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ADONIAS FILHO

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ADONIAS FILHO

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É no Largo da Palma, tão velho quanto Salvador, na esquina da ladeira que desce no caminho da Baixa dos Sapateiros, é precisamente aí que fica “A Casa dos Pãezinhos de Queijo”. Ali vive um bocado de povo, cobertas coloridas enfeitam as janelas, e a gritaria dos rádios sufoca os pregões dos vendedores de frutas da Bahia.

Joana faz os pãezinhos no andar de cima e Célia, sua filha, os vende na loja, embaixo, com a freguesia aumentando dia a dia. Todos comentam a delicadeza de quem os vende.

Gustavo escuta a voz de Célia pela primeira vez quando vai comprar pãezinhos de queijo para a avó. Nada permanece a não ser a voz que acabara de ouvir. Doce e macia, ao lado do riso alegre, a voz da moça é música melhor de ouvir-se, nas manhãs de domingo, que o próprio órgão da igreja.

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No dia seguinte volta à "Casa dos Pãezinhos de Queijo". O que deseja, no íntimo, é retroceder. As pancadas do coração, porém, ordenam que prossiga. Mas prosseguir para quê? É um homem sem voz que, ao tentar falar, consegue apenas guinchar como um bicho.

Apoiando-se no balcão, escreve: "não sou surdo e, porque ouvi, sei que você se chama Célia." Célia, sentindo mais que percebendo, sabe que ele fora para declarar-se como um namorado. Permanece, pois, fascinada pelo rapaz que não fala e que de rosto faz lembrar um dos anjos da igreja.

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Sabe que não esquecerá jamais, com os cabelos negros e os olhos cor de avelã, o rosto do rapaz que reflete enorme amor de homem. Como entender o que acontece? Homem ele já é com o peito largo e forte que é quase um lutador. Alto e belo como uma árvore. E por que – Senhora Santa da Palma – e por que é mudo? Nasceu assim? Houve um acidente? Doença? Uma doida, apenas uma doida se deixaria seduzir e fascinar por um mudo!

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O pai de Gustavo não ocultava a decepção de ter um filho, quando não inválido, praticamente inútil. Os médicos não admitiam a cura. Que moça, afinal, o aceitaria como namorado? Ou seria uma criatura extraordinária e incomum ou apenas uma vigarista que, sabendo-o rico, a ele se chegava por causa do dinheiro.

Ele tem medo. Medo de que ela escape qualquer dia por ele ser mudo e – ela escapando – sentir-se novamente desesperado e só.

- Não quero que você escreva mais! Quero que você fale!

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Gustavo ouve e sente que o amor e o beijo de Célia podem gerar o milagre. (...) As bocas se afastam, as mãos mais se apertam, as lágrimas nos olhos que parecem sangrar. Tudo, agora, é nele angústia e dor. (...) é como num parto, a voz está nascendo. (...) E ele a rir e a chorar ao mesmo tempo, exclama, em tom ainda fraco, mas exclama:

- Amor!

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A personagem Eliane está fazendo uma revisão de suas vivências: a vida com Geraldo, que a enxotara e a vida com Odilon, com quem fora casada e o abandonara por não gostar do tipo de vida que levava com o marido que era médico e muito dedicado à profissão.

Lê-se e percebe-se a passagem do passado, visto através da lembrança de Eliane, para o presente.

Essa lembrança a perseguiu durante bastante tempo, era como uma ideia fixa, hora a hora a rever as notas sobre a cama. O dinheiro na cama, sobre o lençol, nele refletido o desprezo do homem. E como se aquele dinheiro pudesse compensar a ingratidão e resgatar a mocidade e a vida que a ele dera em troca de alguma coisa.

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Gasto é o vestido que Eliane usa, fora da moda, o melhor dos que restaram. Os cabelos agora brancos, sempre sedosos, não melhoram o rosto cansado. Olhos sem brilho, boca um pouco murcha, as rugas. Este é o lado, o lado de fora, que Odilon verá. Não poderá ver, porém, o lado de dentro, precisamente o lado da consciência e do coração.

Odilon soubera que Geraldo a expulsara e queria reencontrá-la.

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E, como se nada houvesse acontecido naqueles trinta anos, desde que se separaram, ele apenas diz:– Vamos, Eliane, vamos para casa.

“(...) Ela se lembra das manhãs de chuva que sempre escurecem o Largo da Palma. Agora, como a vingar-se daquelas manhãs, o sol ajuda o céu tão azul. E Eliane, ainda com o coração a bater muito forte, não tem dúvida de que o seu velho largo, como num dia de festa, está vestido de branco.”

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O velho negro Loio sempre viveu em volta do Largo da Palma. Seu pai tinha uma venda no Mercado Modelo e tinha total confiança no filho. Tanto que ele não ligou quando Loio começou a ter um caso com uma prostituta chamada Aparecida.

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Um certo dia, Loio pediu que Aparecida tirasse sua sorte. Ela, com o rosto sério de sempre, disse que ele “tinha uma morte em suas mãos”.

Aparecida não conseguia viver sem os bares, a noite, as festas, e acabou voltando a se prostituir e se afastar de Loio.

Até que um dia acharam seu corpo esfaqueado numa rua. Loio acabou se fechando em seu mundo, sempre a trabalhar na venda do pai e a tocar sanfona. Até que um dia seu pai morreu e deixou, junto com um dinheiro e um terreno, a venda como herança. Com o dinheiro ele comprou a loja ao lado da sua e conseguiu fazer com que a venda prosperasse.

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Algum tempo depois, Loio conheceu Verinha em um espetáculo de circo. Não demorou muito para que casassem e ele fosse morar com ela.

Pouco tempo depois tiveram uma filha, Maria Eponina, e viveram todos juntos uns dez anos ali. Até que um dia Verinha acabou falecendo devido ao tifo. Algum tempo depois, sem que Loio nem reparasse, a mãe de Verinha faleceu e Maria Eponina já era uma moça e uma grande dona-de-casa.

Sem conseguir levar a venda sozinho, Loio contratou um ajudante. Chico Timóteo era um rapaz e tanto, que em pouco tempo já cuidava de tudo como se fosse sócio.

Um tempo depois ele se casa com Maria Eponina. Os dois tiveram uma filha, Pintinha, que se tornou o segundo amor do velho Loio. O outro era a sanfona.

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Pintinha e Loio estavam sempre juntos a conversar e a tocar sanfona. Ele a levava e a buscava da escola. Mesmo quando Pintinha passou a ir com as amigas para a escola, quando ela voltava para a casa era com o avô que ficava. E quando o avô adoecia, ela era que cuidava dele. Loio fazia o mesmo se o contrário ocorresse. E assim Pintinha foi crescendo até que se tornou professora.

Sendo professora nova, colocaram-na para trabalhar em uma escola bem afastada Porém, um dia ao invés de Pintinha veio um policial informando que a moça tinha sido violentada e espancada, por um milagre não morreu. Após duas cirurgias e algum tempo no hospital, Pintinha voltou para casa. Mas ela já não reconhecia ninguém e passava o dia sofrendo de dores.

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Loio resolveu ir ter uma conversa franca com o médico, que lhe contou que Pintinha não tinha como se salvar. As cirurgias apenas prolongaram sua vida, mas ela estaria condenada a passar os dias sofrendo com dor até morrer. Então, ele resolve ir até a venda de um farmacêutico amigo seu no Mercado Modelo e lhe pede o veneno mais forte que tiver, dizendo que era para seu cachorro doente. Como ninguém ousaria duvidar de Loio, ele lhe entregou o veneno e lhe explicou como usar.

Chegando em casa, Loio foi deixado sozinho com a neta Pintinha, pois Maria Eponina iria sair. Sem hesitar, Loio mistura veneno com água em um copo e dá para neta beber. Ficou sentado na sala esperando a filha chegar e que viessem os gritos desesperados dela. Porém, Maria Eponina ao ver a filha morta apenas pediu que o pai trouxesse uma vela, sem nenhuma lágrima e quase sem voz.

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O narrador, “eu”, vai andando pelo Largo da Palma e avista uma mulher vindo em sua direção tropeçando muito, talvez bêbada ou uma epilética. Próximo à escadaria da igreja, ela tropeça e cai. Mal o narrador se debruça para acudi-la, já sabe que a mulher está morta ali em seus braços. Ele a coloca de volta no chão com todo o cuidado, quando percebe que do nada toda a multidão que estava dentro da igreja, inclusive o padre, está ali para saber o que aconteceu.

Enquanto esperam a polícia, ao olhar aquela pobre moça, magra, com a roupa tão suja que mal dá para distinguir a cor e com sinais de quem passou por muita fome e dor, o narrador se lembra de quando foi levado a um bordel por uns amigos para ele perder a virgindade. Quando eles estavam na mesa acompanhados por belas moças, chega uma mulher velha e feia, pobre como aquela outra mulher que se encontrava morta ali no chão do Largo da Palma.

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A cafetã grita para a pobre mulher que se ela não conseguir nenhum homem para dormir, era para ela ir embora que ali não ficaria mais. A cafetã segue a gritar ofensas e ameaças para a mulher e pergunta aos homens do local se existe alguém que deseja aquela pobre criatura. Ao que o narrador, nesse momento com apenas dezoito anos, se levanta e diz, para o espanto de todos, que a quer. Então, ele sai de lá com a mulher não em direção ao quarto, mas ao Terreiro de Jesus. Lá, a mulher diz que seria melhor morrer, pois morta não passaria fome e nem medo.

A polícia já chegara e estava levando o corpo da mulher para o necrotério e o narrador se apresenta como testemunha. O policial pede para que o narrador o acompanhe até a delegacia e ao necrotério, mas desiste ao saber quem era o narrador. Porém, este insiste dizendo que viu a mulher morrendo ali na frente e agora estava curioso para saber o que havia acontecido e quem era essa mulher.

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No necrotério o médico faz a autópsia e decreta se tratar de uso de tóxico. Ao revistar a bolsa da mulher, o policial encontra apenas alguns objetos pessoais, uma caixinha de fósforos contendo cocaína e uma saboneteira de plásticos com alguns dentes humanos dentro. Não havia nenhum documento que pudesse identificar a mulher, que permaneceu no necrotério para o reconhecimento dentro dos prazos da lei.

Dois meses após a morte da mulher, o Largo da Palma já havia se esquecido do fato, pois já era muito velho e não tinha memória para todos os acontecimentos. O narrador sente o cheiro do trigo vindo de “A Casa dos Pãezinhos de Queijo” misturado com o do incenso da igreja e cogita se não foi isso o que atraiu aquela mulher para morrer ali no Largo da Palma.

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Então, o narrador encontra o inspetor de polícia na Rua Chile e esse informa que a morte da mulher havia sido realmente causada por tóxico. Além disso, o inspetor diz que os dentes dentro da saboneteira eram da própria mulher, mas não se sabe porque ela os carregava consigo.

Ao caminhar pelo Largo da Palma, o narrador pensa que a mulher não havia morrido ali, mas sim que ela morreu em delírio, fora do corpo em um mundo que não o nosso.

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O ceguinho da Palma, como todos os chamavam, era um homem que de tão magro e pequeno era quase um anão. Morava em umas estrebarias abandonadas junto com índios, negros libertos, ladrões e mendigos. Nas noites quentes dormia pela rua mesmo, mas quando chovia abrigava-se dentro da igreja. Estava sempre ali no Largo da Palma a pedir esmolas.

Diziam que ele havia ficado cego por ter falado mal da Santa da Palma e agora estava ali cumprindo castigo há anos, certo de que um dia a Santa o perdoaria e ele voltaria a enxergar.

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Em um certo dia, quando João-o-Manco, vigia da região, veio acordá-lo logo cedo, disse que aquele seria o dia em que iriam enforcar uns condenados no Campo da Piedade. A missa daquele dia tinha apenas umas dez pessoas, e ninguém negou esmola ao ceguinho como se todos temessem alguma coisa.

O ceguinho da Palma juntou-se ao povo que caminhava em direção ao Campo da Piedade. Parecia que naquele dia a Bahia havia parado para acompanhar os enforcamentos.

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Então os dois seguiram juntos rumo ao Campo da Piedade para acompanhar os enforcamentos. Para o cego a cidade parecia triste, mas para Valentim a Bahia nunca fora alegre, pois uma cidade que tem escravos não pode ser alegre. Aqueles enforcamentos serviriam para que o povo aprendesse a lição, pois D. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia, poderia perdoar ladrões e assassinos, mas não os inimigos do Rei.

Já se encontravam no Campo da Piedade, frente à grande forca de madeira da lei, grande o suficiente para que nem mesmo um anão deixasse de ver o espetáculo. E assim, os condenados foram chegando e sendo enforcados rapidamente um a um: Manuel foi o primeiro, depois Lucas, Luís e, por fim, João.

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O ceguinho da Palma não sabe que fim levou Valentim perdido no meio da multidão. Foi retornando devagar, passo a passo em direção ao Largo da Palma, que reconheceu com os pés descalços ao pisar nas pedras ásperas e a grama macia. Sentiu o cheiro do incenso e imaginou que naquele momento já estariam a cortar as cabeças e mãos dos enforcados para deixar em exposição no Cruzeiro de São Francisco ou na Rua Direita do Palácio. Então o ceguinho ajoelhou-se com as mãos na porta da igreja e essa foi a única vez em toda a vida que agradeceu à Santa da Palma por ter ficado cego.

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Cícero era um garimpeiro de Jacobina que não fazia nada e de vez em quando gostava de tomar uma pinga. Sua mulher, Zefa, porém, era uma negra dura que trabalhava muito e, sabendo do marido que tinha, tratava de economizar um dinheiro para construir uma quitanda. Apesar de gritar com o marido dizendo que um dia o abandonaria por ser tão preguiçoso, no fundo ela acreditava nas desculpas dele de que vida de garimpeiro era assim e sabia que um dia chegaria a hora em que ele apareceria com um diamante.

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Até que um dia, em uma das raras garimpadas dele, Cícero topou com uma pedra do tamanho de uma azeitona. Falou-se disso o dia inteiro em Jacobina e todos perguntavam o que ele iria fazer com tanto dinheiro que conseguiria com a venda da pedra. Depois de muita discussão, fechou negócio com Salvianoe, com o dinheiro no bolso, fez o que todo homem faria e entrou no primeiro botequim e já começou a gastar. No caminho de volta, nem pensou duas vezes e já comprou roupas novas para ele e para a mulher. Ao chegar em casa, Zefa fez um café bem forte para Cícero e só depois que a bebedeira passou ela falou de comprar uma quitanda em Salvador.

Foram os dois de trem para a Capital e em coisa de dez dias compraram a casa já mobiliada, pois não eram mais gente para ficar em casa de aluguel. A quitanda, que era mais um pequeno armazém do que uma quitanda, ficava logo ali na própria Ladeira da Palma, perto da casa. Tudo foi pago à vista e posto no nome de Zefa.

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Enquanto Zefa cuidava da quitanda e de sua vida, Cícero passava as tardes a queimar seu dinheiro. Já era popular nos botecos e no fim da tarde pagava bebida para todos. Até que um dia a consciência apertou e ele resolveu ver quanto de dinheiro que havia sobrado. Cícero só tinha cerca da metade do dinheiro que conseguiu com a venda do diamante.

No dia seguinte, todo bem vestido saiu para andar e foi para a Rua Chile sonhando com as belas moças da Bahia. Entrou em uma das casas atraído pelo som da valsa tocada no piano desafinado e mal sentou na mesa e pediu uma bebida, veio uma bela moça de nome Flor se juntar a ele.

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E de riso em riso, palavra em palavra, Cícero acabou se apaixonando por Flor. Ele se perguntava como poderia ter ficado tanto tempo com a negra Zefa. Porém, essa paixão não durou nem sete dias. No primeiro ela exigiu uma pulseira de ouro, no segundo nada pediu, no terceiro foi um par de brincos e dinheiro. No quarto, sem nem que Flor pedisse, ela ganhou três belos vestidos de seda. No quinto ela pediu um anel. No sexto, como já tinha o que queria, pediu mais dinheiro e assim ela descobriu que Cícero já quase não tinha mais dinheiro algum. Então ela o mandou embora.

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Chegando em casa foi recebido por Zefa de cara amarrada. Ela já iria mais tolerar as mentiras e a folga dele, e muito menos que ele comesse todo o lucro da quitanda. Cheia de tanta mentira e malandragem, Zefa o mandou embora.

Assim, Cícero deixou a mulher falando sozinha e foi-se embora com a roupa já toda suja e gasta. Foi andando pela rua pensando na ingratidão de Zefa e no desprezo de Flor, pensava que todos iriam pagar por tremenda maldade. E aí pensou em como conseguir dinheiro. Não muito, apenas o suficiente para voltar a Jacobina e voltar à vida de garimpeiro.