas lhe dedicaram um templo, por t-las feito mes dos Amores, e por isso, mes afortunadas.

    O espelho prateado, as sandlias douradas e os broches de ouro, tudo ali dedicado no sem motivo. Dizem pertencer a Afrodite, pois isso est gravado neles e mostra que so oferendas das Ninfas.

    Os Amores oferecem a Afrodite as primcias das macieiras e circundando-a rogam-lhe que seu pomar seja belo.

    20 Sobre esta caracterstica da lebre, ver Herdoto (3, 108, 10): , , , , , , que a lebre caada por todas as feras e tambm por pssaros e homens, e assim, muito frtil. Dentre todos os animais somente ela emprenha estando j prenhe, e dos filhotes no tero alguns j tm pelos, outros ainda no; uns esto se formando no tero da me; outros, acabaram de ser concebidos; e Plato (Prot.,321b.5): , ' , , e a alguns deu proles pequenas, mas aos que servem de alimento queles, deu proles numerosas, buscando assim, a preservao da espcie. Traduo minha.21 junto comigo: , dativo tico.

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    rosngela santoro de souza amato

    43

    eikones de filstrato, o velho: um mtodo

    breve comentrio

    Vejamos o fragmento 2 Vogt de Safo:

    .[ ]. [ ] [], - []

    ,

    Para c, at mim, de Creta [.] [ ] templo sagrado on[de] e (...) e agradvel bosquede macieira[s], e altares nee so esfume- ados com [in]cens.e nele gua fria murmura por entre os ramos de macieiras....22

    evidente a correspondncia de cenrios. A Afrodite pertencem os elementos natu