Almanaque Chuva de Versos n. 386

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Artur da Távola

Gatos

Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso. Nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.

O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis.

Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu. Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado? Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?

Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele é dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso.

“Falso”, porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade. O gato não

gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.

O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio, é espelho.

O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação.

Nada pede a quem não o quer. Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige. Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o

sente,é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta como um lorde inglês.

Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado, e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.

O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de

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maneira muito mais valente que nós). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta. Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe “ler” pensa que ele não está ali. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.

O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber.

Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos devolver as perguntas medrosas, esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.

O gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato!

Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a

massagem mais completa em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase 15 minutos) se aquecendo para entrar em campo. O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, o qual ama e preserva como a um templo.

Lição de saúde sexual e sensualidade. Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de

vários dias. Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e

território pessoal. Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio. Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contato com o mistério, com o escuro, com a sombra. Lição de religiosidade sem ícones. Lição de alimentação e requinte. Lição de bom gosto e senso de oportunidade. Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa,

educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências. O gato é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo

mistério à disposição do homem. ___________________________

Artur da Távola (Pseudônimo de Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros.), nasceu e faleceu no Rio de Janeiro/RJ (1936 – 2008).

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Uma Trova de Curitiba/PR

Walneide Fagundes de S. Guedes

A tua ausência é o refrão de uma tristeza sem fim,

onde o tempo ao dizer não, permite à dor dizer sim.

Uma Trova de Bauru/SP

Ercy Maria Marques de Faria

Quer sejam de palha ou de ouro,

os berços são sempre iguais, guardando o mesmo tesouro que brilha aos olhos dos pais!

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

SAUDADES DE VELHAS SAUDADES

Passa uma vela branca no horizonte.

Que saudade esquisita, ó vela errante!

Quantas vezes um sonho semelhante, na meninice, me alumiou a fronte!

Muita vez me quedei, saudoso, diante de uma folha a cair ou de uma fonte,

do rio que rolava sob a ponte, do fumo solto de um casal distante.

Vendo-te agora, ó nau! tenho saudade da infância, da ilusão, da ingenuidade, e de cem outras coisas, entre as quais

essas próprias saudades que eu sentia,

tão vagas! talvez sombra fugidia de remotas saudades ancestrais.

Uma Trova Humorística de Bandeirantes/PR

Caroline Portugal

É bem mais fácil trancar um fantasma na cadeia, do que tentar segurar

marido de mulher feia!...

Uma Trova de Nova Friburgo/RJ

Ana Maria Motta

Eras príncipe e eu princesa... Na infância tudo é real...

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Mas, toda aquela nobreza não ia além do quintal!

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

SONETO MAL-ASSOMBRADO

Minha alma é uma casa abandonada,

por cujos tenebrosos corredores volteia a ronda volatilizada

dos espectros de mortos moradores.

Um dia esta mansão mal-assombrada, afugentando a treva e seus horrores, entraste, — alegre aparição alada, — num explodir de claridade e olores;

mas de pronto fugiste, e hoje, silente,

esconde a velha casa à luz do dia as mesmas sombras, que volteiam juntas.

Ah! Terei de guardar eternamente na solidão desta alma escura e fria estas saudades de ilusões defuntas!

Uma Trova Hispânica da Argentina

Hilda Augusta Schiavoni

Siempre el migrante se estrella cuando baja y llega al puerto.

pues ve que en su piel se mella la soledad del desierto.

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

VERSOS NEVOENTOS (a quem lê)

Luta penosa e vã, esta em que vivo, imerso

na ambição de alcançar a frase que me exprima, onde o meu pensamento esplenda claro e terso,

como o bago reluz pronto para a vindima.

Como cristalizar tanta emoção no verso? Como o sonho encerrar nos limites da rima?

Bruma ondulante e azul, fumo que erra disperso, não se pode plasmar, não há mão que o comprima.

Não, eu não te darei a Expressão que rebrilha

na rija nitidez de u'a moeda sem uso, acabado lavor de cunho e de serrilha:

só te posso ofertar estes versos nevoentos,

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conchas em que ouvirás, indistinto e confuso, um remoto fragor de vagas e de ventos.

Trovadores que deixaram Saudades

Vera Vargas Curitiba/PR (1922 - 2000)

Geada… roça perdida,

e, em meio à tristeza tanta, só o pinheiro sente a vida,

ergue os braços, reza e canta!

Uma Trova de São Paulo/SP

Darly O. Barros

“Apaga esse rosto!’, eu peço e a saudade faz o oposto:

– retocando o rosto impresso, me devolve o mesmo rosto...

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

OS MEUS CAMARADAS

Por esta melancólica descida

através de sarçais e de atoleiros

que seria, dizei, de minha vida, sem vós, ó meus amados companheiros?

Que seria desta alma, assim ferida, que seria dos sonhos derradeiros,

sem quem me ouvisse a voz, jamais ouvida na surda multidão dos caminheiros?

Ah! Como é bom sentir, na treva incerta, a amiga voz que à nossa voz responde, a doce mão que a nossa mão aperta!

Vamos... Rodeai-me sempre assim... Cuidado!

Quero, na escuridão que nos esconde, ouvir os vossos passos a meu lado.

Uma Trova de Taubaté/SP

Oscar Vieira Soares

Os moços não me compreendem e entrefalam: “É da idade..."

toda vez que me surpreendem conversando com a saudade.

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Um Haicai do Rio de Janeiro/RJ

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

LUA

É nestas horas em que sofro e tento

vencer o tédio, víbora refece, que o teu vulto à lembrança me aparece

num mais doce e maior deslumbramento.

Vem como a clara lua que esplandece, inesperada, por um céu nevoento;

minha alma se ergue, então, no alheiamento de uma dorida fervorosa prece.

Ó clara, ó alta, ó refulgente lua,

se te elevas meu ser também se eleva, e onde vais flutuando ele flutua...

Rompe das nuvens o pesado véu!

És a única luz por esta treva e o derradeiro encanto deste céu.

Uma Trova de Belo Horizonte/MG

Alair Almeida

Bem lento, um barco esperando o momento da partida...

Sem saber, vai segurando a dor de uma despedida.

Uma Quadra de S. Domingos de Rana/Portugal

João Batista Coelho

Dando cor ao universo desde a treva à luz suprema, a escola, mais do que verso, é, no seu todo um poema.

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Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

TU, SÓ TU...

Pensando nesse misterioso encanto, nessa graça tão límpida e tão pura,

quase dos olhos me rebenta o pranto, numa explosão calada de ternura.

E quando a alma serena, assim, levanto às regiões onde o nosso amor fulgura, sinto no peito o coração de um santo e sinto que a alma se me transfigura.

Só tu darias, coração perfeito, levezas de ave sonorosa e doce

à serpe que me pulsa aqui no peito;

tu, só tu, meu amor, trocar podias o travo mau do antigo fel precoce no dulçor destas lágrimas tardias.

Uma Trova de São Paulo/SP

Aparecido Elias Pescador

Num pensamento distante lembrei meus sonhos e vi,

no convite de um instante, que eu tive tudo e perdi...

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

NUVENS

Sobre a lâmina azul de um céu todo bonança passa uma nuvem clara em curvas franjas de

onda, — vaga que adormeceu num mar que não

estronda, nas mudas convulsões de uma tormenta mansa...

Bruma, sonho da terra, ergueu-se; e enquanto

avança, busca a forma fugaz, que se esboça e esbarronda;

aqui se esgarça, ali descai, além, redonda, bóia ao sol que a redoira e ao vento que a

embalança.

Sonhos, bruma secreta, entre anseios e dores, sobem-nos da alma assim, livres, espaço em fora,

na lenta indecisão dos informes vapores...

Possam os meus pairar na luz por um momento,

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ser a nuvem que arrasta o olhar perdido — embora suceda a cada esboço um desmoronamento!

Um Triverso de Maringá/PR

A. A. de Assis

Na mesa grandona vinho, massa e cantoria.

Almoço na Nona.

Uma Trova de Amparo/SP

Deires Hoffmann

Não me convides, saudade, a relembrar o passado; para falar a verdade,

nem sonhos tenho sonhado!

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

TAPERA

Numa curva da estrada, onde a luz reverbera

num tanque entre ervaçais, aparece uma casa. Pombas voejam no oitão, sobre a cumeeira rasa.

Tudo ali tem um ar de quem convida, e espera.

Sigo. Chego ao pomar: o capim prolifera; a guaxima no juá bravo, alta e rija, se casa.

Silêncio. E, no silêncio, o som mole de uma asa e o fremente chiar da cigarra. É a tapera.

Bato à porta. Ninguém. Olho por uma fresta: tudo escuro; e no escuro, a descer do telhado,

longas fitas de sol. Nada mais ali resta.

A velha casa morre. Apenas, sobre as lombas do teto a desabar caminham sem cuidado,

nos pequeninos pés, turturinando, as pombas.

Recordando Velhas Canções

Maria, carnaval e cinzas (1967)

Luiz Carlos Paraná

Nasceu Maria, quando a folia Perdia a noite, ganhava o dia

Foi fantasia seu enxoval Nasceu Maria no carnaval

E não lhe chamaram assim como tantas

Marias de santas

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Marias de flor Seria Maria, Maria somente

Maria semente de samba de amor

Não era noite não era dia Só madrugada só fantasia

Só morro samba viva Maria Quem sabe a sorte lhe sorriria

E um dia viria de porta-estandarte

Sambando com arte puxando cordões E em plena folia decerto estaria

Nos olhos e sonhos de mil foliões

Morreu Maria, quando a folia Na quarta-feira também morria

E foi de cinzas seu enxoval Viveu apenas um carnaval

Que fosse chamada então como tantas

Marias de santas Marias de flor

E em vez de Maria, Maria somente Maria semente de samba e de dor

Não era noite não era dia

Somente restos de fantasia Somente cinzas pobre Maria

Jamais a vida lhe sorriria

E nunca viria de porta-estandarte

Sambando com arte puxando o cordão E não estaria em plena folia

Nos olhos e sonhos de seus foliões

E não estaria Em plena folia

Nos olhos e sonhos De seus foliões

Uma Trova de Tambaú/SP

Sebas Sundfeld

Para encontros conhecidos, as saudades, certamente,

são convites recebidos pelo próprio remetente.

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

A BOA ÁRVORE

(a J. Carlos)

Além, no vale imoto, onde a selva congesta se adensa e enrosca, a ondear os contornos

hirsutos,

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uma árvore surgiu, cresceu, rasgou uma fresta, resistindo aos cipós, e aos encontrões dos brutos.

Enquanto as outras mais se estorcem, doidas, esta

crava a raiz no solo e, em ritmos resolutos, ergue o tronco e abre a rama, e floresce modesta, e a fronde alta e redonda estrela de áureos frutos.

Ninguém lhos colhe. A lama, as aves e as formigas

devoram lentamente os pomos de ouro dútil, sob a copa que pende escorrendo fadigas...

E a árvore, em breve, a alçar os pendões do renovo,

tranqüila recomeça a obra pesada e inútil, para, em vindo a sazão, frutificar de novo.

Um Haicai de Irati/PR

Pâmela Suelen Rost 9 anos

Noite de luar

As crianças brincam de roda Férias de verão.

Uma Trova de Juiz de Fora/MG

Cezar Augusto Defilippo

Lanço a bomba do meu sonho,

ogiva de paz e amor, e o cogumelo medonho ganha formato de flor!...

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

FUI CAVALEIRO

Eu já fui cavaleiro, e na guerra, que assola,

todo o corpo chaguei, vi que tudo é maldade. Nem me resta esse amor, para o qual se me evola

do peito, como incenso, uma louca saudade!

Dentro da minha dor, que da Vida me isola, recolhi-me, e hoje arrasto a cogula dum frade,

como um frade infeliz, cuja existência rola entre a vida infeliz duma comunidade.

Quero que o Mundo estruja em torvelim sangrento,

ou que tenha repouso, apodrecendo embora, — longe da triste paz deste recolhimento;

que a vida me deslize, aqui, como a fumaça, que se eleva em bulcões pelo ar sereno afora, e mansamente, e pouco a pouco se adelgaça...

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Hinos de Cidades Brasileiras

Itajubá/MG

Terra de Luz", alvorada de amor, manhã de paz Entre as montanhas bonitas, a enfeitar Minas

Gerais. Na Mantiqueira um povo nobre fez brotar

Do chão da serra "a cidade fácil de se amar".

Terra querida. Simples e amiga

Que faz de todo cidadão Um novo irmão dos filhos seus.

Suas escolas são fontes de progresso do Brasil.

Suas enxadas caboclas também traçam seu perfil. Nas oficinas seus braços forjam as manhãs Onde a esperança, a lida e a luta são irmãs.

Terra querida.

Simples e amiga Que faz de todo cidadão

Um novo irmão dos filhos seus.

A água que cai sobre a pedra batizou este lugar Que o Puris-Coroados já chamavam Itajubá.

Hoje seus filhos, por tradição que o amor contém. Levam seu nome além da serras mais além.

Terra querida. Simples e amiga

Que faz de todo cidadão Um novo irmão dos filhos seus.

"Terra de Luz", alvorada de amor, manhã de paz Entre as montanhas bonitas, a enfeitar Minas

Gerais.

Uma Trova do Rio de Janeiro/RJ

Edmar Japiassú Maia

O sonho é carga festiva nos trilhos das ilusões; o amor é a locomotiva

que vem puxando os vagões...

Um Poema de Capivari/SP

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

RIOS

(a Adalgiso Pereira)

Almas contemplativas! Vão rolando Por esta vida, como os rios quietos...

Rolam os rios, — árvores e tetos, Céus e terras, tranquilos, espelhando;

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Vão refletindo todos os aspectos, Num serpentear indiferente e brando; Espreguiçam-se, límpidos, cantando,

No remanso dos sítios prediletos;

Fecundam plantações, movem engenhos, Dão de beber, sustentam pescadores,

Suportam barcos e carreiam lenhos...

Lá se vão, num rolar manso e tristonho, Cumprindo o seu destino sem clamores E sonhando consigo um grande sonho.

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Chuvisco Biográfico do Poeta

Amadeu Ataliba Arruda Amaral Leite Penteado, poeta, folclorista, filólogo e ensaísta, nasceu em Capivari, SP, em 6 de novembro de 1875, e faleceu em São Paulo, SP, em 24 de outubro de 1929.

Fez o curso primário em Capivari e em 1892 foi para São Paulo para trabalhar no comércio e estudar. Assistiu algumas aulas do Curso Anexo da Faculdade de Direito, foi um autodidata, pois não concluiu o curso secundário.

Entrou para o jornal Correio Paulistano, órgão oficial do Partido Republicano Paulista (PRP). Com o apoio do jornal, Amaral publicou Urzes (1899), seu primeiro livro de poesia. O sucesso do livro lhe possibilitou exercer a função de secretário da Comissão Diretora do PRP durante o ano de 1905.

Nesse mesmo ano, Amaral brigou com a Comissão e dela se desligou, tornando-se, com isso, seu inimigo. Após cinco anos tentando se fixar em um emprego, Amaral conseguiu se empregar, em 1910, no jornal O

Estado de S. Paulo (OESP). Após entrar para o corpo de redatores e publicar Névoa (1910), sua segunda coletânea de poesias, Júlio de Mesquita, dono do jornal, convidou Amaral para participar das revistas A Vida Moderna e A Cigarra. Ambas as publicações mantinham laços editoriais com o grupo jornalístico OESP.

Durante toda a sua trajetória de vida, Amaral aproveitou-se da eficiente estrutura empresarial daquele grupo de empresas para conseguir novos postos de trabalho, lançar novos livros, coletar material folclórico e desenvolver contatos políticos.

Em 1917, Amadeu Amaral entrou para a Liga Nacionalista (LN) e decidiu reunir seus poemas publicados nas duas revistas citadas e lançar o livro Espumas, patrocinado pela A Cigarra. Cabe mencionar que, um ano após o lançamento do livro, morre Olavo Bilac.

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Não tardaria em crescer um movimento para fazer de Amadeu Amaral um imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). A campanha foi vitoriosa, visto que o escritor conseguiu ocupar a cadeira que havia pertencido a Bilac e que tinha como patrono Gonçalves Dias.

Amadeu Amaral concorreu como candidato pelo Quarto Distrito Eleitoral de São Paulo que abrangia, na década de 1920, as seguintes cidades do oeste paulista, a saber: São Roque, São José do Rio Preto, Porto Feliz, Monte Mor, São Sebastião da Grama, Raffard e Capivari. E foi, nessa cidade, que iniciou sua campanha, pronunciando, no Teatro Municipal, uma de suas mais famosas conferências intitulada O voto livre.

Amadeu Amaral chegou à cidade do Rio de Janeiro em 26 de janeiro de 1923, três semanas após ter encerrado a campanha de denúncias contra as fraudes eleitorais em Capivari.

Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, as universidades e cursos especializados.

Dedicou-se aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. “Dialeto caipira”, publicado em 1920, escrito à luz da linguística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe o vocabulário.

Visando à formação dos jovens, assim como Bilac incentivara o serviço militar, Amadeu Amaral procurou divulgar o escotismo, que produziu frutos, certa época no país.

Sua poesia enquadra-se na fase pós-parnasiana, das duas primeiras décadas do século XX. Como poeta, destacou-se pelo desejo de contribuir, com suas obras, para a elevação de seus semelhantes, em todas as suas obras, a ponto de seu sucessor, Guilherme de Almeida, ao ser recebido na Academia, ter intitulado o seu discurso: “A poesia educativa de Amadeu Amaral”, mas porque visava indiretamente ao aperfeiçoamento humano.

Por ocasião do VI centenário da morte de Dante, proferiu, no Teatro Municipal de São Paulo, uma conferência, enfatizando justamente os aspectos de Dante que exaltam a elevação do espírito humano através da Sabedoria. Também soube ressaltar as qualidades morais de Bilac no discurso de posse, mostrando-o como homem preocupado com os problemas da sua pátria e escritor que evoluiu em sua poesia para um grau maior de espiritualidade.

Morreu na cidade de São Paulo em 24 de outubro de 1929 de febre tifóide Obras: Urzes, poesia (1899); Névoa, poesia (1902); Espumas, poesia (1917); Lâmpada antiga, poesia (1924),

títulos que integram as Poesias, publicadas postumamente em 1931; Letras floridas, ensaio (1920); O dialeto caipira, filologia (1920); O elogio da mediocridade, ensaio (1924); Memorial de um passageiro de bonde, obra

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póstuma; Tradições populares, folclore (1948); Obras completas de Amadeu Amaral, com prefácio de Paulo Duarte (1948).

Fontes:

Academia Brasileira de Letras Leonardo da Costa Ferreira. Entre o político e o folclorista: memória e história sobre Amadeu Amaral. Re vista Outros Tempos. Volume 6, número 7, julho de 2009 - Dossiê História e Memória

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Belo Horizonte em Trovas (Parte I)

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Abel Lara O crime é uma ação nefanda, que aos poucos o ser degrada.

quem o comete debanda das normas de vida honrada.

† – Air Félix Da Costa

Quando sorrires na vida, pelo amor de um só momento,

não esqueças: despedida só traz sempre sofrimento.

Alair Almeida

Francisco, santo que faz renascer nos corações o puro bem: dá-me paz na paz de tuas lições.

Almira Guaracy Rebêlo

A ilusão de ser amado foi um erro que eu maldigo. Passei a vida ao teu lado, nunca estiveste comigo.

Aloísio Gentil Pimenta Saber viver de verdade e jamais ficar tristonho

é não permitir que a idade seja mais velha que o sonho.

†Alydio De Carvalho Silva

Meus longos anos de vida a natureza retrata,

mostrando a estrada vencida, nos meus cabelos de prata.

Aluízio Alberto Da Cruiz Quintão

Sonhos de quem muito anseia nesta sina de mortal

são pequenos grãos de areia na construção do ideal.

Amazilde Rehwagen

O que aquece a alma da gente é sempre a boa amizade,

que aclarando nossa mente traz também amenidade.

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Ana Ataíde Ferreira Da Silva No grande livro da vida,

seguindo os planos divinos, o ser vivo consolida

impenetráveis destinos.

Ângela Maria Lopes Lourenço Certa de que vencerá,

não vacile, sempre insista. Só assim descobrirá

o segredo da conquista.

Ângela Togeiro Ferreira O sentimento do amor, os homens todos nivela,

seja na alegria ou na dor, na riqueza ou na favela.

Antônio Augusto D´Almeida

Um juiz mostrando pena, pega a pena e sentencia…

A lei fria te condena. Eu, de pena, absolveria.

Antônio Couri Por não ser pai, não perdi

nem um pouco do meu brilho; pelo menos aprendi

a grandeza de ser filho.

Antônio Francisco Pereira Quem não tem desde menino

um horizonte na vida é qual um barco sem destino

voltando à ilha perdida.

† – Aprygio Nogueira A maldade se renova,

mas na UBT, sem favor, quem planta uma simples TROVA

colhe um alqueire de amor!

† – Armindo Santos Teodósio O elogio – força imensa de incalculável valor…

tem sabor de recompensa pra quem recebe o louvor.

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Auxiliadora De Carvalho E Lago Enfrento problemas meus, vendo a vida por um fio…

Seguro nas mãos de Deus, e venço o meu desafio.

Beatriz Cartaxo Cotta

A magia da esperança impulsiona o dia-a-dia,

minha mente não se cansa de forjar tanta alegria.

Benedito Machado Homem

Dizem que amor alimenta. (Que ditado sem valor!)

– Quanto mais o nosso aumenta mais tenho fome de amor!

Benete Judith Cândido

A primavera dos anos passa depressa, fugaz…

Surgem logo os desenganos que o outono sempre nos traz.

† – Carlos de Alencar Um espírito de escol,

que de virtudes é fonte, nos parece a luz do sol,

a despontar no horizonte.

Carlos Fernandes Portugal! Eis-me a ti unido na presença do passado,

quando escuto enternecido: -Nossa Senhora do Fado.

Carlos Ferreira Chaves

Seu sono traz o tormento de sonhar alto, tem medo;

não queira, em qualquer momento, revelar nosso segredo.

Carlos Roberto Fernandes

Revejo no meu diário este pesado refrão:

– só quem está solitário sabe a dor da solidão.

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Célia Maria Barbosa Rodrigues Se choro, se rio ou canto

quero o mundo transformar… O vácuo suga meu pranto, não tem eco o meu sonhar.

Célia Lamounier De Araújo

Numa gaveta ordenada, meus amores arquivei. Cada partida chorada

em saudade transformei.

Célius Áulicus Ninguém sabe em que dará tanto desmate e desmonte. Esse belo onde é que está?

onde é que está o horizonte?

Cely Maria Vilhena Falabella Duas mãos se separando no longo apito do trem,

são salmos que vão rezando e o pranto dizendo: Amém.

Clara De Assis Souza Guimarães Amor de mãe, sempre eterno,

não se pode contestar; O filho que é muito terno

ela tende a perdoar.

Clélia Rosa De Lima A música é terapia,

também remédio bendito. Ela possui a magia

que nos leva ao infinito.

Conceição Parreiras Abritta Hoje, no outono presente,

cada dia que me aflora vivo a festa do poente,

mas meus sonhos são de aurora.

Conceição Piló “Palácio da Liberdade” assim ficou nomeado, no ideal desta cidade

e na glória do passado.

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21

Cristian Maurício Guimarães Amor, em grande poder, ensoberbece a fraqueza, que esta não pode conter seu excesso de beleza.

† – Dina Mangabeira

No silêncio em que vivi de angústia e de solidão, eu nem percebi que, aqui,

em meu peito, há um coração.

Edelvais Campos Silva Seja lua cheia ou nova,

quarto minguante ou crescente, romântica, sempre aprova esse nosso amor ardente.

Edmilson Ferreira Macedo

Na minha mesa da sala, teu retrato é, na verdade, a imagem que mais me fala

no silêncio da saudade.

Else M. Souza Maia Saudade cruel tormento,

retorne ao meu corpo lasso, nem que seja um só momento, a impressão daquele abraço.

Eva Reis

Esse azar não mais porfia e o treze a fé bem merece, pois no céu, Santa Maria, num dia treze aparece.

† – Felisbino Cassimiro Ribeiro

(Euripo Barbacena) Meu São Francisco de Assis, dai-me o verso bem rimado;

quero sentir-me feliz, sem nenhum, de pé quebrado.

Fernando Lopes De Almeida Soares

Que melodia há na TROVA, cativante como a estrela,

tão antiga e sempre nova!… -Mas quão difícil fazê-la!

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† – Francisco Lúcio De Oliveira Não penses que sou feliz, só por me ouvires cantar.

É que da música eu fiz o meu jeito de chorar.

† – Francisco Pérsio Falabella

Minha mãe partiu tão bela, Deus a levou, entretanto,

eu me sinto perto dela pelas gotas do meu pranto.

Francisco Vieira Chagas

Viajei para voltar, mas algo lá me prendeu. Eu fui levado ao altar

e o meu amor se perdeu.

Geralda Majelita Borges Ladeira Na fronteira do passado,

a verdade eu traduzi… Foi um sonho mal traçado que louvei…hoje o esqueci.

Geraldo Tavares Simões Nossa amizade louvável é como a água da mina: - contínua, inesgotável, pura, clara, cristalina.

† – Graziella Lydia Monteiro

Pobre de quem, terra-a-terra, vive seu mundo tristonho,

sem o horizonte que encerra a fantasia do sonho.

Ida Dutra Sacramento

No grande mar desta vida, quando remamos ao léu, é preciso que presida a orientação lá do céu.

Ieda Marini Souza Oliveira

Ó minha mãe tão amada!… seu afeto e seu carinho

hão de guiar minha estrada até o fim do meu caminho.

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Ignocy Flávio Leite Galgo a vida, passo a passo,

numa sensata porfia. Não existe mais fracasso para aquele que confia.

Ilá Aragão

O relógio descompassa… Minha vida vai marcando.

Quanto mais o tempo passa, a velhice vai chegando.

Imaculada Catarina Silva

Sorriso e horizonte abertos, esta menina sapeca

faz babar “tolos” espertos e, sem querer, o homem peca.

Iolanda Lúcia Soares Gomes

Segredo se confessá-lo ao seu próprio coração,

não queira nunca torná-lo domínio da multidão.

Ione Taglialegna Depois da chuva bem fina,

a terra fria se cobre com o tênue véu da neblina até que o sol o descobre.

Irene César Botelho Paz todo mundo cobiça,

bem-estar, tranqüilidade. Paz é filha da justiça, inspirada na igualdade.

† -Isabel Monteiro Soares Quanto mais busco o horizonte,

que limita a minha vida, mais tenho rugas na fronte,

pela esperança perdida.

Ivone Mendes Cada página vivida,

feito a vida no garimpo, eis que é uma pedra que a vida

lapida passando a limpo.

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Ivone Taglialegna Prado Mesmo no inverno da idade,

ainda vivo à tua espera… Por isto, visto a saudade com traje de primavera…

Jacy Gomes Romeiro

O silêncio me amargura; não gosto da solidão. Prefiro ter a ventura

de um amor no coração.

João De Deus Mendonça Horizonte que deu brilho

a conquistas gloriosas, me orgulho de ser teu filho,

Capital das Alterosas.

João Evangelista Falcão Tal e qual, jogado fora… pelo vento…ao seu sabor,

vi-me tão só, naquela hora, tão triste!…Coisa do amor.

† – João Pereira Da Silva Numa trova canto a fama da História de Portugal,

que guarda um Vasco da Gama e um Pedro Álvares Cabral.

João Quintino Da Silva

O regalo de um amigo, meu cabaz de rima em flor, no soneto, encontra abrigo,

a parábola de amor.

José Bernardino Peixoto Fico às vezes meditando nas verdades do ditado:

– quanto mais estou amando, tanto menos sou amado…

† – José Capanema

A vida é um circo. Os artistas têm as glórias e os fracassos,

se faltam bons trapezistas sobram feras e palhaços.

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J.B. Xavier Cunhaporã - Uma história de amor

II

O LAGO ENCANTADO

Brincando n'água,traçando planos

No amanhã, Na pedra imensa descansa linda

Cunhaporã.

Os olhos negros, tal qual a noite Mergulham fundo

Naquelas águas, buscando a fuga Para outro mundo.

Tudo está calmo, a lua brilha

Lá dentro d'água, Trazendo à tona toda a tristeza

De sua mágoa.

Qual seu destino? que triste sorte A aguardava?

Tornar-se esposa, unir-se àquele Que não amava.

Assim nas noites de agonia Vinha contar

Sua sorte ingrata ao lago amigo E ao luar.

Nas águas calmas. claros espelhos

Se desfaziam, Lágrimas tristes, cheias de dor

Em si caíam.

A Lua e o Lago, então, amigos, A abraçavam,

E envolvendo seu corpo todo A consolavam.

Seus grandes olhos, seu corpo longo

Amorenado Brilhava à Lua, deixando o Lago

Apaixonado.

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Seu coração vibrante e terno Em si trazia

A esperança do amor que a ela Viria um dia.

E prometida a Ygarussú

Estava agora. O casamento se aproximava,

Chegava a hora.

Tão linda e bela, Cunhaporã Todos queriam,

E Ygarussú, bravo guerreiro Todos temiam.

Ele a queria, e mais que isso,

A desejava. Era por ela que guerras loucas

Ele travava.

Jassy, a lua, sua madrinha Que sempre ouvia

Cunhaporã e seu choro manso Se enternecia.

"Minha menina, que mal te aflige

Que choras tanto? Há muito vejo teus lindos olhos

Em triste Pranto...

Que é dos tempos que aqui cantavas

Sem teres mágoas? Deixando os peixes apaixonados

À tona d'água?

E teu sorriso, que a noite escura Iluminava?

E o viço louco que de ti, toda, Se exalava?"

"Minha madrinha" - disse chorosa -

"Será meu fim! Ygarussú , o Grande Chefe,

Prefere a mim!"

Então o ouviu-se uma voz maviosa Surgir cantando,

E a selva inteira parou a ouvir Yara chegando.

Surgiu do lago, de suas águas

Enluaradas, A bela Yara, pele morena

E aveludada.

A voz de anjo soou tão clara E enternecida,

Cantando o amor, a alegria, Cantando a Vida...

"Minha menina, a cada fim

Há um reinício...

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Saia de perto dessa beirada De precipício...

Jassy, a lua, aclara sempre

o teu caminho. E o lago amigo, se o quiseres,

Será teu ninho...

Não chores mais, o Bosque inteiro É teu amigo!

E onde fores, nesta floresta, Irei contigo...

Ygarussú é apenas força,

Ignora o amor. Nunca aprendeu como se trata

Uma bela flor...

Vai, minha menina, para a aldeia Repousar.

Jassy a lua, irá contigo Te iluminar...

O vento sopra de muito longe,

E traz no cheiro Um amor ardente rasgando um peito:

Gentil guerreiro!

Ledo cavalga, e vem dos pampas, Do lado sul,

Dos verdes campos, prados bonitos E céu azul...

Vai, minha menina, para a aldeia

Repousar, Que teu amor vem cavalgando

Sob o luar..."

* * *

E Cunhaporã, olhando Yara, Sorriu às imagens que a mente criara,

Pensando no belo e gentil cavaleiro. seria o amor que tanto esperava? Seria, afinal, o amor que chegava?

Sorriu e afastou-se em passo ligeiro.

Andava e sorria feliz e contente. Nos olhos o amor, incontido, latente,

No corpo o lume que a consumia. Na mente a infinda e terna espera

Lembrando das coisas que Yara dissera. Jamais sentira assim, tanta alegria.

Parou, estacando ao fim de um instante.

Ali à sua frente estava o gigante. Nos olhos um brilho estranho trazia.

Saiu de seus sonhos dos pampas do sul. Aquele à sua frente era Ygarussú .

Sentiu-se num instante tão só e vazia.

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O grande oyakã , sisudo estacara,

Sondando com o olhar o que a mente ditara. Sorriu num esgar um riso matreiro. Mãos calejadas em faces ardentes,

Rolaram dos ombros aos seios tão quentes, O corpo gigante vibrava inteiro.

A moça olhou para a lua tão clara,

Lembrou-se do lago e lembrou-se de Yara, E de como dissera estar sempre por perto.

Sorvida em abraços do forte guerreiro, Ouviu à distância o bote ligeiro

Da onça faminta naquele deserto.

Urros e gritos na mata ecoaram, Morte e agonia aos céus se elevaram

E a selva acordou com o ruído da luta. Cunhaporã bendisse sua sorte,

E viu mãos e garras ferindo de morte. Afastou-se correndo daquela disputa.

Foge criança. Depressa, menina! Yara te salva e Jassy te ilumina! E a voz maviosa ela reconheceu.

Abrindo caminho na mata com os braços , Rompendo os espinhos e mil embaraços, Á aldeia chegou com o desgosto só seu.

Mais tarde, a taba agitada e atenta, Ouviu o silêncio seguir a tormenta

Que a luta causara pelas cercanias. Ouviu o portão da aldeia se abrir,

E em meio ao negrume da noite surgir O grande Oyakã , que ferido, sorria.

Os dias passaram em festas e danças

Das tribos guerreiras e das vizinhanças E todos sorviam o amargo cauim. E Ygarussú, o gigante, cantava

Sua luta de morte, e como, com a clava, Pusera ao felino um rápido fim.

“Olhei para o lado e vi o felino!

As chamas nos olhos, o instinto assassino, E instantes depois caiu sobre mim.

Rasgou-me a carne, feriu-me por certo, Deixei-lhe, no entanto, o crânio aberto!

É esta sua pele. Que reine o festim!” …………..

continua… Quando chega o amor

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Folclore Brasileiro

Lenda do Mapinguari

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Sayonara Melo Mapinguari

Mapinguari Velho pajé

Sorrir no reboar do tempo Ao relento

Palavras jogadas ao vento Engolidas por sua boca monstruosa

Não é louco Não é louca Nem macho Nem fêmea

Mas gera um poema As palavras engolidas

São devolvidas sem muitas rimas Não faz seu gênero

Bancar a intelectual irritante Não faz mal Mapinguari Ao natural

Pra todos os gostos Um bicho grande

Bicho do mato Meio gente

Meio macaco Ou como dizem uns/alguns

Bicho-preguiça mais que grande Verdadeiro gigante

Voz atordoante de trovão Que se ouve longe

Um ser desordenado Desencontrado

Tem pés arredondados e virados Longos pêlos embaraçados

Feio de dar dó Não toma banho Fede pra danar Pior que gambá

Não respeita feriado Nem dia santo

E domingo Dia de descanso Para ele é um dia

“Em que também se come” Mapinguari

Garras afiadas Devorador de homens “Pega, mata e come” É pior que carcará Não morre nunca

Saiba já Mas tem ponto fraco

É no umbigo A parte sensível

Ou que tal uma baita Certeira

Paulada na cabeça Mas quem se anima

A tal proeza? Alto lá!

É melhor não duvidar

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Quê que há! Mapinguari

Sabe se cuidar O sujeito que for tentar

Irá fatalmente se arrepender Pois nem terá tempo de correr

Que dirá se benzer Fazer aos céus uma oração

Por obra de magia O corajoso dito cujo

Esquecer-se-á de tudo Ficará tonto Ficará mudo

Verá a noite crescer em pleno dia Há de esquecer-se de Deus

E da Virgem Maria Lenda do Mapinguari O Mapinguari é uma Lenda derivada de algumas Lendas dos Índios da Região Amazônica. Os caboclos contam que dentro da floresta vive o Mapinguari, um gigante peludo com um olho na testa e a boca no umbigo. Para uns, ele é realmente coberto de pelos, porém usa uma armadura feita do casco da tartaruga, para outros, a sua pele é igual ao couro de jacaré. Segundo esta Lenda, alguns índios ao atingirem uma idade mais avançada evoluiriam e transformariam-se em Mapinguari e passariam a habitar o interior das florestas passando a viver apenas no seu interior e sozinhos.

O Mapinguari emite um gritos semelhantes ao grito dado pelos caçadores. Se alguém responder, ele logo vai ao encontro do desavisado, que acaba perdendo a vida. A criatura é selvagem e não teme nem caçador, porque é capaz de dilatar o aço quando sopra no cano da espingarda. Os ribeirinhos amazônicos contam muitas histórias de grandes combates entre o Mapinguari e valentes caçadores. O Mapinguari sempre leva vantagem e os caçadores que conseguem sobreviver, muitas vezes ficam aleijados ou com terríveis marcas no corpo para o resto de suas vidas. Há quem diga que o Mapinguari só anda pelas florestas de dia, guardando a noite para dormir. Quando anda pela mata, vai gritando, quebrando galhos e derrubando árvores, deixando um rastro de destruição. Outros contam que ele só aparece nos dias santos ou feriados. Dizem que ele só foge quando vê um bicho-preguiça. O Mapinguari é o mais popular dos monstros da Amazônia. Seu domínio estende-se pelo Pará, Amazonas, Acre, vivificado pelo medo de uma população meio nômade que mora nas matas, subindo os rios, acampando nas margens desertas dos grandes lagos e lagoas sem nome. Caçadores e trabalhadores de todos os ofícios citam o Mapinguari como um verdadeiro demônio do Mal. Não tem utilidades ou vícios cuja satisfação determine aliança momentânea com os religiosos cristãos. É um matador por natureza. Por isso mesmo, Mata sempre, com singular precisão, infalivelmente, obstinadamente, quem

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encontra pela frente. Mata para comer. Descrevem-no como um homem agigantado, negro pelos cabelos longos que recobrem seu corpo como um manto, de mãos compridas, unhas em garra, fome insaciável, ou "canina" como é conhecida uma fome de tamanha envergadura. Só é vulnerável no umbigo. É crença universal a existência da vulnerabilidade umbilical dos monstros. Indica também que um dia nasceu de outro nascido, que é um ser vivente como todos os outros que habitam a terra, embora pertença a uma linhagem pouco compreendida. Em algumas regiões, também o Lobisomem, pode ser abatido pelo umbigo. O Mapinguari, ao contrário de outras entidades fabulosas, não anda durante a noite. Durante a noite, dorme. O perigo é de dia, a penumbra no meio das florestas fechadas que mal deixam passar a luz do Sol. Na obscuridade dos troncos de muitas formas o Mapinguari se destaca, surge bruscamente, para atacar e ferir. Mas não avança silencioso como seria a lógica. Vem berrando alto, gritos soltos, curtos, horríveis, que deixam suas vítimas atordoadas, sem ação. De longe os homens ouvem seus apelos terríveis. E fogem, sem olhar para trás. É como se o Mapinguari estivesse desafiando os corajosos para um encontro supremo, face a face. Esses gritos roucos e contínuos explicam os rumores naturais que a floresta produz e não se consegue de forma sensata explicá-los. Assim, sem uma explicação lógica para os muitos e difusos barulhos e murmúrios da densa e misteriosa mata, os

homens logo atribuem ao Mapinguari tal repertório sonoro. Origem Qual seria a origem do Mapinguari? Não parece muito antiga porque seu nome não está presente na lista dos cronistas coloniais. Aparece já nos tempos modernos, mais comumente nas narrativas dos seringueiros, nas lembranças dos récem-vindos da Amazônia. Cronistas famosos como o minucioso Stradelli, ou Tastevin, não registram sua existência nos vocabulários. Seu físico é quase uma descrição literal do Caapora, assim desenhado por Couto Magalhães: "Um grande homem coberto de pelos negros por todo corpo e cara, montando sempre um grande porco de dimensões exageradas, tristonho, taciturno, e dando vez por outra um grito para impelir a vara." Essa é a descrição do Caapora, onde o porco é o elemento não concordante com o Mapinguari. Já o Caapora de Gonçalves Dias, era um índio anão. O Mapinguari é, evidentemente, um Caapora desfigurado, sem alguns elementos que no passado autenticavam sua origem e atividade dentro das florestas. Guarda a estrutura, o grito, o corpo vestido de pelos. Também o seu habitat florestal, continuando a ser um mito das matas, conhecido especialmente por aqueles que nela vivem. Acreditam alguns índios Tuixauas que se trata da reencarnação viva de um antigo rei de sua etnia, que no passado habitava aquelas regiões.

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Como o Quibungo africano, o Mapinguari tem a posição anômala da boca, rasgada do nariz ao estômago, num corte vertical, cujos lábios estão sempre sujos de sangue. Depoimentos atestam que seus pés em forma de casco, são virados ao avesso, como o Curupira. É de origem recente e possivelmente uma variante do Curupira. Nenhum cronista do Brasil colônia ou império citam seu nome. Entre os seringueiros e moradores da floresta Amazônica é quase uma unanimidade. Alguns elementos de sua fisiologia e costumes foram com certeza tirados do Caipora ou Curupira. Mas não é de origem indígena, uma vez que há nele uma espécie de caráter punitivo de cunho religioso, coisa alheia aos aborígenes. O nome Mapinguari possivelmente se trata de uma contração de mbaé-pi-guari, a cousa que tem o pé torto, retorcido, ao avesso. O início da surpresa seria o rastro de forma estranha, circular, indicando justamente a direção oposta ao verdadeiro rumo. Posteriormente é que a imaginação criou a figura material, semelhante aos outros monstros. Quando ele apanha um caçador, mete-o debaixo do grande braço forte como aço, mergulha-lhe a cabeça na imensa bocarra e masca-o, isto é, come-o aos poucos, mastigando lentamente, remoendo. Em um ponto distancia-se do Lobisomem. Não há notícia de alguém poder se tornar Mapinguari. O Sr. Mário Guedes[2], pesquisador de mitos, informa que é crença entre alguns índios Tuixauas, escutou isso de um chefe indígena dessa etnia, que o Mapinguari era o

"antigo rei da região". Mas se há essa lenda, o Tuixaua só tomou a nova encarnação depois de morto. Mas, o Mapinguari é uma forma definitiva. Um dos traços visíveis da catequese católica é a intercorrência do resguardo aos dias santos e domingos. O Mapinguari escolhe quase sempre esses dias para suas aventuras predatórias. Caçador que encontrar matando caça nesses dias proibidos e de preceito, é homem morto. É opinião concreta entre os compiladores folcloristas, que nessa insinuação está a antiga influência da catequese de tentar incutir entre os selvagens obediência a uma das leis da Igreja, sob o jugo do medo. Documentário: J. da Silva Campos, em seu livro de contos tradicionais[3], relata o seguinte episódio. Dois seringueiros moravam na mesma barraca, em um "centro" muito afastado, lá naqueles fins de mundo. Um deles tinha por costume sair todos os domingos para caçar. O companheiro sempre lhe dizia: "Olha, fulano, Deus deixou os domingos para a gente descansar". Ao que ele retrucava: "Ora, no domingo também se come". E lá se ia para o mato, onde ficava o dia inteiro. Por muita insistência sua, o companheiro resolveu-se a ir fazer uma caçada com ele, certo

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domingo. Foram e perderam-se um do outro. O que não estava habituado a tais empreitadas andou muito tempo à toa, sem acertar o caminho e já não sabia mais onde tinha a cabeça, de atarantado. Foi quando ouviu uns berros medonhos e estranhos, que o encheram de pavor. Subiu mais que depressa numa árvore bem alta e ficou lá em cima, quieto, imóvel, para ver o que era aquilo. Os berros foram se fazendo ouvir cada vez mais perto, até que ele pôde testemunhar um espetáculo horrendo, que quase o põe louco de terror. Um Mapinguari, aquele macacão enorme, peludo que nem um coatá, de pés de burro, virados para trás, trazia debaixo do braço o seu pobre companheiro de barraca, morto, esfrangalhado, gotejando sangue. O monstro, com as unhas que pareciam de uma onça, começou a arrancar pedaços do infeliz e metia-os na boca, grande como uma solapa, rasgada à altura do estômago, dizendo em altas e terríveis vozes: "No domingo também se come!" Assim, o seringueiro viu a estranha fera engolir o infeliz caçador. E lá foi a besta horrenda pela mata, urrando num tom de voz que fazia estremecer até as próprias árvores: Pesquisa Científica David Oren, biólogo americano é gerente científico da Nature Conservancy do Brasil, já vem realizando pesquisas a respeito da veracidade dessa

lenda há muito tempo. Oren, que ouviu relatos de mais de 100 pessoas que dizem ter visto a criatura além de outras sete que afirmam tê-la matado, acredita que a lenda do Mapinguari tem sim uma base real: a Preguiça gigante. Segundo ele e também muitos outros criptozoólogos, o Mapinguari seria na realidade uma Preguiça Gigante que havia supostamente sido extinta a 10.000 anos atrás. Essas criaturas viveram na América do Sul e se assemelham muito as descrições do monstro amazônico. Dentre os gêneros que mais se assemelham ao Mapinguari, o Milodonte e o Megatério são os mais prováveis responsáveis pelos avistamentos pelo seu tamanho. O gênero Milodonte ou Mylodon, possuía uma característica muito interessante: Possuía uma espécie de armadura em sua pele, a Osteoderme. Essa característica se encaixa como uma luva nos relatos de que o Mapinguari teria uma pele semelhante a de um crocodilo que o protegeria dos tiros. Indígenas que teriam visto a criatura se mostravam impressionados quando apresentados a fotos de recriações de Preguiças Gigantes, alegando que aquele seria o monstro avistado por eles. Fontes: http://sitededicas.ne10.uol.com.br/folclore_mapinguari.htm http://www.sohistoria.com.br/lendasemitos/mapinguari/ http://noamazonaseassim.com/a-lenda-do-mapinguari/

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Solange Fiuza Cardoso Yokozawa Presença simbolista em Mario Quintana (Parte III)

É indiscutível que a sugestão como a pratica

Mallarmé não é a sugestão como a realiza Quintana. A poesia hermética, “privada” daquele, que opta deliberadamente por se afastar do leitor mediano para falar apenas a um público seleto, é outra coisa que a lírica “simples” e “popular” do poeta gaúcho, que escreve em uma época em que a poesia quer estabelecer uma base de comunicação com os potenciais leitores. Não obstante essa diferença, a sugestão permanece como forma de representação da “realidade” (objeto, sentimento) dominante em A Rua dos Cataventos e nas produções subseqüentes de Quintana.

Dessa opção dos simbolistas e de Mario Quintana por uma lírica sugestiva em lugar de uma lírica “fotográfica”, mimética, decorre a freqüência com que as reticências aparecem nos poetas simbolistas e nos quintanares. Esse recurso gráfico vai ao encontro da ânsia simbolista de evocar um mistério que fica além das palavras, de dizer o indizível, daí o emprego reiterado desse recurso por Verlaine e seus pares. Quintana, que lia apaixonadamente Antônio Nobre em sua adolescência, que se iniciou na lírica moderna sobretudo através dos simbolistas franceses, parece ter encontrado nas reticências o representante gráfico ideal de seu desejo de dizer o mínimo possível para que o leitor possa ler o máximo; desejo que pertence à

modernidade de uma maneira geral, ainda que os poetas modernos, sendo diversos, tenham reinventado caminhos igualmente distintos para persegui-lo.

Quintana, que define as reticências como “os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho...” (Quintana, 1994, p.65) e as considera “a maior conquista do pensamento ocidental” (Quintana, 1994, p.100), emprega-as largamente ao longo de sua poética. Para alguns, o advérbio excessivamente seria mais adequado para se referir à presença reiterada desse recurso gráfico nos quintanares. É o caso do poeta Carlos Nejar, que recorda o dia em que corrigiu as reticências de um poema que Mario teria lhe mostrado, dizendo: “o que está nas palavras não precisa da muleta das reticências! O mistério está é nas palavras!” (Nejar, 1994, p.5). Ao que Quintana retrucou: “Se elas existem, por que não usá-las?”. Nejar continuou evitando as reticências, Quintana continuou a usá-las e eles continuaram, diferenças poéticas à parte, amigos.

É verdade que as reticências em Quintana às vezes soam excessivas, integrando, ao lado dos diminutivos, das maiúsculas alegorizantes, aqueles “pontos cegos” em que incorrem todos os que se arriscam na perigosa arte de escrever, na perigosa arte de viver. Mas os defeitos também compõem o estilo, como olhos

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excessivamente grandes definem uma fisionomia. Os quintanares sem as reticências e outros “pontos cegos” talvez fossem expressões poéticas melhores... Mas não seriam os quintanares. Seriam outros cantares... Difícil imaginar a poesia de Quintana sem os três pontos que ficam vibrando na alma do leitor, sugerindo-lhe o que o poeta não disse, falando-lhe onde o poema silencia...

Para finalizar a leitura das tendências simbolistas em A Rua dos Cataventos, há que se assinalar a presença de Antônio Nobre nesse livro, onde há um soneto dedicado ao autor do Só e escrito “à maneira do mesmo” (soneto XI, 1989, p.10), e outro em que Quintana evoca o simbolista português (soneto XXIX, 1989, p.23). Há, indubitavelmente, confluências entre a primeira publicação de Quintana e o “livro mais triste que há em Portugal”: o tom melancólico e nostálgico; a linguagem simples, assinalada pelo timbre coloquial e por fragmentos “tirados” do popular; a obsessão pela recordação como mola propulsora da criação poética; e o emprego reiterado do diminutivo.

Malgrado as confluências entre o Só e o livro de sonetos de Quintana, as referências explícitas feitas a Nobre parecem constituir antes, conforme esclarece o próprio Mario, um “dever” e uma “devoção” ao poeta que o teria “descoberto” (Quintana, 1987, p.142) ainda menino do que necessariamente uma influência literária. Nobre foi o poeta que Quintana amou na sua pouco mais que meninice: “Anto querido, esse teu livro ‘Só’/Encheu de luar a minha infância triste!” (Quintana, 1989, p.10).

A homenagem ao “Anto” é o reconhecimento ao que a sua poesia representou na infância triste do menino doente que diz ter sido Quintana. A evocação do “Anto querido” é, sobretudo, a evocação da infância, do amigo morto que deixou interrompida a leitura do “Livro Santo” (soneto XXIX, 1989, p.23), de um passado que foi indelevelmente assinalado pela leitura do Só. Esta devoção ao que o poeta português teria representado na infância de Quintana é outra coisa que a admiração que ele dedica a poetas como Apollinaire, Rimbaud, William Blake, Cecília e outros que tais.

Em Canções, o espírito crepuscular que ditava a atmosfera da maioria dos sonetos de A Rua dos Cataventos é substituído pela alegria festiva do canto sazonal, pelo ritmo encantatório da tradição popular. Assim, ainda que o adjetivo “triste” apareça qualificando o poeta em “A canção que não foi escrita” (Quintana, 1989, p.32) e em “Canção azul” (Quintana, 1989, p.34) e ele se defina como “um homem fechado”, a quem o mundo tornou “egoísta e solitário” e cuja poesia “é um vício triste,/Desesperado e solitário” que ele faz “tudo por abafar” (Quintana, 1989, p.54), ainda que uma melancolia suave perpasse algumas canções, é uma “alegria atônita”, é a celebração lírica e musical da natureza, o clima lúdico das advinhas, a ternura do acalanto, o ritmo das cantigas da infância, o espírito de renovação da natureza, da vida e da esperança que dão o tom dominante desse segundo livro.

O espírito crepuscular não define o clima de Canções, mas persistem as notações intimistas, a

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valorização da subjetividade, do sonhar acordado, decorrentes da inadequação entre o poeta e o meio, de que é exemplar “A Canção da janela aberta” (Quintana, 1989, p.48-9). Nessa canção, o poeta, através da janela e “sem mais cuidados na terra”, “prega seus olhos no Céu”. Então, seu quarto se torna um barco e ele despede-se da “Cidade Maldita”, dos “Amigos” e vai sepultar-se no céu.

A valorização da subjetividade em poesia implica uma rejeição do caráter épico da lírica. O poeta não quer ser o porta-voz de uma cidade que lhe é “Maldita”. Mas, assim como em A Rua dos Cataventos, em Canções, ele “dá de ombros” para os grandes males que assolam a “Cidade Maldita”, mas não para os pequenos “acontecimentos” cotidianos que nela se desenrolam, para o “ritmo da rua”, de que são emblemáticas “Canção meio acordada” (Quintana, 1989, p.38) e “Canção de inverno” (Quintana, 1989, p.43).

Persiste ainda, como convenção simbolista em Canções, a linguagem sugestiva, de que constituem evidências gráficas as reticências e as maiúsculas alegorizantes. Mas o maior poder de sugestão das canções deve-se à musicalidade, que, perpassando os quintanares de maneira geral e Canções de modo especial, representa a herança simbolista mais evidente desse livro.

A musicalidade não é, como qualquer outra constante simbolista, de domínio exclusivo dos poetas do fim do século XIX. Ela constitui um fenômeno estilístico que, caracterizando o gênero lírico de

maneira geral, vai ser explorado ora com mais ora com menos intensidade. Os simbolistas, na sua ânsia de representar artisticamente as esferas inconscientes, encontraram na música, na sua capacidade de comunicar um sentido sem passar pela compreensão lógica, na sua força altamente sugestiva, um dos meios mais eficientes para apreender e representar a linguagem alógica, vaga, inefável do “eu-profundo”. Lançaram-se então, como em nenhum outro momento da história literária, à ambição de tornar a poesia em música. Libertaram a palavra da eloqüência e elegeram, como Verlaine (1968), “De la musique avant toute chose”.

Tendo como ponto comum a ambição de tornar a poesia em música, os poetas do século XIX abordaram essa questão de diferentes perspectivas, como adverte Ana Balakian (1985). Baudelaire, Mallarmé e Verlaine construíram conceitos diversos para a realização da música em poesia, de modo a estabelecer diferentes paradigmas para essa realização.

Baudelaire buscou nas palavras as mesmas propriedades sugestivas inerentes às notas musicais.

Mallarmé, o mais experimental dos simbolistas, procurou realizar, em poesia, a mesma estrutura da música; num desafio à imaginação e ao intelecto, simulou a estrutura de uma sinfonia, estimulando a verdadeira composição da obra musical: temas e variações, orquestração sinfônica da frase, pausas - espaço em branco - entre as imagens como entre as notas, a imagem verbal substituindo a frase musical.

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Já Verlaine acreditava que a poesia se transformava em música através de seu apelo ao ouvido, de modo que as associações de combinações especiais de palavras tornam-se música do mesmo modo que a harmonia de uma série de sons musicais. Enquanto Baudelaire acreditava que a poesia se fazia música através de sua função inerente e Mallarmé, através de seu efeito sobre as associações mentais, Verlaine pensava na música em termos de figuras de efeito sonoro. A maneira mais simples e mais lírica de Verlaine teria exercido, ainda segundo Ana Balakian (1985), uma influência maior na técnica dos poetas simbolistas. A musicalidade e o caráter intimista de Verlaine vai ser o som e o tom dominante dos simbolistas.

Em se tratando de Quintana, a musicalidade alcançada mediante assonâncias, aliterações, refrãos, rimas e outras repetições, remonta facilmente ao modelo traçado por Verlaine. Com o autor de Sagesse (livro que Quintana diz que gostaria de ter escrito), o poeta de Canções partilha a preferência pela música antes de tudo, pela nuança em lugar da eloqüência, pela poesia intimista em vez da intelectualista. Mas, diferentemente de Verlaine, Quintana escreve em uma época que não tem mais a ilusão da poesia pura. Assim, enquanto Verlaine (1968) prescreve, em sua “Art poétique”, “Fuis du plus loin la Pointe assassine,/L’Ésprit cruel et le Rire impur,/Qui font plurer les yeux de l’Azur” (“Foge para longe da Ponta assassina,/Do Espírito cruel e do Riso impuro,/Que

fazem chorar os olhos do Azul”), Quintana “contamina” a sua poesia com um “riso impuro”.

Desse riso impuro não escapa nem mesmo Verlaine.

Em A Rua dos Catavento, no soneto XXXI (Quintana, 1989, p.24), Quintana superpõe, muito apropriadamente, a imagem do outono com a de Verlaine, o poeta que fez de sua poesia um “outono do corpo” e, num misto de homenagem sincera e riso irônico, zomba da hostilidade do simbolista francês em relação às rimas[2].

No livro Canções, Verlaine é evocado, na “Canção do bar” (Quintana, 1989, p.42-43), juntamente com Rimbaud, Antônio Nobre, Villon e Pedro Cachaça, um tipo popular. No fim da canção, o poeta, como se dirigisse um pedido a um garçom, diz “E caninha pura,/Da mais pura água”, e se justifica, numa ironia dirigida à ambição maior dos simbolistas: “Que poesia pura,/Ai seu poeta irmão,/A poesia pura/Não existe não!” Quintana tem consciência de que a realização desse ideal simbolista, a poesia pura, implicaria o fim do poema, a página em branco, já que o poeta, para apreender a essência poética na concretude do poema, precisa recorrer à “impura linguagem dos homens”.

Da mesma forma que o poeta macula a poesia pura com o seu riso impuro, ele também impregna o seu canto com um ritmo pedestre e com uma melodia popular, de modo a fazer com que a musicalidade de sua poesia, ainda que se filie àquela de Verlaine, seja outra coisa que a música etérea e solene dos simbolistas.

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Valendo-se da conquista modernista de que a linguagem poética seja uma estilização da linguagem cotidiana, é a partir dos sons que percebe na fala diária que Quintana constrói sua melodia e sua harmonia. É o caso de “Canção meio acordada” (Quintana, 1989, p.42) e “Canção de Inverno” (1989, p.43), poemas que têm seu ritmo poético desentranhado do “ritmo da rua”, dos gritos dos pregoeiros. É o caso também de “Canção para uma valsa lenta”, poema em que a versão negativa do clichê “minha vida foi um romance”, síntese de uma vida marcada por muitos dramas, grandes infortúnios e conflitos, converte-se em foco de irradiação musical e em síntese da vida desprovida de grandeza do eu-lírico:

Minha vida não foi um romance... Nunca tive até hoje um segredo. Se me amas, não digas, que morro De surpresa... de encanto... de medo... Minha vida não foi um romance, Minha vida passou por passar. Se não amas, não finjas, que vivo Esperando um amor para amar. Minha vida não foi um romance... Pobre vida... passou sem enredo... Glória a ti que me enches a vida De surpresa, de encanto, de medo! Minha vida não foi um romance... Ai de mim... Já se ia acabar!

Pobre vida que toda depende De um sorriso... de um gesto... um olhar... (Quintana, 1989, p.53) Retomada no início de cada estrofe, a versão

parodística “Minha vida não foi um romance” alia-se a outros componentes rítmicos para sugerir, no nível sonoro do poema, o ritmo de uma vida que, sem surpresa, sem amor, sem enredo, assemelha-se ao ritmo monótono de uma valsa lenta. Assim, as rimas apenas em “edo” e “ar”, a ocuparem sempre a mesma posição no verso e a mesma distribuição na estrofe, as repetições trimembres, a aparição freqüente das reticências, que tornam o andamento do texto mais pausado, a opção pelos versos eneassílabos, que, pela sua extensão, conferem ao poema um tom mais baixo e mais lento que se este fosse vazado em metro menor, as sílabas tônicas incidindo sempre na 3ª, 6ª e 9ª sílabas poéticas (o que caracteriza a valsa é a existência, fixa e inalterável, de um compasso de três tempos), tudo isso, aliado ao “sentido” do poema, sugere, no nível rítmico, a monotonia da vida do eu-lírico, a qual, como a valsa, parece não mudar de compasso.

continua…parte final ______________

Solange Fiuza Cardoso Yokozawa, doutorou-se em Letras, área de concentração Literatura Brasileira, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), realizou mestrado em Letras e Linguística, área de concentração Literatura Brasileira, na Universidade Federal de Goiás (1995) e

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graduou-se em Letras na Faculdade de Filosofia Cora Coralina (1991). É profesora da Universidade Federal de Goiás desde 2002, onde atua em nível de graduação e pós-graduação, mestrado e doutorado. Desenvolve estudos sobre poesia brasileira moderna e contemporânea. Coordena o projeto "Poesia brasileira contemporânea e tradição", financiado

pela FAPEG. Desenvolve estágio pós-doutoral na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal, com projeto intitulado "Reconfigurações da poesa lírica em Cesário Verde e João Cabral". Entre várias outras publicações, é autora do livro "A memória lírica de Mario Quintana" e coorganizadora do livro "O legado moderno e a (dis)solução contemporânea".

Estante de Livros

Maria Albertina Dordio:

Lembras-Te Mãe?

O Correio trouxe-nos mais uma preciosidade literária, aliás, pela maneira compreensível como escreve, a mensagem da poesia e não só de Maria Albertina Dordio entra facilmente no nosso coração. Este seu livro, um espaço de afetos e de memórias de infância, tem sem favor lugar em toda boa Biblioteca. Deste livro intitulado “Lembras-Te Mãe ?”, um poema;

Os Galegos

O jantar terminou e, na travessa,

Há ainda comida a gritar Pelas bocas famintas que, à pressa,

Acorrem quando as vou chamar.

São muitos e não têm que comer! São muitos e não têm que vestir!

Andam magros, descalços, a sofrer, São tristes,nem sequer sabem sorrir.

Lá vêm com o prato aceitar,

Num alvoroço grande,com esperança De poderem na sopa saciar

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Aquela fole adulta de criança.

A boca pouco afeita ao sorriso, Abre-se sem sorrir, num feio esgar… O olhar, sem estrelas, com preciso Apenas de alimento, pra brilhar.

A sopa cobre todo o barranhão

Que dois ou três agarram, com cuidado, Não vá algum deixá-lo ir ao chão…

Nem lembram de dizer, –“muito obrigado”.

Recolhendo a casa, em algazarra, Na ânsia impaciente de comer,

Deixam-me a mim, ficar na triste amarra Da injusta razão de tal sofrer.

Fonte:

Texto enviado por Lino Mendes (Montargil/Portugal)

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