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    173 ALZAMORA, G.; CORTEZ, N.M.P. Agenciamentos semiticos em ambientes de streamingde msicas: mente,aprendizado e continuidade. Galaxia(So Paulo, Online), n. 28, p. 173-183, dez. 2014.

    http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542014216190

    Agenciamentos semiticosem ambientes de streamingdemsicas: mente, aprendizado

    e continuidadeGeane Carvalho Alzamora

    Natlia Moura Pacheco Cortez

    Resumo:Este artigo investiga os agenciamentos hbridos entre agentes de interface e agentes humanos

    nos ambientes sociocomunicacionais de streaming de msicas LastFM, Grooveshark e Deezer,com base nas noes de agenciamento (Deleuze e Guattari) e semiose (Peirce). O modelopeirceano da semiose tomado como parmetro conceitual para explicar o funcionamentodo agenciamento hbrido entre homem e mquina nesses ambientes. Prope-se a noo deagenciamento semitico para compreender o aprendizado contnuo e aprimorado da mquinaa partir das aes humanas nos ambientes pesquisados, assim como as articulaes das aeshumanas baseadas nos mecanismos de recomendao. As relaes de continuidade entreas mentes dos agentes humanos e as dos agentes de interface so abordadas na perspectivada Teoria do Sinequismo de Peirce, relacionada sua noo de semiose.

    Palavras-chave:semiose; agenciamento; streamingde msicas.

    Abstract: Semiotics in music streaming environments: mind, learning and continuity Based on thenotions of agency (Deleuze and Guattari) and semiosis (Peirce), this paper discusses a study ofthe hybrid forms of interaction between interfaces and human agents in the music streamingenvironments LastFM, Grooveshark, and Deezer. The Peircean model of semiosis is taken asthe conceptual framework to explain how the hybrid forms of agency interact at the interfacebetween humans and machines. This paper proposes the notion of semiotic agency as aconceptual tool in the study of the learning processes whereby machines acquire knowledgeabout human preferences and decisions and are able to transform them into recommendations.The relationship of continuity between human minds and interface agents is discussed fromthe Peircean perspective of synechism and semiosis as a continuous process.

    Keywords:semiosis; agency; music streaming.

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    Introduo

    Ambientes de streamingde msicas baseiam-se nas aes dos internautas combinadass aes maqunicas, congurando sosticados processos sociocomunicacionais de

    recomendao e compartilhamento. relativamente consensual abordar esse tema pelaperspectiva do hibridismo em rede, mas permanece pouco explorado o que caracteriza talhibridismo e seus matizes sociocomunicacionais. Buscando contribuir com esse debate,prope-se considerar o hibridismo investigado como resultado de agenciamentos que seestabelecem entre agentes de interface1e agentes humanos2, com base nas noes deagenciamento (DELEUZE; GUATTARI, 1977) e semiose (PEIRCE, 2008).

    Em ambientes sociocomunicacionais de streamingde msica, agentes de interfacedesempenham funes mecnicas de reconhecimento de padres e hbitos dos agenteshumanos para ns de recomendao, enquanto os agentes humanos conferem signicadosa tais informaes por meio de registro, acesso e compartilhamento. Conjuntamente, agenteshumanos e agentes de interface conguram agenciamentos singulares nesses ambientessociocomunicacionais. Assim, embora lidem com uma mesma perspectiva sociocomunicacional,cada ambiente de streamingde msica a especica no contexto de sua rede sociotcnica3.

    A questo aqui discutida no mbito de trs ambientes sociocomunicacionais destreamingde msica, considerados semelhantes em funo de seu design de interao:LastFM4, Grooveshark5e Deezer6. Os trs operam como aplicativos para desktop e dispositivos

    mveis, sendo signicativos seus acervos e a quantidade de internautas cadastrados7

    .Os ambientes investigados so acessados pelos internautas para ouvir msicas,criar listas de reproduo e compartilhar informaes por meio de outros ambientessociocomunicacionais, tais como Facebook e Twitter. So plataformas de serviosde streaming, de recomendaes e de redes de vizinhana musical que se baseiam nos registrosdas interaes dos internautas. LastFM um ambiente pioneiro na ecologia de streamingdemsica8, fundada em 2002, Grooveshark foi criado em 2006, e Deezer em 2007.

    1 O conceito de agente de interface surgiu em 1950 a partir do software Advice, desenvolvido por John McCarthy,mas se tornou popular apenas em 1989, quando a Apple lanou um vdeo intitulado The Knowledge Navigator,que apresentava um agente antropomorfo em um Power-Book (JOHNSON, 2001).

    2 De acordo com Giddens (cf. JORGE, 2012), os agentes humanos tm natureza social, sendo caracterizados poruxos de ao intencional, embora as consequncias dessas aes no sejam limitadas pela intencionalidade.

    3 A rede sociotcnica conecta elementos de natureza variada, tais como sociais, naturais, materiais e institucionais.Como observa Latour (1994), essa rede se apresenta real como a natureza, narrada como discurso e coletivacomo a sociedade.

    4 http://www.lastfm.com.br/5 http://grooveshark.com/6 http://www.deezer.com/br/7 Na plataforma LastFM, por exemplo, as playlists baseiam-se em lbuns completos dos artistas ouvidos, que

    so recomendados a partir de sua similaridade com outros artistas da biblioteca do internauta. Groovesharkrecomenda live broadcasts, denidos como experincias em tempo real trazidas por outros internautas, e Deezerpossui editores que tm destaque no papel de recomendao. Os regimes de afetao recproca, assim comoa tendncia ao compartilhamento, variam de um ambiente a outro. Grooveshark e Deezer disponibilizam

    recomendaes de outros internautas e editores, j na LastFM o agente de interface tem papel preponderantena congurao dos regimes de afetao recproca. Informaes coletadas nas plataformas em: 29. set. 2013.

    8 A ecologia dos meios funda-se na ideia de que os meios de comunicao conguram ambientes nos quais sujeitos etcnicas afetam-se reciprocamente e um meio interfere no outro. A metfora da ecologia pressupe que os meios sejamespcies que transitam e evoluem no ecossistema comunicacional. Sobre o assunto ver, por exemplo, Scolari (2013).

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    Os trs ambientes se qualicam como sistemas de recomendao baseados nos

    gostos e preferncias dos internautas, que recebem recomendaes a partir do registro de

    suas aes, hbitos musicais de outros internautas e tambm de informaes relacionadas

    organizao do contedo no ambiente.

    LastFM destaca como vizinhos musicais os internautas com gosto musical parecido e

    recomenda com base nos artistas que compem as bibliotecas dos internautas. Grooveshark

    recomenda com base nas msicas ouvidas recentemente pelo internauta por meio de

    playlists com nomes de estilos musicais eplaylists criadas por outros internautas. Deezer

    e Grooveshark indicam artistas preferidos. Embora no apresente estilos musicais a partir

    dasplaylists, como o fazem LastFM e Grooveshark, Deezer destaca os artistas favoritos do

    internauta a partir das msicas que ouve e sugere msicas de outros artistas como similares.

    Diferente de LastFM, que sugere vizinhos musicais, Grooveskark e Deezer criamconexes entre internautas no por meio da ideia de vizinhana musical, mas pela relao

    de seguidos e seguidores na atividade musical. Nos trs ambientes as aes dos internautas

    so mediadas pelas aes dos agentes de interface, que por sua vez operam mediante

    os registros das aes dos agentes humanos no sistema.

    Agentes de interface: recomendaes e processos associativos

    Agentes de interface so representantes maqunicos aos quais podem ser delegadascertas funes sociocomunicacionais. No se trata, porm, de meros prolongamentos

    da atividade humana nos ambientes pesquisados, uma vez que renam as possibilidades

    de compartilhamento por vizinhana musical ou rede de seguidores e, desse modo, eles

    participam efetivamente dos processos sociocomunicacionais.

    Nesses ambientes, os agentes de interface recomendam msicas aos internautas

    a partir dos registros de seus hbitos, observando padres de co-ocorrncia de msicas

    em playlists, artistas ouvidos e outras possveis relaes com base na comparao que

    estabelecem entre pers de internautas e preferncias musicais prximas. Agem, portanto,

    por associao de informaes em rede.Segundo Johnson (2001, p. 127-149), os agentes podem ser diferenciados de acordo

    com as tarefas que desempenham: buscar informaes, ltrar dados, monitorar condies

    e alertar sobre mudanas, entre outras. Pode-se tambm diferenci-los segundo seu

    habitat. Alguns habitam o disco rgido de um computador e outros habitam a Internet.

    Como prope o autor, os agentes tambm podem ser classicados segundo suas funes

    e comportamentos da seguinte maneira: o agente pessoal, o viajante e o social. O agente

    pessoal realiza tarefas mais rudimentares e tem capacidade reduzida de tomar decises.

    O agente viajante aquele que levanta ncora do computador hospedeiro, comodestaca Johnson (2001, p. 133), e sai para buscar informaes no ciberespao. Ele tambm

    monitora condies e alerta o internauta quando necessrio, podendo tomar decises por

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    ele prprio. J o agente social extrovertido, pois, em conversas com outros agentes e

    internautas troca recomendaes e compila informaes relevantes para melhor atender

    s necessidades que lhe foram apresentadas.

    O grau de autonomia que apresentam um aspecto muito relevante em sua

    diferenciao. Os agentes de interface aqui investigados conseguem pistas sobre prefernciasdos internautas a partir da descoberta de padres em suas aes e, ao incorporar novoselementos que passam a conhecer por meio de sua experincia na interao, agregama seus repertrios novas informaes que os habilitam a tomar decises diferenciadas.

    A variedade de aes que podem desempenhar no sistema, assim como a diversidadede graus de autonomia que apresentam, constitui matizes relevantes para se compreenderas especicidades sociocomunicacionais dos agentes de interface nos ambientes de

    streaming de msica. Esses aspectos so aqui discutidos na perspectiva do modelopeirceano da semiose, o qual revela as condies lgicas pelas quais os agentes de interfacerealizam recomendaes com base em processos associativos em rede.

    A semiose do registro, recomendao, acesso e compartilhamento

    A semiose trata das relaes logicamente possveis entre signo, objeto e interpretante, cujodesdobramento contnuo resulta em processos comunicacionais e cognitivos cada vez maisaprimorados. Esse o fundamento pragmtico da ao sgnica, a qual integra as operaes

    semiticas de determinao e representao na conformao do signo, ou mediao9. o carter mediador do signo que impulsiona a semiose a expandir-se continuamente.

    A operao semitica de determinao condiciona o modo pelo qual o objetodetermina, de modo parcial e sempre incompleto, o interpretante pela mediao do signo.

    J a operao semitica de representao refere-se ao modo pelo qual o interpretanterepresenta a determinao oriunda do objeto pela mediao do signo, associando novossignos semiose por experincia colateral10.

    Conforme essa abordagem, os agentes de interface desempenham melhor suacapacidade de recomendao por similaridade musical medida que aumentam seus

    repertrios e, consequentemente, suas possibilidades de efetuarem associaes sgnicas

    mais renadas. Operam, assim, como signos mediadores entre a instncia semitica

    da determinao, relacionada aos registros dos internautas, e a instncia semitica da

    representao, relacionada capacidade que os agentes de interface apresentam de

    associar novas informaes aos registros dos internautas, congurando a vizinhana

    musical por experincia colateral. Em um estgio posterior dessa semiose, as aes de

    recomendao feitas pelos agentes de interface operam como objeto das futuras aes

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    De acordo com Santaella e Nth (2004), a noo de mediao denida como qualquer processo no qual doiselementos so colocados em articulao atravs da interveno de um terceiro, que tem como funo permitira passagem de alguma propriedade de um para outro elemento. A comunicao um trao essencial de todasemiose, uma vez que permite a passagem, a comunicao, de um elemento ao outro.

    10 Sobre o assunto ver, por exemplo, Colapietro (1989).

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    de acesso e compartilhamento dos agentes humanos no sistema, ento situadas no lugar

    lgico do interpretante.

    As aes de correlacionar msicas na medida em que aparecem nas playlists,

    indicando um padro de regularidade a conjuntos de elementos tidos como semelhantes

    a partir da mecanizao dos processos associativos, relacionam-se a graus variados de

    autonomia semitica. Como discute Nth (2001, p. 71), nenhum dos critrios de semiose

    encontra-se totalmente ausente das mentes maqunicas. O autor argumenta ainda que

    a distncia entre a semiose da mquina e a semiose humana est diminuindo, uma vez

    que a inteligncia computacional avana em ritmo acelerado, criando mentes maqunicas

    capazes de desempenhar processos de raciocnio cada vez mais elaborados e variados

    com base na observao dos processos de raciocnio humanos11.

    Segundo Peirce, o raciocnio a observao de relaes e o entendimento quese constri a partir dessa observao (cf. SANTAELLA, 2004). A abduo, a induo ea deduo so entendidas como espcies de raciocnio por Peirce (2008). A abduocorresponde fase relativa gerao de hipteses, sendo uma funo da imaginaocriativa do indivduo, como discute Santaella (2004). Construda a hiptese, passa-seao estgio seguinte de test-la, o que corresponde aos processos indutivos que particularizamas condies gerais da investigao, relacionadas deduo. Na fase da induoo pesquisador julga a natureza e a veracidade da hiptese para vericar se as consequncias

    observveis permitem generalizaes. Segundo Santaella (2004), a deduo o desenrolarde consequncias experimentais a partir de hipteses explanatrias, extraindo delas

    consequncias experimentais.Nos trs ambientes de streamingde msica pesquisados, os agentes de interface no

    so capazes de raciocinar abdutivamente, mas so capazes de raciocnios parcialmentededutivos, baseados na observao de padres que relacionam indutivamente na forma devizinhana musical ou rede de seguidores. Eles melhoram seu desempenho medida queassociam novas informaes provenientes das aes dos internautas, as quais concorrempara renar os padres de similaridade musical fornecidos pelos agentes de interface na

    forma de aumento de repertrio. Aprimora-se, assim, a capacidade de o agente de interfacerecomendar msicas, aumentando as chances de acerto nessas recomendaes medidaque mais e mais internautas registram suas aes no ambiente.

    Esse processo remete noo de coletividades hbridas (SANTAELLA, 1997), que seassemelha noo de coletividade pensante homens-coisas (LVY, 1993). Santaella (1997)dene essas coletividades hbridas como redes nas quais mentes humanas e maqunicas,

    saberes e tcnicas, entre outros elementos, interagem congurando formas hbridas de

    cognio, de produo e de circulao de sentidos.

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    Nth (2001) prope pensar o processamento de signos no computador como quase-semiose, dada suaincapacidade de atingir graus sosticados de terceiridade. Mas entende que uma mquina capaz de aprendercom a experincia ambiental e capaz de autocorreo automtica pode ser entendida como uma mquinasemitica genuna, uma vez que reage por reconstruo de seu programa com o propsito de desenvolver suaecincia futura.

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    As questes que permeiam essas coletividades apontam para as feies de uma

    cultura bioeletrnica que, observada pela noo de agenciamento, revela a integrao

    entre sistemas cibernticos e psquicos, redes neuronais articiais e naturais, como

    prope Santaella (1997). Tais coletividades, na perspectiva de Lvy (1993), se propagam

    em meio constitudo pelas mentes humanas e pelas redes tcnicas de armazenamento

    e de circulao de informaes. Consideramos que esse meio, hbrido em sua essncia,

    congura teia semitica que agencia as mentes maqunicas e humanas em regime de

    afetao recproca continuamente aprimorvel.

    Sobre as noes de agncia e agenciamento

    A noo peirceana de agncia, como discute Jorge (2012), permeia diferentestemticas abordadas em sua obra, tais como cosmologia, percepo, cognio e

    pragmatismo. Um dos signicados de agncia apresentados por Jorge (2012), com base

    em sistematizao feita por Silveira (cf. JORGE, 2012) a partir de fragmentos de Collected

    Papers of Charles S. Peirce, fundamenta-se na diferenciao entre causalidade eciente e

    causalidade nal. Recuperamos aqui essa distino por nos parecer muito relevante para

    compreender a questo no mbito dos ambientes de streamingde msica pesquisados.

    A causalidade eciente cria uma ao compulsiva que desencadeia uma mudana

    de modo perfeitamente determinado, enquanto que a causao nal no determina deque modo particular um resultado geral desencadeado, mas somente que o resultado

    ter um carter geral (CP 1.212, apud NTH, 2001). A causalidade eciente se relaciona

    a ao didica, mecnica ou dinmica e a causao nal ao tridica, inteligente, que

    equivale semiose, como discute Jorge (2012).

    Nos ambientes de streamingde msicas pesquisados, o agente de interface atua

    ancorado em relaes didicas, relacionadas causalidade eciente. Embora amplie

    sua memria e crie novas relaes a partir do aprendizado com as aes humanas

    registradas no ambiente, sua mente maqunica no atinge graus muito sosticados degeneralizao, demandando a integrao com a mente humana para constituir processos

    mais elaborados de semiose. Orientada por ns, a mente humana atua no sentido de

    buscar a causalidade nal, sem que isso signique ruptura com a causao mecnica,

    como ilustra o agenciamento hbrido nos ambientes de streamingde msica investigados.

    Jorge (2012) recusa a abordagem mecanicista da agncia e postula que os sistemas

    de signos devem, eles prprios, ser considerados agentes abordagem que coaduna com

    a nossa. A autora relaciona a noo de agncia capacidade de ao de uma pessoa,

    de um mecanismo, ou de qualquer outra coisa pela qual alguma fora seja exercida e,consequentemente, uma mudana seja produzida (JORGE, 2012, p. 3).

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    Essa noo dialoga, em certa medida, com a noo de agenciamento proposta por

    Deleuze e Guattari (1997)12, segundo a qual o agenciamento se refere s relaes entre

    diferentes entidades, sem previsibilidade nem determinismo. Os autores armam que

    o agenciamento no uma relao entre dois termos dados, mas comunicao entre

    uxos heterogneos, sejam eles sociais, culturais, biolgicos, tcnicos etc.

    Na perspectiva da semiose peirceana, conforme se postula aqui, o agenciamento

    ou agncia a ao comunicativa que se estabelece entre uxos heterogneos, sendo

    a heterogeneidade sempre de ordem sgnica. Isso no exclui uxos sociais ou culturais

    do processo, mas os apreende signicamente, buscando enfatizar suas possibilidades de

    conformao lgica na cadeia da semiose.

    A noo de agenciamento, de acordo com Deleuze e Guattari (1997), implica

    na observao das relaes entre diferentes entidades, seja qual for sua natureza, como

    relaes de afetao recproca. Importa o que ocorre entre, o que se conforma a partir

    dessas relaes, sendo que todas as entidades envolvidas no processo de agenciamento

    so capazes de ao e so impactadas pela ao das outras entidades envolvidas.

    A ao, na abordagem peirceana, implica em semiose, ou seja, na capacidade

    do signo desdobrar-se continuamente em outro. Assim, postulamos que observar a atividade

    comunicacional entre agentes de interface e agentes humanos como um agenciamento

    hbrido implica no apenas na perspectiva de no dualidade entre homem-mquina,

    como propem Deleuze e Guattari (1997), mas principalmente na convico de queo que age, age signicamente, conforme as possibilidades lgicas da semiose. Por conta

    dessa especicidade, propomos abordar a questo com base na noo de agenciamento

    semitico, com a qual buscamos enfatizar o delineamento lgico do agenciamento pelo

    modelo peirceano da semiose.

    Agenciamento semitico: mente, pensamento e continuidade

    A semiose, na teoria peirceana, relaciona-se ideia de mente, pensamento, cognioe produo de sentido. Como modelo, pode descrever todos os processos sgnicos

    logicamente possveis. O estudo da semiose feito no mbito da Semitica, entendida

    12 De acordo com Deleuze e Guattari (1997), o agenciamento comporta dois segmentos: um de contedo eo outro de expresso. Por um lado ele agenciamento maqunico de corpos, ou seja, mistura de corpos reagindouns sobre os outros, e por outro lado, agenciamento coletivo de enunciaes, que so atribudas aos corpos.Em seu aspecto material ou maqunico, o agenciamento remete a um estado preciso de misturas de corposem uma sociedade, compreendendo todas as atraes e repulses, as alianas, as alteraes e expanses queafetam os corpos de todos os tipos, uns em relao aos outros. Trata-se de uma mquina por meio da qual uxoscognitivos e tcnicos conectam-se na interao entre internauta e instrumento, homens e mquinas. Por outro

    lado, segundo eles, o agenciamento tem uma face coletiva, pois no apenas tcnico, mas tambm social,visto que opera por meio de acoplamentos com internautas, conhecimentos e outros elementos que compemsua rede de relaes. A noo da face coletiva do agenciamento refere-se a essa multiplicidade de processosque compem sua rede de relaes, sendo que tais processos se desenvolvem alm e aqum dos indivduos,no nvel molecular dos agenciamentos e no nvel molar das formas visveis, como discutem os autores.

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    por Peirce (2008) como uma losoa dos signos, sendo que gestos, ideias e cognies

    eram por ele considerados entidades semiticas. Mas a Semitica, embora ocupe lugar

    central no pensamento peirceano, apenas uma faceta de seu pensamento.

    A arquitetura losca de Peirce articula-se em subdivises relacionadas, entre

    outras, Fenomenologia, Cincias Normativas e Metafsica. Segundo Santaella (2000),

    o Sinequismo ocupa o lugar do sistema metafsico nessa relao e tem como objeto

    de investigao o mundo objetivo. J a Lgica ou Semitica - uma das trs cincias

    normativas - investiga a estrutura do pensamento com base na articulao lgica de suas

    trs categorias fenomenolgicas. De acordo com Santaella (2000), no contexto metafsico

    do Sinequismo a mente se refere continuidade, tendncia universal da aquisio de

    hbitos e, no contexto da Lgica, a mente sinnimo de semiose.

    Pensar o agencimento semitico em ambientes de streamingde msica na perspectivapeirceana da mente signica pens-lo do ponto de vista da aquisio continuada de

    novos hbitos, o que corresponde, de modo mais amplo, nalidade metafsica do

    Sinequismo. Isso implica em abordar o agenciamento semitico em dinmica mediadora

    que no distingue semiose maqunica de semiose humana. Em vez disso, situa condies

    logicamente provveis de produo sgnica no agenciamento semitico, o qual integra

    as mentes humana e maqunica na perspectiva da aquisio hbrida de novos hbitos.

    As condies logicamente provveis de produo sgnica referem-se s condies

    fenomenolgicas de relao entre objeto, signo e interpretante.A Fenomenologia, que fundamenta o edifcio terico erigido por Peirce, articula-se

    em suas trs categorias universais: Firstness (Primeiridade), Secondness (Secundidade) e

    Thirdness(Terceiridade). A Primeiridade relaciona-se noo de mnada e corresponde

    qualidade imediata do sentimento. A Secundidade relaciona-se noo de dada,

    alteridade, extenso fsica entre ao e reao. J a Terceiridade a categoria da mediao,

    que relaciona um segundo a um terceiro por meio de sntese intelectual. Refere-se

    inteligibilidade do pensamento em signos. Essa categoria fenomenolgica, relacionada ao

    crescimento contnuo, corresponde denio de signo genuno como processo relacionaltridico, que conduz a noo de semiose innita, como discute Santaella (2008).

    A continuidade tpica da Terceiridade se refere ao Sinequismo, enquanto que o acaso,

    tpico da Primeiridade, se refere ao Tiquismo, seu oposto complementar, segundo Santaella

    (2000). Na concepo de Peirce (cf. SANTAELLA, 2000), a observao da natureza mostra

    elementos de uniformidade, mas as regularidades que se observa no so exatas nem

    universais, como explica a autora. A regularidade das leis constantemente violada em

    algum grau, ou seja, os fatos no se ajustam precisamente s leis. O Tiquismo resulta dessa

    regularidade imperfeita da natureza e o acaso um de seus traos objetivos. A continuidade

    , porm, um estado disposicional que innitamente se espalha, como discute Santaella

    (2000). Trata-se de uma tendncia generalizante e autogerativa.

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    O Sinequismo e seu oposto complementar, o Tiquismo, so aqui abordados para situar

    o escopo dinmico e continuamente provisrio do agenciamento semitico em ambientes

    de streaming de msica, nos quais a tendncia aquisio de novos hbitos abriga a

    possibilidade indeterminada do acaso. Essa perspectiva mais bem compreendida quando

    se pensa em agentes humanos, mas dada a impossibilidade de isolar os agentes humanos

    dos agentes de interface nesses ambientes, deve-se pens-los na perspectiva de uma mente

    hbrida agenciada semioticamente, ou seja, conforme o modelo peirceano da semiose,

    o qual situa possibilidades lgicas variadas de relao entre signo, objeto e interpretante.

    com base nessa perspectiva que se analisa aqui as semelhancas e diferenas entre

    os trs ambientes de streamingde msica mencionados, os quais apresentam sutis variaes

    em suas dinmicas sgnicas, embora se articulem de modo integrado na dinmica semitica do

    consumo de msica online. Com isso queremos armar que os hbitos de consumo de msicaonlineadquiridos em um ambiente determinam, em certa medida, o consumo de msica

    onlineem outro. Esse determismo, porm, relativizado pelo modo como cada ambiente

    representa o anterior de modo peculiar, associando novos signos dinmica de consumo de

    msica onlinepor experincia colateral. Trata-se, assim, de uma dinmica sgnica de consumo

    de msica onlineconstantemente expansvel e aprimorvel, na qual cada ambiente reete,

    amplia e simultaneamente especica as condies de consumo de msica online.

    Os ambientes de streamingde msicas mencionados fundam-se na possibilidade de

    os internautas conhecerem novas msicas a partir dos registros de suas aes e de outrosinternautas. A anidade o princpio esttico que delineia o agenciamento semitico

    nesses ambientes. Como arma Jorge (2012), a anidade se manifesta na continuidade da

    mente. A partir desse argumento, parece coerente compreender que similaridade, afetao

    e tendncia constituem-se como o primeiro, segundo e terceiro graus fenomenolgicos

    do agenciamento semitico em ambientes de streamingde msicas. As recomendaes

    baseadas em similaridade, ao serem aceitas pelos internautas, geram tendncias de

    consumo ancoradas na afetao recproca. Em cada um dos ambientes de streaming

    de msica mencionados, observa-se que os agenciamentos semiticos conformam noapenas estilos musicais a partir da similaridade de artistas e suas msicas, como tambm

    permitem a criao de redes de seguidores e vizinhos musicais. Essa dinmica de afetao

    recproca, baseada nos padres de similaridade de gosto musical, condiciona a tendncia

    de consumo musical nesses ambientes.

    Em LastFM, por exemplo, as playlists baseiam-se em lbuns completos dos

    artistas ouvidos, que so recomendados a partir de sua similaridade com outros artistas

    da biblioteca do internauta. J Grooveshark e Deezer recomendam tambm playlists

    criadas por outros internautas. LastFM no disponibiliza playlists recomendadas por outrosinternautas e tem como forte aspecto da organizao de seu contedo a atribuio de tags

    s faixas e a criao de redes de relacionamento entre os internautas.

  • 7/26/2019 Alzamora; Cortez - Agenciamentos Semiticos Em Ambientes de Streaming de Msicas Mente, Aprendizado e Con

    10/11

    ALZAMORA, G.; CORTEZ, N.M.P. Agenciamentos semiticos em ambientes de streamingde msicas: mente,

    aprendizado e continuidade. Galaxia(So Paulo, Online), n. 28, p. 173-183, dez. 2014.182

    Os regimes de afetao recproca, assim como a tendncia ao compartilhamento, variam

    de um ambiente a outro. Grooveshark e Deezer disponibilizam recomendaes dos internautas,

    que podem agir, assim, independentes dos agentes de interface. J em LastFM o agente de

    interface tem papel preponderante na congurao dos regimes de afetao recproca.

    Consideraes fnais

    Os agenciamentos semiticos em ambientes de streamingde msica revelam no

    apenas a indissociabilidade sociocomunicacional entre agentes humanos e agentes de

    interface, como tambm a diversidade lgica de suas dinmicas. Caracterizam-se pela

    continuidade entre as mentes humana e maqunica, pela aquisio de novos hbitos e pela

    associao sgnica baseada em anidade, afetao recproca e tendncia de consumo de

    msica online, sendo esta relacionada ao reconhecimento de padres de consumo em cada

    ambiente. Apresentam, assim, sutis variaes em suas dinmicas sociocomunicacionais.

    Em LastFM, por exemplo, observa-se maior nfase nas aes de recomendao

    provenientes dos agentes de interface, enquanto Grooveshark e Deezer disponibilizam

    tambm recomendaes dos internautas. Essa diferenciao reveladora do predomnio

    fenomenolgico nesses ambientes. Em LastFM o foco nas aes de recomendaes

    feitas pelo agente de interface demonstra predomnio de ancoragem na ao didica,

    determinista. J Grooveshark e Deezer se abrem para a indeterminao do acasorelacionada aquisio imprevisvel de novos hbitos por associao sgnica,

    em predomnio da ao tridica.

    A constatao, deve-se ressaltar, no separa as agncias humanas das agncias

    mecnicas nesses ambientes, apenas enfatiza que as dinmicas sociocomunicacionais de

    streamingde msica operam por predomnios fenomenolgicos variados. Isso nos leva a crer

    que o agenciamento semitico nesses ambientes matizado por especicidades sgnicas que

    podem ser averiguadas pelo prisma das classes de signo de Peirce, assunto no abordado

    neste artigo. Acreditamos que esse ser um desdobramento necessrio deste estudo.

    Geane Carvalho Alzamora professora do Departamento

    de Comunicao Social da UFMG e pesquisadora do

    Centro de Convergncia de Novas Mdias. Agradece ao

    CNPq e Fapemig por auxlios em pesquisas que dialogam

    com este artigo

    [email protected].

  • 7/26/2019 Alzamora; Cortez - Agenciamentos Semiticos Em Ambientes de Streaming de Msicas Mente, Aprendizado e Con

    11/11

    ALZAMORA, G.; CORTEZ, N.M.P. Agenciamentos semiticos em ambientes de streamingde msicas: mente,

    aprendizado e continuidade. Galaxia(So Paulo, Online), n. 28, p. 173-183, dez. 2014.183

    Natlia Moura Pacheco Cortez doutoranda no Programa

    de Ps-Graduao em Comunicao Social da UFMG e

    pesquisadora do Centro de Convergncia de Novas Mdias.

    [email protected]

    Referncias

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    Artigo recebido em agosto

    e aprovado em novembro de 2013.