Alonso Angel Are Sen Ha

16
Resenhas Ângela Alonso, Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo, Paz e Terra, 2002, 392 pp. João Ehlert Maia Doutorando em Sociologia no Iuperj Como tratar de forma original um tema tão fami- liar à imaginação intelectual brasileira como esse, o da famosa “geração 1870”? Como apreender o sen- tido dessa geração, que abriga nomes tão díspares quanto Joaquim Nabuco, Alberto Salles, Sílvio Romero, Lopes Trovão, entre tantos outros? Como interpretar sociologicamente um conjunto que reúne liberais, republicanos, positivistas e federalistas, to- dos às voltas com Spencer, Comte e Darwin? Uma alternativa seria seguir o padrão que parece lenta- mente se impor nas áreas de estudos voltadas para o chamado “pensamento social brasileiro”: o tratamen- to monográfico de autores e obras, recurso que per- mitiria maior precisão conceitual e interpretativa diante das generalizações esquemáticas. Essa alter- nativa, que já rendeu excelentes pesquisas e ainda pode render outras, não é a seguida por Ângela Alonso em Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. É interessante apontar, inicialmente, as opções rejeitadas na pesquisa, por indicarem quais cami- nhos novos a autora deseja trilhar. De saída, Alonso descarta uma das mais tradicionais abordagens, que classifica os personagens em função de suas filiações intelectual-doutrinárias. Essa recusa não é gratui- ta. De acordo com a autora, isso seria conferir ao mundo intelectual do período (Segundo Reinado) uma autonomia e uma complexidade inverossímeis. Como falar de escolas intelectuais num cenário em que política e letras se misturavam de forma tão provocadora? Ademais, assumir filiações e prefe- rências como índice seguro de classificação signi- ficaria atribuir peso excessivo às próprias inter- pretações dos atores do período, como se a visão que os mesmos construíram a respeito de suas tra- jetórias já esgotasse o processo de pesquisa socio- lógica. A opção por uma abordagem que buscasse correspondência direta entre ideologia e grupos

description

resenha

Transcript of Alonso Angel Are Sen Ha

Page 1: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Ângela Alonso, Idéias em movimento: a geração1870 na crise do Brasil Império. São Paulo, Paz eTerra, 2002, 392 pp.

João Ehlert Maia

Doutorando em Sociologia no Iuperj

Como tratar de forma original um tema tão fami-

liar à imaginação intelectual brasileira como esse, o

da famosa “geração 1870”? Como apreender o sen-

tido dessa geração, que abriga nomes tão díspares

quanto Joaquim Nabuco, Alberto Salles, Sílvio

Romero, Lopes Trovão, entre tantos outros? Como

interpretar sociologicamente um conjunto que reúne

liberais, republicanos, positivistas e federalistas, to-

dos às voltas com Spencer, Comte e Darwin? Uma

alternativa seria seguir o padrão que parece lenta-

mente se impor nas áreas de estudos voltadas para o

chamado “pensamento social brasileiro”: o tratamen-

to monográfico de autores e obras, recurso que per-

mitiria maior precisão conceitual e interpretativa

diante das generalizações esquemáticas. Essa alter-

nativa, que já rendeu excelentes pesquisas e ainda

pode render outras, não é a seguida por Ângela

Alonso em Idéias em movimento: a geração 1870 na

crise do Brasil Império.

É interessante apontar, inicialmente, as opções

rejeitadas na pesquisa, por indicarem quais cami-

nhos novos a autora deseja trilhar. De saída, Alonso

descarta uma das mais tradicionais abordagens, que

classifica os personagens em função de suas filiações

intelectual-doutrinárias. Essa recusa não é gratui-

ta. De acordo com a autora, isso seria conferir ao

mundo intelectual do período (Segundo Reinado)

uma autonomia e uma complexidade inverossímeis.

Como falar de escolas intelectuais num cenário em

que política e letras se misturavam de forma tão

provocadora? Ademais, assumir filiações e prefe-

rências como índice seguro de classificação signi-

ficaria atribuir peso excessivo às próprias inter-

pretações dos atores do período, como se a visão

que os mesmos construíram a respeito de suas tra-

jetórias já esgotasse o processo de pesquisa socio-

lógica. A opção por uma abordagem que buscasse

correspondência direta entre ideologia e grupos

Page 2: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Tempo Social – USP328

sociais (como “cientificismo = expressão de seto-

res médios emergentes”) também é afastada, dada

a pluralidade de atores que compunham essa ge-

ração – setores médios, por certo, mas também grupos

tradicionais decadentes. Ora, então onde estaria o

sentido do protesto coletivo que sacudiu o Impé-

rio e propiciou uma explosão de “idéias novas”? O

argumento da autora é cristalino, e trabalhado exaus-

tivamente ao longo do livro: a geração de 1870 deve

ser compreendida a partir de um marco analítico

que destaque a experiência compartilhada de seus

membros. Com esse movimento, a autora busca evitar

a clássica dualidade que opõe cultura e prática social,

problema que assola qualquer estudo sobre idéias

e intelectuais. Assim, o trânsito intelectual entre Europa

e Brasil não é tratado como um processo autôno-

mo infenso ao jogo social “nacional”, como se ao

analista restasse apenas a tarefa de determinar o maior

ou menor grau de “imitação” presente nesse trânsi-

to. Mas, ao mesmo tempo, as idéias não são deduzidas

aprioristicamente a partir da localização cartográfica

dos grupos na estrutura de classes. As “idéias no-

vas”, nos diz a autora, são ferramentas, mobiliza-

das seletivamente a partir dos critérios que orga-

nizavam a luta política na crise do Segundo Rei-

nado. Estão em movimento.

Alonso busca numa literatura mais comumente

associada a outros campos de pesquisa o instru-

mental necessário para confeccionar um enquadra-

mento singular para seu objeto. Assim, autores como

Tilly, Swindler e Tarrow são mobilizados para a

compreensão de um movimento que, na perspectiva

da autora, nunca teria sido propriamente “intelec-

tual”, mas antes uma ação coletiva animada por

um profundo desejo de intervenção política. O que

unificaria os diversos membros da famosa geração

seria uma coleção de críticas novas ao status quo

imperial e saquarema, críticas essas assentadas em

uma experiência comum de marginalização polí-

tica, e não a filiação doutrinária ou a pertença a

esta ou aquela classe social.

Ao longo do texto, Alonso trabalha com um “tri-

pé” conceitual que a auxilia a encaminhar o argu-

mento principal. Comunidade de experiência, repertó-

rio e estrutura de oportunidades políticas formam o ar-

cabouço a partir do qual a autora interpreta a ação

coletiva da geração e o sentido prático-político que

orientaria esse “movimento social”. De uma certa

forma, os capítulos centrais estão estruturados justa-

mente em torno de cada um desses conceitos, o que

facilita a exposição da hipótese e o acompanhamento

do raciocínio desenvolvido.

No primeiro capítulo, a autora apresenta o regi-

me imperial, seus valores, práticas e modus operandi.

Demonstrando habilidade para lidar com a biblio-

grafia consagrada ao tema e combiná-la com clássi-

cos sobre a formação social brasileira (e aqui o re-

curso principal é ao ensaio de Florestan sobre a re-

volução burguesa no Brasil), Alonso delineia o que

considera serem os eixos principais na legitimação

do status quo saquarema: o indianismo romântico, o

liberalismo estamental e o catolicismo hierárquico.

Todos esses elementos teriam alimentado a energia

intelectual envolvida nas disputas que acirraram a

crise no Segundo Reinado, momento em que os

conservadores se viram obrigados a um exercício

constante de racionalização em torno dos funda-

mentos da ordem ameaçada. O segundo capítulo,

possivelmente o mais ricamente documentado, in-

vestiga os diferentes grupos que compunham a ge-

ração de 1870 (liberais republicanos, novos liberais,

positivistas abolicionistas, federalistas positivistas do

Rio Grande do Sul e federalistas científicos de São

Paulo) e destaca a experiência comum de margina-

lização política. Essa marginalização, é claro, seria

relativa, e diria respeito antes ao esgotamento de

possibilidades de realização profissional e intelec-

tual dentro dos limites estreitos da ordem imperial

do que a uma efetiva posição de subordinação so-

cial dentro dessa mesma ordem. Manejando rica pes-

quisa empírica, a autora mostra como integrantes

destacados da geração tiveram aspirações e projetos

Page 3: Alonso Angel Are Sen Ha

329junho 2004

Resenhas

de ascensão emperrados pelo imobilismo da má-

quina saquarema, incapaz de dar conta da dinâmica

moderna que se gestava no Brasil no período. O uso

da categoria “marginalização” é decerto afrouxado,

o que permite incluir nessa situação nomes tradi-

cionais com proeminência parlamentar, como Joa-

quim Nabuco. Esse capítulo talvez seja o mais rele-

vante para o encaminhamento do argumento, na

medida em que busca caracterizar sociologicamen-

te a geração de 1870 sem obscurecer sua evidente

heterogeneidade interna. Alonso não hesita em mos-

trar como o elo de solidariedade entre seus inte-

grantes era algo frágil, já que construído não em

torno de identificações profissionais ou intelectuais,

mas por uma situação histórica contingente.

O capítulo 3 é o mais intrincado do livro. Como

já foi dito, a abordagem da autora é centrada no

tratamento político de um movimento em geral visto

como puramente “intelectual”. Mas como a absor-

ção das idéias que movimentavam a Europa na se-

gunda metade do século XIX por parte dos mem-

bros da geração é uma parte central da investigação

do movimento de protesto, é imprescindível abrir a

literatura produzida por esses personagens. É preci-

so, diz a autora, compreender seu repertório, ou seja, a

gramática intelectual mobilizada pelos agentes na

formação de um movimento coletivo.

Nas extensas análises que faz de obras seminais

dos principais autores envolvidos, Alonso demons-

tra segurança e conhecimento dos debates que en-

volviam positivistas, darwinistas, “cientificistas”,

abolicionistas, liberais ou combinações entre esses

elementos. O critério de interpretação que usa é

condizente com sua linha argumentativa: esses es-

critos devem ser compreendidos como peças pro-

duzidas pela absorção política de idéias européias,

ou seja, como obras que visariam a atacar funda-

mentos da ordem imperial saquarema, e não avan-

çar no campo da teoria política. Com esse procedi-

mento, a autora afasta-se novamente de abordagens

tradicionais que enxergam nos membros da geração

de 1870 “intelectuais” envolvidos em polêmicas

doutrinárias. Contudo, o próprio desenvolvimento

do capítulo suscita outras leituras do problema. Ao

abrir a literatura examinada, Alonso pontua discus-

sões ricas, que certamente revelariam novos ângulos

de análise para os interessados no tratamento her-

menêutico desses textos. O debate entre america-

nismo e iberismo, por exemplo, ganha sutilezas e

contornos inesperados na interpretação da autora,

que apenas pincela um possivelmente produtivo di-

álogo com os escritos de Werneck Vianna a respeito

do tema. Como sua linha interpretativa rejeita aná-

lises mais próximas ao universo da História das Idéias

e dedica-se a um tratamento sociológico amplo de

toda uma geração, Alonso nesse capítulo termina por

apresentar inúmeras análises interessantes e criativas

que infelizmente não podem ser mais aprofundadas.

O capítulo 4 e a conclusão do livro arrematam

de forma precisa o argumento. Após trabalhar a co-

munidade de experiência e o repertório, Alonso finaliza

seu tripé conceitual analisando a estrutura de opor-

tunidades que se teria gestado no período e forne-

cido uma gama de recursos organizacionais para os

membros da geração. A conjugação de urbanização,

desenvolvimento econômico e maior complexida-

de do tecido social imperial teria possibilitado aos

personagens pesquisados espaços novos de mobili-

zação que escapavam ao estrangulamento vivido no

sistema partidário. Assim, o olhar de Alonso volta-se

para os comícios, os novos jornais e os manifestos

que se multiplicavam e teriam possibilitado a arti-

culação de um movimento heterogêneo que com-

partilhava como princípio identitário apenas um

antagonista. Na interpretação da autora, a geração

de 1870 é indissociável do surgimento de um “proto-

espaço público”, na medida em que sua própria

experiência de marginalização e o aprofundamento

do capitalismo no país (com a conseqüente intro-

dução de novos personagens e tipos sociais) teriam

forçado a abertura de novos lugares sociais para o

fazer político. O esgarçamento da dinâmica Partido

Page 4: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Tempo Social – USP330

Liberal/Partido Conservador e a cisão dentro da

própria elite imperial seriam outros componentes

desse processo de alargamento da vida pública. Ao

final, a caracterização dessa ampla coalizão é feita

pela autora com o recurso ao conceito de “refor-

mismo”. Diante da heterogeneidade interna da ge-

ração e das inúmeras tensões que terminaram por

minar uma unidade que por si só já seria precária,

Alonso opta por unificar conceitualmente os diver-

sos matizes de rebeldia sob a égide do combate ao

imobilismo imperial – ao fim e ao cabo, único prin-

cípio que permitiria a agregação da diversidade.

Curiosamente, volta-se aqui a uma matriz operató-

ria clássica da política “à brasileira”, como bem per-

cebe a autora: a moderação – que no registro de

Alonso possui contornos negativos, sendo associada

ao elitismo que caracterizaria o processo histórico

nacional. Certamente se poderia cotejar esse fecho

com notações mais positivas desse “traço” nacional,

em especial aquelas que, centradas no conceito

gramsciano de revolução passiva, buscam uma in-

terpretação do Brasil que escape à dicotomia “re-

forma versus revolução”.

O percurso feito por Alonso ao longo do livro é

decerto instigante e original. Pode-se questionar a

centralidade conferida pela autora ao tema da margi-

nalização política como critério sociológico de com-

preensão do objeto e sua utilização “alargada”, mas

não a densidade da pesquisa que sustenta essa tese e

a coerência argumentativa que a encaminha. O ris-

co de compactar de forma excessiva a heterogenei-

dade da geração de 1870 é assumido e enfrentado

sem que o rigor da abordagem escolhida seja ate-

nuado, o que faz com que esse trabalho seja exem-

plar no campo da metodologia disciplinar. Ao final,

o resultado que se lê em Idéias em movimento: a gera-

ção 1870 na crise do Brasil Império não é apenas posi-

tivo pelo que está apresentado no argumento prin-

cipal, que por si só já garante um lugar de relevo

para esta obra, mas também pelas sugestões e trilhas

de pesquisa abertas pela autora em um tema já tão

visitado pelas nossas ciências sociais. Cabe ao leitor

interessado o desafio de seguir essas trilhas e mobi-

lizar de forma criativa esse trabalho de Ângela Alonso.

Enio Passiani, Na trilha do Jeca: Monteiro Lobatoe a formação do campo literário no Brasil. Bauru,Edusc, 2003, 276 pp.

Flávio MouraProfessor de Teoria do Jornalismo na Facamp

e editor da revista Novos Estudos, do Cebrap.

Comemorações do aniversário de São Paulo e mi-

nisséries globais à parte, o momento é de revisão das

idéias estabelecidas sobre o modernismo. Desde o

final dos anos de 1990, vêm sendo publicados di-

versos trabalhos que tratam de atenuar o caráter trans-

formador do movimento e compreendê-lo a partir

de um ponto de vista mais distanciado que o dos

críticos responsáveis pela supervalorização de seu le-

gado. Trabalhos como o de Tadeu Chiarelli, Annate-

resa Fabris e Sergio Miceli, entre os de vários outros

autores, têm se ocupado de identificar os elementos

conservadores que lhe serviram de base, de relativizar

algumas de suas conquistas estéticas, de entendê-lo

mais como continuidade do que como ruptura e de

desmontar seus pressupostos à luz do projeto de li-

derança empreendido por seus artistas de maior des-

taque e pelos críticos mais ligados a eles.

Em boa medida, Na trilha do Jeca, trabalho de

mestrado do sociólogo Enio Passiani publicado no

fim de 2003, pode ser aproximado a essa linhagem.

A proposta é entender, a partir do exame da obra de

Monteiro Lobato e de sua atuação editorial, como

ele passou a ocupar posição hegemônica no campo

literário brasileiro nas duas primeiras décadas do

século XX – e como sua perda de influência nos

anos seguintes se liga à ascensão do grupo moder-

nista. “Os modernistas fizeram de Lobato o símbolo

maior de um passado que devia ser enterado; por-

Page 5: Alonso Angel Are Sen Ha

331junho 2004

Resenhas

tanto, matá-lo (e junto com ele toda uma geração

de escritores) significava declarar finalmente a vitó-

ria modernista”, afirma Passiani nas primeiras pági-

nas de seu livro.

A morte simbólica de Lobato a que o autor se

refere, decretada por Mário de Andrade em 1926

num artigo publicado no jornal carioca A Manhã,

é um dos episódios de que se vale para mostrar como

o embate direto com os líderes do modernismo con-

tribuiu para que ele fosse excluído do grupo e, como

tal, impedido de colher os frutos simbólicos que essa

associação poderia trazer. A partir de uma análise so-

ciológica desse processo, Passiani procura elucidar os

motivos que levaram a crítica ortodoxa a enxergar

Lobato como contista medíocre e autor regionalista

de pouco calibre, ainda que pudesse considerá-lo um

grande autor infantil. Ao mesmo tempo, trata de re-

constituir a posição social do pré-modernismo no

bojo da história cultural do país, visto que a própria

acepção de “pré-modernismo” não pode ser enten-

dida fora do contexto da luta simbólica empreendi-

da no interior do campo literário.

O livro divide-se em quatro capítulos. No pri-

meiro, “As peças do quebra-cabeça”, o autor busca

demonstrar como o confronto travado contra os

modernistas se deu mais em razão das semelhanças

que das diferenças existentes entre os dois lados. Preo-

cupado em desvelar um Brasil “real”, para além das

idealizações românticas, defensor de uma literatura

engajada nos problemas do país, de uma linguagem

literária coloquial e direta, pródiga em neologismos,

inserida numa pesquisa estética séria, Lobato se te-

ria ocupado de um projeto literário em muitos as-

pectos semelhante ao de autores modernistas, que

por isso viam nele um obstáculo à possibilidade de

se instituírem como os renovadores por excelência

da arte brasileira. “Os modernistas se auto-repre-

sentavam como uma ruptura radical em relação ao

passado literário nacional e a presença de Lobato,

sua obra, denunciava que não havia uma ruptura

drástica, mas, ao contrário, uma certa continuidade

no processo histórico de formação de nossa litera-

tura”, lembra o autor.

Adiante nesse primeiro capítulo, o maior do li-

vro, Passiani faz rápida leitura da obra de críticos

ligados ao movimento, entre eles Sérgio Buarque de

Holanda, Mário da Silva Britto e Antonio Candido,

e empenha-se em mostrar como foram aos poucos

construindo um discurso que instituía o modernis-

mo como o momento supremo de ruptura com o

passado. O corolário dessa construção teria sido a pró-

pria definição do momento literário que sucede o

realismo-naturalismo e antecede a Semana de Arte

Moderna de 1922 como “pré-modernismo”, rótu-

lo sugestivo de que nesse período estava em jogo

apenas uma preparação para os movimentos da ge-

ração seguinte. “Ao contrário do que a pena mo-

dernista mostra”, escreve o autor, “o período ante-

rior também constitui um momento de ruptura com

os moldes poéticos preconizados pela estética art

noveau, e representou a primeira tentativa de se co-

nhecer o país a fundo por meio de uma nova lin-

guagem: a narrativa literária, pela primeira vez na

história da literatura brasileira, se mostrou explicita-

mente como uma ferramenta para o conhecimento

das condições ‘reais’ do país”.

No capítulo seguinte, “Na trilha do Jeca”, Passiani

refaz a trajetória de Lobato e os caminhos que per-

correu para penetrar no ambiente intelectual da

época, do ingresso na Faculdade de Direito do Lar-

go São Francisco aos primeiros artigos em O Estado

de S. Paulo, veículo fundamental para a divulgação

de seu nome no país. “O artista e seu projeto cria-

dor” e “Crise à vista” são os capítulos que fecham a

argumentação. O primeiro deles, único a trazer aná-

lise de texto propriamente dita, apresenta uma lei-

tura de Urupês e de Cidades mortas, os mais impor-

tantes entre os primeiros livros de Lobato, contra-

pondo-os à atividade do escritor como editor, crucial

para entender sua inserção no campo literário. O

último capítulo aponta como, a partir de 1925, com

a falência de sua casa editora, o fracasso de seu ro-

Page 6: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Tempo Social – USP332

mance O presidente negro, publicado no ano seguinte,

e a ascensão do modernismo, sua influência no cam-

po intelectual se reduz drasticamente.

Torna-se mais simples entender essa montagem

argumentativa se levarmos em consideração que a

principal referência teórica do autor é Pierre Bour-

dieu. Mais especificamente, a noção de campo for-

mulada pelo sociólogo francês. De modo simplifi-

cado ao extremo, é possível entendê-la como um

sistema inclusivo de relações e posições predetermi-

nadas que abrangem, à maneira dos postos disponí-

veis no mercado de trabalho, classes de agentes pro-

vidos de propriedades de um tipo determinado. A

cada uma dessas posições estariam associadas toma-

das de posição estéticas ou ideológicas. Dessa ma-

neira, a tentativa de traçar o modo como as catego-

rias em questão puderam ter acesso a essas posições,

como faz Passiani nesse trabalho, é o ponto de par-

tida para uma análise que pretenda dar conta do

problema. Essa abordagem envolve ao menos três

aspectos fundamentais: em primeiro lugar, a posição

do artista na estrutura da classe dirigente; em segun-

do, a concorrência interna em busca de legitimida-

de cultural; e, em terceiro, as disposições socialmen-

te constituídas do agente. Segundo a formulação de

Bourdieu, a essas disposições corresponde a idéia de

habitus, entendida como princípio gerador e unifi-

cador do conjunto de práticas e ideologias caracte-

rísticas de um grupo determinado.

A familiaridade de Passiani com o conceito e a

preocupação em delineá-lo em seus menores mati-

zes é perceptível ao longo de todo o trabalho. Veja-

se, por exemplo, a relação de Lobato com a Acade-

mia Brasileira de Letras. Em 1919, por sugestão de

amigos, o escritor começa a aventar a hipótese de

candidatar-se à ABL. De início, contudo, mostra-se

refratário à idéia, alegando que não tinha “feitio

acadêmico”. Nesse ponto, Passiani demonstra em

pormenores como era possível sustentar essa afir-

mação. Na época, Lobato era o autor de maior des-

taque no campo literário brasileiro, capaz de insti-

tuir ele próprio critérios de legitimação intelectual

a partir dos autores que escolhia para publicar por

sua editora. Adepto de uma escrita que se queria

próxima da linguagem popular, e portanto incom-

patível com as “gramatiquices” dos acadêmicos, Lo-

bato tinha cacife para tirar proveito da opção de

posar de independente no campo. A partir de 1925,

contudo, quando sua editora vai à falência, os escri-

tores modernistas assumem a dianteira e seus livros

deixam de emplacar, o escritor tenta uma vaga na

Academia, o que se mostra uma maneira de recupe-

rar parte dos bens simbólicos perdidos e garantir

sua sobrevivência no campo.

A equação que se propõe para o problema é

engenhosa: como esnobara a academia nos anos an-

teriores e não foi eleito para o posto, o escritor acaba

enveredando para a literatura infantil. Praticamen-

te o inventor do gênero no país e ainda hoje sem

rival à altura, Lobato teria visto nessa prática um

modo de explorar um nicho ainda virgem, a par-

tir do qual poderia reconstruir a carreira e gran-

jear prestígio como criador. Apresentado com as

devidas ressalvas – a escolha não seria uma estra-

tégia consciente do escritor, mas um tipo de in-

tuição decorrente do habitus literário internalizado

a partir da experiência no campo –, esse tipo de

formulação exemplifica a boa mão do sociólogo para

associar as tomadas de posição às disputas que se

travam no interior do campo. É nessa mesma chave

que se pode ler a associação entre a posição social

do escritor, herdeiro de uma família de fazendei-

ros decadentes do vale do Paraíba, e o espaço de

que dispunha no jornal O Estado de S. Paulo, ge-

rido por uma família que defendia interesses se-

melhantes. Ou a relação entre o discurso feito por

Ruy Barbosa em 1919, em que o jurista baiano

elogiava Urupês, e o sucesso comercial estrondoso

obtido pelo livro, de resto beneficiado pelo fato

de Lobato ter sido seu próprio editor.

Alguns desajustes, no entanto, ficam visíveis na

caracterização da “força revolucionária” da obra

Page 7: Alonso Angel Are Sen Ha

333junho 2004

Resenhas

lobatiana. No terceiro capítulo, em que procura dar

base a essa visão a partir da leitura dos textos, por ve-

zes Passiani recorre a qualificações do tipo “lingua-

gem exata”, “texto enxuto”, “texto que leva o leitor

à reflexão”, as quais sugerem certo desequilíbrio en-

tre a visada sociológica e a literária, além de uma de-

fesa talvez exacerbada de seu objeto de análise. Essa

mesma defesa aparece nos trechos em que analisa o

confronto entre Lobato e Anita Malfatti, deflagrado

pelo conhecido artigo “Paranóia ou mistificação?”,

de 1917. Com base no trabalho de Tadeu Chiarelli,

Passiani lembra que Lobato não era um crítico ama-

dor, mas um dos mais talhados analistas de artes plás-

ticas de sua época, e que a reação dos modernistas a

esse artigo só adquiriu grande proporção em razão

da importância que atribuíam ao criador do Jeca

Tatu. Mas não discute, por exemplo, o possível pre-

conceito contra os imigrantes que poderia animar a

invectiva de Lobato, hipótese que Sergio Miceli le-

vanta em seu Nacional estrangeiro e que, num estudo

detalhado e bem fundamentado como o de Passiani,

mereceria atenção pormenorizada.

Note-se, ainda, que a publicação do livro do so-

ciólogo envolve um paradoxo curioso: o trabalho

ganhou o prêmio de melhor dissertação de mestrado

no concurso CNPq-Anpocs de 2002. O selo da pre-

miação é impresso de modo ostensivo na capa do

livro, assim como, no prefácio, são reiteradas as refe-

rências ao trabalho de fôlego do jovem sociólogo,

que “anuncia um projeto de vida intelectual de en-

vergadura” e “ultrapassa as expectativas firmadas”. É

como se, no limite, a chancela da instância de consa-

gração representasse ao mesmo tempo uma reco-

mendação e uma ressalva. Como se estivéssemos

diante de um trabalho excepcional para o início de

carreira, e não simplesmente de uma ótima pesquisa.

Feitas as contas, é disso que se trata: de um livro

de primeira linha, mais uma fonte da qual não pode-

rão fugir os estudiosos de Lobato e do modernismo.

Ismail Xavier, O olhar e a cena: melodrama,Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. SãoPaulo, Cosac & Naify, 2003, 384 pp.

Sergio Mota

Professor do Departamento de Comunicação Social

da PUC-Rio

Há quem acredite que o cinema pode ser um lugar

de revelação, de acesso a uma verdade por outros

meios inatingível. Dentro do projeto de revelação

do mundo para o olhar, toda leitura de imagem é

produção de um ponto de vista. É quase impossível

conceber uma cultura submetida ao olhar em que a

visão não detenha prioridade. Por exemplo, ao ele-

ger a visibilidade como proposta para este milênio,

Italo Calvino afirma que não se pode correr o risco

de perder “a capacidade de pôr em foco visões de

olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de

um alinhamento de caracteres alfabéticos negros

sobre uma página branca, de pensar por imagens”.

Para o escritor italiano, a experiência contemporânea

é pressionada por um acúmulo de imagens sucessivas

que não conseguem se sustentar por si mesmas, di-

luindo-se antes de adquirir consistência na memó-

ria daquele que vê. O que confere à visibilidade

estatura de proposta é, justamente, a capacidade de

ser um meio transparente, através do qual a realida-

de se apresenta à compreensão. Sem contar que, quan-

do Calvino elege a visibilidade como um valor lite-

rário a ser preservado, não a situa no campo da vi-

são, mas no da imaginação.

Vive-se hoje um mundo dominado de todos os

lados pelas imagens, e esse excesso impõe novos re-

pertórios visuais, ao lado de uma idéia recorrente

que afirma que tal saturação imagética contribui para

uma “falha” no aprendizado do ver. Assim, a questão

que se desenha é: de que forma a cena do mundo

pode ser codificada diante de uma multiplicação

infinita de imagens? No que diz respeito ao olhar, é

possível alguma pedagogia que auxilie na apreensão

Page 8: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Tempo Social – USP334

desse mundo saturado, em que tudo se dá ou se põe

a ver? Os teóricos pós-modernos revelam que a su-

perabundância induz a um estado de desorientação

no qual a percepção não se preocupa se as imagens

reproduzem ou não o mundo, na discrepância entre

imagens e realidades, olhar e cena, entre significan-

tes e significados. Convertidos em meros produtos

de entretenimento, os signos podem deixar de apon-

tar para um mundo de diferenças e de novas possi-

bilidades e criar a simples vertigem da representa-

ção, para espectadores reais e virtuais (ver, nesse sen-

tido, o livro Paisagens urbanas, de Nelson Brissac

Peixoto).

A importância que a imagem e a visualidade

vêm assumindo na epistemé moderna e a existência

de um alhures do espetáculo são investigações de O

olhar e a cena, de Ismail Xavier. Com o olhar arguto

que lhe é peculiar, o crítico arregimenta temas e fil-

mes basilares da cinematografia mundial e nacional,

a fim de demonstrar os liames que sustentam as rela-

ções entre a estrutura do drama, o lugar da cena e o

papel do espectador no cinema diante da oferta de-

senfreada de imagens. Em um primeiro momento, a

sondagem teórica de Xavier passa, obrigatoriamen-

te, pela delimitação do lugar do melodrama teatral

no cinema que nascia com o século XX. Resultado

imediato de uma época marcada pela inconstância e

por precários índices de estabilidade (o século

XVIII), a estrutura melodramática apresentou ao es-

pectador a inversão desse estado de coisas. No lugar

de uma instabilidade permanente a reboque do de-

senvolvimento capitalista, um universo codificado,

sem riscos, facilmente reconhecido e estruturado

com rigidez, dentro de valores que se opunham na

simplificação de duas instâncias: o bem e o mal. Nes-

sa rígida estrutura encontra-se, portanto, uma tam-

bém rígida dualidade (dicotômica, na visão de

Xavier) e uma irremediável oposição na qual não há

possibilidade de conciliação por parte dos persona-

gens. Em sua pesquisa, o crítico reconhece que tais

experiências estabelecem um jogo com uma cons-

trução ilusionista de impacto visual, cuja conse-

qüência imediata provoca no herói melodramático

estados emocionais reveladores que jamais se alojam

no meio do caminho, em pontos intermediários. É

justamente o melodrama o responsável por fornecer

a esse espectador desorientado pelos níveis de acele-

ração advindos da Revolução Industrial uma espécie

de cartilha da moralidade (um mundo que ainda

tem espaço para reconciliações, conforme afirmou o

crítico em outra ocasião).

Nessa delimitação das relações entre melodrama

e cinema, Xavier reconhece que o melodrama, após

a Revolução Francesa e durante o século XIX, fun-

cionou como uma espécie de motor que impulsio-

nou as origens do cinema (e, mais tarde, da televi-

são), alimentando-o de enredos rocambolescos, de

sentimentalismos e moralismos centrados no inevi-

tável maniqueísmo, representados por atores que ti-

nham na grandiloqüência e no exagero da forma

sua principal marca. Dentro dessa perspectiva, o li-

vro de Ismail Xavier não deixa de ser uma historio-

grafia de um certo tipo de olhar que encontra no

naturalismo engendrado pela cena burguesa do sé-

culo XVIII uma aceitação tácita da ilusão. Nesse tipo

de drama, a cena se revela um lugar de autonomia

que não dá conta do olhar que o espectador, em

outra instância, lança sobre ela. Reproduzir na cena

o mundo tal como ele se apresenta é tarefa ensinada

pelo Iluminismo. Nesse sentido, a cena ganha auto-

nomia pela naturalidade que sua representação en-

cerra e deve ser um espaço discreto, sem o uso de

aparentes artifícios e gestos que prejudiquem tal acei-

tação incondicional.

Nesse percurso crítico, é o cinema clássico o her-

deiro do lugar ocupado pelo espectador, principal-

mente pelo fato de que o dispositivo cinematográfi-

co inaugura um deslocamento importante em rela-

ção à estrutura teatral. Com o cinema, a imagem que

ocupa o lugar do espectador revela um espaço que se

organiza à revelia dele, dentro de uma dimensão ter-

ceirizada (porque externa) engendrada pelo olhar

Page 9: Alonso Angel Are Sen Ha

335junho 2004

Resenhas

da câmera. O que se revela diante desse olhar, princi-

palmente em relação aos dispositivos de representa-

ção, é um mundo que apresenta um retrato fiel da

realidade, mais que uma instância de “naturalismo”,

encenado como tal, para garantir a identificação do

espectador com a cena descrita que se amalgama

com a vida. Como resultado imediato, olhar do es-

pectador e olhar da câmera são faces da mesma moe-

da e parceiros nessa astúcia da representação. “A pro-

jeção da imagem na tela consolidou a descontinui-

dade que separa o terreno da performance e o espaço

onde se encontra o espectador, condição para que a

cena se dê como uma imagem do mundo que, deli-

mitada e emoldurada, não apenas dele se destaca mas,

em potência, o representa”, define o crítico, na tenta-

tiva de compreender a logística dessa nova forma de

representação arregimentada pelo cinema.

Essa estratégia da construção da cena como

imago mundi ou como microcosmo privilegiado,

para fins de ilusionismo (algo como afirmar que o

espectador faz parte da cena e com ela se confunde

ou identifica), é habilmente demonstrada por Xavier,

que disseca esses dispositivos de representação em

dois momentos modelares, representados por D. W.

Griffith (clássico do cinema norte-americano em

formação), que se serviu em excesso do modelo me-

lodramático, e Alfred Hitchcock, que superou ironi-

camente tal estrutura, utilizando artimanhas meta-

lingüísticas, para revelar uma outra logística do espe-

táculo (nesse sentido, valem o livro as análises de dois

filmes do diretor inglês, Vertigo e, principalmente, Ja-

nela indiscreta).

Em um segundo momento, Ismail Xavier volta-

se para a produção nacional, a fim de discutir estraté-

gias de atualização da matriz melodramática nas mi-

nisséries de Gilberto Braga (Anos dourados e Anos re-

beldes). Interessa ao crítico, nesse momento, revelar os

possíveis liames entre as formas do melodrama (e a

persistência de tal modelo) e o realismo, e também

demonstrar, por outro lado, de que forma a televisão

foi o agente que procurou constituir um certo senso

comum pós-freudiano no Brasil, que passa a legiti-

mar novas estratégias morais de inspiração humanis-

ta. Xavier, em uma leitura precisa, identifica os es-

quemas melodramáticos de tais objetos e revela de

que maneira, principalmente em Anos dourados, apa-

rece uma certa modernização que conserva a estru-

tura do melodrama clássico, o que responde, por um

viés conciliatório, à crise do modelo patriarcal.

Apesar de ser uma coletânea de textos publica-

dos em ocasiões distintas, impressiona o fato de o li-

vro não cometer, em nenhum momento, o pecado

irreparável da falta de conjunto, comum nesses casos.

A mudança da transitoriedade de textos dispersos

para a durabilidade do livro é relevante para se anali-

sar até que ponto uma reunião de ensaios pode per-

der o foco e a objetividade. Não é o caso de O olhar e

a cena, dono de uma unidade evidente que enfeixa

seus artigos e se ramifica por suportes teóricos dife-

renciados: uma reflexão a respeito dos desdobra-

mentos do melodrama em diferentes canais de re-

presentação, uma tentativa de colocar em xeque “os

problemas enfrentados na crítica dos filmes cuja in-

terpretação se enriquece a partir do cotejo com for-

mas da encenação teatral herdadas pelo cinema” e,

principalmente, um estudo da maneira, na saturação

de imagens da indústria cultural e do produto de

massa, como os filmes analisados sobrepujaram (ou

ratificaram) o viés ilusionista do cinema e das artes.

Esse esqueleto teórico de um pensamento críti-

co irrefutável encontra sua apoteose na leitura que

Xavier faz da obra de Nelson Rodrigues, o que ocu-

pa boa parte do livro e um módulo inteiro (“O ci-

nema novo lê Nelson Rodrigues”). O crítico exa-

mina as adaptações cinematográficas do autor de A

falecida sob a perspectiva da transformação do país

nos últimos quarenta anos, o que faz, pelo menos

desse capítulo, uma reflexão de referência no campo

dos estudos sobre esse autor. No cinema brasileiro,

nunca houve um escritor que tenha inspirado tan-

tos filmes como Nelson (cerca de vinte longas), en-

tre 1952 e 1999. Como já havia feito com as produ-

Page 10: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Tempo Social – USP336

ções anteriores, Xavier reconhece os elementos

melodramáticos de tal dramaturgia e a forma com

que o cinema se apoderou desse repertório de cri-

ses, que não permite retorno aos padrões nem dá

espaço para reconciliações, consoante revela o críti-

co nas leituras que realiza, entre outras, dos filmes

Boca de ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos, e

A falecida (1964), de Leon Hirszman, que procura-

ram solucionar tensões entre a necessidade de cons-

trução realista e os textos de que partiram. Com a

intenção de fazer um balanço dessa produção cine-

matográfica, a análise reconhece que o momento

mais produtivo desse conjunto de adaptações se deu

quando houve uma clara intenção, na escolha de

tom e gênero, de, por meio dos filmes, radiografar o

Brasil e produzir um extrato de diagnósticos que

revelam, principalmente nas obras adaptadas por

Arnaldo Jabor, as contradições do processo de mo-

dernização, com ares tragicômicos e alegóricos.

Na verdade, reconhecer o lugar que ocupa o es-

pectador em relação à cena que se disponibiliza é,

de certa forma, dentro de uma perspectiva históri-

co-social e estética, entender a natureza específica

da experiência audiovisual como interface espaço-

temporal, em que se entrechocam o tempo das nar-

rativas, a linguagem de imagens visuais e o sujeito

projetado nesse jogo, que não é apenas o sujeito do

discurso fílmico, recurso interno do texto como re-

lação de enunciação. É, também, corpo social e his-

toricamente em processo. Como afirma o próprio

crítico: “Para existir em sociedade, em especial no

império do marketing e da competição, precisamos

criar a cena, estar disponíveis diante de um olhar

que nos toma como objeto, nos oferecer como es-

petáculo, cumprindo os protocolos de sua geome-

tria e de seu desempenho. Há variadas formas dessa

geometria e de seus componentes, lugares específi-

cos de manifestação que se mesclam ao mundo prá-

tico e se expandem sem fronteiras claras no dia-a-

dia, no núcleo familiar, nos confrontos em socieda-

de, em tudo que a crítica cultural já observou sobre

o poder, o erotismo e a sedução, na esfera pública e

na vida privada”.

Ruy Coelho, Tempo de Clima. São Paulo, Pers-pectiva, 2002, 142 pp.

Fernando Antonio Pinheiro Filho

Doutor em sociologia pela USP, professor

da USP e da FESPSP

Primeira navegação

A reunião dos escritos publicados por Ruy Coelho

na revista Clima entre 1941 e 1944, ora editados em

livro, dá ensejo não só à apreciação direta de seus

achados e eventuais deslizes na atividade crítica, como

permite também, de um viés mais sociológico, acom-

panhar o valor expressivo dos textos como marcos

dos posicionamentos do autor no interior do grupo

de redatores da revista, desse grupo no campo da

crítica de arte que pretendia reconfigurar e da in-

fluência de tal episódio no direcionamento das car-

reiras intelectuais dos envolvidos. Nos limites desta

resenha, pretende-se alinhavar os últimos aspectos

mencionados, buscando atribuir à obra de estréia

seu peso específico no desenrolar da trajetória do

autor.

Na divisão do trabalho intelectual entre o gru-

po de jovens alunos da Faculdade de Filosofia da

USP que funda a revista em 1941, Ruy Coelho é

aquele que não tem uma função específica: para fi-

car no núcleo central, lembremos que Antonio Can-

dido trata de literatura, Paulo Emílio Salles Gomes

de cinema, Décio de Almeida Prado de teatro; a Ruy,

o mais jovem, coube o papel do curinga (conforme

a expressão assumida pelo próprio) que, além desses

temas, cuida ainda de erigir uma teoria da crítica,

ligada em sua visão à filosofia e à estética, e via de

regra articulada com a análise substantiva das obras.

É talvez essa ausência de uma determinação mais

específica, correlata à busca de um caminho pessoal,

Page 11: Alonso Angel Are Sen Ha

337junho 2004

Resenhas

que dá a ver como se faz o entranhamento da socia-

bilidade vivida no texto.

Sob esse aspecto, o longo ensaio sobre a obra de

Proust que abre o volume (publicado no primeiro

número de Clima, em maio de 1941) interessa so-

bretudo pelas escolhas de filiação que ora revela, ora

deixa entrever. Precisamente, refiro-me aqui à recu-

sa do pensamento de Bergson como baliza de com-

preensão do romance proustiano, contra a vertente

que vê na recriação do real pelo pensamento como

condição de sua realidade, sugerida no Em busca do

tempo perdido, a realização literária da identificação

entre realidade da consciência e experiência da du-

ração preconizada pelo filósofo. Na análise de Coe-

lho, tal visão é preterida em favor do racionalismo

dos discípulos de Kant,cuja concepção de conheci-

mento estaria mais próxima de Proust. Vale assinalar

que tal corrente, conhecida como neo-criticismo

francês, serve de base filosófica à sociologia de Dur-

kheim, que não por acaso argumenta sobre a natu-

reza social do tempo e vê na crítica à orientação es-

pacializante da inteligência que impediria a apreen-

são do real como duração uma clara deriva de Bergson

em direção ao irracionalismo. Ou seja, nesse movi-

mento, o jovem aluno de ciências sociais acena si-

lenciosamente para a escola francesa de sociologia e

reivindica sua adesão a um racionalismo que pon-

tua todos os textos do livro, e que para além da es-

colha teórica sanciona a adoção de um tom elevado

no estilo como marca de competência, mas retendo

a ambigüidade de filiação disciplinar na ausência de

menção e de uso do aparato sociológico de crítica.

Procedimento semelhante é usado no artigo de

junho de 1942 (número10 de Clima), “Introdução

ao método crítico”, plataforma de trabalho ancora-

da na dupla recusa dos estilos científico e impressio-

nista de crítica. Ao último, assimilado imediatamen-

te à produção da geração modernista (cujo nome

emblemático é o de Mário de Andrade, citado como

exemplo), Coelho reprova a excessiva projeção da

interioridade do crítico, nublando a objetividade do

juízo. Quanto ao primeiro, a sugestão é não mais de

acúmulo, mas de ausência de subjetividade que dis-

solveria a obra ao reduzi-la à configuração social de

origem. A solução, segundo o autor inspirada em

Hegel (que, de resto, é a referência teórica mais pre-

sente no livro) e em Sartre, consiste em encontrar o

ponto de vista do autor para, pondo-se assim na obra,

apreender seu movimento imanente e revelar sua

essência – como a revelação da essência é tradicio-

nalmente tarefa da filosofia, o novo método, que há

de superar todos os outros, é batizado de crítica filo-

sófica. Claramente, tal construção teórica correspon-

de à necessidade de fundação de um novo lugar no

campo intelectual, eqüidistante da cultura artístico-

literária dos criadores e da cultura científica da

objetivação plena da obra; entre a herança crítica

modernista e os limites do rigor acadêmico. Nesse

sentido, o artigo de Ruy Coelho procura contribuir

para realizar o que enuncia, consolidando o projeto

coletivo de que se fez porta-voz.

A polivalência de Coelho (ao longo dos artigos

o leitor encontra ainda textos sobre música, cine-

ma, política) funciona então no registro da não-

especialização adequada às formulações mais abran-

gentes, que no nível expressivo resolve-se no ma-

nejo de um efeito de erudição obtido por meio de

recursos como o controle de uma linguagem esté-

tica inespecífica mas dúctil. Por exemplo, neste trecho

que se refere a um romance: “A palheta do autor

acha-se singularmente enriquecida nesta obra. Aban-

donou o claro-escuro em que era mestre. Seu es-

tilo se coloriu de várias cambiantes novas pela ne-

cessidade de descrição do mundo exterior em seus

aspectos pitorescos” (p. 56). Ou ainda no comen-

tário sobre a relação entre música e pintura no

filme Fantasia de Disney.

A consideração da música brasileira revela outro

mecanismo tendendo ao mesmo efeito, que consiste

em desqualificar esteticamente a tradição popular,

no texto intitulado “Uma voz na platéia”, em cujo

final o autor se escusa do petulante de sua atitude

Page 12: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Tempo Social – USP338

pela intenção de interpretar os desejos da platéia – é

sua a voz que fala em nome dos que se calam. Nou-

tro lance, sua voz volta-se à fustigação de outro ícone

da geração anterior, Oswald de Andrade, cujo ro-

mance Os condenados é impiedosamente desqualifi-

cado, não sem algum espírito de cálculo, conforme

deixa entrever no último parágrafo do texto: “Não se

doa Oswald com as críticas, talvez severas em exces-

so. Achei meu dever de moço exprimir a opinião

sincera acerca desse livro de mocidade” (p. 81).

Ou seja, o arsenal crítico do jovem que julga é

comparativamente superior ao arsenal literário do

jovem criador objeto de sua crítica, o que antecipa a

consagração daquele mediando-a com a posterior

consagração deste. Note-se que, nesse e nos outros

escritos reunidos, Coelho faz uso de demonstrações

explícitas de erudição como constantes remissões a

uma ampla gama de autores consagrados e citações

no original em diversas línguas, o que reforça a le-

gitimação do que diz.

Sem dúvida é a competência intelectual do au-

tor que garante o êxito da empreitada. De fato, a

revista serviu de veículo institucional de expressão

para os novos críticos, que por meio dela ingressam

na crítica cultural em órgãos da grande imprensa,

suscitam a admiração de nomes como Sérgio Milliet

e Vinicius de Morais, e logram viabilizar suas carrei-

ras. Mas a ambivalência da posição construída fará

com que sua estabilização dependa em maior ou

menor grau do ingresso como professor na mesma

universidade em que todos se conheceram como

alunos, deslocando para o interior do campo acadê-

mico o embate vivido anteriormente, mas agora sem

a mesma unidade. O fato de Ruy Coelho integrar-

se tardiamente à Faculdade de Filosofia, em 1953,

após formação como antropólogo nos Estados Uni-

dos, num período de oito anos que começa imedia-

tamente após o final da revista em 1945, ganha nova

luz diante da experiência do jovem curinga que o

livro permite acompanhar.

Sandra Jacqueline Stoll, Espiritismo à brasileira.São Paulo, Edusp/Orion, 2004, 296 pp.

Yvonne MaggieProfessora titular de Antropologia da UFRJ

Espiritismo à brasileira começa com um fascinante re-

lato da presença de Francisco Cândido Xavier, o

famoso médium Chico Xavier, no programa Pinga

Fogo da TV Tupi em 1971, em um evento inédito e

ao vivo: a transmissão de uma sessão mediúnica.

Coincidentemente, esse foi o mesmo ano em que o

exu Seu Sete da Lira, incorporado na médium dona

Cacilda, incendiou a cidade do Rio de Janeiro com

sua aparição espetacular, também ao vivo, nos pro-

gramas de Chacrinha e de Flávio Cavalcanti.

O livro dedica-se a entender a reinterpretação

que se fez no Brasil do espiritismo francês de Allan

Kardec. Seus escritos, e os de outros autores euro-

peus espíritas na segunda metade do século XIX,

venderam quase tantas cópias quanto A origem das

espécies de Darwin.

Mas enquanto na Europa a doutrina de Allan

Kardec minguou, no Brasil se manteve muito viva.

Stoll aborda o espiritismo em terras brasileiras por

meio da análise da vida de Chico Xavier, falecido

em 2002, e, como contraponto, do estudo da traje-

tória de outro seguidor do espiritismo de inspira-

ção kardecista tupiniquim ainda atuante, Luiz An-

tonio Gaspareto. A autora argumenta que cada um

desses personagens incorpora uma das duas verten-

tes, ou versões, brasileiras da doutrina kardecista. De

um lado, o santo que se afasta do mundo e que, como

todos se lembram, era uma figura quase sem corpo

apesar de sempre ter se apresentado com enorme

cuidado pessoal, com os cabelos bem penteados es-

condendo a calvície. De outro, o santo que se imis-

cui nas coisas do mundo e se apresenta com beleza

como que pós-moderna, com brincos na orelha e

músculos à mostra. As fotos da edição cuidadosa

mostram claramente esses dois tipos com caracterís-

Page 13: Alonso Angel Are Sen Ha

339junho 2004

Resenhas

ticas físicas e representações corporais de santidade

contrastantes.

Segundo Sandra Jacqueline Stoll, Chico Xavier

afastou-se do cientificismo da doutrina de Kardec

ao se aproximar do catolicismo com seu “discurso

das virtudes” e da noção de santidade cristã. Na ar-

gumentação da autora, essa transformação foi uma

das razões do sucesso do espiritismo de inspiração

kardecista no Brasil. A vida de Chico Xavier é um

exemplo de vida monástica, pois o médium renun-

ciou à sexualidade e aos bens materiais. Personifi-

cou assim um tipo ideal de espírita que representou

esse ethos religioso. Chico Xavier gozou de enorme

fama nacional e não há cidadão brasileiro que não

se lembre de sua figura emblemática. Psicografava

cartas de vítimas de assassinatos, peças que foram

incorporadas a processos criminais. Também psico-

grafou poemas de Augusto dos Anjos e Alphonsus

de Guimaraens (alguns reproduzidos no livro), en-

tre outros, e escritos de Humberto de Campos, a

ponto de sua viúva ter movido um processo por

plágio contra o médium e a Federação Espírita. Um

amigo meu, poeta e descendente de um dos escri-

tores psicografados por Chico Xavier, comentou

laconicamente: “Se é verdade que os poetas depois

da morte continuaram fazendo poesia, eles piora-

ram muito!”.

A crítica a essa versão de santidade é construída

por meio da figura contrária de Gaspareto. Visto

como dissidente pelos seguidores de Allan Kardec, o

médium pinta quadros em sessões alucinadas nas quais

incorpora Picasso, Monet e Toulouse-Lautrec, entre

outros tantos. (Não há notícia de processo de plágio

nesse caso!) Uma dessas sessões, na qual Toulouse-

Lautrec assinou as telas, foi transmitida pela TV Cul-

tura em 1990. Gaspareto, segunda a autora, faz uma

nova síntese na qual entram elementos do espiritis-

mo, do “neo-esoterismo” ou da “nova era”, e de prá-

ticas de auto-ajuda.

Chico Xavier representou, assim, a versão do

renunciante, enquanto Gaspareto expressa a versão

do bon vivant ou, na interpretação de Stoll, se “[...]

aproxima da teodicéia da boa fortuna”, no sentido

weberiano. O primeiro pregava o asceticismo, o se-

gundo defende a “ética da prosperidade”. Ainda se-

gundo a autora, ser espírita para Chico Xavier re-

presentava o sofrimento, o sacrifício, a renúncia, a

pobreza e a caridade. Para Gaspareto, representa a

felicidade, o prazer, a auto-realização, a prosperidade

e a auto-ajuda. O livro termina sugerindo que esses

dois “[...] modelos éticos convivem no contexto es-

pírita tensionando-se mutuamente, sem que, contu-

do, seja possível prever o desenlace”.

Independentemente dos possíveis rumos futuros

dessa tensão no espiritismo brasileiro, a leitura do li-

vro de Sandra Jacqueline Stoll suscita questões ainda

mais difíceis de serem respondidas. Não fica claro,

por exemplo, por que Kardec, tão popular na França

do século XIX, mas que certamente não revolucio-

nou o mundo europeu como o fez Darwin, teve tan-

to sucesso aqui. Diferentemente da Europa, os espí-

ritos e os espíritas foram centrais na vida brasileira,

pelo menos até bem recentemente. Hoje em dia seu

lugar no espaço público, sobretudo a televisão, pare-

ce ter sido tomado pelo seu inimigo mortal, as igre-

jas neo-pentecostais, que no seu afã de pregar uma

teologia da prosperidade procuram relegar os espíri-

tos ao status de emissários do demônio.

Caleb Faria Alves, Benedito Calixto e a constru-ção do imaginário republicano. Bauru, Edusc,2003, 344 pp.

Ferdinando Martins

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo

Em artes plásticas, a expressão just milieu é utilizada

para fazer referência aos pintores que ficaram no

meio do caminho entre as manifestações acadêmi-

cas do século XIX (do neoclássico às vertentes do

impressionismo) e as vanguardas do início do sé-

Page 14: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Tempo Social – USP340

culo XX. Entende-se que o que caracteriza a pro-

dução desses artistas é um certo descolamento das

discussões em torno do fazer artístico da “arte pela

arte”, o qual, por sua vez, teria engendrado debates

no campo cultural, possibilitando assim o surgimento

da crítica de arte como a conhecemos hoje, mas sem

fazer eclodir, no entanto, qualquer reação suficien-

temente febril e virulenta para romper com a tradi-

ção. Como toda definição, a expressão pode tornar-

se um lugar-comum ou um conceito guarda-chuva,

capaz de abrigar generalizações que não dão conta

das particularidades de cada caso.

O livro Benedito Calixto e a construção do imaginá-

rio republicano, de Caleb Faria Alves, vem justamente

tratar da singularidade de um artista que é, tradicio-

nalmente, arrolado na “longa lista de pintores en-

globados pelo termo just milieu” (p. 277). Para tanto,

o autor veste-se de uma armadura conceitual ex-

traída da sociologia francesa, fortalecida com con-

tribuições vindas da fotografia, da arquitetura, do

urbanismo, da etnologia, da ciência política e da his-

tória intelectual. Alves arregimenta conhecimentos

diversos, costurando-os com o que Maria Arminda

do Nascimento Arruda chama, no prefácio da obra,

de “fina artesania” (p. 17).

O resultado não poderia ser menos denso. Mes-

mo operando com um recorte específico, o livro tra-

ça um panorama das mudanças ocorridas no campo

das artes plásticas no Brasil entre a Proclamação da

República e a Semana de Arte Moderna de 1922,

datas que contemplam as transformações verificadas

desde a débaclê da Academia Imperial de Belas Artes,

que com a República passa a ser chamada de Escola

Nacional de Belas Artes, até o evento no Teatro Mu-

nicipal de São Paulo, que alinhou as aspirações de

certos artistas da vanguarda brasileira com os eflú-

vios modernistas que emanavam da Europa.

Acompanhando a trajetória do pintor e historia-

dor santista Benedito Calixto, Caleb Faria Alves revê

a concepção existente de que a arte, nesse período,

caracteriza-se por uma continuação do academismo

nos mesmos moldes do ensino ministrado na Acade-

mia Imperial. O autor analisa como, nessa ocasião, a

cidade de São Paulo se consolida como um dos

principais mercados nacionais de obras de arte, ao

mesmo tempo em que ocorrem mudanças com re-

lação aos temas, à formação dos artistas, às fontes de

financiamento e às maneiras de apreciar e consumir

a produção artística. Nesse sentido, o pesquisador

volta-se contra autores que afirmam que a Repúbli-

ca no Brasil não produziu uma estética própria nem

buscou redefinir politicamente o uso da já existente.

Para Alves, a criação do Museu Paulista erige-se

como marco fundante das mudanças acima elencadas,

caudatárias em larga medida das proposições gerais

do positivismo: “A República estava sendo construída

a partir do receituário positivista. Calixto [...] co-

nhecia as máximas positivistas e procurou propa-

gandeá-las” (p. 295). Mesmo admitindo que na épo-

ca a sociedade brasileira ainda não tivesse atingido o

seu grau máximo de evolução, Calixto concebe o

vitral do Palácio da Bolsa de Café em Santos como

um libelo progressista que traduz a esperança em um

país que caminha a passos largos para a sociedade da

ordem almejada por Comte. Esse vitral é o último

trabalho de fôlego empreendido pelo artista. Até

chegar a ele, Caleb Faria Alves traça um percurso

que vai do início da trajetória do pintor santista na

carreira artística até o reconhecimento entre seus

pares na fase madura.

O capítulo 1, “Ingressando na carreira artística”,

traz uma reconstrução minuciosa da biografia do

pintor, relatando as mudanças no cenário paulista, a

falta de capital cultural e social de Calixto e as flu-

tuações do artista diante dos diferentes tempos do

modernismo em São Paulo. Sua origem poderia

relegá-lo a simples ilustrador ou, quando muito, a ar-

tesão, porém o livro nos mostra como a proximidade

com os clubes dramáticos faz com que o pintor seja

reconhecido pela sociedade santista, o que lhe aufere

certo grau de distinção que possibilita sua vinda para

São Paulo. Além disso, pequenos trabalhos propa-

Page 15: Alonso Angel Are Sen Ha

341junho 2004

Resenhas

gandísticos fazem com que o artista se aproxime de

comerciantes e políticos de Santos, o que lhe garante

um aumento de capital social. Caleb Faria Alves dis-

tancia-se o suficiente para perceber as estratégias e os

cálculos empreendidos por Calixto. Em São Paulo,

ele se aproxima de Grimm e do desafio da pintura ao

ar livre. A ousadia lhe confere uma aura vanguardista

e lhe rende o prêmio de viajar à França nos inícios da

década de 1880.

O capítulo 2, “Um caiçara em Paris”, é um pou-

co problemático. O autor busca mostrar como o

pintor refletiu o aprendizado realizado na França,

mas parece que o ano passado na Academie Julian

foi em vão. Em vez disso, Caleb Faria Alves atribui

um peso muito maior à movimentação interna da

Academia, em especial ao debate em torno de Manet

e Courbet. Aqui caberia uma análise mais apurada

dos quadros. Mais adiante, no capítulo 3, o autor

destaca o abandono do fini como estratégia de opo-

sição ao ensino acadêmico. Esse procedimento, no

entanto, deve ter sido aprendido por Calixto na sua

passagem pela França, uma vez que é traço distinti-

vo da pintura de Manet e de outros impressionistas.

O pesquisador afirma, todavia, que “não fazia senti-

do ser mandado diretamente à Europa por um ba-

rão do café, partindo do Estado berço do partido

republicano, para seguir exatamente os mesmos pas-

sos dos agraciados com as bolsas de estudo concedi-

das pelo Governo Imperial; não fazia sentido, tam-

pouco, se filiar a uma escola em franca oposição à

república burguesa, sendo ele mesmo um protegido

da burguesia paulista ascendente” (p. 122). Nesse

momento, a obra centra-se no fato de Calixto ter

sido financiado por barões do café e deixa de lado a

movimentação interna do campo das artes plásticas,

cujas mudanças nem sempre acompanham a con-

juntura político-econômica. O capítulo carece, ain-

da, de uma definição mais precisa do naturalismo,

sem a qual é impossível depreender algum significa-

do sociológico para os termos “acadêmico”, “ro-

mântico” e “realista”.

No capítulo 3, “As fissuras da Academia”, Alves

polariza a discussão em torno das figuras emblemá-

ticas de Pedro Américo e Victor Meirelles. A polari-

zação é um procedimento válido como recurso

explicativo, mas não reflete a complexidade do mo-

mento histórico e muito menos as relações internas

do campo das artes plásticas. Por essa razão, o autor

lança mão de outros temas que relativizam a discus-

são. Em especial, trata da posição da pintura de paisa-

gem na hierarquia acadêmica, da emergência de um

imaginário que valora positivamente as figuras do

caipira e do caiçara, do gosto burguês pela cópia e da

consolidação de São Paulo como pólo artístico da

República, em oposição à centralidade do Rio de Ja-

neiro durante o Império. Além disso, o texto traz ri-

cas análises de quadros como Independência ou morte,

de Pedro Américo, e Inundação da várzea do Carmo,

do próprio Calixto.

No quarto e último capítulo, a discussão volta-se

para as “Imagens da transformação”, quando Calixto,

já pintor maduro, desempenha um papel ativo na

consolidação de um ideal republicano que inventa

uma tradição para o Brasil a partir do Estado de São

Paulo. É nessa fase que o pintor volta para as mari-

nhas e, na pintura histórica, ganha relevância a paisa-

gem da Serra do Mar. Seus trabalhos adquirem maior

complexidade e valor, o que Caleb Faria Alves atri-

bui a um novo estatuto do moderno característico

das primeiras décadas do século XX. O colecionis-

mo e a gestão de Taunay no Museu Paulista são de-

terminantes para novas abordagens da história do

Brasil, e Calixto submete seu trabalho artístico a suas

pesquisas como historiador. No entanto, os novos há-

bitos visuais que já chegavam ao Brasil, em especial os

decorrentes da pintura impressionista, relegam o ar-

tista a uma posição menos nobre no campo cultural.

É em função desse desvio – a perda de prestígio

no interior do campo das artes plásticas – que Caleb

Faria Alves constrói sua tese: o mérito do autor está

em mostrar as contradições internas do campo, ao

mesmo tempo em que relativiza essa movimenta-

Page 16: Alonso Angel Are Sen Ha

Resenhas

Tempo Social – USP342

ção em função da conjuntura político-econômica.

O autor destaca que, mais do que um ideal republi-

cano, Calixto tem uma maneira paulista de ver o

Brasil, e os desdobramentos desse ato fundador mar-

cam grande parte da discussão sobre as artes plásti-

cas no país durante o século XX.