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1 ALIMENTAÇÃO INDÍGENA SATERÉ-MAWÉ: UM PANORAMA ATUAL 1 APRESENTANDO UM BREVE CONTEXTO SIMBÓLICO KALINDA FÉLIX DE SOUZA (PPGAS/UFAM/AM) RESUMO O presente artigo visa abordar sobre a alimentação indígena, em específico da etnia Sateré-Mawé no baixo Amazonas. Nossa intenção é discutir o simbolismo da dieta do grupo com ênfase em alimentos utilizados em ritos de cura e de passagem tais como guaraná, mel entre outros, enfocando suas correlações com a produção mítica e dimensões pragmáticas do preparo e consumo alimentar. Os dados foram coletados em pesquisa realizada entre 2012 e 2013, e ainda em curso, desvelando parte do cenário alimentar dos Sateré-Mawé, sua agricultura e relações com o meio ambiente. O aporte teórico foi fornecido por Lévi-Strauss (2004), Mary Douglas (1996), Poulain (2004) e Lorenz (1992). Os resultados mostram que alimentos como o guaraná e o mel são entendidos tanto como produtores de pessoas quanto meios de produção de relações sociais sedimentando alianças e reciprocidades e amenizando tensões. Entre os Sateré- Mawé as cerimônias e rituais que envolvem o consumo desses alimentos são parte integrante do equilíbrio social no grupo, remetendo à mitocosmologia produtora de parentes e de harmonização nas relações com a natureza. Tais relações altamente simbolizadas se reconstroem cotidianamente no espaço doméstico onde são produzidos e consumidos coletivamente os alimentos, promovendo a (re)organização da sociedade Sateré-Mawé. PALAVRAS-CHAVE: Antropologia da alimentação; Índios Sateré-Mawé; Mitocosmologia sul americana. CENÁRIO DO CONTATO SATERÉ-MAWÉ Os relatos atestam que o contato com os portugueses foi feito em 1669, quando da instalação da missão jesuítica Tupinambarana (Uggé, 1991). A partir daí, segue-se uma história de luta dos índios Sateré-Mawé frente à sociedade não indígena. Os mais de trezentos anos de contato com outras sociedades revelam a resistência desse povo frente aos vários episódios históricos de imposições sociais, 1 “Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.”

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ALIMENTAÇÃO INDÍGENA SATERÉ-MAWÉ: UM PANORAMA ATUAL1

APRESENTANDO UM BREVE CONTEXTO SIMBÓLICO

KALINDA FÉLIX DE SOUZA (PPGAS/UFAM/AM)

RESUMO

O presente artigo visa abordar sobre a alimentação indígena, em específico da

etnia Sateré-Mawé no baixo Amazonas. Nossa intenção é discutir o simbolismo da dieta

do grupo com ênfase em alimentos utilizados em ritos de cura e de passagem tais como

guaraná, mel entre outros, enfocando suas correlações com a produção mítica e

dimensões pragmáticas do preparo e consumo alimentar. Os dados foram coletados em

pesquisa realizada entre 2012 e 2013, e ainda em curso, desvelando parte do cenário

alimentar dos Sateré-Mawé, sua agricultura e relações com o meio ambiente. O aporte

teórico foi fornecido por Lévi-Strauss (2004), Mary Douglas (1996), Poulain (2004) e

Lorenz (1992). Os resultados mostram que alimentos como o guaraná e o mel são

entendidos tanto como produtores de pessoas quanto meios de produção de relações

sociais sedimentando alianças e reciprocidades e amenizando tensões. Entre os Sateré-

Mawé as cerimônias e rituais que envolvem o consumo desses alimentos são parte

integrante do equilíbrio social no grupo, remetendo à mitocosmologia produtora de

parentes e de harmonização nas relações com a natureza. Tais relações altamente

simbolizadas se reconstroem cotidianamente no espaço doméstico onde são produzidos

e consumidos coletivamente os alimentos, promovendo a (re)organização da sociedade

Sateré-Mawé.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia da alimentação; Índios Sateré-Mawé;

Mitocosmologia sul americana.

CENÁRIO DO CONTATO SATERÉ-MAWÉ

Os relatos atestam que o contato com os portugueses foi feito em 1669, quando

da instalação da missão jesuítica Tupinambarana (Uggé, 1991). A partir daí, segue-se

uma história de luta dos índios Sateré-Mawé frente à sociedade não indígena.

Os mais de trezentos anos de contato com outras sociedades revelam a

resistência desse povo frente aos vários episódios históricos de imposições sociais,

1 “Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.”

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culturais, econômicas e políticas e as estratégias de luta implementadas por eles, em

prol de uma (re)organização do modo de vida Sateré-Mawé.

Selecionamos nas linhas a seguir alguns eventos marcantes da história de

contado dos Sateré-Mawé com outras sociedades. Tais relatos estão baseados nas

pesquisas de Bernal (2009), Nunes Pereira (2003), Lorenz (1992), Uggé (1991) os

mesmos apuram historicamente que no século XVIII as tropas de resgate, as missões

jesuíta e carmelita desenfrearam a redução da população Sateré-Mawé, bem como, o seu

território. A história oral desse povo atesta que participaram da Cabanagem (1835-1839)

no século XIX, havendo participação de outras etnias indígenas, ocasionando em muitas

mortes. Segundo Bernal (2009), na primeira metade do século XX, a violência do ciclo

da borracha acrescentou-se a dos exploradores de madeira de lei (pau-rosa) no sudoeste

do Estado do Amazonas. Consequente a isto, os Sateré-Mawé foram obrigados a

deslocarem-se subindo o curso dos rios Tapajós e Madeira até se instalarem lá onde

estão hoje (Terra Indígena Andirá-Marau). Finalmente, quando o território pareceu bem

instalado, uma nova ameaça apareceu com o projeto de abertura de uma estrada ligando

Itaituba/PA e Maués/AM. Isto foi o principal problema até o final dos anos 1970 e

início dos anos 1980. Depois, veio o empreendimento brutal, sem nenhuma preparação,

de um projeto de exploração petrolífera nos territórios Sateré-Mawé e Mundurucu. Para

essa questão, na qual estava envolvida a empresa francesa ELF-Aquitaine, Figeroa

(1997) destaca que os Sateré-Mawé sofreram vários tipos de pressões relacionadas à

questão territorial.

No final a década de 70, foi iniciado o processo de demarcação do território

Sateré-Mawé, sendo identificados os sítios, aldeias, roças, cemitérios, locais de caça,

pesca, coleta de frutíferas, área de extrativismo, e áreas por onde se movimentam

localizadas entre os arredores dos rios Marau, Miriti, Urupadi, Majuru e Andirá.

Segundos os mais velhos essas áreas é apenas uma parte do território mais antigo, citado

nas histórias desse povo, contudo conseguiram demarcar boa parte do território que

outrora ocuparam. E em 1982, concluíram o trabalho de demarcação das terras.

A Terra Indígena Andirá-Marau, foi homologada em 1986, com 788.528

hectares distribuídos nos municípios de Parintins, Barreirinha, Maués no Amazonas e;

Itaituba e Aveiro no estado do Pará. (Lorenz, 1992) (vide mapa 1).

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MAPA 1 – Terra Indígena Andirá-Marau.

FONTE: Lorenz, 1992 (p. 23).

Habitam a T.I Andirá-Marau cerca de 11.060 Sateré-Mawé, segundo dados

divulgados pelo Censo Demográfico produzido pelo IBGE (2010). Sendo o segundo

maior povo indígena em termos de números de indivíduos no Estado do Amazonas.

Quanto as divisões territoriais outra fonte informa o número de aldeia também

chamadas de comunidades pelos Sateré-Mawé, a pesquisa realizada por Teixeira (2005,

p. 24) identificou 91 aldeias, distribuídas ao longo dos principais rios e igarapés. A região

mais populosa é a do rio Andirá. Na região do rio Marau são 37 aldeias.

Referente aos dados linguísticos o estudo de Rodrigues (2013) aponta esse povo

como o segundo, da região em número de falantes da língua Sateré-Mawé, também

conhecida como Sateré ou Mawé, contabilizando cerca de 8.500 pessoas residentes na

T.I Andirá-Marau, sendo esta classificada como originária de uma família do tronco

Tupi. Curt Nimuendajú (1948) foi um dos primeiros a classificar essa língua como

pertencente a esse tronco.

Outra informação importante é a presença dos Sateré-Mawé na cidade de Manaus,

estudos apontam a década de 70 o início de um número expressivo de deslocamentos de

indígenas para a capital do Amazonas, mas de acordo com Romano (1982), há relatos

da presença de famílias Sateré-Mawé em Manaus a partir da década de 40. Estudo

realizado por Souza (2011) registrou que em 2010, no conjunto Santos Dumont, bairro

da Redenção, zona Centro-Oeste de Manaus residem na aldeia Y’apyrehyt (terceira luva

da tucandeira) cerca de quatro famílias; na aldeia Waikiru (estrela) vinte e três famílias,

essas duas aldeias foram fundadas pelas famílias vindas do rio Andirá e Marau,

respectivamente, ainda na década de 80, todavia, foi no final dos anos 70 que ocorreu a

ocupação pelos Sateré-Mawé nesta área da cidade, considerada nobre. No Tarumã-Açu

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(lago do Tiú), zona Oeste, área afastada do centro urbanizado de Manaus, residem na

aldeia Inhaã-Beé (chocalho do joelho) cerca de cinco famílias e nas proximidades deste

mesmo local a aldeia Hiwy (gavião) com cerca de três famílias, desde a década de 90.

Registramos também, mais aldeias Sateré-Mawé no Estado do Amazonas,

situadas no município de Iranduba, margem direita do rio Negro a aldeia Sahu-Apé

(casco de tatu) com cerca de sete famílias residentes, fundada em 1996; No município

de Manaquiri está à aldeia Waraná (guaraná) formada em 2006 com cerca de quatro

famílias.

Informamos que a pesquisa sócio demográfica de Teixeira (2005) indicou a

existência de famílias Sateré-Mawé residindo no município de Nova Olinda do Norte e

um grupo vivendo na Terra Indígena Coata-Laranjal dos Munduruku, em Borba, áreas

do estado do Amazonas.

Portanto, este breve cenário geográfico e histórico, colocam em evidência o

quanto os Sateré-Mawé resistiram em termos coletivos, os vários motivos dos

deslocamentos realizados por eles, justificam-se em sua maioria no propósito de

proteção, defesa, manutenção e busca de um possível equilíbrio e harmonia da vida em

sociedade. Torna-se fundamental entendermos esses processos históricos de

deslocamentos e a motivação, visto que isto implica em uma (re)organização da vida

social, econômica e cultural, ou seja, produção simbólica e material da vida social

ocupando outros ambientes e convivendo com outras sociedades. Considerando todas

estas fases da vida Sateré-Mawé priorizamos por dar ênfase a vida simbólica buscando

relacionar a mitocosmologia do grupo e o seu contexto alimentar, optamos em focar o

teor simbólico, ritual do guaraná, e do mel e perpassar rapidamente por outros alimentos

que compõe este breve cenário da alimentação Sateré-Mawé, entendida aqui como

produtora de pessoa, relações e alianças.

METODOLOGIA E LÓCUS DA PESQUISA

As aldeias selecionadas para a pesquisa ainda em andamento, situam-se nas

margens do rio Andirá, sendo as três primeiras no baixo curso do Andirá e a última

citada no trecho alto do mesmo rio no município de Barreirinha. É válido informar que

a pesquisadora responsável pelo campo, ainda não esteve de fato visitando as aldeias in

lócus, os dados informados neste artigo foram coletados através de conversas, diálogos

e ocasiões em os Sateté-Mawé estiveram dispostos a contribuir com a pesquisa pré-

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campo. Desta forma, descrevemos melhor as situações e condições durante a coleta de

dados.

Em atividade pré-campo2, visando uma aproximação do objeto e a definição de

possíveis locais de investigação, foram entabuladas diversas conversas informais,

diálogos com lideranças políticas Sateré-Mawé das quais algumas fazem parte do

Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé – CGTSM; Diálogo com os servidores públicos

Sateré-Mawé da Funai; Com moradores das aldeias que estavam participando da

inauguração do escritório do Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé – CPSM, local

onde é embalado o guaraná produzido pelos Sateré-Mawé associados, e onde colocam

expostos para a venda o guaraná em pó, pão ou bastão de waraná, mel de abelhas

nativas de várias espécies, extrato de própolis de abelha canudo (awi’a sese) e muitos

outros produtos florestais como pó de mirantã, óleo de copaíba, óleo de breu, cumarú,

muiraruira, unha de gato, etc. Também conversamos com os cursistas Sateré-Mawé da

Licenciatura Intercultural da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, residentes

nessas aldeias. O período das visitas pré-campo ocorreram em maio de 2012 e setembro

de 2013 em Parintins e Barreirinha.

Dessas interlocuções identificamos moradores da aldeia Nova União, que fica

no baixo Andirá que se constituiu na década de noventa, por esse motivo, ainda não está

nos mapas da Funai, segundo morador entrevistado, muito embora já exista há vinte

anos, informou ainda que todas as famílias desta aldeia praticam a religião adventista.

Segundo os Sateré-Mawé relatam que neste local as práticas alimentares “tradicionais”

ou “antigas” são correntes, posto que as dez famílias que moram no local têm

plantações de roças de guaraná, palmeiras, e outras frutíferas que compõe o cardápio

alimentar diário, exercem ainda atividades de caça e pesca feita pelos homens. Situação

similar seria encontrada na aldeia Boa Fé, que possui cerca de doze famílias, os

moradores mantém uma dieta alimentar significativamente “tradicional” como dizem,

preservando costumes antigos de consumir certos alimentos em períodos especiais e

significativos para o grupo, e mesmo estando localizada nas proximidades da área

urbana da cidade de Barreirinha, seus moradores preservam um conhecimento

específico de várias plantas medicinais para cura e prevenção de doenças, informam que

são praticantes da religião evangélica da igreja Assembleia de Deus. Ponta Alegre é a

aldeia mais populosa, com cerca de 800 pessoas residentes as margem do rio Andirá,

2 A atividade faz parte da pesquisa de campo de doutorado em andamento, da pesquisadora Kalinda Félix

de Souza. As interlocuções foram realizadas em Parintins e Barreirinha entre os anos de 2012 e 2013.

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município de Barreirinha, entretanto sua localização fica mais próxima da cidade de

Parintins, com a qual seus moradores constantemente buscam os serviços de saúde,

educação, bancários, entre outros, utilizando embarcações fluviais. Segundo servidores

da Funai, originários de Ponta Alegre, é a aldeia que mais consome os produtos

alimentícios congelados, embutidos, enlatados adquiridos na cidade de Parintins,

havendo raras plantações de frutíferas e roças, esses funcionários informam que têm

filhos e parentes residentes na aldeia e em períodos de férias do trabalho costumam ir

para Ponta Alegre. Completando o quarteto das aldeias selecionadas, Santa Cruz fica

no alto Andirá e segundo informações coletadas, possui cerca de dez famílias que

seguem a religião católica. Relatos indicam que os costumes antigos, como o cuidado

com as roças de guaranazais, o modo de caçar, pescar são praticados pelos moradores.

De acordo com as interlocuções, as famílias de Santa Cruz, adquirem poucos alimentos

industrializados, pois se mantêm com os produtos obtidos das roças, frutíferas e outros

meios que encontram para viver nos moldes “tradicionais” da cultura Sateré-Mawé.

Diante destes cenários descritos pelos interlocutores Sateré-Mawé, imaginamos

que os aspectos da vida diária nessas comunidades, são bem distintos. Dado que as três

primeiras aldeias citadas se encontram em áreas mais próximas a cidade, como disseram

os Sateré-Mawé, porém salientaram que os moradores de Ponta Alegre vivem num

ambiente onde as roças e as frutíferas são raras, assim como, as atividades de pesca e

caça. Enquanto, Santa Cruz é a mais distante os moradores costumam visitar com menor

frequência a cidade. Contudo, a distância dos grandes centros urbanos, não se configura

como principal motivo para as mudanças alimentares. Como bem descreve Jean-Pierre

Poulain (2004) o consumo dos alimentos envolvem princípios biológicos, ecológicos,

psicológicos, culturais e sociais, bem como, abrange uma série de circunstâncias como

acesso aos alimentos, ambiente, escolhas individuais e coletivas. Para o autor a

alimentação humana esta situada no seguinte entendimento:

A alimentação humana é submetida a duas séries de condicionantes mais ou

menos flexíveis. As primeiras são referentes ao estatuto de onívoro e

impostas aos “comedores” por mecanismos bioquímicos subjacentes à

nutrição e às capacidades do sistema digestivo, deixando um espaço de

liberdade largamente utilizado pelo cultural e contribuindo, assim, para a

socialização dos corpos e para a construção das organizações sociais. Já as

segundas são representadas pelas condicionantes ecológicas do biótopo no

qual está instalado o grupo de indivíduos; essas condicionantes também

oferecem uma zona de liberdade na gestão da dependência do meio natural.

(POULAIN, 2004, p. 251)

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Tais condicionantes são analisados dentro do pensamento social e cultura dos

Sateré-Mawé, bem como, as formas e cuidados com que devem ser preparados, servido

o alimento, principalmente os simbólicos. Todavia, as formas de classificar o que

comem e não comem são importantes para iniciar, ou melhor, para entender a ordem e

entendimento de mundo. Desta forma, lembramos que Lévi-Strauss (2004) analisa que o

homem classifica o que é comestível e não comestível, o que se interliga ao

pensamento mitocosmológico, onde a incorporação do alimento é significativa, como

no caso do mel e do guaraná Sateré-Mawé, aludidos nas histórias de origem e

organização social destes.

DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO GRUPO

Na cosmologia dos Sateré-Mawé existe um lugar chamado Noçoquém (lugar

das pedras), no qual se tem certeza de que lá moram as “pedras que falam” e os

“animais gente”. Os Sateré-Mawé traduzem este local como um paraíso, onde tudo de

que precisam está nesse lugar, que parece ser o primeiro da morada dos Sateré-Mawé.

De onde vieram? Segundo relatos dos velhos Sateré-Mawé, seus ancestrais

habitavam em tempos imemoriais o vasto território entre os rios Madeira e Tapajós,

delimitado ao norte pelas ilhas Tupinambaranas, no rio Amazonas e, ao sul, pelas

cabeceiras do Tapajós. Os Sateré-Mawé referem-se ao seu lugar de origem, como sendo

o Noçoquém, lugar da morada de seus heróis míticos. Eles localizam-no na margem

esquerda do Tapajós, numa região de floresta densa e pedregosa, "lá onde as pedras

falam" (Pereira, 2003).

Nunes Pereira (2003), que viveu com esse povo na década de 1950, descreve

que “os lagos e rios piscosíssimos que irrigam as terras em que viveram outrora os

Maués e, bem assim, as florestas e campinaranas ricas em caças de toda espécie,

deveriam constituir, numa época mais remota, uma paisagem magnífica para as

atividades desse povo”. A representação do Noçoquém - sítio onde se encontravam

todas as plantas e animais úteis aos Maués, segundo o mito do Guaraná, deveriam

corresponder, outrora, o território por eles ocupado.

Autodenominam-se Sateré-Mawé. Mas, ao longo de sua história, já receberam

vários nomes, dados por cronistas, desbravadores dos sertões, missionários e

naturalistas: “Mavoz, Malrié, Mangnés, Mangnês, Jaquezes, Magnazes, Mahués,

Magnés, Mauris, Mawés, Maragná, Mahué, Magneses, Orapium” (Nunes Pereira,

2003).

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O primeiro nome - Sateré - quer dizer "lagarta de fogo", referência ao clã mais

importante dentre os que compõem esta sociedade, aquele que indica tradicionalmente a

linha sucessória dos chefes políticos. O segundo nome - Mawé - quer dizer "papagaio

inteligente e curioso" e não é designação clânica (Alvarez, 2005).

Alba Figueroa (1997) identificou a ordem dos clãs, com nomes de frutas, aves,

animais, não havendo um número exato de clãs existentes, identificado pelos

pesquisadores, variando entre 12 e 40. Os casamentos ocorriam por exogamia, ou seja,

eram realizados entres clãs díspares, onde em geral a residência era patrilocal.

Entretanto, a autora também registrou que a ordem clânica e os casamentos atualmente

não seguem com tanto rigor a essa regra, havendo vários matrimônios entre pessoas do

mesmo clã, evitando-se apenas os consanguíneos biológicos.

Alvarez (2011) relata que o parentesco patrilinear define a posição no sistema

de clãs. As pessoas pertencem ao clã de seu pai, aqueles que são filhos da mãe e do pai

não Sateré-Mawé são considerados Sateré asiag, “mestiços”, em contraste com a sesse

Sateré, “puro” ou “verdadeiro”. A relação de associação de grupo é dada por

descendência, mas há outras formas de incorporação, pelo casamento com mulheres

Sateré-Mawé. Nestes casos, os filhos dessas mulheres são considerados Sateré asiag, ou

“impuro”, e a condição mestiça é passada de geração em geração.

Tradicionalmente, toda aldeia possui um tuxaua local Sateré-Mawé, na língua

materna é chamado de tui’sa acima deste, existe o tuxaua geral, liderança máxima entre

os grupos das aldeias, as chefias destes é através da herança genealógica e linhagem

(Uggé, 1991), com a introdução da Funai em seus territórios, trouxe a figura do capitão.

Havendo também a presença dos pajés ou curadores, rezadores, pegadores de ossos,

ervateiros, estes praticam os componentes da doença espiritual e física, identificadas e

tratadas conforme sua “força espiritual” e conhecimentos adquiridos ao longo da vida

(Souza, 2011).

No que se refere a cultura material, ambiente e formas de trabalho, Lorenz

(1992) tecem peneiras, cestos, tipitis, abanos, bolsas, chapéus, paredes e coberturas de

casas, etc, feitas com talo e folhas de caraná, arumã e outros. As práticas ceramistas

entre os Sateré-Mawé já não tão visíveis. Quanto ao ecossistema além das roças de

guaraná, têm-se as palmeiras de buriti, açaí, bacaba, tucumã, pupunha, que

sazonalmente comparecem a dieta alimentar; os rios são igarapés estreitos, com

corredeiras de água fria. Os trabalhos coletivos são chamados “puxiruns” onde as

famílias se reúnem para a abertura de roças de guaraná e mandioca, limpeza, coleta e

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beneficiamento dos guaranazais, os quais tem grande importância social e econômica,

foco de nossa análise.

O SIMBOLISMO DO WARANÁ

Os Sateré-Mawé realizam suas trocas comerciais, desde os primeiros contatos

com a sociedade não indígena. Segundo Uggé (1991) no que segue a produção agrícola,

cultivam batata doce, mandioca, guaraná, cacau, castanha entre outras frutas e

tubérculos, mas o principal produto de sua exportação é o guaraná, vendido em bastões

ou em pó, principalmente para fora do país. O guaraná (Paullinia sorbilis), é um produto

vegetal com que se prepara uma bebida típica da Amazônia, é está intimamente ligado à

história mítica dos Sateré-Mawé. Por este fato, são também conhecidos como filhos do

guaraná.

Nesse contexto a ligação mítica do guaraná com o surgimento do primeiro ser

Sateré-Mawé é aludido na história oral do grupo a qual relata que antigamente existiam

na região do Rio Maués Açu, três irmãos: Ocuamató, Icuamã, (homens) e

Onhiamuaçabê (mulher). A jovem não tinha marido e era cobiçada pelos animais da

floresta. Os irmãos não queriam vê-la casada, pois Onhiamuaçabê era quem conhecia

todos os segredos das plantas medicinais do Noçoquém (floresta onde ficam as plantas e

animais úteis). Um dia, uma serpente ficou à espreita. Quando a moça passou, tocou-a

levemente na perna, engravidando-a. Nasceu então forte e bonito denominado

Anumarei’t. A mãe contou para ele que plantou uma castanheira no Noçoquém, mas os

irmãos enciumados haviam tomado o lugar. O menino quis provar das castanhas e

acabou morto pelos guardas que os tios haviam deixado no Noçoquém. Desesperada,

Onhiamuaçabê plantou na terra o olho esquerdo do menino e nasceu um cipó ruim

(guaranarana, o falso guaraná). Plantou então o olho direito e daí surgiu o verdadeiro

guaraná. E o solo escolhido virou chão sagrado (refere-se a região do município de

Maués). Onhiamuaçabê exclamou profetizando: “Tu, meu filho Waraná, serás a maior

força da natureza, farás o bem a todos os homens, teu warã sagrará todas as festas e

ritos; o amor fará de ti um símbolo e todos amigos e inimigos falaram o teu nome,

porque és filho de Anuamauató”. O guaraná foi crescendo e, de tempos, saía da

sepultura do menino um animal: nasceram assim o macaco coatá, o cachorro-do-mato e

o porco queixada. E, finalmente, Onhiamuaçabê viu brotar de dentro da cova um

menino: era o primeiro Sateré-Mawé, a origem da “tribo” e ao mesmo tempo o seu filho

ressuscitado. Os mais velhos contam que esse menino foi buscar na floresta seu povo,

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formando os clãs denominados com nomes de frutas, aves, animais como já foi

apontado neste trabalho, o menino foi chamado Sateré, pelo fato de esconder-se dentro

de um pau de árvore oco, onde havia a presença de lagartas grandes de cor vermelha,

também chamada “lagarta de fogo” seu contato com a pele humana queima

ardilosamente. Já o nome “mawé” é apontado por alguns interlocutores como sendo de

origem dada através do homem “branco”, pois segundo estes, os Sateré eram ardilosos e

pouco aceitavam as condições impostas à eles, e assim foram chamados de “mau és”,

mais tarde “mawés”. Outros informaram que na floresta dos tempos antigos existia uma

ave similar ao papagaio muito inteligente e curioso chamado de mawé, nome que

recebeu esse povo por sua característica comunicativa e consequentemente excelentes

negociadores. Porém, um dos fatos em que todos concordam é que são eles, os

primeiros cultivadores da planta de guaraná e seu consumo como alimento. O cultivo da

planta, a produção, benefício do fruto e comercialização datam desde 1699, mesmo ano

em que houve o contato com o homem branco. O padre João Felipe Betendorf escreveu

que:

Têm os Andirazes em seus matos uma frutinha que chamam guaraná, a qual

secam e depois pisam, fazendo dela umas bolas, que estimam como os

brancos o seu ouro, e desfeitas com uma pedrinha, com que as vão roçando, e

em uma cuia de água bebida, dá tão grandes forças, que indo os índios à caça,

um dia até o outro não têm fome, além do que faz urinar, tira febres e dores

de cabeça e cãibras. (Betendorf, 1910, apud LORENZ, 1992, p. 39).

No entanto, dados coletados em campo, revelam que o simbolismo do Waraná

está presente desde os cuidados com a roça, coleta e formas de preparo da bebida e

consumo. Os Sateré-Mawé referem que existe o Waraná verdadeiro e o guaranarana, o

chamado guaraná falso. Isto se explica ao fato de que a primeira planta de guaraná na

mitocosmologia do grupo, teve sua origem na área de Maués, rio Marau, o verdadeiro

guaraná, entretanto deste arbusto originaram-se outras plantas que foram transportadas

para a área do rio Andirá preservando assim a originalidade mítica do guaraná,

posteriormente multiplicaram-se os pés de guaranazais, que hoje em dia continuam

sendo consumidos e comercializados nas cidades de Parintins, Maués e Barreirinha e

exportados também para fora do país.

As dicotomias “verdadeiro” e “falso” que aparecem nas históricas míticas do

Sateré-Mawé manifesta-se como uma forma de enaltecer e prestigiar os cuidados com

as roças e formas de beneficiamento do Waraná, como a volta, por exemplo, do uso de

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forno de barro na torrefação do mesmo, tais práticas envolvem a gênese do grupo, o que

Lévi-Strauss (2004) analisa que os mitos são formas de entender o mundo vivido, dando

significado as práticas sociais. A mitocosmologia dos índios sul americanos demonstra

que tanto a natureza como a cultura são partes interligadas da vida real, fazem parte da

vida sociocultural, como o consumo do waraná.

Para o consumo próprio, a maioria dos Sateré-Mawé dá preferência à

preparação do Waraná em forma de bastão. No preparo do bastão de guaraná, a divisão

de trabalho é bem definida. A maior parte do cultivo cabe aos homens; as mulheres

torram, ralam e servem. Quando menstruadas as mulheres devem evitar a participação

nas formas de preparação e oferta do waraná. Os Sateré-Mawé falam o wará é o

espírito que rege o guaraná, invocando sabedoria e harmonia no grupo reunido e no

momento de sua ingesta, o corpo e a mente o recebem.

A mulher, para os Sateré-Mawé, é a geradora da vida. Entretanto, ela aparece

como o centro cíclico da vida, geradora da vida e da morte. O sangue significa vida, mas ao

mesmo tempo, a morte (hu’uro). Na mulher menstruada, o sangue “ruim” é colocado fora

do corpo: é a morte iminente da vida. As formas de preparar a bebida sapó a ser servida aos

convidados envolvem os aspectos da vida social e do seu controle.

Mary Douglas (1996) em “Pureza e Perigo” nos encaminha para entender as

atitudes de controle do corpo e sua relação com o controle social, apontando que a

purificação e a poluição são contrários e desequilibram a relação que tendem a serem

controlados dentro do grupo social.

A mulher menstruada indica desequilibrar o ciclo da vida, pois ao ingerir o

waraná, eles estão interligando a vida mítica com a vida real. O encontro do passado e o

presente, vivos e o wará é por excelência o espírito dessa harmonização. O waraná

nesse momento é bebido para se buscar o equilíbrio do ciclo da vida.

Por isso, o bastão de Waraná ralado (sapó) está presente em todos os

momentos da vida dos Sateré-Mawé, seja no cotidiano, em reuniões sociais e em rituais

como a dança da Tucandeira3. Contudo, as mulheres podem ingerir a bebida em

períodos menstruais, de pós-parto e no luto.

Abriremos aqui um breve parágrafo para explicar sobre a festa da Tucandeira,

ritual de passagem do menino para a vida adulta, onde suas mãos são colocadas dentro

de luvas tecidas de palha e enfeitadas com penas de gavião, recheadas com as formigas

3 Formiga da espécie Paraponera clavata que chega a medir pelo menos 2,5 cm, a ferroada pode durar até

24 horas, podendo provocar náuseas, vômitos, dor no estomago, inchaço na área onde ela deixa o ferrão, e

vermelhidão nos olhos.

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tucandeira, geralmente e na fase da puberdade que este inicia sua saga ritual. O ritual é

realizado todos os anos nas aldeias, o menino precisa completar vinte vezes em colocar

as mãos dentro das luvas com as tucandeiras, isto é feito ao longo dos anos, e será

considerado um homem adulto, guerreiro, trabalhador, bom caçador, pescador, livre de

doenças, por que, recebeu a vacina no seu corpo, durante o ritual, que exige coragem e

preparo, que limitam a abstinência do sexo, certos alimentos como o sal, peixes e caças

considerados inadequados, pois deixariam o neófito sem forças para vencer as ferroadas

da tucandeira. Essa espécie de formiga tem uma relação simbólica com o grupo, pois ela

representa segundo Sateré-Mawé a mulher, originada das partes intimas da cobra-fêmea.

Sendo o tatu, na língua sahu o responsável por trazê-las para o ritual. Nesse contexto, o

Waraná, é ingerido pelo guerreiro durante o ritual, pois ele dá as forças necessárias para

que este continue dançando e cantado para watyama.

Dessa forma, o beber do Waraná acompanha o ritual da Tucandeira, que na

forma de bebida é chamado pelos Sateré-Mawé de sapó. Para eles o sapó dá força ao

guerreiro, caçador, trabalhador; dá vigor às pessoas que o bebem. Ritualmente o sapó

poderá ser bebido por qualquer pessoa, inclusive crianças. Em geral o chefe da casa é o

dono do Waraná, que é servido numa cuia grande com água para os convidados,

passado de mão em mão, onde o primeiro a beber é sempre o dono da casa. Não se pode

deixar a cuia vazia, portanto, a esposa, filha ou neta deve estar ralando o bastão com a

ajuda de uma língua de pirarucu (peixe da região Amazônica) ou utilizar uma pedra de

basalto, onde se produz uma baba que é dissolvida na água e servida aos convidados.

Deve-se ingerir pequenos goles, a etiqueta Sateré aponta que é deselegante não beber o

sapó, caso esteja no círculo de conversa, reunião, assembleia, ou qualquer outro evento

em que o sapó é servido.

Na mitocosmologia do grupo o Waraná é sinônimo de sabedoria, um

importante comunicador, interligando a origem do povo com a situação atual que em

geral é discutida ingerindo-se o sapó principalmente quando na leitura do Poranting4

outro símbolo dos Sateré-Mawé indicam simbolicamente como um legislador da vida

social. Pois, à medida que se intensificam os conflitos, os tui’sa, que são chefes

políticos se reúnem para ler o Poranting indo buscar neste a pacificação social.

Portanto, o consumo do Waraná, busca-se encontrar soluções, realizar

discussões, debater assuntos pertinentes ao povo Sateré-Mawé, se procura dialogar,

4 Peça de madeira, uma espécie de bastão, onde estão grafados com desenhos o passado e o futuro deste

povo. (Uggé, 1991). Os mais antigos contam que era utilizado como clava nas guerras.

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obter relações de amizade. Tomar sapó é comunicar-se, interligar-se com o mundo

mítico desse povo, é também produzir relações amigáveis, angariar parceiros, reunir

parentes, lembrar os tempos antigos, contar as histórias míticas, e viver os dias atuais.

CONSUMO DO MEL PELOS SATERÉ-MAWÉ

Lévi-Strauss (2004) O mel e o tabaco são substâncias comestíveis, mas nem

um nem outro dizem propriamente respeito à cozinha. Pois o mel é elaborado por seres

não humanos, as abelhas, que o entregam pronto para o consumo, ao passo que a

maneira mais comum de consumir o tabaco o situa, à diferença do mel, não aquém mas

além da cozinha. Não é absorvido cru, como o mel, ou exposto previamente ao fogo

para cozer, como se faz com a carne. Ele é incinerado, para que se possa aspirar sua

fumaça.

A elaboração do texto do Lévi-Strauus (2004) comentando sobre os

significados do mel, dentro das sociedades, nos faz pensar as diversas formas que os

Sateré-Mawé preparam para o mel para o consumo passam por um emaranho e

complexo social e cultural ligado a ordem mítica. No contexto mítico o consumo do

mel, narra-se como um alimento produzido por uma irmã de “Tupana” ou “Tupã”. Os

anciãos relatam que, quando Anumaré Hit foi para o céu para transformar-se no sol, ele

convidou sua irmã Uniawamoni a segui-lo (Uggé, 1991). Ela decidiu ficar na Terra sob

a forma de uma abelha para poder ajudar os Sateré-Mawé a cuidar das florestas sagradas

de guaraná. Nesse contexto mítico, tanto a abelha quanto seus produtos, como, o mel, o

própolis e o polén, são importantes fontes de alimento, e tem relação mitocosmológica

com o grupo.

Na narrativa mítica “Tupana” é a divindade mais poderosa e protetora máxima

dos Sateré-Mawé, tendo Ele concordado com a decisão da irmã de ficar na terra,

transformada em abelha, para servir aos Sateré-Mawé, consumindo o néctar das flores

dos guaranais, o mel produzido dessa florada tem um caráter altamente privilegiado

dentro da cultura do grupo.

Um de nossos interlocutores faz menção a abelha, como sendo um animal que

vive em sociedade, não vive sozinha, trabalha muito, e ainda ajuda na agricultura,

polinizando as plantas. Além de nos dá essa noção da vida em sociedade, ela nos mostra

que temos que ter organização, respeito, ter harmonia, trabalhar juntos e cuidar um do

outro, como elas fazem conosco ao cuidar das nossas florestas, do nosso ambiente nos

mantendo fortes e sadios.

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Dessa forma, o consumo do mel revigora a memória mitocosmologica, porque,

sua produção esta intimamente ligada a um ancestral divino. Pois o mel adquirido das

florestas, aquele encontrado na natureza, ou dos meliponário tem um efeito reciproco

entre os Sateré-Mawé e as abelhas produtoras do mel.

Os Sateré-Mawé também apontam que as abelhas necessitam de muitas plantas

para retirar o néctar, dessa forma, eles precisam preservar a floresta, as flores para que

estas possam também alimentar-se. Desse ponto de vista, verificamos que o meio

ambiente bem preservado é essencial para a produção do mel.

O mel é produzido nas comunidades Sateré-Mawé segundo os interlocutores

desta pesquisa, com as chamadas abelhas sem ferrão, são mansas e oferecem um

produto de boa qualidade para consumo próprio e para ser comercializado. No que se

refere à abelha são considerados animais sagrados para os Sateré-Mawé, muitos

criticam as formas predatórias com que tratam e lidam algumas pessoas. Atualmente

existem diversos meliponários nas aldeias, onde são extraídos o mel, pólen, própolis,

néctar e a colmeia. Produtos atualmente comercializados através de projetos

econômicos acompanhados pelo CGTSM.

Os Sateré-Mawé indicam que o mel além de servir a saúde, é consumido

enquanto alimento em várias ocasiões onde precisam ficar horas sem consumir outros

alimentos. Esse produto é de longa data, entre eles, além disso, a abelha também ajuda a

polinizar as florestas de guaraná, outro alimento que compõe a mitocosmologia do

grupo. Dessa forma, o mel está simbolicamente relacionado às formas de preservar, nas

florestas, as colmeias construídas no ambiente. Assim como, no processo de criação dos

abelheiros, onde estas merecem toda reverencia do grupo.

Também as abelhas no processo de polinização ajudam a manter e produzir

novas árvores frutíferas, agregando na dieta do grupo, outros alimentos como as frutas e

o retorno das caças, onde já se evidenciam escassez.

Os diálogos destacam que as abelhas além de fornecerem o alimento, ajuda na

conservação dos guaranazais, essencial na vida social, religiosa e politica dos Sateré-

Mawé. Sendo que a abelha simbolicamente representa uma espécie de protetora e

multiplicadora do fruto mítico – o Waraná sustentando uma rede de relações sociais,

culturais e econômicas entre os Sateré-Mawé e outras sociedades. Uma verdadeira mãe,

aquela que cuida, acolhe e resguarda seus filhos, esperando destes apenas o respeito.

Como já dissemos o mel também é comercializado, assim como o guaraná,

sendo que a produção e lucros não se comparam a do guaraná.

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Os interlocutores afirmam que a criança muito pequena não pode consumir o

mel in natura, mas poderá consumi-lo misturado a outros produtos para amenizar os

sintomas da gripe, resfriado, tosse, dor de garganta e outros sintomas relacionados a

doenças respiratórias. Nesse contexto o mel é um alimento que cura e ajuda no trato das

doenças infecciosas, alguns Sateré disseram que as rezas são importantes nas crianças

muito pequenas, além de utilizarem os chamados xaropes e lambedores, com mel.

Os adultos Sateré-Mawé são apreciadores do mel consumindo em várias

ocasiões, como por exemplo, durante a pesca, a caça, períodos que se sabe que irá ficar

várias horas sem poder comer outros alimentos. O mel é um excelente condutor nessas

atividades. Há relatos em que o mel deve ser apreciado e respeitado, já que o mesmo é

produzido simbolicamente por um ser mítico que foi transformado para beneficiar e

alimentar esse povo. Pois a abelha, não só excrementa de seu próprio corpo o mel, ela

trabalha arduamente todos os dias para ajudar a produzir o guaraná de qualidade e livre

de impurezas. Portanto, quando os Sateré-Mawé consomem o mel, estão também

introjetando em seus corpos simbolicamente a sua própria natureza mítica. Aquela que

outrora é a conhecedora das plantas que curam, das rezas e de tudo que havia no

paraíso, é a condutora de um tempo cíclico, já que o consumo do mel, significa retornar

as origens, configurando-se como um marcador de reciprocidade. Haja vista que os

Sateré-Mawé cotidianamente cuidam de seus abelheiros e carregam a simbologia do

mel como sendo um alimento benéfico na cura de doenças e a abelha como a produtora,

cuidadora e transmissora dessa interligação mitocosmológica.

O mel é consumido in natura, há também a presença de projetos econômicos,

nas comunidades dentre eles a apicultura.

A relação das pessoas com as abelhas melíponas; as relações com o ambiente e

a produção/reprodução da saúde; e a relação das pessoas com o ambiente para escolha

de roças e sítios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto alimentar dos Sateré-Mawé foi brevemente analisado aqui neste

artigo, merecendo ainda outras reflexões acerca do consumo de outros alimentos, que

fazem parte do contexto simbólico alimentar da vida diária, e em contextos especiais

como nos rituais e nas etapas do ciclo da vida, como analisa Poulain (2004). Esta

resumida experiência alimentar com o grupo, nos trouxe reflexões a respeito da

sociedade e de como a mesma é regida por processos mitocosmológicos. Em outros

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contatos com os Sateré-Mawé observamos em pesquisa realizada anteriormente, a

presença de uma dieta específica, como por exemplo, o consumo ritual do Waraná -

guaraná, maniuera (formiga), mel, pupunha, tubérculos como cará, batata doce, entre

outros, que são consumidos de maneira regular, possuem um significado

mitocosmológico para eles desde seu preparo, escolha, e formas de ingestão em

períodos distintos, como em processos rituais. Nesse aspecto passamos a observar e nos

interessar pela dieta que produzem efeito processos rituais e simbólicos para o grupo. E

assim, esta pesquisa esta sendo realizada, no âmbito de trazer os códigos sociais e

culturais que envolvem o modelo alimentar dos Sateré-Mawé.

Refletirmos que o mel e waraná são alimentos consumidos nos vários espaços

sociais, compartilhando com outras pessoas não indígenas e ofertado sempre que se

deseja um diálogo harmonioso, como no caso a ingesta do sapó. Como diria Lévi-

Strauss (2004) em O cru e o cozido, os mitos sul americanos sobre a origem da cozinha,

utilizou conceitos universais. Em Do mel as cinzas, o contexto dicotômico esteve mais

presente, porém o mel representa o estado de natureza, onde o alimento já encontra

pronto para ser consumido de forma que se consumo não estaria ligado a cozinha, mas

percebemos que os Sateré-Mawé utilizam o mel de diferentes formas, observando

outros aspectos da vida, como saúde, doença. Enquanto o guaraná, esta ambientado

tanto ao contexto de dentro dos cômodos da casa, como fora dela.

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