Alma de Viajante...Do castanho do deserto ao branco do sal 45. A caminho de uma Bolívia a ferro e...

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Alma de Viajante

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Alma de Viajantefilipe morato gomes

© 2007, Filipe Morato Gomes© 2007, Edições Cão MenorRua Alfredo Pereira, 135, 1º frente4560-502 Penafielwww.caomenor.pt

Título: Alma de ViajanteTexto e fotografias: Filipe Morato Gomes . [email protected]

Revisão: Ricardo Neves . [email protected]

Capa e paginação: Paulo Jorge Sampaio . [email protected]

Fotografia da ficha técnica: Andrea Salomé Martins . [email protected]

1ª Edição ISBN 978-989-95184-4-5Depósito Legal nº 257963/07

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Índice

No coração de uma Mongólia rural e despo-voada, o acaso leva-me ao encontro de uma família verdadeiramente desacostumada à presença de forasteiros. Partilho sorrisos e ac-tividades domésticas, sem uma única palavra em comum. Sou mongol por um dia.

07. Um dia com uma família mongol

Sigo em direcção às belezas naturais do lago Baikal, o maior lago de água doce do Mundo. Instalo-me na rudimentar Khuzhir, principal povoação da ilha de Olkhon, e percorro a ilha de bicicleta. É a primeira grande paixão desta viagem.

03. Lago Baikal, tesouro siberiano

15. As minorias étnicas de Sapa

Vou ao mercado de Sapa e percorro trilhos de montanha em busca das mi-norias étnicas que habitam o Noroeste vietnamita. Dias rodeados por gentes h’mong e dao, preparativos para um ca-samento thai e muito vinho de arroz.

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19. O homem que desactiva minas com os pés

Entro nos magníficos templos de Angkor e fico maravilhado com a beleza invulgar de Ta Prohm. E co-nheço Aki Ra, o homem cuja mis-são de vida é desactivar minas em solo cambojano para tornar o país mais seguro. Com os pés.

Visito os templos de Bagan e aprecio um belo pôr-do-sol num pequeno templo desconhe-cido, livre de turistas. Sigo depois para a bela praia de Ngapali, antes de deixar Myanmar com a consciência de que os birmaneses nem isso – sair do país – podem fazer livremente.

28. Pôr-do-sol nos templos de Bagan

A história cruza-se, de forma trágica, com a minha volta ao Mundo. Mudo de rumo e voo para Phuket, na Tai-lândia, onde encontro cenários para-disíacos transformados em lugares de morte.

23. Tsunami altera planos da volta do Mundo

01. O primeiro dia do resto de uma vida

02. Vida em movimento no transiberiano

03. Lago Baikal, tesouro siberiano

04. Lua de invulgar mel

05. Com Nelly Furtado no deserto de Gobi

06. Percalços na verdejante Mongólia Central

07. Um dia com uma família mongol

08. Em busca do famoso canto gutural

09. De regresso à escola

10. O doce aroma do passado

11. Numa excursão chinesa a Jiuzhaigou

12. Chá de jasmim e palhetadas

13. O resgate da virgindade

14. De caiaque pela baía de Halong

15. As minorias étnicas de Sapa

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16. Pequenos prazeres no cenário tropical de Mui Ne

17. As marcas da guerra que o tempo não apaga

18. Khmer Vermelhos, o lado negro da natureza humana

19. O homem que desactiva minas com os pés

20. Massagens no areal

21. Zoológico humano ou forma de sobrevivência?

22. “A mais bem preservada cidade do Sudeste asiático”

23. Tsunami altera planos da volta do Mundo

24. A agonizante luta pela sobrevivência

25. Reflexões sobre uma profissão: jornalista

26. Myanmar, um país oprimido

27. Moustache Brothers, gargalhadas contra o regime

28. Pôr-do-sol nos templos de Bagan

29. O azul do mar, o amarelo da lua e o verde do chá

30. Por mares muito antes navegados

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Chego a Timor-Leste, naquele que era um dos momentos mais an-siados de toda esta viagem. Passo pelo Cemitério de Santa Cruz, co-nheço a vida dos antigos guerri-lheiros nas montanhas e falo com os seus filhos – alguns dos quais nunca viram os pais durante os anos de luta pela independência.

36. As fotos dos pais que os filhos nunca viram

Embarco numa lancha em direcção à ilha Sipadan, famosa pela excelência dos locais de mergulho em seu redor. Nas águas, avisto tartarugas, tubarões, barracudas e mantas gigantes; no areal deserto da ilha, encontro polícias bem armados.

33. Tartarugas, polícias e tubarões

No coração da Austrália Cen-tral, durmo sob um céu con-tinuamente estrelado, subo ao topo do imponente Kings Canyon e aprecio a rocha ver-melha de Uluru envolvida por um surpreendente arco-íris. Em solo sagrado aborígene, presencio o desrespeito pelas leis tradicionais anangu.

40. Quando um arco-íris abraça Uluru

Entro nas paisagens tristes do deserto de Atacama, onde tudo é seco e castanho. Visito lagoas deslumbrantes nos planaltos dos Andes, cavalgo pelas areias do deserto e aqueço-me em cam-pos geotérmicos. Até que o bran-co toma conta da paisagem, num prenúncio do que encontrarei nas planícies de sal bolivianas.

44. Do castanho do deserto ao branco do sal

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Índice

31. Uma Singapura sem arranha-céus

32. Orangotangos, os “homens da selva” do Bornéu

33. Tartarugas, polícias e tubarões

34. Em Bali, ainda se ouvem os ecos das bombas

35. Os espíritos andam à solta nas ruas de Ubud

36. As fotos dos pais que os filhos nunca viram

37. O poder da Igreja em Timor-Leste

38. As contradições linguísticas de um belo país

39. O drama moderno dos aborígenes

40. Quando um arco-íris abraça Uluru

41. Vivendo no subsolo, em Coober Pedy

42. Tripas à portuguesa no adeus à Austrália

43. Na rota dos Nobel chilenos da literatura

44. Do castanho do deserto ao branco do sal

45. A caminho de uma Bolívia a ferro e fogo

46. Descida ao inferno das minas do Cerro Rico

47. Viagem às ilhas do lago Titicaca

48. Inti Raymi, tributo inca ao astro-rei

49. Reinventando os sons de Carlos Gardel

50. Saudades em Colónia, churrasco em Montevideu

51. Salpicos de prazer, em Iguaçú

52. Bonito por natureza

53. Na casa do “Papá”

54. Forró à lei da bala

55. Os deliciosos sabores do Pará

56. Solidariedade no Amazonas

57. O misterioso mundo dos tepuis venezuelanos

58. Das Caraíbas para Portugal

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Sigo para o Espírito Santo, considerado o estado mais perigoso do Brasil. Passeio por lugares sem vestígios de violência, conheço o tra-balho artesanal das panelei-ras de Goiabeiras e termino a semana num povoado que mudou de localização devido ao avanço implacá-vel das dunas. E é aí, nesse pequeno éden chamado Itaúnas, que me apercebo de que a lei da bala ainda impera, de facto, nalgumas zonas do Espírito Santo.

54. Forró à lei da bala

Chego a Cuzco na época mais agitada do ca-lendário local. Celebra-se o Inti Raymi, uma alegre homenagem ao criador de todas as coisas para a civilização inca: o Sol. E visito as impressionantes ruínas de Machu Picchu, lo-cal sagrado e um dos últimos refúgios incas. Uma semana memorável.

48. Inti Raymi, tributo inca ao astro-rei

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Cartão de embarque

Mais do que um relato de viagem, este livro é uma via-

gem de emoções. De histórias. Relata momentos ímpares vividos

no desconforto da estrada, o estado de permanente descoberta, a

empatia das amizades efémeras, os cheiros, os sabores, os sorrisos,

a magia das coisas simples, enfim, o prazer inigualável da liberda-

de. Mas relata também experiências emocionalmente arrasadoras,

para as quais não poderia nunca estar preparado, como o tempo

passado na Tailândia e no Sri Lanka nos dias seguintes ao maremo-

to do oceano Índico.

Sobre todas as incidências da viagem fui escrevendo, se-

manalmente, ao longo dos catorze meses que durou a odisseia, nas

páginas do Fugas – o suplemento de viagens do jornal Público. São

essas crónicas que se encontram neste livro, em versões pontual-

mente alteradas, a que se adicionou um ou outro escrito nunca an-

tes publicado em papel e uma selecção de fotografias que retratam,

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elas próprias, à sua maneira, os catorze meses de viagem.

No Fugas, tive a felicidade de encontrar um editor duro na

crítica e difícil no elogio, mas, acima de tudo, sincero e justo. Ao

Pedro Garcias, editor do Fugas, é este o momento de publicamente

agradecer tudo o que por mim fez enquanto contador de histórias,

cronista de viagens, jornalista atento ao menos óbvio.

Ao Paulo Jorge Sampaio, amigo e parceiro profissional de

longos anos, agradeço o inestimável empenho colocado na criação

do design desta obra. Ao Ricardo Neves, o meticuloso trabalho de

revisão das crónicas. Por fim, ao Manuel António Andrade, mentor

da Edições Cão Menor, agradeço por me ter espicaçado para fazer-

mos, juntos, este livro.

Façam boa viagem pelas fotos e crónicas que se seguem!

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Praia numa pequena baía em Khuzhir, ilha de Olkhon

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Babuska Lyna, amorosa proprietária da habitação onde pernoitei em Khuzhir

O inglês David, companheiro de viagem no lago Baikal

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Bulgan, pequena povoação no interior da Mongólia

Habitação tradicional mongol em Khongoryn, deserto de Gobi

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Pormenor de um lavatório em Khongoryn

As ovelhas têm um papel preponderante na economia local; Acampamento mongol no vale de Orkhon; Montes nevados próximos do lago Hovsgol; Ordenhando um iaque em Shine Ider; Vista de Tsetserleg, na Mongólia Central.

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Arrozais nos arredores de Yangshuo, província de Guangxí

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Secção não reconstruída da Grande Muralha da China, entre Jinshanling e Simatai, próximo de Pequim

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Faixas pintadas manualmente, com caligrafia chinesa, à venda num templo de Pingyao

Iguarias gastronómicas: espetadas de escorpiões, baratas e várias espécies de larvas

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Turistas chineses na Cidade Proibida, Pequim

Centro de Alimentação e Investigação de Pandas Gigantes, Chengdu

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Mulheres da minoria étnica dao no mercado semanal de Sapa

Família da etnia thai, anfitriões nas montanhas do Norte do Vietname

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Cena de rua na pitoresca Hoi An

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Criança de etnia h’mong;Pescador recolhendo a embarcação, numa aldeia próxima de Mui Ne;Baía de Halong. 1122 2322 23

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De barco pelos canais do delta do rio Mekong

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Altos-relevos no templo de Bayon, Angkor, Camboja Monges no templo principal de Angkor

Entardecer em Sihanoukville, Sul do Camboja

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Edificio Haw Pha Bang, Museu do Palácio Real, Luang Prabang, Laos

Margens do rio Mekong, entre Huay Xai e Luang Prabang

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Cidade histórica de Sukhotai

Mulher de etnia karen na aldeia de Ban Nai Soi. A espiral ao pescoço pesa cerca de 6 kg 1126 2726 27

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Barco-táxi atracado na praia Sairee, em Koh Tao, golfo da Tailândia

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Arrozais na região montanhosa de Kalaw Pelos canais de uma aldeia no lago Inle

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Jovem birmanesa no interior de um templo em Bagan

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Monja em Mingun 1130 3130 31

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Entardecer na excêntrica ponte de U Bein, Amarapura

Rangum

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Vista a partir de uma pequena ilha habitada ao largo de Semporna, Bornéu1132 3332 33

Malásia

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Arrozais no interior de Bali

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Timorenses em trajes tradicionais durante uma manifestação em Díli

Jovens beldades timorenses, nas povoações de Abafala e Lorí. Em Timor-Leste, a ale-gria dos mais pequenos é contagiante

Aldeia de Lorí, Timor-Leste

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Interior de casa subterrânea em Coober Pedy

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As cores do entardecer em Uluru

Casa da Ópera de Sydney

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Lagoa Miñiques, no altiplano chileno

A cavalo nos arredores de San Pedro de Atacama

Lagoa Miñiques

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Igreja do povoado de Machuca; Rua de Vicuña; Homem e suas mulas na Quebrada de Jerez.

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Chile

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Um trabalhador amontoa sal - para secagem e posterior purificação - no Salar de Uyuni

Copacabana e o lago Titicaca vistos a partir do Cerro Calvário

Hotel de sal

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Lagoa Colorida 1140 4140 41

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Vista geral de Machu Picchu, a “cidade perdida” dos incas

Ilhas flutuantes Los Uros

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Cataratas de Iguaçú

Pormenor de um mural no Camiñito, Buenos Aires

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Personificando Carlos Gardel, o grande mestre do tango argentino

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Arg

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Beleza cabocla num igarapé próximo de Belém

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Queima das panelas nas Goiabeiras, Vitória, Espírito Santo

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Jovens estudantes em Ciudad Bolívar

1 148

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198

203

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Alma de Viajantecrónicas de viagem

1 1 49

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filipe morato gomes

PORTO, PORTUGAL

O placard do Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Por-

to, anuncia o voo inicial desta volta ao Mundo, tiro de

partida para uma longa e fascinante viagem de sentido

único.

01. O primeiro dia do resto de uma vida

De olhar embaciado, fito, compenetrado, o placard que me

anuncia um voo sem volta. Caracteres turvados pela emoção ga-

nham dimensão desproporcionada sobre um corrupio de gente

como eu que parte e volta, volta sempre para onde partiu uma,

outra e outra vez. Mas hoje, aos meus olhos, tudo é diferente. Por

uma vez, o inexpressivo placard transporta, naquela exacta linha

onde o olhar se detém, uma mensagem única e nova e tão longa-

mente ansiada de liberdade por ser chegado o dia, o primeiro dia, o

tal onde o resto da vida começa na letra de uma canção.

Após este voo para Moscovo, talvez viaje pela mítica linha

transiberiana, talvez durma sob um céu estrelado nas tranquilas

estepes mongóis, quem sabe serpenteie pela magnânima Muralha

da China e desafie a alma na espiritualidade tibetana e o corpo

na elevada altitude das montanhas nepalesas. E talvez me admi-

re com a afabilidade do povo birmanês, talvez me deleite com a

riquíssima culinária tailandesa, talvez aprecie o nascer do sol nos

templos de Angkor, visite a pérola asiática de Luang Prabang, me

impressione com o litoral vietnamita e me emocione ao pisar solo

timorense. Talvez observe ainda o esplendor da Ópera de Sydney,

nade por entre peixes e corais num qualquer paraíso polinésio, sin-

ta nos poros a sensualidade do tango argentino, pise as salgadas

paisagens bolivianas e regresse ao passado nas ruínas de Machu

Picchu, antes de me embrenhar na magia de Cuba e de pensar

no futuro de regresso a casa. Talvez. A confirmação surgirá passo

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alma de viajante

O p

rimeiro

dia d

o re

sto d

e u

ma vid

a

1.Suplemento de viagens do jornal Público

a passo, naturalmente, pois, para lá daquele placard, a liberdade

de decidir, a cada momento, onde acordar no dia seguinte é um

dos mais reconfortantes luxos que terei ao meu dispor nos tempos

mais próximos.

Não é uma ideia original, esta de viajar à volta do Mundo,

nem tão-pouco escrever sobre isso o é. Mas, por mais viajantes

que percorram um dado caminho, não haverá seguramente dois

que vejam e sintam e vivam e transmitam exactamente a mes-

ma coisa, a mesma visão, a mesma emoção. Cada viagem é uma

experiência única e irrepetível, e talvez por isso o Fugas1 – arrisco

a dizer – tenha, desde o primeiro instante, abraçado este projecto,

decidindo publicar as crónicas de viagem enviadas, semanalmente,

a partir de um qualquer cibercafe existente por esse planeta.

Tenho por objectivo abraçar o Mundo calmamente e trans-

mitir uma parte daquilo que sentir, vir e ouvir, que apreender com

as amizades efémeras que forem naturalmente acontecendo; ten-

tar compreender e traduzir em palavras o espírito de um lugar e

as singularidades do seu povo e da sua cultura, na estreita medida

em que os dias de imersão nessas realidades me permitam sentir,

ainda que fugazmente, o pulsar da vida dessas comunidades, e eu

seja capaz de o traduzir em simples palavras.

Não levo muitos haveres para vencer este desafio – que o

peso é inimigo da mobilidade –, mas transporto, ainda assim, para

além do espírito aberto, dos sentidos despertos e de muito pouca

roupa, uma considerável lista de equipamento electrónico – mate-

rial fotográfico profissional e um ultracompacto computador portátil

–, responsável, em grande medida, pelos gramas em excesso que

sinto nos ombros enquanto caminho em direcção ao check-in.

Inevitavelmente, dou comigo a pensar no período de inten-

so planeamento e preparação que agora finda. Recordo que investi-

guei as maravilhas da roupa dita técnica, consultei médicos e senti

inúmeras agulhas que me fizeram adquirir imunidade a doenças

que por cá são improváveis; li, pesquisei e descobri tantas coisas

sobre tantos países e territórios quanto o tempo o permitiu, esco-

lhi o mais adequado equipamento para a viagem, visitei amigos

e familiares e, de despedida em despedida, aqui me encontro no

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filipe morato gomes

autocarro de acesso ao avião do voo sem volta. Avisto ao longe os

comissários de bordo que dão as boas-vindas, sorridentes, aos pas-

sageiros que se lhes dirigem. Retribuo, enquanto um passo, este

que acabou de deixar para trás solo lusitano, me transporta defini-

tivamente para o início desta aventura de sentido único.

Até já, algures no imenso planeta.

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alma de viajante

DE MOSCOVO A IRKUTSK, RúSSIA

Três dias e meio a bordo de um comboio russo, per-

correndo a mítica linha transiberiana, de Moscovo até

Irkutsk, na Sibéria. Uma experiência única e fascinante,

mas, por vezes, difícil de encarar numa fase tão prema-

tura desta viagem solitária.

02. Vida em movimento no transiberiano

Na posse de um bilhete de comboio e beneficiando da ex-

periência e da amabilidade de Irina – amiga de origem siberiana a

viver em Moscovo –, abasteço-me de víveres num mercado de rua

para três dias e meio a bordo de uma carruagem em marcha con-

tínua para leste: fruta, água, leite, iogurtes, pão, bolachas, sopas e

massas instantâneas, e ainda talheres e toalhetes para higiene pes-

soal. Estou preparado para a grande jornada transiberiana, penso.

Moscovo apresenta-se escura e fria quando o comboio ar-

ranca, à hora exacta, sem aviso nem alarme. Por feliz ou infeliz

casualidade, acabo por verificar que viajo num compartimento de

apenas dois lugares e sem qualquer companheiro na cama supe-

rior, o que, aumentando consideravelmente a privacidade, diminui

quase proporcionalmente as oportunidades de construir amizades

com outros viajantes durante o longo trajecto. Há, obviamente, os

corredores, os locais de fumo nas extremidades das carruagens e

o vagão-restaurante, efémeros pontos de encontro entre pessoas

que se cruzam cumprimentando-se em línguas diferentes, pessoas

que acabam por se habituar à presença alheia – como vizinhos que

se toleram sem serem amigos – e pessoas que, de facto, têm von-

tade de interagir, de falar, de se conhecerem.

Sobra, pois, demasiado tempo para outras meditações, o

que, olhando este espaço vazio que me envolve, acaba por me

fazer reflectir que esta solidão temporária talvez não tenha sido o

Vid

a em

movim

ento

no

transib

erian

o

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filipe morato gomes

tónico desejável para o começo de uma viagem tão longa como

esta volta ao Mundo.

No comboio, de dia, aproveito para olhar através dos vi-

dros sujos e que jamais se abrem, verificando que lá fora a paisa-

gem segue monótona e repetitiva, acinzentada. Estando-se alerta

por longos períodos de tempo, porém, surge, a espaços, um ou

outro retoque de considerável beleza nesta pintura desbotada pe-

las marcas da passagem do tempo na vida das janelas. As maiores

emoções concentram-se, pois, nos momentos de paragem nas es-

tações, que podem durar dois ou vinte minutos, durante os quais é

possível adquirir comida caseira saborosa e barata – como peque-

nos pastéis de couve, de batata ou de arroz e ovo –, legumes fres-

cos, bebidas ou iogurtes, vendidos, invariavelmente, por senhoras

de respeitável idade e grande vigor. São breves momentos de agi-

tação, burburinho, azáfama, pessoas tentando fazer negócio com

clientes de passagem, passageiros abastecendo-se com alimentos

muito mais gostosos do que as massas instantâneas que eu trouxe

de Moscovo.

De estação em estação, o tempo acaba por passar surpre-

endentemente depressa e em breve chegamos a Irkutsk, impor-

tante cidade siberiana e porta de entrada no imenso lago Baikal.

Sinto-me bem, preparado para as descobertas que se aproximam.

As incertezas ficaram na carruagem.

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alma de viajante

LAGO BAIKAL, RúSSIA

Sigo ao encontro das belezas naturais do lago Baikal, o

maior lago de água doce do Mundo. Instalo-me na rudi-

mentar Khuzhir, principal povoação da ilha de Olkhon, e

percorro a ilha de bicicleta. É a primeira grande paixão

desta viagem.

03. Lago Baikal, tesouro siberiano

A luz que me alumia brota de uma pequena vela pousada

num tampo de madeira velho e tosco, a água com que me lavo en-

contra-se armazenada em barris lembrando os de petróleo, a casa

de banho que utilizo é o eufemismo de um buraco rectangular num

chão de alinhadas tábuas de um pestilento cubículo da mesma ma-

deira, não há supérfluas comodidades nem pequenos luxos como

um chuveiro, uma ventoinha ou iluminação nas ruas e, no entanto,

posso, sem hesitações, afirmar que este lugar é a primeira grande

paixão desta viagem. Encontro-me em Khuzhir, povoação principal

da ilha de Olkhon, um pedaço da Sibéria banhado pelas águas do

mítico lago Baikal.

Com 636 quilómetros de comprimento e uma superfície de

31.500 quilómetros quadrados, o Baikal é o maior e o mais profun-

do lago de água doce do Mundo. Consta que alberga 20 por cento

de toda a água doce do planeta e que, nalguns pontos, chega a ter

1630 metros de profundidade. Pela sua biodiversidade, está classi-

ficado Património Mundial pela UNESCO.

Em Khuzhir, partilho a pequena e modesta habitação com

David, bem-humorado quarentão inglês e óptimo companheiro de

aventura neste último par de dias. Pretende atravessar o Tibete em

direcção ao Nepal, de Lhasa a Katmandu, pedalando uma bicicleta

em contínuos altos e baixos a elevada altitude – uma jornada para

a qual não me ocorre outra qualificação para além de “loucura”.

Lago

Baikal, te

souro

siberian

o

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filipe morato gomes

Em jeito de preparação, percorremos dezenas de quilómetros ilha

acima, maravilhados permanentemente com a paisagem e, a espa-

ços, com a amabilidade das poucas gentes locais que encontramos,

sempre curiosas à passagem de estranhos. Admiro, embevecido, o

lago ao nosso redor, as planícies esverdeadas, as pequenas flores-

tas, a paisagem em mutação, os parques de campismo selvagem

onde os russos saboreiam as férias de Verão.

Pelo caminho, avisto lugares de alguma forma sagrados e

tomo o primeiro contacto com o xamanismo – essa vivência reli-

giosa baseada na crença dos espíritos, no culto da natureza, e que

utiliza práticas como o transe ou o êxtase. Pedalo como já não me

recordava, até as forças suplicarem por um polegar pedindo boleia

de volta a Khuzhir. Chego a tempo de assistir a um tardio pôr-do-sol

por detrás das escarpas montanhosas e despeço-me de um lugar

que, sem dúvida alguma, ficará retido na memória.

Antes de voltar a Irkutsk, principal cidade desta região sibe-

riana, tempo ainda para conhecer Listvyanka, povoação localizada

na parte mais a sul do lago, próxima de Irkutsk e, por isso mesmo,

muito concorrida durante o dia. É lá que fica o Museu do Baikal. Ao

fim da tarde, quando se evaporam os turistas e a povoação retoma

a pacatez do Inverno, há sempre uma casa de família para acolher

os forasteiros e proporcionar uma retemperadora banya – nome

dado à sauna russa. Uma magnífica experiência de integração no

meio e, mais do que isso, uma utilíssima actividade num lugar onde,

tal como em Olkhon, os banhos de água quente e corrente são uma

miragem.

Parto desta região com vontade de aqui ficar prolongada-

mente, circunscrever o lago na sua totalidade e conhecê-lo de lés a

lés, sem pressas. Mas acabo por prosseguir para sul, em direcção à

Mongólia, em busca de diferentes paisagens e experiências.

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alma de viajante

04. Lua de invulgar mel

O amor é bonito quando acontece. No compartimento ao

lado daquele que me foi atribuído, conheço Fran e Ricardo, um casal

chileno em lua-de-mel, e logo um aconchego me invade a alma.

Viajam juntos desde há várias semanas por países como a Tailândia

ou o Vietname, agora a Rússia, depois a China e o que mais vier. Po-

deriam ter optado por oito dias numa ilha paradisíaca com requinta-

dos prazeres, muito marisco e revigorante vista para o mar, algures

nas Caraíbas ou no Pacífico. Mas ei-los aqui, no desconforto de um

comboio onde têm de dormir e comer e ainda amar, carregando,

como qualquer viajante independente, as suas mochilas às costas

– qual casa onde nada cabe e tudo pesa. Admiro-os. Conversamos

bastante, colocam com a naturalidade de um sorriso o seu futuro

lar em Santiago do Chile à minha disposição, tornamo-nos amigos

– se é que uma forte empatia entre temporários companheiros de

viagem pode chamar-se amizade.

Paredes-meias com o do casal chileno, divido o meu com-

partimento com Christian, amistoso canadiano a leccionar Inglês

numa escola privada em Irkutsk. Conta-me que não sabia sequer a

localização geográfica dessa tal povoação de nome estranho quan-

do lhe propuseram o dito emprego. “Procurei num mapa e aceitei

de imediato o lugar”, diz, encolhendo os ombros. Partiu. Encontrou

uma cidade que não considera particularmente encantadora ou in-

teressante. Mesmo assim, ficou. Compreendo. Eu próprio, enquanto

Lua d

e in

vulg

ar mel

DE IRKUTSK, RúSSIA, A ULAN BATOR, MONGÓLIA

No comboio a caminho de Ulan Bator, capital da Mon-

gólia, partilho momentos de grande empatia com Fran

e Ricardo, um casal chileno em lua-de-mel que viaja,

rumo à China, de mochila às costas.

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estive em Irkutsk, procurei, sem sucesso, motivos para o “Paris da

Sibéria” com que, em tempos, foi carinhosamente apelidada. Reti-

ve no olhar, ainda assim, a originalidade dos inúmeros edifícios de

madeira em pleno centro da cidade, sóbrios e elegantes. Reparei

nas suas janelas à altura do passeio – algo muito comum na arqui-

tectura local –, num ou noutro espaço público bem cuidado e, obvia-

mente, na imagem-cartaz da cidade que é o grande Teatro Drama,

edifício belíssimo de cores suaves e agradáveis. Mas, acima de tudo,

não esqueço a hospitalidade e a amabilidade das pessoas, sempre

que solicitadas a ajudar qualquer desorientado visitante.

Deixei Irkutsk, subindo para este comboio, satisfeito por ter

conhecido o principal aglomerado urbano desta região siberiana e

mais ainda por levar na memória imagens inesquecíveis desse lago

que domina o pensamento de todos os que por aqui passam – o

mítico Baikal. Consta, a propósito, que perdemos magníficas visões

das suas margens a caminho de Ulan-Ude, quando a linha férrea

serpenteia as curvas do lago sem dele se afastar. Infelizmente, pas-

sámos de noite neste troço do trajecto que nos levará calmamente

a Ulan Bator, capital da Mongólia, onde haveremos de chegar na

madrugada de um novo dia.

De novo, como sempre acontece com os viajantes que se

encontram, cedo ou tarde os seus caminhos se separam. Inevita-

velmente, penso. Para mim, é agora tempo de desvendar um pou-

co da magia desta inóspita Mongólia que piso pela primeira vez.

Quanto a Fran e a Ricardo, prosseguem a sua lua de invulgar mel al-

gures em território chinês. Haverei de os visitar um dia, se e quando

este périplo pelo Mundo me fizer parar em Santiago do Chile, com a

convicção de os encontrar juntos e felizes. Até lá, companheiros!

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alma de viajante

DALANZADGAD, MONGÓLIA

Na Mongólia, percebo como o Mundo é cada vez mais

pequeno. Quando chego a um mercado de rua, na praça

central de uma povoação perdida no deserto de Gobi, a

música que ecoava em fundo era o hino do Euro 2004,

da luso-canadiana Nelly Furtado.

05. Com Nelly Furtado no deserto de Gobi

Jamais me passaria pela cabeça acontecimento tão surreal

em pleno deserto de Gobi. No coração de uma Mongólia profunda

e acessível apenas por estradas que não o são, caminhos tortuosos

roubados à aridez pedregosa de planícies acastanhadas ou a leitos

de rio esvaziados de água. Um lugar onde os quilómetros se me-

dem em horas e o tempo passa ao ritmo lento de um camelo em

movimento.

Partimos da capital, Ulan Bator, munidos de um fogão a

gás, vários conjuntos de pratos e talheres e alguma comida, víveres

indispensáveis para ultrapassar a monótona gastronomia mongol,

baseada quase exclusivamente em carne de carneiro. É inacreditá-

vel como toda uma população sobrevive comendo carneiro a todas

as refeições – cozinhado de várias formas, é certo, mas de sabor

invariavelmente semelhante, cheiro forte e penetrante, enjoativo.

E é assim em todo o país.

Foi, aliás, ao sabor de um prato de carneiro que o grupo

para esta expedição todo-o-terreno começou a ganhar forma. Na

companhia de duas simpáticas suíças, homónimas por casualidade,

esboçou-se ali mesmo, entre duas garfadas da dita carne, aquilo

em que esta expedição se transformou: uma longa viagem numa

carrinha russa de tracção total por diferentes partes da Mongólia

rural, do deserto de Gobi aos grandes lagos no Norte do país.

Conduziu a carrinha Nêma, mongol de nascença, óptimo

Com

Nelly Fu

rtado

no

dese

rto d

e G

obi

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filipe morato gomes

condutor e pessoa de confiança, mas incapaz de pronunciar mais

do que umas muito básicas palavras em inglês. Acompanharam-

-nos ainda dois irmãos israelitas – Ofri e Eilon –, excelentes compa-

nheiros e viajantes experientes, e ainda o canadiano Christian, que,

por inacreditável coincidência, se cruzou de novo no meu caminho.

Descubro que Ofri saiu de Israel há já quatro anos, mal terminado o

prolongado e obrigatório serviço militar. Viaja por onde lhe apetece

até o dinheiro terminar, escolhe um poiso temporário para reabas-

tecimento financeiro trabalhando nalgum ofício rentável, volta à

estrada, trabalha de novo, conhece o Mundo. “Quando voltas para

Israel?”, interrogo, curioso. “Não tenho planos para regressar”, res-

ponde, com desarmante naturalidade.

Parámos, então, na pequena mas importante cidade de

Dalanzadgad, para compra de mantimentos fundamentais para os

próximos dias da expedição. Pão, esparguete, tomates, pepinos,

cebolas, água e o que mais se encontrar. E papel higiénico. No mer-

cado local, apinhado de gente vinda provavelmente de bastante

longe, um burburinho próprio dos negócios de rua é abruptamente

abafado por sons oriundos não se percebe bem de onde. De um

café, de um automóvel? Sim, do interior de uma carrinha igual à

nossa, estacionada nas proximidades – identifico, finalmente. Re-

conheço, como que atordoado, a sonoridade ecoando nas paredes

das casas, a voz, aquele misto de inglês e português estrangeirado

que a todos inundou os tímpanos meses atrás. Não quero acreditar,

é surreal de mais. Estou no meio de um mercado de rua, na praça

central de uma povoação algures no deserto de Gobi, rodeado de

pessoas de face diferente, costumes estranhos e trajar típico, longe

de casa, muito longe, ouvindo o hino do Euro 2004 pela voz da luso-

-canadiana Nelly Furtado. Não resisto a cantarolar o refrão, sorrindo,

sorrindo abertamente, tal e qual um emigrante desempoeirando

memórias antigas do seu querido país. Uma partida pregada pelo

deserto.

Sobre o Gobi – palavra que significa ela própria “deserto” –,

descubro que não chega a ser um mar de areia e dunas sem fim à

vista. É um terreno cada vez mais árido, à medida que a fronteira

sul da Mongólia se aproxima, mais pedregoso e com menos vege-

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alma de viajante

tação. Mas fértil em vida animal. As povoações são raras. Peque-

nos grupos de pessoas, normalmente unidas por laços familiares,

formam espaçadamente minúsculas comunidades compostas por

três ou quatro circulares pedaços de tradição a que os mongóis

chamam gers – a habitação mongol por excelência. Vivem incrivel-

mente isolados, sem vizinhos nas proximidades e aparentemente

afastados do mundo que os rodeia. Aparentemente, pois não é raro

vislumbrar um rasgo de civilização moderna e tecnologicamente

desenvolvida nesses rústicos lares, em mais uma insólita imagem

nestas paisagens longínquas. Antenas parabólicas. Já não me sur-

preenderia se, também aqui, novos e velhos cantarolassem aquela

melodia que me sobressaltou no mercado de Dalanzadgad. “Com

uma força que ninguém pode parar...”

Com

Nelly Fu

rtado

no

dese

rto d

e G

obi

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filipe morato gomes

VALE DE ORKHON, MONGÓLIA

Percorrer mil e quinhentos quilómetros num todo-o-ter-

reno pela Mongólia Central é uma aventura dura e sujei-

ta a percalços. Mas aparece a água, o verde, mais vida,

e o bucolismo da paisagem que compensa largamente

os dissabores da expedição.

06. Percalços na verdejante Mongólia Central

Os dias passados no deserto de Gobi foram uma admirável

experiência. Mas sabe bem ouvir de novo a água correr rio abaixo.

E perder o olhar no verde viçoso que pinta encostas e vales na zona

central da Mongólia. Passear nas margens de um lago imenso e

tranquilizador, ou observar o horizonte agora marcado pelas curvas

insinuantes de montanhas em salto alto. Não há dúvida. A paisa-

gem mudou desde que voltámos a ter o Norte como alvo. Pedras

por árvores e arbustos, camelos por cavalos e iaques, planícies por

planaltos e montanhas, lentamente o quadro que nos envolve foi-

–se tornando menos rude, mais frondoso. Talvez mais bonito. Dife-

rente.

Chegámos a Orkhon reconfortados com a ideia de um dia

de descanso neste ambiente bucólico. É o primeiro dia sem condu-

ção desde que partimos para esta expedição todo-o-terreno, pau-

sa muito bem-vinda depois de milhar e meio de quilómetros de

abanões e solavancos por caminhos inenarráveis. E Orkhon é um

lugar magnífico para relaxar. Não há nada à nossa volta, nenhuma

povoação, nada. Apenas pequenos conjuntos de gers plantados nas

proximidades do rio, que corre calmo e lento. Centenas de cavalos

vagueando elegantemente em busca de pasto. E verde, muito ver-

de em todas as direcções. Outros viajantes tinham-nos falado da

excelência deste lugar, de quanta pena sentiram por não poderem

ficar mais tempo. Compreendo perfeitamente os seus motivos. O

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alma de viajante

Percalço

s na ve

rde

jante

Mo

ngó

lia Central

vale é belíssimo, e, vindos do deserto, esse encanto é como que

uma miragem tornada realidade.

Mas nem tudo foi perfeito nesta passagem pela Mongólia

Central. Algo muito estranho sucedeu, aliás. Pela primeira vez nesta

viagem, crianças lançaram pedras contra a nossa carrinha, como

se de um jogo se tratasse. Tiro ao alvo. Em movimento. Já tinha

escutado histórias de ciclistas apedrejados por miúdos nas estradas

do Tibete, por exemplo, mas nunca nenhuma referência a este tipo

de comportamento relativamente à Mongólia, terra de gente afá-

vel e hospitaleira. Além disso, mesmo preparada e acostumada a

estes terrenos difíceis, a carrinha cedeu pela primeira vez. Foi à pas-

sagem pela antiga capital Kharkhorin que se recusou a colaborar.

Parou. Avariou. Machine no good – palavras do simpático condutor,

proferidas em simultâneo com o típico gesto mongol de mostrar o

punho cerrado elevando somente o dedo mindinho. Simboliza algo

de mau, desacordo, reprovação, muito a propósito quando acabá-

mos por ficar retidos durante mais de seis horas numa estrada de

terra batida às portas de Kharkhorin.

Por sorte, sucedeu perto de uma povoação. Deambulámos

pelo mercado local, entrámos num minúsculo restaurante despi-

do de gente e comemos o que calhou – carneiro com algo mais

–, matámos o tempo enquanto Nêma, o condutor, solucionava o

problema mecânico. E visitámos o famoso Mosteiro de Erdene Zuu,

situado nos arredores da cidade e que, ao que consta, é uma das

grandes atracções turísticas do país. Com muita criatividade, ima-

ginação e a ajuda de outros condutores que passaram, pararam e

ofereceram auxílio, Nêma lá conseguiu solucionar o problema.

Tenho por verdadeiro que é na pobreza e no isolamento,

quando a arte da sobrevivência se torna parte integrante do quo-

tidiano, que as pessoas são mais solidárias e cooperantes, mais

engenhosas e inventivas. Olho para o fundo das costas da suíça

Sophie, companheira de viagem, onde habitam para a eternidade

uns caracteres tatuados em árabe: “A imaginação é a luz da alma”.

E do desenrascanço, penso. A carrinha arranca novamente.

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filipe morato gomes

SHINE IDER, MONGÓLIA

No coração de uma Mongólia rural e despovoada, o

acaso leva-me ao encontro de uma família verdadeira-

mente desacostumada à presença de forasteiros. Parti-

lho sorrisos e actividades domésticas, sem uma única

palavra em comum. Sou mongol por um dia.

07. Um dia com uma família mongol

O acaso é um excelente amigo do viajante. Quantas vezes

as mais intensas experiências nascem de acontecimentos fortuitos.

Como agora. Por algum motivo que nunca chegarei a saber, não

pernoitámos onde era suposto. Prosseguimos viagem durante um

adicional par de horas, numa jornada deveras fatigante. Chegados

ao cimo de uma colina com vista para um pequeno vale, avistámos

três ou quatro conjuntos de gers com chaminés fumegantes. Por

incentivo do condutor mongol, apontámos ao acaso para um deles.

E aí ficámos. No lar de uma família completamente desacostumada

à presença de estranhos. Ocidentais muito menos. Gente desinte-

ressada e hospitaleira. Pura. Uma espécie de retrocesso no tempo,

na região de Shine Ider, a várias horas de distância de alguma po-

voação digna de registo.

Fomos recebidos com rasgados sorrisos no rosto. Pelo di-

nheiro – que tanta falta lhes fará –, mas não só. Noutros lugares,

a satisfação terminaria aqui. Money! Money!, ouvi, a despropósito,

várias vezes Mongólia adentro, gente simples reclamando o pa-

gamento antecipado das dormidas com receio da desonestidade

forasteira. Mas, com esta família, é muito mais do que esse conten-

tamento materialista, sinto, sem margem para qualquer dúvida.

O ger que nos foi destinado é o lar de um dos casais da ge-

ração intermédia. E dos seus três filhos. Mudam-se por uma noite

para outro local, para que nos possamos instalar. É o mais genuíno

ger em que já entrei. O cheiro que de dentro emana penetra, sem

contemplações, narinas acima. E por lá fica. Pequenos cubos de

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alma de viajante

Um

dia co

m u

ma fam

ília mo

ngo

l

uma espécie de queijo feito com leite de iaque secam, pendura-

dos na estrutura de madeira da tenda. E pedaços de carne. E uma

bacia de madeira com leite de égua coalhado, acre. A mistura de

odores é implacável. Os sabores, esses, já nem preciso testar. São

abomináveis. Não importa. Que interessa tudo isso quando somos

recebidos de coração aberto, como ilustres visitantes que honram

com a sua presença quem os recebe?

Tentámos, desajeitadamente, ajudar na ordenha dos ia-

ques, tarefa exclusivamente feminina na organização familiar mon-

gol. Com pouco sucesso e muitas risadas dos locais. Cortámos lenha

para o fogareiro situado no centro do ger, utilizado para cozinhar e

aquecer o lar. Assistimos à preparação das armas para uma sessão

de caça, numa busca de carnes diferentes que permitam, esporadi-

camente, variar a dieta alimentar. Montámos a cavalo. Conhecemo-

–nos com mútuo prazer. Divertimo-nos em conjunto.

Por via de uma máquina fotográfica digital, acabei por me

tornar, involuntariamente, o centro das atenções. Era ver miúdos

e graúdos entusiasmados com o objecto, posando ou passando

como que despercebidamente em frente da objectiva e, ao mais

pequeno som de um clique, em correria generalizada em direcção

à máquina para visualização do resultado. E gargalhada colectiva.

Emoção, alegria. Uma e outra vez. E outra. Até à exaustão. Tantas

as oportunidades, tantas as solicitações sob as cores quentes de

uma luz de final de tarde, que fiquei cansado de fotografar. Não me

recordo de outra vez em que tal me tenha ocorrido.

E tudo praticamente sem palavras. Com gestos expressivos,

mímica. E sorrisos. Ninguém na família conhecia qualquer língua

estrangeira; eu não falava mongol. Cruzei-me uma única vez com

um mongol “inglês falante”, guia e tradutor, que acompanhava um

casal de viajantes franceses no deserto de Gobi. Surpreendeu-me

ao falar sobre as condições de vida nas estepes do seu país: “A vida,

aqui, é muito fácil. Não falta nada. Têm ovelhas, iaques, cavalos,

água. Têm tudo o que precisam”, dizia, com um trejeito nos lábios,

como que a reforçar que aquilo que afirmava era mais do que óbvio.

Desarmado, nunca soube como retorquir. Muito menos agora, de-

pois de viver por um dia com esta feliz família mongol.

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filipe morato gomes

ULAN BATOR, MONGÓLIA

Regresso ao ambiente urbano e encaro de imediato as

particularidades das grandes cidades asiáticas: trânsito

caótico, poluição desmedida, barulho em excesso. Em

contrapartida, ouço esses sons estrambólicos vindos das

gargantas mongóis.

08. Em busca do famoso canto gutural

Depois de semanas palmilhando a Mongólia rural, sinto

que já não estou habituado a grandes cidades. Ainda para mais

asiáticas. Ulan Bator é como que uma suave introdução ao mundo

caótico das metrópoles deste populoso continente. Trânsito infer-

nal, poluição que dificulta o simples acto de respirar, gente de más-

caras na face. Estranho, é certo, mas nada que se compare ao que

encontrarei na China, antevejo.

Percorro as ruas de Ulan Bator à procura de algo específico.

Tento perguntar. Tinha como incumbência, desde Portugal, conhe-

cer a extraordinária arte do canto gutural, exclusividade mundial

dos intérpretes mongóis. Um tio, amante das peculiaridades sono-

ras existentes em qualquer canto do Mundo, falou-me desta arte.

Encontro a resposta num café frequentado por forasteiros. Assis-

to a um espectáculo. Os sons conseguidos com essa extravagante

técnica são impressionantes. Ninguém na plateia fica indiferente.

Mesmo que a musicalidade no seu todo seja como que monótona

e despida de alegria. Mas é algo único. E seguramente muito difícil.

Aplausos. Abandono a pequena sala satisfeito pela experiência.

Cá fora, outra surpresa. O meu caminho cruza-se com o de

um par de noivos em trajes tradicionais. Há um casamento a decor-

rer. Passeiam-se pela Sukhbaatar, a praça principal de Ulan Bator. É

um rectângulo de proporções desmesuradas que marca o centro da

cidade. Aproximo-me. Observo o casal, atento ao trabalho habitual

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alma de viajante

Em b

usca d

o fam

oso

canto

gutu

ral

de fotógrafos e operadores de câmara. As madrinhas – suponho

serem as madrinhas! – vestem belos fatos de cerimónia, sobre os

quais usam faixas a lembrar as vencedoras dos concursos de beleza

feminina. Os noivos notam a minha presença. Não é difícil, sou a

única pessoa de face ocidental nas proximidades. Peço permissão

para fotografar. O casal parece feliz pelo interesse que demonstro.

Posam imóveis como estátuas sorridentes. E continuam a posar.

Sempre. Não consigo fotografias espontâneas. Desisto. Thank you,

agradecem a sessão fotográfica. Desejo felicidades. E parto à des-

coberta da cidade.

Descortino que Ulan Bator tem duas caras bem distintas.

Ora cinzenta, tristonha, sem graça, quando um céu escuro, cores

pálidas e alguma chuva tornam um passeio nas ruas um desconso-

lo. Ora radiosa, alegre, interessante, mesmo sem deslumbrar, quan-

do os raios solares aquecem as cores dos edifícios e as qualidades

da cidade parecem ressurgir.

Com bom tempo, aprecio a arquitectura do Mosteiro Gan-

dan Tegchilin, ponto de peregrinação obrigatório para quem visita

Ulan Bator. Deixo-me perder por ruas de menor dimensão, espaços

urbanos onde gers tradicionais convivem com prédios modernos. E

reaprendo a atravessar as ruas, esgueirando-me por entre carros

que nunca param. A circulação é desordenada, as regras de trânsito

inexistentes, a buzina o mais importante instrumento das viaturas

– mudar de passeio é uma aventura.

Fujo da cidade por um par de dias e abalo novamente para

as montanhas, desta vez em direcção ao Parque Natural de Terelj,

relativamente perto de Ulan Bator. Em Terelj, o barulho dos auto-

móveis já não se faz ouvir. Relembro as melodias do canto gutural

e tento entoar algo parecido. Os sons da tradição sobrepondo-se ao

progresso descontrolado – pelo menos na minha cabeça, sob esta

lua matinal que teima em não desaparecer do horizonte, por cima

dos gers, das vacas, das montanhas.

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filipe morato gomes

PEQUIM, CHINA

Já em Pequim, conheço Richard, um professor canadia-

no e viajante de longa data, que me faz regressar aos

bancos da escola. Pela sua mão, torno-me aluno numa

aula prática sobre a vida de um viajante.

09. De regresso à escola

Percorro Pequim ao sabor de impulsos momentâneos, du-

rante uns dias, até que surge um desafio tentador: acompanhar o

canadiano Richard Rowe a uma das suas aulas de conversação em

língua inglesa. E participar activamente.

Conheci Richard fruto de uma troca de mensagens de cor-

reio electrónico. “Durante os vinte anos em que viajei de mochila

às costas, por todo o Mundo, beneficiei de tantas e tão calorosas

manifestações de generosidade alheia que decidi retribuir e ajudar

os demais viajantes, abrindo as portas da minha casa”, escreveu

Richard, actualmente com 62 anos de idade e casado com Rotjana,

uma tailandesa ainda a habituar-se à diminuição de privacidade

que a decisão do marido acarreta.

Instalo-me em sua casa. Quando lá chego, deparo com um

outro forasteiro, australiano. Não diria que há lugar para mim, mas

sou recebido de braços abertos. O apartamento é muito pequeno,

durmo no chão da sala. E não sobra espaço. É um lar simples e um

pouco fora do centro da cidade. Mas fica numa área muito sossega-

da e de certa forma apropriada para base de exploração da capital

chinesa.

Richard é professor numa pequena escola privada. Viajou

e trabalhou Mundo fora numa época sem Internet nem qualquer

forma prática de comunicar com amigos, familiares e outros viajan-

tes. Escreveu, talvez por isso, dezenas de cartas round-robin1 durante

esses anos, narrando as experiências, as emoções, os encontros

1.Termo usado de forma coloquial para designar uma carta enviada para múltiplos destinatá-

rios como, no caso, um grupo de amigos espalhados pelo Mundo.

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alma de viajante

De re

gre

sso à e

scola

e os desencontros de uma existência sem poiso fixo. “Sabes, Fi-

lipe, é tudo o que tenho para deixar aos meus filhos, o relato da

minha vida, nada mais...”, conta-me, com ar satisfeito. Uma vida

condensada em duas centenas de folhas de papel. “Mas não me

arrependo, nem por um segundo, das escolhas que fiz”, conclui. Os

seus olhos sorriem.

Apressamos o passo em direcção à escola, onde sou apre-

sentado a um primeiro-secretário de uma embaixada estrangeira

de um PALOP, a uma estudante de origem russa e à sua mãe e

ainda a chineses de profissões variadas que compõem a turma de

uma dúzia de elementos. Ficam felizes por ter um novo interve-

niente na sala de aula. E não se fazem rogados. Perguntam inces-

santemente. Sobre mim, sobre Portugal, sobre o que faço na China,

sobre a minha viagem. Vou respondendo a cada questão o melhor

possível, pausadamente.

“E o que já viste de Pequim?”, questionam. Falo da Grande

Muralha da China, da experiência estimulante que é percorrer a pé

um pedaço desta enorme barreira serpenteando montanhas até

onde a vista alcança. Explico como me deixei perder num ou nou-

tro parque da cidade. Pequim tem vários, bonitos e grandes. Con-

to como recuei no tempo ao percorrer a velha zona de Liulichang,

observando as fachadas de madeira restauradas e seus coloridos

motivos. Um espelho da Pequim de há muitos anos. Refiro como é

agradável percorrer os recantos da Cidade Proibida. Bonita, apesar

da contínua reabilitação de que é alvo e que impede ver alguns

edifícios. Perguntam-me, com evidente orgulho, se gostei de Tia-

nanmen. Respondo que fiquei triste ao pisar o solo daquela praça

colossal, enquanto me vem à memória a célebre imagem de um

anónimo estudante, imóvel, desafiando a força de um tanque de

guerra naqueles não muito longínquos protestos estudantis. Obte-

nho, como reacção, incompreensão: “Triste? Mas é a maior praça do

Mundo...”. Não insisto.

O tempo passa, a aula termina. O professor agradece a mi-

nha presença perante o grupo, mas eu é que lhe deveria agradecer.

Pelo privilégio que tive de assistir, durante uma semana em Pe-

quim, a uma enorme aula prática sobre a vida de um viajante.

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filipe morato gomes

PINGYAO, CHINA

Parto de Pequim em direcção à imperial cidade de Xian

e paro a meio do caminho, em Pingyao, cidade Patrimó-

nio Mundial, onde as velhas muralhas me trazem recor-

dações do Douro vinhateiro.

10. O doce aroma do passado

Recua-se no tempo ao chegar à pequena povoação de Pin-

gyao, situada entre Pequim e Xian. Estando o Douro em período de

vindimas, vem-me à memória o Sr. Queiroz de Mesão Frio. Entrar

nestas muralhas de Pingyao é como abrir um dos seus garrafões de

Porto, vinho caseiro aprimorado durante décadas com a sabedoria

de uma vida dedicada às vinhas. Conheço bem o seu perfume. É

algo único. E Pingyao, tal como esse vinho, ainda retém o doce

aroma do passado. Intacto. Como nenhuma outra cidade em toda

a China, consta.

Tenho a sorte de conhecer duas amigas alemãs, Mirea e

Alena, e volto a não estar sozinho nesta jornada. É uma enorme

vantagem, pois Mirea fala fluentemente mandarim. Vive na China

desde há dez anos, metade da sua vida. Percorremos juntos, num

táxi a pedais, toda a extensão das muralhas de Pingyao. Nas sábias

palavras da UNESCO, Pingyao é um “exemplo excepcionalmente

bem preservado de uma cidade Han tradicional, fundada no século

XIV”. Seja. Para mim, vindo de Pequim, cidade colossal, moderna e

cosmopolita, Pingyao é algo bastante mais simples. É uma enorme

mudança de paisagem, de ambiente e de proporções.

Do alto das muralhas, noto que a cidade é pouco mais do

que um reduzido quadrado envolvido por uma vistosa barreira de

pedra. Apenas cinco pequenas entradas permitem o acesso à ci-

dade velha. Mas é no interior dessa figura geométrica que estão

guardadas as principais relíquias do passado. Nada de prédios ou

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alma de viajante

O d

oce

arom

a do

passad

o

de outros edifícios de mediana envergadura. Apenas casas térreas

de um estilo bem definido, notoriamente de outra época. Algumas

já restauradas, outras em via disso, bastantes ainda demasiado de-

gradadas. E um ar de vida de bairro, com gente cozinhando apetito-

sa doçaria em plena rua, comerciantes de pequenas lojas tentando

atrair clientes, barbeiros em intensa actividade, dentes de ouro lu-

zindo aqui e ali, velhos jogando cartas e jogos chineses em redor

de mesas colocadas nas ruelas. E cheiros, muitos cheiros, como em

qualquer aldeia portuguesa.

Muitas das casas possuem pátios interiores belíssimos,

uma espécie de jardim localizado no centro nevrálgico dos lares

de outrora. Felizmente, algumas das mais representativas foram

transformadas em museus, permitindo aos visitantes conhecer

com maior detalhe essa faceta da cultura local. Num desses mu-

seus, conheço um amável ancião que dedica a última parte da sua

vida a manuscrever caracteres chineses em faixas que vende aos

visitantes. Mostra-nos umas quantas, tentando explicar o sentido

do que lá está escrito. Mas mesmo sem os conseguir interpretar, os

caracteres chineses pintados a negro, em grandes dimensões, são

quase sempre bonitos. Aponto para uma faixa ao acaso e pergunto

o significado. “Mesmo que te tornes rico e poderoso, não esqueças

os teus amigos”, explica-me o velho. Mirea confirma. É um chavão,

mas não resisto a comprar. Os caracteres são esteticamente gra-

ciosos.

Saímos do museu e paramos numa espécie de tasca para

almoçar. Com a ajuda de Mirea, aprendo a dizer “Portugal” na lín-

gua chinesa. Aprecio os caracteres com que se escreve a palavra

e descubro, fascinado, que os mesmos significam “dentes de uva”.

Tem graça. Uvas, vindimas, vinho do Porto e as lembranças do Sr.

Queiroz de Mesão Frio. Apetece-me brindar.

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filipe morato gomes

11. Numa excursão chinesa a Jiuzhaigou

Conhecia de antemão histórias de forasteiros em longas

jornadas de autocarros repletos de passageiros chineses, quase

sempre descritos como fumadores compulsivos e exímios escar-

radores. Relatos asquerosos de experiências difíceis de suportar do

ponto de vista ocidental. Sabia ainda, por observação directa nou-

tras ocasiões, que os turistas chineses adoram seguir em grupos

compactos dirigidos por uma bandeira colorida erguida pelo braço

de um guia. Sem lugar à iniciativa individual ou a qualquer lampejo

de vontade própria. Apenas copiando os movimentos do compa-

nheiro imediatamente anterior, as poses fotográficas em frente das

chamadas atracções, todos os passos. Um grupo de turistas chine-

ses em férias faz lembrar uma linha de montagem de uma qual-

quer indústria de transformação onde, no final, se obtém o mesmo

grupo de turistas satisfeito por ter visto o que lhe quiseram mostrar.

Nada de muito emocionante, portanto.

Decidi, mesmo assim, juntar-me a uma dessas excursões e

rumar ao muito elogiado Parque Natural de Jiuzhaigou. Ao entrar no

autocarro, antevia-me como uma espécie de ovelha tresmalhada

num rebanho de trinta turistas chineses e, felizmente, três novos

companheiros israelitas. Seguimos viagem. Para minha surpresa,

os pretensos fumadores e escarradores comportaram-se de forma

exemplar no interior da viatura. Mas descobri da pior maneira que

as excursões chinesas contemplam inúmeras pausas para compras.

JIUZHAIGOU, CHINA

Experimento fazer parte de uma excursão de turistas

chineses ao Parque Natural de Jiuzhaigou, situado na

província de Sichuan. Encontro cenários naturais des-

lumbrantes, mas sou obrigado a abandonar o grupo.

Bandeirinhas desfraldadas ao vento não são, definitiva-

mente, para mim.

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alma de viajante

Num

a excu

rsão ch

inesa a Jiu

zhaig

ou

E nunca de forma espontânea. São paragens em locais específicos

onde todos os autocarros se detêm, numa espécie de romaria a

grandes lojas que aguardam a chegada daqueles grupos ávidos de

gastar dinheiro. Quinquilharia barata, velharias que mais não são do

que artigos novos com aspecto de velho, colares, pulseiras e trapos,

chás e ervas medicinais, de tudo um pouco se compra nestas para-

gens. Alguém a viver na China disse-me numa ocasião que as férias

chinesas são tanto melhores quanto mais se gastar. Já não duvido.

Ao segundo dia, antecedendo um sobe e desce perma-

nente com infinitas curvas e contracurvas em alta montanha, nova

surpresa. Paragem para comprar oxigénio. Eram pequenas garrafas

contendo a preciosa molécula para auxiliar os menos aptos a supor-

tarem a altitude. Tal como os israelitas e um par de chineses mais

confiantes, achei desnecessário e não comprei. É certo que, em de-

terminadas partes do percurso, senti, ainda que ligeiramente, os

efeitos da altitude. Uma leve pressão na cabeça, não propriamente

dor ou náusea, antes um ténue sinal de que o corpo procura ajus-

tar-se à mudança nas condições exteriores. Mas nada de anormal,

quando se está quatro mil metros acima do nível do mar.

Desce-se para o Parque Natural de Jiuzhaigou – que a UNES-

CO elevou à categoria de Património Mundial – e os sintomas desa-

parecem. O parque fica situado numa prefeitura autónoma do No-

roeste da província de Sichuan, uma zona com notórias afinidades

com a cultura tibetana. Algumas das mais relevantes comunidades

tibetanas a viver fora do Tibete encontram-se precisamente da re-

gião de Xiahé, mais a norte, na província de Gansú, até Langmusi e

Songpan, já em Sichuan.

A excelência das paisagens proporcionadas por um cenário

alpino com florestas, quedas de água e lagos cristalinos em várias

tonalidades de azul a elevada altitude é de uma beleza desarmante.

Jiuzhaigou é um lugar invulgarmente tranquilo para o que tenho

visto na China. Mas, numa excursão de turistas chineses com guia

e bandeirinha desfraldada ao vento a indicar constantemente o ca-

minho, é impossível um viajante independente ocidental conseguir

apreciar, devidamente, a excelência do lugar. Abandono o grupo e

acabo de percorrer o parque ao meu ritmo.

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filipe morato gomes

CHENGDU E KUNMING, CHINA

Bebo chá de jasmim numa das famosas casas de chá de

Chengdu e envolvo-me num intercâmbio musical com

um grupo de idosos de Kunming. Quantas vezes os mais

simples momentos não são aqueles que perduram eter-

namente na memória do viajante?

12. Chá de jasmim e palhetadas

Sento-me, acompanhado por um par de nórdicas e ou-

tros companheiros de ocasião, numa das famosas casas de chá de

Chengdu, província de Sichuan. À nossa volta, dezenas de mesas

repletas de gente com ar sereno, conversando e bebendo chá, sob

a frescura de uma sombra proporcionada por enormes árvores de

aparência centenária. Novos e velhos, maioritariamente chineses,

partilhando chávenas de chá de jasmim sem fundo aparente, cal-

ma e prolongadamente, durante algum tempo, meia tarde, muito

tempo, toda a tarde.

Os bules de água a ferver, ininterruptamente disponíveis

para reencher as chávenas meio vazias, proporcionam um ceri-

monial repetido vezes sem conta pelos empregados do estabe-

lecimento. Um fio de água a ferver saltando do bule erguido no

ar, caindo, num movimento calculado ao milímetro, bem no centro

das pequenas xícaras circulares. Deixo-me embalar pela conversa e,

quando reparo, é já de noite. Sorvo o último gole da enésima chá-

vena de chá de jasmim e abalo ao encontro do pulsar da cidade de

Chengdu. O contraste é total. Encontro barulho, poluição, demasia-

da gente, como na maioria das grandes cidades chinesas. Respirar

é tarefa árdua, as máscaras pululam nas faces dos habitantes locais.

Já não me espanto. Acho até normal. Não ver o sol de forma nítida,

por cima deste nevoeiro enegrecido que paira constantemente so-

bre a minha cabeça, é algo que se aceita como inevitável depois de

umas semanas na China.

É, pois, com surpresa que, alguns dias depois, ao chegar a

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alma de viajante

Chá d

e jasm

im e

palh

etad

as

Kunming, mais a sul, deparo com um céu medianamente azul por

cima dos prédios que marcam o horizonte daquela moderna capital

da província de Yunan. Mas a ilusão é momentânea, pois a realida-

de cedo devolve as máscaras às faces dos habitantes, sob o mes-

mo barulho incessante. Ao contrário de Chengdu, Kunming é, no

entanto, uma cidade bem cuidada, com ruas agradáveis, elegantes

espaços verdes e razoável ordenamento urbano. Mas, mesmo aqui,

respirar sem inalar litros de gases tóxicos é tarefa praticamente

impossível. A não ser fugindo da cidade. É o que faço.

Refugio-me num parque nos arredores, onde, por entre o

chilrear da passarada, descortino o som de diversos instrumentos e

vozes femininas cantando música tradicional. Aproximo-me e sou

instantaneamente recebido com largos sorrisos por um grupo de

velhotes de ar simpático, que tocam instrumentos de cordas de

construção seguramente artesanal. Convidam-me a sentar. Ouço,

inebriado, os sons que saltam dos instrumentos e aproveito um

intervalo entre músicas para interrogar, curioso: “Costumam juntar-

-se aqui muitas vezes?”. “Todas as tardes”, respondem em uníssono.

“Todas?”, exclamo, surpreso, não imaginando o mesmo grupo de

pessoas a juntar-se dia após dia para tocar as mesmas músicas.

“Sim. Somos amigos, somos reformados, não temos nada melhor

para fazer. E, como moramos aqui, não pagamos a entrada no par-

que. Não conhecemos melhor lugar para nos encontrarmos e tocar-

mos as nossas músicas”, explicam. “Quer juntar-se a nós?”

E passam-me um instrumento para as mãos. Talvez o olhar

me tenha denunciado. Apetece-me tocar, de facto. Na forma, pa-

rece-se com um bandolim, embora possua somente dois pares de

cordas. Não esperam que saiba o que fazer com aquele arredon-

dado pedaço de madeira e uma palheta artesanal. Mas faço um

pequeno brilharete, tamanha a simplicidade da escala de notas do

instrumento. A arte de tocar com uma palheta não é novidade para

mim. Fitam-me, espantados. Parecem felizes por partilhar este

momento comigo. Improviso uma melodia e o grupo acompanha-

-me com os seus próprios instrumentos, num perfeito intercâmbio

musical. É por momentos assim que vale a pena palmilhar este

Mundo...

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filipe morato gomes

YANGSHUO, CHINA

No país dos formigueiros humanos, descubro um lugar

onde é possível descansar da própria China. É lá, na pa-

cata Yangshuo, entre passeios de bicicleta e comida oci-

dental, que conheço uma jovem chinesa que recuperou

a sua virgindade.

13. O resgate da virgindade

Yangshuo, pequena localidade da província de Guangxí, é

um lugar especial. Parece que tem algo de único em toda a China:

“Podes descansar da própria China”, dizem-me. Não hesito. Uma

jornada de vinte e cinco horas de comboio leva-me de Kunming

até lá.

Chego a Yangshuo numa das piores alturas possíveis. Toda

a China está em circulação, de férias, num movimento colectivo de

milhões de pessoas por ocasião de um importante feriado nacional.

E acontece que Yangshuo é um dos mais populares destinos de fé-

rias da actualidade. Azar. Tenho todo o tempo do mundo e acertei

em cheio na pior semana para aqui estar. Os preços do alojamento

triplicaram, as pessoas acotovelam-se nas estreitas ruas da povoa-

ção, os operadores turísticos não têm mãos a medir. É o caos, num

lugar já de si acostumado a ter mais mochileiros do que qualquer

outro no país.

À rua central de Yangshuo, as autoridades mudaram o

nome para West Street. Dezenas de pousadas e hotéis, pequenos-al-

moços sem noodles na ementa, inúmeros restaurantes servindo co-

mida ocidental, bares com cerveja gelada e muita animação, gente

a falar em inglês. Um paraíso para quem pretende descansar de

viajar por uns dias.

A China exige muito do viajante. Sabe bem repousar num

lugar amigável e, mesmo numa semana como esta, é possível fugir

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alma de viajante

O re

sgate

da virg

indad

e

do bulício momentâneo de Yangshuo. Alugo uma bicicleta e sigo

para os arredores, percorrendo caminhos de terra batida que se-

guem, de aldeia em aldeia, os contornos rurais das margens do rio

Jiang. Tudo é verde, muito verde, extensos arrozais espraiam-se

sobre um fundo de espantosas e imponentes formações rochosas.

Elas são, aliás, a imagem de marca da região.

Umas quantas pedaladas adiante chego a um local onde é

necessário atravessar o rio para a outra margem. Negoceio o preço

e entro num pequeno barco que se encarrega de fazer a traves-

sia. No rio, pescadores que usam aves em vez de redes preparam

uma noite de pesca. Os pássaros têm a garganta atada com um fio

que os impede de engolir os peixes que capturam. É uma técnica

usada há inúmeras gerações pelas comunidades da região, com

enorme sucesso, devido ao extraordinário instinto piscatório dos

corvos-marinhos.

Volto à povoação e sento-me num dos restaurantes da

West Street. Peço uma cerveja, gelada quanto baste, e aguardo pelo

jantar. E é então que algo inusitado acontece. Uma face conheci-

da – chamemos-lhe Cristina, “nome inglês” adoptado pela própria

– senta-se na minha mesa. Tinha-a conhecido ao solicitar, dias antes,

uma informação na agência de viagens onde trabalha e, desde logo,

esta jovem chinesa se havia mostrado muito afável e mais desinibi-

da do que o usual no contacto com um estrangeiro.

Entre uma e outra garfada de arroz, falamos de tudo um

pouco. Sobre Yangshuo, sobre Portugal, sobre trabalho e viagens

e, surpresa das surpresas, sobre paixões e sexo – tema tabu numa

sociedade onde os jovens primeiro estudam e só depois têm per-

missão para namorar. Digo que sou casado, ela afirma que não tem

namorado: “Terminámos há quatro meses. Mas ele já arranjou ou-

tra namorada”, acrescenta. “E tu, com tantos homens estrangeiros

aqui... hum...”, atiço a conversa. “Não, não posso”, diz e pára por um

instante, pensativa, como que avaliando a situação. “Vou-te contar

uma coisa…”

Aguardo expectante o desenrolar do diálogo. Nunca uma

mulher chinesa havia antes quebrado o tabu. “Para os homens chi-

neses, a virgindade da mulher é algo muito importante. Agora, se

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filipe morato gomes

eu quiser casar com outro homem, deverei ser virgem.” Escuto-a

atentamente, em silêncio. “E a minha mãe implorou que o fizesse.

Por isso, acedi. Fiz uma operação para ficar virgem novamente”,

conclui, com um sorriso um tanto ou quanto embaraçado.

Não digo nada. Estou perante um dos autênticos choques

culturais com que, de tempos a tempos, um viajante se depara.

Peço outra cerveja e sigo para um bar frequentado por ocidentais.

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alma de viajante

BAÍA DE HALONG, VIETNAME

Chego ao caos delicioso de Hanói, no Norte do Vietna-

me, com o objectivo de conhecer um belíssimo e in-

vulgar cenário natural. De forma activa, a bordo de um

caiaque, penetro nas brumas da baía de Halong, onde a

natureza quase atinge a perfeição.

14. De caiaque pela baía de Halong

Tinha decidido deixar o Sul da China e rumar de imediato

ao Vietname. Mudar de ares. O comboio é a forma mais prática de

fazer a ligação entre Guilin, na província chinesa de Guangxí, e Ha-

nói, capital do Vietname, mas é também a mais dispendiosa. Pro-

curei alternativas. Quatro autocarros, dois táxis, uma motorizada e

incontáveis horas depois, chegava a Hanói. Uma aventura.

Hanói é uma cidade encantadora. Cheia de carácter. Encon-

trei-a a fervilhar de vida a cada esquina da zona velha, com peque-

no comércio de toda a espécie, milhares de motoretas percorrendo

incessantemente as ruas, os passeios tomados de assalto por ven-

dedores ambulantes e motorizadas estacionadas, muita gente por

todo o lado. Um caos delicioso.

Uma vez na capital vietnamita, tinha por grande objectivo

conhecer a baía de Halong, a três horas de distância da cidade. A

natureza encarregou-se de ali criar uma das mais fabulosas paisa-

gens que já pude observar. Pretendia desvendá-la de forma activa,

a bordo de um caiaque, pagaiando mar adentro por entre centenas

de proeminentes rochedos erguidos das águas em aprumada ver-

ticalidade. Assim fiz.

Desloquei-me numa pequena barcaça, em direcção ao

campo-base da expedição, na madrugada de um dia relativamente

nublado. Pudesse eu isolar os diferentes tons de cinzento dessa

madrugada e obteria pouco menos do que uma infinidade deles.

De caiaq

ue p

ela b

aía de H

along

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filipe morato gomes

Uma completa paleta de cinzas, do quase preto ao quase branco,

misturados pelo pincel de um invisível artífice.

No campo-base – apenas um conjunto de casinhas de ma-

deira construídas numa minúscula praia totalmente isolada –, os

caiaques esperavam por quem os arrastasse para as águas calmas

do golfo de Tonkin. Eram caiaques duplos, talvez demasiado gran-

des para praticantes experimentados, mas ideais para principiantes,

como a maioria dos elementos do grupo. Dez no total, homens e

mulheres dos 26 aos 65 anos.

Passámos uma manhã em relativa tranquilidade. O vento

e a corrente a favor, na maioria do trajecto, ajudavam a fomentar

essa agradável impressão. A brisa na face, os músculos ainda fres-

cos, a sensação de liberdade total apoderando-se do corpo ao em-

brenharmo-nos neste cenário esplendoroso, tornavam o momento

extremamente aprazível. E a bruma matinal adicionava uma pitada

de excitação e de mistério ao enquadramento, como se nos dirigís-

semos ao encontro de uma imaginária Avalon.

Pagaiávamos pela baía circunscrevendo ilhas de rochas

verticais, sobranceiras, com o objectivo de alcançarmos uma pe-

quena praia onde haveríamos de almoçar. Um pequeno barco de

pesca haveria de trazer peixe fresco e lulas deliciosas, que acompa-

nhámos com arroz – pois claro! – e espinafres salteados com alho.

A parte árdua da jornada estava reservada para o final do

dia, quando, umas quantas ilhas e formações rochosas adiante, nos

dirigimos para mar menos protegido, iniciando o regresso ao cam-

po-base. A ondulação mais poderosa e o vento frontal dificultavam

o avanço do caiaque, e o último objectivo estava ainda a uma con-

siderável distância. Dividia o duplo caiaque com Jeanne, canadiana

de Calgary de corpo atlético e em notável forma física, apesar da

silhueta esguia e feminina. Lutávamos em conjunto contra as ondas

e o vento e a fadiga muscular, tentando fazer avançar o caiaque em

direcção ao almejado campo-base. Uma paragem aqui e ali, breve,

apenas o tempo suficiente para os músculos relaxarem, ou a cor-

rente levar-nos-ia imediatamente muitos metros para trás.

Chegámos, por fim, à praia, extenuados. Arrastei o caiaque

para a areia já quase sem sentir os braços. “Boa, parceiro”, gritou

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alma de viajante

Jeanne com um sorriso cúmplice que denunciava a felicidade que

ambos sentíamos naquele instante. Vivêramos um dia exigente

mas inesquecível. Sentados na areia, de cerveja na mão, olhando

para o sol alaranjado que ia desaparecendo à nossa frente, o can-

saço era o que menos importava.

De caiaq

ue p

ela b

aía de H

along

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filipe morato gomes

SAPA, VIETNAME

Vou ao mercado de Sapa e percorro trilhos de monta-

nha ao encontro das minorias étnicas que habitam o

Noroeste vietnamita. Dias rodeados por gentes h’mong

e dao, preparativos para um casamento thai e muito vi-

nho de arroz.

15. As minorias étnicas de Sapa

Noroeste do Vietname. É lá, na região de Sapa, próximo

da fronteira com a China, que vivem muitas das minorias étnicas

que ainda conservam trajares típicos, costumes e cultura únicas,

e dialectos próprios indecifráveis para o comum dos vietnamitas.

Apanhei um comboio nocturno, na estação principal de Hanói, em

direcção a Lao Cai, de onde haveria de seguir montanhas acima

rumo a Sapa, ponto nevrálgico para exploração da região.

Quando cheguei a Sapa, um burburinho e um colorido es-

pecial inundavam a cidade. Era dia de mercado. Centenas de pes-

soas trajando roupas estranhas percorriam as ruas da povoação. As

comunidades das redondezas, de diferentes minorias étnicas, acor-

rem a Sapa para comprar víveres e vender os seus produtos todos

os sábados. Cheguei no dia exacto. Curioso, num ápice encontrava-

-me imerso no mercado. Grande azáfama, pessoas por todo o lado,

faces e roupas diferentes. Parei num ponto estratégico e deixei-

-me ficar, observando, encantado, de câmara fotográfica sempre a

postos.

Predominavam os h’mong pretos, com as suas roupas de um

azul-índigo inconfundível. Mulheres, principalmente, muito novas

ou muito velhas, usavam técnicas de venda incisivas e de extrema

perseverança. E algum humor até, se o viajante for capaz de os en-

carar descontraidamente. You buy from me? Why not?, ouvi dezenas

de vezes de miúdas e graúdas h’mong, num inglês rudimentar mas

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alma de viajante

As m

ino

rias étn

icas de Sap

a

ainda assim admirável.

A minha atenção recaía, no entanto, nos elementos da

tribo dao, sempre sorridentes e amáveis, menos interesseiros do

que os vizinhos h’mong e facilmente distinguíveis pelo ornamento

que todas as mulheres usavam na cabeça: uma espécie de chapéu

de um vermelho extremamente vivo, muito bonito. Haveria de os

encontrar mais tarde, nas montanhas circundantes, e comprovar

que são genuinamente simpáticos e nada incomodativos, mesmo

quando tentam vender o seu artesanato.

Terminada a odisseia pelo mercado, e após um tardio pe-

queno-almoço, juntei-me a um grupo de cinco pessoas e partimos

por caminhos e veredas das montanhas da região. No segundo dia

de caminhada, quando cheguei a uma aldeia habitada pela minoria

étnica thai – exímios agricultores que vivem nas margens férteis

dos cursos de água –, estava prestes a ter lugar um grande acon-

tecimento. Para daí a dois dias, estava marcado um casamento na

aldeia e eu tinha-me instalado, precisamente, na casa da família

da noiva. A azáfama era intensa. Familiares das redondezas chega-

vam a conta-gotas para ajudar nos preparativos das festividades.

Mataram-se porcos. Fizeram-se novos cachimbos de bambu e no-

vos pauzinhos, pintados de cor-de-rosa, para a refeição da boda. À

noite, os homens reuniram-se para jantar e as garrafas de vinho

de arroz começaram a circular de mão em mão. Convidaram-me a

brindar, de golada, uma, duas, dez vezes. Recusar seria considera-

do uma ofensa à hospitalidade dao. Era como se eu pertencesse à

família. Por sorte, o vinho de arroz não é demasiado forte – é como

um bagaço português com menor teor alcoólico. Que os noivos se-

jam muito felizes!

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filipe morato gomes

MUI NE, VIETNAME

Alojo-me num bungalow no extenso areal de Mui Ne,

litoral centro do Vietname, e deixo-me enfeitiçar pela

beleza típica de um paraíso tropical. Enquanto o turismo

de massas não chega à bela língua de areia...

16. Pequenos prazeres no cenário tropical de Mui Ne

Mui Ne ainda não faz parte do roteiro da maioria dos via-

jantes que percorrem o Vietname de norte a sul. Muitos preferem

a agitação de Nha Trang, quatro horas de viagem para norte, uma

típica cidade de veraneio, com inúmeras e diversificadas ofertas no

que concerne a alojamento, restaurantes, bares, vida nocturna e a

sua dose de gatunos e de prostitutas. E seguem depois para Saigão,

mais a sul, directamente. Eu parei em Nha Trang apenas o tempo

suficiente para tomar contacto com a localidade e dar os primeiros

mergulhos em mar aberto desde que saí de Portugal. Poucos dias

depois, estava instalado num autocarro rumo à pacata Mui Ne. En-

quanto o turismo de massas não lá chega.

Antevejo que, dentro em breve, Mui Ne estará transforma-

da num mega-resort turístico onde grupos numerosos de reforma-

dos turistas franceses passarão dias de repouso absoluto, entre um

copo de tinto Bordeaux e uma baforada de cachimbo, à beira-mar.

Ainda não é o caso, felizmente. Mas pouco faltará. Muitos hotéis

de maior dimensão e melhor qualidade estão já instalados na área.

Um mau prenúncio para quem prefere um tipo de turismo mais

básico, contacto com a natureza, sossego e ausência de néon nas

ruas.

Enquanto a transformação não se torna definitiva, Mui Ne é

apenas uma bela língua de areia que se estende por cerca de vinte

quilómetros, repleta de pousadas básicas mas acolhedoras, bunga-

lows em cima da praia e um punhado dos tais hotéis mais luxuosos,

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alma de viajante

Pequeno

s praze

res n

o ce

nário

tropical d

e M

ui N

e

não destinados aos viajantes independentes. E ainda mantém o

charme daqueles paraísos tropicais onde o tempo passa bem de-

vagar e de onde não apetece sair. Lugares onde os mais intensos

prazeres são coisas tão simples como ler um livro sob a sombra

refrescante de um coqueiro. Ou sair da cama directamente para um

mergulho no mar, vinte metros adiante. Ou, mais cedo ainda, apre-

ciar o nascer do sol sentado na areia, enquanto dezenas de barcos

regressam da faina diária e pescadores locais puxam as redes para

terra firme. Ou, à noite, deliciar-se com um apetitoso peixe grelha-

do tendo como candeeiro a lua e como música ambiente o som

intermitente da ondulação.

Experimentei tudo isso, mas não se pense que em Mui Ne

nada se pode fazer para além de relaxar e de desfrutar desses

pequenos prazeres. Para os viajantes mais activos, aliás, Mui Ne é

um excelente local para passar uns dias exercitando arduamente

os músculos do corpo. Especialmente para os amantes de despor-

tos aquáticos dependentes da qualidade do vento, como o kite-surf

e o windsurf. Os ventos são fortes durante quase todo o dia, pro-

porcionando óptimas condições para a prática desses desportos. O

simples facto de se observar os praticantes de kite-surf levantarem

voo com as suas pranchas, fazendo piruetas inacreditáveis alguns

metros acima da água, é, por si só, um espectáculo único. Experi-

mentá-lo, por outro lado, tem o seu preço. Uma hora de aprendiza-

gem com um instrutor qualificado custa 75 dólares, o que, para o

comum dos viajantes independentes, equivale ao orçamento dis-

ponível para vários dias de viagem no Vietname.

Tal como alguns estrangeiros que se apaixonaram por esta

pequena localidade e não mais a deixaram, também eu sinto que

poderia ficar em Mui Ne por muito mais tempo. Mas experiências

mais intensas aguardam-me no extremo Sul do Vietname. Depois

do perfume do mar, preparo-me para a terrível herança que a guer-

ra deixou neste belo país.

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filipe morato gomes

SAIGãO, VIETNAME

Chego a Saigão, no Sul do Vietname, e nomes como o

napalm ou o “agente laranja” tornam-se escandalosa-

mente familiares. No Museu da Guerra. Mas também

nas ruas. São as marcas de uma guerra que o tempo

demora a apagar.

17. As marcas da guerra que o tempo não apaga

Saigão. O nome da cidade, por si só, traz à memória cenas

revistas vezes sem conta em filmes, documentários ou artigos de

imprensa. Imagens típicas de uma guerra tão absurda como todas

as guerras. Sequências intermináveis de bombas a caírem do céu,

jovens estropiados, crianças aterrorizadas gritando e chorando e

morrendo. Nomes como o napalm ou o “agente laranja” tornam-

-se escandalosamente familiares. Pelos piores motivos. E, estando

fisicamente lá, no Sul do Vietname, essas memórias ganham vida

ao misturar-se com a realidade presente. Um encontro difícil de

suportar.

Visitar o Museu da Guerra em Saigão, por exemplo, não é

uma experiência agradável. Uma vasta colecção de fotografias da

chamada “Guerra do Vietname”, no tempo em que os fotógrafos

circulavam sem restrições nos teatros de operações, impressiona

pela frieza com que conta aos visitantes a história de um confli-

to tão ilógico quanto sangrento. Mostra rostos com nome. Nomes

com vida. Quase se sente o cheiro do napalm ao percorrer as salas

do museu. A revolta invade o corpo do mais insensível dos visi-

tantes ao ver os efeitos nas populações do nefasto “agente laran-

ja”, usado pelas tropas americanas. Ou ao conhecer com detalhe

atrocidades como o infame massacre de My Lai, onde, em poucas

horas, soldados americanos destruíram aldeias inteiras e executa-

ram barbaramente centenas de civis desarmados, incluindo velhos,

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arcas da g

uerra q

ue o

tem

po

não

apag

a

mulheres e crianças de tenra idade. Mas o mais triste de tudo é que

não é preciso visitar o museu para sentir as consequências dessa

guerra nas gentes vietnamitas.

As marcas estão, aliás, em todo o lado. Visíveis da mais

cruel forma possível. Homens mutilados vagueando pelas ruas su-

plicando a ajuda misericordiosa dos transeuntes. Descendentes de

pais afectados pelo “agente laranja” – agente destruidor de tudo

o que o Homem conseguiu para o seu próprio corpo após milhões

de anos de evolução – sobrevivem sem esperança. Caras queima-

das pelo napalm numa qualquer esquina da cidade. Gente com de-

formações inacreditáveis em todas as partes do corpo. Autênticos

monstros à luz das leis da Natureza. Pessoas a quem foi roubada a

felicidade do resto da vida no instante de um estrondo.

Nunca esquecerei a imagem daquele senhor caminhando

sem pernas, apenas uns pés minúsculos e deformados colados na

bacia, os braços inexistentes, o olhar triste implorando ajuda. A

guerra não é uma coisa bonita – costuma dizer-se –, mas ver os

seus efeitos diante dos olhos é algo que não os consegue deixar

enxutos.

Depois disto, tinha que ver como os vietcongs enfrentaram

o poderoso inimigo americano e as tropas do Sul do país, então di-

vidido. Decidi ir até aos túneis de Cu Chi, a duas horas de viagem de

Saigão. Entrar naqueles túneis foi uma experiência marcante. Ras-

tejei como um verdadeiro vietcong através de centenas de metros

de túneis incrivelmente estreitos e baixos. O ar abafado, apesar dos

sistemas de refrigeração engenhosamente inventados, dificultava

a respiração. Outros visitantes desistiram a meio e abandonaram

os túneis numa das inúmeras saídas outrora camufladas na selva.

Claustrofobia, talvez. No fim, suávamos em bica – os quatro resis-

tentes –, mas estávamos satisfeitos com a experiência.

Dias depois, saí de Saigão e percorri de barco o delta do

Mekong em direcção a Chau Doc, na fronteira com o Camboja. É a

forma mais lenta de fazer a viagem, mas, ao mesmo tempo, uma

das que melhores recordações deixam num viajante. Um pouco de

normalidade depois da dura realidade do passado. E assim pude

observar que a vida corria natural e tranquila no impressionante

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mercado flutuante de Cai Rang, o mais concorrido da região. E, a

bordo de um barco a remos conduzido por uma simpática e enér-

gica anciã, deixei-me absorver pelo charme labiríntico de pequenos

canais de água barrenta. E tomei contacto com o ritmo de uma

aldeia flutuante em que os seus habitantes ganham a vida criando

peixe em viveiros no meio do rio. Tempo de sorrir, depois da inten-

sidade bélica das experiências anteriores.

Deixo agora para trás um país maravilhoso e um povo in-

crivelmente optimista que tenta olhar em frente e ultrapassar as

marcas de um passado nem sempre fácil. Mas dirijo-me para outro

que vive ainda sob o fantasma de um dos mais ignóbeis regimes

de que há memória na história da humanidade: o de Pol Pot e dos

seus Khmer Vermelhos. Sei o que me espera em Phnom Penh. Mor-

do os lábios, carimbo o passaporte e atravesso a fronteira.

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alma de viajante

PHNOM PENH, CAMBOJA

Chego ao Camboja e enfrento os horrores praticados

pelo sanguinário Pol Pot e os seus Khmer Vermelhos. Do

Museu do Genocídio de Tuol Sleng aos Campos da Mor-

te de Phnom Penh, este é um relato repugnante sobre

o lado negro da espécie humana.

18. Khmer Vermelhos, o lado negro da natureza humana

Entrei no Camboja a bordo de uma embarcação que sobe

o rio Mekong em direcção à capital Phnom Penh. Ao primeiro con-

tacto, Phnom Penh aparentava ser uma cidade como tantas outras

do Sudeste asiático. O trânsito caótico, milhares de motorizadas

nas ruas, poluição quanto baste, resquícios de arquitectura colonial,

mercados apinhados, pobreza, muitas crianças. Mas algo não batia

certo. Via-se demasiada gente com próteses nos membros, dema-

siadas muletas nas ruas da cidade, pedintes em número exagera-

do, incontáveis órfãos de pai, de mãe, de esperança, demasiada

mágoa espelhada nos olhares. O espectro de Pol Pot e dos seus

horrendos Khmer Vermelhos paira ainda, omnipresente, sobre todo

o povo cambojano.

Sabia de antemão de muitas das barbaridades que o re-

gime liderado por Pol Pot praticou na tentativa de transformar o

Camboja num país de orientação maoísta. No espaço de apenas

quatro anos, estima-se que cerca de dois milhões de pessoas te-

nham sido assassinadas, com especial ênfase nos mais letrados – o

conhecimento é inimigo da fácil imposição de ideais – e respectivos

familiares, futuros potenciais vingadores da morte dos seus entes

queridos. A moeda foi abolida, o sistema de correios paralisado. As

populações foram arrastadas das cidades para zonas rurais, onde

serviam de força de trabalho escravo em cooperativas agrárias. As

famílias foram divididas. Milhões de minas foram colocadas em

Khmer V

erm

elh

os, o

lado

negro

da n

ature

za hum

ana

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todo o país. E o Camboja quase se isolou do mundo exterior. Uma

fase negra na história do país.

Quis tomar contacto mais directo com essa realidade pas-

sada mas não longínqua. Aluguei uma motorizada e segui para o

Museu do Genocídio de Tuol Sleng, antigo Security Office 21 (S-21),

tido como o mais secreto órgão do regime khmer, especificamente

desenhado para interrogatórios e extermínio de oponentes do re-

gime. Visitei recentemente o Museu da Guerra em Saigão e julgava

estar preparado para tudo. Mal sabia o que iria encontrar.

O S-21 instalou-se no complexo de uma antiga escola pri-

mária. Fecha-se os olhos e quase se consegue imaginar um normal

período lectivo com crianças a pular alegremente, constantes gri-

tarias inocentes, uma bola de futebol pontapeada por candidatos

a futuros craques, uns quantos joelhos esfolados por quedas sem

importância e alguns namoricos precoces. Fecha-se os olhos e pa-

rece que os miúdos estão ali, por todo o lado, como se a escola não

tivesse, de facto, encerrado. Abre-se os olhos e as grades de ferro

nas janelas dissipam qualquer ilusão. Entra-se nas antigas salas de

aula e o terror torna-se assustadoramente palpável.

Percorri as divisões do museu em fúnebre silêncio. Mui-

tas das salas de aula foram transformadas pelos Khmer Vermelhos

em espaços de interrogatório e tortura. Outras tantas em celas de

detenção. Barras de ferro de seis metros de comprimento serviam

para amarrar 20 a 30 prisioneiros pelos tornozelos. Alternadamente,

de um lado e de outro, para que fossem obrigados a permanecer

com as cabeças em direcções opostas. Sempre deitados. Não po-

diam levantar-se, falar ou sequer sussurrar. Nem tão-pouco urinar

ou mexer o corpo sem pedir autorização. A ordem era esperar en-

quanto não houvesse outras ordens para cumprir. Até ao dia final.

Um pintor cambojano – um dos poucos que saíram da pri-

são com vida – retratou em tela aquela e muitas outras cenas ob-

servadas com os próprios olhos durante a sua reclusão. Dirigi lenta-

mente o olhar por todo o seu trabalho, impressionado, até que me

detive em duas telas colocadas lado a lado. Pretendem retratar a

forma como o regime de Pol Pot eliminava crianças de tenra idade.

Numa, vê-se um soldado a atirar uma criança ao ar e outro, de es-

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alma de viajante

pingarda em punho, a usar o pequeno corpo como alvo, disparando.

Na outra, um soldado prende um bebé pelos pés e arremessa-o

em direcção a uma árvore de grande porte, esmagando sem pieda-

de a cabeça do recém-nascido. “Para poupar balas”, explicam-me.

Abalado, saí do museu e segui de motorizada para os Cam-

pos da Morte, onde eram enterrados os prisioneiros vindos do com-

plexo S-21. Tudo é tão recente que ainda hoje há ossos humanos

brotando do chão, por todo o lado. A pacatez do lugar é apenas

uma sinistra ironia. Meia dúzia de valas comuns adiante, dei de

caras com a árvore da tela. Desabei. Há coisas para as quais nunca

se está preparado...

Khmer V

erm

elh

os, o

lado

negro

da n

ature

za hum

ana

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filipe morato gomes

SIEM RIEP, CAMBOJA

Visito os magníficos templos de Angkor e fico maravi-

lhado com a beleza invulgar de Ta Prohm. E conheço Aki

Ra, o homem cuja missão de vida é desactivar minas

em solo cambojano para tornar o país mais seguro. Com

os pés.

19. O homem que desactiva minas com os pés

A maior parte dos viajantes desloca-se ao Norte do Cam-

boja com o propósito de conhecer os extraordinários templos de

Angkor, localizados nas proximidades de Siem Riep. E Angkor é, de

facto, um local magnífico que merece toda a fama que granjeou.

Visitei durante dois dias alguns dos mais significativos

exemplares arquitectónicos do complexo que se estende por uma

vasta área, desde os magníficos altos-relevos de Bayon e de Ban-

teay Srey, até ao imponente templo de Angkor propriamente dito.

E deliciei-me com a estranha beleza de Ta Prohm, onde árvores de

enorme porte literalmente abraçam as edificações de pedra – a

maior parte em ruínas –, criando um cenário único e inolvidável

para quem ali se desloca. Ta Prohm é, aliás, quase sempre aponta-

do como o templo favorito pela maioria dos visitantes.

Mas, mesmo ali ao lado, numa pequena estrada de terra

batida paralela àquela que leva os turistas de Siem Riep até Angkor,

há algo merecedor de tanta ou mais atenção. Algo praticamente

desconhecido do comum dos viajantes. Falo da vida de um homem

e da nobreza do seu trabalho em prol do seu país. Mesmo antes

de visitar Angkor, aluguei um tuk-tuk e dirigi-me para o Museu das

Minas Terrestres de Aki Ra, na esperança de conhecer o próprio Aki

Ra, mentor da iniciativa.

Aki Ra trabalha como motorista para se sustentar, mas, por

feliz casualidade, encontrava-se no museu nesse dia. A história da

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alma de viajante

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sua vida é algo impressionante. Disse-me não saber ao certo a sua

idade, “talvez 32, talvez 35”. Contou que viveu a maior parte da sua

vida na selva, entre armas, combatendo, órfão provavelmente des-

de os cinco anos. “Os meus pais foram assassinados pelos Khmer

Vermelhos”, diz. Por supostos “crimes” sem a mínima gravidade.

Foi então levado pelos homens do regime e forçado a aprender a

usar armas, a colocar minas e a abrir caminho por entre campos

minados na frente de uma coluna militar khmer. Lutou mais tarde,

também sem opção de escolha, do lado oposto do conflito, pelos

exércitos vietnamita e cambojano, até que as Nações Unidas envia-

ram uma missão de manutenção de paz para o Camboja. É então

que, ao serviço da ONU na desminagem do solo cambojano, des-

cobre a sua missão. “O único objectivo da minha vida é tornar este

país seguro para o meu povo”, garante.

Quase todas as semanas, desloca-se a diferentes provín-

cias do Camboja e retira, desactiva e inutiliza minas colocadas por

qualquer um dos intervenientes no conflito. “Retiro as minas usan-

do apenas um pau ou os pés”, diz, com naturalidade. “Os pés?”,

interrompo. “Sim, consigo detectá-las facilmente com os pés”, con-

clui. Nunca sofreu sequer um arranhão. E foi guardando esses en-

genhos.

Decidiu então criar o Museu das Minas Terrestres para cha-

mar a atenção para o grave problema que as minas constituem

ainda hoje. No museu, exibe exemplares por si desactivados, vários

tipos de equipamento militar encontrado nos campos e pinturas da

sua autoria ilustrando, com elevado sentido educativo, situações de

contacto com minas terrestres e episódios da sua vida na selva. Pe-

quenas histórias supostamente reais. Acolhe ainda, todos os anos,

cerca de duas dezenas de crianças mutiladas por uma das inúmeras

minas actualmente existentes em solo cambojano. Acolhe-as, dá-

-lhes abrigo, comida e ainda as leva à escola. Um trabalho notável.

Aki Ra dedica todo o seu tempo livre à causa da sua vida.

Uma causa que deveria ser acarinhada e incentivada por quem li-

dera o país. Mas descobri, durante a conversa, que as entidades

governamentais locais fazem todos os possíveis para encerrar o

museu ou dificultar o seu trabalho. “Dizem que prejudica o turismo”,

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filipe morato gomes

assegura Aki Ra, referindo-se aos governantes locais. E a corrupção

é um problema demasiado real e palpável. “Querem que eu fe-

che o museu e, por isso, obrigam-me a pagar-lhes todos os meses

para o manter aberto. Se querem apenas sair para beber um copo,

pedem-me 50 dólares; se querem ir a um bar com karaoke, tenho

que pagar o dobro.” Muito dinheiro numa nação tão pobre como o

Camboja. Assim se dirige um país.

Nota de viagem

Uma organização internacional fundada por um fotojornalista canadiano,

Richard Fitoussi, chamou a si a responsabilidade de recolher fundos para

auxiliar o trabalho de Aki Ra. Chama-se Cabodia Land Mine Museum Relief

Fund (CLMMRF) e tem um espaço na Internet a partir do qual os interessa-

dos podem obter mais informações sobre Aki Ra, o museu e os objectivos

da organização. O endereço é www.cambodialandminemuseum.org.

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alma de viajante

KOH SAMET, TAILâNDIA

Já na Tailândia, paraíso sexual procurado por tantos oci-

dentais, deixo-me cair nas mãos (e nos pés) de uma

massagista tailandesa e comprovo que as famosas mas-

sagens fazem mesmo milagres no corpo e na mente.

20. Massagens no areal

Deixei o Camboja com a sensação de que haveria bastante

mais para assimilar sobre a terrível história recente daquele país e

sobre o seu povo indulgente. Mas decidi prosseguir viagem em di-

recção à Tailândia. Onze horas depois de me sentar numa carrinha

de passageiros, haveria de chegar a Banguecoque, bem a tempo

de assistir ao festival da Lua Cheia, que nessa noite tinha lugar.

Encontrei uma cidade profusamente iluminada, milhares

de pessoas acotovelando-se na rua, tal e qual um normal S. João

tripeiro. Pequenos arranjos florais embrulhados em folhas de bana-

neira contendo velas, incensos e uma moeda eram lançados ao rio.

Toda a cidade estava em festa, as pessoas alegres, os comerciantes

sorridentes.

Feliz pela oportunidade de desenferrujar o português,

percorri sem destino definido, com um recém-amigo brasileiro, as

margens do rio Chao Phraya e as ruas em redor de Khao San – o

mais famoso, amado e odiado gueto de viajantes independentes

em todo o Mundo. Nas ruas, por entre a multidão de transeun-

tes, homens barrigudos, velhos, se não no espírito pelo menos na

idade, a pele branca a denunciar a sua origem europeia, seguiam

invariavelmente acompanhados mão na mão por belas, jovens

e atraentes tailandesas. Nada que eu não soubesse de antemão,

mas ver as suas faces de galantes conquistadores ao lado de quem

procurará, tão-somente, a oportunidade de uma vida melhor não

provoca bons sentimentos. Involuntariamente, acabaria por seguir

Khmer V

erm

elh

os, o

lado

negro

da n

ature

za hum

ana

95

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filipe morato gomes

dias depois para um popular refúgio onde muitos desses casais se

dedicam, digamos, ao amor: a ilha Samet, a escassas quatro horas

de viagem de Banguecoque.

Samet é uma pequena ilha de apenas treze quilómetros

quadrados. Mas está convenientemente localizada para quem vive

na capital tailandesa. Não consta que as suas praias rivalizem em

beleza com as do Sul da Tailândia, mas, ainda assim, Samet é um

local que justifica um par de dias de atenção. Seja pelas águas té-

pidas e cristalinas ou pela atmosfera acolhedora dos bungalows que

se espraiam pelas diversas baías da costa leste da ilha. Pela inti-

midade de um jantar à luz tosca de um candeeiro a petróleo em

pleno areal. E, claro, pela oportunidade de sentir no corpo as mãos

de génio de mulheres e homens que se dedicam à milenar arte da

massagem tailandesa e que, em Samet, colocam à disposição dos

visitantes todo o seu talento. Não podia deixar de experimentar.

Deitado no areal da praia de Phutsa, protegido pela som-

bra de uma palmeira, acabaria dormitando não fora um ou outro

esporádico movimento a roçar o doloroso. A massagista usava

maioritariamente as mãos para executar o seu ofício. Mas também

os braços, os cotovelos, as pernas e os pés. Em movimentos nem

sempre agradáveis e indolores. Mas, dois euros e trinta minutos

depois, o corpo parecia rejuvenescido e até uma pequena dor mus-

cular tinha desaparecido.

De volta a Banguecoque, preparo-me agora para rumar a

norte e conhecer o modo de vida de algumas minorias étnicas que

habitam aquela região da Tailândia, como os poe ou as karen. De-

pois de uma experiência similar no Noroeste do Vietname, sei que

valerá a pena. Entro num autocarro a cair de podre e apronto-me

para outra noite de desconforto.

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alma de viajante

BAN NAI SOI, TAILâNDIA

No Norte da Tailândia, visito uma aldeia da minoria ét-

nica karen de pescoço comprido com sentimentos am-

bivalentes. Estaria a entrar num deplorável zoológico

humano ou, simplesmente, a participar na forma de

sobrevivência encontrada pela tribo?

21. Zoológico humano ou forma de sobrevivência?

Estando no Norte da Tailândia, decidi visitar uma aldeia

habitada pelas karen de pescoço comprido, cedendo à curiosidade

de conhecer algo tão especial quanto controverso. Não conseguia

antecipar o que iria sentir quando estivesse frente a frente com

uma dessas mulheres. Zoológico humano ou, simplesmente, uma

forma de sobrevivência?

As karen de pescoço comprido – nome que advém da espi-

ral de cobre que as mulheres usam em volta do pescoço e que o faz

parecer incrivelmente longo – são uma minoria étnica proveniente

da vizinha Myanmar (Birmânia). Fugiram da sua terra natal na ten-

tativa de escapar à brutalidade de um regime militar odioso. E a Tai-

lândia, consciente das potencialidades turísticas da excentricidade

desta tribo que fascina fotógrafos e turistas em geral, acolheu-as

de braços abertos. Acontece que a decisão não tem como base ne-

nhuma premissa filantrópica. Muito pelo contrário. E é aqui que as

dúvidas atormentam qualquer viajante consciente.

O Governo da Tailândia não atribui aos karen a cidadania

tailandesa. As famílias não são donas do solo que pisam, não têm

direitos rigorosamente nenhuns. Vivem como refugiadas e não têm,

inclusive, liberdade para sair da sua aldeia. São prisioneiras ao ar

livre. Mas dizem-se felizes e agradecidas.

Tentando não fazer julgamentos precipitados, aluguei uma

moto e segui para a pequena aldeia de Ban Nai Soi, na província

Khmer V

erm

elh

os, o

lado

negro

da n

ature

za hum

ana

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filipe morato gomes

de Mae Hong Son, para formar uma opinião. No caminho, barreiras

militares controlavam quem passava e anotavam as matrículas dos

veículos. A entrada na povoação era paga – 250 bahts, o equiva-

lente a cinco euros – e, explicava-se num folheto, o dinheiro é usa-

do “para a sobrevivência da população, para apoiar a sua cultura”.

Desconfiado, percorri a passo lento os quelhos de terra batida de

Ban Nai Soi. Ali vivem 38 famílias, num total de 350 pessoas, o que

constitui o maior agrupamento da etnia em solo tailandês. O am-

biente era o de uma feira em dia de pouco movimento. Dezenas de

rudimentares barracas de venda de artesanato – mantas, lenços ou

as próprias espirais de cobre – e muitas outras bugigangas estavam

montadas na rua principal da aldeia. Mulheres karen, impecavel-

mente vestidas com trajes tradicionais, abordavam os poucos tu-

ristas num inglês ou espanhol imaculados, na tentativa de os atrair

para a sua banca de venda.

Encontrei a jovem Major – ou Maria José, como depois se

apresentou – numa dessas barracas. Cativado pela sua capacidade

de comunicação e pelo seu discurso invulgarmente bem articulado,

fui ficando na sua companhia. E foi então que a conversa rolou li-

vremente. “A minha mãe pôs-me o colar aos cinco anos de idade,

mas agora uso-o por opção”, respondeu, quando inquirida sobre

o assunto. “Pesa cinco quilos, mas já não o vou aumentar mais”.

Contou que fala fluentemente inglês, francês, espanhol, basco e ca-

talão, tudo aprendido “com os turistas”. E, sabendo-me português,

ensaiou umas frases em galego, do qual afirmava falar apenas “um

pouquinho”. Não havia então qualquer desconforto entre ambos,

sentia que podia inquirir Maria José sobre temas mais delicados.

“Maria José, não pretendes voltar ao teu país?”, arrisquei.

“Sim, no futuro, gostava de voltar a Myanmar, mas não com este

regime... Só quando houver democracia”, respondeu, muito segura.

“Mas gostas de estar aqui?”, insisti, expectante. “Há coisas que gos-

to e outras que não. Gosto muito da Tailândia, aqui temos melhores

condições de vida, vivemos do turismo. Mas não suporto a falta de

liberdade de movimentos, não podemos sair da aldeia”, respondeu,

sem problemas. Referiu ainda que acalenta a esperança de um dia

ter a nacionalidade tailandesa e assim ver aumentados os seus di-

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alma de viajante

reitos. Um sonho tão simples quanto improvável de ser concretiza-

do, pelo menos no curto prazo.

Deixei a aldeia com os mesmos sentimentos ambivalen-

tes que me atormentavam à chegada. Por um lado, compreendo

agora muito melhor todos aqueles que, em conversas informais,

argumentaram que visitar uma aldeia karen de pescoço comprido é

uma forma de ajudar a tribo a subsistir. Embora isso possa revelar

alguma conivência com os métodos e objectivos das autoridades

tailandesas, não deixa de ser uma indesmentível verdade. Mas, por

outro lado, não consigo calar o martelar das últimas palavras de

Maria José nos meus ouvidos: “Adoraria poder sair daqui. O Mundo

deve ser tão bonito!”. A dúvida subsiste.

Zoo

lógico

hum

ano

ou fo

rma d

e so

bre

vivência?

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filipe morato gomes

LUANG PRABANG, LAOS

Entro no Laos seduzido pela possibilidade de conhecer

Luang Prabang, lugar que a UNESCO considera ser “a

mais bem preservada cidade do Sudeste asiático”. É

quando o inimaginável acontece.

22. “A mais bem preservada cidade do Sudeste asiático”

Chiang Kong, no Norte da Tailândia, foi o último pedaço de

terra trilhado antes de partir à descoberta do Laos. Estava prestes

a entrar no país mais bombardeado de toda a história da humani-

dade, em termos per capita, mas não eram os vestígios dos bom-

bardeamentos americanos que, desta vez, procurava. Ansiava, isso

sim, conhecer Luang Prabang, “a mais bem preservada cidade do

Sudeste asiático” – segundo a UNESCO – e o principal motivo desta

incursão ao Laos.

Atravessar a fronteira foi simples e rápido. Uma vez no

Laos, cansado de carrinhas, autocarros e tuk-tuks, e fascinado por

viagens de barco, em breve descia o rio Mekong em direcção a

Luang Prabang. Uma jornada de dois dias, a bordo de uma embar-

cação extremamente desconfortável, que se haveria de revelar um

tanto monótona mas inteiramente justificada pela magnificência do

destino. Durante a viagem, os momentos de emoção aconteciam

nas paragens em pequenas aldeias das margens do rio, quando o

barco era abruptamente invadido por vendedoras de géneros ali-

mentícios para aconchego do estômago dos passageiros. Vendiam

coisas muito estranhas e diferentes, das quais nunca descortinei o

nome. Vários animais eram adquiridos pelos passageiros locais, uns

já cozinhados e prontos a degustar, outros ainda por pelar. Intrigado,

olhei para um vizinho de assento, que trincava uma espetada de

carne de um animal deveras esquisito. Impelido pela minha curio-

sidade, ofereceu-me um pedaço do que parecia ser uma asa desse

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alma de viajante

“A m

ais bem

pre

servad

a cidad

e d

o Su

deste

asiático”

animal. Extremamente saborosa, por sinal. Acabara de provar carne

de morcego!

Luang Prabang era uma cidade em final de tarde quando o

barco atracou no cais. Tempo apenas para encontrar alojamento e

preparar-me para um grande acontecimento que desejava presen-

ciar na madrugada do dia seguinte. Diariamente, por volta das seis

da manhã, muitas centenas de monges percorrem as ruas de Luang

Prabang, para receber dos habitantes diversas oferendas e a comi-

da que irão ingerir no dia que então se inicia. Na primeira madru-

gada na cidade, ainda sonolento, dirigi-me para o cenário onde o

acontecimento tinha lugar. De todos os templos de Luang Prabang

– e são imensos –, filas de monges de todas as idades saíam para as

ruas, onde mulheres sentadas ou ajoelhadas e homens de pé lhes

entregavam uma porção de algo. Muito arroz pegajoso, pequenas

doses de comida embrulhadas em folhas de bananeira, uma peça

de fruta, algum dinheiro e um ou outro doce faziam a maior parte

das oferendas. Alguns turistas compravam víveres de vendedoras

que oportunamente apareciam e juntavam-se aos habitantes locais

em vários pontos dos arruamentos da cidade. Se templos como o

de Xieng Thong são, por si só, de uma beleza avassaladora, esta vi-

são matinal colorida pelo laranja e açafrão das roupas dos monges

ultrapassou todas as expectativas.

Luang Prabang é uma localidade acolhedora, mas de re-

duzida dimensão. Ao fim de um par de dias, não havia muito mais

para desvendar. Mas sabia da existência de aldeias onde artesões

produzem o papel saa, uma exclusividade do Laos fabricada a partir

de uma árvore de fruto que abunda na região. Aluguei uma bicicle-

ta e pedalei à descoberta dos arredores, seguindo para o vilarejo

de Xang Kong, famoso por essa actividade. Homens e mulheres

pilavam a pasta de papel ainda em bruto, recorrendo a troncos de

madeira. Outros humedeciam a pasta já preparada e colocavam-

–lhe ornamentos naturais, como folhas ou pétalas de flores. E era

um cenário maravilhoso ver uma imensidão de placas com o papel

harmoniosamente decorado espalhadas por todo o lado, secando

ao sol quente do meio da tarde.

Esgotadas as actividades em Luang Prabang, decidi seguir

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filipe morato gomes

para Vang Vieng e explorar esse reduto mochileiro. Era lá que me en-

contrava por altura do tsunami do oceano Índico. Um dia passado a

descer um rio, tranquilamente sentado numa enorme câmara-de-ar

de um pneu de camião, impediu-me de saber mais cedo do acon-

tecimento. Foi ao fim da tarde, ao regressar à povoação e procurar

um ponto de acesso à Internet, que uma agitação anormal deu a

entender que algo grave havia sucedido. Viajantes empoleiravam-

-se uns atrás dos outros, olhando para monitores onde se navegava

pelos sites de jornais internacionais e cadeias de televisão. Não se

falava de outra coisa. Uns mostravam-se incrédulos perante as no-

tícias que iam chegando, outros interrogavam-se já sobre se este

ou aquele amigo não estariam em alguma das zonas afectadas. Era

o início de um drama humano do qual ninguém imaginava, ainda,

as reais proporções.

Nota de viagem

No dia 26 de Dezembro de 2004, data em que o maremoto atingiu a In-

donésia, a Tailândia, a Índia e o Sri Lanka, entre outros, encontrava-me em

Vang Vieng, no Laos, acompanhado pela jornalista Luísa Pinto, do jornal Pú-

blico. Dada a relativa proximidade geográfica, seguimos, no próprio dia, para

Phuket, no Sul da Tailândia, em serviço especial para o Público.

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alma de viajante

PHUKET, TAILâNDIA

A história cruza-se, de forma trágica, com a minha volta

ao Mundo. Mudo de rumo e voo para Phuket, na Tailân-

dia, onde encontro cenários paradisíacos transformados

em lugares de morte.

23. Tsunami altera planos da volta do Mundo

Pensava permanecer no Laos pelo menos um par de se-

manas, mas, ao saber da catástrofe que se abateu sobre a Indoné-

sia, a Tailândia e outros países banhados pelo Índico, segui imedia-

tamente para Phuket.

Encontrei um cenário tremendo. Nunca os meus olhos ti-

nham visto tamanho horror. Extensas praias e respectivos hotéis e

resorts reduzidos a nada com a passagem furiosa das águas. O chei-

ro a morte proveniente de corpos que se amontoavam por todo o

lado na região de Khao Lak, 100 quilómetros a norte de Phuket. E

a dor dos sobreviventes, de olhos cravados no chão, procurando

quase sempre em vão um sinal de vida de familiares ou amigos.

Alguns terão encontrado, mas a maior parte procurava já apenas

cadáveres, com o olhar encharcado de sofrimento e o coração vi-

sivelmente apertado. Não consigo sequer imaginar o que iria na

alma daqueles que, por entre cadáveres completamente deforma-

dos, alinhados nos jardins de alguns templos feitos morgues, tenta-

vam identificar algum ente querido.

Com o passar das horas, tornou-se claro que a gravida-

de da situação em Phuket, apesar do grau de destruição, não era

comparável com a de outros lugares, como Aceh, na Indonésia, ou

Galle, no Sri Lanka. E foi para o antigo Ceilão que me dirigi, sem

coordenadas precisas, apenas com a certeza de ir ao encontro do

inimaginável.

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filipe morato gomes

GALLE, SRI LANKA

Depois dos corpos sem vida nas praias de Khao Lak, Tai-

lândia, sigo para o Sri Lanka, onde testemunho o sofri-

mento daqueles que tentam desesperadamente sobre-

viver. A agonia da fome não é fácil de encarar.

24. A agonizante luta pela sobrevivência

Deixei a ilha de Phuket, na Tailândia, para rumar tão rápido

quanto possível para a devastada costa do Sri Lanka. A passagem

de ano aconteceu sem badaladas nem champanhe, sem sorrisos

nem abraços, a bordo de um avião da Thai Airways. Não havia nada

para celebrar. Cabisbaixo, sabia que ia ao encontro de cenários de

colossal destruição. Mas não imaginava ainda a dimensão humana

da tragédia e as agonizantes lutas pela sobrevivência que haveria

de testemunhar.

A presença, em invulgar número, de jornalistas e de equi-

pas de ajuda humanitária na lista de passageiros denunciava, desde

logo, a gravidade da situação no terreno. À chegada à capital, Co-

lombo, grupos de funcionários do aeroporto encaminhavam ambos

para uma zona diferente do comum dos passageiros. Uma tentati-

va de agilizar o processo alfandegário de descarga do equipamen-

to dos jornalistas e das grandes quantidades de material de apoio

médico que os grupos humanitários transportavam.

Uma das zonas mais afectadas pela fúria das águas locali-

zava-se no Sul do país. Aluguei um carro e percorri toda a extensão

transitável da estrada marginal que liga Colombo à cidade de Galle,

localizada no extremo Sudoeste do Sri Lanka. As bermas da estra-

da encontravam-se pejadas de pessoas – novos, velhos e muitas

crianças de colo – que esperavam ajuda. Como pano de fundo, só

se viam casas completamente destruídas, inabitáveis. As pessoas

dormiam ao relento e, de dia, aguardavam que algo de bom lhes

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alma de viajante

A ag

onizan

te lu

ta pela so

bre

vivência

acontecesse. O mais básico combate de qualquer espécie – a luta

pela sobrevivência – era travado por milhares de indivíduos disper-

sos por quilómetros e quilómetros de estrada. A cada carro que

passava, os desalojados faziam sinais, na tentativa de o fazer parar.

Pediam água, comida, um simples coco, qualquer coisa que os aju-

dasse a manter vivos. Vi gente brigar por meia dúzia de bolachas

e até por um cigarro oferecido. As mãos estendidas e os olhares

de desespero não serão fáceis de apagar da memória nos tempos

mais próximos. A agonia da fome não é fácil de encarar.

Felizmente, a solidariedade para com o povo do Sri Lanka

parecia não ter limites. Carrinhas de organizações humanitárias lo-

cais e algumas estrangeiras, e, principalmente, de muitos particula-

res anónimos, transportavam pequenos mantimentos, muita água,

algumas roupas, um ou outro cobertor e paravam para os distribuir

nas bermas da estrada. E então era o caos, com gente desesperada

a correr furiosamente em direcção ao veículo estacionado, numa

corrida literalmente pela vida. Os sorrisos de quem conseguia algo

eram terrivelmente genuínos. A lembrar que a diferença entre

morrer e continuar vivo pode estar num gole de água ou numas

migalhas de bolacha.

Ver cenários apocalípticos com corpos espalhados por todo

lado é algo extremamente brutal. Foi o que vi em Khao Lak, na

Tailândia. Mas presenciar a dor daqueles que tentam desespera-

damente sobreviver consegue ser muito mais chocante e difícil de

enfrentar. Do ponto de vista emocional, não creio alguma vez ter

passado por tamanha provação. Esgotado, abandonei o Sri Lanka

em busca de alguma paz.

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filipe morato gomes

COLOMBO, SRI LANKA

Uma crónica diferente do habitual, escrita no rescaldo

da dura experiência trabalhando como fotojornalista

em cenários de grande pressão emocional. Uma refle-

xão sobre uma profissão que muito admiro: a de jor-

nalista.

25. Reflexões sobre uma profissão: jornalista

Sempre me interroguei como conseguiriam os jornalistas

trabalhar em cenários de guerra ou de catástrofes naturais. Como

conseguiria um jornalista fazer qualquer pergunta a uma mãe que

acabou de perder um filho, sem parecer um abutre sobrevoando

uma carcaça? Como conseguiria um fotógrafo apontar a sua objec-

tiva a um corpo deformado, fotografar um indivíduo ferido em vez

de ajudá-lo, estar a um palmo de uma criança esfomeada e foto-

grafá-la? O que sentem esses profissionais da comunicação quan-

do, perante situações de grande pressão emocional, têm que fazer

o seu trabalho, independentemente do que lhes for na alma, do

sofrimento que lhes for contagiado, e tão objectivamente quanto

possível?

Tenho dito que não sou fotógrafo profissional, mas, por via

das circunstâncias , acabei por vestir a pele de um repórter fotográ-

fico na ilha de Phuket e em Khao Lak, na Tailândia, e, posteriormen-

te, em Galle, no Sri Lanka, por altura do tsunami que devastou essas

e muitas outras regiões do planeta. E é sobre essa experiência que

agora discorro algumas palavras.

O poder de uma lente

Não é fácil trabalhar em circunstâncias daquelas. É um

dado tão óbvio quanto verdadeiro. Mas, por incrível que possa pa-

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alma de viajante

Reflexõ

es so

bre

um

a pro

fissão

: jorn

alista

recer, a máquina fotográfica aparenta ter um poder fortíssimo so-

bre o profissional que a carrega. Olha-se pela objectiva e não se

sente o sofrimento de quem perdeu tudo na vida, tenta-se captá-lo.

Aponta-se a lente a um cadáver putrefacto e não se sente o seu

cheiro, vê-se as suas cores. Olha-se através da máquina e não se

vê uma criança esfomeada, antes procura-se o melhor ângulo, a

melhor composição, o enquadramento perfeito. Baixa-se a lente e

começa o sofrimento.

Lembro-me de descobrir um cadáver de aspecto total-

mente abominável por entre os destroços de um resort na praia de

Khao Lak. Olhei para a companheira de trabalho e ela acenou com

a cabeça, como que dizendo: “Fotografa, é importante!”. O cheiro

era nauseabundo, a visão do corpo aterradora. Dei meia volta, olhei

para o outro lado sem valentia para o encarar. Respirei fundo, ga-

nhei coragem. E foi então que tirei uma sequência de fotos, de vá-

rios ângulos, diferentes perspectivas, procurando o enquadramen-

to ideal para algo que poderia, de uma forma brutalmente cruel,

mostrar o que aconteceu em Khao Lak. Sempre imperturbável, pro-

tegido pela lente da máquina fotográfica. Terminei a sequência e

afastei-me do local até um ponto onde pudesse retirar a máscara

da face e respirar um pouco de ar isento daquele cheiro medonho.

Parei junto a dois homens que, próximos do mar, descansavam

do trabalho de busca e resgate de vítimas. Assim que levantei a

cabeça, desatei a chorar compulsivamente. O que tinha acabado de

presenciar tinha-se finalmente transformado em emoções. Como

se a lente tivesse o poder de, até então, as bloquear. Acendi um ci-

garro, acalmei durante o tempo que o mesmo foi sendo queimado,

e prossegui o meu trabalho em idênticas circunstâncias.

Noutra ocasião, no Sri Lanka, uma família tentava recolher

os tijolos aproveitáveis no meio dos escombros daquilo que outrora

fora a sua casa. Alguns membros da família tinham sido mortos,

outros continuavam dados como desaparecidos. Pediram-nos água,

apenas água. E diziam-se sem roupas e esfomeados, mas água

era o que precisavam. Apesar de tudo, trabalhavam afincadamente

para reconstruir, tão cedo quanto possível, um tecto para dormir.

Fascinado pela imagem de uma criança de tenra idade ajudando o

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filipe morato gomes

seu pai naquela tarefa, fotografei sem parar. Imagens de força de

vontade, imagens de alguma esperança no meio de tanto horror e

destruição. Uma vez mais, fi-lo de forma imperturbável. Andei até

ao carro e peguei na única garrafa de água que nos restava. Voltei

para junto da família e ofereci-lhes a água. Nessa altura, já não

consegui fotografar. Regressei ao carro e emudeci. E, novamente,

desabei em prantos. O desespero alheio não é fácil de ignorar, as-

sim que o homem toma o lugar do profissional.

Demorará algum tempo até que estas e muitas outras

imagens se desvaneçam na minha memória. Vi e fotografei coi-

sas demasiado perturbantes. Muito admiro todos aqueles profis-

sionais que enfrentam estas realidades e nos fazem chegar relatos

do que observam. De máquina fotográfica ou de caneta em punho.

Escrever não é mais fácil do que fotografar. Jamais esquecerei, por

exemplo, as perturbadoras crónicas que todos os dias chegavam

de Timor-Leste pela pena do jornalista Luciano Alvarez, naqueles

dias de terror ocorridos após o referendo de 1999. Imagino o que

terá sofrido para as escrever. Ao passar uma ideia para papel, tudo

vem imediatamente à tona. Como no momento em que escrevo

esta crónica. E, sendo assim, não há como não ter os olhos turvados

pela comoção.

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alma de viajante

KALAw, MYANMAR

Rumo a Myanmar, ciente de estar a entrar num país di-

rigido por uma abominável junta militar. Paro em Kalaw,

onde me embrenho nas montanhas envolventes e per-

noito com uma família de etnia dhanu, antes de seguir

para o mítico lago Inle, famoso pelos pescadores que ali

remam com as pernas.

26. Myanmar, um país oprimido

Estava prestes a entrar num país onde a liberdade é ainda

uma miragem. Uma junta militar execrável dirige, desde 1962, os

destinos de Myanmar (Birmânia) com implacável mão de ferro para

com os oponentes do regime. Detenções arbitrárias de dissidentes

são parte do quotidiano. Para o cidadão comum, falar sobre política

é um jogo arriscado. O medo paira nas ruas das cidades. Seria ético

visitar Myanmar?

Aung San Suu Kyi, a carismática líder da Liga Nacional para

a Democracia e Prémio Nobel da Paz, tem vivido em prisão do-

miciliária e continua a apelar para que a comunidade internacio-

nal boicote as viagens a Myanmar, até que os candidatos eleitos

democraticamente em 1990 tenham autorização para formar Go-

verno. Além disso, é virtualmente impossível visitar algumas das

mais emblemáticas atracções do país sem pagar entradas que vão

directamente para os cofres do Estado. Visitar Myanmar pode, pois,

ser visto como um acto de conivência para com o regime. Porquê,

então, fazê-lo? Antes de mais, porque o turismo é uma das activi-

dades à qual o comum do cidadão pode ter acesso. Seja conduzindo

um trishaw, um táxi ou um barco, seja sendo proprietário de uma

mercearia, um restaurante ou uma pequena pousada.

O turismo é, pois, uma forma de alimentar financeiramen-

te as gentes locais. Por outro lado, o Governo já mostrou, no pas-

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filipe morato gomes

sado, ser sensível às reprimendas internacionais e não é descabido

admitir que, na hipótese de os estrangeiros deixarem de entrar no

país, as probabilidades de graves atropelos aos direitos humanos

aumentem. Além disso, o contacto com forasteiros e a troca bilate-

ral de informações são quase sempre benéficos para quem almeja

maiores liberdades. Foi assim, ciente dos prós e dos contras, que

tomei a decisão de embarcar num avião rumo a Rangum, então

capital de Myanmar.

Não encontrei em Rangum suficientes pontos de interesse

para me deter por lá, a não ser o impressionante Shwedagon Paya,

o mais sagrado de todos os lugares budistas do país. A luz de final

de tarde aquecia os tons dourados omnipresentes no complexo.

Monges noviços meditavam em pequenos grupos. Gente simples

vagueava pelo edifício, enquanto outros efectuavam pequenas ofe-

rendas. Sendo-se ou não budista, Shwedagon é um lugar fabuloso

que merece de qualquer viajante um bom par de horas de aten-

ção.

No dia seguinte, estava já a caminho de Kalaw, uma pe-

quena povoação localizada a oeste do lago Inle, este último um

dos mais visitados lugares de todo o país. Na companhia de uma

viajante nórdica, parti para as regiões montanhosas envolventes,

sob a liderança de J. P. Barua, guia de ascendência indiana, excelen-

te conversador e conhecedor de todos os dialectos falados pelos

diversos grupos étnicos da província. A paisagem era dominada por

arrozais em tempo de pós-colheita. Passámos por vários povoados

habitados por gentes pao e palaung, mas J. P. decidiu que havería-

mos de dormir numa aldeia dhanu.

A família que nos recebeu era de uma simpatia extrema

e parecia feliz por nos ter como hóspedes. Em volta de um muito

bem-vindo braseiro, um jantar irrepreensível foi sendo cozinhado

pela filha dos donos da casa. A mãe preparava crackers de arroz

para vender na estação de caminho-de-ferro, no dia seguinte. En-

quanto isso, o pai mostrava, orgulhoso, um casaco polar oferecido

um mês antes por um grupo de sete portugueses – “os primeiros

portugueses” a lá pernoitarem. J. P., apesar de bastante comunica-

tivo, quase sempre se mostrou evasivo quando o assunto era mais

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alma de viajante

comprometedor. Mesmo perdido nas montanhas, nunca se sabe

quem pode estar à escuta.

Segui de Kalaw para o lago Inle num pequeno autocarro

lotado com vários tipos de seres vivos, incluindo um par de estri-

dentes leitões. Mal chegado a Nyaungshwe, povoação próxima do

lago, um passeio a bordo de uma canoa desvendou os primeiros

segredos. Percorrendo os estreitos canais envolventes, era possível

observar o quotidiano nas aldeias cujas casas estão assentes em

estacas, sobre a água. Mais tarde, já de barco a motor, visitei o

fascinante mercado de Indein, onde centenas de pessoas de várias

minorias étnicas negociavam de tudo um pouco. E, no caminho, os

afamados pescadores do Inle labutavam utilizando as pernas como

remos nas suas embarcações.

Dias depois, era tempo de mudar de poiso. Enquanto

aguardava o autocarro para Mandalay, um militar impecavelmente

fardado mandava parar quase todos os camiões de mercadorias

e pick-ups de passageiros. Sem qualquer palavra trocada, alguém

saía imediatamente da viatura, corria em direcção ao polícia e, com

a palma da mão virada para baixo, entregava dinheiro ao oficial.

Quando desconfiado, o militar conferia o montante entregue. Nun-

ca o verde de um uniforme me enojou tanto como naquele mo-

mento.

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filipe morato gomes

MANDALAY, MYANMAR

Chego a Mandalay e conheço os famosos Moustache

Brothers, uma trupe de comediantes que, desde há vá-

rios anos, faz do humor uma actividade subversiva con-

tra a ditadura militar instalada no país.

27. Moustache Brothers, gargalhadas contra o regime

Vivia-se um ambiente de reunião secreta entre os foras-

teiros presentes. O rés-do-chão da casa tinha sido transformado

numa pequena sala de espectáculos, com um microfone envelheci-

do montado sobre um palco, à esquerda, e duas dezenas de cadei-

ras de plástico espalhadas pelo cubículo. As paredes encontravam-

-se cobertas com marionetas, fotografias da Nobel da Paz Aung San

Suu Kyi e recortes de jornais internacionais sobre a história da trupe.

Na fachada, uma placa anunciava: “Moustache Brothers – come-

diantes, palhaços, arlequins”.

Faltavam quarenta e cinco minutos para o início do espec-

táculo. Sentei-me no exterior da casa em volta de um braseiro, à

conversa com um dos adolescentes da família. Aparentava 18 ou

19 anos, mas estava já imbuído do mesmo espírito combativo dos

mais velhos. A modesta casa dos três Moustache Brothers, situada

em pleno centro de Mandalay, deverá ser um dos raros lugares

urbanos, em Myanmar, onde se fala livremente sobre política. “Eles

[a junta militar] é que têm medo de nós, porque dizemos a verda-

de. Nós não receamos nada”, disse-me de supetão, em início de

conversa. Mas os Moustache Brothers já sofreram na pele as con-

sequências da sua rebeldia criativa. Par Par Lay, o mais velho dos

irmãos, passou cinco anos e sete meses da sua vida na prisão de

Myitkyina, incluindo alguns meses de trabalhos forçados. “Partindo

pedra e construindo estradas”, explicou. Foi detido enquanto dor-

mia, após um espectáculo nas proximidades da residência de Aung

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alma de viajante

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regim

e

San Suu Kyi, e condenado sem julgamento pelo crime de “fomentar

a desunião do país”. Durante todo esse tempo, a família apenas o

viu durante trinta minutos, numa única ocasião.

O tempo voou e a performance estava prestes a começar.

Zu Law, o segundo irmão da trupe, abriu as hostilidades, gracejan-

do: “Se a KGB [nome com que apelidam a polícia militar] vier cá,

nós fugiremos pela porta das traseiras; só prenderão os turistas”.

Antigamente, não era raro a polícia comparecer munida de câma-

ras de filmar, na tentativa de captar a subtileza das piadas políticas,

encapotadas em metáforas aparentemente inocentes. “Mas não

se preocupem”, continuou, mais sério, “eles gostam dos vossos

dólares, ninguém vos incomodará”. Passou já bastante tempo des-

de que o último militar apareceu num espectáculo dos Moustache

Brothers. A trupe é demasiado conhecida além-fronteiras para ser

beliscada. Dezenas de jornais e revistas de todo o Mundo já escre-

veram sobre a sua subversiva actividade. Até Hollywood já dedicou

uma cena de um filme, protagonizado por Hugh Grant, à prisão

de Par Par Lay. E essa visibilidade tem-lhes garantido, nos últimos

anos, total imunidade. Apesar disso, fazem parte de uma lista negra

de organizações indesejadas e, por isso, ninguém pode contratar

os seus serviços de comediantes. As suas performances estão con-

finadas àquele rés-do-chão. Piadas políticas, anedotas, interacção

com os turistas e danças tradicionais fizeram parte do espectáculo

pelo qual os presentes desembolsaram cerca de dois euros como

pagamento. Quando o espectáculo terminou, tinha já decidido que

haveria de ali voltar.

De permeio, rumei à cidade antiga de Mingun, num peque-

no barco a motor. Uma viagem muito interessante, observando a

vida nas margens do rio Ayeyarwady, com pessoas tratando da sua

higiene, outras lavando roupa, pescando ou consertando redes de

pesca, e crianças brincando nas orlas arenosas. Toda a vida destas

comunidades gira em torno do rio. A povoação propriamente dita

vale pelo inacabado Pagode Mingun, escavado numa enorme for-

mação rochosa que se eleva do solo, imponente. Em redor, dezenas

de comerciantes tentavam vender pinturas, esculturas, marionetas,

roupas e mil outras coisas de utilidade duvidosa, de uma forma

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filipe morato gomes

demasiado persuasiva para ser agradável.

Já a tarde ia alta quando o barco regressou a Mandalay.

Aluguei uma moto-táxi e rumei a Amarapura, para apreciar o pôr-

-do-sol na excêntrica ponte de U Bein. É uma ponte de madeira

com 1200 metros de extensão, de aspecto desengonçado e pouco

seguro, erguida sobre grandes estacas de madeira, naquela que é

uma das principais atracções da região. Monges de todas as idades

aguardavam na ponte pela oportunidade de praticar o seu inglês

com os forasteiros que, diariamente, lá se dirigem para desfrutar da

paisagem e fotografar. U Bein, sob as cores quentes de um entarde-

cer sem nuvens, constitui uma visão caricata e muito fotogénica.

Dias depois, voltei à casa dos Moustache Brothers, curio-

so em ver que mudanças ocorrem entre cada performance. Surpre-

endentemente, o espectáculo foi exactamente igual ao que pre-

senciara anteriormente. E é assim há quase nove anos, todos os

dias, ininterruptamente. “Nunca desistiremos. A democracia há-de

chegar a Myanmar”, rematou, a sorrir, o mesmo jovem com quem

falara da primeira vez.

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alma de viajante

BAGAN, MYANMAR

Visito os templos de Bagan e aprecio um belo pôr-do-

-sol num pequeno templo desconhecido, livre de turistas.

Sigo depois para a bela praia de Ngapali, antes de dei-

xar Myanmar com a consciência de que os birmaneses

nem isso – sair do país – podem fazer livremente.

28. Pôr-do-sol nos templos de Bagan

Era um pequeno autocarro de uma linha regular entre Man-

dalay e Bagan, extremamente desconfortável, exíguo em espaço e

sobrelotado. Percorreu estradas de terra batida pejadas de buracos,

aos solavancos, e o pó, omnipresente, tornava a respiração uma

proeza. Uma dúzia de pessoas efectuou a viagem de pé, outros

tantos no tejadilho por entre maletas e sacos de arroz. E, sempre

que uma mulher pretendia entrar no autocarro, era necessário al-

gum passageiro do sexo masculino se voluntariar para viajar na

capota e ceder o seu espaço à recém-chegada. Não por cavalhei-

rismo, mas porque, de outra forma, seria desrespeitoso para todos

os homens presentes ter uma mulher por cima das suas cabeças,

num nível superior. À chegada a Bagan, sentia-me pouco mais do

que moribundo.

Bagan é a mais visitada região de Myanmar e a principal

razão deve-se aos mais de dois mil templos que se espraiam por

uma área de quarenta quilómetros quadrados, nas proximidades

do rio Ayeyarwady. A par dos de Angkor, no Camboja, e dos de

Borobudur, na ilha indonésia de Java, os templos de Bagan são fre-

quentemente considerados os mais impressionantes legados do

passado no Sudeste asiático.

Havia demasiados turistas nos templos mais imponentes,

como em Shwezigon ou Ananda, este último um dos mais elegan-

tes, bem preservados e sagrados de entre todos os templos de

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filipe morato gomes

Bagan. À medida que a tarde ia caindo, os grupos organizados ru-

mavam para o ponto mais alto de um mesmo templo, aguardan-

do o pôr-do-sol. De todas as direcções, ouviam-se cliques furiosos

de dezenas de máquinas fotográficas em aceso despique. E gente,

muita gente, acotovelando-se num pequeno terraço.

Saturado, pedalei sem rumo definido pelos caminhos de

terra solta até que um homem me convidou a ver as pinturas de

sua autoria efectuadas sobre areia. Estava sentado à porta do mi-

núsculo templo de Tayok Pye, raramente visitado por forasteiros.

“Em média, cinco pessoas por dia vêm até Tayok Pye”, dizia o artista

vendedor. “Não é bom para o negócio, mas a licença para vender

junto aos templos maiores é demasiado cara”, continuou, resig-

nado. O edifício parecia como que um paralelepípedo sem graça

quando o homem apontou para uma estreita e escura escadaria.

“O sol põe-se em vinte minutos, podes subir”, sugeriu. A escadaria

levava até ao topo do pequeno templo. Subi e lá fiquei, apenas na

companhia do homem que entretanto subiu também, apreciando a

imensidão de templos que pintalgavam a paisagem e aguardando

o mágico instante em que o sol se esconde por debaixo da linha do

horizonte. Um momento de paz.

Bagan é um daqueles lugares que possuem um certo fascí-

nio, mas, ao fim de alguns dias, visitar templos tornou-se monótono

e cansativo. E estava curioso em conhecer o mais afamado destino

de veraneio de Myanmar, Ngapali, antes que o visto de permanên-

cia no país expirasse. Ainda dorido da jornada de autocarro, a mais

dura desta volta ao Mundo, e sabendo que levaria pelo menos vin-

te horas e três autocarros para lá chegar, decidi embarcar num voo

doméstico em direcção a Ngapali.

Lá chegado, encontrei uma praia imaculada, três quilóme-

tros de palmeiras alinhadas por detrás de uma linha de areia fina,

com bungalows e resorts de elevada qualidade. Ngapali é um lugar

belo e tranquilo, mas não é um destino frequentado por viajantes

independentes. Talvez por ser um local incompreensivelmente caro,

talvez por ser demasiado sossegado.

Era então altura de abandonar Myanmar e regressar a

Banguecoque, com o intuito de aprender a mergulhar nas ilhas do

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alma de viajante

golfo da Tailândia, antes de descer a península malaia em direcção

a Singapura. Mas, estando num país onde todas as liberdades são

controladas, o simples facto de poder sair ganha outro sentido. Mui-

tos birmaneses almejam por uma oportunidade para trabalhar fora

de portas e não têm permissão para sair do país. Soube de um pa-

dre católico que esteve três anos à espera de autorização da junta

militar para visitar Itália durante uma semana. Enquanto o avião se

elevava no céu e Myanmar ia ficando mais distante, só me ocorria

um pensamento: “Há povos que mereciam melhor sorte”.

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117

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filipe morato gomes

ILHAS PERHENTIAN, MALáSIA

Entro na Malásia e cruzo-me com viajantes portugueses

a caminho das paradisíacas ilhas Perhentian. E descubro

as fantásticas explorações de chá das terras altas de Ca-

meron, antes de rumar à histórica cidade de Malaca.

29. O azul do mar, o amarelo da lua e o verde do chá

Koh Lanta, Sul da Tailândia. Eram sete horas da manhã

quando chegou a primeira de três carrinhas em que haveria de me

sentar nesse dia, a caminho da Malásia. Um par de viajantes estava

já instalado no banco em frente àquele que me foi destinado. Uns

minutos de conversa e muitas palavras em inglês depois, descorti-

námos que éramos todos lusitanos. Nem queria acreditar. A opor-

tunidade de desenferrujar o português tinha finalmente chegado,

mas, como os ritmos de viagem eram diferentes, acabámos por

nos separar a meio do percurso e marcar encontro para daí a um

par de dias, já em território malaio.

A visão do posto fronteiriço chegou quando faltavam ape-

nas cinco minutos para as nove da noite e a fronteira estava prestes

a encerrar. Do lado tailandês, uma típica povoação fronteiriça pa-

recia tudo menos apelativa. Estava pejada de militares bem arma-

dos e havia postos de controlo de viaturas a cada passo. Lanternas

eram apontadas ao interior do veículo, na tentativa de identificar

algum elemento indesejado entre os passageiros. Uma realidade

diferente de todo o resto do território da Tailândia, reflexo dos pro-

blemas com que o país se debate para controlar alguns movimen-

tos rebeldes implantados no Sul do país. Para mim, e para um oca-

sional companheiro de viagem sueco, ficar naquele fim do mundo

estava fora de questão, pelo que era imperativo prosseguir e entrar

na Malásia nessa noite.

Mal a carrinha parou, apressámos o passo em direcção à

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alma de viajante

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mar, o

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o ch

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única funcionária que ainda estava de serviço no lado malaio da

fronteira. Eficientemente, dois carimbos e poucos minutos depois

estávamos já na moderna Malásia, procurando transporte para a ci-

dade mais próxima, Kota Bharu, ponto de passagem para as alme-

jadas ilhas Perhentian. Instantes depois, a fronteira era encerrada.

As Perhentian são famosas pelas suas belíssimas praias de

areia branca e pelos excelentes locais de mergulho que existem a

poucas milhas de distância, em redor das ilhas. Mas muitos centros

de mergulho estavam ainda por abrir, as praias encontravam-se

semidesertas e os restaurantes praticamente sem clientes. A época

das monções estava ainda a terminar e os turistas só mais tarde

começariam a visitar as ilhas. Debaixo de água, a visibilidade nem

sempre era a melhor, mas qualquer pessoa que se aventurasse,

nem que fosse a fazer snorkeling, seria recompensada com a visão

de uma fauna rica e diversificada, incluindo as sempre apetecidas

tartarugas e os inofensivos tubarões dos recifes. De noite, um ou

outro bar de praia tentava atrair os poucos visitantes com música

animada e fogueiras no areal. E era noite de lua cheia quando acon-

teceu o reencontro com os portugueses Rita e Bruno, excelentes

companhias para dois dedos de prosa e um punhado de cervejas

na noite mais animada do ciclo lunar. Após tanto tempo sem ver e

ouvir outros compatriotas, até as mais obscenas palavras ditas na

língua de Camões soariam bem. No dia seguinte, frustrado por não

poder mergulhar devido a uma irritante constipação, abandonei

precocemente as ilhas da costa leste da Malásia ao encontro das

plantações de chá nas terras altas de Cameron.

Depois do calor tropical das últimas semanas, a chegada a

Tanah Rata, porta de entrada em Cameron, foi uma estranha mu-

dança. Temperaturas baixas e chuvadas fortes e repentinas eram

uma constante. Mas, depois do azul do mar e do amarelo da lua,

era altura de apreciar as extensas colinas pintadas de um verde

viçoso que fazem de Cameron uma das mais visitadas regiões do

interior da Malásia. Aluguei uma motorizada e percorri livremente

as estreitas, íngremes e curvilíneas estradas da região. Plantações

de chá a perder de vista – com as árvores feitas bonsais, para mais

fácil tratamento e colheita – cobriam toda a extensão das mon-

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filipe morato gomes

tanhas envolventes. Nalgumas plantações, trabalhadores do sexo

masculino, maioritariamente indonésios, recolhiam as folhas mais

novas dos arbustos para, na fábrica, procederem à secagem, corte,

fermentação e embalagem do chá. Vinham das ilhas de Java e das

Flores, com contratos de entre três a cinco anos, sem a família, e

viviam numa espécie de estaleiros construídos junto às plantações.

A Malásia é extremamente moderna e desenvolvida e os mais ele-

vados salários locais atraem os indonésios para um ofício que os

malaios não desejam. O resultado do seu trabalho diário é o chá

que estava prestes a provar.

Após umas quantas chávenas de um delicioso chá Boh,

proveniente da homónima plantação das terras altas de Cameron,

era então altura de partir ao encontro dos vestígios do passado

lusitano e procurar os Silvas, os Pereiras e demais descendentes de

portugueses na costa oeste da Malásia. Alguém falará ainda portu-

guês na histórica cidade de Malaca?

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alma de viajante

MALACA, MALáSIA

Depois de um banho de modernidade em Kuala Lumpur,

parto em busca da memória portuguesa em Malaca. En-

contro testemunhos edificados, mas constato que qua-

trocentos anos e meio globo de distância são um fosso

demasiado grande para a língua de Camões.

30. Por mares muito antes navegados

As chuvadas tropicais em Cameron não deixavam espaço

para grandes passeatas e enxotaram muitos dos forasteiros que lá

se tinham deslocado para apreciar as plantações de chá ou efectuar

caminhadas pelos trilhos bem marcados nas selvas da região. Era

hora de partir ao encontro de Kuala Lumpur, coração financeiro de

uma Malásia supereficiente e desenvolvida.

Tal como havia feito em Moscovo e em Pequim, organizei

encontros com habitantes locais, na tentativa de obter uma pers-

pectiva mais íntima de uma tão grande cidade. Amata, malaio de

ascendência chinesa, apareceu na recepção da guesthouse onde fi-

quei hospedado eram praticamente horas de jantar. Outrora via-

jante inveterado, Amata sofreu um grave acidente durante a sua

última jornada algures na vastidão das estepes mongóis, quando o

cavalo onde galopava o atirou violentamente de encontro à dureza

implacável do solo pedregoso. “Parti a clavícula e demorou três

dias até receber assistência médica apropriada”, contou, enquanto

saboreava uma malga de noodles numa tasca de rua em Chinatown.

Não totalmente refeito do acidente e incapacitado de voltar a viajar

de forma independente, era notório o prazer que Amata sentia por

partilhar alguns momentos com outros viajantes, ora conversando

no hall de entrada da guesthouse, ora abrindo as portas de sua casa

a forasteiros, ora ainda mostrando-lhes partes da sua cidade. “Já

visitaste as torres Petronas?”, inquiriu. Não tinha nenhum particular

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filipe morato gomes

interesse em ver aquele que foi até há pouco tempo o mais alto

edifício do Mundo, mas Amata insistiu. “Tens que ver as torres de

noite.” Quinze minutos depois, encontrávamo-nos a bordo do efi-

caz sistema de metro local a caminho do mais incontornável marco

turístico de Kuala Lumpur. E a visão daqueles monumentais edifícios

completamente iluminados era, de facto, assombrosa. Estupefacto

e de pescoço contorcido, admirei longamente as gémeas constru-

ções perante o sorriso cúmplice de Amata. Estupendo.

Para além da dominante modernidade patente nas Petro-

nas e em grandes espaços comerciais e de negócios, Kuala Lumpur

possui algumas pérolas espalhadas por outras artérias da cidade.

Como a colorida Little India, quarteirão onde os cheiros, as pessoas

e o próprio ambiente de feira permanente oferecem uma diferente

visão da capital malaia. Ou a caótica Chinatown, onde de tudo um

pouco se vende com a certeza de nenhum produto ser genuíno. Ou

ainda edifícios históricos de arquitectura original, como o magnífico

Sultan Abdul Samad, situado em pleno coração de Kuala Lumpur.

Foi a história, aliás, que me atraiu à costa oeste da Malásia e, an-

sioso por redescobrir vestígios da gloriosa época em que os nave-

gadores portugueses descobriram meio mundo, em breve viajava

com destino a Malaca.

Letreiros anunciando “Comida portuguesa” deram-me as

boas-vindas nos primeiros passos pela cidade. Ao pisar o solo de

Malaca, senti-me invadido por uma estranha sensação que não ha-

via experimentado em nenhum outro lugar. Um misto de excitação

e de nervosismo. Inexplicável. Era como se regressasse a um lugar

familiar sem nunca, no entanto, lá ter estado. Malaca está cheia de

lugares e de pormenores que lembram o passado colonial. E os in-

dícios da presença lusa – e também holandesa – são bem evidentes

por toda a parte. Como na chamada Porta de Santiago, resquício da

fortaleza “A Famosa”, construída pelos portugueses séculos atrás e

posteriormente destruída por mãos holandesas. Ou na estátua de

S. Francisco Xavier, erguida em frente às ruínas da Igreja de S. Paulo,

também ela originalmente construída por ordem lusitana.

Sentado num autocarro público, esperei pelo sinal do cobra-

dor para sair na paragem certa. Procurava o que resta da comunida-

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alma de viajante

de portuguesa, concentrada numa área situada a três quilómetros

da cidade. Percorri as simpáticas artérias do povoado, embelezadas

com flores e mais flores, na busca de quem ainda tivesse alguma

fluência no português. Em vão. Muitas gerações depois, a língua

está como que moribunda. Apenas alguns dos mais idosos recor-

dam ainda algumas palavras, mas a articulação de uma frase com-

pleta é já uma tarefa demasiado exigente.

Bati à porta de Domingos Costa, homem com uns respei-

táveis 72 anos de idade e líder da comunidade portuguesa local.

Tinham-mo indicado como a pessoa certa para uma conversa em

português. “Sr. Costa, boa tarde”, arrisquei. “Boa tarde”, respondeu,

surpreso, num português quase imperceptível. “É português?! Olhe,

eu sempre vivi aqui, todos nesta comunidade descendem de portu-

gueses”, afirmou, obrigando-me a um grande esforço para o enten-

der. “Mas nunca fui a Portugal, nem tenho lá família”, pareceu-me

que foi o que disse. Dez minutos depois, desistimos do português.

No final, um goodbye havia já substituído o tradicional “adeus”. Qua-

trocentos anos e meio globo de distância são um fosso demasiado

grande para a língua de Camões.

Po

r mare

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123

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filipe morato gomes

SINGAPURA

Chego a Singapura e encontro uma cidade-nação que,

atrás da imagem de moderno centro financeiro e co-

mercial, esconde uma faceta mais familiar e encantado-

ra, com ruas de casas térreas e fachadas profusamente

trabalhadas. É nessa Singapura que me cruzo com um

indiano adivinho.

31. Uma Singapura sem arranha-céus

Arranha-céus espelhados, tecnologia de ponta, gigantes-

cos paraísos comerciais para os consumidores compulsivos e um

mundo de oportunidades financeiras, tudo faz parte da imagem

que Singapura emana. Imagina-se uma cidade extraordinariamente

eficiente, moderna, limpa e organizada. E tudo corresponde, de fac-

to, à verdade. Mas não a toda a verdade. Singapura possui recantos

de arquitectura praticamente inalterada desde há décadas. Zonas

onde o comércio se faz longe das regras de uma cidade afamada

por ser implacável na aplicação das leis. Lugares onde o SMS não

substituiu ainda a tradicional conversa de rua. Quarteirões onde não

existem prédios. Foi por essa Singapura que me deixei envolver.

Tudo começou porque uma amiga singapurense aguarda-

va a minha chegada à cidade. Um telefonema depois, Florence apa-

recia na estação onde os autocarros vindos de Malaca terminam

a sua jornada. Estava com pressa e tinha de se deslocar a uma

pousada, na zona leste da cidade, para efectuar uma tatuagem a

um cliente. Foi assim, por puro acaso, que tive a oportunidade de

conhecer a magnífica rua Joo Chiat. Enquanto Florence fazia o seu

trabalho, percorri aleatoriamente a zona, deslumbrado por observar

uma Singapura muito diferente daquilo que tinha em mente. As fa-

chadas das casas eram de pedra, profusamente trabalhadas, belas

e coloridas. Portadas de madeira cobriam as janelas e ocasionais

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alma de viajante

Um

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ha-cé

us

varandas davam uma graciosidade adicional às habitações. Em zo-

nas com edifícios recuados, portões de ferro com a idade a fazer-se

notar protegiam as casas dos intrusos. Aqui e ali, filas de azulejos

envolviam as janelas e embelezavam as paredes. Deleitado, ao fim

de um par de horas a percorrer a rua Joo Chiat, a perpendicular Ka-

tong e outras artérias da área, era altura de beneficiar do ultra-efi-

ciente sistema de transportes públicos locais e seguir ao encontro

da magia oriental da Little India e do caos controlado de Chinatown.

Ao pisar solo de influência indiana, acabara de entrar numa

parte totalmente distinta da cidade. Para além de pormenores ar-

quitectónicos das fachadas extremamente coloridas das lojas e ca-

fés, são as pessoas que fazem a maior diferença. Uma forte comu-

nidade indiana está implantada na cidade. Um indiano totalmente

vestido de branco, com um turbante branco e barba igualmente

esbranquiçada, cumprimentou-me no meio de uma pequena rua.

Após perguntar de onde era e de dizer meia dúzia de vezes “oh,

vida longa, viagens felizes, boa sorte”, pediu-me para escrever o

meu nome num pedaço de papel. Em seguida, rabiscou algo noutra

folha de papel, amarrotou-o e entregou-mo. “É para dar sorte”, dis-

se. Solicitou então que escolhesse um número até cinco e uma flor

de que gostasse. Respondi. Pediu para abrir o papel previamente

escrito e lá constavam, sem margem para dúvidas, o número e a

flor que eu havia escolhido. Estranho momento.

De volta à racionalidade, constava nos guias de viagem

que havia coisas imperdíveis em Singapura. Saborear o famoso co-

cktail Singapore Sling e tomar um chá da tarde no imponente Raffles

Hotel. Visitar o jardim zoológico ou fazer um safari nocturno nas

proximidades. Ou rumar à artificial ilha Sentosa, principal refúgio

de fim-de-semana dos habitantes locais e atracção para os turistas.

Mas, à parte uma visão exterior do histórico Raffles, nada daquilo

me atraiu. Ao invés, depois de Joo Chiat, Little India e Chinatown, e

curioso em saber como se gere o planeamento urbano de um pe-

queno país, era tempo de visitar uma exposição e comprovar que

nada em Singapura acontece ao acaso.

No edifício da Urban Redevelopment Authority, uma exibi-

ção permanente mostra aos visitantes a evolução da cidade desde

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filipe morato gomes

há décadas e, mais ainda, o que irá acontecer nos próximos trinta

anos em termos de desenvolvimento. Um homem de negócios sen-

tou-se ao meu lado enquanto visionava um filme sobre uma nova

zona de Singapura. “Está tudo planeado, vai demorar vinte anos a

construir”, disse. Tudo está delineado, desde futuras áreas verdes

até mega-edifícios residenciais e de negócios. E sem necessidade

de destruir algumas pérolas do passado que funcionam como íman

turístico para quem lá se desloca. Muito bem impressionado, deixei

Singapura com a sensação de abandonar uma cidade-nação que

é um modelo de desenvolvimento equilibrado. Asseada como ne-

nhuma outra metrópole de idêntica dimensão, segura como poucas

e possuidora de um sistema de transportes públicos de fazer inveja

a qualquer capital europeia, Singapura é um verdadeiro case study

para autarcas e decisores.

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alma de viajante

SEPILOK, BORNÉU, MALáSIA

Não imaginava visitar o Bornéu, mas a possibilidade de

voar a baixo custo empurra-me para Kota Kinabalu, ca-

pital da região administrativa de Sabah, em busca dos

engraçados macacos proboscis e dos fascinantes orango-

tangos.

32. Orangotangos, os “homens da selva” do Bornéu

Visitar o Bornéu não fazia parte dos planos desta viagem.

Mas o apelo da abundante vida selvagem muitos metros acima

do solo e outros tantos abaixo da linha de água fez com que em-

barcasse a bordo de um avião da Air Asia em direcção à capital da

região administrativa de Sabah. Um desvio de rota que se revelou

fascinante.

Ascender ao topo de Kinabalu é a principal atracção turís-

tica de Sabah e consta ser uma experiência exigente mas memo-

rável. Mas, com o alojamento na montanha totalmente esgotado

durante semanas, ver o raiar do dia no cume do monte Kinabalu

estava fora de questão. Não sendo possível, segui para o Sul da

província juntamente com Iestyn, amistoso inglês de férias pela

ásia, na expectativa de vislumbrar os engraçados macacos proboscis

em habitat selvagem.

Muitos turistas, principalmente japoneses, seguiam em pe-

quenos barcos pelos canais de um rio barrento, de pescoço curvado

e máquinas fotográficas a postos. De tempos a tempos, grupos de

macacos eram avistados no topo das árvores. Um macho possante

e dominador estava quase sempre acompanhado por várias pe-

quenas e graciosas fêmeas. De árvore em árvore, alimentando-se

ou catando parasitas entre si, os macacos de nariz comprido e ar-

redondado presenteavam os turistas com cenas do seu quotidia-

no em ambiente selvagem. Quando incomodados com a presença

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humana – ainda que distante –, refugiavam-se no solo, longe dos

olhares dos intrusos. Não fora o facto de haver mais turistas do que

proboscis e teria sido uma experiência marcante. Mas foi como que

um suave aperitivo para o ansiado encontro com os inteligentes

“homens da selva”, os mais famosos residentes do Bornéu. Possuin-

do 96,4% da composição genética do ser humano, não admira que

assim sejam denominados os orangotangos que ainda povoam as

selvas do Bornéu.

Foi no Centro de Reabilitação de Orangotangos de Sepilok

que pude observar as espertas criaturas. Calcula-se que existam

apenas quinze mil orangotangos em todo o Mundo, e o risco de

extinção a curto prazo é real. O trabalho desenvolvido em locais

como este – existem apenas quatro centros do género no planeta

– adquire, assim, importância redobrada. A captura ilegal de orango-

tangos, muitos dos quais acabam como animais de estimação em

casas de habitantes desinformados, deixa muitos orangotangos

órfãos de mãe. E, em ambiente selvagem e na ausência da proge-

nitora – com quem um jovem pode chegar a partilhar os primeiros

nove anos de vida –, aprender tarefas básicas como subir às árvo-

res ou procurar alimentos é empreitada praticamente impossível.

Sobreviver sozinho é muito difícil para um órfão. Em Sepilok, esses

jovens orangotangos são capturados e trazidos até ao centro. Pas-

sam depois por um programa de reabilitação, que dura vários anos

de aprendizagem, num processo lento e progressivo. Recebem os

ensinamentos básicos de que necessitam e suporte emocional e,

gradualmente, vão-se tornando mais independentes e confiantes.

São encorajados a explorar áreas da selva cada vez mais distantes

das instalações do centro. Até um dia a partir do qual, idealmente,

nunca mais terão contacto com um ser humano.

No dia em que visitei o Centro de Reabilitação, apenas três

orangotangos apareceram nas plataformas de alimentação em

busca de leite e bananas, suplemento nutricional àquilo que encon-

tram pelos seus próprios meios na selva. O desgosto dos turistas

era proporcional ao contentamento dos profissionais de Sepilok.

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alma de viajante

SIPADAN, BORNÉU, MALáSIA

Embarco numa lancha em direcção à ilha Sipadan, fa-

mosa pela excelência dos locais de mergulho em seu re-

dor. Nas águas, avisto tartarugas, tubarões, barracudas

e mantas gigantes; no areal deserto da ilha, encontro

polícias bem armados.

33. Tartarugas, polícias e tubarões

A ilha Sipadan é mundialmente famosa pela sumptuosi-

dade da vida subaquática existente em seu redor. Mais de três mil

espécies de peixes e centenas de espécies de corais foram já clas-

sificadas no seu riquíssimo ecossistema. A ilha é, aliás, formada por

corais vivos que crescem no topo de um extinto vulcão subaquáti-

co. O vulcão eleva-se verticalmente desde o fundo oceânico até à

superfície, numa parede com seiscentos metros de profundidade.

Alguns dos mais conceituados fotógrafos submarinos do planeta

fazem de Sipadan ponto de paragem regular. Mergulhadores ama-

dores e profissionais são atraídos como ímanes a este pequeno

pedaço de terra.

Entrei numa lancha rápida não com destino à ilha Sipadan,

mas sim a Mabul, a pouco menos de vinte milhas de distância. Na

verdade, actualmente ninguém tem permissão para ficar em Si-

padan, fruto de uma das mais arrojadas medidas ambientais de

que há memória na região. Até há um par de anos, o número de

mergulhadores costumava ser tão elevado que o frágil ecossistema

corria o risco de ser irremediavelmente danificado. Para os deciso-

res malaios, tratava-se de escolher entre os benefícios do turismo

no curto prazo ou a conservação de um ecossistema delicado e a

preservação do turismo a longo prazo. E a opção foi a mais radical,

e também corajosa. De uma assentada, mandaram deslocalizar to-

dos os centros de mergulho de Sipadan, ordenaram a destruição de

todos os bungalows e resorts e proibiram a estadia de turistas na ilha.

Alguns centros de mergulho foram transferidos para a razoavel-

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mente afastada ilha Mabul, outros encerraram portas. E hoje, para

Sipadan, há de novo esperança.

Em Mabul, pude partir à descoberta da aclamada fauna

subaquática. O cenário que encontrei era arrebatador. Dezenas de

graciosas tartarugas vagueavam pelos recifes de coral, alimentan-

do-se e esfregando a carapaça contra a rigidez das pedras, enquan-

to outras acasalavam diante dos olhos dos mergulhadores. Inofen-

sivos tubarões do recife repousavam, imóveis, nos fundos arenosos.

Mantas gigantes pareciam voar sincronizadas até desaparecerem

na imensidão azul do oceano. Cardumes de barracudas apareciam e

abalavam rapidamente. Peixes-crocodilo, peixes-leão e peixes-pa-

pagaio, cobras-de-água e um sem-fim de outros animais de todas

as formas e tamanhos marcavam também presença debaixo de

água. Absolutamente assombroso.

Com a boca aberta de espanto fiquei também ao parar

nos areais de Sipadan pela primeira vez. As águas rasas de um

azul-turquesa luminoso esbarravam lentamente numa praia de

areia imaculadamente branca. Filas de palmeiras delimitavam um

areal onde não havia banhistas, pese embora não estivesse deser-

to. Mas, ao invés de fatos de banho e biquínis, homens fardados e

de metralhadora em punho patrulhavam as areias de Sipadan, de

olhar atento aos céus e a cada barco que chegava. Uma visão no

mínimo caricata, mas com uma justificação aparente. Em 2000, a

paradisíaca ilha recebeu uma visita indesejada. O temido grupo ter-

rorista Abu Sayyaff, oriundo da vizinha Filipinas, aterrou ali com um

contingente de homens fortemente armados. Em lugar tão idílico

e tranquilo, as forças policiais eram praticamente inexistentes, pelo

que, para os separatistas, não foi tarefa difícil capturar vinte indiví-

duos, número no qual se incluíam alguns turistas. Os reféns foram

mantidos em cativeiro até que, ao fim de cinco meses de tensão e

de angústia, acabaram por ser todos libertados. “E tu, não tens re-

ceio de ser raptado?”, tinha-me perguntado dias antes, a propósito,

uma jovem viajante num botequim de rua de Kota Kinabalu, assim

que soube que iria para Sipadan. “Em Sipadan deve haver agora

mais polícias do que nunca”, respondi, em jeito de antevisão. O que

não imaginava é que patrulhavam uma ilha deserta.

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alma de viajante

KUTA, BALI, INDONÉSIA

Chego a Kuta, coração turístico de Bali, e passo pela rua

onde um atentado terrorista matou duas centenas de

pessoas, entre as quais um soldado português. Aos ba-

lineses, que têm na harmonia um valor supremo, ainda

hoje custa a crer que aqueles estrondos, de facto, acon-

teceram.

34. Em Bali, ainda se ouvem os ecos das bombas

Sábado, 12 de Outubro de 2002. A rua Legian estava api-

nhada de gente, como acontecia todas as noites de sábado. Bares

e discotecas eram o ponto de encontro de turistas de diversas na-

cionalidades, no dia mais agitado da semana. Predominavam os

australianos, mas havia também ingleses, japoneses e visitantes de

muitos outros países. E Legian era o centro nevrálgico desse bulício

nocturno. Em quase todos os bares, bandas entoavam cantigas ao

gosto dos visitantes, procurando atrair os transeuntes para dentro

de portas. Kuta vivia do turismo quando o relógio marcava quase

meia-noite. E foi então que o impensável aconteceu. Em toda a

cidade, ouviu-se um estrondo. No Paddy’s, um dos mais populares

bares dançantes de Kuta, algo grave tinha acontecido. O pânico

havia-se instalado e as pessoas corriam para a rua, desesperadas,

procurando refúgio de algo que não conseguiam ainda explicar.

Numa ilha onde a harmonia é um valor soberano, ninguém queria

acreditar que aquele som era o que parecia ser. Mas, momentos

depois, o estrondo de uma segunda explosão, muito mais forte

do que o anterior, ecoou nos tímpanos de turistas e locais. O Sari

Club, apinhado de gente, havia sido reduzido a poeira salpicada de

sangue pelos estilhaços de uma bomba. Num ápice, duas centenas

de corpos desligavam-se da vida terrena. E Bali nunca mais foi a

mesma.

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filipe morato gomes

Ao segundo dia em Kuta, o calendário marcava de novo

sábado. Dirigi-me para a rua Legian, instintivamente. Olhei para

os letreiros luminosos, entrei e saí de uns quantos bares tirando

o pulso ao ambiente, até que um néon me chamou a atenção:

“Paddy’s”. Entrei. Situado ligeiramente a sul da antiga localização,

a noite estava animada. Muitos australianos jovens emborcavam

cocktails de alto teor alcoólico e dançavam animadamente ao som

de músicas a convidar o embalo dos corpos. Bastantes prostitutas

javanesas usavam a falta de isqueiro para iniciarem conversa com

os homens presentes. Balineses bem-parecidos, de longos cabelos

negros, tez escura e corpo musculado, tentavam a sua sorte com

as loiras australianas. E algumas caras de feições familiares con-

versavam, dançavam ou bebericavam uma Bintang, aprazível cer-

veja indonésia. Eram professores portugueses a leccionar a língua

materna em Timor-Leste. Aproveitavam a interrupção lectiva da

Páscoa para mudarem de ares e terem acesso a bens difíceis de ob-

ter em território timorense. “Em Timor, falta muita coisa. Vimos às

compras, descansar e divertirmo-nos”, confessavam três docentes

portuguesas a trabalhar em Timor-Leste há já quatro anos.

Mas, apesar da aparente agitação, nada se comparava

com a época anterior à fatídica noite. Numa ilha que vivia e vive do

turismo, as consequências das bombas foram devastadoras. Só no

primeiro ano após as explosões, o número de chegadas a Bali re-

duziu-se para metade. “Desde as bombas, não há turistas”, lamen-

tava um vendedor de rua, comprovando a verdade crua dos núme-

ros. Para além disso, o tipo de visitantes parecia ter-se alterado. Os

mais velhos e endinheirados afastaram-se da ilha, para desconsolo

local. “O negócio vai muito mal. E os turistas que agora vêm a Bali

não têm dinheiro”, queixava-se Christian, nome anglicizado de um

taxista de profissão, afinado pelo mesmo diapasão de desconsolo.

“Até hoje, não consegui perceber porque nos fizeram isso. Somos

um povo de paz”, emocionou-se.

Para os turistas e viajantes que percorriam a rua Legian,

era também difícil não sentir uma ponta de emoção. Um memorial

de homenagem às vítimas foi entretanto edificado onde outrora

se localizava o Sari Club. Consiste numa parede decorada de forma

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alma de viajante

muito simples contendo umas inscrições que, ao longe, não dava

para decifrar. Uns passos adiante, olhando mais de perto, uma lista

de nomes revelava-se. Todos sabiam que aqueles eram os nomes

das duas centenas de vidas ceifadas pelo atentado. Muitos para-

vam petrificados olhando a lista, outros fotografavam o memorial.

E a lembrança das consequências das bombas era o suficiente para

humedecer os olhos de quem parava em frente ao memorial. Os

nomes estavam ali, verdadeiros, encarnando vidas que estavam no

sítio errado à hora errada, divertindo-se. Corpos oriundos de vinte

e dois países pereceram naquele exacto pedaço de solo, dois anos

e meio atrás. Indagava sobre as nacionalidades das vítimas quando

uma se destacou aos meus olhos. Acendi um incenso e no memo-

rial deixei uma flor. Paz à alma do Diogo!

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filipe morato gomes

UBUD, BALI, INDONÉSIA

Deixo Kuta e entro num mundo de tradições, misticismo,

crenças fortes e muita espiritualidade. Vestido a rigor,

participo numa cerimónia religiosa que acontece a cada

duzentos e dez dias. Em Ubud, expoente máximo de

uma outra Bali.

35. Os espíritos andam à solta nas ruas de Ubud

Em Bali, muitos turistas não se aventuram para lá da azá-

fama de Kuta, a mais turística e comercial de todas as povoações

da ilha. É uma pena, porque a essência de Bali, o que a torna um

destino tão atractivo e fascinante, reside na vibrante cultura e nas

tradições do povo que a habita. Sair de Kuta é entrar num mundo

à parte e Ubud, a poucos quilómetros de distância, é um dos expo-

entes máximos desse outro universo.

Vindo de Kuta, a chegada a Ubud foi uma lufada de ar

fresco. Dava para perceber que a cidade possuía algo de místico e

cativante. Um passeio pelas ruas da povoação revelou instantane-

amente um mundo de tradições, crenças fortes, espiritualidade e

uma forma de vida onde a união da família é um valor essencial.

A arquitectura local é rica, bonita, diferente de tudo o que

havia já visto noutros lugares. As famílias vivem em complexos

habitacionais de traços excepcionalmente belos. Vários edifícios

coexistem, com funções distintas, em redor de um pátio ou de um

bem arranjado jardim central. Uma pequena casa possui quartos

para as gerações intermédias e respectivos descendentes. Uma ou-

tra, elevada uns centímetros do solo – num nível acima de todas as

outras casas –, é ponto de abrigo para os mais velhos da família. O

respeito devido aos mais idosos, sábios e experientes é algo funda-

mental numa sociedade onde aqueles nunca são abandonados ou

colocados em centros de terceira idade.

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alma de viajante

Numa localização precisa do complexo habitacional, do lado

das montanhas, há quase sempre um templo. Todos os dias, as mu-

lheres preparam oferendas com flores, incensos e arroz cozinhado

no início da manhã, tudo colocado sobre pedaços quadrangulares

de folha de bananeira. “A comida é para alimentar os diabos maus;

as flores para os espíritos bondosos”, afiançava um habitante local.

Espalham as oferendas por todo o complexo e salpicam água, su-

postamente abençoada, pelo chão. Um ritual repetido todos os dias,

sem excepção, pelas casas e ruas de Ubud.

Ubud estava repleta de todo o tipo de rituais e cerimónias.

Certa noite, assisti a uma cerimónia que acontece a cada duzentos

e dez dias. “Só pode entrar no templo se tiver um sarong”, tinham-

-me avisado. Segui para lá, expectante. À porta, antes de entrar,

foram-me colocados um sarong verde-escuro, em volta da cintura,

e uma espécie de lenço branco, na cabeça. No interior, mulheres le-

vavam à cabeça tabuleiros circulares com oferendas enormes para

os espíritos. Frutas, doces de várias qualidades e outros alimentos

que não consegui descortinar. Tudo muito colorido e bem decorado,

formando belas e harmoniosas bandejas. As mulheres introduziam

as oferendas no interior do templo e efectuavam, em simultâneo

com os elementos masculinos, as suas orações. Depois, recebiam

água sagrada com a qual lavavam simbolicamente as mãos, o ca-

belo e a cara, antes de colocarem grãos de arroz na testa. “Símbolo

de prosperidade”, explicou um participante na cerimónia. As ofe-

rendas eram igualmente “purificadas” com “água sagrada” e, uma

vez terminado o ritual, eram levadas para fora do templo. As bali-

nesas levavam de novo os tabuleiros à cabeça com destino a casa,

onde, na companhia da família, haveriam de se deleitar com os

sabores dos alimentos “purificados”.

Estava escuro, e a chuva que caía dava um toque extra

de misticismo às filas de mulheres carregando as oferendas pelas

ruas da cidade. Nessa noite, os espíritos andavam à solta nas ruas

de Ubud.

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filipe morato gomes

DÍLI, TIMOR-LESTE

Chego a Timor-Leste, naquele que era um dos momen-

tos mais ansiados de toda esta viagem. Passo pelo

Cemitério de Santa Cruz, conheço a vida dos antigos

guerrilheiros nas montanhas e falo com os seus filhos

– alguns dos quais nunca viram os pais durante os anos

de luta pela independência.

36. As fotos dos pais que os filhos nunca viram

Estava há poucas horas em Timor-Leste quando, num im-

pulso, fiz sinal a um táxi que passava numa rua de Díli. “Santa Cruz”,

disse. Costuma ser um prazer conversar com taxistas, mas, naquela

ocasião, não pronunciei mais palavra alguma. Seguia para um lu-

gar tristemente célebre e as imagens daquele 12 de Novembro

passavam a alta velocidade diante dos meus olhos semicerrados.

Via uma criança sentada no chão, com a face ensanguentada e

o olhar inocente, sem compreender o que se passava. Um jovem

levantando a camisa para mostrar o abdómen atingido por uma

bala certeira. Gente a correr desesperadamente, saltando o muro,

tentando salvar a própria vida. Ouvia o barulho dos tiros. Via gen-

te a cair. E militares fardados, ao fundo, apontando as suas armas

ao que quer que se mexesse. Quando o táxi parou em frente ao

Cemitério de Santa Cruz, as imagens feitas pesadelo terminaram

abruptamente. O muro do cemitério estava do lado esquerdo. Do

lado de lá, o local onde tudo aconteceu. Era tempo de rebobinar o

filme das memórias e homenagear quem perdeu a vida pela mais

nobre das causas: a liberdade.

Passei o portão de ferro, cabisbaixo, e avistei um velho de

rosto marcado por uma vida de trabalho, o corpo franzino e enruga-

do, as mãos calejadas e um sorriso espontâneo. Era um velho boni-

to, o Sr. Filomeno, coveiro no Cemitério de Santa Cruz. Pressentiu o

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alma de viajante

que me levara àquele lugar e, como resposta a um “bom dia”, dis-

parou: “Senhor, não estão cá os que morreram no massacre. Foram

levados em camiões pelos indonésios e enterrados em valas co-

muns”. Falava daquele mesmo dia, o dia em que um desfile pacífico

acabou por ser transformado numa carnificina. “Crianças, mulheres,

velhos... [os militares indonésios] dispararam contra todos os que

se esconderam no cemitério”, dizia o Sr. Filomeno. Tinha sido usado

o mais primitivo dos métodos para calar vozes discordantes, mas,

naquele dia, o jornalista britânico Max Stahl estava lá e filmou tudo.

E o Mundo não pôde mais fingir desconhecer o que se passava na

parte leste da ilha de Timor.

Saía de Santa Cruz quando um homem na casa dos cin-

quenta anos me cumprimentou. Tinha vivido e lutado, nas monta-

nhas, durante sete anos. “Tempos difíceis...”, lancei para o ar, pu-

xando conversa. “Sim, vivíamos como galos bravos. Dormíamos

em qualquer lugar, usando um toldo para nos protegermos da chu-

va. Detectávamos o inimigo [militares indonésios] pelo cheiro. Eles

fumavam e, antes mesmo de os vermos, já sabíamos que estavam

por perto. Ou então por causa do barulho que faziam com os ta-

chos que traziam nas mochilas”, contou, com nítida satisfação. “E

eles não vos viam?”, perguntei, curioso. “Muitas vezes passavam a

cinco ou seis metros e nem davam por nós. Outras vezes davam-se

encontros cara a cara. E aí, senhor, era matar ou morrer”, afirmou,

conferindo maior seriedade à expressão do rosto. O diálogo estava

a chegar a um ponto demasiado sensível quando o homem deu por

finda a conversa. “Não posso contar mais.” Mudámos de assunto,

despedimo-nos e apanhei novo táxi de regresso ao centro de Díli.

As ruas da cidade estavam limpas e embelezadas. O Pre-

sidente da Indonésia visitava Díli e o Presidente da República de

Timor-Leste, o antigo comandante Xanana Gusmão, ameaçava de-

mitir-se caso houvesse qualquer tipo de protestos. Passada a época

da luta de guerrilha, o tempo, agora, é de estabelecer boas relações

com o poderoso vizinho.

Dias depois, abandonei Díli para conhecer outros distritos

do país. Enquanto esperava a partida da biskota – miniautocarro que

faz as ligações entre as diferentes povoações da ilha –, fui aborda-

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137

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filipe morato gomes

do por um jovem. Os timorenses são afáveis, curiosos e gostam

de conversar com os malaes (brancos, estrangeiros). E a luta pela

independência é um dos temas favoritos nessas conversas. Porque

tudo é muito recente. Porque quase todos os timorenses estiveram

envolvidos. Ou porque quase todos viram familiares perecer duran-

te esse combate. O homem chamava-se Ramos e ia para Baucau

visitar um irmão. Orgulhoso, contou que o seu pai tinha passado

dezasseis anos a combater nas montanhas, como guerrilheiro das

Falintil, sem nunca voltar à aldeia natal. “O meu pai era forte, mas

foi apanhado no mato e deram-lhe um tiro.” Falava do pai com

uma admiração desmedida, como se se referisse a um herói. “Mas

durante toda a sua vida nunca o viu...”, arrisquei. “Vi, senhor. Em

fotografias.”

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alma de viajante

DÍLI, TIMOR-LESTE

Assisto aos protestos da Igreja timorense contra a pre-

tensão do Governo de tornar facultativa a disciplina de

Religião e Moral. Ouço Xanana Gusmão dar uma “lição”

de democracia ao povo, mas percebo que, em Timor-

-Leste, a laicidade do estado não se pode impor de um

dia para o outro.

37. O poder da Igreja em Timor-Leste

O ambiente em Díli estava tenso. A Igreja católica ence-

tara um braço-de-ferro com o primeiro-ministro timorense, Mário

Alkatiri, por discordar das suas pretensões. Organizou uma mani-

festação, por tempo indeterminado, em frente ao palácio do gover-

nador. “Até que o primeiro-ministro se demita”, dizia um dos ma-

nifestantes. O Governo, esse, pretendia tornar facultativo o ensino

da religião nas escolas. Algo aparentemente normal num estado de

Constituição laica. Mas não em Timor-Leste.

O cenário era caricato. Uma fila de cruzes, santos, Cristos e

Nossas Senhoras delimitava o início da manifestação. Muitas des-

sas figuras estavam decoradas com salendas (cachecóis tradicionais

timorenses), dando um toque tradicional e patriótico ao conjunto.

Havia faixas com inscrições em tétum, clamando por “justiça” e

chamando “ditador” ao primeiro-ministro. Atrás das faixas e da fila

de imagens, os manifestantes – variando entre poucas centenas e

alguns milhares, consoante o dia da semana. Havia muitos jovens e

crianças. Ao fundo, tendas, casas de banho móveis e um palco. Vi-

via-se um ambiente de festa e havia música na tentativa de manter

os manifestantes mobilizados. A espaços, tempo para rezar. Eram

orações conjuntas, numa espécie de missa ao ar livre. De tempos

a tempos, apareciam representantes da Igreja, oriundos dos vários

distritos do país, e subiam ao palco para usar da palavra. Eram dis-

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filipe morato gomes

cursos quase sempre inflamados e, cedo ou tarde, surgia a palavra

de ordem – sempre a mesma – que os manifestantes entoavam,

entusiasmados, ao som de acordes: “Fora Alkatiri! Fora Alkatiri!”. A

multidão delirava.

À frente das imagens religiosas, um grupo de profissionais

da polícia, alinhados, tentava garantir a segurança no local. Tudo

decorria tranquilamente e sem incidentes, mas, a certa altura, uma

freira pegou no microfone e pediu aos manifestantes que entre-

gassem uma flor a cada guarda. E sugeriu que os elementos das

forças de segurança depositassem a flor recebida junto às imagens

de Nossa Senhora. E então era ver os polícias abandonarem a sua

posição de trabalho e, de lágrima no olho e ajoelhados perante as

imagens, responderem afirmativamente ao apelo da madre. Em

pormenores como este se vê o poder da Igreja católica sobre o

povo timorense.

Onze longos dias tinham já passado quando o Presidente

da República, o antigo comandante Xanana Gusmão, se deslocou

ao local da manifestação para tentar demover os manifestantes.

Fez um discurso pedagógico, naquele seu jeito paternal. Um timo-

rense ia-me traduzindo as palavras do Presidente, em tétum. “Vo-

cês têm todo o direito de se manifestarem”, dizia. “Agora somos

livres de expressar as nossas opiniões e isso é uma das grandes

conquistas da independência.” Falava muito pausadamente, como

se estivesse a explicar algo importante a miúdos de tenra idade. O

povo aplaudia. “Mas o Governo foi eleito para governar, para tomar

decisões”, prosseguiu Xanana Gusmão, tentando encaminhar o dis-

curso para aquilo que pretendia evidenciar. A multidão continuava

a aplaudir.

Falou da Constituição de um país laico, do facto de haver

opções. À saída do palco, debaixo de uma chuva de aplausos, dir-

–se-ia que tinha conseguido passar a mensagem pretendida, mas,

logo de seguida, um padre pegou no microfone e usou da palavra.

“Muito obrigado pelas suas palavras, senhor Presidente. Foi uma

honra tê-lo connosco”, afirmou, para logo de seguida garantir: “Mas

nós não sairemos daqui”. O povo, de novo, aplaudiu, tal como tinha

aplaudido Xanana Gusmão. “Fora Alkatiri! Fora Alkatiri!”. E ninguém

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alma de viajante

desmobilizou.

Por essa altura, uma professora portuguesa a leccionar em

Timor-Leste deslocava-se num táxi para o centro de Díli. “Concorda

com a manifestação?”, inquiriu. “Eu concordo com a Igreja católica,

professora”, dizia o taxista, “o ensino da religião tem que ser obri-

gatório, senão isto é uma ditadura...”.

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filipe morato gomes

LOS PALOS, TIMOR-LESTE

Os timorenses comunicam em tétum, bahasa indonésio

ou num dos vários dialectos locais, mas a língua oficial

é o português. Um paradoxo linguístico no meio do qual

se encontram os professores portugueses a leccionar

em Timor-Leste – um país extraordinário, com enorme

potencial como destino turístico do futuro.

38. As contradições linguísticas de um belo país

Existe em Timor-Leste uma geração sem qualquer relacio-

namento com Portugal. Aqueles na faixa dos vinte e poucos anos

nasceram e cresceram sob influência indonésia. Portugal é, para

eles, algo estranho, longínquo, apenas parte de um passado que

não viveram. O uso da língua portuguesa é uma opção que não

compreendem. Porque terá sido escolhido, para língua oficial, um

idioma que a maior parte da população desconhece?

A questão não é de fácil resposta, mas coloca-se diaria-

mente. “O português faz parte da identidade timorense”, disse-me

um dia o adido para a cooperação da Embaixada de Portugal em

Timor-Leste. É verdade. Mas entra-se num táxi e o condutor só en-

tende tétum ou bahasa indonésio. Entra-se numa biskota ou mikrolet

(transportes locais) e raramente se encontra alguém com quem

dialogar. Percorre-se as ruas de qualquer povoação e não se ouve

nenhum grupo de timorenses a conversar em português. Usam o

tétum ou um dos vários dialectos locais existentes no território. E os

que conhecem a língua de Camões – geralmente os muito velhos

ou os muito novos – usam-na apenas para comunicar com os por-

tugueses que permanecem no território. Nunca entre si.

Os decisores timorenses queriam romper com o passado

tortuoso e marcar a diferença em relação à outrora potência ocu-

pante, a Indonésia. E o inglês só serviria para aumentar uma inde-

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alma de viajante

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país

sejada influência australiana no território. Do tétum, diz-se ser de-

masiado básico e pouco estruturado. Ficou o português, laço antigo

que resistiu à história e que carrega consigo uma carga simbólica,

de resistência, na luta pela independência. “No mato, comunicáva-

mos em português, para que o inimigo não entendesse as nossas

mensagens”, disse-me um antigo guerrilheiro das Falintil. Agora,

só o tempo poderá confirmar se essa escolha foi a melhor para o

futuro de Timor-Leste. E isso – o futuro do povo timorense – é a úni-

ca coisa que verdadeiramente interessa considerar nesta questão

linguística.

No meio de tudo isto encontram-se os professores portu-

gueses, que dão o melhor de si para cumprir a tarefa de que foram

incumbidos. Actualmente, a maioria dos docentes nacionais ensina

colegas timorenses, para que estes possam, por sua vez, leccionar

na língua de Camões. Mas muitos assistem às aulas obrigados, o

que torna a tarefa mais difícil. Acrescem os problemas de assidui-

dade pelas mais simples razões. Uma ribeira cheia que não permite

que alunos ou professores se desloquem às escolas. Velórios de

entes queridos que duram mais do que uma semana. Doenças dos

próprios alunos ou de familiares. O dia-a-dia de quem tem por mis-

são o ensino em português nem sempre é fácil, apesar do estilo de

vida relaxado e das tentadoras compensações financeiras.

Em breve, quando a quase totalidade dos estrangeiros

abandonar o território, caberá aos timorenses desbravar o seu ca-

minho rumo à prosperidade. Investir, produzir, apostar em áreas

chave. E o turismo – arrisco a dizer – será um dos sectores funda-

mentais para o desenvolvimento do país.

Não se vêem, por enquanto, viajantes em Timor-Leste.

Mas consigo, sem esforço, imaginar o país como um destino tu-

rístico de relevo. Já estive noutros lugares com muito menos para

oferecer em termos de beleza e de diversidade cultural, e que são

verdadeiros ímanes para viajantes de todo o Mundo. Algumas ilhas

tailandesas, por exemplo. É certo que viajar em Timor-Leste não é

fácil. As estradas que rasgam o país são tudo menos confortáveis.

Distâncias curtas demoram uma eternidade a percorrer. Mas o país

tem, para além da componente cénica, imenso para proporcionar

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filipe morato gomes

aos viajantes que nele se aventurem. Intercâmbios com culturas

riquíssimas, um povo de uma amabilidade extrema, lugares onde

se fica com a sensação de se recuar no tempo. E praias belíssi-

mas espalhadas por quase toda a costa. O monte Ramelau e as

plantações de café e cacau do Centro do país. As ilhas de Jaco e

de Ataúro e muitos, muitos outros lugares. E, melhor do que tudo,

os inconfundíveis sorrisos das crianças timorenses e os seus olhos

negros, profundos, igualmente risonhos. Se a riqueza de um país

se medisse pelo encanto dos mais novos, Timor-Leste seria a mais

próspera nação do planeta.

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alma de viajante

DARwIN, AUSTRáLIA

Aterro em Darwin e constato um dos grandes dramas

da Austrália desenvolvida. Um conflito civilizacional tem

lugar, diariamente, nos parques e nas ruas das povoa-

ções do Norte do país. Os povos autóctones vivem de

forma miserável, infelizes, sem rumo. Poderá um país

construir o futuro alheando-se do passado?

39. O drama moderno dos aborígenes

Ao aterrar na Austrália, chegara ao primeiro país de cultura

ocidentalizada desde o início desta volta ao Mundo. As ruas limpas

e arranjadas de Darwin, a organização da cidade, sem prédios ele-

vados e tráfego congestionado, e a visível qualidade de vida dos

seus habitantes eram uma brutal alteração em relação à última

paragem, Timor-Leste. Aterrara no chamado primeiro mundo, mas,

apesar de a Austrália se posicionar na vanguarda do desenvolvi-

mento mundial, havia qualquer coisa que não batia certo.

Em Darwin, não parece haver stress. As pessoas andam des-

preocupadamente pelas ruas, como se o ritmo de vida fosse lento e

prazenteiro, e utilizam os parques da cidade, verdes e refrescantes,

como pontos privilegiados para salutares actividades físicas. Porém,

partilhando o mesmo espaço, alheios a tudo, por entre o verde res-

plandecente da relva dos parques, encontrei incontáveis aboríge-

nes de aspecto miserável e roupas gastas dormitando, moribundos.

Um conflito civilizacional, surdo e funesto, perceptível em todos os

cantos da cidade. Há aborígenes embriagados por todo o lado, vi-

vendo como seres expulsos da sua própria terra, sem lugar para

onde ir nem para onde voltar. Uma visão muito triste de um povo

indígena com uma cultura milenar riquíssima e que, provavelmente

sem alternativas, parece ir lentamente definhando perante as leis

do chamado progresso.

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filipe morato gomes

Estima-se que um milhão de autóctones habitasse a Aus-

trália quando os primeiros europeus ali desembarcaram. Ainda hoje,

cerca de 30 por cento dos 200 mil habitantes do Northern Territory

– do qual Darwin é a capital – é aborígene. Muitos vivem em zo-

nas delimitadas pelo Governo como território indígena, com pouco

contacto com o homem dito branco. Outros vivem em parques na-

cionais explorados conjuntamente por ocidentais e aborígenes, em

parcerias que têm funcionado como forma de integração destes no

mundo moderno daqueles, preservando, no entanto, a sua cultura

e costumes. E há ainda uns poucos que vivem perfeitamente inte-

grados numa sociedade de consumo.

Conheci uma dessas excepções na povoação de Katherine,

dias depois de ter saído de Darwin. A bordo de um miniautocarro

da companhia wayward Bus, segui para sul, rumo ao coração de-

sértico da Austrália. Uma paragem no Parque Nacional de Litchfield,

a um par de horas de Darwin, foi um óptimo início para a longa

viagem. Cascatas como a de Florence proporcionaram à dúzia de

viajantes a oportunidade de nadar em águas cristalinas e refres-

car o corpo. Montes gigantes construídos por laboriosas térmitas

impressionavam pela magnitude e orientação quase milimétrica.

É espantoso como criaturas tão pequenas constroem edificações

tão colossais e engenhosas. Outra espécie de formigas foi alvo de

toda a atenção por outras razões, neste caso gastronómicas. Por

sugestão do motorista, provei uma formiga verde. Viva. Dizia conter

uma grande dose de vitamina C e ser usada pelos povos da região

como fornecedor natural dessa substância. O sabor ácido lembrava

o de uma lima.

Aqui e ali, outros animais fizeram o miniautocarro parar.

Uma cobra venenosa, atravessando a estrada sem curvas. Dezenas

de pequenos cangurus, saltitando graciosamente. E emas, aves cor-

redoras semelhantes a avestruzes. Uma oportunidade única de vis-

lumbrar animais completamente selvagens no seu habitat natural.

Mais para sul, em Mataranka, ao segundo dia de viagem,

um banho nocturno nas homónimas águas termais retemperou

energias e preparou os viajantes para o resto da jornada. Antes da

chegada a Alice Springs, tempo ainda para uma paragem nas Devil

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alma de viajante

Marbles, umas curiosas formações rochosas que pareciam brotar

como cogumelos do solo plano e árido envolvente, e em Katherine,

a povoação onde encontrei Glen, um aborígene que provou que

nem todas as histórias de integração indígena na sociedade mo-

derna têm um triste final.

Cruzei-me com Glen na sua loja, que era um misto de ci-

bercafe e de venda de artesanato aborígene. “Sou um dos poucos

indígenas a ter um negócio próprio em todo o Northern Territory.

E estou a pensar expandir o negócio e abrir mais um par de lojas”,

disse, com indisfarçável orgulho. É certo que Glen é uma excepção.

Mas, sendo difícil garantir a preservação de comunidades isentas

de influências externas num Mundo cada vez mais globalizado, é,

pelo menos, um sinal de esperança.

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filipe morato gomes

ALICE SPRINGS, AUSTRáLIA

No coração da Austrália Central, durmo sob um céu con-

tinuamente estrelado, subo ao topo do imponente Kin-

gs Canyon e aprecio a rocha vermelha de Uluru envol-

vida por um surpreendente arco-íris. Em solo sagrado

aborígene, presencio o desrespeito pelas leis tradicio-

nais anangu.

40. Quando um arco-íris abraça Uluru

Saí de Alice Springs com destino ao ícone turístico mais

vulgarmente associado à Austrália: Uluru. Ou Ayers Rock, como os

europeus lhe chamaram. Um pedaço de pedra que brota da planura

do solo e de cores avermelhadas que ganham vida ao entardecer.

Dir-se-á que é apenas uma rocha no coração desértico de um vasto

país, longe de qualquer vestígio de civilização. Pode ser, mas Uluru

é, sem dúvida, um lugar especial. Sagrado. O tempo que se demora

a chegar lá não é, de forma alguma, um desperdício.

A primeira visão de Uluru aconteceu ao final da manhã,

quando a luz não era a ideal e o calor estava no auge. Haveríamos

de voltar para explorar a base da afamada rocha vermelha, mas

seguimos inicialmente em direcção às Olgas, uma curiosa formação

rochosa de feições arredondadas e coloração semelhante a Uluru.

Juntamente com uma vintena de outros jovens viajantes, percorri a

base das Olgas debaixo de um calor abrasador. Extraordinário como

uma paisagem pode ser tão seca, bruta e, simultaneamente, tão

bela. Mas o momento mais espectacular do périplo pela Austrália

Central estava reservado para mais adiante, quando subimos ao

topo do Kings Canyon, um desfiladeiro imponente que se ergue no

agora Parque Nacional de watarrka.

Não é por acaso que o trilho que leva ao seu topo se cha-

ma “ataque cardíaco”. Mas, uma vez lá em cima, as vistas são

espectaculares. O olhar alcança quilómetros e quilómetros de pla-

nícies escassas em vegetação. Predominam os tons pastel, aver-

melhados, e até as plantas parecem desbotadas pela falta de água.

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alma de viajante

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um

arco-íris ab

raça Ulu

ru

Palmilhámos ambas as vertentes do desfiladeiro, deslumbrados.

Mais do que qualquer outra paisagem da região, percorrer o topo

do Kings Canyon é de cortar a respiração. Foram dois dias em cheio

e duas noites a dormir ao relento, literalmente no meio de nada,

por baixo de um céu imensamente estrelado. Sem tendas, com

os sacos-cama dispostos em redor de uma preciosa fogueira. Em

sintonia total com o outback australiano.

No regresso a Uluru, ao entardecer de um outro dia, as

condições climatéricas pareciam não querer ajudar os fotógrafos

amadores que esperavam pelas famosas cores avermelhadas. O

céu carregado impedia os raios solares de irem ao encontro da ro-

cha e uma irritante chuva fora de época começara entretanto a

cair. Alguns turistas recolhiam aos seus enormes autocarros com

os copos de champanhe salpicados de água. Antevia-se uma enor-

me desilusão colectiva, mas eis que, por breves minutos, a chuva

amainou e os raios solares encontraram o seu caminho por entre

as nuvens negras. Num ápice, formou-se um belíssimo arco-íris que

abraçou completamente Uluru. Uma dádiva dos deuses aborígenes.

“Já aqui assisti a mais de cem pores-do-sol e este é, seguramente,

um dos mais espectaculares”, garantiu um guia local.

No entanto, nem tudo foi harmonioso na passagem pelo

outback. Por culpa dos turistas, que nem sempre adoptam uma pos-

tura adequada perante culturas diferentes das suas. Todo o Parque

Nacional Kata Tjuta, onde Uluru se localiza, é solo aborígene desde

há milénios. Terra habitada pelos anangu. Acontece que os anangu

pedem aos visitantes para não escalarem a rocha vermelha. Por-

que, para eles, é um lugar profundamente sagrado. A Tjukurpa – lei

tradicional anangu que explica a existência, a criação do mundo e

estabelece as regras da vida quotidiana, o comportamento apro-

priado das pessoas entre elas e de cada uma com a terra – impede

que se suba ao seu topo. Os indígenas não escalam Uluru e limi-

tam-se a solicitar aos visitantes que os respeitem, a si e às suas leis

tradicionais. E proibir não faz parte da sua maneira de estar. Apesar

dos apelos, havia quase sempre um carreiro de turistas a subir ou

a descer Uluru, ignorando os pedidos dos legítimos proprietários do

lugar. Haja respeito!

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filipe morato gomes

COOBER PEDY, AUSTRáLIA

Vivo temporariamente em Coober Pedy, um lugar onde

a maioria da população habita no subsolo e de onde

é extraída a quase totalidade da produção mundial de

opalas. E delicio-me com excelentes tintos Shiraz e Ca-

bernet Sauvignon nas afamadas regiões vitivinícolas a

norte de Adelaide.

41. Vivendo no subsolo, em Coober Pedy

A viagem pelas inóspitas planícies do Centro da Austrália

prosseguiu rumo à povoação mineira de Coober Pedy, setecentos

quilómetros a sul de Alice Springs. Coober Pedy tem fama de pouco

acolhedora. Não há saloons, cowboys nem xerifes, mas o ambiente

lembra a agrura do Oeste americano de outrora. É um local para

homens ditos de barba rija, que para lá se dirigiram em busca de

fortuna. Apesar da reduzida dimensão, nacionais de quase cinquen-

ta países habitam em Coober Pedy. “É um lugar de doidos! Se fica-

res lá mais do que uma noite, só podes ser maluco”, disse-me, à

partida, um habitante de Alice.

Coober Pedy não é, de facto, em lugar hospitaleiro. Num

raio de vários quilómetros em redor da povoação, no centro da lo-

calidade, em todo o lado, há centenas de buracos e montes de terra

separados por poucos metros, denunciando a razão por que tanta

gente de fora ali vai parar. O que a atrai é a extracção de opalas,

uma pedra preciosa apreciada do Oriente às Américas. A Austrália

orgulha-se de extrair cerca de 97% da produção de opalas de todo

o Mundo e Coober Pedy é o expoente máximo dessa abundância.

O que me levou até lá, no entanto, foi um outro facto mui-

to mais curioso. Nunca tinha estado noutro lugar onde grande parte

do dia-a-dia fosse vivido no subsolo. Admite-se, aliás, que o nome

da localidade derive das palavras kupa piti, que, na linguagem indí-

gena local, significam “homem branco num buraco”. Faz sentido.

Em Coober Pedy, a maioria dos habitantes vive debaixo de terra,

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alma de viajante

Vive

ndo

no

subso

lo, em

Coo

ber P

edy

em habitações escavadas no subsolo. E tal facto não tem nada a

ver com minas e mineiros. A razão para tão insólitas construções é

puramente climatérica. Lá fora, as noites de Inverno são gélidas e,

durante o Verão, os termómetros ultrapassam facilmente os 50°C.

Nas casas subterrâneas, ao invés, as temperaturas mantêm-se es-

táveis e agradáveis – oscilando entre os 20 e os 25°C –, seja qual

for a temperatura exterior. As paredes de pedra dão-lhes um ar

rústico e o mobiliário é simples mas agradável. Encontrei museus,

lojas de venda de opalas, salas de projecção de filmes, bares com

bom vinho australiano, mesas de bilhar e pistas de dança, tudo

subterrâneo. Um encanto.

Deliciado com o corpo dos tintos Shiraz australianos bebi-

dos nos bares de Coober Pedy e, anteriormente, em muitos outros

países por onde passei, foi precisamente ao encontro dos produto-

res dessa e de outras populares castas que prossegui viagem em

direcção aos vales vitícolas que circundam Adelaide: Barossa, Clare

e McLaren. De passagem, apenas umas breves paragens na minús-

cula Glendambo e no salgado lago Hart. À chegada a Glendambo,

um caricato letreiro dava as boas-vindas aos visitantes anunciando

a população da localidade: “Ovelhas: 22.500; moscas: 2.000.000,

aproximadamente; humanos: 30”. Excelente sentido de humor,

num local onde muitos dariam tudo por uma máscara de rede para

protecção contra os irritantes insectos. O Centro da Austrália está

pejado de excentricidades como esta.

Quando, por fim, cheguei à povoação de Clare, vivia-se o

último dia do fim-de-semana gastronómico local, um evento de

periodicidade anual. Os habitantes transportavam um copo pen-

durado ao pescoço, como um crachá de um qualquer congresso,

adquirido a troco de aproximadamente quinze euros, que lhes dava

o direito de beber em todas as adegas locais. Shiraz, Cabernet Sau-

vignon (carinhosamente abreviado para cab), um ou outro Merlot,

vários vinhos espumantes, de tudo um pouco era possível provar.

Os habitantes de Clare andavam eufóricos, de faces rosadas, ves-

tidos impecavelmente de fato e gravata. Alugavam limusinas ou

táxis para serem conduzidos de forma segura, de adega em adega,

durante todo o dia.

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filipe morato gomes

Por momentos, o meu olhar deteve-se num anúncio publi-

citário colocado nas traseiras de um desses táxis. Tinha uma garrafa

de vinho tinto e a seguinte inscrição: Share a cab with friends. Era

exactamente o que faziam os habitantes de Clare, no duplo sentido

da expressão.

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alma de viajante

SYDNEY, AUSTRáLIA

Voo da Tasmânia para Sydney, naquela que constitui a

última paragem antes de partir para o Chile. Lá chega-

do, rendo-me aos encantos de Balmain – um dos mais

elegantes bairros da cidade –, à ímpar arquitectura da

Casa da Ópera de Sydney e a uma dobrada tipicamente

portuguesa.

42. Tripas à portuguesa no adeus à Austrália

Vindo de uma curta visita à ilha da Tasmânia, Sydney era a

última paragem antes de rumar ao continente americano. Lá che-

gado, seria normal ter procurado alojamento numa qualquer pou-

sada no centro da cidade, próximo das grandes atracções citadinas

e do postal ilustrado perfeito que constitui o edifício da Casa da

Ópera. Mas tal não sucedeu, felizmente. Uma troca de mensagens

electrónicas com um casal australiano levou-me a fixar residência

temporária em Balmain, bairro periférico onde Mary e Mike mora-

vam. E assim, quase por casualidade, conheci uma zona diferente

da Sydney tradicionalmente visitada.

Balmain fica a apenas dez minutos de autocarro do bulí-

cio da área central de Sydney. Ou a vinte de ferryboat. Tão perto e,

no entanto, um mundo à parte. Actualmente, ninguém diria que

Balmain foi outrora o centro industrial da cidade. Indústrias pesa-

das tendo como objectivo a construção de navios, linhas de ca-

minhos-de-ferro e equipamento mineiro estavam sediadas neste

bairro periférico até meados do século XX. Nessa época, um ele-

vado número de operários das indústrias pesadas necessitava de

alojamento económico. E, assim, Balmain cresceu à base de peque-

nas e modestas habitações, construídas com o propósito de serem

arrendadas aos trabalhadores daquelas indústrias.

Mas, aos poucos, intelectuais, professores e artistas foram

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filipe morato gomes

descobrindo a zona e escolhendo-a como refúgio permanente. Uma

área tranquila e bonita, com charme, a lembrar uma pequena e ele-

gante vila rural, mas suficientemente próxima do centro de Sydney.

O lugar ideal para uma vida relaxada próxima das facilidades de

uma grande metrópole. As pequenas casas foram sendo remodela-

das com extremo bom gosto, o que, aliado à excelente localização

geográfica – uma boa parte das habitações tem vistas fabulosas

sobre Sydney, do outro lado do rio –, fez de Balmain, actualmente,

um dos lugares mais dispendiosos em termos de negócios imobili-

ários. “Comprámos esta casa por tuta-e-meia quando Balmain era

uma zona marginal. Hoje vale muito, muito dinheiro”, afiançou o

simpático casal que me acolheu em sua casa.

Usei Balmain como base para explorar o próprio bairro

mas também a cidade de Sydney. Diz-se que Sydney possui um dos

mais espectaculares portos de todo o Mundo. Não tenho muitos

termos de comparação, mas posso pelo menos garantir que a área

envolvente ao porto é, de facto, aprazível e dedicada primordial-

mente ao bem-estar das pessoas. Parques verdes, extensas zonas

pedonais, vistas sobre o rio, sobre a azáfama do porto e a famosa

ponte faziam as delícias de turistas curiosos e habitantes locais em

busca de uma melhor forma física. E, claro, entre a ponte e o mira-

douro de Mrs. Macquaires, destaca-se a soberba Casa da Ópera de

Sydney, edifício controverso do arquitecto dinamarquês Jorn Utzon

que, ironicamente, nunca viu presencialmente a sua obra mais fa-

mosa terminada, após ter abandonado, desgostoso, o conturbado

processo de construção do edifício.

Estava a planear o último dia em terras australianas quan-

do Mike, excelente companhia e óptimo conversador, disparou:

“Queres ir almoçar ao bairro português?”. “Vamos a isso”, concordei.

Seguimos de automóvel durante cerca de meia hora, até que che-

gámos a uma rua onde os letreiros das casas comerciais eram inin-

teligíveis para Mike. “Restaurante O Pescador.” “Hoje há caldeirada

de peixe.” “Prato do dia: sardinhas pequenas com arroz de tomate.”

Um pequeno pedaço de Sydney onde quase tudo estava escrito

em português. Não consegui controlar um rasgado sorriso. “Pareces

feliz”, disse o parceiro de almoço. “Claro, estou uma rua portuguesa

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alma de viajante

nos antípodas do meu país”, retorqui.

Entrámos num restaurante cujos clientes eram, evidente-

mente, todos portugueses. Uma dobrada bem preparada, um café

bem tirado e um aceitável pastel de nata selaram a passagem por

aquela comunidade lusitana além-fronteiras. Uma excelente forma

de terminar mais uma fase desta odisseia, a lembrar o bem que

sabe um esporádico sabor a casa quando se viaja Mundo fora.

Tripas à p

ortu

guesa n

o ad

eus à A

ustrália

Nota de viagem

Sou, desde há alguns anos, membro activo do Hospitality Club, uma rede

de viajantes dispostos a ajudar outros viajantes, nomeadamente facultando,

dentro das possibilidades de cada um, alojamento nas suas próprias habita-

ções. Uma rede que funciona na base da confiança mútua e que, pela sua

natureza, proporciona um estreito contacto com a vida e os hábitos locais,

enriquecendo sobremaneira as experiências de viagem. Durante esta vol-

ta ao Mundo, beneficiei da hospitalidade desinteressada de membros em

Moscovo, Pequim, Singapura, Darwin, Sydney, Santiago do Chile e La Serena.

Uma forma diferente de conhecer as urbes do planeta.

www.hospitalityclub.org

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filipe morato gomes

SANTIAGO DO CHILE

Chego a Santiago do Chile no Dia Nacional do Patrimó-

nio, onde me delicio com obras do escultor Auguste Ro-

din. Visito depois La Chascona, casa onde Pablo Neruda

viveu boa parte da vida, e sigo ao encontro do povoado

que idolatra Gabriela Mistral, numa rota pela vida e obra

dos laureados chilenos com o Nobel da Literatura.

43. Na rota dos Nobel chilenos da literatura

Oficialmente, tinham-se passado apenas três horas desde

que embarquei, em Sydney, num avião rumo ao Chile. Um dado que

não batia certo com o cansaço que o corpo apresentava ao aterrar.

Atravessei a linha universal do tempo, recuei doze horas numa cáp-

sula voadora, vivi por duas vezes essa metade de um dia. Primeiro

sem emoção a bordo da aeronave, depois numa cidade que have-

ria de se revelar uma excelente surpresa: Santiago do Chile.

Era Dia Nacional do Património. Os museus abriam gratui-

tamente as suas portas aos habitantes da cidade. Muitos edifícios

públicos, normalmente encerrados à curiosidade dos visitantes,

permitiam que o povo, por um dia, admirasse os seus interiores.

E era ver milhares de chilenos, novos e velhos, várias gerações de

uma mesma família juntas pelo prazer da cultura, em intermináveis

filas indianas que desembocavam na porta de um desses edifícios.

O Palacio de la Moneda, edifício presidencial onde Salvador Allende

capitulou, era o mais concorrido. Demasiado concorrido para um

viajante em trânsito permanente. Optei por seguir para o majes-

toso Palácio das Belas-Artes, onde se exibia uma retrospectiva do

escultor francês Auguste Rodin. As esculturas estavam ali, a um

palmo de distância. Apenas um “por favor, não tocar” separava os

visitantes do amor de “O beijo”, da inquietude de “O pensador”, de

muitas outras obras extraordinárias do artista.

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alma de viajante

Na ro

ta do

s No

bel ch

ileno

s da lite

ratura

No Chile, fala-se de arte e um nome vem imediatamente

à baila: Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, aliás, Pablo Neruda. Mas, tal

como em Portugal, alguns dos mais reputados criadores além-fron-

teiras são mal-amados pelos seus conterrâneos. Lembrei-me de

Oliveira, lembrei-me de Saramago, quando Henrika, simpaticíssima

anfitriã chilena, disparou numa conversa de café: “Não gosto de

Neruda. Era arrogante, excêntrico, um homem de ideais comunistas

que vivia faustosamente em La Chascona”.

Segui para lá. La Chascona foi a casa tipo barco onde Ne-

ruda viveu durante dezoito anos com o grande amor da sua vida,

Matilde. Hoje está transformada em casa-museu e os visitantes

podem comprovar a extensão da obsessão do poeta por tudo o

que tivesse a ver com o mar. Tudo em La Chascona fazia lembrar os

oceanos. Numa sala, o chão de madeira tinha sido construído de

forma a ranger como o convés de um navio. As janelas de algu-

mas divisões eram redondas. Havia escadas em caracol, compradas

num leilão de artigos retirados de embarcações obsoletas. E muitos

outros detalhes, como aquele astrolábio ao qual Neruda retirou o

globo terrestre e o substituiu por um peixe. Satisfeito por conhecer

um pouco mais sobre aquele prémio Nobel – outorgado em 1971 –,

era então tempo de seguir ao encontro da vida e obra de um outro

marco da literatura chilena, Lucília Goday Alcayaga, aliás, Gabriela

Mistral.

Mistral nasceu próximo de Vicuña, em Monte Grande, um

povoado situado no coração do vale do Elqui, região também fa-

mosa por razões mais prosaicas: o vinho licoroso Pisco. Ao percorrer

todo o lindíssimo vale, apetecia fazer como Neruda e pedir silêncio.

O olhar alcançava os grandes cumes cobertos de neve, as encostas

áridas salpicadas de cactos erectos e pouco mais, e, lá ao fundo, em

depressões muito cavadas, os vinhedos. Trabalhadores temporários

dedicavam-se a “enrolar os pampos” – para utilizar uma expressão

de um velho meu conhecido, viticultor duriense. É lá, nas profunde-

zas do Elqui, que se cultivam as chamadas vinhas pisqueiras, de uva

tipo moscatel, que dão origem ao Pisco.

A história do Pisco é muito curiosa e está recheada de

particularidades. Séculos atrás, ao ser enviado para o Peru através

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filipe morato gomes

do clima extremo do deserto de Atacama, o vinho adulterava-se.

Um monge peruano decidiu então fazer experiências com o pouco

apetecível líquido, destilando-o. Morava numa terra chamada Pisco,

apreciou o resultado das experiências, e assim nasceu o dito vinho

licoroso. O Pisco foi criado no Peru – não no Chile –, mas foram

os chilenos, astutos, que registaram a denominação. E, para que

não restassem dúvidas, mudaram o nome do pequeno povoado

de La Unión para Pisco Elqui. Fica paredes-meias com a terra onde

Gabriela Mistral viveu, deu aulas e está hoje sepultada. De volta à

literatura, detive-me em Monte Grande por uns instantes.

Encontrei a minúscula escola onde foi aluna, e posterior-

mente leccionou, transformada em museu, com as carteiras de ma-

deira antiquíssimas, as paredes decoradas com fotografias de Mis-

tral, o quarto da professora, manuscritos da autora e um punhado

de outras peças a homenagear a cidadã de que mais se orgulham

os de Monte Grande. Não é para menos. Mistral foi também laure-

ada com o Nobel da Literatura, corria o ano de 1945. A sala de aula

inspirava carinho, pedia respeito. Silêncio!

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alma de viajante

SAN PEDRO DE ATACAMA, CHILE

Entro nas paisagens tristes do deserto de Atacama,

onde tudo é seco e castanho. Visito lagoas deslumbran-

tes nos planaltos dos Andes, cavalgo pelas areias do de-

serto e aqueço-me em campos geotérmicos. Até que o

branco toma conta da paisagem, num prenúncio do que

encontrarei nas planícies de sal bolivianas.

44. Do castanho do deserto ao branco do sal

Deserto. Para um dicionário de língua portuguesa, é uma

“região extremamente seca, com vegetação xerófila, rudimentar e

reduzida”. Para mim, vindo da zona central do Chile, Atacama é

muito mais do que isso. É uma descomunal mudança de paisagem,

uma nova sensação, uma lufada de ar gélido. Acabei de entrar num

dos mais secos pedaços do planeta a que chamam deserto e o as-

sombro não poderia ser maior.

Da janela do autocarro que me transportava para norte, as

paisagens avistadas eram de uma beleza desoladora. Tudo era cas-

tanho, quase imutável, triste mas comovente, a sugerir a superfície

lunar que não conheço. A terra encontrava-se totalmente quebrada

em pedaços devido à escassez de água pluvial. Dizem, aliás, que

nunca chove no deserto de Atacama. Não custa a acreditar. Uma

das excepções, San Pedro de Atacama, é uma pequena povoação

que funciona como porta de acesso às atracções naturais da região.

Um oásis no meio da desolação. Literalmente.

San Pedro fica situada numa zona pintalgada de verde, en-

volvida pelo tal castanho por todos os flancos. As casas são de

adobe, o que confere um charme especial às ruas da localidade. O

ritmo de vida é lento, preguiçoso, ideal para uns dias de pausa no

trajecto sul-americano de viajantes de todo o Mundo. É um daque-

les pequenos locais onde, apesar das diferenças, um viajante se

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filipe morato gomes

sente confortável, como que de férias durante a própria viagem. Há

alguns lugares assim espalhados pelo planeta. Yangshuo, na provín-

cia chinesa de Guangxí, e Pai, no Norte da Tailândia, são exemplos

similares por onde passei meses atrás.

Apesar da pacatez, existe um paradoxo extraordinário em

San Pedro de Atacama. Por um lado, o sustento da povoação ad-

vém maioritariamente do turismo. Pousadas, restaurantes, lugares

de acesso à Internet e agências de viagem pululam nas suas rue-

las, disputando a atenção dos viajantes. Por outro lado, dizem-me

que os atacameños – os naturais da região –, orgulhosos da sua ori-

gem, não convivem harmoniosamente com os forasteiros que para

lá se mudam. “Vivo cá há sete anos e ainda hoje sou vista como

uma estranha. Em algumas lojas, ainda olham de lado para pesso-

as como eu”, contou uma trabalhadora chilena do Hostal La Ruca.

Xavier, condutor e guia turístico, confirmou a discriminação. “Sou

engenheiro, de Santiago, e, quando perdi o emprego, vim para cá.

Sou um estrangeiro em Atacama”, asseverou.

É provável que essa contradição tenha origens históricas.

Numa prelecção durante uma visita à região, Xavier explicava: “Os

atacameños tentaram resistir ao avanço dos incas quando estes, no

seu processo de expansão territorial, chegaram a Atacama. Colabo-

raram inclusive com os espanhóis, julgando ser o ‘segundo invasor’

mais propício à preservação da sua cultura”. Ter-se-ão enganado

sobre as intenções espanholas. “As marcas do processo de acul-

turação de que os autóctones foram alvo faz com que, ainda hoje,

apresentem fortes resistências perante os forasteiros”, concluiu.

Algo que não se manifesta, no entanto, na cordial relação que man-

têm com os turistas.

Durante um par de dias, prossegui a visita às regiões en-

volventes. O que me foi dado a observar era espantoso. Dias mer-

gulhado nos caprichos com que a Natureza brindou Atacama. Os

géisers de Taito, por exemplo, campo geotérmico situado a 4200

metros de altitude, impressionavam pelo exotismo visual. Fumaro-

las lutavam para aquecer o ar glacial e rarefeito de uma madrugada

nas alturas. Ao lusco-fusco, os céus iluminavam os contornos mon-

tanhosos com uma coloração branca fluorescente que não vi em

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alma de viajante

Do

castanho

do

dese

rto ao

bran

co d

o sal

nenhum outro lugar.

Uma cavalgada pelas paisagens desérticas revelou-se uma

excelente forma de me embrenhar na desolação castanha do de-

serto. Uma viagem até às lagoas Miñiques e Miscanti, localizadas

nos planaltos andinos, foram um deleite para os sentidos, apesar

das dificuldades respiratórias que a altitude provocava. Numa ou-

tra lagoa, situada na denominada Reserva Nacional dos Flamingos,

pude apreciar a elegância sincronizada do voo dessas criaturas

rosadas. E a igreja de adobe da minúscula povoação de Machuca,

branca, simples, bonita, no sopé de uma colina, foi uma insólita

visão. A Quebrada de Jerez, por seu turno, uma radical alteração na

paisagem, onde encostas pedregosas escondiam uma depressão

fértil, com água a correr com relativa abundância num mediano

riacho. Por fim, uma incursão até ao Salar de Atacama – a tercei-

ra maior superfície de sal do planeta – revelou nova e fascinante

monocromia. Deixei o castanho tristonho do deserto para penetrar

no branco luminoso do sal. O mesmo branco que me espera no

Sudoeste da Bolívia.

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filipe morato gomes

UYUNI, BOLÍVIA

Atravesso a fronteira boliviana sem a certeza de poder

prosseguir viagem após Uyuni, devido a bloqueios de

estrada. Passo pelo maior planalto de sal do planeta e

pernoito num hotel construído exclusivamente com sal.

À chegada a Uyuni, perante os meus olhos, a linha de

caminho-de-ferro é dinamitada e as dúvidas sobre se

seria sensato continuar adensam-se.

45. A caminho de uma Bolívia a ferro e fogo

Ainda no Chile, a Internet era o meio privilegiado para

acompanhar de perto a tensa situação na Bolívia. O periódico La Ra-

zón titulava: “La Paz está sem água, combustível e há racionamento

de alimentos”. “Manifestantes asseguram que os bloqueios de es-

tradas são para continuar.” “Camionista assassinado em Sucre – a

primeira vítima do conflito.” Os operadores turísticos confirmavam

a conjuntura. Algumas embaixadas estrangeiras aconselhavam os

seus concidadãos a abandonar o país. Não sabia bem o que fazer.

A Bolívia era um destino no topo da lista de prioridades desde que

iniciei esta viagem. Tentei convencer-me. O Sudoeste do país é de-

masiado remoto para ter verdadeiras estradas – logo, não poderia

haver bloqueios, pensei. O pior que poderia acontecer era não ser

possível prosseguir viagem, depois de Uyuni, e ter que regressar ao

Chile. Decidi arriscar.

Na fronteira, à entrada da Bolívia, um casal norte-america-

no que saía do país confirmava os piores receios. “Não é perigoso,

mas as estradas estão todas bloqueadas e há viajantes retidos em

várias cidades”, afiançaram, para depois concluir: “De Uyuni para a

frente, não é possível prosseguir, mas talvez possas furar os blo-

queios, desembolsando duzentos ou trezentos dólares”. Quando

imergi nas fabulosas paisagens dos planaltos bolivianos, estava já

resignado. O resto da Bolívia teria que esperar. Iria apenas até Uyu-

ni.

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alma de viajante

A cam

inho

de u

ma B

olívia a fe

rro e

fogo

Entrei num jipe juntamente com outros cinco viajantes. Se-

guíamos num sentido sul-norte, sempre próximo da linha divisória

com o Chile, e as paragens eram frequentes para permitir a explo-

ração de algumas das mais emblemáticas atracções da região. A la-

goa Branca, imediatamente após a fronteira. A lagoa Verde. A lagoa

Colorida, que apresentava uma paleta multicolor onde predomina-

vam tons avermelhados, fruto da existência de algas microscópicas

que serviam de alimento a um grupo de flamingos. Mais adiante,

um batalhão dessas graciosas e rosadas criaturas alimentava-se na

denominada lagoa Hedionda. Encontrava-se quase gelada, mas era

uma das mais bonitas lagoas que já havia visto, apesar do nome

desencorajador.

Penetrámos pelo território boliviano a caminho da maior

superfície de sal de todo o planeta. Na verdade, o Salar de Uyuni

é o principal motivo que traz tantos viajantes a estas paragens e

facilmente se compreende porquê. Um terreno incrivelmente plano

e branco, a perder de vista, com algumas elevações montanhosas

em redor, proporcionava uma imagem única e espectacular. Tudo

era imaculadamente branco. Adiante, a ilha de Incahuasi, rodeada

de sal e povoada de cactos enormes, oferecia uma interessante

alteração visual. Noutro local, um trabalhador amontoava sal com

uma pá, em elevações piramidais, para secagem e posterior puri-

ficação. “Na Bolívia, não há dinheiro para máquinas”, assegurava o

guia, face à óbvia ausência de maquinaria pesada nas imediações.

Percorrer de jipe parte dos doze mil quilómetros quadra-

dos desse monstro salgado espantou todos aqueles com quem

partilhava a viatura, mas, à noite, nova surpresa. Por muito que se

saiba sobre um hotel construído exclusivamente com blocos de sal,

nada como vivenciar a experiência. Ao segundo dia, pernoitámos

numa dessas excentricidades bolivianas: o Hotel Marith, localizado

na povoação de Atulcha.

Durante o percurso, avistámos ainda um vulcão activo, de

seu nome Olhague; parámos por breves instantes no lugarejo de

San Juan del Rosário, onde uma velhota separava quinua – o cereal

mais utilizado na culinária dos altiplanos; e assistimos à fúria explo-

siva dos géisers Sol de la Mañana, a 5000 metros de altitude, onde

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filipe morato gomes

um intenso cheiro sulfuroso, lamas borbulhantes e um barulho as-

sustador impunham respeito.

À chegada a Uyuni, depois de três dias sem acesso a in-

formações noticiosas, indaguei sobre a situação dos bloqueios nas

estradas bolivianas. “Ontem, o congresso reuniu em Sucre e os ma-

nifestantes decidiram dar uma trégua de três semanas ao novo

Presidente”, afirmou a gerente de uma pousada. Rejubilei. Podia

prosseguir para o interior do país. A estação de caminho-de-ferro

ficava do outro lado da rua. Saí da pousada com uma pernoita re-

servada e a decisão de seguir para Potosí no dia seguinte. Na rua,

pessoas corriam desvairadas e homens de farda verde ordenavam

aos transeuntes que saíssem dali. Agitavam os braços virados para

mim e outros viajantes, exaltados, para que corrêssemos numa

direcção específica. Segundos depois, um estrondo brutal. Assim

começava uma manifestação. Os de verde eram mineiros e tinham

acabado de dinamitar a linha de caminho-de-ferro. Afinal, os pro-

blemas não tinham ainda terminado.

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alma de viajante

POTOSÍ, BOLÍVIA

Depois das paisagens deslumbrantes do Sudoeste bo-

liviano, entro num universo de pó, temperaturas extre-

mas e falta de segurança. Arrepio-me com as atrozes

condições do trabalho e emociono-me com a dignidade

daqueles homens rudes e pobres. Sejam bem-vindos ao

inferno das minas do Cerro Rico.

46. Descida ao inferno das minas do Cerro Rico

Para além de classificada pela UNESCO como Património

Mundial, para além da curiosidade de ser a mais alta cidade do

planeta, só há uma razão que leva os forasteiros a visitar Potosí: as

minas do Cerro Rico. Estava ao corrente das condições desumanas

do trabalho nessas minas de prata, que já foram as mais importan-

tes da América Latina. Da esperança de vida ridiculamente baixa

de quem passa os dias respirando o ar irrespirável das galerias. Do

insignificante lucro que a maioria dos mineiros retira desse árduo e

musculado ofício, diariamente, na esperança de que um dia a sorte

os bafeje e encontrem um grande filão. Apesar disso, estava longe

de estar preparado para o que iria encontrar debaixo de terra. Uma

brutal e chocante experiência.

Acompanhado de uma vintena de turistas e conduzido por

Efrain, antigo mineiro que desde há quatro anos trabalhava como

guia, dirigi-me para Cerro Rico. Desde a chegada dos espanhóis

até aos dias de hoje, uma impressionante cifra de oito milhões de

pessoas terá perdido a vida naquelas minas. Em Cerro Rico, quem

trabalha no subsolo sabe que, muito provavelmente, morrerá nas

minas ou por causa delas.

Entrámos. Uma sinistra quantidade de pó circulava no in-

terior das galerias, tornando o ar praticamente irrespirável. Estava

quente, muito quente. “As temperaturas podem atingir os quarenta

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filipe morato gomes

graus centígrados”, informou o guia. Um corrupio de homens ras-

tejava, corria, empurrava, içava, martelava. Uns empurravam va-

gões contendo duas toneladas de pedras e minério – prata, zinco

e estanho –, através de carris, num esforço notoriamente diabólico.

Outros içavam, das profundezas das galerias até à superfície, cestos

contendo duzentos quilos de pedregulhos. Outros ainda passavam

o dia de pá na mão atestando os ditos cestos, ininterruptamente.

Outros puxavam grossos troncos de pinho para servirem de sus-

tentáculos das galerias, rastejando com os cepos pelas estreitas

passagens dos túneis. E havia aqueles que, de martelo e cinzel na

mão, faziam buracos de trinta centímetros na rocha para lá colo-

carem paus de dinamite – a forma de as galerias irem avançando

monte dentro. “Quanto tempo demorarás a terminar o buraco?”,

perguntou Efrain a um deles. “Apenas quatro horas, porque a rocha

aqui não é muito dura”, respondeu o homem, satisfeito. “Às vezes,

demoro um dia inteiro”, concluiu.

Apesar das tarefas distintas, o trabalho de todos tinha algo

em comum. Era exclusivamente braçal, esgotante, quase desuma-

no. Não havia qualquer tipo de maquinaria. Não havia qualquer tipo

de segurança, para além de capacetes. Não havia qualquer tipo de

oxigénio artificial, máscaras de protecção, nada que facilitasse a

respiração. Estávamos a milhares de metros de altitude e o simples

acto de caminhar era penoso. O ar era rarefeito, a respiração era

naturalmente difícil, e ali estavam aqueles homens a exercer ta-

refas fisicamente demolidoras. Aos olhos ocidentais, as condições

laborais eram demasiado duras, atrozes, inaceitáveis. Mas tinham

um ar nobre, aqueles homens. Não inspiravam pena, mas respeito.

Os olhos começavam a turvar-se.

Prosseguimos. Efrain, o antigo mineiro falava de proveitos.

“Não há salários fixos em Cerro Rico; o rendimento depende apenas

da quantidade e qualidade da produção diária.” E consta que apenas

uma minoria de felizardos enriqueceu nas últimas décadas. “Des-

cobre-se um bom filão de prata cada dez, quinze anos”, garantiu.

O sucesso, em Cerro Rico, é uma lotaria. Literalmente. Com tantas

adversidades, só poderia haver uma razão para aqueles homens se

sujeitarem à vida nas minas. Segundo uma estatística patente num

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alma de viajante

Descid

a ao in

fern

o d

as min

as do

Cerro

Rico

pequeno museu no interior da mina, 89% dos mineiros admitiam

que só o eram porque “não há alternativas” em Potosí.

Apesar de tudo, Efrain afirmava haver aspectos positivos

no trabalho em Cerro Rico: “Ao menos, ali [dentro das minas] sa-

bem com o que podem contar. Não há corrupção, não há problemas

políticos. Há solidariedade”. Estávamos numa estreita galeria quan-

do a actividade dos mineiros cessou repentinamente. Era intervalo

para almoço. Durante uma jornada de trabalho – que pode ser de

apenas seis horas, mas também de dez ou doze –, não se ingerem

alimentos. Mascam-se apenas folhas de coca. “Almoçar” significa-

va, pois, mudar a coca que traziam na boca por novas folhas. E

descansar meia hora. Nada mais.

A visita estava a chegar ao fim. Rastejámos. Percorremos

inúmeros túneis em quatro diferentes níveis da mina. Subimos por

escadas em buracos com mais de cinquenta metros, sem resguar-

dos nem qualquer tipo de segurança. Estava completamente esgo-

tado quando voltei a ver a luz do dia.

Uma vez cá fora, quedei-me mudo, como que anestesiado,

com lagoas de água a turvarem-me o olhar. Não pelo cansaço físico

– que era imenso. Não pelo pó que me secava o nariz e a boca. Não

por qualquer efeito das folhas de coca que também masquei no

interior. Mas estava mudo, como que anestesiado. De raiva. Porque

tudo, em Cerro Rico, era demasiado violento. E porque aqueles ho-

mens másculos, rudes e pobres, possuíam a dignidade dos grandes

homens. Mereciam melhor sorte. Enquanto isso, os restantes turis-

tas divertiam-se a fazer explodir um pau de dinamite.

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filipe morato gomes

LAGO TITICACA, BOLÍVIA / PERU

Navegando pelas águas do lago Titicaca, localizado na

divisória da Bolívia com o Peru, calcorreio o lugar onde,

segundo os incas, o Pai Sol nasceu. Visito as ilhas de

Taquille e Amantaní e conheço um povo que, para esca-

par ao avanço da civilização inca, decidiu viver em ilhas

flutuantes.

47. Viagem às ilhas do lago Titicaca

Os incas acreditavam que o nascimento do Pai Sol tivera

lugar numa ilha a que chamaram, sem surpresa, ilha do Sol. Fica

situada na parte boliviana do lago Titicaca, ao largo da pequena

povoação de Copacabana. Foi para lá que me dirigi, directamente

de Potosí, antes que o anunciado regresso dos bloqueios voltasse a

prejudicar a mobilidade nas estradas da Bolívia.

Encontrei uma Copacabana simples mas agradável. A Ca-

tedral da Nossa Senhora da Candelária, hoje padroeira da Bolívia,

captava as atenções enquanto repousava na praça central. Nos ar-

rabaldes, impondo-se sobre toda a paisagem, avistava-se o Cerro

Calvário. É um monte situado a norte do centro urbano e que se

eleva até uns veneráveis 4000 metros de altitude. Um local de pe-

regrinação para os bolivianos.

Curioso, decidi indagar sobre os motivos – para além dos

relacionados com a fé – que levam tanta gente a sujeitar-se ao

sofrimento daquela subida. E que sofrimento! A cada meia dúzia

de passos, uma pausa para descansar. A cada inalação de ar parco

em oxigénio, menos vontade de continuar. Mas, uma vez lá no alto,

percebi que o esforço vale a pena. Passado o último dos degraus,

chega-se a uma espécie de miradouro, com vistas deslumbrantes

sobre o lago e a baía em que a povoação se encontra instalada.

Sentados numa grande pedra no limiar do precipício, com Copa-

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alma de viajante

Viag

em

às ilhas d

o lag

o Titicaca

cabana e o lago fazendo as vezes de velas e música, um par de

amantes namorava. O amor depois do calvário.

No dia seguinte, fui ao encontro da ilha do Sol. Uma curta

viagem de barco foi o suficiente para pisar terra firme e iniciar uma

caminhada por toda a extensão da ilha, a maior do Titicaca. Foram

quatro penosas horas subindo e descendo, calcorreando cenários

agrestes mas belos, numa paz absoluta, com vistas de cortar a res-

piração.

Prossegui para Taquille, já em território peruano, onde che-

guei numa segunda-feira. Não podia ter sido mais afortunado. Era,

aparentemente, o dia em que toda a comunidade se reunia para

discutir problemas e tomar decisões. Por esse motivo, os habitan-

tes trajavam a preceito. Todos envergavam roupas tradicionais, bo-

nitas. Os homens, de branco e preto; as mulheres, mais coloridas.

Ambos teciam gorros e outras peças de lã, incessantemente, en-

quanto conversavam, descansavam ou caminhavam pelas ruas do

povoado. Consta que são uns mestres da tecelagem, os de Taquille.

E possuem também outras particularidades interessantes, como o

facto de o estado civil de cada um poder ser identificado por por-

menores da sua indumentária. Ou a obrigatoriedade de, antes do

casamento, duas pessoas viverem juntas por um período de dois

anos para avaliação mútua, embora com a proibição de terem fi-

lhos. Sábia precaução. É que, em Taquille, a partir do momento que

um casal efective o casamento, o mesmo torna-se irreversível. O

divórcio é um conceito que não existe na comunidade.

Seguiu-se a ilha de Amantaní. Fui recebido por Glória, filha

do senhor Lúcio, que me hospedou em sua casa. Era um espaço

simples e simpático, à semelhança de toda a família. Habitam em

Occosuyo, uma comunidade de Amantaní que recentemente des-

cobriu que o turismo pode ser muito proveitoso para todos. Organi-

zam-se para que o benefício se distribua de forma equitativa. Assim,

revezam-se para receber os forasteiros que lá desembarcam dia-

riamente. “Chegam todos os dias lanchas com turistas”, explicava

o senhor Lúcio, “mas eu nem sempre os posso receber em minha

casa, porque os outros [habitantes] também querem”.

Para terminar o périplo pelo Titicaca, visitei ainda as ex-

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filipe morato gomes

cêntricas ilhas flutuantes da minoria uros, hoje em dia uma das

principais atracções turísticas do Peru e onde não me delonguei

mais do que um par de horas. Reza a história que os uros constru-

íram aquelas ilhas para escapar aos primórdios da civilização inca.

São ilhas erigidas a partir de juncos amarrados e sobrepostos em

camadas que podem totalizar três metros de espessura. Dizem-me

que uma ilha, mesmo com “boa manutenção”, não durará mais

do que oito anos. Findo esse prazo, é abandonada e uma outra é

construída em seu lugar.

Para além da pesca e da caça de aves, o rendimento dos

uros provém do turismo, das entradas que cobram aos turistas e

do artesanato que depois lhes vendem. Estava quase a abandonar

uma das ilhas flutuantes quando, vasculhando com o olhar o arte-

sanato, os artigos de lã e as bugigangas à venda, reparei numas

peças decorativas de madeira esculpida que não eram, de todo, de-

sagradáveis. Suprema ironia, eram calendários da civilização inca.

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alma de viajante

CUZCO, PERU

Chego a Cuzco na época mais agitada do calendário lo-

cal. Celebra-se o Inti Raymi, uma alegre homenagem ao

criador de todas as coisas para a civilização inca: o Sol. E

visito as impressionantes ruínas de Machu Picchu, local

sagrado e um dos últimos refúgios incas. Uma semana

memorável.

48. Inti Raymi, tributo inca ao astro-rei

Uma semana de desfiles contínuos até ao dia da grandio-

sa encenação. Uma cidade inteira nas ruas, em festa permanente.

Um povo orgulhoso da sua identidade. E, no final, uma teatraliza-

ção com centenas de figurantes envergando vestes esplendorosas,

copiadas do período inca. Eis os condimentos para o Inti Raymi, a

maior celebração popular da cidade peruana de Cuzco.

Cheguei a Cuzco nos primeiros dias das festividades. Res-

pirava-se alegria nas ruas da cidade, como em dia de cortejo numa

Queima das Fitas portuguesa. O ponto fulcral dos desfiles ficava

situado na Hauqaypata, a belíssima praça central de Cuzco, agora

conhecida por Praça das Armas. Era o local onde as diversas dele-

gações apresentavam as suas coreografias, perante uma plateia de

ilustres personalidades, que todos cumprimentavam com reverên-

cia. Dançavam ao som de músicas populares. Cantavam e tocavam.

Ou apresentavam curtas cenas teatrais, com recurso a carros alegó-

ricos ou simplesmente caminhando. Uns, visivelmente ensaiados;

outros, em animados improvisos. Tudo era muito colorido e com

enorme bom gosto.

Viam-se delegações de todos os tamanhos e estratos so-

ciais. Enormes grupos provenientes dos diferentes cursos universi-

tários, jovens de colégios e agremiações infantis. Representantes

da Unicef e escolas de dança. Pequenas delegações ministeriais e

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filipe morato gomes

trabalhadores de empresas de transportes, telecomunicações e de-

mais ramos de actividade. Todos os sectores da comunidade desfi-

lavam pelas ruas empedradas da cidade. Era impressionante ver a

mobilização colectiva da população cusqueña.

Entre a multidão, viam-se também muitos turistas estran-

geiros, mas não creio que estivessem ali pelo Inti Raymi. Cuzco é

um dos lugares mais visitados de toda a América do Sul e esse

facto tem uma justificação muito simples. É a partir de lá que se

organizam as incursões à majestosa “cidade perdida” da civilização

inca, Machu Picchu.

Para chegar ao solo sagrado de Machu Picchu, há quem

efectue caminhadas incrivelmente duras pelas trilhas deixadas

pelo Império Inca. “Pensei que ia morrer”, comentou um viajante,

com algum exagero, a propósito da caminhada. São três dias de

grande esforço, quase sempre a subir. Mas há também quem se

deixe levar por um comboio até Aguas Calientes e daí ascenda a

Machu Picchu de autocarro.

Indaguei as hipóteses. Não havia lugar para a famosa “tri-

lha inca” e, em todo o caso, não queria perder o clímax do Inti

Raymi, marcado para daí a três dias. “Se quiser voltar a tempo, só

temos bilhetes em primeira classe”, informaram-me na apinhada

estação de caminho-de-ferro. Resignado, paguei o preço de um

bilhete de luxo. Iria a Machu Picchu da forma menos emocionante,

mas voltaria a tempo de assistir ao auge das celebrações.

As imagens das ruínas de uma cidade inca rodeada por

pináculos esguios, num misto de verde e cinza, vegetação e pedra,

são por demais conhecidas de todos. Por tudo ser tão familiar, es-

tava preparado para a desilusão. Enganei-me. A entrada era feita

por um local onde, após uns quantos degraus, se avistava Machu

Picchu de um ponto de vista superior. Dei por mim completamente

rendido, imóvel, perante a magnificência do que os meus olhos ob-

servavam. Machu Picchu é um lugar arrebatador, mágico, impres-

sionante. Com um senão, apenas: a média diária de visitantes é as-

sustadora. Consta, aliás, que o monte onde Machu Picchu foi erigida

corre o risco de um colapso. E não creio que a maciça presença de

turistas ajude a evitar o que parece ser inevitável. Talvez em breve

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alma de viajante

Inti R

aymi, trib

uto

inca ao

astro-re

i

deixe de ser possível visitar tão inolvidável local.

Regressei a Cuzco – a cidade que os incas construíram com

a forma de um puma – a tempo da celebração final do Inti Raymi.

Fotografava o desfile na Praça das Armas ao lado de Tadeu, um fo-

tógrafo profissional de origem brasileira, quando ele me informou:

“Já cá estive noutra ocasião. Temos que ir para Saqsaywaman o

quanto antes. Dentro em breve, será quase impossível lá chegar”.

Assim fizemos. Saqsaywaman são ruínas do período inca represen-

tando a cabeça do tal puma. Era o local onde iria ter lugar o apogeu

de toda a semana, daí a um par de horas. Um táxi a preços inflacio-

nados levou-nos até lá.

Um recinto rectangular aguardava as centenas de interve-

nientes na cerimónia final. Preparava-se o sacrifício de uma alpa-

ca em honra ao astro-rei. Havia bancadas em redor, cujos lugares

eram vendidos a preços exorbitantes a europeus e a americanos.

Os peruanos, esses, há muito que se tinham deslocado para a co-

lina exactamente em frente ao recinto. Não se via o solo da coli-

na, apenas corpos, cabeças, um batalhão de gente anónima que

procurava um lugar para assistir à cerimónia sem custos. Em redor,

enquanto aguardavam, famílias inteiras construíam no solo fornos

de terra – como se de toupeiras se tratasse – para assar batatas. Era

o que comiam, enquanto outros jogavam futebol, vendiam artesa-

nato, conversavam. Parecia um misto de feira e de festival de Verão.

Algo muito social, popular, despretensioso. Não fora os preços da

entrada e seria uma autêntica festa do povo, para o povo.

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filipe morato gomes

BUENOS AIRES, ARGENTINA

Embrenho-me no ambiente poético do bairro San Telmo,

no coração da capital Argentina, onde vejo e ouço os

arrojados caminhos trilhados pelo novo tango. Em Bue-

nos Aires, depois de Gotan Project, o electrotango veio

para ficar.

49. Reinventando os sons de Carlos Gardel

O som está por todo o lado. Na rua, nas rádios, nas lojas,

nos cafés. Estando em Buenos Aires, não há como escapar à po-

esia de um bandonéon. Na verdade, o tango sempre fez parte do

quotidiano dos porteños – habitantes da capital argentina. Mas algo

mudou, recentemente. Dizem-me que muitos jovens têm reencon-

trado os prazeres do tango. Cada vez mais. Dançar não é coisa de

gente velha, saudosista de outros tempos. Mais do que num passa-

do recente, o tango é agora de todos.

Se fosse possível eleger um único responsável por essa

aproximação dos jovens às suas raízes culturais, um nome surgiria

quase unânime: Gotan Project1. O trabalho discográfico que con-

quistou a Argentina e o Mundo, com um improvável casamento

entre o tango e a música electrónica, mudou a face do tango ar-

gentino.

Desde então, inúmeras bandas surgiram na cena musical

porteña. Nomes como Bajafondo, Ultratango e Otros Aires estão nos

escaparates das lojas, ouvem-se nas ruas e nas milongas – os salões

onde os argentinos se encontram para conviver, beber e dançar

tango. Seguem os passos pioneiros do Gotan Project, combinan-

do sons teoricamente inconciliáveis. Produzem música dançável e

aprazível, à qual adicionam uma componente multimédia durante

1.Grupo musical parisiense constituído pelos músicos Eduardo Makaroff (argentino), Philippe Co-

hen Solal (francês) e Christoph H. Müller (suíço), cujo nome advém da inversão das sílabas da

palavra tango. Em 2001, obtiveram reconhecimento internacional com o álbum La Revancha del

Tango, que vendeu mais de um milhão de cópias em todo o mundo.

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alma de viajante

Rein

ventan

do

os so

ns d

e C

arlos G

ardel

as apresentações ao vivo. Uma mistura de sons tradicionais, batidas

electrónicas, vídeo e imagem, luz e cor.

Foi o que presenciei numa milonga onde a música ao vivo

estava a cargo dos Otros Aires, nome brilhante para um dos gru-

pos desta nova tendência musical. Os casais de dançarinos que

frequentavam o baile eram maioritariamente jovens. Não vestiam

de preto. A sensualidade estava lá, apesar de os passos de dança

fugirem um pouco ao convencional. Havia, inclusive, turistas entre

os dançarinos. Evolução ou ultraje?

Como seria de esperar, muitos não se revêem nesta nova

tendência. “Os mais velhos não compram. Alguns acham o tango

electrónico uma ofensa aos sons tradicionais”, disse-me um vende-

dor de uma loja de discos. Mantêm-se fiéis a marcos como Carlos

Gardel e não suportam a forma como aqueles grupos jovens brin-

cam – musicalmente falando – com as melodias do grande mestre

do tango. Não me surpreende. Imagino o que diriam os mais purita-

nos portugueses se algum criativo brilhante editasse um imaginário

Dofa Project, de grande qualidade musical, misturando sons electró-

nicos e drum’n’bass à melancolia lusitana do fado.

Mas nem só electrotango se ouve em Buenos Aires. Os sons

eternos de Gardel e demais compositores clássicos são também

presença assídua nos cafés e ruas dos bairros da cidade. Especial-

mente num deles. Popular e boémio, o San Telmo é um tradicional

bairro de classe operária. Todos os domingos, na Praça Dorrego – o

coração de San Telmo – e nas ruelas em redor, casais de dançarinos,

jovens e menos novos, apresentam-se perante os transeuntes que

afluem à feira de antiguidades que tem lugar na praça. Fazem-no

para que o chapéu se encha de pesos ou dólares. E bem os mere-

cem. Não são pedintes, são artistas. Pessoas como o “Índio”, bri-

lhante entertainer e exímio dançarino de aspecto a lembrar Joaquín

Cortés, encantam plateias de gente anónima sentada no chão da

Dorrego. Apresentam os tangos de Gardel e tantos outros. E, as-

sim, todos os domingos, o tango mais puro desce às ruas de San

Telmo.

Dançar tango é levado muito a sério em Buenos Aires.

Consta, por exemplo, que nenhum porteño gosta de dançar com

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filipe morato gomes

alguém cujo nível seja inferior ao seu. Ser visto com um par desajei-

tado numa milonga é algo desprestigiante. Por isso, e talvez impul-

sionada pelo aumento da população dançante, uma nova profissão

vem surgindo. São os taxi-dancers, exímios dançarinos que cobram

à hora para servirem de par nos bailes da capital.

Além das incursões pelo mundo do tango, durante a esta-

dia em Buenos Aires houve ainda tempo para visitar algumas zonas

curiosas da cidade. Como o camiñito, no bairro La Boca, com as suas

cores garridas e variadas como uma manta de retalhos. Ou o famo-

so Café Tortoni, como que uma versão porteña do portuense Majes-

tic. E uma outra atracção menos usual. Dizem os guias de viagem

que uma das atracções turísticas mais populares de toda Buenos

Aires se chama Recoleta. Um lugar faustoso, elegante, reservado

aos mais endinheirados, famosos e influentes da sociedade porteña.

Dizem-me que é nesse espaço que a elite repousa e que lá afluem

argentinos e turistas de todo o Mundo. Nada de mais, não fora o

caso de o lugar em causa ser um cemitério.

Curioso por tão sinistra atracção, não resisti. E o que vi,

apesar do esplendor arquitectónico dos jazigos – alguns são obras

de arte verdadeiramente impressionantes! –, não deixa de ser um

pouco estranho. É um cemitério. Ponto. De gente rica – é certo –,

mas apenas um cemitério. À parte o genuíno interesse em pres-

tar uma última homenagem a personalidades como “Evita”, não

consegui entender porque o Cemitério da Recoleta é uma atracção

turística. Fico-me pelo tango.

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alma de viajante

MONTEVIDEU, URUGUAI

Atravesso o rio da Prata e desembarco em Colónia do

Sacramento – povoação histórica fundada por portugue-

ses –, antes de seguir para Montevideu e conhecer a agi-

tação diurna do Mercado do Porto, o ponto de encontro

nas tardes de sábado da capital.

50. Saudades em Colónia, churrasco em Montevideu

Mal cheguei ao Uruguai, a bordo de um ferryboat que atra-

vessou o rio da Prata e atracou em Colónia do Sacramento – uma

cidade fundada por D. Manuel Lobo no ano de 1680 –, avisaram-me

de que era “obrigatório” passar a tarde de sábado no Mercado do

Porto, em Montevideu. Tinha, assim, dois dias para explorar a pe-

quena mas bela Colónia.

A influência portuguesa é notória na arquitectura do cen-

tro histórico, classificado Património da Humanidade pela UNESCO.

Um centro com dezenas de edifícios coloniais bem preservados e

repleto de museus. O Museu Municipal, o Museu Paleontológico, o

Museu Indígena, o Museu Espanhol, o Museu do Azulejo e, claro, o

Museu Português. Neste último, localizado em plena Praça Maior,

coração do centro histórico, é possível apreciar fragmentos de azu-

lejos lusos do século XVII retirados das escavações do Bastión del

Carmen, antiga fortificação da época colonial. E roupas e moedas

de outros tempos. E ainda peças de cerâmica popular contemporâ-

nea oriundas do Alentejo, do Minho e de Trás-os-Montes, a provo-

car uma suave nostalgia em quem já não pisa solo luso há tantos

meses.

Sábado de manhã apanhei um autocarro rumo a Montevi-

deu, a tempo de seguir o conselho recebido e espreitar a agitação

no Mercado do Porto. Todos os viajantes gostam de mercados. Tra-

zem-nos, quase sempre, surpresas agradáveis. Vêem-se as frutas e

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filipe morato gomes

legumes de cada lugar, as minorias étnicas vendendo os seus pro-

dutos artesanais, as comidas de aspecto desconhecido e sabor es-

quisito ou os artigos contrafeitos “originais” e “com garantia”. Uma

diversidade de mercadorias, gentes e sabores que ajuda a assimilar

uma cidade, uma região, um país.

Lembro-me, por exemplo, das mulheres dao e h’mong ven-

dendo as suas mantas no mercado semanal de Sapa, no Norte do

Vietname. Dos cheiros das bancas de comida em Indein, nas mar-

gens do lago Inle, em Myanmar. Dos homens jogando bilhar no

mercado de Kharkhorin, na Mongólia profunda. Das cores dos teci-

dos no mercado de tais em Díli, Timor-Leste. Do tráfego caótico do

mercado flutuante de Cai Rang, no delta do rio Mekong. Ou, mais

recentemente, da pólvora seca e dos paus de dinamite vendidos a

qualquer pessoa no mercado dos mineiros em Potosí, na Bolívia.

O Mercado do Porto, em Montevideu, é um edifício qua-

drangular, antigo e de arquitectura curiosa. Lá dentro, não se ven-

dem roupas, óculos Ray Ban, frutas ou discos compactos pirata.

Encontrei, isso sim, muita carne e cerveja. É um mercado de res-

taurantes. O equivalente às nossas churrascarias, mas num am-

biente completamente informal. Centenas de jovens emborcavam

cervejas de três quartos de litro, comiam churrasco, namoravam

ou procuravam encetar conversa com as belas morenas da capital.

Era como se de uma festa nocturna se tratasse, em pleno dia. A

pista de dança tinha sido substituída pelo centro do mercado, sem

mesas e cadeiras. Os balcões dos bares eram os dos restauran-

tes. E, por volta das cinco da tarde, quando tudo estava prestes a

fechar, havia os mesmos homens alegres, de fala desarticulada e

caminhar desajeitado. Um ajuntamento espontâneo, muito social e

despretensioso.

A vida nocturna é ainda mais intensa, mas tudo começa

bastante tarde. À meia-noite, por exemplo, as ruas permanecem

adormecidas e os bares quase sem gente. Um pouco mais tarde,

transfiguram-se e ficam repletas de gente jovem, bonita e bem

vestida.

O cenário poderia ser igual ao de uma qualquer capital eu-

ropeia, mas havia algo que lhe dava um cunho muito peculiar. Já

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alma de viajante

Saudad

es e

m Co

lónia, ch

urrasco

em

Mo

nte

videu

nas ruas de várias cidades argentinas me tinha apercebido daque-

le fenómeno, mas, no Uruguai, a dimensão do mesmo era muito

maior. As pessoas carregavam debaixo do braço termos contendo

água quente, como se fosse um jornal enrolado. Numa das mãos,

um estranho vaso feito copo, bem trabalhado, do qual saía, inva-

riavelmente, uma espécie de boquilha metalizada. Ervas verdes en-

chiam o dito copo e, de tempos a tempos, o topo da boquilha era

levado ao encontro da boca do indivíduo. Toda a gente o fazia.

Vi esse ritual em transeuntes, em pessoas sentadas nos

bancos de jardim, nos cafés e restaurantes, nos empregados das

lojas, em todo o lado. É a loucura do chá-mate, do qual os uru-

guaios são os maiores consumidores do Mundo. “Cada uruguaio

bebe, em média, 540 litros de chá-mate por ano”, podia ler-se num

placard colocado na cozinha de uma pousada de Montevideu. Provei,

curioso, para logo desistir. Para um palato desacostumado, o sabor

amargo e forte era tudo menos aprazível. Ao fim de um par de

tentativas, quedei-me por bebidas mais familiares. Uma cerveja, a

acompanhar um suculento churrasco no Mercado do Porto de Mon-

tevideu, por exemplo.

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filipe morato gomes

ESTEROS DEL IBERA E PUERTO IGUAZU, ARGENTINA

Regresso à Argentina e entro nos Esteros del Iberá, onde

anseio pelo fim da chuva para avistar jacarés, cobras e

capivaras. Mas deixo-me depois encharcar pela magia

branca das águas de Iguaçú, um lugar verdadeiramente

impressionante.

51. Salpicos de prazer, em Iguaçú

Estava em Montevideu, tentando decidir que rumo tomar,

quando ouvi pela primeira vez o nome Esteros del Iberá. “Uma zona

de pântanos, repleta de vida selvagem, a caminho de Iguaçú”, dis-

seram-me, numa conversa de café, acompanhando um enérgico

incitamento a uma visita ao local. Porque não?, pensei. E, assim,

alguns autocarros mais tarde, assentava arraiais em Colonia Carlos

Pellegrini, uma pequena aldeia adjacente a uma das principais áre-

as do Parque Nacional Esteros del Iberá que é possível visitar.

A grande atracção do parque é, sem dúvida, a sua fauna

abundante. Capivaras pachorrentas deixam-se avistar nadando e

alimentando-se pelos pântanos. Cobras, muitas aves e ocasionais

cervos também. E os favoritos dos visitantes, os jacarés, que se

aquecem, imóveis, nas águas tranquilas das lagoas. Os turistas po-

dem observar tudo de muito perto, embarcando em lanchas des-

tinadas a esse efeito. São passeios que duram, em média, duas

horas, e todos os que já o haviam feito corroboravam o fascínio.

“Foi espantoso!”, dizia-me Florencia, simpática porteña (habitante de

Buenos Aires) de miniférias pela região.

Ansioso, dirigia-me para o parque de campismo da povo-

ação – de onde saem as embarcações para as lagoas – quando

começou a chover torrencialmente. As lanchas cessaram a activi-

dade. O sol escondia-se por detrás de nuvens quase negras e, sen-

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alma de viajante

Salpico

s de p

razer, e

m Ig

uaçú

do assim, a maioria dos animais não tinha motivos para se expor,

aquecendo-se. Esperei que a chuva passasse. “Se você quer foto-

grafar, o melhor será tentar amanhã. Além disso, temos já poucas

horas com luz, por isso teríamos que fazer um passeio mais rápido”,

informou um dos barqueiros. O primeiro dia em Carlos Pellegrini

estava, pois, perdido.

O dia seguinte acordou ainda mais feio do que o anterior.

Chovia copiosamente. Nesse dia, nenhuma lancha deixou terra fir-

me. Não havia nada mais para fazer nas proximidades. Pensava em

desistir quando a dona da pousada sugeriu: “Logo à noite, há festa

da padroeira da aldeia. Vai haver música e churrasco na igreja. Fique

mais um dia, até pode ser que amanhã pare de chover”.

Uma festa popular numa aldeola rural, com homens a che-

gar em cavalos pelas ruas de terra batida, uma sanfona e um violão,

danças tradicionais, vinho e carne no churrasco, é algo muito tenta-

dor. E, assim, não sei se pela esperança na melhoria do tempo ou

se pela romaria, fiquei mais um dia. E não me arrependi.

A festa era muito curiosa. Tudo ocorria em redor e dentro

da pequena igreja da aldeia. As pessoas estavam sentadas no inte-

rior da igreja, conversando, beliscando uns petiscos e abrigando-se

da chuva. Cá fora, homens exibindo roupas de vaqueiro, botas de

vaqueiro e rudeza de vaqueiro grelhavam carne. No átrio da igre-

ja, havia mesas corridas de madeira e muitas cadeiras de plástico

onde as mulheres – principalmente as mulheres – se sentavam, ex-

pectantes como num bailarico de outrora. O som de uma sanfona,

um violão e uma voz desafinada serviam de embalo a excêntricas

danças a dois. A música era muito mal interpretada mas os tím-

panos locais não se incomodavam com isso. Estava toda a aldeia

reunida, dançando, comendo, revendo amigos. Era uma coisa pe-

quena – talvez umas cinquenta pessoas, apenas –, mas era uma das

mais genuínas celebrações populares onde já havia estado. Algu-

mas pessoas olhavam-me com simpatia, outras com surpresa. Mas

sentia-me como que um intruso numa festa onde não era suposto

estar presente. E assim regressei à pousada, decidido a partir du-

rante a tarde do dia seguinte. Restava-me a esperança de uma

manhã de sol. Ou a frustração da desistência.

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filipe morato gomes

Manhã cedo, acordei com a voz da dona da pousada: “Se-

nhor, olhe como está o dia!”. Ensolarado, lindo, perfeito para sair

de lancha e avistar imensos jacarés ao sol, as capivaras doces e

pachorrentas, cobras enormes e muita passarada. Valeu a pena es-

perar – pensei, mais tarde, enquanto uma carrinha me levava de

regresso à civilização.

Ia ao encontro das cataratas de Iguaçú. Honra à verdade,

não sou apaixonado por cataratas. Inúmeras desilusões passadas

deixam-me de pé atrás sempre que o assunto é visitar cachoeiras,

insistentemente apresentadas como imperdíveis atracções turísti-

cas de uma qualquer região. Iguaçú seria diferente, valeria a pena

– convenci-me.

A Garganta do Diabo e demais quedas de água, o ar carre-

gado de salpicos, a força bruta do rio, o som ininterrupto e podero-

so vindo de todos os lados, tudo era mágico em Iguaçú. Numa se-

mana dominada pela Natureza, defronte de tão majestosa criação,

uma sensação de pequenez invadia o meu pensamento. Estava

completamente rendido. E cada vez mais molhado. Depois de tanto

ansiar pelo fim da chuva em Carlos Pellegrini, ali estava, quedo e

mudo, olhando a magia branca das águas revoltas e deixando que

os grossos salpicos, vindos de todas as direcções, me encharcas-

sem completamente.

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alma de viajante

BONITO, MATO GROSSO DO SUL, BRASIL

Chego ao Mato Grosso do Sul e sigo de boleia até Bonito

– a autodenominada capital do ecoturismo brasileiro –,

onde decorre um Festival de Inverno. Divido os dias en-

tre o teatro, a fotografia, o cinema e a música e tenho

ainda tempo para fazer snorkelling em rios cristalinos, vi-

sitar grutas e passar tardes em fazendas encantadoras.

52. Bonito por natureza

Cheguei a Campo Grande, capital do estado do Mato Gros-

so do Sul, após uma longa noite a bordo de dois autocarros que me

trouxeram desde Puerto Iguazu, no lado argentino das homónimas

cataratas. Na viagem, Gabriel e Carlos, dois brasileiros de regresso

a casa após um par de meses viajando pela América do Sul, tinham-

-me avisado: “Cara, esquece Campo Grande, está a decorrer o Festi-

val de Inverno de Bonito. Devias ir para lá imediatamente”.

Tinha outros contactos na cidade e, antes de tomar de-

cisões, liguei. “Vai ter com o Júnior, ele está à tua espera”, disse-

-me, por telefone, ainda no terminal rodoviário de Campo Grande,

uma amiga de longa data moradora na região. Uma corrida de táxi

mais tarde, estava à conversa com Júnior na sua agência de via-

gens. Procurava conselhos sobre o que fazer no Mato Grosso do

Sul quando um cliente cruzou a porta de entrada. Chamava-se José

Rafael. “Vou para a minha fazenda. Queres carona até Bonito?”, ofe-

receu-me. Aceitei sem hesitações. Campo Grande ficaria para outra

oportunidade.

Depois de uma noite passada em autocarros, percorri de

carro a estrada que liga Campo Grande a Bonito. Ao longo dos 247

quilómetros que separam as duas cidades, rectas enormes, fazen-

das de criação de gado e algumas pequenas povoações dominam

a paisagem. O Pantanal mato-grossense, uma das mais extraordi-

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filipe morato gomes

nárias reservas naturais do planeta, fica por ali perto. A região de

Bonito, que também pertence a Mato Grosso do Sul – estado que

faz fronteira com o Paraguai –, situa-se na parte sul do Pantanal.

A cidade que dá nome à região não tem nada de extraordi-

nário, mas o que faz a sua fama é a água cristalina dos seus rios, a

beleza translúcida das cachoeiras, o encanto e o mistério das grutas

e a diversidade e a exuberância da fauna e da flora. Bonito é, de

resto, um dos principais destinos de ecoturismo do Brasil. Mais de

70 mil turistas visitam anualmente as principais atracções da região,

mas fazem-no de forma ordenada, uma vez que estão interditas

explorações por conta própria. Todas as visitas têm hora marcada e

tempo controlado. Há sempre um outro grupo de turistas pronto e

expectante, aguardando a sua vez.

Praticar snorkelling no Aquário Natural e no rio da Prata,

onde cardumes de piraputangas e alguns dourados faziam compa-

nhia aos visitantes durante todo o percurso, é uma das actividades

que mais entusiastas atraem. Interessantes são também os almo-

ços nas fazendas que acolhem os visitantes, o Buraco das Araras,

onde se avistam bandos daquelas graciosas criaturas, e a famosa

Gruta do Lago Azul, talvez a mais emblemática atracção da região.

Honra à verdade, não são lugares de causar espanto a viajantes

experimentados, mas valem bem uma ou outra tarde de lazer.

Quando cheguei a Bonito, a cidade estava transformada

numa espécie de feira hippie. Dezenas de vendedores de colares,

pulseiras e demais artefactos decorativos ocupavam os passeios

em redor da praça principal. Vinham de vários pontos do país para

fazer negócio com a multidão que lá acorreu para participar na sex-

ta edição do Festival de Inverno.

Havia teatro de rua para crianças – que deliraram com o

grupo carioca Teatro de Anónimo –, cinema ao ar livre, numa tela

enorme montada na Praça da Liberdade, uma exposição de foto-

grafia de razoável qualidade e um concurso de curtas-metragens,

cujo tema era a Ecologia, onde pude assistir a um delicioso do-

cumentário sobre o “Seu Ico”, amante da natureza, sem estudos

mas muita sabedoria. “Meter um tractor no mato é o mesmo que

derrubar uma prateleira de farmácia”, dizia Ico, do alto dos seus

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alma de viajante

Bo

nito

po

r natu

reza

oitenta anos – pelo menos era essa a idade que aparentava ter –, a

propósito da desflorestação da região onde nasceu.

Havia também espectáculos de artistas brasileiros con-

sagrados. wagner foi o que captou as maiores atenções. A tenda

onde estava montado o palco principal encontrava-se repleta de

gente que entoava todas as suas músicas. E ainda Fernanda Abreu,

Elza Soares e um par de outros nomes. Mas o que mais me chamou

a atenção foi um homem simples e quase desconhecido: Pereira da

Viola. Vinha sem banda de suporte, acompanhado apenas por uma

viola caipira. Ia tocar num espaço “alternativo”, denominação de

um pequeno palco ao ar livre onde artistas menos conceituados se

apresentavam. Havia algumas dezenas de pessoas a assistir. Pouca

gente, que, seguramente, não se arrependeu. Porque Pereira da

Viola, mineiro de alma e coração, apresentou-se com a sinceridade

dos homens simples, falou com a humanidade dos homens pobres

e ainda tocou com o talento de um consagrado. A viola caipira pa-

recia chorar e rir ao mesmo tempo.

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filipe morato gomes

OURO PRETO, MINAS GERAIS, BRASIL

Chegado a Ouro Preto, “Manuel Joaquim Pereira”, aliás,

eu próprio, dispenso os luxos de uma pousada e fico

alojado numa república de estudantes. Por uma sema-

na, recuo aos tempos académicos por entre sebentas e

festas universitárias. E conheço “Papá”, um dos antigos

moradores da república, que, tal como a maioria, volta

regularmente ao casarão.

53. Na casa do “Papá”

Faz muito tempo que “Papá” estudou em Ouro Preto. Du-

rante esse período, viveu na república Sinagoga. Aproveitou ao má-

ximo o espírito ímpar de uma acolhedora cidade estudantil como

Ouro Preto. Entre festas, noitadas e algum estudo – imagino. Fez

amizades verdadeiras – daquelas para toda a vida –, conheceu o

calor das mineiras, apaixonou-se pela sua actual esposa. Olho para

o seu sorriso disfarçado e imagino que terá saudades. Olho para

o seu olho brilhante e imagino que aqueles terão sido alguns dos

melhores anos da sua vida. Talvez por isso, como uma ave que

regressa ano após ano ao mesmo ninho, “Papá” regressa à sua

república. Foi lá que o fui encontrar.

Estava num autocarro que fazia a ligação entre Belo Hori-

zonte e Ouro Preto quando, ao meu lado, se sentou um rapaz novo

e simpático. Feitas as apresentações, perguntou-me em que pou-

sada iria ficar hospedado. “Não sei, nunca faço reservas. Quando

chegar lá, procuro”, respondi. “Eu moro numa república, às vezes

recebemos turistas. É tudo muito básico, mas se quiseres ficar lá...”,

desafiou-me.

Entre um quarto de pousada bem decorado e arrumado,

mas solitário, e uma cama num quartinho de uma casa repleta de

estudantes, com muita alegria e festas quanto baste, a escolha pa-

receu-me óbvia. “Adoraria ficar convosco”, disse, sorrindo, com a

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alma de viajante

certeza de que, por mais simples que fosse a república, iria sentir-

-me bem.

Muitas repúblicas de estudantes em Ouro Preto estão

acostumadas a receber viajantes independentes. Cobram preços

módicos a quem anda na estrada com orçamento reduzido. E usam

o dinheiro para melhorar a própria república. “Já comprámos uma

geladeira e um novo fogão com o dinheiro dos turistas que ficaram

aqui nos últimos tempos”, dir-me-ia, dias mais tarde, “Bolão”, ape-

lido do líder na hierarquia da república.

“Trouxe um portuga para ficar connosco”, disse “Tô Fora”,

quando cruzámos a porta de entrada da Sinagoga. Uma instantâ-

nea sensação de regresso aos tempos académicos invadiu a minha

alma. Era um casarão antigo, de chão de madeira, com vários quar-

tos, uma cozinha desarrumada como em qualquer casa de estu-

dantes, uma ampla sala comum com colchões pelo chão e algumas

outras particularidades interessantes. Como o grelhador montado

num grande pátio propício a festas ao ar livre. E a maior surpresa de

todas, anunciada com um “portuga, anda ver a nossa boîte”: era uma

sala escura, mas aconchegante, com espaço para dançar e recantos

para sentar, decorada com sinais de trânsito, instrumentos musicais

velhos e pinturas na parede, e onde não faltavam um engenhoso

sistema de luz – incluindo uma bola giratória espelhada e um se-

máforo gigante – e um potente sistema de som. “Tens que ver isto

cheio de morenas”, gracejaram, com ar malandro.

Não tive a sorte de ver as “morenas” dançar, mas, mes-

mo assim, apaixonei-me. Pelas ladeiras empedradas de Ouro Preto.

Pela arquitectura sóbria do centro histórico da cidade, que a UNESCO

classificou como Património Mundial. Apaixonei-me pelos telhados,

pelas cores pastéis das fachadas dos casarios, pelas igrejas pousa-

das nos morros que envolvem a cidade. Em algumas delas, como

na Igreja de São Francisco de Assis, rendi-me à beleza das pinturas

de Ataíde e das esculturas em pedra-sabão de Aleijadinho, nome

pelo qual ficou conhecido António Francisco Lisboa, verdadeiro íco-

ne de Minas Gerais. Para além do talento, o que mais impressiona

na história de Aleijadinho é saber que a maioria das suas obras foi

esculpida com o martelo e o cinzel sustentados pelos tocos dos

Na casa d

o “P

apá”

187

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filipe morato gomes

membros superiores do escultor. É que uma doença – provavel-

mente lepra – provocou-lhe a perda de ambas as mãos e pés, tinha

ele pouco mais de 30 anos.

Enquanto me deliciava com passeatas por Ouro Preto – se-

guramente uma das mais belas cidades coloniais brasileiras –, qua-

se todos os moradores da república estavam em época de exames

finais. Mas qualquer pretexto era bom para adiar o inevitável estu-

do. “Amanhã vêm aí alguns antigos moradores da Sinagoga para

confraternizar e matar saudades”, informaram-me.

É curioso como, muito após a formatura, os antigos alunos

continuam a regressar a Ouro Preto. Não pela Universidade, mas

pelas marcas gravadas na memória pela república onde cada um

morou. Um banho de alegres saudades, como naquele momento

em que “Papá” contemplava os retratos de todos os antigos mora-

dores da Sinagoga, pendurados nas paredes da casa.

“Até mais, Pereira...” – assim se despediram os moradores

da Sinagoga, quando estava prestes a deixar Ouro Preto para rumar

ao estado do Espírito Santo. “Pereira”, aliás “Manuel Joaquim Pe-

reira Ora Pois”, foi a alcunha que ganhei desde o primeiro instante

na república. Como se todos os portugueses fossem manuéis ou

joaquins e o “ora pois” fosse a expressão nacional por excelência.

“Pereira, hás-de voltar”, sentenciaram. Fui morador da Sinagoga du-

rante apenas uma semana, mas, à saída, levava comigo uma pe-

quena amostra do espírito da vida solidária de uma república. Sim,

tal como “Papá”, que regressa ano após ano à Sinagoga, é provável

que o “Pereira” volte um destes dias.

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alma de viajante

ITAúNAS, ESPÍRITO SANTO, BRASIL

Sigo para o Espírito Santo, considerado o estado mais

perigoso do Brasil. Passeio por lugares sem vestígios de

violência, conheço o trabalho artesanal das paneleiras

de Goiabeiras e termino a semana num povoado que

mudou de localização devido ao avanço implacável das

dunas. E é aí, nesse pequeno éden chamado Itaúnas,

que me apercebo de que a lei da bala ainda impera, de

facto, nalgumas zonas do Espírito Santo.

54. Forró à lei da bala

Rezam as estatísticas que o Espírito Santo é o estado mais

perigoso do Brasil. É o reflexo de inúmeros assassinatos e crimes

violentos que ocorrem diariamente nos bairros periféricos da ca-

pital, Vitória. Mas lembro-me de ser adolescente e alguém contar

uma chalaça a propósito de médias e estatísticas que se resumia

à seguinte ironia: “Se um homem comer um bife e outro nenhum,

em média, cada um comeu meio bife, logo, estatisticamente, estão

ambos bem alimentados”. É um óbvio absurdo, mas é exactamen-

te o que aparenta acontecer no Espírito Santo. Isto é, ao lado de

alguns lugares com índices inacreditáveis de violência – que bruta-

lizam as estatísticas oficiais –, outros há absolutamente tranquilos.

Foi a estes últimos que Tadeu me levou.

Tinha conhecido o fotógrafo Tadeu Bianconi durante as co-

memorações do Inti Raymi, em Cuzco, no Peru. Alguns meses de-

pois, quando o relógio batia as cinco horas de uma manhã quente e

húmida, já ele se encontrava à minha espera no terminal rodoviário

de Vitória – a sua cidade. “Tenho muitas coisas para te mostrar no

Espírito Santo. Vamos começar pelas paneleiras”, disse, de supe-

tão.

O ofício está inscrito na lista do Património Cultural Brasi-

leiro. Dizem, aliás, que as paneleiras são a “cara” do Espírito Santo.

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filipe morato gomes

“Panela de barro, a raiz da cultura capixaba”, podia ler-se num folhe-

to promocional do trabalho das paneleiras da região de Goiabeiras.

Quando lá chegámos, estavam a preparar, ao ar livre, uma fogueira

para a queima das panelas. No interior do armazém, as mulheres

modelavam, raspavam e poliam as peças de barro – as fases ante-

riores à queima. Após a queima, as panelas eram açoitadas (pinta-

das) com uma vassoura mergulhada em tinta de tanino, um produ-

to natural obtido da casca de uma árvore do mangue. Obtinham-se,

assim, peças negras de indiscutível beleza, resultado de um ofício

genuinamente tradicional e característico da região.

Dias depois, Tadeu conduziu-me pelo litoral sul do Espírito

Santo. Pude então apreciar o quotidiano de uma região costeira

isenta de turistas. Os estrangeiros praticamente desconhecem o

estado e os brasileiros – principalmente mineiros e capixabas – só

começam a invadir as cidades de veraneio lá para o mês de No-

vembro.

Assim sendo, deleitei-me com as coisas simples de lugares

igualmente simples. Como aquele vendedor de abacaxi, em Anxie-

ta, que tinha a sua velha furgoneta estacionada no lugar de sempre,

com os abacaxis pendurados na carcaça da viatura. Ou aquele outro

homem, mais velho, que lia tranquilamente o jornal do dia, sentado

numa cadeira de plástico na praia da Areia Preta, em Guarapari. O

areal era dele, só dele, e nem a visão de um enorme prédio, na

ponta da curva da baía, abafava a tranquilidade do momento. Se-

guimos viagem.

À chegada a Itaipava, notava-se um movimento de ho-

mens de capa plástica azul e ar expectante. Eram carregadores e

aguardavam ordens para descarregar o peixe de um atuneiro que

tinha chegado à praia pouco antes. Passados alguns minutos, os

homens entraram em acção. Descarregavam no ombro, para terra

firme, um a um, os pesados atuns. Tudo muito mais primitivo do

que já havia visto, por exemplo, na ilha do Faial.

Dias depois, com o cheiro a maresia entranhado e curioso

com a história invulgar de um lugarejo mais a norte, haveria de

prosseguir viagem até Itaúnas. É um povoado localizado próximo

da fronteira com a Bahia e que já foi obrigado a mudar de lugar

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alma de viajante

Forró

à lei d

a bala

devido ao avanço implacável das dunas. “Esta é a foto da última

família a deixar a velha Itaúnas”, disse-me Apoena, afável anfitrião

no povoado, apontando para uma fotografia tirada pelo seu pai.

Itaúnas assentou então algumas centenas de metros terra dentro

e vive agora do turismo. Mantém as ruas de areia e terra batida, o

ritmo de um éden tropical e o ar de aldeia de pescadores artesa-

nais. Aqueles com quem fui pescar, certo dia, debaixo de um calor

abrasador, pelos igarapés (braços de rio) das proximidades.

Caminhando sem rumo pelas ruelas de areia, veio-me à

memória a cearense Jericoacoara – um lugar fascinante que já tive

o privilégio de conhecer. O charme de “Jeri” é incomparavelmente

maior, mas o ambiente em Itaúnas, à parte a ausência de gente,

era em tudo semelhante. Tivesse chegado uma semana antes e

teria vivenciado uma Itaúnas diferente.

Ainda havia cartazes na cidade a anunciar: “Festival do For-

ró 2005”. O festival é o acontecimento mais importante de Itaúnas

e o responsável pela fama que a povoação granjeou de “capital

capixaba do forró”. O assunto permanecia na boca de todos. “Se

tivesses vindo na semana passada, ias ver a loucura que foi”, dis-

seram-me, a propósito do evento. Milhares de pessoas unidas pelo

prazer de uma dança sensual como o forró, em que o contacto físi-

co é permanente e provocante. Imagino a “loucura” que terá sido.

Mas essa foi apenas a parte boa das festividades.

Constou-me também que, durante o festival, ocorreram

inúmeros roubos e assaltos. De simples actos de carteiristas até as-

saltos a lojas e a restaurantes, de tudo um pouco aconteceu. Num

lugar tão pequeno como Itaúnas, as proporções dos furtos foram

“sem precedentes”. “Gente de fora” que lá acorreu durante a se-

mana do forró com esse objectivo maléfico. Mas também nativos.

E era isso o que mais irritava os moradores. Ao ponto de, à boa

maneira de uma terra sem lei, terem aparentemente tomado em

mãos a resolução do problema. “Dois já morreram”, disse, certa

noite, à mesa de um bar, um habitante local já com umas cervejas a

soltar-lhe a língua mais do que o suposto. E acrescentou: “Os outros

dois já estão encomendados... em quinze dias”. Se isto acontece na

pacata Itaúnas, talvez as estatísticas tenham alguma razão.

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filipe morato gomes

BELÉM, PARá, BRASIL

Chego ao Sul da Bahia, onde avisto baleias-jubarte e

passeio pelas ruelas de areia de um apaixonante vila-

rejo de pescadores. E sigo depois para Belém, capital

do estado do Pará, onde me delicio com a magnífica

gastronomia local e ganho intimidade com nomes como

açaí, cupuaçu, piracuí, sururu, tacacá, tucunaré e tucupi.

55. Os deliciosos sabores do Pará

A caminho de Belém, a capital do estado do Pará, resolvi

passar uns dias no Sul da Bahia com uma missão específica: mer-

gulhar no arquipélago de Abrolhos, a partir da povoação de Carave-

las. Abrolhos, juntamente com Fernando de Noronha, constituem

os mais formidáveis pontos de mergulho conhecidos do Brasil. Um

desejo que, no entanto, rapidamente se afundou, em virtude dos

preços proibitivos praticados pelos centros de mergulho.

Desgostoso, apesar de ter avistado baleias-jubarte ao lar-

go de Caravelas, prossegui para norte, onde haveria de atracar em

poisos bem conhecidos dos turistas portugueses. O já gasto Porto

Seguro, as noites bonitas e agitadas de Arraial d´Ajuda e o ambien-

te alternativo de Trancoso. Mas, por entre lugares sem novidade,

haveria de “descobrir” um muito especial. É um pequeno povoado

que mantém o charme romântico de um lugarejo de pescadores e

em que os meios de transporte que percorrem a areia das ruelas

são carroças puxadas por mulas. O seu nome? Caraíva. Não me

surpreenderia se, em breve, se tornasse no próximo lugar da moda

do litoral sul da Bahia.

E assim passei dias de total descontracção, ao melhor rit-

mo baiano. Sempre rodeado de amigos, dormindo em redes colo-

cadas numa varanda frente ao mar e ouvindo música brasileira. Ou

apreciando a beleza ímpar de uma lua cheia na praia, enquanto

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alma de viajante

Os d

elicio

sos sab

ore

s do

Pará

bebericava umas caipirinhas. O aperitivo perfeito para as refeições

que viria a degustar no Pará.

Experimentar as gastronomias locais é um dos maiores

prazeres de viajar. Testar sabores novos, condimentos diferentes,

pratos de nome indecifrável, comidas de aspecto duvidoso, enfim,

arriscar. Em tascas de rua ou em restaurantes mais requintados. Se

os olhos se deleitam com uma paisagem deslumbrante e o olfac-

to com um cheiro misterioso, é imperioso permitir que o paladar

também se surpreenda. Aconteceu já em inúmeros locais por onde

passei – a carne de morcego que provei no Laos, por exemplo, figu-

ra entre as mais improváveis iguarias que já tive ocasião de sabore-

ar – e voltou a suceder assim que cheguei a Belém.

Uma das primeiras coisas que fiz em Belém, porém, nada

teve a ver com culinária. Visitei o belíssimo Teatro da Paz – orgulho

da capital paraense –, um edifício extraordinário, de cor rosada e

porte imponente. Quando lá entrei, decorria um ensaio para uma

ópera. Era necessário silêncio absoluto. A visita foi, por isso, muito

curta. Mas o suficiente para me aperceber da magnificência daque-

la sala de espectáculos que, juntamente com o Teatro Amazonas,

em Manaus, são as mais emblemáticas da Região Norte do Brasil.

Segui, depois, para o incontornável Ver-o-Peso, localizado

na baía de Guajará, do qual dizem ser o maior mercado ao ar livre

de toda a América Latina. De tudo se vende nas quase duas mil

bancas do Ver-o-Peso. Açaí na cuia (uma espécie de malga), simples

ou com peixe. Sumos naturais e frutos tropicais, como a acerola ou o

cupuaçu. Deliciosos. Peixes de todos os tamanhos, como o surubin, a

piramutaba, o pirarucu ou o tucunaré, a pescada-branca ou a amarela.

E camarão salgado, carnes, farinhas, tapioca, legumes, temperos,

ervas aromáticas e artesanato... Encontra-se tudo no Ver-o-Peso.

Há também mezinhas como o “viagra natural”, cujos su-

postos efeitos facilmente se adivinham e que o “Seu Luizinho” tan-

to insistiu para que eu levasse. E ainda, claro, uma das principais

curiosidades do mercado: as poções “mágicas”. São vendidas em

frasquinhos de vidro com rolhas de cortiça e – dizem! – curam qual-

quer maleita, quebram qualquer feitiço, afastam o mau-olhado ou

atraem o amor de alguém desejado. Acredite-se ou não nos efeitos,

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filipe morato gomes

o simples acto de percorrer as excêntricas bancas e falar com os

alegres vendedores é, por si só, fascinante.

O artesanato, sobretudo a cerâmica marajoara – a mais ca-

rismática arte da região, oriunda da ilha do Marajó –, está presente

por toda a cidade. Visitei um atelier na zona de Icoaraci, pólo prin-

cipal de desenvolvimento da cerâmica marajoara, situado a vinte

quilómetros do centro de Belém, onde pude apreciar a execução de

jarros, cinzeiros e um sem-fim de peças decorativas de indiscutível

beleza. Como aquela réplica de uma tanga “tapa-sexo”, de forma

quase triangular, utilizada pelos elementos femininos da tribo indí-

gena pano, habitantes das margens do rio Ucayala.

À noite, de volta ao centro de Belém, era altura de conhe-

cer uma das renovadas áreas da cidade: as docas. Outrora uma

zona portuária decadente, alberga agora um complexo cultural e de

lazer de muito bom gosto. Pontificam lojas de artesanato, um au-

ditório, bares e restaurantes elegantes. O mesmo conceito aplicado

nalgumas cidades portuguesas, proporcionando um local aprazível

para um início de noite descontraído ou um jantar à beira-rio.

E foi precisamente em almoços e jantares que mais me

surpreendi em Belém. De garfo, faca ou colher em punho, apreciei

as malgas de açaí com tapioca. Apaixonei-me pelos sucos matinais

de cupuaçu. Repeti o badalado pato no tucupi e comi muito, muito

peixe e marisco. Como um apetitoso tucunaré recheado e assado

no forno, enxova com salada de camarão, “unhas” de caranguejo ou

uma inacreditável torta de piracuí. E, para terminar, uma verdadeira

iguaria degustada numa barraquinha de rua em Icoaraci. A versão

paraense do tacacá, uma espécie de caldo grosso e forte feito à

base de mandioca (de onde se extrai uma goma esbranquiçada),

jambu (uma verdura da região que produz uma leve dormência na

boca), camarão salgado e pimenta. Delicioso.

Porta de entrada na fascinante Amazónia, Belém tem, in-

questionavelmente, muitos motivos de interesse. Mas o mais im-

pressivo de todos é talvez esse dom raro de nos conquistar pelo

estômago com a sua cozinha de origem indígena. Come-se e não

se esquece mais.

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alma de viajante

RIO AMAZONAS, BRASIL

Embarco numa viagem pelo rio Amazonas. De Belém a

Santarém, navego acompanhado por perigosos prisio-

neiros, aprecio a beleza tranquila das margens do rio,

entristeço-me com a pobreza de quem lá vive e emo-

ciono-me com a solidariedade dos brasileiros para com

essa gente desfavorecida. E conheço ainda as bonitas

praias fluviais de Alter do Chão.

56. Solidariedade no Amazonas

Era um momento muito esperado o que estava prestes a

acontecer. Algo que, desde há muito, fazia parte do meu imaginá-

rio de viajante planetário. Navegar pelo rio Amazonas num barco

de passageiros. Numa rede pendurada no convés ou no ilusório

luxo de um “camarote”. Quando me aproximei do barco, atracado

numa doca de Belém, sorria interiormente. Estava entusiasmado.

Foi quando me informaram do imprevisto. “Amigo, o Rodrigues Al-

ves não vai sair”, gritou um homem de dentro do navio, para logo

acrescentar, como resposta à perplexidade que – suponho – se es-

tampou no meu rosto: “problemas técnicos”.

Pretendia subir o rio até Santarém e o Rodrigues Alves era

precisamente o barco para o qual tinha comprado passagem. E, nos

dias seguintes, não estavam previstas saídas de outras embarca-

ções. Sentia-me algo azarado quando alguém disparou, em jeito

de solução: “Olhe, o Clívia também parte hoje. Sai agora, às seis, da

outra doca”. Eram 18h15.

Vinte minutos depois de uma condução endiabrada pelas

ruas de Belém, muitas buzinadelas e uma paragem numa agência

para trocar o bilhete, chegámos à “outra doca”. “Está a sair! Está a

sair!”, gritou um velhote, agitando os braços, mal me viu descer do

carro com a mochila. Corri como um desalmado e entrei no barco.

Um minuto depois – não mais! –, o Clívia soltou amarras e zarpou. A

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filipe morato gomes

sorte tinha voltado.

Nessa noite, a bordo, os passageiros começavam a conhe-

cer-se partilhando conversa, cerveja e comida. Descobriam-se elos

de ligação entre vidas com histórias diferentes. Grupos de homens

jogavam dominó, acaloradamente. No convés, um DVD da Banda

Calypso – idolatrado grupo paraense de forró – assegurava a boa

disposição dos passageiros. O ambiente a bordo era tranquilo e

aprazível. Com o passar do tempo, iam surgindo os primeiros na-

moros, efémeras relações de uma noite de sexo na escuridão do

convés superior ou na privacidade de um camarote. Só quando o

dia amanheceu, deslumbrante e solarengo, é que o Amazonas se

destapou e deixou revelar uma realidade menos risonha.

Ao longo de todo o segundo dia da viagem, pirogas com

mulheres e crianças de tenra idade aproximavam-se do barco, à

sua passagem, na expectativa de lhes serem atirados alguns ví-

veres. “É uma zona muito carenciada”, disse-me, a propósito, um

aposentado oficial da Marinha que seguia a bordo. Dava para perce-

ber. As palhotas que se viam nas margens eram demasiado básicas

para serem confortáveis, demasiado remotas para terem água ca-

nalizada ou electricidade, demasiado pequenas para albergar uma

família numerosa.

Nas pirogas, os quase bebés abanavam as mãos como si-

nal de que pediam algo. E alguns passageiros vinham preparados

para partilhar coisas suas com essa gente humilde. “O que lhes

deram?”, perguntei a um casal que tinha acabado de jogar borda

fora, na direcção de uma piroga com uma velhota e três crianças,

um saco plástico com algo dentro. “Roupas, brinquedos e bolachas”,

responderam. Um dos miúdos recolheu o saco da água. A velhota

acenou, agradecendo. Eles retribuíram o aceno. Solidariedade pura

de gente que tem um pouco mais para com aqueles que têm muito

menos. Instintivamente, vasculhei a mochila e partilhei também os

meus pertences.

Em Almeirim, um grupo de prisioneiros algemados entrou

no navio. Vinham vigiados por meia dúzia de polícias armados. Um

burburinho instalou-se imediatamente entre os passageiros. Pouco

tempo depois, já todos sabiam o que se estava a passar. Dizem-me

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alma de viajante

Solid

ariedad

e n

o A

mazo

nas

que os presos “destruíram a delegacia” de Almeirim e, por isso,

estavam a ser transferidos para Santarém. “São muito perigosos”,

acrescentou uma senhora de idade, conferindo um tom sério à afir-

mação. O último dia a bordo do Clívia foi, por isso, diferente. Mais

tenso. As cadeiras de plástico existentes no convés superior esta-

vam tomadas pelo grupo de prisioneiros e respectivos vigilantes.

E, por muito que os passageiros se esforçassem por agir com na-

turalidade, era difícil ignorar a presença das armas dos polícias, as

algemas dos presos e, principalmente, os seus ares revoltados.

Atracámos em Santarém na noite seguinte. Para mim, era

o ponto em que a viagem de barco terminaria. Pretendia conhe-

cer as praias fluviais do simpático povoado de Alter do Chão antes

que o Sairé, a maior festa popular da região, tomasse conta das

ruas do lugarejo. Por todo o povoado, ultimavam-se os preparati-

vos para tão importante acontecimento e, à noite, já havia festas

com música ao vivo. Sou fã da música popular brasileira e aprecia-

dor de ritmos como o samba, o forró, o pagode e muitos outros

de expressão regional, mas, em Alter do Chão, só se ouviam os

inaudíveis ritmos brega. Esqueci as noites e aproveitei as atractivas

praias fluviais.

Dias depois, saí de Alter do Chão com destino a Manaus,

onde visitei o grandioso Teatro Amazonas – considerado o principal

património arquitectónico do estado. Belo edifício. E, certo dia, face

à ausência de apelos na cidade capital do Amazonas, dirigi-me ao

invulgar “encontro das águas”, o ponto em que os rios Negro e So-

limões se tocam sem, todavia, se misturarem. São dois rios de cor,

acidez e velocidade diferentes que, a dado momento, se juntam

e permanecem como um só, embora dividido em duas metades

distintas. De um lado, negro e ácido. Do outro, barrento. “Seguem

lado a lado, durante sete quilómetros”, explicou o barqueiro que

me levou ao local. “Depois o rio fica de uma só cor, mas as águas

nunca se misturam totalmente”, concluiu.

Era como os passageiros do navio e as crianças das pirogas

– pensei. Lado a lado, mas separados. Oriundos de mundos distin-

tos. E sem nunca se misturarem. Só a solidariedade esbatia essas

diferenças.

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filipe morato gomes

SANTA ELENA DE UAIRÉN, VENEZUELA

Entro na Venezuela e paro na primeira povoação exis-

tente após a fronteira, Santa Elena de Uairén. Encanto-

-me com as formações montanhosas a que os indígenas

pemón chamaram tepuis, e com a beleza verdejante da

Gran Sabana. E sigo depois para a cidade que mudou

de nome em honra do “Libertador” da pátria, Simon

Bolívar.

57. O misterioso mundo dos tepuis venezuelanos

Santa Elena de Uairén foi a primeira cidade que encontrei

após atravessar a fronteira com o Brasil. Acabara de entrar na Ve-

nezuela e, ao contrário da maioria das povoações fronteiriças que já

conheci, era um lugar relaxado. Não era um povoado bonito, longe

disso, mas não apresentava aquele caos comum às pequenas terras

fronteiriças, nem o típico ambiente de lugar sem lei. Notei a ausên-

cia do burburinho dos cambistas de rua, dos vendedores agressivos,

de malandros em geral e outros oportunistas. Uma surpresa.

Apesar disso, os viajantes não costumam ficar por muito

tempo na cidade. Chegam com objectivos bem definidos e ficam

em Santa Elena de Uairén apenas o tempo suficiente para organizar

as actividades planeadas: visitar as paisagens verdejantes da Gran

Sabana e conhecer o misterioso mundo dos tepuis venezuelanos.

Tepui foi como o povo indígena pemón chamou às forma-

ções de topo plano e escarpas verticais e profundas que abundam

na região. A palavra significa, simplesmente, montanha. Mas não

são montanhas quaisquer, os tepuis. São formações que resultam

de milhões de anos de erosão e no topo das quais, devido ao seu

isolamento umas em relação às outras, se desenvolveram ecossis-

temas únicos, com fauna e flora particulares. Muitas espécies que

ali se desenvolveram não se encontram em nenhum outro lugar do

planeta. Consta, aliás, que aproximadamente metade das plantas

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alma de viajante

O m

isterio

so m

undo

do

s tepuis venezu

elan

os

presentes no topo dos tepuis é endémica, o que, a ser verdade, os

torna num dos lugares com mais elevada percentagem de flora

endémica de todo o Mundo.

De todos os tepuis da Gran Sabana, há um que é especial-

mente conhecido entre os viajantes, fruto da facilidade com que se

pode ascender ao seu topo. Chama-se Roraima, e é um planalto

situado a 2700 metros de altitude, localizado na fronteira triparti-

da entre a Venezuela, a Guiana e o Brasil. Encontrei viajantes que

tinham acabado de regressar dessa extenuante aventura de seis

dias. Como uma jovem estónia, com ar cansado mas de sorriso

pronto, que me contou: “Foi uma experiência muito cansativa, mas

fascinante. Dormir no topo de Roraima é maravilhoso”. Sem valen-

tia para encarar a longa caminhada para essa preciosidade natural,

visitei apenas algumas cascatas e miradouros, apreciei de longe

os tepuis, imergi na beleza serena e esverdeada da Gran Sabana, e

decidi rumar depois a Ciudad Bolívar, num autocarro nocturno.

Viajar durante a noite constitui, quase sempre, uma enor-

me vantagem. De comboio ou de autocarro. Perde-se o prazer de

observar a paisagem, é certo, mas economiza-se uma noite de ho-

tel, percorrem-se longas distâncias sem esforço e acorda-se num

novo lugar pronto a explorá-lo, depois de uma noite de sono. Qua-

se sempre.

Eram sete da noite quando um veículo todo-o-terreno me

deixou no primeiro dos inúmeros postos de controlos militares à

saída de Santa Elena de Uairén. Vinha do passeio pela Gran Sabana

e o autocarro com destino a Ciudad Bolívar sairia de Santa Elena de

Uairén daí a meia hora. Não havia, por isso, tempo de o apanhar

na origem. Felizmente, porque, assim, pude observar o misterioso

controlo que os profissionais do exército efectuavam sobre todos

os veículos em trânsito. Mandavam-nos parar, abriam as portas e a

bagageira, apontavam lanternas para o interior de ambas, olhavam,

perguntavam algo do tipo “o que levam aí?” e, um ou dois minutos

depois, ordenavam aos veículos que prosseguissem viagem. Nada

mais.

Intrigado, e após ter ganho confiança com o grupo que

efectuava a patrulha, decidi perguntar ao cabo de serviço o que

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filipe morato gomes

procuravam naquelas revistas. “Tudo!”, respondeu, com ar de quem

tem por missão algo importantíssimo. “Drogas, armas, imigrantes

ilegais... tudo!”, acrescentou. Curiosa resposta. Não havia sequer

cães para as buscas. E não me ocorreria que alguém transportando

drogas, armas ou algo ilegal o fizesse, justamente, no cimo de toda

a outra bagagem e bem à vista das autoridades. Uma mera forma-

lidade, portanto. Ficara com vontade de aprofundar o assunto, mas,

pelo sim pelo não, optei pelo silêncio.

Algum tempo depois, as luzes dianteiras do autocarro ilu-

minavam o posto de controlo. Durante toda a viagem, a cada par

de horas, o autocarro parava e era acometido por militares. Pediam

os passaportes, comparavam a foto com a pessoa, passavam ao

próximo passageiro. Só me recordo de controlos deste género num

outro país e por motivos diferentes. Eram controlos bem mais ri-

gorosos e que visavam, de forma clara, registar o movimento das

pessoas pelo país. Foi em Myanmar (Birmânia), um país gerido por

uma junta militar. Não estava à espera de ver isto na Venezuela.

Quando, por fim, cheguei a Ciudad Bolívar, não tinha dormido nem

apreciado a paisagem.

A outrora denominada Angostura foi a cidade onde o herói

nacional Simón Bolívar, “O Libertador”, montou a base das opera-

ções militares contra as forças espanholas que haveriam de resultar

na sua expulsão. Hoje, Ciudad Bolívar mantém ainda alguns traços

coloniais, um centro histórico bonito e colorido e muita gente jo-

vem. Mas, debaixo de temperaturas que rondavam quase cons-

tantemente uns abrasadores quarenta graus, não havia quem se

aventurasse em passeatas pela cidade para além do essencial. A

sombra era um dos “bens” mais preciosos em Ciudad Bolívar, o

calor era insuportável. A altura ideal para me dirigir às águas refres-

cantes das Caraíbas.

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alma de viajante

SANTA FÉ, VENEZUELA

Escolho a pequena povoação piscatória de Santa Fé, nas

águas tépidas das Caraíbas venezuelanas, como último

destino da minha odisseia planetária. Passeio de barco,

conheço as praias de uma região menos segura do que

aparentava ser, e cruzo-me com um revolucionário que

estivera em Portugal no pós-25 de Abril, antes dar por

finda esta volta ao Mundo e regressar a casa. Imensa-

mente feliz.

58. Das Caraíbas para Portugal

Estava em Ciudad Bolívar, Venezuela, quando entrei numa

agência de viagens para indagar sobre os preços de um voo espe-

cial: o de regresso. Ainda me recordo do que escrevi na primeira

crónica desta série: “A liberdade de decidir, a cada momento, onde

acordar no dia seguinte é um dos mais reconfortantes luxos que

terei ao meu dispor nos tempos mais próximos”. Assim foi durante

toda a viagem. Catorze meses depois, com o mesmo espírito de

liberdade que sempre me acompanhou nas encruzilhadas do Mun-

do, optei por voltar a acordar no mais familiar de todos os lugares.

Aquele a que, após calcorrear parte do nosso planeta, continuarei

a chamar casa. Quando saí da agência de viagens, tinha um voo

marcado para Portugal para daí a uma semana.

Havia que aproveitar os últimos dias e o apelo da costa das

Caraíbas fez-me entrar num por puesto – meio de transporte comum

na Venezuela, que não é mais do que um táxi ou miniautocarro

que só arranca quando a lotação estiver completa – com destino à

pequena povoação piscatória de Santa Fé. Fica situada entre Puer-

to La Cruz e Cumaná, as duas principais portas de acesso à hiper-

desenvolvida ilha Margarita. Apesar da proximidade dos luxos do

mais turístico destino de todo o país, Santa Fé é uma localidade

simples. Agradável sem ser bonita, prazenteira sem ser exuberante

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e, pensava eu, pacata.

“Depois de escurecer, não vás lá para o fundo”, disse-me,

pouco depois de chegar, um velho pescador encostado ao seu bar-

co e apontando para a zona oeste da praia. “É perigoso. Naquele

lado, há muita droga e malandragem”, afiançou. Nunca, em catorze

meses de viagem, tive problemas com assaltos, mas agir com bom

senso e confiar nos conselhos dos habitantes locais são duas regras

de ouro que me habituei a adoptar. E, assim, mesmo sabendo que

a segurança é muitas vezes aparente e a insegurança outras tantas

vezes psicológica, quedei-me na zona “segura” da povoação.

Curiosamente, nem essas precauções aparentavam ser

garantia do que quer que fosse num país onde a violência faz parte

do quotidiano de quem lá vive ou por lá passa. Que o digam dois

jovens franceses que iniciavam, quatro dias antes, uma viagem de

três meses pela América do Sul. “Chegaram de Caracas e vieram

directamente para Santa Fé, para escaparem à insegurança da capi-

tal”, contou-me outro francês que conhecia os seus azarados com-

patriotas. “Ao saírem do autocarro, aqui, em Santa Fé, uns tipos

ameaçaram-nos com machados e levaram-lhes todas as mochilas.

Agora estão sem roupa, sem dinheiro, sem passaporte, levaram-

-lhes tudo. Aguardam apenas que a embaixada lhes emita novo

passaporte para regressar a França.” Muito azar para quem acabara

de iniciar uma viagem, e eu há catorze meses sem problemas do

género, pensei.

Seria, no entanto, injusto classificar Santa Fé como um lu-

garejo perigoso. A maior parte das pessoas que para lá se dirigem

fá-lo, aliás, com o simples propósito de relaxar. Ou para visitar o

Parque Nacional Mochima. Um passeio de barco pelas ilhotas que

compõem o parque revelou-se uma excelente forma de conhecer

praias interessantes, embora sem a beleza tropical de paragens

como o idílico arquipélago de Los Roques, próximo de Caracas. Fal-

tava a areia branca, os recifes e as águas azul-turquesa transparen-

tes para poderem figurar num típico postal ilustrado caribenho. Mas

eram lugares agradáveis, limpos e estavam povoados de golfinhos

no mar e casais apaixonados em terra, porventura influenciados

pelo ambiente romântico de um final de tarde nas águas tépidas

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alma de viajante

Das C

araíbas p

ara Po

rtugal

das Caraíbas. Foi nesse passeio que conheci Ramón e a sua namo-

rada.

Ramón aparentava ter cinquenta e muitos anos. Era funcio-

nário da embaixada espanhola em Caracas e comunista fervoroso.

Estava de férias em Santa Fé. Quando soube que eu era português,

disparou: “Estive em Portugal logo após a revolução. Nessa época,

eu era um membro muito activo do Partido Comunista espanhol

e tínhamos uma forte ligação com o PCP. Logo após o 25 de Abril,

estive inclusive com o Cunhal”, contou-me, com uma ponta de or-

gulho a transparecer na sua voz. Falou ainda de outras experiências

revolucionárias, na Nicarágua, enquanto navegávamos por entre as

ilhas do Parque Nacional Mochima. “Mas agora estou mais calmo”,

encerrou o assunto, quando já me preparava para falar do retorno a

Portugal. “Ramón, é precisamente para lá que vou amanhã”, disse-

-lhe. “Boa viagem. A luta continua!”, rematou.

Fui cedo para o aeroporto. Estava calado, imerso em pen-

samentos confusos. “Como iria reagir ao regresso a casa?”, pergun-

tei a mim mesmo. Entrei a bordo da primeira das aeronaves que

me haveriam de trazer de volta a solo lusitano, consciente de que

estava a colocar um ponto final no cumprimento do sonho que me

fez partir. Horas depois, à chegada ao Aeroporto Francisco Sá Car-

neiro, no Porto, a “viagem de sentido único” aterrava no ponto de

partida. O globo estava circunscrito.

Na manhã seguinte, haveria de acordar em casa. Estava

imensamente feliz. Por ter empreendido esta odisseia. Por tudo o

que vivi nestes meses de aventura. Por estar de regresso.

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Epílogo

A vida na estrada é estimulante, variada e sedutora, fei-

ta de pequenos mas intensos prazeres, de conquistas pessoais, de

instantes mágicos e de um punhado de insignificantes desilusões.

A cada passo, uma nova experiência, um curioso costume, uma

inesperada amizade. A cada esquina, um novo sorriso, um distinto

sabor, um som apaixonante. A cada dia, um novo e diferente dia.

Tempo de grande enriquecimento pessoal.

Foram catorze meses de vida errante, mochila às costas,

máquina fotográfica em punho e sentidos despertos. Parti. Vivi. E

regressei. Mais paciente, mais humilde. Possuidor de um autoco-

nhecimento nunca antes alcançado e seguro de que o ser humano

é, por natureza, em qualquer canto do planeta, bom e generoso.

Voltei, enfim, com horizontes alargados, enriquecido com vivências

inolvidáveis e com a reconfortante convicção de que, apesar de

tudo, pouco conheço do Mundo em que vivemos. Continuarei, por-

tanto, a viajar.

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À Luísa, que me incentivou

a concretizar este sonho. À Luísa,

que viajou comigo, o tempo todo,

mesmo à distância. À Luísa.

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