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  • Arq Neuropsiquiatr 2006;64(3-A):645-649

    1Residente de Psiquiatria do Instituto Raul Soares, Fundao Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), Belo Horizonte MG,Brasil; 2Mdico Neurologista. Professor do Curso de Ps-Graduao em Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade deSo Paulo; Professor Adjunto do Departamento de Clnica Mdica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de MinasGerais, Belo Horizonte MG, Brasil (FM/UFMG); 3Mdico Neurologista, Coordenador da Clnica de Distrbios do Movimento doHospital das Clnicas da UFMG, Professor Adjunto de Neurologia da FM / UFMG; 4Mdico Neurologista e Psiquiatra, Professor Adjuntode Neurologia da FM / UFMG.

    Recebido 20 Outubro 2005, recebido na forma final 20 Janeiro 2006. Aceito 1 Abril 2006.

    D r. Antnio Lcio Teixeira Jr - Departamento de Clnica Mdica, Faculdade de Medicina / UFMG - Av. Prof. Alfredo Balena 190 -30130-100 Belo Horizonte MG - Brasil. E-mail: [email protected]

    ALTERAES COMPORTAMENTAIS GRAVES EM PACIENTE COM DOENA DE FAHR

    Arthur Kmmer1, Maila de Castro1, Paulo Caramelli2,Francisco Cardoso3, Antnio Lcio Teixeira4

    RESUMO - Relatamos o caso de um homem de 40 anos de idade com doena de Fahr, definida por calcifi-caes idiopticas bilaterais em ncleos da base, que desenvolveu transtorno depressivo, tiques motore se fnicos, comportamentos estereotipados tipo punding e alteraes de personalidade com import a n t e simplicaes scio-familiares. Discutimos as manifestaes psicopatolgicas da doena de Fahr e a import n c i ados ncleos da base na determinao do comportamento humano.

    PALAVRAS-CHAVE: doena de Fahr, ncleos da base, depresso, tiques, punding.

    Severe behavioral changes in a patient with Fahrs disease

    ABSTRACT - We report on a case of a 40 year-old man with Fahrs disease, defined by idiopathic bilateralbasal ganglia calcification, who developed depressive disord e r, motor and phonic tics, stereotyped behaviorssuch as punding and personality changes with significant social and familiar implications. We discuss aboutthe psychopathology of Fahrs disease and the relevance of the basal ganglia in the determination ofhumans behavior.

    KEY WORDS: Fahrs disease, basal ganglia, depression, tics, punding.

    A doena de Fahr (DF), epnimo para calcinoseestriado-plido-denteada idioptica, re f e re-se calcificao idioptica bilateral nos ncleos da base,espordica ou familiar, supostamente uma doenaautossmica dominante1. Apesar de ser nomeada emhomenagem a Theodor Fahr, a doena conhecidadesde 1850, muitos anos antes da descrio por esteem 19302. Na realidade, Theodor Fahr relatou o casode um homem de 81 anos com crises epilpticas e cal-cificao difusa de vasos cerebrais e ncleos da baserelacionada provavelmente a hipoparatire o i d i s m o ,no sendo, portanto, idioptica3. Ressalta-se que acalcificao nos ncleos da base j foi relacionada amais de 30 condies clnicas, incluindo uma varie-dade de doenas infecciosas, metablicas e genti-c a s1 , 4. Alguns autores empregam o termo sndro m ede Fahr para descrever a calcificao patolgica nosncleos da base que pode ser causada por doenasde etiologias diversas3. Entretanto, nem todos os casos

    de calcificao intracraniana so sndrome de Fahrj que podem acometer outras reas que no os n-cleos da base. De nota, calcificaes dos ncleos dabase tambm podem ser encontradas incidentalmen-te em 0,7 a 1,2% dos exames de tomografia computa-dorizada de crnio (TC). Essas calcificaes so usual-mente benignas, sem etiologia definida e com locali-zao pre f e rencial nos globos plidos, especialmenteem pacientes acima de 60 anos de idade1. O term odoena de Fahr reservado aos quadros idiopticosde calcificao patolgica nos ncleos da base3. Osncleos da base tm sido exaustivamente estudadospor estarem relacionados no apenas com a motrici-dade, mas com diferentes aspectos do comport a m e n-to humano, encontrando-se alteraes nessas estru-turas em transtornos do humor, de personalidade,psicoses e transtornos do chamado espectro obses-sivo-compulsivo.

    O caso que relatamos diz respeito a um adulto

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    com calcificaes idiopticas em ncleos da base eem outras regies enceflicas e que desenvolvemt r a n s t o rno depressivo crnico, tiques motores e fni-cos persistentes, alm de alteraes de personalidadee comportamentos estereotipados e repetitivos deno-minados punding. Este tipo de comportamento foidescrito originalmente em indivduos que faziam usoexcessivo de drogas com ao dopaminrgica, comoanfetaminas, cocana ou levodopa, e que teoricamen-te sensibilizariam o circuito fronto-estriatal ventro -medial que exerce importante papel nos fenmenosde re c o m p e n s a5. Salientamos que o punding p o d eo c o rrer em outras condies clnicas que interf e re mnos ncleos da base e, conseqentemente, nos circ u i-tos fronto-estriatais.

    CASOHomem de 40 anos com 1 grau completo, re p re s e n-

    tante comercial, evanglico. Pro c u rou nosso servio quei-xando-se de depresso que caracterizava como tristezaconstante, choro ocasional, pessimismo e apatia, sintomasde intensidade leve a moderada, mas que se arr a s t a v a mpor cerca de 3 anos. A esposa relatava que ele vinha ficandop ro g ressivamente mais descuidado com a aparncia pessoale com hbito de mentira e de comprar tudo. Mostrava-se agressivo quando confrontado, embora re c o n h e c e s s eque contava mentiras para a esposa, bem como adquiriadvidas no nome dela por causa de suas compras desnecess-rias. No sabia o motivo por se comportar dessa form adizendo faz-lo sem pensar, de forma impulsiva. Negavasintomas que indicassem episdio hipomanaco eufricoou disfrico, nem sintomas obsessivos. A pontuao noMini-Exame do Estado Mental era 30/30.

    De nota na histria pre g res sa, exibira epilepsia na in-fncia, tendo usado fenobarbital 100 mg dos 5 aos 15 anos,quando abandonou o tratamento. Desde ento, no apre-sentara mais crises epilpticas. Negava histria familiar det r a n s t o rno mental e dizia que sua me falecera com doenade Parkinson (DP). Foi diagnosticado com distimia, sendoiniciado fluoxetina 20 mg/dia. Um ms depois, apre s e n t o ucrise epilptica tnico-clnica generalizada. No perodops-ictal, mostrou-se disrtrico, atxico e com bradicinesiae instabilidade postural. Foi submetido TC que evidenciouimagens hiperdensas nos ncleos lentiform es e caudado,substncia branca frontal profunda, substncia brancatemporal subcortical (A) e centros semi-ovais (B) (Fig 1).Realizou extensa propedutica laboratorial para investigarcalcificaes intracranianas patolgicas, incluindo soro l o g i apara hepatites virais, sfilis e HIV, provas de atividade infla-matria, de funo renal e heptica, ionograma, TSH, T4l i v re e paratormnio, com resultados sem alteraes. O ele-t rencefalograma mostrou-se normal. Recebeu o diagnstico,ento, de DF (calcificao idioptica nos ncleos da base),sendo associado fenobarbital 100 mg/dia. O paciente evo-luiu com melhora espontnea dos sintomas cere b e l a res eparkinsonianos at a remisso completa em 4 semanas.

    Nos meses seguintes, evoluiu com acentuao pro g re s-

    siva das alteraes do comportamento, exibindo jocosidade,i n d i f e rena afetiva e condutas inapropriadas, como urinarno cho da prpria casa e comer diretamente nas panelas.Passou a apresentar tambm tiques fnicos, como pigarre a r,e motores, como tocar o nariz com o dedo indicador e agenitlia com as mos. Exibia tambm comport a m e n t oe s t e reotipado de desmontar e remontar fitas cassetes e in-terruptores de luz eltrica sem objetivo definido, alm deandar de bicicleta despropositadamente (punding). M a n-tinha gastos excessivos e rejeitava os cuidados da esposa,tratando-a com impacincia e agressividade. Tentou-se con-t rolar a impulsividade e os tiques com haloperidol, mas opaciente mostrou-se muito sensvel, desenvolvendo parkin-sonismo moderado com apenas 1 mg/dia. Com o mesmoobjetivo foi administrada olanzapina at 5 mg/dia, mas nohouve alterao significativa no comportamento e o pacien-te tambm desenvolveu parkinsonismo. Aps dois anos sem

    Fig 1. Imagem de tomografia computadorizada de crnio mos -

    trando calcificaes difusas, principalmente nos ncleos da ba -

    se e ainda em regies subcorticais temporais e frontais, fro n t a i s

    p rofundas, nos frnices menores (A) e no centro semioval (B).

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    eventos epilpticos, o fenobarbital foi suspenso. Contudo,exibiu nova crise epilptica, desenvolvendo, mais uma vez,sintomas cere b e l a res e parkinsonianos persistentes, ps-ictais. Esses sintomas melhoraram espontaneamente aolongo de 6 semanas. Optou-se pela introduo do cidovalprico. Atualmente encontra-se em uso de cido valpri-co 1000 mg/dia e fluoxetina 20 mg/dia com controle decrises epilpticas, alm de melhora do humor e atenuaoda hostilidade dirigida esposa. Permanecem praticamenteestveis ao longo de seu acompanhamento os tiques, osc o m p o rtamentos estereotipados e as alteraes em suapersonalidade. Ressalta-se que no foram utilizadas escalasde avaliao quantitativa de alteraes comport a m e n t a i se de sintomas extra-piramidais, o que poderia ter contribu-do por uma avaliao clnica seriada mais objetiva.

    DISCUSSO

    D e s c revemos o caso de um adulto com DF, dequem foi obtido o consentimento para publicaodo caso, cujo quadro se manifestou com transtornod e p ressivo, mudana da personalidade, comport a-mentos estereotipados e tiques. O paciente exibiuainda crises epilpticas, sinais cere b e l a res e parkinso-nianos transitrios.

    O quadro clnico da DF bastante varivel, atmesmo quando apresenta ocorrncia familiar. Podemo c o rrer manifestaes extra-piramidais, como parkin-sonismo, distonia e tiques, sintomas cere b e l a res, comoataxia e disartria, epilepsia e sndromes neuro p s i q u i -tricas. As sndromes neuropsiquitricas mais descritasna literatura so as psicoses esquizofre n i f o rmes, ost r a n s t o rnos de humor, os transtornos de personali-dade e os sintomas obsessivo-compulsivos. Pode ocor-rer tambm deteriorao cognitiva nesses pacientes.E n t retanto, a DF pode apre s e n t a r-se assintomtica,isto , sem crises epilpticas, sem sinais motores oualteraes comport a m e n t a i s4 , 6. Esse fato import a n t epor mostrar que os circuitos cerebrais podem ter fun-o ntegra apesar do depsito parenquimatoso desubstncias, indicando a possvel existncia de outro sf a t o res, alm da calcificao, gerando as alteraesdescritas. Ressalta-se que a literatura sobre a DF p roblemtica por incluir, sob a denominao de sn-d rome de Fahr, outras condies que cursam com cal-cificao patolgica, ou seja, no idioptica, nos n-cleos da base.

    A DF paradigmtica para os estudos que re l a c i o-nam os ncleos da base no apenas motricidade,mas a diferentes aspectos do comportamento huma-no. Isso porque a DF acomete pre f e rencialmente oglobo plido4, embora seja freqente a calcificaoem outras regies, como no paciente relatado. Outrasdoenas que afetam os ncleos da base, como a

    doena de Huntington, a doena de Wilson e adoena de Parkinson, comprometem, re s p e c t i v a m e n-te, o ncleo caudado, o ncleo putmen e a part ecompacta da substncia negra. Essas estruturas dosncleos base, ao constiturem os circuitos fro n t a l -s u b c o rticais, tambm denominados fro n t o - e s t r i a t a i s ,facilitariam determinados comportamentos em detri-mento de outros comportamentos conflitantes6. No surpreendente, portanto, que alteraes compor-tamentais reflitam interrupo desses circuitos, sendocomuns nas doenas citadas7,8.

    Os cinco circuitos fronto-estriatais tm uma org a-nizao bsica similar. Dois desses circuitos tm fun-es motoras e trs deles possuem funes cognitivase comportamentais. As conexes do crtex fro n t a lso estabelecidas principalmente com o putmen, nocaso dos circuitos motores, e com o caudado e o n-cleo accumbens, no caso dos no-motores. No estria-do, o circuito pode assumir uma via direta, conectan-do o estriado ao segmento interno do globo plidoe parte reticulada da substncia negra (GPi/SNr),ou uma via indireta, ligando o estriado ao segmentoe x t e rnodo globo plido, em seguida ao ncleo sub-talmico e, finalmente, GPi/SNr. As duas vias modu-lam a resposta talmica ao crtex. Enquanto a dire t aestimula o tlamo, a segunda o inibe7.

    A c redita-se que o circuito motor participe da exe-cuo automtica de seqncias motoras e faciliteou iniba movimentos indesejados, dependendo daativao das vias direta ou indireta, re s p e c t i v a m e n t e .A gerao ou iniciao dos movimentos seria funoc o rtical e cere b e l a r, enquanto a facilitao dos movi-mentos pela supresso de padres conflitantes seriafuno estriatal7. No caso relatado, o paciente apre-sentou sintomas parkinsonianos transitrios aps cri-ses epilpticas e uso de baixas doses de neuro l p t i c o ,alm de tiques fnicos e motores persistentes, ques u g e rem comprometimento do circuito fro n t o - e s t r i a-tal motor.

    O mesmo raciocnio proveniente do circuito motorpode ser extrapolado para os circuitos no-motoresf ronto-estriatais, nos quais os ncleos da base podemfacilitar ou inibir respostas cognitivas, comport a m e n-tais ou afetivas. interessante que, para explicar ofenmeno de seleo de respostas a serem suprimidasou facilitadas, seria necessrio o envolvimento demecanismos integradores da atividade neuronal, pos-sivelmente mediado por fibras dopaminrgicas origi-nadas na rea tegmentar ventral, que constitui a viareferida classicamente como mesolmbica7,9.

    No paciente descrito, pressupe-se compro m e t i-

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    mento do circuito fronto-estriatal orbital, import a n t epara a tomada de decises e para a supresso de com-p o rtamentos inadequados. Por exemplo, a disfunoda via indireta, inibitria, desse circuito tornaria oindivduo impulsivo, inadequado e desinibido em re-lao a recompensas e punies imediatas, ignorandoregras sociais, como observado no paciente.

    O circuito medial ou lmbico, responsvel pela ex-perincia emocional e motivao, tambm pode estaracometido em sua via inibitria neste paciente. Essetipo de disfuno levaria a um estado de apatia, ane-donia e dificuldade de concentrar a ateno, sintomasf reqentes em quadros depressivos e na sndro m enegativa da esquizofrenia. O circuito dorsolateralp a rticipa do planejamento e da execuo de seqn-cias complexas de aes ou linguagem, sobre t u d oquando fora da rotina, alm de ser fundamental paraa memria de trabalho. Ele controla de modo flexvelas estratgias de soluo de problemas, monitorandoo comportamento passo a passo e verificando o pr-prio desempenho. Alteraes nessa regio causamdisfunes executivas, com perda de iniciativa do atomotor e da espontaneidade, com lentido e automa-tismo de respostas, alm de comportamento desorg a-nizado resultante da falha no ato de comparar o com-p o rtamento produzido com o plano original. Surg e m ,assim, as perseveraes, os esteretipos motores, rigi-dez e concretude comportamentais, e as marc a n t e salteraes atencionais, de memria operacional e del i n g u a g e m7 , 1 0. O paciente, que apresentava comport a-mento desorganizado e perseverante, alm de com-p o rtamentos estereotipados, pode tambm ter tidoesse circuito acometido na sua doena.

    Os comportamentos estereotipados denominadospunding tm sido recentemente descritos na litera-tura e identificados, at agora, apenas em indivduosdependentes de anfetaminas ou cocana e em pacien-tes com doena de Parkinson (DP) em terapia dopami-n rgica, principalmente naqueles com sndrome dedesregulao dopaminrgica5,9,11-13.

    No primeiro relato de punding na DP, Fried-m a n1 4 d e s c reveu o caso de um paciente que mexiarepetitivamente em seus papis, alm de cantartodo o tempo e contar piadas sem graa, inapro-priadas e sem sentido. Em um estudo especfico so-b re o fenmeno em pacientes com DP, Evans e cola-b o r a d o re s1 1 d e s c reveram a forma de apre s e n t a odos fenmenos nos pacientes identificados com p u n -ding. Um contador no parava de mexer em papise gavetas; um carpinteiro fazia re p a ros desnecessriosem sua casa; uma mulher examinava suas jias inces-santemente; uma costureira ficou fascinada por bo-

    tes; um msico cantava repetitivamente com letrasinventadas e outro contador desmontava bicicletas,raramente conseguia remont-las e fazia passeiosciclsticos sem rumo ou propsito. Homens costumamdesmontar equipamentos e org a n i z a r, catalogar eanalisar suas partes, raramente colocando-as de volta.M u l h e res mexem incessantemente em suas bolsas,escovam o cabelo, arrumam-se e lixam as unhas exces-sivamente. Os pacientes reconhecem que os compor-tamentos so improdutivos e despropositados. Poroutro lado, so considerados apaziguadores e asso-ciados intensa curiosidade, o que leva os pacientesa faz-los continuamente, ficando agressivos quandoi n t e rrompidos. Quando envolvidos na atividade ficama b s o rtos, tcitos e no-responsivos, ignorando necessi-dades bsicas como alimentar-se ou eliminaes fisio-l g i c a s1 1. No paciente que relatamos, o mesmo costu-mava desmontar e remontar incessantemente inter-ru p t o res eltricos e fitas cassetes, dispensando muitotempo nisso, reconhecendo que fazia essas atividadessem propsito e se irritando quando interro m p i d o .Tambm andava de bicicleta sem rumo e no con-seguia conter-se no seu hbito de contar mentirase comprar tudo.

    O punding caracteriza-se por fascinao intensapor tarefas repetitivas que chegam a levar ao isola-mento e a conflitos interpessoais. Algumas de suascaractersticas o diferem do transtorno obsessivo-c o m-pulsivo (TOC). Na definio clssica do TOC, h a in-t ruso de eventos cognitivos (obsesses) que re s u l-tam em comportamentos repetitivos intencionais(compulses), que visam neutralizar tanto as intru s e scognitivas, quanto a ansiedade associada. Outros fe-nmenos englobados pelo conceito de espectroobsessivo-compulsivo, como tiques crnicos, sndro m ede To u rette, tricotilomania e onicofagia, apesar deno exibirem intruses cognitivas evidentes, so mui-tas vezes acompanhados de outros eventos intru s i v o s ,como as intruses sensitivas (tiques sensitivos, porexemplo). Diferentemente, os comportamentos des-critos como punding so dissociados tanto de even-tos cognitivos intrusivos, quanto de qualquer outroevento intrusivo.

    Alm disso, no TOC, as obsesses e compulsescostumam estar inseridas em grupos relacionados higiene, sexo, violncia e ordenao, conforme ocontexto scio-cultural. Assim, o TOC seria o re s u l t a d ode dficits de processamento implcito de estratgiasde procedimentos especficas da espcie pre s u m i v e l-mente armazenadas no estriado1 3. Por sua vez, opunding seria o resultado da perda de inibio dehbitos automticos aprendidos. O contedo das ta-

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    refas depende da ocupao do indivduo, seus inte-resses e passatempos. Os comportamentos do p u n -ding seriam alteraes no processamento de estrat-gias procedurais aprendidas em experincias passa-das, ao contrrio das estratgias de pro c e d i m e n t oespecficas da espcie caractersticas do TOC. Essad i f e rena apontada como essencial na difere n c i a odos fenmenos por sugerir o envolvimento de meca-nismos neurobiolgicos distintos1 3. O fenmeno subdiagnosticado nos pacientes com DP em re p o s i od o p a m i n rgica, sendo descritos equivocadamentena literatura como sintomas obsessivo-compulsivosou mania4,11,13.

    Em sntese, o paciente que relatamos apre s e n t adiversos sintomas que podem ser relacionados dis-funo dos circuitos fronto-estriatais, como as alte-raes do comportamento (inadequao e desre s-peito a normas sociais, jocosidade, agressividade, im-pulsividade), do humor, tiques e punding. impor-tante comentar que essas alteraes comportamen-tais tambm podem ter sido agravadas pela epilepsia.O melhor controle das crises epilpticas aps a in-t roduo do cido valprico coincide, inclusive, coma melhora de alguns dos sintomas comport a m e n t a i s .

    O u t ro ponto relevante re f e re-se ao fato de queos sintomas poderiam no estar necessariamente re l a-cionados topografia das calcificaes idiopticas.C o n f o rme mencionado anteriormente, o depsitointracraniano de clcio e de outras substncias podecursar de forma assintomtica. Portanto, estruturacalcificada no equivale estrutura lesada, ou se-ja, no h relao inequvoca entre calcificao e sin-toma, a despeito de o fluxo sanguneo estar re d u z i d oem regies calcificadas do encfalo4 , 1 5. A relao esta-belecida no caso pressuposta baseando-se em estu-dos prvios que correlacionaram os diferentes sinto-

    mas motores e comportamentais com alteraes me-tablicas em determinados circuitos fronto-estriatais.

    Este trabalho sugere que o estudo da DF, por seruma doena que acomete essencialmente estru t u r a ss u b c o rticais, juntamente com outras enferm i d a d e sque acometem primordialmente os ncleos da base,a b re perspectivas para os estudos que re l a c i o n a mestas estruturas cerebrais a diferentes aspectos docomportamento humano.

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