ALICE RANGEL DE PAIVA ABREU TRABALHO E QUALIFICAÇÃO

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ALICE RANGEL DE PAIVA ABREU TR ABALHO E QUALIFICAÇÃO NA INDÚSTRIA DE CONFECÇÃO1 ' A primeira versão deste trabalho foi apresentada no XII Congresso Internacional de Sociologia, julho de 1990, em Madri, Espanha. Agradeço os comentários de Danifàle Kergoat, Helena Hirata e Dominique Fougey- rollas, 2 COYLE, Angela. Sex and Skill h the Organization of the ClothIng Industry. In: WEST, J. (ed.), Work, Women and lhe Labour Market. Loncion: Routledge & Kegan Paul, 1982. SOLINAS, Giovanni. Labour Market Segmentatton and Worker's Careers: the Case of the Italian Knitwear industry. Cambridge Journal ai Economlcs, 6 (4), 1982. 3 HIRATA, Helena, KERGOAT, Danièle. Divisão sexual e psicopatologia do trabalho (mimeo). XI Encontro Anual da ANPOCS. Águas de São Pedro, SP, 20-23 outubro, 1987. HUMPHREY, John. Gender and Work in lhe Mira World. Sexual Divislons In the Brazilion Industry, Londres: Tavistock Publications, 1987. Estudos recentes sobre a indústria de confecção em diferentes países apontam para o constante pro- cesso de desqualificação do trabalho como resultado da modernização industrial e para a Importância do gênero nas novas divisões entre ocupações qualificadas e não qualificadas'. Multo tem sido escrito sobre as diferenças no comportamento dos homens e das mulheres no local de trabalho 3 . O argumento central de Kergoat, de que é possível opor uma forma de comportamento masculina baseada em clivagens e uma forma de comportamento feminina baseada em atomização, é desenvolvido para abarcar atitudes de gênero em relação ao treinamento, promoção, resolução de conflitos, produção de normas, percep- ção e valoração de qualificações. A principal . consequência dessas diferenças é a extrema dificulda- de experimentada pelas mulheres trabalhadoras em cobrir a distância entre ação individual e ação coletiva. Utilizando material relacionado a três diferentes situações de trabalho na indústria de confecção no Brasil 4 - costureiras a domicílio, operárias fabris e assalariadas de uma pequena confecção de roupa feminina - será possível discutir as diferentes percepções e avaliações das qualificações entre os três grupos de costureiras entrevistadas, os diferentes processos de aquisição dessas qualificações, bem como as atitudes em relação a salários, promoções, chefias e trajetórias profissionais. Nas três situações, a extrema personalização das relações de trabalho dificulta a resolução coletiva das tensões e conflitos e leva a soluções individuais. ESTUDOS FEMINISTAS 293 N. 2/93

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ALICE RANGEL DE PAIVA ABREU

TRABALHO E QUALIFICAÇÃO

NA INDÚSTRIA DE CONFECÇÃO1

' A primeira versão destetrabalho foi apresentada noXII Congresso Internacionalde Sociologia, julho de 1990,em Madri, Espanha.Agradeço os comentáriosde Danifàle Kergoat, HelenaHirata e Dominique Fougey-rollas,

2 COYLE, Angela. Sex andSkill h the Organization ofthe ClothIng Industry. In:WEST, J. (ed.), Work, Womenand lhe Labour Market.Loncion: Routledge & KeganPaul, 1982.SOLINAS, Giovanni. LabourMarket Segmentatton andWorker's Careers: the Caseof the Italian Knitwearindustry. Cambridge Journalai Economlcs, 6 (4), 1982.

3 HIRATA, Helena, KERGOAT,Danièle. Divisão sexual epsicopatologia do trabalho(mimeo). XI Encontro Anualda ANPOCS. Águas de SãoPedro, SP, 20-23 outubro,1987.HUMPHREY, John. Genderand Work in lhe Mira World.Sexual Divislons In theBrazilion Industry, Londres:Tavistock Publications, 1987.

Estudos recentes sobre a indústria de confecçãoem diferentes países apontam para o constante pro-cesso de desqualificação do trabalho como resultadoda modernização industrial e para a Importância dogênero nas novas divisões entre ocupações qualificadase não qualificadas'. Multo tem sido escrito sobre asdiferenças no comportamento dos homens e dasmulheres no local de trabalho3. O argumento central deKergoat, de que é possível opor uma forma decomportamento masculina baseada em clivagens euma forma de comportamento feminina baseada ematomização, é desenvolvido para abarcar atitudes degênero em relação ao treinamento, promoção,resolução de conflitos, produção de normas, percep-ção e valoração de qualificações. A principal .consequência dessas diferenças é a extrema dificulda-de experimentada pelas mulheres trabalhadoras emcobrir a distância entre ação individual e ação coletiva.

Utilizando material relacionado a três diferentessituações de trabalho na indústria de confecção noBrasil4 - costureiras a domicílio, operárias fabris eassalariadas de uma pequena confecção de roupafeminina - será possível discutir as diferentes percepçõese avaliações das qualificações entre os três grupos decostureiras entrevistadas, os diferentes processos deaquisição dessas qualificações, bem como as atitudesem relação a salários, promoções, chefias e trajetóriasprofissionais. Nas três situações, a extremapersonalização das relações de trabalho dificulta aresolução coletiva das tensões e conflitos e leva asoluções individuais.

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KERGOAT, Danlèle. LuttesOuvrietes et RapportsSociaux de Sexe: de laconstruction du sujetcollectif dans l'univers detravoul ouvner. SeminárioInternacional "Políticas degestão, relações detrabalho e produçãosimbólica". São Paulo, 16017 de agosto, 1989.

4 As entrevistas foramrealizadas em 1978 e 1979,para urna pesquisa sobre otrabalho a domicílio naindústria de confecção noRio de Janeiro. Para umtrabalho mais recente sobreo mesmo tema, verABREU, Alice Rangel dePaiva, SORJ, Bila. Trabalho aDomicílio e Relações deGênero. As costureirasexternas no Rio de Janeiro.In: ABREU, Alice Rangel dePaiva, SORJ, Bila (orgs,). OTrabalho invlstvet Estudossobre Trabalhadores aDomicilio no Brasil Rio deJaneiro: Rio Fundo Editora,1993,

5 Foram entrevistadas 20trabalhadoras mulheres edois homens. Entre asmulheres, 16 eram solteiras,três casadas e umadivorciada; como nosdemais grupos estudados,neste a faixa etária eramuito diferente: 11 tinhammenos de 24 anos. A grandemaioria trabalhava hámenos de dois anos nestafábrica.

6 As entrevistas foramrealizadas com todas as 11costureiras internas. Dessas,sete tinham entre 27 e 32anos, duas cerca de 40 anose uma 59 anos; apenas umatinha 19 anos. Cinco dascostureiras eram solteiras,quatro casadas e duasdivorciadas. Mas apenasquatro tinham filhosmorando com elas e emdois desses casos os filhoseram jovens adultos que

A fábrica, o ateliê, a casa - as três situações de trabalho

O primeiro grupo de 22 entrevistas foi realizadocom costureiras de uma fábrica de camisas, detamanho médio para o setor, empregando cerca de100 operários e com uma produção de cerca de 1.200camisas por dias.

O segundo grupo de entrevistas foi realizado comcostureiras internas de urna pequena empresa deconfecção de roupa feminina de alta qualidade, comuma produção mensal de cerca de 2,000 peças. NoBrasil, o crescimento das pequenas empresascapitalistas de moda feminina foi especialmente intensono Início dos anos 70. Apesar de não serem exatamenteestabelecimentos de alta costura, estas pequenasempresas são as que ditam a moda no Brasil. São elasque determinam as principais tendências em cadaestação. A preocupação central está na qualidade esofisticação dos artigos produzidos, mais do que nosbaixos preços e na quantidade. Seus principais clientessão butiques em cidades de todo o Brasil, que comprampequenas quantidades de cada modelo e exigem umaconstante oferta de novidades. Para enfrentar estemercado extremamente volúvel, essas empresasgeralmente produzem três coleções por ano - inverno,verão e alto verão - e freqüentemente lançam novosmodelos no meio de cada estação. A necessáriaflexibilidade do processo de produção que tal sistemaexige é conseguida através de uma estrutura produtivaque centraliza certas fases da produção na empresamas externaliza a quase totalidade da montagem daspeças para costureiras a domicílio. Sua força de traba-lho Interna é, portanto, bastante reduzida: 11 costureirasnum total de cerca de 25 pessoas6.

O terceiro grupo de entrevistas foi realizado comcostureiras a domicílio que trabalham para empresas deconfecção do tipo descrito acima. Todas trabalham naprópria casa, em máquinas de costura de sua proprie-dade. Além da usual máquina de costura caseira,muitas das costureiras a domicílio tinham também umamáquina de costura Industrial, muito mais veloz, permi-tindo um aumento Importante de sua produtividade.

As costureiras a domicílio apresentamcaracterísticas bastante distintas dos dois gruposanteriores, caracterizando-se pela presença maciça demulheres mais velhas'. A distribuição etária das externaspode ser explicada em parte pelo tipo de trabalho querealizam, que requer um nível de experiência poucocomum em mulheres muito jovens. Mas para a grandemaioria, o casamento é um fator muito importante naescolha do trabalho a domicílio. Muitas das externas

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ainda moravam com a mãe.Todas tinham vindo deoutros estados do Brasil,nove do Nordeste. Das onze,seis trabalhavam há mais dequatro anos nesta empresa,duas há mais de dois anos etrês há menos de um ano.

'Das 18 costureiras externasentrevistadas, todas tinhammais de 26 anos e seistinham mais de 50. Todaseram casadas ou pelomenos tinham sido.

"Das 18 entrevistadas,apenas quatro não tinhamfilhos morando com elas eoito tinham todos os filhosabaixo de 14 anos.

começaram a trabalhar bastante jovens, mas todasdepois do casamento. Além das conhecidas restriçõespara a participação feminina no mercado de trabalho -filhos, afazeres domésticos, a ideologia do papelfeminino - para multas das externas entrevistadas ocasamento tinha significado uma mudança no seu localde residência, Indo para subúrbios distantes, onde aschances de conseguir um trabalho assalariado fora decasa eram extremamente reduzidas. Cuidar dos filhos étambém um fator importante na escolha desse tipo derelação produtivas.

As três situações de trabalho agregam, portanto,uma mão-de-obra bastante diferenciada em relação àidade, ao estado civil e à maternidade.

Divisão do trabalho e organização da produção

A organização da produção na fábrica decamisas segue o padrão conhecido de extremaparcelização de funções. Ao contrário das duas outrassituações, é possível encontrar alguns homens traba-lhando na produção, todos em tarefas qualificadasrelacionadas ao corte e à modelagem. O mais altosalário da força de trabalho direta é do modelista, umhomem. Outras funções bem pagas estão relacionadasàs operações de corte e preparação para o corte e sãoocupadas por sete trabalhadores, também todoshomens. As outras 67 operárias trabalhando diretamentena produção são mulheres. Há igualmente muitoshomens empregados em outras tarefas, comoempacotamento, contabilidade e aimoxarifado.

Cada fase da produção é organizada em dife-rentes departamentos. Todas as tarefas de modelageme corte ficam fisicamente separadas do setor de costurae são, como já foi visto, executadas por homens. Aprincipal razão alegada para essa preponderância detrabalhadores nesse setor é a de que o trabalho é muitopesado, devido ao transporte de grandes peças detecido. Depois do corte, os pedaços de fazenda sãoseparados em pacotes por operárias não qualificadas.O trabalho de montagem da camisa é dividido emvárias seções. Na seção de preparação, os pedaçosmenores da camisa são preparados e costurados -.bolsos, mangas, palas. Há em seguida uma seçãoespecial para colarinhos e punhos, onde trabalham ascostureiras mais qualificadas, com ajudantes menores. Acamisa é então fechada na seção de fechamento, queinclui algumas máquinas especializadas para overlocaras laterais e outras operações. Finalmente, as camisassão passadas e embaladas em outra seção. No setor decostura há duas supervisoras. Uma para a seção de

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preparação, a outra supervisionando as três outrasseções. As supervisoras, tal como o modellsta, sãomensalistas, ao contrário das costureiras que são pagaspor semana, recebendo um salário base e o restantepor produtividade.

A pequena empresa de confecção apresentauma organização da produção bastante diferente docaso acima. É de propriedade de duas sócias, quedividem as responsabilidades administrativas bem comoas atividades de criar e programar as coleções. Entre asassalariadas, a função central é, tal como na fábrica, ada modelista, que, no entanto, é uma mulher. Tambémaqui a modelista recebe o maior salário entre a mão-de-obra direta.

As tarefas de corte e das outras atividadesassociadas, como de enfestar e marcar o molde notecido enfestado, são todas realizadas por umacortadora mulher, com duas ajudantes, tambémmulheres. Onze costureiras e quatro trabalhadoras nosprocessos de acabamento (passadoria e embalagem)completam a mão-de-obra direta, todas mulheres. Seisoutros trabalhadores estão alocados a diferentesfunções, como estoquista e limpeza geral. Os únicosdois homens que trabalham na empresa atuam nestasfunções.

Todas as operações Iniciais de corte e pre-paração das peças são realizadas internamente. Aoperação de montagem, no entanto, é distribuídamajoritariamente para costureiras a domicílio. A equipeInterna de costureiras é utilizada apenas para fazeralgumas peças que serão, depois, distribuídas para ascostureiras a domicílio como modelo ou para fazerpeças especialmente sofisticadas. Todas as costureirastrabalham no sistema de montar a peça inteira, o quegarante um certo grau de autonomia e controle secomparado ao trabalho extremamente fragmentadodas grandes fábricas de confecção. Todas estãolegalmente registradas e recebem salários cerca de 30a 35% mais altos que o salário profissional da categoria.A empresa dá, além disso, várias vantagens extras,como um 14 salário e café da manhã e lanche.

As trabalhadoras a domicílio entrevistadas fazemum trabalho bastante parecido com as internas,montando as peças a partir do tecido já cortado echuleado; muitas delas fazem também operações deacabamento, como pregar botões, fazer casas parabotões e fazer bainhas. A empresa fornece geralmentetodos os aviamentos necessários, mas em muitos casosa linha tem que ser adquirida pela costureira. Apesar dea montagem não ser considerada uma tarefa com amesma qualificação da modelagem e do corte,

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considerados cruciais para a qualidade final doproduto, o trabalho realizado pelas trabalhadoras adomicílio não é simples e automático. Elas precisam tergrande experiência para montar a peça corretamentee sua qualificação na máquina é também importante.Pois apesar de teoricamente apenas montarem aspeças, as costureiras a domicílio passam grande partedo seu tempo fazendo ajustes e preparando as peçascortadas: as peças mal cortadas têm que ser aparadas,os modelos mais sofisticados precisam ser alinhavados,

As costureiras a domicílio entrevistadas fazem umtrabalho altamente diversificado. Elas raramente trazemo mesmo modelo duas semanas seguidas e muitasvezes têm que montar dois ou três diferentes modelosdurante a mesma semana. Esta mudança constante demodelo aumenta a dificuldade da operação demontagem, pois é necessário montar duas ou três peçasantes de alcançar o ritmo normal de trabalho.

As costureiras a domicílio são remuneradas porpeça e seu salário semanal varia tanto quanto onúmero de peças realizadas. Isso faz com que sejaextremamente difícil para as costureiras terem umaIdéia precisa de quanto ganham por mês. Há uma idéiarecorrente entre proprietários de empresas, costureirasinternas e as próprias costureiras a domicílio de queestas ganham em geral mais que uma operária defábrica ou de confecção. Esta observação ereiativizada pelo reconhecimento de que elas têm quetrabalhar mais. Mas, se quiserem, podem ganhar muitomais do que uma operária de fábrica ou mesmo do queuma costureira interna de pequena confecção.

Para tentar checar esta afirmação tão freqüente,foi realizada uma estimativa tomando como base aremuneração da semana anterior à entrevista ecomparada esta renda com o salário profissional dascostureiras de fábrica, Das 18 entrevistadas, apenasduas ganhavam substancialmente mais do que o salárioprofissional, mais ou menos o dobro. Oito ganhavamaproximadamente a mesma coisa e outras oitoganhavam cerca de metade do que ganhava umacostureira com seu nível de qualificação na fábrica.Uma explicação plausível para a idéia tão difundidados ganhos das costureiras a domicílio pode estarrelacionada à extrema heterogeneidade do seu ganhosemanal ou mensal. O fato de que possam ganharmulto durante dois meses do ano parece ser tomadocomo uma ocorrência permanente. As costureirastambém não levam em consideração os custosrelacionados às suas atividades de costura, como luz,eletricidade, manutenção da máquina, transporte. E,finalmente, nenhuma delas consegue precisar quanto

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tempo trabalha por dia, especialmente porque emtempos normais seu trabalho remunerado éconstantemente Interrompido por outras atividadesdomésticas. No entanto, trabalhar de noite e nos fins desemana parece prática corrente. Relatos de períodosespecialmente intensos, quando trabalhavam 16 a 18horas por dia, são freqüentes.

Outro fato que faz com que as mulheres avaliempositivamente o trabalho a domicílio apesar da baixaremuneração e da grande instabilidade do trabalho é apossibilidade de controlar suas horas de trabalho.Trabalhando sozinhas, elas podem decidir quando,como e com que velocidade devem trabalhar, sem ocontrole direto da hierarquia fabril. Este motivo é sempremencionado por aquelas costureiras que Já têm traba-lhado em fábricas e que têm experimentado o maisIntenso ritmo fabril.

Esta autonomia e, no entanto, relativa. Emépocas de muito trabalho as costureiras trabalhamlongas horas e têm que manter um ritmo puxado, ounão conseguirão acabar no prazo o trabalho daquelasemana. Em períodos de menor trabalho, é possívelsubordinar o ritmo do trabalho remunerado ao ritmo dacasa, parando para almoçar e jantar com a família epara ir buscar as crianças na escola. Apesar de vistacomo uma vantagem, essa subordinação ao ritmodoméstico Implica em mais trabalho, pois o local dascosturas tem que ser limpo várias vezes por dia.

Aprendizado, treinamento, qualificação

As entrevistas realizadas com as costureiraslevantam alguns pontos Interessantes em relação aoaprendizado da costura bem como em relação àsdiferentes qualificações exigidas pelos diferentesprocessos produtivos.

As costureiras internas da pequena confecçãosão todas consideradas "ótimas costureiras" e têmconsciência da sua habilidade no trabalho. Mas têmtambém consciência que a sua qualificação só poderiaser plenamente utilizada em pequenas empresas comoaquela onde se encontram no momento. Trabalharnuma grande fábrica de confecção não está nohorizonte de nenhuma delas, assim como nenhumatrabalhou nesse tipo de emprego.

Sua qualificação foi adquirida na esfera domés-tica, através de longos anos de prática fazendo suaspróprias roupas ou trabalhando para amigas ou vizinhas.Duas delas tinham também trabalhado como modista(costureira particular) durante alguns anos.

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O único treinamento formal que receberam foi,em geral, um curso de corte e costura, muito comum noBrasil, que ensina de fato quase que exclusivamente afazer moldes e cortar. Existe uma enorme oferta destetipo de curso, quer particulares ou organizados porentidades sociais. Ensinam diferentes métodos de fazermoldes, usando moldes de papel como material debase, mas nunca o uso efetivo da máquina. Seu públicoalvo são donas de casa que podem utilizar esseconhecimento para fazer sua própria roupa.

A difusão deste tipo de curso parece, à primeiravista, contraditório, uma vez que as habilidades queensinam - fazer molde e cortar - não serão utilizadasnum emprego remunerado para a Imensa maioria dasmulheres que o freqüenta. Mas, ao fornecer algumasIdéias básicas do processo de costura como um todo,eles permitem a prática doméstica de habilidades que,com o correr dos anos, irão proporcionar umaqualificação e proficiência necessárias para umemprego mais qualificado nas pequenas empresas deconfecção.

As trabalhadoras a domicílio apresentam umprocesso de aprendizado muito semelhante e tambémsão vistas como e se consideram "boas costureiras". Épossível afirmar, portanto, que as qualificaçõesnecessárias para as costureiras Internas e externas sãototalmente "naturalizadas", adquiridas na esfera domés-tica como parte das atribuições de uma dona de casa.As clivagens encontradas nas fábricas maiores ediscutidas mais adiante não fazem sentido nestasituação. A distinção aqui é entre uma "boa" ou "má"costureira. Apesar de não cortarem ou fazerem moldes,a experiência que adquiriram lhes fornece aqualificação necessária para montar de forma perfeitauma peça de roupa. .

No caso específico das costureiras a domicílio,existe uma consciência clara de que sua qualificaçãonão e adequada para qualquer tipo de serviço. Muitasdelas não aceitam trabalho de menor qualidade dasgrandes fábricas porque acham que não consegupm seadaptar ao ritmo muito rápido de trabalho que énecessário para compensar os baixos preços por peça.Argumentam que estão acostumadas a fazer umserviço perfeito e não um serviço rápido.

Nas entrevistas com as costureiras da fábrica decamisas, o primeiro contraste importante com assituações descritas anteriormente é a percepção dastrabalhadoras da própria qualificação. As trabalhadorasfabris não se intitulam costureiras, de fato nem seconsideram como tal. Nas entrevistas, muitas dizem quenão sabem costurar! A extrema especialização de

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tarefas a que estão submetidas as transforma em"operadoras de máquinas" e não em costureiras. A suamaior ou menor qualificação é Julgada por outroscritérios, que tomam em consideração qualificaçõesmuito distintas das consideradas nos outros dois casos.Uma "operadora multo qualificada" na fábrica é umatrabalhadora que pode usar diferentes máquinas comIgual proficiência e velocidade. Não Implica noconhecimento do processo global de produção deuma roupa.

As categorias utilizadas para descrever os dife-rentes grupos de trabalhadores na fábrica são osmesmos que servem de base para a estrutura de saláriose combinam tempo de serviço, idade e tipo de paga-mento recebido. Para as operadoras de máquina, trêsgrupos de categorias são utilizados.

O primeiro opõe as "menores", moças commenos de 18 anos, às outras categorias. Em tese,trabalhadoras com menos de 18 anos só podem traba-lhar legalmente se estiverem fazendo parte de umacordo de treinamento realizado entre a fábrica e oSENAI, quando então podem receber 50% do saláriomínimo no primeiro ano e 75% no segundo. Na prática,as "menores" não recebem qualquer treinamento nouso de máquinas e são utilizadas como auxiliares paraexecutar tarefas manuais.

O segundo grupo de categorias opõe as "profis-sionais", que são operadoras de máquinas com maisde dois anos de carteira assinada, e "auxiliares", opera-doras de máquina com menos de dois anos de carteiraassinada. As "profissionais" recebem um salário de basemais elevado, estabelecido por uma negociação anualcom o sindicato da categoria, geralmente cerca de20% acima do salário mínimo. Após atingir a categoria"profissional" há muito pouco a ganhar em termos demelhorias salariais, uma vez que todas ganham porprodução. Muitas mulheres, trabalhando há longosanos, recebem aproximadamente a mesma coisa queuma "profissional" com dois ou três anos de experiência.

Finalmente, o terceiro grupo de oposições dife-rencia os trabalhadores "mensalistas", que recebem umsalário mensal fixo, daqueles que recebem por semanana base da produção realizada. Esta classificação opõeum pequeno número de trabalhadores qualificados,geralmente homens, à maioria da força de trabalho dafábrica. As únicas mulheres mensalistas são as duassupervisoras.

Outro contraste importante em relação aos casosanteriores está relacionado ao treinamento, que érealizado no próprio trabalho. Das trabalhadoras dafábrica, poucas fizeram cursos de corte e costura. Ser

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uma boa operária, como já foi visto, não significa sabercosturar bem, mas poder manejar vários tipos demáquina. Mas adquirir essa qualificação é visto com umsentimento contraditório, já que pode significar serusada pela gerência para substituir colegas que faltame, também, ficar pulando de uma tarefa para outra. Há,assim, muito pouco Incentivo para qualificação.

Entre as "menores" não há igualmente muitoincentivo para tentar adquirir um treinamento namáquina de costura. Em geral essas trabalhadoras sãoutilizadas como mão-de-obra barata para realizar todotipo de operação manual necessária na preparaçãodas costuras. Após os dois anos como "menores", quasetodas as trabalhadoras saem da empresa. O númeroaproveitado como "auxiliar" é mínimo. Assim, as traba-lhadoras têm que entrar em outro emprego, paraadquirir os dois anos de experiência necessários para serclassificada como "profissional".

A personalização das relações de trabalho

9 KERGOAT, Danièle, op. cit.

Tanto na pequena empresa de confecção comona fábrica as entrevistadas mostram claramentealgumas das características discutidas por Kergoat 9.

Existe uma forte resistência à promoção a supervisora.Não apenas na confecção estudada, mas em muitasoutras, as proprietárias mencionam que promover umacostureira a supervisora é, geralmente, um desastre. Assupervisoras são recrutadas externamente. As costureirasconcordam que é multo difícil ser supervisora de urnaequipe na qual já tenham trabalhado.

A única possibilidade de mobilidade está, defato, associada a uma mudança de emprego. Omesmo acontece se querem tornar-se modelistas. Umadas mais experientes costureiras da pequenaconfecção estava fazendo um curso de modelista noSENAI, mas achava que nunca poderia exercer a novafunção nesta empresa e que somente poderia utilizar osnovos conhecimentos se mudasse de emprego. Haviaum forte sentimento entre as outras costureiras de queesta moça estava almejando algo alto demais e queera muito ambiciosa. É interessante notar que, naépoca, o único curso de modelista oferecido pelo SENAIera de roupa masculina, ou seja, para alfaiates.

Esse tipo de empresa, no entanto, está muito bemposicionada no mercado de trabalho da indústria deconfecção como um todo. Não apenas porque oferecemelhores condições de trabalho e melhores salários,mas também porque oferece possibilidade à costureirade efetivamente exercer sua qualificação. As entrevistasmostram que as costureiras consideram a extrema'

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diversidade do trabalho que executam como umaexcelente oportunidade de treinamento e como umaabertura para a oportunidade de trabalhar por contaprópria como costureira particular (modista ou costureirade madame) ou como organizadora de uma facção.Estão conscientes de que não podem ser outra coisaque não costureiras, no emprego que têm no momento.Para novas funções, deverão mudar de emprego.

A extrema personalização das relações detrabalho dentro da empresa é outra característicaimportante que sobressai nas entrevistas. Sendo umgrupo pequeno, poder-se-la supor que poderiam agirenquanto grupo quando confrontadas com asupervisora ou as proprietárias. No entanto, não pareceser assim e muitas apontam uma boa relação pessoalcom a supervisora ou com as proprietárias comofundamental para boas condições cotidianas detrabalho e até mesmo melhores níveis de remuneração.É freqüente, por exemplo, a menção da Importância darelação com a supervisora. Relações pessoais sãoimportantes para ter acesso a melhores condições detrabalho num emprego e para qualquer possibilidadede mobilidade.

Apesar de terem melhores condições do que asoperárias de fábrica, a insuficiência dos saláriosrecebidos leva a que várias das costureiras entrevistadasrealizem atividades complementares. Nove delas levampara casa trabalho para realizar de noite ou nos finaisde semana. Nesse caso, são remuneradas ao mesmopreço das trabalhadoras a domicílio. Esta é outra áreaonde a boa relação pessoal com a supervisora podegarantir o suprimento do trabalho extra.

Com relação às costureiras a domicílio, o sistemafaz com que procurem uma vez por semana a empresapara entregar as peças montadas e pegar nova leva.Apesar de dizerem que nunca discutem o preço porpeça e/ou a quantidade de trabalho com assupervisoras, elas resmungam muito sobre este ponto.Preços por peça são, em teoria, baseados no trabalhorealizado pelas costureiras internas. No entanto, comoas internas também montam a peça Inteira e não sãocronometradas, tendo uma produção extremamentevariável, pode-se supor que os preços por peça são naverdade influenciados por outros fatores, como os 'preços pagos no mercado e uma avaliação superficialda dificuldade de montagem de cada peça. Dequalquer forma, os preços para cada tipo de serviçocontribuem para a extrema variabilidade do trabalhodas externas.

A supervisora responsável pela distribuição daspeças procura distribuir de forma eqüitativa peças mais

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bem pagas ou menos bem pagas entre as externas. Defato, uma igualdade absoluta é impossível ecertamente a percepção da qualificação de cadacostureira influencia sua decisão. Se uma externa trazconstantemente roupas com defeitos, a ela serãoalocados os modelos mais simples, menos bem pagos.Os modelos mais sofisticados e complexos, mais bemremunerados, são distribuídos entre as costureiras maisqualificadas, com as quais a empresa procuraestabelecer uma relação mais estável, garantindoserviço durante o ano Inteiro, Inclusive nos períodos demenor produção. .

A supervisora é uma figura central para todas asexternas. É com ela que se relacionam na empresa.O dono é uma figura mais distante, apesar dopequeno tamanho da empresa. As funções desupervisão - distribuir e receber o trabalho das externas econtrolar a qualidade do trabalho realizado - fazemcom que a supervisora seja a pessoa com quem têmmais contato. Ao mesmo tempo, pode ser uma relaçãobastante tensa.

São três as áreas onde o conflito entre externas esupervisoras aparece com mais frequência: prazos deentrega; controle de qualidade e correção do trabalhomal-feito; e defeitos produzidos pela má preparação, ouseja, de responsabilidade da empresa.

Entregar a costura no prazo pode muitas vezes serbastante complicado para as costureiras a domicílio, jáque freqüentemente suas outras responsabilidadesdomésticas podem Interferir com o seu trabalho. Teruma certa flexibilidade a este respeito é consideradopelas externas uma excelente qualidade de umaempresa. Atrasar entrega é certamente um dosproblemas mais assiduamente mencionados.

O controle de qualidade é outro fator Importantede conflito. As externas consideram uma tensão ter queesperar enquanto cada peça é examinada. Se a •supervisora encontra pequenos defeitos, elas têm queconsertar na hora, numa das máquinas da própriaempresa. Isso pode prolongar sua permanência naempresa por várias horas. Se o defeito é maior,envolvendo várias peças de um mesmo lote, ela levade volta para casa para consertar tudo, traz de volta e,então, é paga. Isso é considerado a grande humilhaçãoe é sempre mencionado em relação a outra pessoa, oucomo tendo acontecido em empregos anteriores. Oque não é de espantar, já que se tal situação se repetecom freqüência com uma costureira ela certamentenão receberá mais serviço daquela empresa.

O maior descontentamento, no entanto,está relacionado ao fato de receber trabalho mal

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preparado. Não é incomum receber pacotesincompletos ou com defeitos no tecido. Neste caso, aexterna tem que voltar à confecção para resolver essesproblemas ou diminuir sua produção no montante daspeças que não conseguiu montar. Pacotes Incompletostambém dão lugar a acusações de perda ou furto: Estaúltima situação parece ser a única em que ascostureiras acham que podem responder e se defender.Parece que, apenas quando sua honra e honestidadeenquanto pessoa são postas em questão, ela se sentecom razão suficiente para enfrentar a empresa.

A relação pessoal com a supervisora é, portanto,crucial para a externa. Uma relação amistosa podesignificar mais e mais trabalho constante, maior flexibili-dade nos prazos de entrega etc. Nas entrevistasrealizadas existem vários relatos de como têm mudadode empresa por causa da supervisora, ou porque não sedavam bem ou acompanhando a supervisora quandoesta tinha mudado de emprego.

Esta relação pessoal com a supervisora faz comque as externas tratem sua situação numa base pessoale não como trabalhadoras. Elas podem esperar algunsfavores da supervisora como amiga, mas nuncaquestionam os preços por peça, quantidade detrabalho ou outras questões que afetam as externasenquanto grupo.

Esta atitude em relação ao empregador e suapassividade com relação às decisões que afetam o seutrabalho não significa, no entanto, que as externasestejam contentes com sua situação. Ao contrário, elassão bem conscientes da fragilidade de sua relação deemprego, de seu isolamento e de sua fraqueza aoenfrentarem sozinhas a empresa. Elas também estãoconscientes da dificuldade de coordenar suasdemandas. O contato com outras externas é difícil:encontram-se ocasionalmente na empresa, mas semprecom pressa para voltar para casa. A Individualização doseu trabalho leva a uma resposta Individual em temposde crise: a retirada dos seus serviços desta empresae a sua substituição por outra que ofereça melhorescondições.

Também na fábrica podemos ver a importânciadas relações personalizadas com a hierarquia superiorpara conseguir melhores condições de trabalho. Umasupervisora amiga pode garantir que uma "menor"sente algumas vezes na máquina para começar aaprender seu manejo, primeiro depois do expediente ouna hora do almoço, depois fazendo com que elasubstitua, em operações simples, alguma trabalhadoraque falte.

ANO 1 304

22 SEMESTRE 93

Page 13: ALICE RANGEL DE PAIVA ABREU TRABALHO E QUALIFICAÇÃO

As duas supervisoras entrevistadas mencionaramcomo a posição é solitária e enfatizaram como é difícil.Uma delas tinha sido recrutada externamente à fábrica,e era uma excelente costureira. A outra era umaoperadora de máquina da própria fábrica e parecia termuito conflito com suas antigas colegas. De fato, elaparecia muito amarga quando falava sobre o problemae repetidamente afirmou que o aumento de salário nãocompensava.

Apesar das diferenças tão marcantes no processode trabalho e na estrutura de qualificações que as trêssituações apresentam, a atomização mencionada porKergoat aparece claramente nos três casos. A extremapersonalização das relações que sobressai no caso dastrabalhadoras a domicílio aparece Igualmente napequena confecção e na fábrica, fazendo dasupervisora a interlocutora privilegiada, mas impedindoqualquer movimento coletivo para solução dosconflitos. A ausência de uma possibilidade de carreira ea dificuldade efetiva de exercer novas qualificaçõesadquiridas levam a soluções individuais representadaspela mudança de emprego.

ESTUDOS FEMINISTAS 305 N. 2/93