ALIANÇAS MESTIÇAS

download ALIANÇAS MESTIÇAS

of 10

Transcript of ALIANÇAS MESTIÇAS

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    1/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    ALIANAS MESTIAS ENTRE GILLES DELEUZE & FELIX GUATTARI,

    DONNA HARAWAY E GLRIA ANZALDA

    Dolores Galindo e Danielle Milioli

    Donna Haraway e Deleuze & Guattari compartilham o interesse em descentrar o

    pensamento da figura humana, a partir de um olhar para o no humano (ou mesmo para

    o inumano no caso destes ltimos), da recusa em subtrair a importncia das conexes

    entre humanos e no humanos e tambm de romantizar as relaes entre ambos. Donna

    Haraway (2008) pontua muitos incmodos em relao s discusses feitas por Gilles

    Deleuze e Flix Guattari sobre os animais, principalmente pelo desprezo que possuem

    pelos animais domsticos, mas considera que Rosi Braidotti a vem ajudando a

    estabelecer uma leitura mais frutfera dos autores. Donna Haraway v no trabalho de

    Rosi Braidotti uma leitura interessante dos devires animais e, com base nela, passa a ler

    alguns trabalhos de Deleuze & Guattari, ainda que mantenha ressalvas.

    Ao descentrarmo-nos da figura humana, apostamos na afirmao de alteridades

    contrassubjetivas distintas daquelas constitudas na modernidade clssica enviesada por

    linhas heteropatriarcais. O devir, entendido como virtualidades que atravessam o sujeito

    e o desestabilizam, no opera segundo uma cronologia, uma sequncia temporal linear,

    onde um eu centralizado se desdobra em outros. Braidotti (2005) produz articulaes

    entre os estudos feministas e a filosofia da diferena deleuziana. Um desafio nessa

    conexo aponta a autora, consiste em desviar-se dos hbitos da linearidade e da

    objetividade fraca que persistem como redutos hegemnicos. Pensar atravs de fluxos e

    interconexes; pensar no movimento; incorporar o conhecimento. Um dos modos de se

    engajar nesta tarefa , de acordo com a autora, oferecer novas figuraes que deem

    conta do nomadismo no qual estamos em processos de devir e, portanto, escapamos aos

    atravessamentos molares que assinalam fixaes identitrias.

    O devir pressupe, portanto, um sujeito no unitrio (DELEUZE; GUATTARI,

    1992), ignora uma ordem natural das espcies e suas snteses; ele transespecfico,

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    2/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    conectando por diferena positiva, [...] no uma evoluo, pelo menos no uma

    evoluo por descendncia e filiao. O devir no produz nada por filiao; toda filiao

    imaginria. O devir sempre de outra ordem que a ordem da filiao. Ele pertence

    aliana (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.19). Devires estabelecem relaes entre

    heterogneos que estariam apartados, o que possibilita alianas monstruosas, na mesma

    medida em que impedem a reproduo do mesmo por filiaes intensivas e parentelas

    transrelacionais. Como na aliana entre vespa e orqudea, citada por Deleuze e Guattari

    (1997), onde nenhuma vespa-orqudea nascer. O que acontece nessa relao que

    ambas, vespa e orqudea, se liberam da reproduo do mesmo, numa cpula que as

    desterritorializa e as transforma.

    Ao contrrio da filiao hegemnica, nas quais as relaes so determinadas por

    consanguinidade e que visam a estabelecer heranas que perpetuam homogeneidades, a

    aliana um operador transontolgico que conecta por afinidades e produz

    multiplicidades. A aliana no uma relao de dois, mas entre-dois. Essa aliana no

    liga, no conjuga e no mistura dois pontos distantes; cria uma zona de

    indiscernibilidade entre pontos (VIVEIROS DE CASTRO, 2007), refaz os pontos e

    trama. Para Rosi Braidotti (2005), a subjetivao pode ser situada como [...] um

    processo intensivo, mltiplo e descontnuo de estabelecer interelaes (BRAIDOTTI,

    2005, p. 92). no encontro com os outros que as subjetivaes se alinham e

    desalinham.

    Com o intuito de produzir figuraes nmades das subjetividades, Braidotti

    (2002; 2005) assume um compromisso com identidades que coexistem, as quais so

    simultneas umas s outras e, por isso, multidimensionais. um compromisso com uma

    subjetividade entendida como passagem, que resiste a qualquer encontro (como no casodo migrante que se mantm preso aos valores natais) e nem marca uma separao

    radical que obriga a permanecer no outro sem possibilidades de retornos (como no caso

    do exilado). um compromisso com um [...] tipo de conscincia crtica que resiste a se

    ajustar aos modos de pensamento e comportamento codificados(BRAIDOTTI, 1996,

    p.10).

    Nos estudos feministas, Donna Haraway (1995), com a noo de objetividade

    encarnada, trazida de Sandra Harding, prope que a pesquisa em cincia sempre um

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    3/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    olhar mediado, j que olhamos [...] desde um corpo, um corpo complexo, contraditrio,

    estruturante e estruturado, versus a viso de cima, de lugar nenhum (1995, p. 30). Ao

    buscar uma perspectiva parcial da questo tida como cientfica do feminismo, uma

    escritura feminista do corpo, a autora reclama o sentido da viso para encontrar os

    caminhos singulares dessa escritura, propondo que as explicaes cientficas de corpos

    so [...] possibilidades visuais altamente especficas, cada uma com um modo

    maravilhosamente detalhado, ativo e parcial de organizar mundos (HARAWAY, 1995,

    p.22).

    Para Braidotti (2005), inspirada em Donna Haraway, em entrecruzamento com a

    Filosofia da Diferena, figuraes no so ilustraes ou representaes do real, mas

    mapas/cartogramas materializados, incorporados, no politicamente neutros e que fazem

    visualizar as perspectivas situadas dos sujeitos. Nesse sentido, figuraes podem

    converter a viso estratificada do sujeito que resiste nos hbitos de pensamentos

    historicamente estabelecidos e que mantm uma viso padro da subjetividade

    humana.

    La creatividad vertida en esta bsqueda de figuraciones alternativas seexpresa en su capacidad para representar el tipo de sujetos nmadas en

    el que ya nos hemos convertido y las localizaciones sociales ysimblicas que habitamos. En una clave ms terica, la bsqueda defiguraciones consiste en un intento de recombinar los contenidospropositivos y las formas de pensamiento para que, de este modo,puedan sintonizar con las complejidades nmadas. De esta forma,tambin desafia la separacin entre la razn y la imaginacin.(BRAIDOTTI, 2005, p.16).

    Pensando nos nomadismos e fronteiras, encontramos em Borderlands, figura

    criada por Glria Anzalda (1987), tanto para designar uma localizao geogrfica

    especfica a fronteira sudoeste entre o Mxico e o Texas quanto para englobarsignificados metafricos relativos s fronteiras entre a psique, o sexual e o espiritual,

    [...] um lugar vago e indeterminado criado pelo resduo de uma fronteira emocional

    (p. 3, traduo nossa) uma linha de fuga e um habitat provisrio. Em Borderlands,

    Glria inventa formas relacionais e inclusivas, baseadas na afinidade, mais do que nas

    classes sociais. A borda se define como linha divisria, enquanto as borderlands so

    lugares vagos e indeterminados criados com os resduos emocionais das fronteiras no

    naturais. Ecologias na barriga do monstro no deixam de ser mestias; atuam

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    4/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    inventando lugares fronteirios; rachando universalismos em prol de saberes

    localizados, posicionamentos mveis sem apelo a polticas de identidade.

    Para Glria Anzalda, no sangramento que escorre da frico entre dois mundos que visualizamos uma cultura mestiza, uma cultura que se situa no meio onde a

    coliso inevitvel. Esse meio no se trata de um lugar de unio daquilo que foi

    separado, nem de um equilbrio de foras opostas. Esse meio a relao sempre

    provisria e devastadora que conduz a futuros outros, onde novos mitos, ou seja, novas

    formas de visualizao da realidade se agenciam e agenciam uma epistemologia da

    conscincia mestiza; uma nova concepo de pessoalidade que atravessada por

    tradies aparentemente contraditrias.

    De acordo com essa feminista chicana e nascida no sul do Texas, os espaos para

    uma poltica que alimentariam epistemologias voltadas para mundos menos estruturados

    por eixos de dominao estariam numa nova Fronteira, cortante como o arame farpado.

    Anzalda (1987) pensa essa figurao a partir das problematizaes que surgem na

    fronteira que isola os Estados Unidos e o Texas: a fronteira [...] una herida abierta

    onde o Terceiro Mundo fricciona o primeiro e sangra (p. 3, traduo nossa), so muitas

    as mortes no atravessamento feito por coiotes e/ou mesmo atravessamentos solitrios.

    Em seus trabalhos posteriores, Glria Anzalda, ao invs da aposta numa

    conscincia mestia, passa apostar em polticas de conhecimento mestias. Este tambm

    incorpora um modo de pensar no binrio e conexionista e se desenvolve muitas vezes

    em situaes de opresso. Conhecer seria, para ela, [...] uma epistemologia holstica

    que incorpora a auto-reflexo, imaginao, intuio, experincias sensoriais,

    pensamento racional, ao fora-dirigida, e as preocupaes de justia social

    (KAETING, 2006, p. 10, traduo nossa). Segundo Keating (2006), h no deslocamento

    para a problematizao da produo de conhecimento, um maior desenvolvimento do

    imaginrio, do ativismo espiritual e das dimensoes polticas implcitas nas teorias

    anteriores de Glria Anzalda. um processo epistemolgico incorporado que parte da

    viso mestia de um contexto, que nos mostra como podemos coletar informaes de

    eventos, emoes, memrias, sonhos e outros elementos entrelaados da experincia

    biogrfica.

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    5/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    Esse conhecimento, definido como relacional, permite mestiar disparidades.

    Glria Alzalda prope que sustentemos uma confiana numa poltica relacional de

    viso de mundo. Como bem enfatiza Keating (2006), uma das principais contribuies

    de Anzalda como ela interconecta mundos. Ao encontro da filosofia da diferena,

    convida-nos a pensar atravs de fluxos e interconexes; pensar no movimento;

    incorporar o conhecimento; apostar na imaginao ecolgica. Um dos modos de

    assumir esse desafio construir figuraes que mostram possveis e cartografam

    relaes existentes. Esta vem sendo uma das principais contribuies do pensamento de

    Dona Haraway que aposta nas figuraes como recursos potentes para mundos

    possveis, conforme o assinala Rosi Braidotti (2005):

    As figuraes tentam traar uma cartografia das relaes de poder quedefina essas respectivas posies. [...] expressam diferenteslocalizaes simblicas e socioeconmicas. Levantam um mapacartogrfico das relaes de poder e, deste modo, tambm podemservir para identificar os possveis lugares e estratgias de resistnciaspolticas. (BRAIDOTTI, 2005, p.15, traduo nossa).

    Haraway (2008) escreve que figuras a ajudam a lutar no interior da carne do

    mundo-mundano sendo construdo por humanos e no humanos:

    Figuras coletam pessoas atravs de seu convite para habitar a histriacorporal contada em seus contornos. As figuras no sorepresentaes ou ilustraes didticas, mas sim os nodos ou nsmaterial-semiticos nos quais diversos corpos e significadoscoconstituem um ao outro. Para mim, figuras sempre estiveram onde obiolgico e o literrio ou artstico vem juntos com toda a fora darealidade vivida. Meu prprio corpo apenas uma figura, literalmente.(p.4, traduo nossa).

    A mestia de Anzalda (1987), que situamos como uma figurao, conta-nos

    sobre a dor de viver e pensar desde as fronteiras numa poltica opositiva, com plena

    capacidade para ler as redes do poder opressor, porm, ao mesmo tempo, em busca decicatrizao para as marcas dos cortes feitos pela reao cultura dominante, a fim de

    estar nos dois lados ao mesmo tempo e ampliar sua viso. Ela quer enxergar [...]

    atravs de olhos de serpente e de guia (p. 78-79, traduo nossa), pois s assim

    possvel atravessar as fronteiras rumo a outros territrios; agir, ao invs da estagnao

    repetitiva do (re)agir. Um passo decisivo para a conscincia mestia desaprender a

    dicotomia puta/virgem, visualizando a Coatlicue (deusa asteca da vida e da morte) na

    Me, Guadalupe.

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    6/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    Para Liliana Vargas-Monroy (2011), as mestias de Donna Haraway e de Glria

    Anzldua so irms, todavia, entre elas h uma linha divisria. A primeira faz uma

    aposta maior na reconstruo de novos modos de fazer cincia, mantendo o dilogo com

    o campo dos estudos crticos sobre cincia e tecnologia, enquanto a segunda se despede

    das dicotomias e tambm da pretenso de fazer cincia, estando mais prxima dos

    estudos ps-coloniais, inclusive latino-americanos. inegvel que a mestia de

    Anzalda foi uma inspirao para a mestia de Donna Haraway, sendo refigurada na

    barriga do monstro ciborgue e do testemunho modesto.

    As pistas de Donna Haraway e de Glria Anzalda apostam numa lgica do

    cuidado com o outro que no est vinculada a um feminino maternal essencializado.

    Interpelam-nos a uma tica do viver com, a prticas mundanas que, nos textos de Donna

    Haraway, se encontram permeadas de figuras provenientes da fico, das suas

    caminhadas pelas ruas, dos anncios, de fragmentos de mensagens trocadas com amigos

    e amigas, da arte, da famlia queerque cria parentescos inusitados. Viver com monstros

    e percorrer desertos.

    Desertos que tambm podem ser figurados como monstruosos, porque nos

    provocam ao desvio da linearidade e da objetividade fraca, as quais persistem comoredutos hegemnicos daqueles que no querem se ferir no mundo, numa anestesia

    infinita. Ao habitarmos as barrigas dos monstros e percorrermos desertos, inventamos

    vidas possveis que conjugam elementos atrozes como as guerras, a dizimao, a dor e,

    a partir delas so revigoradas linhas possveis de inveno de modos de vida. Ao

    habitarmos os desertos, assumimos tambm novas formas corporais e escapamos das

    dicotomias que nos delegam a estatutos subalternos, ainda que carreguemos cicatrizes, a

    pele queimada.

    Os traados biogrficos de Donna Haraway esto repletos de incompatibilidades

    que ela faz questo de no esconder. Assim, critica a tecnocincia e apaixonada pelos

    laboratrios, branca e dialoga com feministas chicanas. Ao evocarmos os traados

    biogrficos de Glria Anzalda, vemo-nos nos desertos, nas comunidades emigradas e

    no brancas dos Estados Unidos; essa feminista chicana talvez nunca tenha ocupado a

    barriga do monstro, relatando um constante mal-estar com o seu lugar como escritora,

    nem mexicana, nem americana, bem as potncias desse entre-lugar. Glria limpou

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    7/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    campos ao sol, tinha uma relao ambgua com a escrita, a quem via como alfabetismo

    estrangeiro, apesar dos vrios prmios literrios que recebeu ao longo da vida. Glria

    Anzalda nos convoca a percorrer com ela as paisagens das bordas, as muitas lnguas

    nem sequer reconhecidas, dizendo-nos de desdobramentos ecolgicos a partir de modos

    de vida que enfrentam, como um dos seus desafios, a sobrevivncia, o trabalho sob o sol

    forte, a dor de no pertencer a qualquer lugar. Pistas de um pensamento feminista para

    viver na barriga do monstro e nos desertos, sem ingenuidades salvacionistas, pautado

    por uma objetividade forte, localizada, parcial; nem branca, nem masculina, nem

    universalista por princpio. Para Haraway (1995, p.23), a viso dos subjugados tem [...]

    ampla experincia com os modos de negao atravs da represso, do esquecimento e

    de atos de desapario - com maneiras de no estar em nenhum lugar, ao mesmo tempo

    que se alega ver tudo.

    Ver desde as posies situadas no um processo que se concebe

    autonomamente, j que uma localizao um territrio espao-temporal concebido

    coletivamente, sempre coabitado. Difere de qualquer dispositivo de identificao

    simples e que relega a outrem um lugar de fala identitria e fixa. A objetividade

    encarnada requer, nesse sentido, que o corpo seja visto como agente, no como um

    recurso. Haraway (1995, p.41) nos esclarece, ainda:

    Talvez o mundo resista a ser reduzido a mero recurso porque - nome/matria/murmrio - mas coiote, uma figura para o sempreproblemtico, sempre potente, vnculo entre significado e corpos. Acorporificao feminista, as esperanas feministas de parcialidade,objetividade e conhecimentos localizados, estimulam conversas ecdigos neste potente ndulo nos campos de corpos e significadospossveis. aqui que a cincia, a fantasia cientfica e a ficocientfica convergem na questo da objetividade para o feminismo.

    Haraway (2004) faz algumas ressalvas mestia de Glria Anzalda, que, para

    ela,produz um [...] altar ecltico sobre o dominador (s/p, traduo nossa). Para atuar

    essa crtica, relevante dizer que as vidas, vozes e escritas de ambas so bastante

    diferentes. Donna Haraway est firmemente localizada dentro da barriga do mostro da

    tecnocultura contempornea, mulher, branca e descendente de irlandeses que

    migraram para os Estados Unidos. Glria Alzalda, por sua vez, nasceu no Vale do Rio

    Grande, no sul do Texas, em 1942, numa famlia de origem mexicana. Especializou-se

    em ingls para desafiar seus professores racistas, tornou-se escritora para sobreviver,

    mas tambm para sentir e acreditar nos mundos possveis e, assim, entre poesia, ensaios

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    8/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    tericos, contos, narrativas autobiogrficas, entrevistas, livros infantis e antologias de

    vrios gneros, se transformou em uma das mais importantes escritoras na resistncia

    chicana, lsbica e queer. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza, publicado em

    1987, uma coleo hbrida de poesia e prosa, foi escolhido como um dos 100 Melhores

    Livros do Sculo pelo Hungry Mind Review e Utne Reader.

    A autora chicana discorre sobre as imposies que, durante a sua escolarizao,

    misturavam de modo negativo e destrutivo proteo e dominao. Glria se recusa a

    glorificar aspectos de sua cultura que a prejudicaram em nome de sua proteo. Para ela,

    ns tememos na mulher tanto a fora no divina (animalidade, sexualidade), quanto

    divina (Deus em ns). A essa mulher da qual fala Anzalda, tomamos como uma

    figurao:

    Cultura e religio buscam proteger-nos dessas duas foras. Ofeminino, em virtude da criao de entidades de carne e osso em seuestmago (ela sangra todo ms, mas no morre), em virtude de estarem sintonia com os ciclos da natureza, temido. Porque, segundo ocristianismo e a maioria de outras religies, a mulher carnal, animal,e perto do no divino. Ela deve ser protegida. Protegida de si mesma.A mulher o estranho, o outro. Ela reconhecida como parte dopesadelo do homem, sua besta Shadow-fera. A viso dela os manda

    para um frenesi de raiva e medo. (ANZALDA, 1987, pg 17,traduo nossa).

    a partir da recusa a aderir a eixos de dominao que Gloria Anzalda se

    prope criar outro territrio uma cultura mestia que ela mesma se desafia a

    construir, a partir do solo feminista, e por quem ela assume responsabilidade. Para a

    conscincia mestia, o primeiro passo construir um inventrio, pensar nas suas

    heranas, diferenciar entre o herdado, o adquirido e o imposto. Nas palavras de

    Anzalda (2005):Esse passo representa uma ruptura consciente com todas as tradiesopressivas de todas as culturas e religies. Ela comunica essa ruptura,documenta a luta. Reinterpreta a histria e, usando novos smbolos, dforma a novos mitos. Adota novas perspectivas sobre as mulheres depele escura, mulheres e queers. Fortalece sua tolerncia (eintolerncia) ambigidade. Ela est disposta a compartilhar, a setornar vulnervel s formas estrangeiras de ver e de pensar. Abre mode todas as noes de segurana, do familiar. Desconstri, constri.Torna-se uma nahual, capaz de se transformar em uma rvore, em umcoiote, em uma outra pessoa. Aprende a transformar o pequeno "eu"

    no "eu" total. Se hace moldeadora de su alma. Segn la concepcinque tiene de simisma, as ser. (p.4).

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    9/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    Em sua histria, Glria apanhou na palma das mos por falar espanhol, quando

    deveria ser americana, e, ao falar ingls, era acusada de traio por seu povo, de falar a

    lngua do opressor, mas multiplicou sua voz, tornando potncia os mltiplos

    alfabetismos e os perigos que vivia. Escrevia ela: Ns, mulheres do terceiro mundo,

    no podemos transcender os perigos, no podemos ultrapass-los. Ns devemos

    atravess-los e no esperar a repetio da performance(ANZALDA, 2000, p. 229).

    Est em jogo injetar doses de alegria nas prticas localizadas, de modo a transform-las

    em instrumentos de resistncia e inveno. As palavras/imagens de Glria Anzalda

    reverberam dez anos aps a sua morte, ocorrida em 2004, quando ela acabara de

    concluir sua tese de doutorado. As palavras/imagens continuam a inquietar sem

    qualquer concesso aos purismos do empresariamento dos nossos modos de vida sob a

    forma de capital humano e lgica do cuidado com o outro, que o anula enquanto

    diferena.

    Glria Anzalda nos fora, com delicadeza cruel, a escrever, a soltar a voz (essa

    voz, essa escrita que atravessada por devires outros que a constituem): ns, as

    chicanitas; ns, as latinas; ns... Adverte a respeito desta voz multiplicada e mltipla:

    no tentem vend-la por alguns aplausos ou para terem seus nomes impressos

    (ANZALDA, 2000, p. 235). Convida-nos a injetar doses de alegria numa vida

    devastadora, prxima do que Braidotti (2005; 2009) vem conceituando como sustentar

    devires em operaes micropolticas que resistem mercantalizao da vida sob a forma

    de polticas molares.

    Trata-se de persistir na aridez, nas fronteiras inscritas no corpo e nas que o corpo

    inscreve como bordas, aproveitar as rachaduras que essa aridez efetua no solo e

    atravess-las; chegar ao subsolo; insistir na mudana e na relao e no nacontemplao esttica. Vivemos entre perigos, e a objetividade forte feminista - nos

    abre a [...] estabelecer conversas no inocentes atravs de nossas prteses, includas a

    as tecnologias de visualizao (HARAWAY, 1995, p.38) herdadas das cincias

    modernas que reinventamos e nos reinventam, em alianas que geram singularidade e

    diferenas nas lnguas bifurcadas prenhes e saturadas de alfabetismos.

    Qual filosofia da diferena nos importa, em conexo com Deleuze e Guattari?

    Essa pergunta nos incomoda; uma ferida dessas que no se quer ver cicatrizar, ao

    custo de perder o contato com o prprio corpo. E, assim, feridas, caminhamos por entre

  • 7/26/2019 ALIANAS MESTIAS

    10/10

    Captulo produzido para o Livro Lemos, F. et al. Criaes transversais com Gil les Deleuze:

    artes, saberes e polti ca. (no prelo)

    os desertos ao modo nmade como aprendemos com Deleuze e Guattari, como

    refigurado por Rosi Braidotti e Glria Anzalda. O corpo da escrita uma fronteira que

    habitamos -borda de arame farpado que sangra sem ciclos definveis.

    REFERNCIAS

    ANZALDA, G.Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: AuntLutte Books, 1987.

    ______. Borderlands/ La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt LutteBooks, 1999. [Poemas traduzidos por Michelinny Veruschi]. Disponvel em:. Acesso em: 20 ago.2014.

    ______. Falando em lnguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo.Revista Estudos Feministas, v. 8, n.1, p.229-236, 2004.

    BRAIDOTTI, R. Metamorfosis:hacia una teoria materialista del devenir. Madrid:Akal, 2005.

    ______.Transposiciones: sobre la tica nmada. Barcelona: Gedisa, 2009.

    DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que a filosofia?So Paulo: Editora 34, 1991.

    ______. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. So Paulo: Editora 34, 1997. v. 4.HARAWAY, D. Saberes localizados: a questo da cincia para o feminismo e o

    privilgio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7- 41, 1995.

    ______. TheTestigoModesto@Segundo_Milenio.HombreHembra_Conoce_Ocorratn:feminismo y tecnociencia. Barcelona: UOC, 2004. (Coleccin NuevasTecnologas y Sociedad)

    http://www.musarara.com.br/tres-poemas-de-gloria-anzalduahttp://www.musarara.com.br/tres-poemas-de-gloria-anzaldua