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ALMUNITA DOS SANTOS F. PEREIRA A VIDA EM SEMILIBERDADE UM ESTUDO SOBRE ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI Mestrado em Psicologia da Educação Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2007

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  • ALMUNITA DOS SANTOS F. PEREIRA

    A VIDA EM SEMILIBERDADE

    UM ESTUDO SOBRE ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI

    Mestrado em Psicologia da Educao

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    2007

  • II

    ALMUNITA DOS SANTOS F. PEREIRA

    A VIDA EM SEMILIBERDADE

    UM ESTUDO SOBRE ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI

    Dissertao de Mestrado apresentada Banca Examinadora do Programa de Estudos Ps-Graduados da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao: Psicologia da Educao, sob a orientao da Prof Dr Heloisa Szymanski

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    2007

  • III

    Banca Examinadora

    ------------------------------------------------

    ------------------------------------------------

    ------------------------------------------------

    Dissertao defendida e aprovada em ____/____/_____

  • IV

    Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo:

    Total ou parcial desta Dissertao por processos de fotocopiadoras ou

    eletrnicos.

  • V

    Aos adolescentes e funcionrios da Febem com os

    quais construmos a histria.

  • VI

    Agradecimentos

    A Deus pela oportunidade de poder realizar este trabalho.

    minha famlia, ao meu companheiro e esposo Naum e meu querido filho Andr

    que esto comigo em todos os momentos.

    Minha Professora e Orientadora Dr Heloisa Szymanski pelo respeito, cuidado e

    pacincia, por me auxiliar a descobrir meu verdadeiro caminho para a realizao

    deste trabalho.

    Professora Dr Abigail Alvarenga Mahoney que no primeiro momento deste

    estudo me orientou.

    Estimada Professora Dr Henriette T. P. Morato Coordenadora do Laboratrio

    de Estudos e Prtica em Psicologia Fenomenolgica Existencial-LEFE da

    Universidade de So Paulo-USP, pelas valiosas contribuies.

    Capes pela bolsa de estudos.

    Febem por me dar oportunidade de realizar este trabalho.

    Ao diretor Cledemir de Castro Rego junto com a equipe de funcionrios.

    Assistente Social e amiga Maria Clia pelas preciosas discusses, colaboraes

    e sugestes.

    Ao simptico casal Lgia e Vitor pelas preciosas contribuies auxlio e reviso.

    s minhas colegas de curso Cidinha e Cristiane.

    minha amiga e colega de curso Flvia pela fora e sbios conselhos.

    Aos meus colegas de trabalho, Brunini e Jocilene pelas vlidas sugestes.

    Irene e Helena pela ateno.

    Finalmente, a todos os meus amigos e colegas de curso e trabalho.

  • VII

    Resumo

    O presente estudo teve como objetivo, num primeiro momento, narrar as

    experincias e as emoes vivenciadas por mim, enquanto funcionria da

    Febem/SP, tendo esta como pano de fundo para situar a pesquisa. Nele,

    apresento um relato do cotidiano e da convivncia com os adolescentes em

    conflito com a lei, em cumprimento de medida socioeducativa de internao,

    transpondo muros, grades e portes, revelando as facetas de um mundo ainda

    pouco conhecido.

    Num segundo momento, o trabalho dedicou-se ao estudo sobre os

    adolescentes em conflito com a lei, em cumprimento de medida socioeducativa de

    semiliberdade, caracterizando a vida cotidiana dos adolescentes nela inseridos,

    buscando compreender e identificar as percepes e experincias vividas,

    investigando como para eles conviverem com esta medida: ora liberto, ora sem

    liberdade. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada em uma unidade da

    Febem, na qual participaram trs adolescentes, com idade entre 16 e 17 anos,

    que estavam inseridos nesta medida. A entrevista individual foi o principal

    instrumento para a coleta de dados.

    As anlises dos dados mostraram que, embora a medida possibilite sadas

    externas e convivncia familiar nos fins de semanas, os adolescentes vivem

    momentos de angstia e stress, em funo das normas e regras impostas. Apesar

    das dificuldades, eles adotam o discurso que as normas vigentes so necessrias

    para a sua ressocializao e deixam entrever ambigidades e contradies quanto

    s suas escolhas futuras. O consumismo aparece como principal motivo para

    delinqncia. Os preceitos da medida so percebidos, por eles, como algo que

    impede a liberdade e a satisfao dos desejos, e a vulnerabilidade como impulso

    para seu ingresso no meio infracional. Para os jovens entrevistados, o desafio o

    futuro, que, para eles, est vinculado satisfao dos desejos de consumo, porm

    distante da realidade e das condies socioeconmicas.

    Palavras-Chave: adolescentes e FEBEM; adolescentes e semiliberdade; adolescentes em conflito com a lei; adolescentes e medidas socioeducativas.

  • VIII

    ABSTRACT

    In the first part, the present study had as a goal to tell the experiences and

    emotions I lived when I was an employee of Febem/SP. Having this institution as

    background to place the research. These experiences and emotions reveal the

    everyday life of the adolescents in conflict with the law in fullfilment of

    socioeducational measures. By telling all this, I tried to overcome the walls and

    gates of Febem, showing a world not well-known to outsiders. In the second part,

    the research was dedicated to the study of the everyday life of adolescent in

    conflict with the law in fullfilment of semi liberty socioeducational measure of

    internment. This discussion aimed at, by analyzing the adolescents speech,

    understanding his experiences and emotions and investigating how the adolescent

    deals with the measure.

    This is a qualitative research and it was done in a Febem institution. Three

    adolescents took part of it. They aged from 16 to 17 and were in conflict with the

    law in fulfillment of socioeducational measure. The individual interview was the

    main instrument to collect data. The data analysis have showed that, in spite of the

    fact that the socioeducational measure allows the adolescents to go out and to visit

    the family on the weekends, the adolescents keep on living moments of anguish

    and stress due to the norms and imposed rules. Despite the difficulties, they say

    that the effective norms are necessary for their re-socialization; besides, they

    show, during interview, ambiguities and contradictions in relation to their future

    choices. The consumption culture emerges as the main reason of the juvenile

    delinquency. They perceive the rules of the measure as a penalty that restrict the

    freedom and the satisfaction of their desires, and the vulnerability is the source to

    make them break the law. For the interviewed adolescents the challenge is the

    future, which is linked to the satisfaction of desires of consumption. However,

    satisfying these desires is almost impossible for these adolescents due to their

    social economic status.

    Key-Words: adolescents and Febem; adolescents and semiliberty; adolescent in conflict with the law; adolescents and socioeducational measures.

  • IX

    Liberdade nada mais do que uma

    cela mais espaosa...

    Texto gravado de um muro de um conjunto residencial popular da

    periferia da zona leste.

  • X

    ...A Febem est cheia porque existe um

    rombo social aqui fora, do qual no

    conseguimos dar conta...

    Henriette Morato

  • XI

    SUMRIO

    Apresentao...................................................................................................01

    Captulo l

    1.1 O Incio ....................................................................................................... 02

    1.2 A Senhora da pedagogia............................................................................ 08

    1.3 Os trabalhos pedaggicos.......................................................................... 14

    1.4 A transferncia para Franco da Rocha ...................................................... 17

    1.5 Franquinho............................................................................................... 21

    1.6 A Escola ..................................................................................................... 24

    1.7 A semiliberdade.......................................................................................... 35

    Captulo ll 2.1Mtodo............................................................................................................39 2.2 Entrevista semi-aberta...................................................................................40 2.3 Procedimentos.............................................................................................. 42

  • XII

    Captulo lll 3.1 Entrevista com Samuel..................................................................................45 3.2 Sntese analtica da entrevista.......................................................................53 3.3 Entrevista com Mateus...................................................................................55 3.4 Sntese analtica da entrevista.......................................................................59 3.5 Entrevista com Douglas.................................................................................60 3.6 Sntese analtica da entrevista......................................................................68 3.7 Sntese geral das entrevistas. ......................................................................69 Captulo lV 4.1 Discusso.....................................................................................................72 Algumas Consideraes.....................................................................................81 Referncias Bibliogrficas..................................................................................88

    Anexos

    Anexo l Caractersticas da Semiliberdade........................................................92

    Anexo ll Introduo ao Plano Estadual de Medidas Socioeducativas..............95 Anexo III Devolutiva das Entrevistas.................................................................97 . Anexo IV Termo de consentimento livre e esclarecido.....................................98

  • 1

    Apresentao

    Este trabalho fruto e resultado de um desejo, que foi possvel ser realizado

    atravs da PUC/SP por meio do curso de ps-graduao em Educao: Psicologia

    da Educao. Confesso que, na idia inicial deste trabalho, no tive a inteno de

    relatar a vivncia e as experincias trabalhando com os adolescentes em conflito

    com a lei em Unidades da Febem.

    Foi no exame de qualificao, por sugesto e orientao das professoras,

    que decidi relatar um pouco desta histria que culminou no primeiro captulo,

    desta dissertao. Dentro da infinidade de riquezas percebidas na Febem, poderia

    escolher outro tipo de estudo, mas neste momento resolvi realizar esta pesquisa

    com os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativas de

    Semiliberdade, pois, atravs da vivncia com eles, percebi os conflitos e as

    dificuldades vivenciadas durante este processo. A partir desta problemtica, vrias

    questes se puseram diante de mim sobre o modo de como eles vivem, como

    este ir e vir entre as sadas externas e a volta para a Casa Comunitria.

    Este estudo dedicou-se a compreender como viver em Semiliberdade,

    atravs da escuta dos adolescentes por meio de entrevistas realizadas com eles.

    Num primeiro momento, o trabalho dedicou-se a narrativa da pesquisadora, que

    conta um pouco de sua histria trabalhando na Instituio, fato que a levou ao

    interesse para a realizao deste estudo. O segundo momento trata do mtodo

    utilizado para a realizao do mesmo, o terceiro traz as falas dos adolescentes, as

    anlises e as snteses das entrevistas e, o quarto captulo, a contribuio de

    alguns autores que tratam sobre a adolescncia e a delinqncia juvenil.

  • 2

    Captulo l

    1.1 O Incio

    H 06 anos, sou funcionria da Febem paulista com o cargo de

    Coordenadora Pedaggica. Meu contato com adolescentes em conflito com a lei

    teve incio na Cadeia Pblica Trs de Pinheiro (Decap), conhecido como Cadeio

    de Pinheiros, que funcionou como Unidade emergencial, quando a antiga Febem

    Imigrantes foi desativada.

    Ao descer do nibus e passar por muros e revistas uma outra realidade me

    esperava. Um mundo sombrio, cinza e cruel, construdo por concreto, grades,

    seguranas e portes. Paredes escuras, pintadas com marcas do desespero, da

    malandragem e da solido.

    Os primeiros dias de trabalho foram bastante difceis. Sentia angstia,

    percebia que aquele lugar era de um submundo desconhecido e tenebroso, tinha

    a sensao de que aqueles adolescentes pediam socorro, todos de uma s vez.

    Olhares vagos, sorrisos apticos, cabeas baixas e mos para trs.

    Meus sentimentos se confundiam entre medo e compaixo. Tive dvidas se

    voltaria no dia seguinte. No Cadeio, o clima era diferente, o sol parecia no

    brilhar, os dias eram frios e tinham ares de estar sempre a entardecer.

    Cerca de 160 adolescentes em medida de Internao Provisria (Art. 108

    do Estatuto da Criana e do Adolescente - ECA) ocupavam o prdio, que era

    dividido em quatro alas: A,B,C e D; cada uma com 40 adolescentes.

    O Cadeio tinha caractersticas de um caldeiro, aquecido e borbulhando

    toda hora, ns no parecamos gente. Funcionrios e adolescentes eram uma

  • 3

    massa confusa e ao mesmo tempo distinta, afinal, naquela poca funcionrio era

    smbolo de comando e poder. Autoridades e subordinados se misturavam em um

    mesmo espao, presos no mesmo lugar.

    Muros altos, alambrados, concertinas1, ces de guarda. Foi preciso alguns

    dias para eu assimilar que estava trabalhando ali, e para eu entender a rotina e

    funcionamento da Instituio. O trgico avesso do mundo2 se revelava ao vivo e

    a cores. A Febem se apresentava como desafio.

    s vezes, tinha a impresso de que aqueles adolescentes no eram gente,

    pareciam animais ferozes, prontos para atacar, e, ao mesmo tempo, fragilizados,

    enjaulados e dominados. Para qualquer tipo de movimentao que necessitasse

    sair do ptio, a mesma ordem: cabea baixa e mos para trs.

    O ptio no Cadeio era o espao central de cada ala, calada por cimento,

    cercada de paredes e grades, e possua uma nica sada, pela qual os

    adolescentes s passavam quando iam para atendimento que necessitasse de

    sada externa, tais como: atendimento psicolgico e social, audincia no Frum,

    escola ou alguma atividade pedaggica pr-estabelecida.

    Era necessria vigilncia constante para no ser influenciada a ponto de

    repetir o mesmo comportamento que era exigido dos internos. Por algumas vezes,

    surpreendi a mim mesma com a cabea baixa e mos para trs.

    1 Arame pontiagudo enrolado que colocado em cima do muro. 2 AUN, H. A. Dissertao de Mestrado de Trgico Avesso do Mundo. Narrativas de uma Prtica Psicolgica numa Instituio para Adolescentes Infratores. USP 2005.

  • 4

    Vivenciei um quadro pintado pela lei do silncio, tragado pelo clice amargo

    de no poder falar, que desce garganta abaixo, revelando-nos caractersticas de

    um mundo que o mundo desconhece.

    O rdio era objeto essencial, servia para informar o tempo, o dia e as horas,

    indispensvel recurso que todas as alas utilizavam. As programaes e msicas

    chegavam a todos os adolescentes. O pagode estava em alta e era a msica mais

    solicitada e cantada entre os internos.

    Nos x3 havia uma espcie de corda chamada de Teresa, feita com folhas

    de papel higinico tranadas de forma artesanal, que permaneciam acesas e

    queimavam devagar por aproximadamente 15 a 20 dias e serviam para os

    adolescentes acenderem os cigarros sem necessitar pedir brasa4 para os

    funcionrios. O cigarro ajudava a esquecer a nia da tranca5 , o cheiro era pouco

    agradvel, por no haver condies suficientes para a higienizao necessria

    dos espaos e toalete dos internos.

    Uma tenso constante permanecia e se acentuava todo dia. Funcionrios

    se desdobravam para minimizar a falta de recursos e traziam, por conta prpria,

    bolas, fitas de vdeo e cds para promoverem algum tipo de atividade.

    Adolescentes ociosos, confinados e escondidos atrs de grades, tentando

    de alguma forma passar o tempo, que passava devagar, quando muitas vezes no

    tinham nem como passar.

    3 Cela. 4 Isqueiro. 5 Loucura, ansiedade por estar preso.

  • 5

    Funcionrios e adolescentes; amigos e inimigos, ao mesmo tempo. A regra

    era estabelecer vnculo com os internos e tambm manter distncia. A observao

    que se fazia era que nunca se sabe o que se passa na cabea de um adolescente

    infrator, portanto, nunca se deve dar s costas para ele.

    De um lado, o adolescente tambm necessitava do vnculo com os

    funcionrios, porm, tinha que ser cauteloso para que os demais internos no o

    caracterizassem como passarinho de funa.6 Por outro lado, o funcionrio no

    podia ter certa amizade com os internos, para tambm no ser classificado pelos

    demais funcionrios como paga madeira de ladro 7 .

    Rivalidade, sutil e maquiada, permeava as relaes, que se mantinham

    necessrias como lei de sobrevivncia, tanto para os adolescentes, quanto para

    os funcionrios. Ao mesmo tempo, esta rivalidade se revelava clara e eminente,

    quando ouvamos as histrias contadas por ambas as partes. Ao conversar com

    um funcionrio, o mesmo comeou contar:

    , senhora, est vendo estas cicatrizes? Foi na rebelio.

    Quando olhei, cerca de uns quinze moleques estavam

    vindo para cima, escapei porque dei uma de maluco:

    peguei uma cadeira e sa arrebentando quem estava na

    frente, s vi moleque caindo, mas no dava tempo nem

    de olhar para trs. Fui para o hospital, mas no sei

    quantos tambm mandei para l.

    Um outro interrogou:

    Est vendo eles bonzinhos assim?.

    6 Adolescente que passa informaes para funcionrios. 7 Funcionrio que ajuda ou auxilia adolescentes.

  • 6

    E respondeu:

    S porque esto presos, na hora do levante, eles nem te

    reconhecem.8

    No incio, os adolescentes nos intimidam com um olhar desafiador, avaliam

    nossa postura e reao, procurando de alguma forma testar para saber quem

    somos. Quando passaram a conhecer-me uma das primeiras frases foi:

    , senhora, aqui a gente tem que pensar bem no que

    fala, no que pergunta e no que responde, a gente aqui

    arrastado9 por nada, tudo motivo para levar couro10

    Outro interno assim se expressou:

    Funcionrio no amigo de menor no, senhora, se

    engana o maluco que pensar assim11.

    A tenso que existia dentro da Instituio no ficava apenas dentro dos

    seus muros. Havia muitos casos de funcionrios com quadros depressivos,

    problemas com alcoolismo, tabagismo, transtornos emocionais e psiquitricos.

    Em relao aos internos, a tenso deixava-os a cada dia mais revoltados, o

    consumo de cigarro era bastante elevado, tornando-se alvio ao mesmo tempo em

    que ajudava aquecer as idias12 .

    Histrias e situaes colaboravam para nossa carreira na Instituio e

    serviam como teste de resistncia para os novos funcionrios: algumas pessoas,

    8 As trs falas acima so falas de funcionrios. 9 Ser levado para apanhar. 10 Surra. 11 Fala de adolescente. 12 Pensar, manter a calma, equilibrar-se emocionalmente.

  • 7

    que entraram na Febem, saram para o almoo e at hoje no voltaram para o

    trabalho. Na Febem o barato louco e o processo lento13.

    Percebi que a cultura da humildade prevalecia entre os jovens, que o aperto

    de mo, um cumprimento, tem valor simblico e significativo de humildade.

    Utilizei-me deste recurso para me aproximar. O dilogo comeava com um bom

    dia, boa tarde, um aperto de mo.

    No incio no entrei diretamente nos ptios, mas ficava na entrada olhando

    aos poucos. Quando percebia que alguns adolescentes j me haviam visto, me

    aproximava. Grande parte dos adolescentes quando conversavam comigo,

    falavam de arrependimento, no diretamente pelo ato infracional, e sim pelo

    constrangimento e vergonha que passavam as mes nos dias de visita.

    As visitas tm que tirar toda a roupa e fazer agachamento para verificar se

    trazem objetos no interior do corpo, soltar os cabelos e, s vezes, trocar suas

    roupas e sapatos por camisetas, calas e chinelos oferecidos pela Instituio,

    quando seus trajes no esto de acordo com as normas e regras da Unidade.

    Os adolescentes conversavam e contavam as mais variadas e mirabolantes

    histrias. Tambm falavam dos seus sentimentos. Um deles assim falou:

    Olha, senhora, nunca queira ver o seu filho em uma

    situao desta, preso, sem liberdade, sofrendo. A gente

    sofre, no por ns, mas porque a gente sabe que a

    nossa me sofre muito mais do que ns.14

    13 Frase utilizada tanto por funcionrios ou adolescentes que caracteriza as dificuldades e a rotina na Instituio. 14 Fala de adolescente interno.

  • 8

    Febem o lugar onde o filho chora e a me no v.15

    Um outro confessou:

    , senhora, estou preso, mas no me arrependo de

    nada que fiz. Participei de um assalto e recebi minha

    parte, e sei, que quando sair daqui, posso comprar

    minha moto, roupas e ainda vou ajudar minha me.16

    A figura materna objeto sagrado. A me smbolo de valor e respeito

    para os adolescentes internos, conceito que se justifica atravs de sua presena e

    participao no processo de recuperao de seus filhos, seja nas delegacias, nos

    Fruns ou nos dias de visita. Na maioria das vezes, a me que trs o jumbo17,

    que leva as guloseimas que o filho gosta, que vai conversar com as psiclogas e

    assistentes sociais, em busca de melhoria para seus filhos. Me sangue do

    sangue.18

    1.2 A Senhora da Pedagogia

    Ao passar pelas alas, os adolescentes s vezes me chamavam e

    perguntavam: Senhora, que horas so?19. As horas eram apenas um pretexto

    para iniciar uma conversa.

    Apesar das dificuldades, percebia que estar ali j tinha sentido, que estava

    me identificando com o trabalho e que os conhecimentos ali adquiridos eram ricos

    15 Frase utilizada, tanto por internos como por funcionrios, para caracterizar o sofrimento vivido dentro da Instituio. 16 Fala de adolescente interno. 17 Sacola com guloseimas que a me do interno leva no dia da visita. 18 Fala do interno que valoriza a me, como figura que vale mais que a prpria vida. 19 Pergunta de adolescente.

  • 9

    e exclusivos. Gostava de conversar com os jovens, de ouvi-los contar seus planos,

    suas aventuras, histrias que geralmente se resumiam na questo da posse, de

    ter e poder ser.

    Causava-me inquietao a forma como os adolescentes encaravam a vida,

    a morte e o perigo. Muitas vezes tentava alert-los para o risco de levar um tiro ou

    acidente, mas geralmente as respostas eram as mesmas;

    Ah,senhora, a adrenalina forte; a gente vai preparado

    para a fita20 dar certo, mas se o trampo21 sair errado, a

    casa cair e chegar nossa hora, fazer o qu?22

    O que observo nos adolescentes, em conflito com a lei, que muitos

    buscam satisfazer seus sonhos de conquistas e aventuras, com aes reais, cujos

    efeitos e resultados so negativos.

    O fantasma da morte aparentemente no tem papel intimidador ou

    assustador, o que vale a adrenalina, tornar real o imaginrio, ultrapassar,

    surpreender, tanto a si quanto a seus pares.

    Tnhamos urgncia em iniciar as atividades pedaggicas no Cadeio.

    Verificando as possibilidades, o pouco espao e o material existente e disponvel,

    juntamente com outra funcionria, iniciamos a oficina de leitura, utilizando livros e

    gibis. Fazamos os kits, que eram relacionados e distribudos por cela.

    Os coordenadores de ala so as pessoas responsveis pela equipe dos

    demais funcionrios, pela manuteno e por toda a rotina e andamento da

    20 Plano. 21 Trabalho. 22 Fala de adolescente.

  • 10

    Unidade. Junto com eles colaboramos com a oficina de cartas, direcionando a

    atividade para a rea pedaggica. Nesta atividade distribuamos lpis, borracha e

    papel para os internos. Aps, lamos para verificar o contedo, selvamos e

    colocvamos as cartas nos correios. Tambm escrevamos as cartas para os

    adolescentes que no eram alfabetizados. Pelo trabalho que desenvolvia, fiquei

    conhecida como a Senhora da Pedagogia. Ainda tenho em memria e em

    anotaes pessoais alguns contedos das cartas:

    Me, este lugar maldito e mal assombrado, sinto

    demnios descer e subir na minha cama a noite inteira

    (...)

    (...) Tenho pensado e procurado uma maneira de me

    livrar deste lugar, minha vida pensar, pensar. (...)

    (...) Muitas vezes choro calado (...)23

    Um salve para todos!

    Vocs gostariam de saber onde o inferno? O inferno

    aqui. A gente tem que esquecer para sobreviver (...)

    (...) Fala para o Tiago no se envolver com a turma a,

    para no vir parar aqui. Eu sei que o Tiago fraco das

    idias e se ele cair aqui, ele enlouquece (...)24

    A atividade de escrever cartas era a mais valorizada entre os internos. Para

    muitos que no tinham visitas, era o nico meio de contato externo. Em muitas

    cartas, percebamos o desespero e o sofrimento que alguns internos relatavam

    sentir, quando deixavam pingar lgrimas e molhar o papel; coraes vermelhos 23 Carta 1. 24 Carta 2.

  • 11

    eram pintados manchados de sangue, com frases como me eu vou voltar, eu te

    amo. me estou preso, mas meu corao est livre para te amar. Outros,

    demonstravam suas ansiedades atravs de desenhos, que se traduziam em cenas

    com eles prprios abraando a famlia. Desenhavam mos com correntes

    quebradas, outros se projetavam, ultrapassando as grandes muralhas do

    Cadeio.

    As correspondncias explicitavam o amor e a grande ligao com as mes,

    a figura materna era o principal agente provocador de expresses de emoes e

    sentimentos.

    Em determinado dia, um adolescente, que estava chegando na Unidade,

    me viu sair do meu carro. Aps alguns dias, durante as atividades, chamou-me:

    Senhora!. E me interrogou: A senhora tem um carro no mesmo? E

    continuou:

    uma pick-up prata. Senhora seu carro um carro

    muito visado, um carro bom de troca, mas se

    acontecer alguma coisa com o seu carro, a senhora s

    me passa a placa, porque eu conheo os pontos de

    desmanche de So Paulo e tem um pessoal que eu

    tambm conheo que localiza no mesmo dia para a

    senhora e no mesmo dia ele volta para sua mo.

    Depois explicou porque eu poderia acreditar em suas palavras, contando

    em detalhes a organizao e funcionamento dos desmanches. Agradeci-o pela

    preocupao e retornei s minhas atividades, refletindo sobre a fala daquele

  • 12

    adolescente. Pensava comigo: como pode, que mundo este? Compreendi que

    aquele adolescente me oferecia o melhor que tinha: a proteo gratuita.

    Comeando a entender a rede que constri, organiza e mantm a

    criminalidade, relatada com tanta clareza e facilidade por um adolescente de

    apenas 16 anos, recrutado pelo crime, fazendo parte de uma estrutura to bem

    distribuda e articulada.

    Lembro-me de um adolescente que estava no seguro25, isolado dos

    demais em uma cela prxima administrao, onde era realizado o atendimento

    psicolgico e social. Os adolescentes que iam para o atendimento, juravam-no de

    morte, utilizando palavras ameaadoras. Enquanto isso, o jovem se encolhia e

    arregalava os olhos aos fundos da cela solitria.

    Ficam no seguro adolescentes que cometem crimes no aceitos

    socialmente entre os adolescentes que so os casos de violncia ou assassinato

    de crianas, me, av, casos de estupro, os homossexuais e o famoso p de

    pato26. Tambm ocorrem situaes de adolescentes tornarem-se seguro pela

    sua conduta na Instituio, incluindo o se fazer amigo de funcionrio, por contar ou

    delatar os colegas, ficando marcado pelos outros internos como passarinho de

    funa. H ainda os casos de adolescentes que so abusados sexualmente,

    mesmo no sendo homossexuais, tornando-se seguros porque permitiram

    abusos.

    25 Adolescentes separados dos demais internos por serem homossexuais, delatores, estupradores ou jurados de morte por outros internos. 26 Bandido que pago para matar bandido.

  • 13

    O machismo predomina entre os internos e no aceitvel de maneira

    alguma se deixar abusar: Na cadeia a fama de desando27 di muito, mais do que

    qualquer surra que se possa imaginar.28

    O adolescente na Febem quando reconhecido como seguro, para onde

    for sempre ser seguro, uma fama pejorativa que acompanha o adolescente

    para a Unidade que for.

    O elevado nmero de reincidncia no cometimento de ato infracional leva

    os adolescentes a passar em vrias Unidades, o que propicia o conhecimento

    entre eles, repassando-se informaes uns dos outros.

    No Cadeio, a movimentao de entrada e sada de adolescentes era

    intensa, por tratar-se de Unidade de Internao provisria, onde o interno deve

    passar no mximo quarenta e cinco dias, aguardando deciso judicial que pode

    culminar em medida socioeducativa de Internao, Semiliberdade, Liberdade

    Assistida ou Prestao de Servios Comunidade.

    Nos fins de tarde, era rotina a chegada dos novos adolescentes; eles eram

    identificados, uniformizados, silenciados. Vrios corpos com os mesmos rostos:

    cabea raspada, camiseta branca, bermuda azul, chinelo nos ps. Trazidos para

    uma sala e sentados no cho, eram recepcionados por um grupo de funcionrios

    que passava as normas e as regras da Instituio, em relao aos horrios, dias

    de visitas e comportamento. Ouvi um funcionrio encerrar a recepo com a

    27 Adolescente que se deixa abusar. 28 Fala de adolescente.

  • 14

    seguinte frase: Lembrem-se: boca fechada faz bem e a ajuda conservar os

    dentes.

    Esta frase fazia-me perguntar: onde esto os cidados crticos e

    conscientes que queremos formar? Certamente no eram aqueles. Um ridculo,

    irnico da discrepncia entre os que pregam as modernas leis e a realidade

    vivenciada dentro de uma Instituio que tem a responsabilidade de conter,

    educar e socializar. Sentia aquelas palavras como uma faca de dois gumes, que

    feria pela ameaa e determinava a lei do silncio.

    1.3 Os trabalhos pedaggicos

    Por falta de um outro local, o setor pedaggico ocupou um espao

    conhecido como aqurio que era a antiga sala do diretor do Cadeio. O lugar

    tinha as paredes de vidro e localizava-se no meio das quatro alas, possibilitando

    ampla viso de todo movimento.

    A Febem dava incio a uma reestruturao e contratava, em carter

    emergencial e temporrio, educadores com nvel superior de ensino para compor

    a equipe de funcionrios e desenvolver atividades pedaggicas para os internos.

    Recebi um grupo de cinco rapazes, sendo dois Psiclogos e trs com formao

    em Educao Fsica, todos na poca eram denominados Agentes de Educao,

    atualmente, Analistas Tcnicos.

    De incio o lugar tambm lhes causou pnico, um deles apontou um

    detalhe que ainda no havamos atentado: a nossa sada de emergncia.

  • 15

    Estudamos o espao e as possibilidades e descobrimos que estvamos sem

    nenhum recurso em caso de urgncia.

    Com a chegada dos profissionais, o grupo se fortaleceu e, na medida em

    que surgiram novas idias, o trabalho pedaggico conquistou maior abrangncia.

    No tivemos conhecimento, nem acesso ao plano pedaggico da Instituio. Por

    conta disto, foi necessrio elaborar um plano de trabalho, estudando

    possibilidades e espaos, fazendo adaptaes, utilizando os recursos disponveis

    e aproveitando o potencial dos adolescentes e educadores.

    Aps esta organizao, passamos nosso plano de trabalho aos gestores da

    Unidade, que nos deram liberdade para realizar a proposta apresentada. Em

    seguida, chamamos os coordenadores de ala para uma reunio, com a finalidade

    de nos apresentarmos e mostrarmos o planejamento e o objetivo do trabalho a ser

    desenvolvido.

    Ampliamos as atividades pedaggicas com oficinas de leitura, oficinas de

    pagode, gincanas, dana de capoeira, videoteca, campeonato de xadrez e futebol

    de quadra, dentre outras, e assim conseguimos movimentar pedagogicamente a

    Unidade.

    As atividades eram desenvolvidas dentro das prprias celas, no ptio, em

    um galpo que comeamos a utilizar, na quadra externa e em dois containeres.

    Elaboramos uma escala de atividades, de forma que nos revezvamos

    entre as alas, para que houvesse diversidade de atividades e para que um maior

    nmero de adolescentes pudesse participar.

  • 16

    As atividades eram bem aceitas, pois quando por algum motivo

    suspendamos alguma, os internos perguntavam e queriam saber o que havia

    acontecido. O pouco tempo, em que saiam da cela, era motivo de alegria.

    Por sermos Coordenadora Pedaggica e Agente de Educao, cargos

    novos na Febem, enfrentamos dificuldades para desenvolver as propostas de

    trabalho, pois alguns funcionrios no entendiam qual era nosso papel e queriam

    nos levar para o ptio, para que desenvolvssemos as mesmas atividades que

    realizavam, tais como: acompanhar o banho, visita, refeies e revista para os

    internos.

    Para atividades escolares utilizvamos os mesmos containeres

    improvisados, que comportavam em mdia trinta adolescentes e que nem sempre

    podiam ser utilizados, porque gelavam no frio e queimavam no calor.

    Como no tnhamos condies para atender a demanda, o critrio utilizado

    para a seleo dos que seriam beneficiados com atividades escolares foi a

    seleo de alguns adolescentes que j estavam enquadrados no Artigo 122 do

    ECA (medida socioeducativa de Internao) e aguardavam vagas em Unidades

    de Internao.

    Como o Cadeio deveria custodiar os adolescentes temporariamente,

    vivamos em clima de transferncia, causado pela expectativa de conhecer o novo

    espao, de poder oferecer um atendimento para os internos com melhor

    qualidade.

  • 17

    No tnhamos informaes concretas do dia, nem da hora em que se

    realizariam as transferncias. Por motivo de segurana, estas informaes eram

    omitidas dos funcionrios, ficando restritas aos gestores, com a finalidade de

    evitar ocorrncias de tentativas de fuga ou resgate de adolescente, durante o

    percurso entre o Cadeio de Pinheiros e Franco da Rocha, onde estavam

    localizadas as Unidades de Internao definitiva.

    Enfim chegou o dia e a transferncia derradeira aconteceu. Foi durante

    altas horas da noite, os nibus encostavam e os adolescentes subiam enfileirados,

    sentavam e obrigatoriamente mantinham as cabeas baixas, durante todo o

    trajeto, e seguiam, escoltados pela polcia.

    1.4 A Transferncia para Franco da Rocha

    Acreditvamos que em Franco da Rocha por ser esta uma Unidade recm

    construda, teramos dias melhores, uma nova estrutura, com um espao mais

    bem planejado, com melhores condies de trabalho. Porm, no foi o que

    aconteceu. O que encontramos l foi um prdio com caractersticas de cadeia,

    sem possibilidades de oferecer condies adequadas para o atendimento,

    conforme prev o Estatuto da Criana e do Adolescente.

    O prdio no foi construdo e organizado, preconizando as necessidades de

    atendimentos tcnicos, atividades pedaggicas e de escolarizao. Era

    simplesmente um montante de grades, ferros, concretos e portes que nos faziam

  • 18

    sentir um constrangimento horrvel. O lugar era frio, sombrio e desafiador.

    Permanecer ali exigia esforo e superao ainda maior.

    Um grupo de funcionrios trabalhava na Unidade, muitos esforados,

    cansados e esgotados, outros revoltados. Alguns ainda conseguiam utilizar o

    dilogo para mediar situaes, problemas ou conflitos. Para outro grupo o poder

    do brao29 prevalecia.

    As Unidades 30 e 31 eram conhecidas como Franco, por serem

    Unidades maiores, com capacidade entre 320 e 350 cada uma, diferenciada pelo

    regime de alta conteno. A alta conteno se caracterizava pelo tratamento

    oferecido aos internos. A rotina estabelecida era com poucas regalias.

    O espao da Unidade se resumia a 08 alas, cada ala com 10 celas e um

    ptio revestido com cimento. Os internos saiam das celas, apenas nos horrios

    programados, ficando o maior tempo presos. O couro era a lngua, conhecida

    dos internos e funcionrios. Na linguagem dos adolescentes, Franco era o lugar

    de pagar veneno30, lugar onde o bom ladro se garantia31.

    O adolescente que passava muito tempo em Franco incorporava e se

    identificava com o status que lhe era atribudo, ou seja: de mal, perigoso, bandido

    e articulador, fama que lhe garantia respeito e prestgio nas Unidades em que

    viesse posteriormente passar.

    29 Funcionrios que usavam espancamento para disciplinar internos. 30 Coisa ruim. 31 Bom ladro expresso que significa o ladro respeitado entre os internos.

  • 19

    Os adolescentes sabiam que se conseguissem passar determinado tempo

    nestas Unidades mereciam o reconhecimento de bom ladro, porque conseguiu

    sobreviver dentro do sistema e superar a nia da tranca.

    A fama que era atribuda aos internos de Franco, tambm era

    disseminada e mantida por muitos funcionrios. Algumas Unidades chegavam a

    rejeitar a receber adolescente que fosse de Franco da Rocha, o que reforava a

    identidade do adolescente frente ao status a ele atribudo.

    A cultura interna que predomina entre os adolescentes infratores nas

    grandes Unidades, em especial, na de Internao, fundamental para a

    sobrevivncia dentro do sistema32, que vai muito alm de cumprir regras e

    deveres. O adolescente tem que assimilar rapidamente a lei da bandidagem

    entend-la, obedec-la e pratic-la.

    este universo cultural que dita e determina normas, regras e padres de

    comportamento como, por exemplo: no pode de maneira alguma um interno

    insultar a me ou av de outro; nenhum adolescente pode excitar-se sexualmente;

    nem masturbar-se em dia de visita; a orao sagrada; antes das refeies tem

    que haver silncio absoluto e esperar a voz de comando para comear a

    alimentar-se; os demais adolescentes no podem ter aproximao com

    adolescentes em situao de seguro. Eles prprios mantm as regras de forma

    autoritria e violenta.

    32 Febem.

  • 20

    O sentido das regras que fazem parte da cultura dos internos uma forma

    de organizao e disciplina que inclui ou exclui o adolescente, utilizando o critrio

    da obedincia permanncia do sujeito no convvio social.

    O que relato, so as regras mais claras e de fcil entendimento, porm esta

    cultura vai muito alm do que podemos simplesmente ver e ouvir, porque no

    sempre to clara. Existem cdigos, gestos, linguagens e smbolos que somente a

    convivncia no cotidiano com os internos nos permite entender e identificar.

    Um exemplo disto quando h um silncio estranho, contrrio rotina da

    Unidade, expresses taciturnas ou sisudas dos adolescentes. Adolescentes que

    normalmente conversam com os funcionrios, ao evitar a aproximao, mostram

    indcios que denunciam alguma irregularidade, como: plano de fuga, ou

    articulao para espancar determinado interno. So expresses que sutilmente

    acabam denunciando anormalidade, atravs de mudanas involuntrias de

    conduta.

    Os adolescentes quando eram encaminhados para Franco da Rocha,

    atravs da Vara da Infncia e Juventude para cumprir medida de Internao,

    passavam inicialmente pelas Unidades de Franco e, como progresso de

    medida, de acordo com o comportamento, eram encaminhados para Franquinho,

    assim denominado por ser um complexo que abriga trs Unidades menores, com

    capacidade para 80 adolescentes cada uma, para o atendimento de adolescentes

    em cumprimento de medida socioeducativa de Internao.

    Por determinao da lei que regia meu contrato de trabalho, que era por

    tempo determinado, sa da Febem. Confesso que no foi fcil deixar tudo aquilo

  • 21

    para trs. A passagem pela Instituio no se caracterizava apenas como uma

    sada de um emprego, havendo uma histria que estava sendo construda, na qual

    eu tambm era personagem e sentia a necessidade de continuar. Percebi que

    havia outros conhecimentos a adquirir, e a Febem: muito a ensinar.

    Queria poder chamar a ateno do mundo, falar em voz alta sobre o que

    era vivido na Febem. Depois dos muros, que davam acesso Instituio,

    fechavam-se as cortinas sociais. Ningum queria ver, ouvir ou falar. Apenas a

    mdia oportunista, em show de espetculo, denunciava as barbries, as fugas e as

    rebelies, chamando a ateno com cmera, luz e ao, revelando a faceta de um

    mundo que no se queria ver.

    Realizei concurso pblico, oferecido pela Febem e voltei, voltei para

    continuar a histria.

    1.5 Franquinho

    Quando fui trabalhar em Franquinho no era funcionria temporria, na

    ocasio j estava efetivada. Continuei com o cargo de Coordenadora Pedaggica,

    responsvel pelos professores da rede pblica, pelos Analistas Tcnicos e pelas

    atividades escolares, esportivas e culturais.

    As Unidades de Franquinho se caracterizavam como Unidades de mdia

    conteno. Ali os adolescentes tinham maior liberdade, os espaos fsicos eram

    melhores distribudos, mesmo que inadequados para o tipo de atendimento

  • 22

    recomendado. Franquinho para os adolescentes era lugar onde a cadeia

    suave/boa33.

    Suave porque dava maior liberdade, as atividades eram sistemticas,

    envolvendo os internos em boa parte do dia, resumindo o tempo da tranca. Com

    este tipo de trabalho, os internos tornavam-se menos revoltados e agressivos,

    propiciando melhor vnculo entre funcionrios e internos, o que tambm ajudava a

    diminuir as rivalidades entre os grupos. Existia um mito entre os adolescentes que

    dizia: Cadeia boa estraga o bandido.

    Diferente de Frano, Franquinho era um lugar mais agradvel, embora

    havendo grandes muros, portes e segurana, a sensao era de mais

    tranqilidade.

    Por ser Franquinho, conhecido como cadeia boa, muitos adolescentes

    no queriam ser transferidos para l, porque perdiam parte do status de perigoso,

    de ladro e a fama de mal, que j se constitua como parte de sua identidade,

    tornando-se um bandido estragado34.

    Em uma reunio, entre os lderes da Unidade da qual participei, no

    esqueo a frase dita por um coordenador, que afirmava categrico: Nosso papel

    aqui estragar o bandido, se fosse para eles continuarem bandidos no

    precisavam ter vindo para c!.

    33 Unidade da Febem com mais regalias e menos regras opressoras. 34 Interno menos revoltado.

  • 23

    No incio da minha chegada, sentia-me estranha, era como sair de um

    aqurio e ir para um pequeno lago. Acostumada com o clima da alta conteno,

    levei alguns dias para acostumar-me com o novo espao.

    Percebi que os adolescentes quando vinham para Franquinho, tambm

    apresentavam o mesmo comportamento de estranheza, olhando as rvores,

    andando aleatoriamente pelos espaos, respirando um ar menos opressor. O

    clima era aparentemente sossegado. Havia um grande terreno e algumas rvores

    frutferas.

    A Unidade se constitua por dois mdulos com caractersticas de galpes.

    Em seu interior, havia os quartos, constitudos de camas de concreto e colches,

    banheiros, refeitrio e sala para a coordenao. No lado externo, havia um grande

    galpo que utilizvamos para oficinas profissionalizantes e atividades pedaggicas

    de marcenaria, informtica, artesanato, habilidades bsicas, teatro, capoeira,

    dana de rua, artes plsticas, dentre outras.

    As atividades aconteciam simultaneamente, organizadas por horrio

    atravs de uma grade, e os alunos eram selecionados, mediante sua escolha e

    disponibilidade de vaga, priorizando o horrio da escolarizao. Nestas atividades

    os internos expressavam seus talentos e habilidades, alm disso, propiciavam

    momentos de descontrao, socializao e elevao da auto-estima.

    Realizvamos algumas exposies com o trabalho dos internos nos dias de

    visita e tambm possibilitvamos a doao de alguma pea confeccionada pelo

    adolescente para a famlia.

  • 24

    Um outro espao foi reformado e adaptado, onde centralizamos o setor

    pedaggico e um pequeno almoxarifado. L tambm realizvamos a oficina de

    culinria, que era o curso mais procurado e solicitado pelos internos.

    Pelos companheiros, os internos ficavam sabendo que nesta oficina eles

    comiam alimentos que na Internao so consumidos esporadicamente: quando

    h algum evento. Os internos que participavam da oficina de culinria tornavam-se

    referncia para a Unidade: eram selecionados adolescentes com bom

    comportamento, devido aos materiais que eram utilizados, como: faca, tesoura,

    garfos, dentre outros.

    Grande parte dos coordenadores, junto com a direo e com os

    funcionrios, se dedicava e se desdobrava para, juntos com a equipe pedaggica,

    desenvolver atividades para os internos. Com outros coordenadores, s vezes era

    preciso discutir e buscar espao para que as atividades acontecessem nas datas e

    nos horrios pr-estabelecidos.

    A Unidade mantinha-se sob controle, existiam conflitos internos que

    geralmente eram contornados pelos funcionrios por meio do dilogo e de

    sanes disciplinares como: advertncia verbal ou escrita.

    1.6 A Escola

    A escola estava localizava em um prdio separado das alas, porm dentro

    da Unidade. Possua salas de aulas, sala para os professores e banheiros. As

    aulas eram ministradas por professores da rede pblica.

  • 25

    Realizar as atividades escolares era uma misso difcil, pois a maioria dos

    alunos apresentava grande defasagem escolar. O maior nmero de alunos se

    concentrava na sexta e stima sries. A escola era um lugar em que nossa

    ateno se redobrava. Era preciso intenso investimento, tanto dos professores,

    quanto da equipe pedaggica.

    Buscvamos transmitir os contedos de forma que fossem atrativos para os

    internos. Um dos trabalhos que desenvolvemos que nos trouxe bons resultados foi

    com o mapa das regies de So Paulo. Percebermos nas conversas entre os

    internos que eles valorizam o bairro onde moram. Este valor demonstrado

    atravs de smbolos de grafitagem e frases como: zona leste somos ns ou

    zona sul toda nossa. Aproveitando a valorizao que os internos do ao seu

    local de moradia, trabalhamos, durante um perodo, com o mapa das regies de

    So Paulo, em atividades multidisciplinares.

    Um mapa bem detalhado, definindo bairros, favelas, cidades e regies,

    encantava os internos que falavam sobre as lotaes, os nibus superlotados e os

    rol35 que davam nas catracas para no pagar passagem e das minas da

    escola. Eles conheciam e identificavam no mapa, onde ficavam os departamentos

    de polcia, as escolas e os trajetos que fariam quando estivessem em liberdade.

    Solicitamos que os alunos descrevessem os principais problemas do seu

    bairro e a soluo para eles. Infelizmente, este trabalho no teve o final que

    gostaramos, j que a fuga na Unidade vizinha provocou a interrupo das aulas

    por alguns dias, dificultando o resultado.

    35 Driblar cobrador de nibus para no pagar passagem.

  • 26

    Tambm desenvolvamos trabalhos sobre violncia, com recortes de jornais

    e filmes, apresentando suas conseqncias e discutindo tipos de comportamento.

    A cada dia constatvamos que a valorizao da posse e do poder prevalece entre

    os adolescentes. A violncia para muitos percebida como diverso ou

    conseqncia. Fez tem que pagar uma frase comum entre eles.

    Enfim, todo dia era um dia. Tnhamos que buscar alternativas dirias para

    desenvolver as atividades em que os internos se envolvessem com maior

    intensidade. Alguns alunos com melhor desempenho foram colocados como aluno

    auxiliar. Esta foi uma forma que encontramos para possibilitar que o aluno mais

    adiantado pudesse desenvolver-se melhor nas classes multisseriadas.

    O envolvimento com a escola e o aproveitamento do aprendizado eram

    precrios, principalmente porque vrias vezes as aulas eram suspensas por

    suspeitas de tentativa de fuga, fugas ou motins. Um outro motivo para a

    defasagem do aprendizado era a impossibilidade de realizaes de tarefas

    extraclasses, pois a Unidade no permitia ao interno portar material didtico para

    os mdulos, devido ausncia de condies e de um controle rigoroso destes

    materiais.

    Alguns materiais como lpis e rgua poderiam ser afiados e transformados

    em armas. Tambm o caderno poderia servir para o envio de recado a outras

    Unidades. O estudo ento ficava limitado ao horrio escolar, na sala de aula.

    No trmino de cada aula, os professores teriam que contar todo o material,

    para verificar se estava completo. Os internos tambm eram revistados pelos

  • 27

    funcionrios antes de entrar nos mdulos, para verificar se portava algum material

    ou objeto no permitido.

    Nas Unidades de Internao, os adolescentes permanecem por longos

    perodos, podendo chegar a at trs anos, o que propicia aproximao e maior

    vnculo afetivo com os funcionrios e demais internos.

    Em relao ao meu trabalho, na funo de Coordenadora Pedaggica,

    mantinha bom vnculo com os internos, realizava as entrevistas e os relatrios

    pedaggicos, momentos em que conversvamos sobre projeto de vida,

    rendimento escolar, a vida no crime, enfim, os internos aproveitavam para

    conversar os mais variados assuntos. Ao entrevistar um interno recm-chegado na

    Unidade, aps coletar as informaes sobre sua vida escolar, ele assim me falou:

    A senhora no precisa se preocupar comigo, vou sair

    logo daqui (...) Meu patro j contratou uns advogados e

    eles j esto cuidando do meu processo. (...) No posso

    ficar preso muito tempo no, senhora. Eu era o cara que

    mais vendia, e com minha priso o patro est tendo

    prejuzo. (Referindo-se ao trfico de drogas)

    O setor pedaggico tem um papel fundamental para o andamento da

    Unidade. Como Coordenadora Pedaggica, era procurada pelos coordenadores e

    adolescentes para resolver problemas e conflitos, ou para simplesmente ouvir

    internos que, por motivos pessoais ou no, desistiam de participar das atividades,

    ou estavam apticos e sem motivao. O trabalho pedaggico era desenvolvido

    junto com a direo, equipe tcnica e os coordenadores de equipe, que nos

    auxiliavam com troca de informaes e intervenes quando necessrias.

  • 28

    Muitas histrias se repetiam, outras eram inditas. Alguns casos so

    inesquecveis, como a histria do John36. John, um adolescente polmico, crtico,

    questionador, por isto os funcionrios traaram-lhe o perfil de cabea de rebelio.

    Em um conflito na escola entre alunos e professor, fui chamada para

    interveno. Procurei entender o que havia acontecido. John se levantou, bateu no

    peito e disse: Senhora, sou homem e minha palavra no faz curva.37 Aps esta

    fala tentou explicar o fato ocorrido: a professora ao contar o material no final da

    aula percebeu que estavam faltando duas canetas e acusou os alunos de as

    terem escondido, acusando-os firmemente. Ao revistar seus materiais, a

    professora constatou que as duas canetas estavam dentro do seu prprio

    caderno. Conseguimos amenizar o conflito, e, logo aps, fomos conversar com o

    John, momento que tivemos a oportunidade de conhecer melhor aquele

    adolescente aparentemente revoltado.

    Estabelecemos uma relao mais amigvel quando ele percebeu que

    procurvamos ouvi-lo, dando credibilidade s suas falas e s suas opinies.

    Descobrimos que ele gostava de teatro, escrevia peas que ele mesmo narrava e

    encenava. Participava da oficina de teatro no para ocupar o tempo, mas porque

    tinha paixo. Seu sonho era um dia se tornar ator, de apresentar-se em grandes

    palcos e de escrever poemas e poesias.

    Ao mesmo tempo, em que vibrava com a idia artstica, percebamos a

    amargura em seus olhos, at que um dia desabafou: Que adianta sonhar tanto?

    Eu sei que nunca vou conseguir. Perguntei o porqu de tanta desesperana e ele 36 Todos os nomes que aparecem neste estudo so nomes fictcios. 37 Palavra no faz curva significa que o que interno est dizendo no mentira.

  • 29

    afirmou: Quem entra nesta vida no tem mais como sair no, senhora. Bem que

    eu gostaria que fosse diferente, mas para mim no tem sada. Tentamos anim-lo

    com algumas palavras que no surtiram efeitos. Como todo adolescente, John

    tambm queria a sua Liberdade Assistida (LA), sua liberdade, voltar para o

    mundo38. E enquanto aguardava, continuava no grupo de teatro, ensaiando,

    criando e inventando peas.

    Os dias passaram, e a to esperada liberdade do John chegou. Talvez,

    aquele fosse um dos dias mais felizes de sua vida. Juntou seus pertences, pegou

    seus escritos, despediu-se dos funcionrios, dos companheiros e se foi.

    Passaram-se poucos dias e ficamos sabendo que John havia perdido as letras, as

    peas e o teatro, John perdeu a arte de viver. Foi assassinado com um tiro certeiro

    na cabea, cumprindo-se a profecia que John to seguramente afirmara: para

    mim no tem sada.

    Convivamos com certezas e incertezas de vida e de morte, incertezas no

    simblicas ou hipotticas, uma vez que, para a maioria dos adolescentes, em

    conflito com a lei, o futuro incerto real e eminente. como eles dizem: A

    criminalidade um beco com duas sadas: cadeia ou morte.

    Muitas vezes sentamo-nos frustrados, por investir em alguns adolescentes

    e, por outro lado, saber que, em breve, ele ganharia a liberdade, voltaria para a

    mesma rotina, conviveria com as mesmas pessoas, receberia outros convites e

    assdios para o envolvimento com a criminalidade, para o uso de drogas e para

    aquisio de bens de consumo.

    38 Mundo aqui fora, liberdade.

  • 30

    Alguns adolescentes, ao contar suas histrias, choravam, era como se

    houvesse uma barreira intransponvel entre seu mundo e o nosso mundo. Ao

    mesmo tempo em que nos pediam socorro, encolhiam as mos. Outros internos

    se mostravam otimistas, juravam que no voltariam vida do crime. Outros, j

    com filhos, mantinham esperanas de arrumar trabalho e dar um melhor futuro

    para eles.

    Conhecemos famlias esforadas, mes que buscavam ajudar os filhos a

    largar as drogas e a vida do crime, e outras que incentivavam e tiravam sustento

    atravs dos delitos cometidos por seus filhos. Assim ouvimos o relato de uma

    me, incentivando o crime: J falei para o meu filho fazer seu p de meia

    enquanto est de menor, daqui a pouco faz dezoito anos e a boquinha vai acabar.

    Com dificuldades, a equipe pedaggica continuava trabalhando, o grupo era

    composto por alguns profissionais, em quantidade insuficiente para atender a

    demanda da Unidade.

    ramos unidos e vamos os resultados do trabalho, mesmo com a escassez

    de recursos e verbas, muitas vezes, utilizando nossos prprios recursos para

    desenvolver as atividades.

    Levar aparelho de som para gravar fita com msica de adolescente e

    mandar para os eventos, trazer emprestado microfone de igreja, cobrir fitas

    cassetes para gravar com os adolescentes, levar roupas de familiares para

    apresentao de peas teatrais, dentre outras, eram aes comuns realizadas por

    funcionrios para o desenvolvimento das atividades.

  • 31

    Com o passar do tempo, as Unidades foram ficando, cada vez, mais difceis

    de trabalhar. Havia movimentos de fugas e de rebelies nas Unidades vizinhas, o

    que nos deixava sempre em alerta.

    A Unidade na qual eu trabalhava por um bom perodo no teve ocorrncias

    de fugas e rebelies, mas os adolescentes sentiam a presso das demais

    Unidades, para que eles tambm representassem.39

    Por outro lado, os internos se viam obrigados a realizar algum tipo de

    movimento como: fugas ou motins, para serem solidrios s outras Unidades e

    no serem rotulados de pipoca.40

    Na enfermaria, local comum para o atendimento de todas as Unidades, ao

    se encontrarem, os adolescentes cobravam postura uns dos outros e ameaavam

    aqueles que no participavam dos motins.

    Em silncio, os adolescentes da Unidade organizavam um movimento. Aos

    poucos a Unidade comeou a ficar estranha, os internos com fisionomia e

    semblante misteriosos, como se algo estivesse para acontecer.

    Partindo da nossa experincia e em contato com alguns internos,

    procurando cautelosamente entender o que estava acontecendo, um adolescente

    nos contou: , senhora, tem uma fita41 rolando, mas eu no posso contar tudo

    no.

    Ficamos todos atentos. Porm, com todas as precaues os funcionrios

    no conseguiram evitar uma fuga cinematogrfica, na qual fugiram quarenta e dois 39 Colaborar com colegas. 40 Covarde menino que no participa de motins. 41 Plano.

  • 32

    adolescentes, metade dos internos da Unidade. Fuga em massa, que foi

    cuidadosamente calculada, planejada, arquitetada, programada e realizada na

    calada da madrugada. Era como um filme. Os materiais utilizados para escalarem

    o muro foram minuciosamente medidos e organizados do lado interno. Para a

    escalada externa, foi utilizada corda de lenol, conhecida tambm como Teresa.

    Enquanto isso, os funcionrios que foram rendidos anteriormente, continuavam

    amarrados no banheiro da Unidade. Este episdio virou notcia que foi divulgada

    na mdia televisiva e circulou nas pginas dos grandes jornais.

    A cada dia que passava o clima ia ficando, mais tenso. O nmero de

    funcionrios ficava cada vez mais reduzido, devido aos afastamentos mdicos e

    pedidos de demisses.

    As atividades pedaggicas eram desenvolvidas com dificuldades, pois

    atividades que utilizavam materiais que pudessem oferecer algum risco, tambm

    foram suspensas. A situao estava incontrolvel, e os internos dominavam as

    Unidades.

    A casa est na mo do menor. Esta frase era repetida com orgulho pelos

    internos. Vivenciei situaes de rebelio, confrontos, medo e muita destruio. As

    naifas42 eram amoladas, no mais na calada da noite, agora eram feitas na luz

    do dia.

    Gradualmente, diminua o nmero de funcionrios e aumentava o nmero

    de adolescentes. Os funcionrios que continuavam trabalhando no sabiam o que

    42 Armas feitas artesanalmente.

  • 33

    fazer, ficando impotentes diante da situao. Muitos dobravam os plantes, por

    falta de funcionrios, chegando em um nvel de extremo estresse.

    As equipes pedaggicas procuravam, de alguma forma, oferecer atividades.

    Mesmo sabendo que os adolescentes estavam armados, entrvamos na Unidade.

    Ao aproximarmo-nos do porto que dava acesso Unidade, do outro lado estava

    um grupo de internos que nos recepcionou: Bom dia, senhoras! Olha como

    nossas armas esto afiadas!. Respondemos: Bom dia, muito bem, agora vocs

    vo nos dar licena, que ns vamos trabalhar. Podem entrar! As senhoras

    sabem que para vocs no pega nada. Entramos na Unidade com o corao

    batendo descompassado, deixando para trs aqueles adolescentes e suas armas,

    que reluziam com o brilhar do sol.

    Certo dia, quando cheguei no trabalho, encontrei a escola da Unidade

    praticamente destruda, um adolescente j aguardava na entrada e tmido disse:

    Desculpa senhora, eu tambm participei e queimei a escola, eu no queria ser

    chamado de pipoca. Fiquei em silncio, ao mesmo tempo, em que sentia raiva,

    medo e desolao. No tinha foras, nem esperanas, era difcil permanecer ali

    calada, inerte, refletindo meu prprio silncio, cercada pelo caos da destruio,

    afinal a escola era nosso reduto. Diariamente, adolescentes levavam trem bala43,

    outros eram abusados sexualmente. A cada dia aumentava o nmero de

    adolescentes no grupo do seguro.

    Conseguimos limpar e organizar algumas salas de aula e retomamos as

    atividades escolares com poucos alunos. A maioria ficava acordada at a

    43 Quando vrios internos se unem para espancar um outro.

  • 34

    madrugada e vinha contar suas aventuras: , senhora, no deu para ir a escola

    hoje no. Fiquei assistindo o filme do corujo, quando me acordei j era mais de

    meio dia.

    Em um outro motim, colocaram fogo no prdio da escola, que ficou sem

    condies de uso. As aulas passaram a ser ministradas no refeitrio dos mdulos,

    alternativas que se tornaram inviveis, porque a maioria dos internos no estava

    participando da escolarizao. Isto causou mudanas e transtornos na rotina da

    Unidade. Como nem todos os internos estavam participando da escolarizao,

    atrapalhavam os professores, passando para o banho fora de horrio,

    conversando alto, impossibilitando as atividades escolares.

    Samos do refeitrio e fomos dar aulas debaixo das rvores, nos

    banquinhos e nas mesas de cimento ao ar livre. Foi uma situao indita.

    Sentamos como se estivssemos voltado ao passado, onde os pedagogos davam

    aulas ao ar livre, debaixo das rvores.

    Professores habilidosos e corajosos eram os nossos parceiros para a

    superao das dificuldades. Em momentos de turbulncia no poderamos

    demonstrar cansao nem fragilidade, a Unidade precisava de ns, e enquanto

    Coordenadora Pedaggica assumia um papel que necessita de dedicao para

    incentivar a equipe. Mesmo sentindo fadiga e exausto, tinha que continuar com

    os trabalhos. Com as mudanas de direo no complexo de Franquinho,

    consegui transferncia para trabalhar em outro local, nas Casas Comunitrias com

    os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Semiliberdade.

    Para mim foi uma mudana necessria, pois, mesmo com as limitaes

    pessoais, o que me motivava a permanecer na Unidade era o trabalho

  • 35

    desenvolvido junto com os adolescentes, trabalho que j no estava conseguindo

    realizar, por motivo de constantes motins, fugas e rebelies.

    1.7 A Semiliberdade (Art 120 do ECA)

    Apesar de trabalhar na Febem j h alguns anos, no conhecia a medida

    socioeducativa de Semiliberdade em sua totalidade. Acostumada com o cotidiano

    da Internao, foi impactante no encontrar muros altos, alambrados, concertinas

    ou ces de guarda, nas Unidades de Semiliberdade. Vivi uma outra experincia.

    Ver adolescentes em conflito com a lei, usando suas prprias roupas,

    conversando em grupo, era um quadro novo e atpico frente realidade com a

    qual estava acostumada. O estado de alerta e vigilncia, por alguns dias, me

    acompanharam que somente se desfizeram com o passar do tempo.

    Por serem as Casas Comunitrias, Unidades pequenas, atendendo em

    mdia 15 adolescentes, possvel que a equipe de tcnicos e educadores

    realizem um atendimento personalizado e mais prximo da famlia e do

    adolescente.

    O relacionamento entre adolescentes e funcionrios geralmente acontece

    de forma amistosa e tranqila. Ao chegarem, os adolescentes so recepcionados

    pela equipe tcnica e orientados sobre a continuidade da medida e suas

    responsabilidades e possibilidades. Posteriormente, so encaminhados para o

    coordenador da casa, momento em que so informados sobre as normas de

    convivncia. Inicialmente, podemos detectar um alto grau de ansiedade em

    relao a sua sada para o meio aberto, pois eles querem saber o prazo que

  • 36

    ficaro na casa. Mostram-se ansiosos com a rotina e preocupao com o

    cumprimento das normas, que inicialmente parecem impraticveis. No decorrer da

    medida socioeducativa de Semiliberdade, alguns se adaptam s normas, o que

    favorece o cumprimento da mesma. Por meio de tal medida, os adolescentes so

    inseridos em diversas prticas sociais, passando a freqentar diversas atividades

    em escolas, cursos profissionalizantes e em oficinas educativas, esportivas e

    culturais. Alm destas, algumas necessidades especficas de cada adolescente

    podem ser supridas, atravs de atendimento psicoterpico, psiquitrico e

    psicopedaggico, dentre outros.

    Em alguns casos, percebemos a evoluo do adolescente quando

    recebemos os acompanhamentos da escola e dos cursos profissionalizantes,

    somados s informaes do comportamento e com a famlia no final de semana,

    assim como, atravs da observao diria dos educadores e da avaliao

    semanal da equipe tcnica.

    Os semilibertos comumente mantm a fisionomia e os traos naturais, em

    contraste aos adolescentes da Internao, que muitas vezes procuram fazer e

    manter um semblante e uma cara de mau.

    Na funo de Coordenadora Pedaggica, na Semiliberdade, meu trabalho

    se dividiu entre atividades internas e externas. Nas atividades internas, trabalhava

    com as questes burocrticas da Instituio, elaborando quadros, projetos e

    planilhas, acompanhando e supervisionando as oficinas internas, planejando e

    organizando atividades escolares, esportivas, recreativas, culturais ou de lazer.

  • 37

    Parte das atividades externas, voltava-se para o acompanhamento escolar.

    Os adolescentes inseridos na Semiliberdade geralmente so matriculados

    prximos s suas residncias, para que possam dar continuidade aos estudos,

    aps o cumprimento da medida. Como Coordenadora Pedaggica, eu era

    solicitada pelas lideranas das escolas a comparecer para discutir a busca de

    alternativas para casos de adolescentes que estavam em nossa Unidade.

    Algumas vezes nos deparamos com situaes complicadas, onde a direo

    da escola j no queria o adolescente como aluno, devido ao comportamento ou

    as atitudes inadequadas, solicitavam orientaes e ajudas que pudessem auxili-

    los. Alguns profissionais afirmavam que no sabiam como proceder com esses

    alunos. Houve casos em que a equipe do corpo funcional da escola nos olhava

    como se fssemos responsveis pela existncia daquele ser, cobrando a

    erradicao daquele aluno problema.

    Atravs do dilogo e de uma postura adequada, explicando todo o

    funcionamento da medida, conseguamos em boa parte amenizar os conflitos,

    atravs de um trabalho de parceria entre a escola, o setor pedaggico, o

    coordenador de equipe e a tcnica que acompanha o adolescente; e, quando

    possvel, contando com a famlia e com o prprio adolescente, chamando-o

    responsabilidade e orientando-o sobre as conseqncias de seus atos.

    Na Semiliberdade, tive a oportunidade de presenciar e acompanhar vrios

    tipos de situaes: adolescentes que no conseguiam obedecer s normas e s

    regras e descumpriam a medida; outros que eram trazidos de volta para Casa

    Comunitria pela me por no querer cumprir a Semiliberdade; adolescentes que

  • 38

    cometiam nova infrao no decorrer medida e eram apreendidos pela polcia; e

    tambm, os que conseguiam superar as dificuldades, cumprir a medida e receber

    a progresso da medida para a Liberdade Assistida.

    Embora a medida de Semiliberdade44 possibilite sada externa e o convvio

    familiar nos fins de semana, percebi dificuldades, conflitos e facilidades,

    vivenciadas pelos adolescentes que so encaminhados para esta medida. Posso

    dizer que meu problema de pesquisa fruto da percepo que tenho de meu

    momento histrico, que me impulsionou a uma postura investigativa em relao a

    esses adolescentes. Com este estudo pretendo pesquisar como para os

    adolescentes a vida em Semiliberdade, como e no que implica este ir e vir entre

    as sadas externas e o retorno para a Casa Comunitria, ora libertos, ora sem

    liberdade, como compreendem as normas, regras e limites impostos?

    44 Em anexo Caractersticas da Medida de Semiliberdade.

  • 39

    Captulo II

    2.1 Mtodo

    Esta pesquisa faz uso de uma abordagem qualitativa, tanto na coleta, como

    na apreenso dos dados. Busquei um espao para a compreenso do perodo de

    vivncia, durante o cumprimento de medida socioeducativa de Semiliberdade.

    Para alcanar tal compreenso, os adolescentes sero vistos na riqueza de suas

    reflexes e ns posicionamentos por meio de entrevistas.

    Segundo Ludke e Andr:

    A abordagem qualitativa flexvel e rica de possibilidades de

    interpretaes, com uma preocupao fundamental de

    compreenso da realidade. (2003, p.18)

    Tambm possvel remeter a Chizzotti quando afirma que:

    Os dados obtidos em pesquisas desta natureza levam em

    considerao as interaes e o pesquisador faz parte do

    processo de conhecimento que ser produzido na relao

    com os participantes, atribuindo-lhe significado. Alm disso,

    h uma relao dinmica entre o mundo real e objetivo e o

    indivduo e sua subjetividade, pressupondo um vnculo entre

    as duas partes. Em funo do encontro e da relao que se

    estabelece entre eles, pesquisador e participantes se

    modificam e so modificados. (1998, p. 79)

    Sendo assim, o pesquisador faz uso de seu referencial terico e de seus

    valores. Nesse sentido, a pesquisa qualitativa no se diz neutra. Os

    conhecimentos gerados surgem a partir da interao do entrevistador com os

  • 40

    sujeitos da pesquisa. Esta abordagem torna-se adequada na medida em que esta

    pesquisa se insere em um amplo contexto que envolve emoes, sentimentos,

    percepes, significados, reflexes e conhecimentos sobre a vida em

    Semiliberdade, tributrios das minhas prprias experincias na Instituio em que

    trabalho. por isto que a questo investigada requer este tipo de abordagem.

    Conforme Ludke e Andr:

    Os dados coletados so predominantemente descritivos. O

    material coletado nestas pesquisas rico em descries de

    pessoas, situaes, acontecimentos; inclui transcries de

    entrevistas e depoimentos, fotografias, desenhos e estrato de

    vrios tipos de documentos (...) todos os dados da realidade

    so considerados importantes. (2003, p.12)

    Neste estudo, as entrevistas foram transcritas e editadas em formato

    narrativo, para que o leitor tenha melhor facilidade na leitura.

    2.2 Entrevista/entrevista semi-aberta

    Entende-se por entrevista um encontro entre duas pessoas, a fim de que

    uma delas obtenha informaes a respeito de determinado assunto, atravs de

    uma conversao de carter profissional. De acordo com Banister:

    Este instrumento tem sido empregado em pesquisas

    qualitativas como uma soluo para o estudo de significados

    subjetivos e de tpicos complexos para ser investigados por

    instrumentos fechados num formato padronizado. (1994 apud

    Szymanski, 2002, p. 10)

    A entrevista propicia a intercmbio entre entrevistador e entrevistado,

  • 41

    influenciando o rumo e os tipos de informao que surgem. Segundo Szymanski:

    (...) A entrevista face a face fundamentalmente uma

    situao de interao humana, na qual esto em jogo as

    percepes do outro e de si, expectativas, sentimentos e

    preconceitos, interpretaes ou constituio de sentido para

    os protagonistas-entrevistador e entrevistado. (2002, p.11)

    No entanto, a pesquisa no se resume aos dados da entrevista.

    indispensvel analisar e interpretar estes dados, ao fulgor da linguagem mais

    geral, e depois relacion-los com outras informaes da pesquisa, como

    anotaes em relao ao comportamento do entrevistado, modo de falar ou

    situaes em que o entrevistador perceba relevncia.

    Escolhi a entrevista semi-aberta, porque permite seguir de forma flexvel

    um roteiro elaborado previamente, objetivando captar informaes relevantes

    ao problema de pesquisa. Deste jeito, o participante, seguindo

    espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experincias, dentro

    do foco principal colocado pelo pesquisador, participa do contedo da

    pesquisa. Segundo Ludke e Andr (1986; P.34), uma entrevista permite a

    captao imediata e corrente das informaes desejada praticamente com qual

    quer informante e sobre os mais variados tpicos.

    Por ser funcionria da Febem e pelo fato dos entrevistados me

    conhecerem, eu corri o risco de os meninos no se sentirem confortveis o

    suficiente para responder s perguntas com franqueza, ainda que eu tivesse

    previamente explicado as implicaes ticas dessa pesquisa e o dever de manter

  • 42

    todos os dados em sigilo. Os adolescentes poderiam temer que tais informaes

    viessem futuramente a ser colocadas no relatrio da pasta tcnica que

    encaminhada ao Juiz da Vara da Infncia. No entanto, durante as entrevistas,

    percebi que aparentemente eles no demonstraram constrangimento ou temor.

    Tendo clareza das limitaes, deste estudo, causadas pelo quadro descrito

    acima, ao dar a palavra para estes adolescentes, busquei oferecer uma situao

    de escuta, ou seja, uma oportunidade a eles de serem ouvidos para que

    pudessem, assim, ter espao para expor sua vivncia no perodo de cumprimento

    da medida de Semiliberdade.

    Aps a finalizao da entrevistas, procurei construir uma anlise sobre as

    concepes implcitas do processo socioeducativo da Semiliberdade, nas quais

    esses adolescentes esto inseridos a partir de suas respostas.

    2.3 Procedimentos

    As entrevistas foram estruturadas e realizadas de maneira semi-aberta,

    com adolescentes em conflito com a lei do sexo masculino, em cumprimento de

    medida socioeducativa de Semiliberdade, com idade entre 16 e 17 anos.

    O critrio utilizado para a escolha dos adolescentes participantes foi o

    histrico institucional, ou seja, escolhemos adolescentes que j estavam a mais de

    dois meses na medida, ou que j conhecessem a medida de Semiliberdade de

    passagem anterior pela Fundao. Adotei este critrio por entender que o

    adolescente, que j est cumprindo a medida socioeducativa de Semiliberdade, ou

  • 43

    que j houvesse cumprido a medida em outro momento, teria melhores condies

    de colaborar com a pesquisa. Contamos com a colaborao da Assistente Social,

    que auxiliou na indicao dos adolescentes que estavam dentro do critrio acima

    adotado.

    Aps a escolha dos adolescentes, comuniquei, ao diretor da Unidade e

    encarregada tcnica, que as entrevistas seriam realizadas para esse estudo.

    Nesse momento, foi apresentada a documentao do Comit de tica45 da PUC

    que esclarece o objetivo da pesquisa e que garante o anonimato dos participantes.

    Conversei com o coordenador de equipe, esclarecendo os procedimentos do

    estudo que seria realizado.

    A entrevista foi realizada em um domingo noite, aps as vinte horas. O

    domingo foi escolhido por ser o dia em que os adolescentes esto retornando das

    suas residncias, para pernoitar na Casa Comunitria46. O recomendado pelas

    normas da Unidade que os adolescentes retornem at as vinte horas.

    Aps chegar a Casa Comunitria, os adolescentes jantaram e foram

    comunicados pelo funcionrio de planto sobre a minha presena. Ele os informou

    de que eu estaria ali para conversar com alguns deles.

    Chamei cada adolescente individualmente em uma sala reservada,

    enquanto os demais ficavam na sala assistindo televiso. Iniciei a entrevista,

    conversando informalmente com o adolescente, perguntando sobre os cursos que

    realizava e sobre a escolarizao, sem fazer ainda nenhuma das perguntas de

    meu roteiro. Expliquei sobre o estudo que estava desenvolvendo, falando que era 45 Em anexo, no final desta dissertao. 46 A entrevista foi realizada com os adolescentes da casa comunitria em que a pesquisadora trabalhava.

  • 44

    um trabalho pessoal, que os nomes dos participantes ficariam em sigilo e que,

    posteriormente, eu iria solicitar a autorizao dos responsveis, para que as falas

    deles pudessem fazer parte da elaborao do meu estudo. Perguntei se estariam

    dispostos a colaborar, deixando que eu gravasse suas falas em fita cassete. Os

    adolescentes escolhidos foram bastante prestativos e se dispuseram a colaborar

    com empolgao.

    A questo utilizada para iniciar a entrevista focou o ato infracional do

    adolescente, assim, perguntei a cada um deles, primeiramente, o que os levou a

    infracionar. Como a vida deles na Semiliberdade partiu de um ato infracionrio,

    elegi essa pergunta por considerar que seria um bom incio para a entrevista

    diante do problema dessa pesquisa. A entrevista foi sendo desenvolvida de

    acordo com cada adolescente, pois cada um se portava de maneira diferente, com

    diferentes graus de timidez, simpatia e desenvoltura. Alguns falando mais, outros

    falando menos.

    Por outro lado, no decorrer das entrevistas, fui tambm anotando algumas

    percepes ao ouvi-los. Tais anotaes aparecem em negrito durante o relato do

    adolescente. As entrevistas so apresentadas a seguir, destacando no incio de

    cada uma, a frase que ao meu ver, caracterizava o discurso do adolescente.

  • 45

    Captulo lll

    3.1 Entrevista com Samuel

    Quero um Servio a pampa... que trabalhe pouco e ganhe bem... Quero viver sossegado...

    Adolescente, entrevistado tem 16 anos, primrio na medida e grau

    infracional grave, cursa o 1 ano do ensino mdio no perodo noturno. alto,

    moreno, olhos verdes, est sempre arrumado, usa roupas de marca, cabelo bem

    cortado e com gel. Conforme relatrio de acompanhamento, um aluno

    indisciplinado no ambiente escolar. Ele foi inscrito em curso profissionalizante de

    informtica e demonstrou interesse, comportamento adequado e aproveitamento

    satisfatrio, segundo dados do relatrio de acompanhamento de curso. Conforme

    informao da tcnica que atende o adolescente, o histrico familiar do mesmo

    permeado por conflitos entre os pais, desde o seu nascimento. So separados de

    corpos, mas convivem em cmodos diferentes no mesmo espao fsico. Os pais

    tm dificuldades de impor limites ao filho, dada a falta de consenso entre eles na

    educao do mesmo. Residem em bairro nobre, porm a caracterstica de sua

    moradia no se identifica com o padro das demais casas da regio.

    Conversa inicial

    Queria que vo