Amanda Quick - Caso de Amor · chefe era fazer de sua vida um caos. Era o suficiente para levar um...

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Ele estava realmente numa situação delicada! Um dedicado homem da ciência, que prezava, acima de tudo, a lógica e a razão, Baxter St. Ives não podia acreditar que estivesse realmente se fazendo passar por um simples assistente para conseguir se aproximar de uma mulher liberada. Aceitar o papel de caçador de um assassino era uma coisa, mas descobrir que estava descontroladamente apaixonado por sua nova chefe era fazer de sua vida um caos. Era o suficiente para levar um homem a se trancar no santuário do seu laboratório e nunca mais sair. Mas, em vez disso, St. Ives resolve conduzir uma experiência, uma perigosa investigação científica na temerária alquimia do desejo. À medida que o ousado St. Ives se lança à tarefa de seduzir Charlotte, no entanto, o mistério que os envolve vai ficando cada vez mais denso, pois um assassino perigoso ainda está à solta em Londres, planejando o afastamento dos amantes… ou vê-los unidos para sempre - na morte.

Transcript of Amanda Quick - Caso de Amor · chefe era fazer de sua vida um caos. Era o suficiente para levar um...

Ele estava realmente numa situação delicada! Um dedicado homem da ciência,

que prezava, acima de tudo, a lógica e a razão, Baxter St. Ives não podia acreditar que estivesse realmente se fazendo passar por um simples assistente para conseguir se aproximar de uma mulher liberada. Aceitar o papel de caçador de um assassino era uma coisa, mas descobrir que estava descontroladamente apaixonado por sua nova chefe era fazer de sua vida um caos. Era o suficiente para levar um homem a se trancar no santuário do seu laboratório e nunca mais sair.

Mas, em vez disso, St. Ives resolve conduzir uma experiência, uma perigosa investigação científica na temerária alquimia do desejo. À medida que o ousado St. Ives se lança à tarefa de seduzir Charlotte, no entanto, o mistério que os envolve vai ficando cada vez mais denso, pois um assassino perigoso ainda está à solta em Londres, planejando o afastamento dos amantes… ou vê-los unidos para sempre - na morte.

Prólogo Noite Londres Charlotte jamais descobriu o que a acordou de madrugada. Talvez seu cérebro

adormecido tivesse registrado o rangido de uma tábua do assoalho ou uma voz de homem abafada. Fosse o que fosse ela abriu os olhos bruscamente e sentou na cama, com uma sensação de extrema urgência. Uma fria premonição envolveu todo seu corpo.

Era a noite de folga da governanta. Seu padrasto, Winterbourne, ultimamente nunca voltava para casa antes do nascer do dia. Charlotte sabia que ela e a irmã, Ariel, estavam sozinhas na casa.

Mas alguém acabava de subir a escada e estava andando no corredor. Ela afastou as cobertas e se levantou, tremendo de frio com os pés no assoalho

gelado. Por um momento não teve idéia do que ia fazer. Outra tábua do assoalho rangeu. Charlotte abriu a porta apenas alguns centímetros e olhou para o corredor

escuro. Dois vultos com sobretudos compridos surgiram nas sombras densas no fim do corredor e pararam na frente da porta do quarto de Ariel.

Um dos homens levava uma vela acesa. A chama iluminou os traços grosseiros de Winterbourne.

- Seja rápido - Winterbourne rosnou com voz rouca. - E depois vá embora. Está quase amanhecendo.

- Mas eu quero desfrutar este raro prazer. Raramente se tem a oportunidade de saborear uma verdadeira virgem de tão nobre linhagem. Quatorze anos, você disse? Uma boa idade. Não pretendo me apressar, Winterbourne.

Charlotte reprimiu um grito de raiva e medo. A voz do outro homem era como um instrumento musical, uma coisa cheia de graça e força, mesmo num murmúrio. Era uma voz capaz de acalmar animais selvagens ou cantar hinos, mas também o som mais aterrorizador que ela já ouvira.

- Está louco? - Winterbourne murmurou furioso. - Ande logo e acabe com isso. - Você me deve muito dinheiro, Winterbourne. Certamente não espera liquidar a

dívida permitindo apenas alguns minutos com uma pequena inocente muito valiosa. Quero uma hora no mínimo.

- Impossível - Winterbourne resmungou. - A irmã mais velha está no outro quarto. Ela é uma praga. Absolutamente indisciplinada. Se você a acordar, não sei o que ela pode fazer.

- O problema é seu, não meu. Você é o chefe da casa, não é? Ela é da sua responsabilidade.

- Que diabo espera que eu faça se ela acordar? - Tranque a menina no quarto. Amarre se for preciso. Ponha uma mordaça na

sua boca. Bata nela até ficar inconsciente. Não me importa como vai resolver o problema, apenas trate de impedir que ela atrapalhe o meu prazer.

Charlotte fechou a porta silenciosamente e olhou para o quarto iluminado pelo luar. Respirou fundo, procurou dominar o pânico e correu para uma arca perto da janela.

Abriu a tampa e empurrou para o lado duas mantas que estavam em cima. No fundo da arca estava a caixa com a pistola do seu pai.

Charlotte apanhou a caixa, abriu com mãos trêmulas e retirou a arma. Estava descarregada. Não podia fazer nada. Não tinha munição, nem o tempo necessário para aprender a usar a pistola.

Foi até a porta, abriu-a e saiu para o corredor. Instintivamente sabia que, dos dois homens, o mais perigoso era o estranho que pretendia violentar Ariel. Certamente seria encorajado pela menor demonstração da ansiedade, da insegurança ou do pânico que a dominavam.

- Pare imediatamente ou eu atiro - Charlotte disse, com voz calma. Winterbourne virou-se para ela, sobressaltado. A chama da vela iluminou sua boca aberta, a expressão de surpresa.

- Droga do inferno. Charlotte. O outro homem voltou-se mais devagar. O sobretudo girou com um som suave e

farfalhante. A chama fraca da vela de Winterbourne não chegava até ele. Estava ainda de chapéu. A aba larga e a gola levantada do sobretudo escondiam quase totalmente o rosto.

- Ah - ele murmurou. - A irmã mais velha, eu suponho? Então Charlotte percebeu que estava iluminada pelo luar que entrava pela janela

do seu quarto e chegava ao corredor pela porta aberta. O estranho podia ver a silhueta do seu corpo através do linho fino da camisola.

Desejou de todo coração que a pistola estivesse carregada. Nunca odiou tanto alguém quanto aquela criatura na sua frente. Nunca também sentiu tanto medo em toda a vida.

Naquele momento, sua imaginação tentava dominar a inteligência. Uma parte elementar dela tinha certeza de estar vendo não um homem, mas um monstro.

Guiada apenas pelo instinto, Charlotte ficou calada. Segurou a pistola com as duas mãos, levantou-a com precisão deliberada, como se estivesse carregada e destravou. O som típico pareceu alto demais no corredor silencioso.

- Maldição, menina, você está louca? - Winterbourne avançou para ela, mas parou hesitante a poucos passos de distância. - Largue essa arma.

- Saia daqui. - Charlotte não permitiu que suas mãos tremessem. Sempre com a arma apontada para o monstro com o sobretudo negro. - Os dois. Saiam agora.

- Eu acho que ela vai mesmo apertar o gatilho, Winterbourne. - A voz do monstro era toda mel e veneno, com um assustador tom de zombaria.

- Ela não teria coragem. - Mas Winterbourne deu um passo para trás. - Charlotte, escute. Não pode ser tão tola e acreditar que é capaz de atirar em um homem assim a sangue-frio. Você vai para a forca.

- Que seja. - Charlotte continuou a segurar a pistola com mãos firmes. - Vamos, Winterbourne - o monstro disse com calma. - Vamos dar o fora. A

atrevidinha pretende pôr uma bala em um de nós e acho que a vítima escolhida sou eu. Nenhuma virgem vale tanto.

- Mas e as minhas promissórias? - Winterbourne perguntou com voz trêmula. - Prometeu que as devolveria se eu o deixasse usar a menina mais nova.

- Ao que parece, tem de pensar em outro modo de pagar suas dívidas. - Mas não tenho de onde tirar o dinheiro, senhor. - Winterbourne estava

desesperado. - Não tenho nada mais para vender que dê para cobrir o que devo. As jóias da minha mulher já se foram. Só resta alguma prataria. E esta casa não é minha. É alugada.

- Tenho certeza de que vai descobrir algum meio de pagar. - O monstro deu alguns passos até a escada, sem tirar os olhos de Charlotte. - E espero que não exija que eu tente enfrentar um anjo vingador armado com uma pistola para garantir o pagamento.

Charlotte continuou com a arma apontada para o estranho enquanto ele descia a escada. Evitando a luz da vela de Winterbourne, ele conseguiu ficar com o rosto na sombra o tempo todo. Charlotte se aproximou do corrimão e o viu abrir a porta da casa.

Horrorizada, ela o viu parar e olhar para cima. - Acredita no destino, Srta. Arkendale? - A voz flutuou até ela saindo da noite. - Não me preocupo com essas coisas. - É uma pena. Dado o fato de ter demonstrado que é uma dessas raras pessoas

com o poder de dar forma ao destino, acho que devia dar mais atenção ao assunto. - Saia desta casa. - Adeus, Srta. Arkendale. Foi muito divertido, para dizer o mínimo. - Com um

último movimento do sobretudo longo, o monstro se foi. Finalmente, Charlotte respirou outra vez. Voltou-se para Winterbourne. - O senhor também. Saia desta casa ou vou apertar o gatilho. - O rosto de traços

grosseiros se contraiu em desespero. - Sabe o que fez sua cadela burra? Eu devo a ele uma maldita fortuna. - Não estou interessada em quanto perdeu para ele. Ele é um monstro. E o

senhor é um homem disposto a entregar uma criança a um animal. Isso faz do senhor um monstro também. Saia daqui.

- Não pode me expulsar da minha casa. - É exatamente o que pretendo fazer. Saia ou vou atirar. Não duvide de mim,

Winterbourne. - Por Deus, sou seu padrasto. - É um mentiroso desprezível e miserável. É também ladrão. Roubou a herança

que meu pai deixou para Ariel e para mim e gastou tudo no jogo. Acha que posso ter algum sentimento de lealdade depois do que fez? Se acreditar nisso, está louco.

Winterbourne estava furioso. - O dinheiro passou a ser meu quando casei com sua mãe. - Saia desta casa. - Charlotte, espere você não compreende a situação. Aquele homem que acaba

de sair é do tipo com quem não se brinca. Ele exigiu que eu pagasse minha dívida de jogo esta noite. Preciso acertar meus negócios com ele. Não sei o que ele fará se eu não pagar.

- Vá embora. Winterbourne abriu a boca e a fechou bruscamente. Olhou para a pistola e

depois, com um gemido angustioso, desceu a escada, segurando no corrimão para se firmar, atravessou o hall e saiu.

Charlotte ficou imóvel no escuro, no alto da escada até a porta se fechar atrás dele. Respirou profundamente várias vezes e abaixou a arma.

Por um momento o mundo pareceu oscilar e flutuar em volta dela. O som das carruagens passando na rua era distante e irreal. O corredor e a escada pareciam uma ilusão sinistra.

A porta do quarto de Ariel abriu no fim do corredor. - Charlotte? Ouvi vozes. Você está bem? - Estou. - Charlotte segurou a pistola junto do corpo para que a irmã não a visse.

Voltou-se devagar com um sorriso trêmulo. - Sim, estou bem, Ariel. Winterbourne chegou bêbado como sempre. Discutimos um pouco. Mas ele foi embora. Não vai voltar esta noite.

Ariel ficou calada por um momento. - Eu queria que mamãe estivesse ainda aqui. Às vezes esta casa me assusta. Charlotte sentiu as lágrimas arderem nos olhos. - Às vezes eu também fico com medo, Ariel. Mas logo estaremos livres. Na

verdade, amanhã mesmo tomaremos a diligência para Yorkshire. Aproximou-se da irmã e a abraçou, escondendo a pistola nas dobras da camisola.

O metal frio parecia queimar sua pele. - Você já vendeu toda a prata e o que restou das jóias de mamãe? - Ariel

perguntou. - Já. Ontem eu empenhei o serviço de chá. Não há nada mais. No ano seguinte à morte prematura da mãe numa queda do cavalo,

Winterbourne vendeu as melhores jóias da família Arkendale e grande parte da prataria, para pagar suas dívidas de jogo.

Porém, quando Charlotte descobriu o que estava acontecendo, ela escondeu alguns pequenos anéis, broches, pingentes e algumas peças do serviço de chá de prata. Nos últimos meses ela havia empenhado tudo.

Winterbourne passava tanto tempo embriagado que nem percebeu o desaparecimento das peças escondidas por ela. Quando, uma vez ou outra, ele notava a falta de alguma coisa, Charlotte dizia que ele a havia empenhado quando estava bêbado.

Ariel olhou para ela. - Você acha que vamos gostar de Yorkshire? - Vamos adorar. Encontraremos uma pequena casa para alugar. - Mas como vamos viver? - Com apenas quatorze anos, Ariel já demonstrava um

espírito muito prático. - O dinheiro que você conseguiu não vai durar muito tempo. Charlotte a abraçou com força. - Não se preocupe. Vou descobrir um meio de ganhar a vida para nós duas. Ariel franziu a testa. - Não vai ter de trabalhar como governanta, vai? Você sabe das coisas terríveis

que uma senhora tem de suportar nesse trabalho. Ninguém paga muito bem e elas sempre são tratadas como inferiores. E eu não poderei ficar com você, se for trabalhar na casa de alguém.

- Pode ficar certa de que vou descobrir outro meio de subsistência para nós - Charlotte prometeu.

Todos sabiam que o trabalho de governanta não era agradável. Além do ordenado irrisório e do tratamento humilhante, tinham de enfrentar o perigo dos homens da família, que não se julgavam obrigados a respeitar uma simples governanta.

Tinha de haver um modo melhor de ganhar a vida, Charlotte pensou. Mas na manhã seguinte tudo mudou. Lorde Winterbourne foi encontrado boiando de bruços no Tâmisa com a garganta

cortada. A explicação mais provável é que fora vítima de um assaltante. Não precisavam mais fugir para Yorkshire, mas persistia o problema de Charlotte

descobrir um meio de ganhar a vida. Foi com alívio que ela recebeu a notícia da morte de Winterbourne. Mas sabia

que jamais se esqueceria do monstro de bela voz que tinha encontrado no corredor. - Então, no fim, você resolveu me trair - Morgan Judd disse, na porta da câmara

de pedra do seu laboratório. - Uma pena. Você e eu temos muita coisa em comum, St. Ives. Juntos poderíamos formar uma aliança que nos daria riqueza e poder. Um desperdício de um grande destino. Mas você não acredita no destino, não é mesmo?

Baxter St. Ives segurou com força o maldito livro de anotações que acabava de descobrir. Olhou para Morgan.

Para as mulheres, Judd tinha o rosto de um anjo caído. O cabelo negro e ondulado tinha o estilo elegantemente casual e descuidado dos poetas românticos. Emoldurava uma testa alta e inteligente e olhos muito azuis e frios.

A voz de Morgan podia ser comparada à do próprio demônio. Era a voz de um homem que tinha cantado no coro em Oxford, recitado poesia para ouvintes encantados e atraído damas da mais alta nobreza para a sua cama. Era rica, profunda, encantadora, sombreada com significados sutis e promessas tácitas. Era uma voz de

força e paixão e Morgan a usava, como usava a tudo e a todos, para alcançar seus objetivos.

O sangue que corria em suas veias era tão azul quanto os olhos frios como gelo. Vinha de uma das mais nobres famílias da Inglaterra. Mas seus traços aristocráticos escondiam as verdadeiras circunstâncias do seu nascimento.

Morgan Judd era filho bastardo. Era uma das duas coisas que Baxter podia dizer que tinham em comum. A outra era um verdadeiro fascínio pela química. Esta última era a causa desse confronto no meio da noite.

- Destino é para poetas e romancistas. - Baxter ajeitou no nariz os óculos com aros de ouro. - Sou um homem de ciência. Não me interesso por bobagens metafísicas. Mas sei que é possível para um homem vender a própria alma ao demônio. Por que você fez isso, Morgan?

- Está falando do pacto que fiz com Napoleão, eu suponho. - A boca sensual de Morgan se curvou num leve sorriso.

Ele deu dois passos na sala cheia de sombras e parou. As pregas do sobretudo negro se agitaram em volta das botas polidas como asas de uma grande ave de rapina.

- Sim - Baxter disse. - Estou falando do seu trato. - Não há grande mistério na minha decisão. Faço o que tenho de fazer para

realizar meu destino. - Você trairia seu país para concretizar essa idéia louca de um grande destino? - Não devo coisa alguma à Inglaterra e você também não. E um país governado

por leis e regras sociais não-escritas que combinam para evitar que homens superiores, como você e eu, ocupem seu lugar de direito na ordem natural das coisas. - Os olhos de Morgan cintilaram à luz das velas. Sua voz tremeu com fúria amarga. - Ainda não é tarde, Baxter. Junte-se a mim nesse empreendimento.

Baxter ergueu o livro de anotações. - Quer que eu o ajude a terminar a formulação destas terríveis substâncias

químicas para que Napoleão as use como arma contra nossos compatriotas? Você está mesmo louco.

- Não estou louco, mas você definitivamente é um tolo. - Morgan tirou uma pistola de dentro do sobretudo comprido e largo. - E cego, apesar dos seus óculos, se não pode ver que Napoleão é o verdadeiro futuro.

Baxter balançou a cabeça. - Ele tentou monopolizar poder demais. Isso vai destruí-lo. - Ele compreende que os grandes destinos são feitos por aqueles que têm a

vontade e a inteligência para construí-los. Além disso, ele acredita no progresso. É o único governante em toda a Europa que compreende realmente o verdadeiro potencial da ciência.

- Ouvi dizer que ele deu grandes somas de dinheiro aos homens que conduzem grandes experiências no campo da química e da física. - Baxter vigiava a pistola na mão de Morgan. - Mas ele vai usar o que você está criando neste laboratório para ajudá-lo a vencer a guerra. Muitos ingleses terão uma morte cruel se você conseguir produzir uma grande quantidade desse vapor letal. Isso não significa nada para você?

Morgan riu. O som tinha a ressonância baixa e profunda de um sino grande tocado suavemente.

- Nada. - Você entregou ao demônio sua honra, além da sua pátria? - St. Ives, você me surpreende. Quando vai aprender que a honra é um esporte

destinado a divertir os homens nascidos de uniões legítimas? - Discordo. - Baxter pôs o livro de anotações debaixo do braço, tirou os óculos e

começou a limpar as lentes com o lenço. - Honra é uma qualidade que qualquer

homem adquire e molda para si mesmo. - Sorriu levemente. - Não muito diferente da sua idéia de destino, quando examinada detalhadamente.

Os olhos de Morgan congelaram de desprezo e fúria. - Honra é para homens que herdam poder e riqueza no berço simplesmente

porque suas mães tiveram o bom senso de garantir uma certidão de casamento antes de abrir as pernas. É para homens como nossos nobres pais que legam títulos e propriedades aos seus filhos legítimos e deixam seus bastardos sem nada. Não é para homens como nós.

- Sabe qual é seu grande defeito, Morgan? - Baxter pôs os óculos cuidadosamente outra vez. - Você se apaixona demais por certos assuntos. Emoções fortes não são recomendáveis para um químico.

- Maldito seja, St. Ives. - Morgan segurou com força a pistola. - Estou farto dos seus sermões excessivamente tediosos. Seu grande defeito é a falta de coragem e de natureza aventureira para alterar o curso da sua própria vida.

Baxter deu de ombros. - Se o destino existe, então espero que o meu seja um tédio total até o dia da

minha morte. - Temo que esse dia tenha chegado. Pode não acreditar, mas é com pena que

reconheço a necessidade de acabar com sua vida. Você é um dos poucos homens em toda a Europa capaz de apreciar o brilhantismo das minhas realizações científicas. E uma pena que não esteja vivo para ver o desabrochar do meu destino.

- Destino, francamente. Que grande bobagem. Ouça o que eu digo, essa sua obsessão com a metafísica e com o oculto é outra falha num homem de ciência. Quando você começou a realmente acreditar nessas bobagens?

- Tolo. - Morgan destravou a arma e apontou para ele. O tempo tinha acabado. Não havia nada mais para perder. Desesperado, Baxter

apanhou o candelabro pesado e o atirou com a vela acesa para cima da mesa de trabalho mais próxima.

O candelabro de ferro e a vela caíram sobre um frasco de vidro, fazendo-o em pedaços. O fluido verde-claro se espalhou sobre a mesa, escorrendo na direção da chama.

O líquido derramado se inflamou imediatamente. - Não - Morgan gritou. - Maldito seja, St. Ives. Morgan apertou o gatilho, mas sua atenção estava no fogo que crescia, não em

St. Ives. A bala atingiu a janela atrás dele. Um dos painéis de vidro explodiu. Baxter correu para a porta com o livro de anotações na mão. - Como se atreve a interferir com meus planos? - Morgan apanhou uma garrafa

verde da estante e virou rapidamente para bloquear o caminho de Baxter. - Seu tolo idiota. Não pode me deter.

- O fogo está se alastrando rapidamente. Fuja pelo amor de Deus. - Mas Morgan ignorou o aviso. Com o rosto contorcido de raiva, atirou o conteúdo da garrafa na direção de Baxter.

Instintivamente, Baxter cobriu os olhos com o braço e virou de costas para ele. O ácido atingiu seu ombro e parte das costas. Por um segundo não sentiu nada a

não ser uma estranha sensação de frio, como se a garrafa contivesse água. Mas logo em seguida, o ácido atravessou seu terno de linho e chegou à sua pele.

A dor lancinante, uma verdadeira agonia, ameaçou destruir sua concentração. Baxter se obrigou a focalizar a mente na necessidade de fugir dali.

O fogo cresceu rapidamente na câmara de pedra. Uma fumaça densa e malcheirosa começava a encher o ar, à medida que outros frascos se partiam e derramavam seu conteúdo nas chamas.

Morgan abriu uma gaveta e tirou dela outra pistola. Virou a arma rapidamente

para Baxter, entrecerrando os olhos para ver melhor através do vapor que enchia o ar. Baxter tinha a impressão de que sua pele estava sendo arrancada aos poucos.

Através da névoa de dor e de fumaça viu que o caminho para a porta estava tomado pelas chamas. Não era possível escapar naquela direção.

Ergueu o pé e chutou com força a pesada bomba de ar, que caiu sobre a perna esquerda de Morgan.

- Maldito seja. - Morgan perdeu o equilíbrio com o impacto e caiu de joelhos. A arma bateu no chão de pedra com um ruído metálico sonoro.

Baxter correu para a janela. Os pedaços da sua camisa esvoaçavam a cada movimento. Chegou ao parapeito e olhou para baixo.

Tudo que viu foi o mar encapelado, à luz do luar, batendo nas rochas que formavam os alicerces do castelo antigo.

Morgan apanhou a arma e atirou. Baxter se atirou no mar escuro. Uma série de explosões ecoaram na noite

quando ele mergulhou no oceano. Conseguiu se desviar das rochas, mas o impacto arrancou de sua mão o livro de

anotações de Morgan Judd. O livro desapareceu para sempre. Quando voltou à tona um momento depois, no meio das ondas altas, Baxter viu

que tinha perdido os óculos. Mas não precisava deles para ver que o laboratório na torre do castelo tinha se transformado num inferno. A fumaça escura subia para o alto em direção à noite.

Ninguém podia sobreviver àquele tipo de incêndio. Morgan Judd estava morto. Baxter considerou o fato de ter provocado a morte do homem que fora antes seu

melhor amigo e colega. Era quase o bastante para fazer um homem acreditar no destino.

CAPÍTULO I - Não tenho outra opção a não ser a franqueza, Sr. St. Ives. Infelizmente, o

senhor não é exatamente o que eu esperava de um secretário assistente. - Charlotte Arkendale cruzou as mãos sobre a mesa de mogno e examinou Baxter com olhar crítico. - Sinto muito que tenha perdido seu tempo.

A entrevista não estava indo como ele esperava. Baxter ajustou os óculos com aros de ouro e prometeu a si mesmo que não ia ceder ao impulso de rilhar os dentes.

- Desculpe-me, Srta. Arkendale, mas tive a impressão de que estava procurando uma pessoa de aparência inócua e desinteressante.

- Isso mesmo. - Sua descrição exata do candidato ideal foi, repito suas palavras, uma pessoa de

aparência tão inofensiva quanto um bolo de batata. Charlotte piscou os olhos grandes, verdes e inteligentes. - O senhor não me compreendeu corretamente. - Eu raramente me engano Srta. Arkendale. Sou extremamente preciso metódico

e deliberado em tudo que faço. Enganos são cometidos por pessoas impulsivas ou com disposição para sentimentos fortes demais. Posso garantir que esse não é o meu temperamento.

- Concordo plenamente com o senhor sobre os riscos de uma natureza passional. - ela disse rapidamente. - Na verdade, esse é um dos problemas...

- Permita-me ler o que a senhorita escreveu na carta para seu ex-assistente, agora aposentado.

- Não é necessário. Sei perfeitamente o que escrevi ao Sr. Mareie. Baxter a ignorou. Tirou a carta do bolso interno do casaco levemente

amarrotado. Tinha lido a maldita coisa tantas vezes que quase sabia de cor, mas fez questão de olhar com atenção para a letra muito caprichada.

“Como sabe, Sr. Mareie, preciso de um assistente para tomar seu lugar. Deve ser uma pessoa de aparência comum e discreta. Quero um homem capaz de fazer seu trabalho sem ser notado, um cavalheiro com quem eu possa me encontrar freqüentemente sem atrair atenção ou comentários indevidos.

Além dos deveres usuais de um assistente geral, que o senhor cumpriu admiravelmente bem nos últimos cinco anos, o novo assistente terá outras obrigações complementares.

Não quero aborrecê-lo descrevendo minha situação atual. Basta dizer que devido a eventos recentes, preciso de um indivíduo forte do qual eu possa depender para minha defesa pessoal. Em resumo, quero contratar um guarda-costas e um assistente.

As despesas como sempre, devem ser levadas em consideração. Assim sendo, em vez de contratar dois homens para esses serviços, cheguei à conclusão de que é mais econômico contratar apenas um capaz de assumir as responsabilidades dos dois cargos...”

- Sim, sim. Lembro-me perfeitamente das minhas palavras - Charlotte interrompeu com impaciência. - Mas a questão não é essa.

Baxter continuou teimosamente: "Portanto, peço que me envie um cavalheiro respeitável que preencha os

requisitos acima e com uma aparência tão inofensiva quanto a de um bolo de batata." - Não vejo qual a necessidade de o senhor repetir tudo que está escrito, Sr. St.

Ives. Baxter insistiu: "Ele deve ter um alto grau de inteligência, uma vez que terá de se encarregar

das investigações de costume para mim. Porém, na capacidade de guarda-costas, deve

também saber manejar uma pistola, para o caso de acontecer alguma coisa desagradável. Acima de tudo, Sr. Mareie, como o senhor sabe muito bem, ele deve ser discreto."

- Basta, Sr. St. Ives. - Charlotte apanhou um pequeno livro com capa de couro vermelho e bateu com ele na mesa, para chamar a atenção de Baxter St. Ives.

Baxter ergueu os olhos da carta. - Acredito que satisfaço a maior parte das suas exigências, Srta. Arkendale. - Estou certa de que satisfaz algumas. - Concedeu a ele um sorriso gélido. - O Sr.

Mareie jamais o teria recomendado se não fosse esse o caso. Infelizmente, há uma qualificação muito importante que o senhor não satisfaz.

Baxter dobrou a carta lenta e deliberadamente e guardou no bolso. - O tempo é essencial, segundo o Sr. Mareie. - Correto. - Uma sombra de ansiedade passou rapidamente pelos olhos dela. -

Preciso de alguém que possa começar a trabalhar imediatamente. - Nesse caso, talvez não deva ser tão exigente, Srta. Arkendale. Ela corou. - O caso é Sr. St. Ives, que desejo contratar um homem que satisfaça todas as

minhas exigências, não apenas algumas delas. - Devo insistir em dizer que tenho todas as qualificações requeridas, Srta.

Arkendale - continuou, depois de uma pausa. - Ou quase todas. Sou inteligente, alerta, e extraordinariamente discreto. Confesso que tenho pouco interesse por pistolas. Eu as considero de um modo geral, imprecisas e não confiáveis.

- Ah-ah - ela disse triunfante. - Aí está. Outra exigência que o senhor não satisfaz.

- Mas tenho algum conhecimento de química. - Química - ela franziu a testa. - De que adianta isso? - Nunca se sabe Srta. Arkendale. Esse conhecimento tem me sido muito útil em

várias ocasiões. - Compreendo. Muito bem, isso tudo é interessante, sem dúvida. Infelizmente,

não preciso de um químico. - A senhorita insistiu numa pessoa que não chame atenção. Um assistente

confiável e praticamente invisível. - Sim, mas... - Permita-me dizer que as pessoas costumam me descrever exatamente nesses

termos. Inofensivo como um bolo de batata. Charlotte começava a ficar irritada. Levantou-se bruscamente e foi até o canto da

mesa. - Acho extremamente difícil acreditar nisso, senhor. - Não sei por quê. - Baxter tirou os óculos. Charlotte começou a andar de um

lado para o outro, na sala. - Até minha tia afirma que sou capaz de levar a um agudo estado de tédio a quem estiver num raio de vinte passos de distância, em menos de dez minutos. Srta. Arkendale posso garantir que eu não só pareço sem graça, como sou realmente sem graça.

- Talvez a vista fraca seja um problema hereditário na sua família, senhor. Recomendo que sua tia compre óculos como esses que o senhor usa.

- Minha tia não deixaria que a vissem usando óculos nem morta. - Baxter pensou por um momento na impecavelmente elegante Rosalind, Lady Trengloss, limpando as lentes dos óculos. - Ela só os usa quando tem certeza de estar sozinha. Duvido que sua criada os tenha visto alguma vez.

- O que confirma minha suspeita de que ela ainda não olhou para o senhor com atenção. Talvez desde que o senhor era um bebê.

- Como disse?

Charlotte virou-se bruscamente e olhou para ele. - Sr. St. Ives, o assunto da vista fraca tem muita relação com o que estou

querendo acentuar. Baxter pôs os óculos outra vez com cautelosa deliberação. Definitivamente

estava perdendo o fio da conversa. Um mau sinal. Fez um esforço para observar Charlotte com seu habitual distanciamento analítico.

Ela não parecia quase nada com a maioria das senhoras que ele conhecia. Na verdade, quanto mais olhava para ela, mais se convencia de que Charlotte era definitivamente única, singular.

Então, surpreendeu-se percebendo com relutância que ela o fascinava apesar do que sabia a seu respeito. Ela era um pouco mais velha do que tinha imaginado. Vinte e cinco anos foi a informação recebida.

As expressões apareciam e desapareciam no rosto dela com a rapidez de uma reação química num frasco de laboratório sobre a chama. Sobrancelhas espessas e pestanas longas emolduravam os olhos. Nariz bem delineado, maçãs do rosto altas, a boca eloqüente indicando determinação e vontade indomável.

Em outras palavras, Baxter pensou, esta é uma mulher que sabe o que quer. O cabelo cor de cobre brilhante era repartido no centro sobre atesta alta e

inteligente, preso no alto da cabeça e penteado de modo a deixar algumas mechas onduladas pendendo ao lado das têmporas.

Em pleno rigor da moda de cintura alta e tecidos transparentes destinados a revelar o máximo das formas femininas, Charlotte usava um vestido surpreendentemente modesto. O tecido era musselina amarela, tinha cintura alta, mangas longas e jabô branco. Sapatos sem salto de couro espiavam debaixo da bainha da saia. Baxter notou que Charlotte tinha belos pés. Bem torneados com tornozelos delicados.

Chocado com a direção dos próprios pensamentos, Baxter desviou os olhos. - Perdoe-me, Srta. Arkendale, mas acho que não sei o que quer dizer. - O senhor simplesmente não serve para o cargo de assistente e guarda-costas. - Porque uso óculos. - Ele franziu a testa, intrigado. - Eu diria que isso acentua

bastante a impressão de bolo de batata. - O problema não são os óculos. - Charlotte estava exasperada agora. - Pensei que tinha dito que eram o problema. - Não está ouvindo o que eu digo? Começo a pensar que está deliberadamente

distorcendo minhas palavras, senhor. Repito o senhor não está qualificado para esta posição.

- Sou perfeitamente qualificado. Permita-me lembrar que fui recomendado por seu assistente.

Charlotte ignorou o fato com um movimento da mão. - O Sr. Mareie não é mais meu assistente. Neste momento está a caminho de

uma casa de campo em Devon. - Acredito que o ouvi dizer que ele merecia uma aposentadoria longa e tranqüila.

Tive a impressão de que é bastante exigente Srta. Arkendale. Charlotte ficou imóvel. - Como disse? - Não tem importância. A aposentadoria de Mareie não nos interessa no

momento. O que importa é o fato de a senhora ter dado a ele as instruções para recomendar um substituto. Ele me escolheu para assumir suas antigas responsabilidades.

- Eu dou a palavra final no assunto e minha opinião é de que o senhor não se qualifica para o lugar.

- Posso garantir que Mareie me achou eminentemente qualificado. Ele teve

grande prazer em escrever a carta de recomendação que a senhora leu. Mareie sempre elegante, com seus belos cabelos brancos, estava acabando de

fazer as malas quando recebeu as últimas instruções da sua futura ex-patroa. O senso de oportunidade de Baxter foi perfeito. Pelo menos foi o que pensou, até tentar convencer o hesitante Mareie de que queria se candidatar à posição que ele estava deixando.

Longe de sentir alívio com a perspectiva de resolver seu último "problema Arkendale", como ele disse, o consciencioso Mareie achou de bom alvitre desencorajar Baxter da tentativa.

- A Srta. Arkendale é bem, um tanto diferente - Mareie disse, girando a caneta entre os dedos. - Tem certeza de que quer se candidatar?

- Certeza absoluta - Baxter disse. Mareie olhou para ele sob a linha sólida das sobrancelhas espessas. - Perdoe-me, senhor, mas acho que não compreendo exatamente por que deseja

trabalhar para a Srta. Arkendale nessa função. - Os motivos comuns. Estou desempregado. - Sim, sim, compreendo. Mas deve haver outros empregos disponíveis. Baxter resolveu enfeitar um pouco sua história. Adotou o que esperava que fosse

um ar confidencial. - Nós dois sabemos o quanto esse tipo de trabalho pode ser mundano.

Instruções para advogados e vários agentes. Providenciar a venda e compra de propriedades. Trabalhar junto aos bancos. Tudo muito desinteressante.

- Depois de cinco anos como assistente da Srta. Arkendale posso garantir que a rotina e as atividades desinteressantes podem vir a ser situações extremamente desejáveis.

- Estou ansioso por alguma coisa diferente - Baxter disse, com entusiasmo. - Esta posição me parece de certo modo fora do comum. Na verdade, sinto que pode me oferecer um certo desafio.

- Desafio? - Mareie fechou os olhos. - Duvido que saiba o significado dessa palavra, senhor.

- Já me disseram que eu estou me entregando demais à rotina. Sugeriram que acrescentasse um elemento de estímulo à minha vida, senhor. Espero que esse emprego me dê essa oportunidade.

Mareie abriu os olhos bruscamente, alarmado. - Está dizendo que procura aventura? - Exatamente, senhor. Um homem da minha natureza tem pouca oportunidade

para aventura e excitação, no curso normal dos eventos. - Baxter esperava não estar exagerando. - Sempre levei uma vida muito tranqüila.

A verdade era que ele preferia essa vida tranqüila, Baxter pensou tristemente. Essa maldita missão inventada por sua tia era uma interrupção indesejável na sua plácida rotina.

Baxter só concordou porque conhecia bem Rosalind e sua queda para o drama - seu maior sentimento era nunca ter sido atriz - mas não era dada a fantasias tolas e febris.

Rosalind estava genuinamente preocupada com as circunstâncias que envolviam o assassinato da sua amiga Drusilla Heskett. As autoridades declararam que ela fora assassinada por um assaltante. Rosalind suspeitava que a assassina fosse Charlotte Arkendale.

Baxter concordou em examinar a situação, como um favor para a tia. Uma investigação discreta revelou que a misteriosa Srta. Arkendale estava

precisando de um assistente. Baxter aproveitou a oportunidade e se candidatou ao emprego.

Em sua opinião, se conseguisse o lugar, estaria na posição ideal para conduzir a investigação. Com um pouco de sorte resolveria o assunto em pouco tempo e podia voltar ao calmo refúgio do seu laboratório.

Mareie respirou profundamente. - É verdade que trabalhar para a Srta. Arkendale pode às vezes ter um elemento

de aventura, mas não estou certo de que é o tipo de aventura que o senhor aprecia Sr. St. Ives.

- Deixe que eu julgue isso. - Acredite senhor, se é aventura o que está procurando, é melhor procurar

trabalho num desses antros de jogatina. - Não gosto de jogos de azar. - Mareie fez uma careta. - Garanto que um inferno real seria muito menos enlouquecedor do que se

envolver com os negócios da Srta. Arkendale. Baxter não havia considerado a possibilidade de Charlotte Arkendale ser uma

candidata ao Asilo de Loucos. - Acha que ela é louca? - Quantas senhoras o senhor conhece que precisam de um assistente que seja

também guarda-costas? Uma excelente pergunta, Baxter pensou. A coisa toda parecia ficar mais bizarra a

cada momento. - Mesmo assim, quero me candidatar ao emprego. É obvio por que ela precisa de

um novo assistente. O senhor está se aposentando e, afinal de contas, ela precisa de alguém para substituí-lo. Porém, talvez possa me explicar por que a Srta. Arkendale precisa de um guarda-costas?

- Como diabos vou saber? - Mareie jogou a caneta para o lado. - A Srta. Arkendale é uma mulher extremamente original. Fui seu assistente desde a morte do padrasto dela, Lorde Winterbourne. Posso garantir que foram os cinco anos mais longos da minha vida.

Baxter olhou para ele, intrigado. - Se não gostava do seu trabalho, por que continuou senhor? Mareie suspirou. - Ela paga extraordinariamente bem. - Compreendo. - Mas devo confessar que sempre que eu recebia uma carta de instruções da

Srta. Arkendale, eu tremia. Nunca podia saber qual o pedido extravagante que ia ser feito. E isso foi antes de ela achar que precisava acrescentar a missão de guarda-costas aos meus deveres.

- Que tipo de exigências ela faz normalmente? Mareie gemeu. - Ela me mandava investigar as pessoas mais estranhas. Viajei para o norte para

conseguir informação sobre certo cavalheiro. Entrevistei os gerentes dos piores antros de jogo e dos mais horríveis bordéis a serviço dela. Investiguei a situação financeira de um grande número de homens que ficariam chocados se soubessem do interesse da Srta. Arkendale por seus negócios.

- Sem dúvida é estranho. - E completamente indigno de uma dama. Eu juro senhor, se ela não pagasse tão

regiamente, eu teria desistido depois do primeiro mês. Mas pelo menos não tive de agir como guarda-costas. Sou grato por isso.

- Não tem idéia de por que ela acha que está em perigo? - Nenhuma. - A cadeira rangeu quando Mareie recostou-se nela. - A Srta.

Arkendale não se dignou a me confiar suas razões. Na verdade, muita coisa ela não se dignou a me confiar. Tenho uma idéia muito vaga a respeito da sua fonte de renda,

por exemplo. Baxter tinha muita prática em controlar seus sentimentos. Um bastardo, mesmo

sendo produto de um passo em falso de um conde muito rico, aprende essa arte muito cedo. Um talento que foi de grande utilidade naquela ocasião. Conseguiu demonstrar apenas um interesse casual na última observação do Sr. Mareie.

- Eu pensava que a mãe da Srta. Arkendale, Lady Winterbourne, tinha uma renda substancial do primeiro casamento - Baxter disse, cautelosamente - e que a Srta. Arkendale e a irmã eram as únicas herdeiras.

Mareie ergueu as sobrancelhas. - É nisso que a Srta. Charlotte quer que todos acreditem. Mas posso garantir que

Winterbourne dissipou quase toda a herança antes de ter o bom gosto de ser morto por um assaltante, há cinco anos.

Baxter tirou os óculos e começou a limpar as lentes com o lenço. - Qual então o senhor suspeita que seja a verdadeira fonte de renda da Srta.

Arkendale? Mareie examinou as unhas. - Vou ser franco, senhor. Embora eu tenha auxiliado a administrar e investir sua

renda durante cinco anos, até hoje não tenho noção de onde vem o dinheiro. Meu conselho é que se conseguir o lugar deve seguir meu exemplo. Às vezes é melhor não saber todos os fatos.

Baxter pôs os óculos outra vez, lentamente. - Fascinante. Talvez algum parente distante tenha deixado alguma herança para

substituir o que Winterbourne gastou. - Não creio que seja esse o caso - Mareie disse, lentamente. - Alguns anos atrás,

eu cedi à curiosidade e fiz uma investigação muito discreta. Nunca existiu nenhum parente rico. Temo que a origem do seu dinheiro seja simplesmente mais um mistério peculiar que envolve a Srta. Arkendale.

Não era mistério nenhum se Rosalind estivesse certa nas suas conclusões, Baxter pensou. A moça era uma chantagista.

O som de batidas ritmadas o trouxe de volta ao presente. Olhou para Charlotte,

que estava parada, tamborilando com os dedos na moldura de mármore da lareira. - Não compreendo como Mareie achou que o senhor está qualificado para esse

trabalho - ela disse. Baxter estava farto de discutir sempre o mesmo ponto. - Acontece que não há muitos homens capazes de preencher seus requisitos,

Srta. Arkendale. Charlotte ficou furiosa. - Mas certamente o Sr. Mareie pode encontrar um cavalheiro mais qualificado do

que o senhor. - Por acaso se esqueceu? Mareie está a caminho de Devon. Será que podia me

dizer exatamente por que me acha tão pouco qualificado? - Além de desconhecer como se usa uma pistola? - ela perguntou, com voz

excessivamente doce. - Sim, outro motivo. - O senhor me obriga a ser rude. O problema é a sua aparência. - Que diabo há de errado com a minha aparência? Ninguém pode ser mais

insignificante do que eu. Charlotte olhou para ele zangada. - Não me venha com essa história. O senhor certamente não é nenhum bolo de

batata. Na verdade, é exatamente o contrário. Baxter olhou espantado para ela.

- Como disse? - Deve saber muito bem, senhor, que seus óculos são um disfarce ridículo. - Disfarce? - Baxter se perguntou se estaria no endereço errado e com a

Charlotte Arkendale errada. Talvez na cidade errada. - Com todos os diabos, o que acha que estou escondendo?

- Certamente não acredita mesmo que esses óculos disfarçam sua natureza verdadeira?

- Minha natureza verdadeira? - Baxter perdeu a paciência. - Com todos os demônios, o que eu sou se não inofensivo e desinteressante?

Ela abriu as mãos. - O senhor parece um homem capaz de fortes paixões, que domina seu

temperamento com uma capacidade de autocontrole mais forte ainda. - Perdão, o que foi que disse? Charlotte entrecerrou os olhos numa atitude decidida. - Um homem desse tipo não pode passar despercebido. Certamente vai chamar

atenção quando tiver de tratar dos meus negócios. Não posso admitir isso no meu assistente. Preciso de alguém capaz de desaparecer numa multidão. Um rosto do qual ninguém pode lembrar claramente. Não compreende senhor? O senhor me parece bastante... bem... para ser franca, bastante perigoso.

Baxter não sabia o que dizer. Charlotte cruzou as mãos nas costas e recomeçou a andar pela sala. - É evidente que jamais poderá passar por um assistente tedioso e comum.

Sendo assim, deve compreender que não corresponde às minhas exigências. Baxter percebeu que estava com a boca aberta. Fechou-a rapidamente. Já o

haviam chamado de muitas coisas. Bastardo, mal-educado e sem graça eram os epítetos mais comuns. Mas ninguém jamais o chamou de homem de grandes paixões. Ninguém jamais disse que parecia perigoso.

Ele era um homem de ciência. Orgulhava-se da sua abordagem fria e sem emoção aos problemas, pessoas e situações. Era uma qualidade que ele havia aperfeiçoado ao máximo há muitos anos, quando descobriu que, como filho bastardo do conde de Esherton e da famosa Emma, Lady Sultenham, seria para sempre excluído dos seus direitos hereditários.

Foi objeto de especulação e maledicência desde o dia em que nasceu. Aprendeu muito cedo a procurar refúgio nos livros e na ciência.

Embora algumas mulheres inicialmente considerassem uma aventura excitante ter um caso com o filho bastardo de um conde, especialmente quando sabiam que era um bastardo muito rico, o entusiasmo não durava muito. As chamas fracas geradas no curso de seus infreqüentes relacionamentos ardiam por pouco tempo antes de apagar.

Esses casos se tornaram mais curtos ainda desde a sua volta da Itália, há três anos. As queimaduras de ácido nas costas e nos ombros tinham cicatrizado, mas ele ficou marcado pelo resto da vida.

As mulheres reagiam com choque e repulsa as cicatrizes. Baxter não as culpava. Ele nunca foi bonito e o ácido não contribuiu para melhorar sua aparência. Felizmente, o rosto foi poupado. Porém, ele estava farto da inconveniência de se certificar de que as velas estivessem apagadas antes de tirar a roupa e ir para a cama com uma mulher.

Na última vez, uns seis meses atrás, ele quase arrebentou a cabeça na coluna da cama quando tropeçou nas botas, no escuro total do quarto de uma viúva. O incidente estragou definitivamente o resto da noite.

Na maioria das vezes ele procurava satisfação e prazer no seu laboratório. Ali, no meio dos seus béqueres, frascos, retortas e tubos de ensaio, podia evitar as conversas vazias e os divertimentos frívolos do mundo da alta sociedade. Um mundo que nunca lhe deu prazer. Um mundo que não o compreendia. Um mundo que ele achava

extremamente superficial e insípido. Um mundo no qual jamais se sentiu à vontade. Baxter procurou se controlar e pensar com rapidez numa saída. Charlotte o havia

eliminado definitivamente como um possível candidato ao emprego. Precisava encontrar uma nova forma de convencê-la do contrário.

- Srta. Arkendale, aparentemente há uma discrepância entre sua opinião sobre minha natureza e a opinião de praticamente todos que me conhecem. Posso sugerir a solução do problema por meio de uma experiência?

Ela ficou imóvel. - Que tipo de experiência? - Recomendo que chame todas as pessoas da casa e peça a opinião delas a meu

respeito. Se o consenso for de que eu posso tratar dos seus negócios sem ser notado, a senhorita me aceita. Se concordarem com sua opinião, vou embora procurar outra coisa.

Ela hesitou evidentemente em dúvida. Então, inclinou a cabeça, com um gesto decidido.

- Muito bem, senhor. Isso me parece lógico. Faremos a experiência imediatamente. Vou chamar minha irmã e a governanta. Ambas são extremamente observadoras.

Charlotte segurou a tira de veludo ao lado da lareira e puxou com força. - A senhorita vai aceitar o resultado do teste? - ele perguntou para se certificar. - Tem a minha palavra, senhor. - Ela sorriu com mal disfarçado triunfo. -

Resolveremos o assunto imediatamente. Passos soaram no corredor. Baxter ajeitou os óculos e recostou-se na cadeira

para esperar o resultado da experiência. Estava certo do resultado. Conhecia melhor do que ninguém os próprios pontos

fortes. Sabia como parecer inofensivo e desinteressante como um bolo de batata. Vinte minutos depois, Baxter desceu os degraus da casa das Arkendale

serenamente exultante. Notou que a brisa de março, uma hora atrás gelada, estava agora fresca e revigorante.

Não havia nada melhor do que conduzir uma experiência científica para resolver as coisas, ele pensou, chamando um coche de aluguel. Não foi fácil, mas finalmente conseguiu o emprego. Como havia previsto Charlotte Arkendale era a única pessoa na casa, na verdade a única pessoa em toda Londres capaz de notar sua presença numa multidão.

Não tinha certeza do que aquela idéia peculiar a respeito dele podia dizer de Charlotte a não ser que confirmava a opinião de John Mareie. Charlotte era uma mulher singular.

Não o que se podia esperar de uma chantagista e assassina, Baxter pensou.

Capítulo II - Não sei por que está tão preocupada, Charlotte. - Ariel parou para examinar a

bandeja com os ovos mexidos, no aparador. - O Sr. St. Ives parece ser o que você queria. Um assistente que não chamará atenção de ninguém quando estiver fazendo seu trabalho. Parece também em ótimas condições físicas. Não tão alto quanto podíamos desejar, mas sólido e com ombros fortes. Acho que será um ótimo guarda-costas, se for preciso.

- Eu o achei suficientemente alto. - Charlotte imaginou o que queria dizer aquele impulso para defender a estatura de Baxter. Por que se importar com o fato de a irmã achar que ele não era perfeito. - Tive de erguer os olhos para olhar para ele.

Ariel sorriu. - Isso é porque você é um pouco baixa. Do modo mais atraente, é claro. -

Charlotte fez uma careta. - É claro. - Na verdade, o Sr. St. Ives não é nem três centímetros mais alto do que eu. - Você é alta para uma mulher. - E graciosa, esbelta e muito, muito bonita,

Charlotte pensou, com orgulho de irmã mais velha. Talvez fosse mais orgulho materno. Afinal, lembrou, era responsável por Ariel desde a morte da mãe.

E Ariel era maravilhosa, Charlotte pensou. Uma bela jovem dama de dezenove anos. Cabelos claros, olhos azuis e abençoada com traços clássicos e, sim, uma estatura perfeita. Era a imagem viva da mãe.

Foram muitas as frustrações e as dúvidas de Charlotte nos últimos anos. Sabia que jamais poderia substituir o que haviam perdido. Ariel tinha onze anos quando o pai, alto, belo e carinhoso morreu. Tinha quase treze quando perderam a mãe, bela e cheia de vida. Depois, Winterbourne destruiu a herança que teria permitido a Ariel a liberdade de escolha em muitas coisas, incluindo casamento.

Uma das grandes frustrações de Charlotte era não ter tido meios para apresentar a irmã à sociedade, segundo as regras da etiqueta. Com sua beleza, porte e instrução recebidos primeiro da mãe, bela e nobre, e depois de Charlotte, Ariel teria sido um grande sucesso. Além disso, ela pensou, Ariel teria adorado a ópera, o teatro, os bailes e as reuniões festivas. Com o gosto pelas artes e pela vida social, herdado dos pais, teria oportunidade de conhecer pessoas da sua classe. Devia ter tido a oportunidade de dançar a valsa com um belo jovem.

Tantas coisas às quais Ariel tinha direito, perdidas. Charlotte voltou a pensar no problema atual, fazendo o que sempre fazia quando

as lembranças do passado a entristeciam. Concentrou-se no futuro. E, no momento, o futuro incluía Baxter St. Ives.

- Eu gostaria de estar tão certa quanto você a respeito do Sr. St. Ives. - Charlotte apoiou o cotovelo na mesa da sala do café e encostou o queixo na palma da mão.

- Ele é o assistente perfeito - Ariel disse com convicção. Charlotte suspirou. Estava claro agora que ela era a única na casa a perceber

que havia muito mais em Baxter St. Ives do que ele queria demonstrar. No dia anterior, Ariel e a Sra. Witty, a governanta, tinham se declarado perfeitamente satisfeitas com a idéia de ele substituir o Sr. Mareie. Estavam tão convencidas que Charlotte quase começava a duvidar da sua desconfiança instintiva.

Quase, mas não de todo. Tinha grande experiência na avaliação de cavalheiros, afinal a sua intuição nesse assunto raramente falhava. Não podia ignorá-la agora, sem mais nem menos.

Mas intrigava-a a incapacidade das duas para ver a verdade que se escondia atrás das lentes dos óculos de Baxter.

Ele se dizia interessado em química, mas na opinião de Charlotte, não era um moderno homem de ciência. Baxter tinha olhos de alquimista, um daqueles lendários cientistas da antigüidade, obcecados pela descoberta dos segredos místicos da Pedra Filosofal. Charlotte podia vê-lo inclinado sobre um crisol ardente, tentando descobrir a fórmula para transformar o chumbo em ouro.

Inteligência intensa, determinação inabalável e uma vontade de aço ardiam nas profundezas ambarinas dos seus olhos. As mesmas qualidades estavam cinzeladas no rosto forte. Charlotte havia pressentido algo mais também, algo que não sabia definir. Uma sugestão de melancolia, talvez. O que, pensando bem, era de se esperar.

Havia uma longa tradição artística no modo de representar essa emoção soturna e tristonha com os símbolos da alquimia. Todos que se dedicavam a procura interminável dos segredos misteriosos da natureza eram sem dúvida condenados a episódios de desespero e desapontamento.

Baxter St. Ives era sem dúvida o homem mais interessante que já tinha conhecido, Charlotte admitiu. Porém, as mesmas qualidades que o faziam interessante podiam também fazer dele um homem perigoso. Em última análise, o faziam menos maleável.

Charlotte precisava de um assistente que acatasse as instruções sem discutir, que não exigisse explicações ou justificativas. Não achava que Baxter era do tipo que obedecia a ordens facilmente. Sem dúvida teria dificuldades com ele.

- Talvez agora que o Sr. St. Ives conseguiu o emprego, ele possa pagar um alfaiate melhor. - Ariel disse, rindo, levando o prato para a mesa. - Seu casaco não caía nada bem no corpo e o colete era muito feio. Notou que ele estava usando calções justos, em vez de calças pregueadas como manda a moda?

- Eu notei. Só uma cega não teria notado o modo como os calções justos delineavam as

coxas musculosas, ela pensou. Lembrou de Baxter sentado na sua frente com o casaco amassado, a camisa de linho sem adornos, os calções conservadores e as botas sem brilho. Charlotte franziu a teta.

- Sua roupa era da melhor qualidade. - Sim, mas tristemente fora de moda, mesmo para um cavalheiro na sua posição.

- Ariel comeu um pedaço de salsicha. - E o laço da gravata era comum demais. Temo que o nosso Sr. St. Ives não tenha muita noção de estilo.

- Não se procura estilo num assistente. - Exatamente. - Ariel piscou um olho. - O que prova que ele é o que parece, um

cavalheiro que precisa muito de um emprego. Provavelmente um segundo filho de fidalgos rurais. Você sabe como é isso.

Charlotte segurou a xícara de café. - Acho que tem razão. Era sabido que muitos segundos e terceiros filhos de fidalgos da zona rural, não

considerados herdeiros das terras da família, eram obrigados a ganhar a vida como empregados.

- Anime-se. - Ariel disse. - Tenho certeza de que o sólido velho Mareie não teria recomendado St. Ives se ele não fosse devidamente qualificado.

Charlotte observou a irmã comendo com gosto os ovos com salsichas. Seu apetite era normalmente bom de manhã, mas nesse dia ela mal podia olhar para a xícara de café na sua frente.

- Eu não sei Ariel. Simplesmente não sei. - Ora, Charlotte, esse ar preocupado não combina com você. Você geralmente é

muito mais animada de manhã. - Não dormi muito bem essa noite. Isso não dizia nem a metade, Charlotte pensou. Na verdade, ela mal dormiu.

Ficou virando na cama durante horas, dominada por uma sensação estranha. Ariel tinha razão, seu estado de espírito estava péssimo nessa manhã.

- Você disse ao Sr. St. Ives exatamente por que precisa de um guarda-costas? - Ariel perguntou.

- Ainda não. Eu o mandei voltar esta tarde para explicar a natureza das suas obrigações.

Ariel arregalou os olhos. - Está dizendo que ele não tem idéia do que terá de fazer? - Não, não tem. A verdade era que Charlotte precisava de tempo para pensar na situação. Tempo

para ter certeza de que contratar os serviços do enigmático St. Ives era a coisa certa. Havia muita coisa em jogo. Mas quanto mais ela pensava no assunto, menos alternativas encontrava.

Charlotte estava realmente desesperada. Ariel pôs o garfo no prato e olhou para a irmã. - Talvez ele não aceite o emprego quando souber dos detalhes. - Charlotte

pensou por um momento. Não sabia se essa perspectiva era boa ou ruim. - As coisas talvez fiquem muito mais simples se o Sr. St. Ives desistir do emprego

quando souber a verdadeira natureza das suas responsabilidades. A Sra. Witty apareceu na porta da sala com um bule de café na mão grande e

forte. - Acho que será melhor para a senhora se ele não desistir, quando souber o que

quer que ele faça, Srta. Charlotte. Não existem muitos cavalheiros em Londres dispostos a ajudar alguém a investigar um assassinato.

- Eu sei disso - Charlotte disse, irritada. - Eu concordei em empregar St. Ives, não concordei?

- Sim, e graças ao bom Deus. Não me importo de dizer que não gosto muito desta situação. Investigar um assassinato não é o que está acostumada a fazer.

- Sei disso também. A Sra. Witty serviu o café. A governanta era uma mulher imponente, de

proporções monumentais como as de uma deusa antiga. Nos três anos em que estava com as Arkendale, Charlotte muitas vezes teve motivo para agradecer a solidez e a força dos nervos da Sra. Witty. Não muitas governantas teriam tolerado uma patroa com a profissão de Charlotte, muito menos estariam dispostas a prestar ajuda valiosa quando era necessário.

A verdade era que não havia muitas governantas tão bem-vestidas quanto a Sra. Witty, Charlotte pensou. Quando se exige serviços especiais da criadagem, é natural que se pague bem.

- Ela tem razão. - Ariel ficou séria. - O que você pretende fazer pode ser perigoso, Charlotte.

- Não tenho escolha - Charlotte disse em voz baixa. - Preciso descobrir quem matou Drusilla Heskett.

Baxter estava no laboratório abrindo as caixas de um novo equipamento

composto de peças de vidro, feito de acordo com suas especificações, quando bateram na porta.

- O que é Lambert? - Tirou uma retorta nova e brilhante da caixa e a ergueu para a luz. - Estou ocupado no momento.

A porta abriu. - Lady Trengloss, senhor - Lambert anunciou com sua voz sepulcral.

Relutantemente Baxter pôs a retorta na mesa e olhou para Lambert. A expressão de sofrimento do mordomo não era novidade. Lambert tinha sessenta e seis anos, muito

mais do que a idade com que os homens na sua profissão costumavam se aposentar com suas pensões.

Os anos tinham cobrado seu preço. Lambert sofria de dores na juntas. Suas mãos eram nodosas e inchadas e seus movimentos, ultimamente, extremamente lentos.

- Suponho que minha tia quer um relatório completo da minha nova carreira como assistente - Baxter disse, resignando-se à entrevista inevitável.

- Lady Trengloss parece um tanto agitada, senhor. - Peça a ela para vir até aqui, Lambert. - Sim, senhor. - Lambert começou a se voltar para a porta e parou. - Há mais

uma coisa que devo mencionar senhor. A nova governanta foi embora há uma hora. - Com todos os demônios. - Baxter franziu a testa para um pequeno defeito no

frasco de vidro. - Não outra. Com essa são três nos últimos cinco meses. - Sim, senhor. - Qual foi a queixa dela? Há semanas não há nenhuma explosão digna de nota

no laboratório e tenho tido cuidado para não deixar que os odores venenosos cheguem até o corredor.

- Aparentemente a Sra. Hardy concluiu que o senhor estava tentando envenená-la, senhor - Lambert disse.

- Envenená-la? - Baxter estava ofendido. - Por que, em nome de Deus, eu ia pensar numa coisa dessas? Já é bastante difícil manter governantas sem pensar em envenená-las. A última coisa que eu faria seria envenenar uma delas.

Lambert tossiu discretamente. - Alguma coisa sobre garrafas de produtos químicos que ela encontrou na

cozinha a noite passada, eu acredito. - Com todos os demônios, eu as deixei lá porque estava preparando uma

experiência que exigia uma grande força de sucção. Você sabe que nesses casos eu sempre uso a pia da cozinha.

- Aparentemente as garrafas a perturbaram, senhor. - Maldição. Muito bem, não se pode fazer nada. Vá até a agência e procure outra

governanta. Só Deus sabe quanto teremos de pagar desta vez. Cada uma parece mais cara do que a outra.

- Sim, senhor. - Lambert recuou alguns passos arrastados e fez uma careta de dor, levando a mão às costas.

Baxter ficou preocupado. - O reumatismo está incomodando muito hoje? - Sim, senhor. - Eu sinto muito. Alguma melhora com o novo tratamento? - Acredito que sinto alguma melhora depois de cada sessão com o Dr. Flatt, mas

infelizmente o alívio é temporário. O doutor garante que continuando o tratamento as dores vão diminuir sensivelmente.

- Humm - Baxter não perguntou mais nada. Não tinha nenhuma fé no tratamento do Dr. Flatt, que consistia no uso de

magnetismo animal ou mesmerismo, como era geralmente chamado. Era tudo charlatanismo, na opinião de cientistas como Baxter. Autoridades eminentes, como Benjamin Franklin da América e o francês Lavoisier haviam denunciado o trabalho de Mesmer alguns anos antes. Entretanto a opinião deles não impediu o crescimento da onda de praticantes do novo meio de cura que afirmavam ter conseguido resultados espantosos usando variações do método do Dr. Mesmer.

- Lady Trengloss, senhor - Lambert lembrou o patrão. - Sim, sim, faça entrar. É melhor acabar com isso o mais depressa possível. -

Baxter olhou para o relógio de carrilhão. - Tenho hora marcada com minha nova

patroa dentro de uma hora. - Patroa? É assim que você a chama? - Rosalind, Lady Trengloss, passou por

Lambert e deslizou elegantemente para dentro do laboratório de Baxter. - Que descrição estranha da criatura.

- Mas infelizmente, exata. - Baxter inclinou a cabeça bruscamente para a tia. - Graças à senhora, madame, acho que consegui um emprego seguro finalmente, quer eu goste ou não.

- Não me culpe por seu plano. - Rosalind tirou o chapéu preto e branco de seda e sentou-se numa poltrona, com movimentos graciosos e teatrais. O belo cabelo negro e prateado estava elegantemente penteado para realçar os traços nobres do rosto. Os olhos escuros brilhavam com determinação.

Baxter olhou para ela com um misto de afeição relutante e impaciência. Rosalind era a irmã mais nova de sua falecida mãe e ele a conhecia desde que nasceu. Ela estava com sessenta anos, mas conservava a elegância e o estilo arrojado com que as duas irmãs foram dotadas desde o berço.

Emma e Rosalind Clermont praticamente haviam tomado de assalto a sociedade de Londres, quando eram jovens. Ambas fizeram bons casamentos. Ambas ficaram viúvas aos vinte e poucos anos. Nenhuma das duas voltou a se casar. Ao contrário, aproveitaram ao máximo o poder enorme concedido às viúvas ricas, bonitas e nobres. Sua posição e encanto permitiram que sobrevivessem a escândalos e maledicências que teriam arruinado outras mulheres.

Baxter sorriu para a tia quando Lambert se retirou silenciosamente do laboratório.

- Deve admitir que sou singularmente qualificado para ser assistente. - Rosalind inclinou a cabeça e pensou por um momento.

- De um modo um tanto estranho, acho que pode dizer que sim. Você tem experiência no manejo das finanças, não tem?

- Certamente. - Diga-me o que descobriu ontem quando esteve com Charlotte Arkendale. - Na verdade, muito pouco. Esta tarde vou saber os detalhes das minhas

obrigações. Em menos de uma hora, para ser exato. Baxter sentou-se à escrivaninha que usava para registrar suas anotações. Sentiu

que tinha sentado em cima de alguma coisa. Levantou-se e olhou. Era uma folha de papel com observações sobre uma experiência recente.

- Maldição. - Pegou a folha grande e branca e a alisou cuidadosamente. Rosalind olhou sem interesse para as anotações e depois atentamente para Baxter.

- Não me deixe nervosa. Quais foram suas primeiras impressões da Srta. Arkendale?

- Eu a achei... - Baxter hesitou, procurando as palavras certas. - Formidável. - Diabolicamente esperta, diria isso? - Possivelmente. - Uma vilã mentirosa de coração frio? Baxter hesitou. - Madame, quero lembrar que a senhora não tem nenhuma prova das suas

acusações. - Bobagem. Você logo encontrará as provas de que precisamos. - Não tenha tanta certeza. Posso imaginar a Srta. Arkendale em vários papéis. -

Incluindo o de amante. As imagens surgiram do nada, ardentes e intensas. Seu corpo reagiu como se tivesse sido atirado numa cama recentemente usada, que cheirava a paixão e desejo. Talvez tivesse passado muito tempo desde seu ultimo caso amoroso, ele pensou desanimado. - Mas é difícil vê-la como chantagista e assassina.

Rosalind olhou zangada para ele.

- Está começando a duvidar do esquema que nós planejamos? - Nós? Pelo que vejo eu estou sozinho na empreitada. - Não me venha com rodeios, sabe muito bem do que estou falando. - Desde o começo eu disse que tinha minhas dúvidas - Baxter disse. - Dúvidas

sérias. Para começar, a senhora não tem prova alguma de que Charlotte Arkendale estivesse chantageando Drusilla Heskett, muito menos de que ela a matou.

- Drusilla me confidenciou pessoalmente certa noite, depois de tomar uma garrafa inteira de vinho-do-porto, que havia pago uma quantia considerável à Srta. Arkendale. Quando perguntei para quê, ela mudou de assunto. Não pensei mais nisso até ela ser assassinada. Então me lembrei do mistério que ela fez do caso. É coincidência demais, Baxter.

- A Sra. Heskett era muito amiga da senhora. Certamente ela teria contado se estivesse sendo chantageada.

- Não necessariamente. A chantagem, por sua própria natureza, sempre se refere a algum segredo extremamente íntimo e pessoal. Ameaça revelar alguma coisa que a vítima não quer que ninguém, especialmente seus amigos mais íntimos, venha, a saber.

- Se a Sra. Heskett estava disposta a pagar, por que o chantagista a assassinou? Não acha que vai contra o objetivo da chantagem?

- Quem sabe o que um chantagista pensa? - Rosalind levantou da cadeira com graça regia e caminhou para a porta. - Talvez Drusilla tenha resolvido não pagar mais. Espero que você descubra a verdade sobre sua morte, Baxter. Assumi a responsabilidade de fazer com que seja feita justiça. Mantenha-me informada.

- Hum, hum. - A propósito... - Rosalind parou na porta e abaixou a voz. - Eu acho que você vai

ter de tratar da aposentadoria do pobre Lambert. Ultimamente ele leva séculos para atender a porta. Esperei no lado de fora quase dez minutos.

- Considero o fato de ele demorar para abrir a porta uma das suas melhores qualidades. A maioria das pessoas desiste e vai embora sem saber que estou em casa. Poupa-me muitos problemas.

Ele esperou que Rosalind saísse do laboratório. Então foi até a janela e examinou os três vasos no peitoril.

Faziam parte de uma experiência de química agrícola. Cada um continha sementes de ervilhas-de-cheiro plantadas em solo árido adubado com a mais recente combinação de minerais e substâncias químicas.

Por enquanto, nenhum sinal de vida. O tique-taque do relógio da sala de trabalho parecia estranhamente alto.

Charlotte olhou para Baxter, sentado no outro lado da mesa com um ar de competência profissional, pelo menos era assim que lhe parecia. Passara o dia todo temendo aquele encontro.

Temendo e ao mesmo tempo antecipando, com uma sensação inexplicável que só podia ser definida como excitação mórbida.

- Antes de dar as instruções a respeito das suas tarefas, Sr. St. Ives, devo dizer uma coisa que jamais achei necessário revelar ao Sr. Mareie.

Baxter olhou para ela com atenta e cortês curiosidade. - Certamente. - Devo dizer ao senhor exatamente como ganho a vida. Baxter tirou os óculos e começou a limpar as lentes com um lenço branco e

grande. - Isso sem dúvida deve ser do interesse do seu assistente, Srta. Arkendale. - Sim, suponho que sim. Mas é um pouco difícil explicar.

- Compreendo. - Algumas pessoas diriam que minha profissão é quase escandalosa, mas para

mim é mais uma vocação. - Assim como entrar para um convento, a senhorita diria? - Baxter segurou os

óculos contra a luz, aparentemente para verificar se as lentes estavam limpas. - Sim - Charlotte se animou um pouco. - Uma excelente analogia, Sr. St. Ives. Eu

administro um serviço muito exclusivo, unicamente para mulheres que ganharam algum dinheiro. Uma herança talvez ou uma pensão muito generosa de algum patrão agradecido.

- Compreendo. - Senhoras respeitáveis de certa idade que ficam sozinhas no mundo, com uma

boa renda e estão considerando a possibilidade de um casamento. Baxter pôs os óculos com cuidadosa precisão. Seus olhos de alquimista

brilharam. - E que tipo de serviço a senhorita presta a essas senhoras? - Conduzo investigações para elas. Muito discretamente. - Investigações sobre o quê? Ela tossiu discretamente. - Sobre o passado dos cavalheiros que desejam casar com elas. Baxter olhou para ela por um longo momento. - Seu passado? - Sim, é a minha tarefa, minha vocação, ajudar essas senhoras a ter certeza de

que os homens que expressam desejo de casar com elas não são caçadores de fortuna, oportunistas ou libertinos. Eu as ajudo a evitar os perigos e armadilhas que geralmente as ameaçam.

Durante o silêncio que se seguiu, Baxter olhou para ela atônito. - Bom Deus - ele disse, finalmente. Charlotte ficou irritada. Que tola esperança pensar que ele daria valor à sua

profissão singular. - Eu presto um serviço valioso, senhor. - Com o que pensa que está brincando? Certamente não se imagina uma versão

feminina de um investigador policial? - De modo algum. Faço o tipo de investigação extremamente delicada que

nenhum policial será capaz de fazer. E orgulho-me em dizer que sou pessoalmente responsável por salvar várias senhoras de ligações desastrosas com homens que as teriam arruinado.

- Com todos os demônios. Começo a compreender por que precisa de um guarda-costas, Srta. Arkendale. Deve ter feito um bom número de inimigos durante esse tempo.

- Tolice. Minhas investigações são estritamente confidenciais. Aconselho minhas clientes a comentar meus serviços apenas com outras senhoras que possam precisar deles.

- Isso é espantoso, Srta. Arkendale. Como diabo faz esse trabalho? - Além de mandar meu assistente coletar certo tipo de informação, tenho

também a ajuda de minha irmã e de minha governanta. Baxter olhou para ela perplexo. - Sua governanta? - A Sra. Witty é de grande ajuda quando se trata de investigações entre criados e

outros assalariados. Em geral eles sabem mais sobre seus patrões do que qualquer outra pessoa. Tudo tem funcionado muito bem até agora. - Charlotte levantou da cadeira e foi até a janela. Olhou para o pequeno jardim. - Porém, aconteceu uma coisa terrível.

- Alguma coisa que a faz achar que precisa de um guarda-costas além de um assistente? - Baxter perguntou sem rodeios.

- Sim. Até recentemente, minhas clientes sempre foram mulheres de uma certa classe. Respeitáveis, mas não ricas. Governantas, solteironas e viúvas de boas famílias. Porém, dois meses atrás fui procurada por uma cliente que pertencia aos altos círculos da sociedade. Fiquei entusiasmada porque isso significava que poderia estender meus serviços a uma clientela mais abastada.

- Com todos os demônios - Baxter disse, em voz baixa. Charlotte fingiu não ter ouvido. Não podia mais voltar atrás. Já tinha falado

muito. Devia continuar e esperar o melhor. - O nome dela era Sra. Drusilla Heskett. Conduzi as investigações que ela pediu e

entreguei meu relatório. Ela pagou por meus serviços e pensei que o caso estivesse terminado. Esperei que me recomendasse a algumas de suas amigas.

- O que aconteceu? - Na semana passada ela foi assassinada no próprio quarto. Morta a tiros por um

assaltante, as autoridades disseram. Todos os criados haviam sido dispensados naquela noite. Tenho motivos para acreditar que a pessoa que a matou é um dos homens que investiguei a pedido dela.

- Meu Deus. Charlotte olhou para ele. - Preciso saber a verdade, senhor. - Por quê? O que a senhorita tem a ver com isso? - Não compreende? Se o homem que a matou era um dos que foram

investigados por mim e talvez recomendado como honesto e sincero, então, de certo modo, sou responsável pelo crime. Preciso saber a verdade.

- Por que pensa que o assassino foi um dos pretendentes da Sra. Heskett? - Baxter perguntou, rapidamente.

- Recebi um bilhete da Sra. Heskett no dia da sua morte. Ela dizia que quase fora atropelada duas vezes nos últimos dias, uma vez na rua e outra num parque. Nos dois casos o veículo era um faéton negro. Ela receava que não fossem simples acidentes, mas tentativas contra sua vida.

- Com todos os demônios. - Ela não viu o rosto do condutor, mas chegou à conclusão lógica de que um dos

seus pretendentes rejeitados, despeitado com a recusa, estava tentando matá-la. Na manhã seguinte, recebi a notícia de sua morte. Dificilmente uma coincidência, senhor. Preciso descobrir a verdade.

- E espera que eu a ajude nessa louca missão? - Sim. Certamente é o que espero. - Ela começava a se irritar outra vez. - O

senhor concordou em aceitar o emprego e estou pagando um excelente salário, senhor. Espero que cumpra seus deveres como assistente e guarda-costas. Para mim tudo parece muito simples e claro.

- Tão simples e claro quanto à teoria flogística da combustão - Baxter disse. - O que disse? - Nada, Srta. Arkendale. Apenas uma referência àquela antiga tolice inventada

pelos alemães sobre a substância flogisto. A teoria, segundo eles, explica a combustão de materiais. Relaciona-se com a química. Duvido que a senhorita a conheça.

Ela ergueu as sobrancelhas. - Ao contrário, Sr. St. Ives estou perfeitamente a par do fato de que há alguns

anos Lavoisier provou, com várias experiências inteligentes, o absurdo da teoria do flogisto.

Baxter levou alguns momentos para se refazer do espanto. - Interessa-se por química, Srta. Arkendale?

- Não - ela fez uma careta. - Mas era obrigada a ler Conversações sobre Química, de Basil Valentine, na escola, exatamente como quase todos os jovens de Londres. Uma parte da informação ficou gravada na minha mente.

- Compreendo. - O olhar de Baxter era inescrutável. - Suponho que achou o livro de Valentine extremamente maçante?

- A química não é uma das minhas matérias preferidas. - Sorriu como quem se desculpa. - Tenho outros interesses.

- Acredito plenamente. - Talvez seja melhor voltarmos ao assunto do assassinato da Sra. Heskett -

Charlotte disse séria. - Certamente. Diga-me, Srta. Arkendale, como pretende descobrir o assassino? - A Sra. Heskett rejeitou quatro homens no último mês. Um, o Sr. Charles Dill,

morreu de ataque cardíaco há duas semanas, portanto está excluído. Os outros três são Lorde Lennox, Lorde Randeleigh e Lorde Esly. Pretendo entrevistar os três. Porém, antes, devemos começar por um exame da cena do crime.

Baxter piscou os olhos sensatamente. - Examinar a cena do crime? - Pretendo revistar a casa de Drusilla Heskett à procura de pistas. - Pretende o quê? - Francamente, Sr. St. Ives tente prestar atenção. Não quer que eu repita tudo

que digo. Quero revistar a casa da Sra. Heskett. Já verifiquei que está vazia. O senhor me acompanhará para ajudar.

Baxter olhou para ela como se Charlotte fosse uma criatura de algum reino sobrenatural.

- Com todos os demônios. Ela possuía um razoável conhecimento de química e conhecia a teoria

desacreditada sobre o flogisto. Citava Lavoisier com a maior naturalidade. Havia muito livros excelentes na sua sala de trabalho, sobre diversos assuntos, que também devia ter lido. Mas o que tinha isso? O fato de ter cultura não provava que não era chantagista ou assassina.

Um grande número de vilões instruídos da classe alta era capaz de citar fatos científicos, ele lembrou. Uma boa instrução não indica necessariamente um coração honesto e uma alma pura. Morgan Judd, por exemplo, era um dos homens mais inteligentes e mais instruídos que Baxter conhecera.

Baxter examinou a rua envolta na névoa com uma sensação de mau presságio. A vizinhança era tranqüila e distinta. Eminentemente respeitável. Não havia grandes mansões, mas as casas sem dúvida pertenciam a pessoas com rendas confortáveis.

Ele ainda não acreditava que tivesse se deixado convencer a procurar pistas de um assassinato numa noite miserável como aquela.

De duas uma, Charlotte era muito sincera ou muito louca, ou então o estava usando para ajudá-la a se proteger, enquanto prosseguia com seus planos. Uma senhora envolvida com chantagem e assassinato certamente precisaria de um assistente-guarda-costas.

Baxter conteve um suspiro resignado. Realmente, ele não era feito para esse tipo de coisa. A vida era muito mais simples muito mais ordenada no seu laboratório.

- Tivemos sorte com a neblina esta noite, não acha Sr. St. Ives? - A voz dela estava abafada pelo capuz da capa e por um lenço grosso de lã. - Serve para esconder nossa presença nesta vizinhança. Mesmo que alguém nos veja, não poderá nos identificar.

Aquele otimismo o irritava. Olhou para ela, de pé ao seu lado, na frente da casa escura da Sra. Heskett. A capa a tornava anônima. Ele também estava bem protegido,

a gola do sobretudo levantada e a aba do chapéu abaixada garantiam a invisibilidade do rosto.

A luz fraca dos lampiões a gás, recentemente instalados naquela parte da cidade, não penetrava muito na névoa. Desde que continuassem longe do alcance da luz, estariam razoavelmente a salvo. Mesmo assim, Baxter achou prudente tentar mais uma vez desencorajar sua patroa daquela aventura arriscada.

- A senhorita devia pensar mais um pouco. Como eu já avisei, essa pequena aventura é bastante perigosa. Ainda é tempo de desistir. A carruagem que aluguei está à nossa espera aqui perto, no parque.

- Nem mais uma palavra, por favor, St. Ives - ela disse, secamente. - Está tentando me dissuadir deste projeto desde a primeira vez que falei nele. Começa a me aborrecer. Não o empreguei para ser a voz que anuncia a desgraça.

- Sinto-me obrigado a aconselhá-la. - Também não o empreguei para me dar conselhos, senhor. Não temos tempo

para mais uma das suas advertências ou predições sinistras. Chegou a hora de agir. - A senhorita manda Srta. Arkendale. Ela abriu o portão baixo de ferro ao lado da entrada principal e começou a descer

os degraus que levavam à cozinha. A entrada de serviço da casa ficava abaixo do nível da rua. Longas gavinhas de

névoa erguiam-se do buraco escuro no fim dos degraus. Envolta na capa, Charlotte desceu como um fantasma para o escuro infernal, antes que Baxter tivesse tempo de pensar em mais advertências ou argumentos.

Ele se moveu rapidamente atrás dela e a alcançou quando Charlotte parou na sombra, perto da porta da cozinha.

- Permita-me, Srta. Arkendale. - Muito bem, senhor, mas, por favor, não nos atrase mais. - Eu nem sonharia em fazer isso. Afaste-se um pouco. - Para quê, senhor? - Srta. Arkendale é minha vez de avisá-la para não nos atrasar com perguntas

tolas. Agora que estamos resolvidos a continuar com essa idiotice, a rapidez é essencial.

- É claro, Sr. St. Ives. - Os sapatos dela fizeram um ruído áspero na pedra quando ela recuou. - Por favor, continue.

Baxter não enxergava nada na escuridão abaixo da rua. Precisava de alguma luz, mas não queria usar a lanterna antes de estar dentro da casa.

Tirou do bolso do sobretudo uma das três pequenas ampolas de vidro que havia levado e a quebrou em dois pedaços. Uma luz intensa e forte brilhou rapidamente. Baxter a escondeu com o corpo. A luz revelou a porta da cozinha e a fechadura.

Charlotte, assustada, deixou escapar uma exclamação abafada. - O que, em nome de Deus, é isso, Sr. St. Ives? - Recentemente tenho devotado algum tempo à criação de um novo método de

produzir luz instantânea. - Baxter tirou do bolso um conjunto de agulhas de aço. - Estou tentando criar um que dure mais de alguns segundos.

- Compreendo. - A voz suave de Charlotte estava repleta de admiração. - Muito inteligente senhor. Onde conseguiu esses pequenos instrumentos?

- Nós, assistentes, devemos adquirir várias habilidades para manter nosso emprego. - Tinha aprendido a usar gazuas antes da aventura na Itália, sabendo que seria obrigado a abrir muitas portas trancadas no castelo de Morgan Judd.

A luz estava apagando. Baxter escolheu uma das agulhas e a inseriu na fechadura.

Fechou os olhos e girou a agulha gentilmente. A fechadura abriu com um leve estalo, no momento em que a luz criada pelo novo composto de fósforo chegava ao

fim. - Excelente trabalho, Sr. St. Ives. - Depende inteiramente do ponto de vista. - Baxter empurrou a porta e entrou

cautelosamente na cozinha. - O novo dono desta casa, por exemplo, pode não ficar tão agradavelmente impressionado. Na verdade, ele pode fazer uma séria objeção a este pequeno ato de arrombamento. Eu certamente faria se estivesse no lugar dele.

- Eu já disse que me informei. A casa está vazia e provavelmente ficará assim até a chegada do herdeiro da Sra. Heskett para o inventário. Ao que sei, é um parente distante que mora em algum lugar da Escócia e está bastante doente. Ninguém o espera tão cedo.

- E os criados? - Foram embora logo depois do crime. Não havia mais ninguém para pagar seus

ordenados. A casa é toda nossa. - Uma vez que está resolvida a ir até o fim em sua tarefa de procurar pistas,

acho melhor agirmos rapidamente. - Baxter fechou a porta da cozinha e acendeu o lampião. - Dei instruções ao cocheiro da carruagem para vir nos procurar, se não estivermos no parque dentro de meia hora.

- Meia hora? - A expressão desaprovadora de Charlotte era perfeitamente visível à luz do lampião. - Não sei se será suficiente para revistar toda a casa.

Baxter olhou rapidamente em volta, na cozinha vazia. - Quanto antes terminarmos, melhor. - Será que preciso lembrar senhor, que não está dirigindo este caso? É meu

empregado e eu dou as instruções. Baxter passou por ela para ir até o corredor. Abriu outra porta e viu a sala de

estar vazia que sem dúvida fazia parte das acomodações da governanta. - Acho melhor começarmos pelos quartos de dormir no andar superior e depois

vamos descendo. - Escute aqui, Sr. St. Ives... - Não perca tempo, Srta. Arkendale. - Baxter subiu a escada de dois em dois

degraus. - A primeira regra de invasão de residência é ser rápido e eficiente. Por isso, uma vez que eu estou com o lampião, proponho que trabalhemos juntos.

- Espere por mim. - Os passos de Charlotte soaram leves na escada. - Francamente, senhor, quando isto terminar, vamos ter uma conversa muito séria sobre a exata natureza das suas atribuições.

- Como quiser Srta. Arkendale. - Ele virou no canto do patamar e começou a subir o outro lance da escada. - Economizaríamos tempo se me dissesse exatamente o que estamos procurando.

- Eu gostaria de saber. - Ela estava um pouco ofegante, apressando-se para acompanhá-lo. - Espero que alguma coisa útil apareça.

- Era isso que eu temia. - Ele parou no topo da escada e olhou para o corredor escuro. - Os quartos, eu creio. Vamos começar da outra extremidade do corredor?

Charlotte parou ao lado dele e olhou para as sombras. - Parece lógico. - Se há uma coisa que eu sou, é lógico, Srta. Arkendale. - Eu também, Sr. St. Ives. - Ergueu o queixo e seguiu na frente, para a porta no

fim do corredor. Baxter entrou atrás dela no primeiro quarto e pôs o lampião numa mesa. Viu

Charlotte abrir e fechar rapidamente algumas gavetas, muito séria e atenta. Fosse o que fosse para ela não era uma brincadeira, ele pensou.

- Posso perguntar há quanto tempo vem exercendo essa sua estranha Profissão, Srta. Arkendale? - Baxter parou na frente de um guarda-roupa e abriu a porta.

- Desde um pouco depois do assassinato do meu padrasto, alguns anos atrás. -

Charlotte examinou o fundo da gaveta da penteadeira. - Minha irmã e eu ficamos com muito pouco para viver. Não existem muitas carreiras abertas para senhoras. Ou trabalhava como governanta, o que não daria para sustentar duas pessoas, ou inventava uma alternativa.

Baxter empurrou para o lado alguns vestidos para examinar o fundo do guarda-roupa.

- Onde encontrou inspiração para essa alternativa em particular? - Meu padrasto - Charlotte disse, friamente. - Lorde Winterbourne. Ele era um

oportunista e tirou vantagem de minha mãe quando ela ficou viúva. Ele a convenceu de que queria tomar conta dela e de nós duas, mas na verdade, tudo que queria era pôr as mãos no dinheiro.

- Compreendo. - Minha pobre mãe morreu poucos meses depois de casar com Winterbourne.

Acho que ela não chegou a perceber o quanto ele era horrível. Era, na verdade, uma criatura egoísta, cruel, sem sentimentos. Nem eu nem minha irmã choramos sua morte.

- Parece que estão muito melhor sem ele. - Baxter disse, examinando outra gaveta do guarda-roupa.

- Infinitamente melhor. - Charlotte ajoelhou ao lado da cama. - A sociedade está infestada desse tipo de mentirosos desprezíveis, Sr. St. Ives. E de um modo geral, as mulheres na situação de minha mãe são extremamente vulneráveis. Quase não têm meios para se certificar dos verdadeiros fatos a respeito do passado e da situação financeira de um pretendente.

- Então, a senhorita oferece a elas seus serviços. - Baxter foi até a janela e olhou atrás das cortinas pesadas. - O assassino do seu padrasto foi encontrado?

- Não. - Charlotte levantou e olhou em volta à procura de outro lugar onde alguma coisa pudesse estar escondida. - Alguns assaltantes anônimos, certamente.

Muito conveniente Baxter pensou. - A morte de uma das suas clientes então é o segundo caso de assassinato na

sua vida, num tempo relativamente curto. Muitas pessoas passam a vida inteira sem chegar perto desse tipo de crime nem uma vez, muito menos duas.

Charlotte virou-se rapidamente e olhou para ele. - O que está insinuando, senhor? - Apenas uma observação. As pessoas que se interessam pela ciência notam

instintivamente quaisquer pequenos itens de lógica e conexões estranhas nos fatos. - Ele ia deixar cair à cortina quando notou um pequeno movimento no outro lado da rua.

Baxter olhou com atenção. A fraca luz de lampião a gás dava apenas para deixar ver um vulto passando no meio da névoa. Um criado voltando de uma noite de folga, talvez, ele pensou.

Ou alguém que não tinha nenhum direito de estar naquele lugar, como ele e Charlotte?

- Alguma coisa errada, Sr. St. Ives? Por que está olhando pela janela? - Só examinando a rua. - O vulto tinha desaparecido. Baxter largou a cortina. -

Acho que fizemos um bom trabalho neste quarto. Vamos passar para o seguinte. - Sim, é claro. Quero encontrar o quarto da Sra. Heskett. - Charlotte apanhou o

lampião e caminhou rapidamente para a porta. Olhou para Baxter com ar de reprovação quando passou por ele. A capa

esvoaçou atrás dela num movimento irado que parecia refletir sua irritação. Baxter a seguiu vagarosamente. Alguns minutos depois, quando revistavam o último quarto, Baxter ouviu uma

leve exclamação de surpresa. - Encontrou alguma coisa? - ele perguntou, olhando para ela.

Charlotte estava ajoelhada outra vez, inclinada para a frente, puxando alguma coisa de baixo de um guarda-roupa grande com espelho.

- O que acha disto, Sr. St. Ives? - Mostrou um livro grande com capa de couro e o abriu.

- O que é? - Baxter atravessou o quarto. - Um diário? - Não, um livro de aquarelas. - Charlotte virou algumas páginas revelando uma

série de delicados desenhos em cores pastel. - Provavelmente era da Sra. Heskett. - Parou de repente, olhando um dos desenhos. - Meu Deus!

Baxter ergueu as sobrancelhas e olhou para o livro. - A Sra. Heskett aparentemente se interessava muito por estátuas clássicas. - Certamente - Charlotte disse, com frieza. - Deuses gregos e romanos na maior

parte, eu creio. São figuras muito bem... muito bem-dotadas. - Sem dúvida. Os dois examinaram em silêncio os desenhos das estátuas de nu masculino que

enchiam o álbum. Charlotte tossiu discretamente. - Já vi algumas dessas estátuas no Museu Britânico. Acho que podemos dizer que

a Sra. Heskett tomou certas liberdades artísticas com certas partes da anatomia das mesmas.

- Sim, pode-se dizer isso. Charlotte fechou o livro com um estalo. - Bem, sua escolha de modelo para desenho não nos interessa. O importante é

que encontrei este livro escondido debaixo do armário. - O que há de estranho nisso? Muitas senhoras gostam de desenhar com

aquarela. - Tem razão. Minha irmã Ariel também gosta. - Charlotte ergueu a cabeça, com

os olhos brilhando. - Mas ela não esconde seu caderno de desenho debaixo de um armário.

De repente ele compreendeu onde as deduções a estavam levando. - Espere um pouco, Srta. Arkendale. Eu aconselharia a não tirar conclusões

precipitadas. É pouco provável que Drusilla Heskett tenha deliberadamente escondido o livro debaixo do armário. Sem dúvida foi empurrado para lá acidentalmente por um dos criados quando arrumou o quarto, depois da morte dela.

- Eu discordo senhor. Acho que foi deliberadamente escondido ali. - Nesse caso, pode ter sido por causa do tema. Talvez a Sra. Heskett não

quisesse que os criados soubessem que gostava de desenhar falos gigantescos. Charlotte piscou os olhos rapidamente. Olhou para o lado e de repente ficou

muito ocupada, tentando esconder o livro sob a capa. - Mesmo assim, quero examinar. Vou levar comigo. - Desistiu de ajeitar o livro

sob a capa e o segurou com força na frente do corpo. Baxter ficou intrigado com aquela brusca agitação. Só depois de alguns segundos

compreendeu que a tinha deixado embaraçada. Achou divertida a idéia da formidável Srta. Arkendale ficar chocada com o uso da palavra falo.

- Srta. Arkendale sinto-me obrigado a lembrar que se levar esse livro para fora desta casa estará cometendo o que chamamos de roubo.

- Bobagem. Estou apenas levando emprestado por algum tempo. - Emprestado? - Estou investigando as circunstâncias da morte da minha cliente, afinal - ela o

fez lembrar secamente. - Preciso de toda informação que encontrar. - Que tipo de informação espera encontrar num livro de desenho cheio de

estátuas nuas? - Baxter quis saber. - Quem sabe? - Ela virou-se rapidamente e passou por ele com ar decidido. -

Venha. Ainda temos de revistar o andar de baixo. Baxter praguejou em voz baixa e deu alguns passos para segui-la. Porém, uma

sensação estranha o fez hesitar.

Capítulo III Voltou para a janela, abriu um pouco a cortina e olhou para a rua. A vista desse

quarto era igual à do primeiro que tinham revistado. A neblina estava mais densa. O lampião a gás no outro lado da rua era um

pontinho de luz. Não contribuía em nada para iluminar a cena. Baxter esperou por um longo tempo, procurando sombras entre as sombras, mas não notou nenhum movimento.

- Venha Sr. St. Ives. - Charlotte chamou em voz baixa do corredor. - Precisamos nos apressar.

Baxter largou a cortina e virou-se para a porta. Não tinha visto ninguém de tocaia no escuro, mas por algum motivo não sentiu nenhum alívio com isso.

Seguiu Charlotte na escada. Um pouco depois, ele fechou a última gaveta de uma mesa e tirou o relógio do

bolso do colete. - Precisamos ir embora, Srta. Arkendale. - Só mais alguns minutos. - Charlotte ficou nas pontas dos pés para guardar no

lugar alguns livros que tinha tirado da estante. - Estou quase terminando. - Não podemos demorar mais. - Baxter apanhou a lanterna. Ela examinou as estantes de livros rápida e ansiosamente. - Mas e se deixamos passar alguma coisa importante? - A senhorita nem sabe o que está procurando, como vai saber se deixou passar

alguma coisa? - Segurou no braço dela e a levou rapidamente para o corredor. - Depressa, Srta. Arkendale.

Charlotte olhou para ele alarmada. - Alguma coisa errada, senhor? - Precisa perguntar? - Conduziu-a pela escada na direção da cozinha. - Passa da

meia-noite e estamos nos divertindo, revistando a casa de uma senhora recentemente assassinada. A senhorita está se preparando para levar um objeto que pertencia à antiga moradora desta casa. Muitas pessoas achariam que devíamos estar preocupados.

- Não há razão para sarcasmo, senhor. Quando perguntei se havia algo errado, quis dizer alguma coisa que não fossem seus temores a respeito deste projeto, desde o começo. O senhor parece preocupado de repente.

Baxter olhou para ela, admirando tanta percepção. Crescia sua sensação de perigo desde que viu o homem nas sombras, no outro lado da rua.

Há muito tempo não experimentava essa inquietação desagradável e fria de medo. Três anos, para ser exato.

Ele era um homem de ciência e como tal se recusava a chamar isso de premonição. Mas a última vez que sentiu a mesma coisa a realidade se tornara uma ocasião memorável, para não dizer mais. Tinha as cicatrizes para provar como esteve perto de ser morto.

- Tenha cuidado senhor, para não tropeçarmos na escada - Charlotte murmurou. - Vai ser difícil sair daqui com as pernas quebradas.

- Estamos quase na cozinha. - Baxter disse quando atravessavam o aposento da governanta. - Vou apagar o lampião agora. Quando sairmos daqui, vamos estar quase cegos. Não largue do meu braço.

- Por que não esperamos chegar à rua para apagar o lampião? - Porque não quero arriscar que alguém nos veja sair da casa. - Mas ninguém vai ver nessa neblina - Charlotte protestou. - O brilho do lampião pode ser visto, mesmo que não vejam nossos rostos. Está

pronta? Charlotte olhou para ele intrigada. Baxter pensou que ela ia continuar a insistir

para não apagar o lampião. Mas Charlotte devia ter visto alguma coisa no rosto dele que a convenceu a ficar calada. Apertou mais o livro de aquarelas contra o peito e inclinou a cabeça afirmativamente.

Baxter apagou o lampião. A escuridão da cozinha os envolveu imediatamente. Procurando lembrar a disposição da cozinha, Baxter a conduziu para a porta que

abriu facilmente com um leve rangido. A luz fraca da luz de gás refletida na neblina indicava o caminho lá de cima, na rua.

Charlotte pôs o pé no primeiro degrau de pedra. Baxter segurou o braço dela outra vez e a fez parar. Charlotte ficou imóvel, obedientemente esperando o sinal dele para continuar a subir.

Felizmente, ela não fez mais nenhuma pergunta. Baxter ficou grato por aquele silêncio. Ficou parado escutando atentamente por um momento. Ouviram o ruído distante das rodas de uma carruagem nas pedras da rua, mas aparentemente não havia ninguém por perto.

Baxter a empurrou de leve. Ela subiu a escada rapidamente. Ele a seguiu. Quando chegaram à rua, ele virou e a fez andar na direção do parque, onde a carruagem os esperava.

As sombras na frente deles mudaram bruscamente. Um vulto enorme surgiu da névoa. O homem vestia um casaco de cocheiro e

estava com um chapéu de copa baixa. A luz do lampião da rua mais próxima refletia na pistola de cano longo na mão grande e gorda.

- Muito bem, o que temos aqui? - perguntou o homem com voz rouca. - Parece um casal de fidalgos se metendo nos meus negócios.

Baxter ouviu Charlotte conter um grito de espanto, mas ela não gritou. - Saia da frente - Baxter ordenou. - Não tenha tanta pressa. - A luz era suficiente para ver as falhas na boca do

homem onde deviam estar os dentes. - Vocês acabam de sair da minha casa e não vou deixar que saiam com alguma coisa que me pertence.

- Sua casa? - Charlotte olhou para ele atônita. - Como se atreve? Acontece que eu sei que esta casa até recentemente pertencia à outra pessoa.

- Bem, Srta. Arkendale... - Baxter disse. - Talvez este não seja o momento... - A casa é minha, estou dizendo - rosnou o homenzarrão para Charlotte. - Eu a

encontrei há três noites e desde então a estou vigiando muito de perto. - Vigiando por qual motivo? - Charlotte quis saber. - Para ter certeza de que o proprietário está fora há muito tempo e não pretende

voltar de surpresa no meio da noite, é claro. - Meu Deus, é um arrombador profissional. - Sim, é isso que eu sou. Um verdadeiro profissional. - O homem sorriu com

orgulho. - Nunca fui apanhado porque sou muito cuidadoso. Sempre tenho certeza de que os donos estão fora da cidade antes de entrar e me servir. Eu estava me preparando para dar o golpe nesta noite e o que vejo? Dois engraçadinhos tentando me prejudicar.

Baxter falou suavemente: - Eu disse saia da frente. Não vou dizer outra vez. - Fico contente por ouvir isso. Não tenho tempo para sermões esta noite. - O

homem olhou com desprezo e zombaria para Baxter e depois, ignorando-o, voltou-se sorrindo para Charlotte. - Agora, então, madame intrometida, o que vocês conseguiram? Um pouco de prata, talvez? Algumas bugigangas da gaveta de jóias? Seja o que for me pertence. Entregue já.

- Não tiramos nada de valor daquela casa - Charlotte disse.

- Devem ter tirado alguma coisa. - O homem olhou para o livro de desenhos. - O que é isso?

- Só um livro. Nada que possa interessá-lo. - Não me interesso por livros, mas vou dar uma olhada no que tem dentro dessa

capa. Aposto que tem alguns belos candelabros e um ou dois colares aí dentro. Abra a capa.

- Não vou fazer nada disso - Charlotte disse com frio desdém. - Cadelinha atrevida, não é? Muito bem, aqui está uma pequena amostra do que

vai acontecer se não devolver o que me pertence. O homem girou o corpo com rapidez surpreendente. Levantou a pistola como se

fosse um taco, num arco curto e selvagem na direção da cabeça de Baxter. - Não. - Charlotte disse. - Espere. Não o machuque. Ele apenas trabalha para

mim. Baxter já estava em movimento, abaixando o corpo para evitar o golpe. Tirou

uma das ampolas de vidro do bolso do sobretudo, quebrou e a atirou no rosto do assaltante.

O composto especial de fósforo, em contato com o ar, brilhou com luz intensa. O vilão rugiu, chocado e raivoso, e saltou desajeitadamente para trás, levando as mãos aos olhos. A pistola caiu no chão com um baque surdo.

Baxter deu um passo para a frente e acertou um murro no queixo do homem. Ainda parcialmente cego pela luz que explodiu no seu rosto, o ladrão cambaleou.

- Você me cegou, seu maldito bastardo. Estou cego. Baxter não viu nenhum motivo para explicar que o efeito era momentâneo.

Segurou o braço de Charlotte. - Venha. Ouço as rodas da carruagem. - Não é justo - gemeu o vilão. - Fui eu que encontrei a casa vazia. Ela é minha.

Vão procurar outra. Charlotte olhou para trás. - Vamos informar o magistrado que você está rondando a vizinhança. Acho

melhor ir embora imediatamente. - Agora chega. - Baxter viu as luzes da carruagem à distância e puxou Charlotte

pelo braço. - Já temos muitos problemas. - Não quero que aquele vilão pense que pode entrar na casa da Sra. Heskett e

roubar o que quiser. - Por que não? Acabamos de fazer exatamente isso. - Tirar este livro de desenho é uma coisa completamente diferente. - ela

protestou ofegante. - Humm. A carruagem estava quase os alcançando. - Devo dizer que fiquei impressionada com o modo com que enfrentou a

situação, Sr. St. Ives. Muito inteligente de a sua parte usar a luz instantânea. Muito inteligente, sem dúvida.

Baxter ignorou o discurso de admiração. Olhava para o escuro, esperando ver a carruagem surgir da névoa.

Os cavalos apareceram primeiro, um par de fantasmas cinzentos, emergindo da neblina. O veículo então tomou forma atrás deles. O cocheiro, alugado dos Estábulos Severedges com a carruagem e os cavalos, já havia trabalhado para Baxter muitas vezes. Estava acostumado com as excentricidades do seu cliente.

Há anos Baxter era cliente do estábulo. Era mais econômico e eficiente recorrer ao Severedges quando precisava de uma carruagem do que ter um estábulo próprio. Por ser um cliente de longo tempo, que pagava prontamente suas contas, Baxter tinha a garantia de bom serviço e discrição.

- Algum problema, senhor? - o cocheiro perguntou, fazendo parar os cavalos. - Nada que minha acompanhante e eu não pudéssemos resolver. - Baxter abriu a

porta da carruagem. Segurou Charlotte pela cintura e a ergueu do chão com facilidade, ajudando-a a subir. - Leve-nos de volta à casa da Srta. Arkendale.

- Sim, senhor. Baxter subiu na carruagem, fechou a porta e sentou-se no banco de frente para

Charlotte. O veículo partiu. Baxter verificou as cortinas para se certificar de que estavam todas fechadas.

Então se voltou para Charlotte. Na luz pálida das lâmpadas do interior da carruagem, os olhos dela brilhavam.

- Sr. St. Ives. Nunca poderei agradecer suficientemente por suas ações esta noite - ela disse. - O senhor foi realmente nobre e heróico e demonstrou rápida e perfeita iniciativa no momento de crise. Todas as minhas dúvidas a respeito de empregá-lo desapareceram. O Sr. Mareie estava absolutamente certo quando o recomendou.

Uma fúria repentina o dominou de surpresa. Ela podia ter morrido naquela noite, ele pensou. E ali estava cintilando de entusiasmo e elogiando-o como se ele fosse um criado excepcional. Era suficiente para fazer qualquer homem razoável perder a paciência.

- Fico feliz por saber que está satisfeita com meus serviços, Srta. Arkendale. - Ah, eu estou. Encantada. Certamente o senhor será um excelente assistente. - Porém, profissionalmente falando - ele continuou com voz suave - suas ações

impensadas desta noite foram intoleráveis. Não há desculpas para esse tipo de tolice. Eu devia estar louco quando permiti que revistasse a casa de Drusilla Heskett.

- Não me lembro de ter pedido sua permissão, senhor. - A senhorita podia ser ferida, talvez até morta por aquele homem. - Eu não estava em perigo, graças ao senhor. Na verdade, não sei o que teria

feito sem o senhor esta noite. - Os olhos dela brilhavam. - Nenhum homem jamais veio em meu auxílio, Sr. St. Ives. Na verdade, foi emocionante. Exatamente o tipo de coisa que lemos nos romances góticos ou num poema de Byron.

- Com todos os demônios, Srta. Arkendale... - O senhor foi maravilhoso. - Inesperadamente, ela se inclinou para a frente e

num gesto rápido e impulsivo o apertou num abraço exuberante. A capa de Charlotte o envolveu e Baxter sentiu uma fragrância quente, sedutora,

indescritível, a combinação do leve perfume floral que ela usava, da essência de ervas do sabonete e do odor incrível, único e extremamente feminino do seu corpo.

Baxter teve a impressão de ter sido atirado para dentro de uma das suas retortas do laboratório. Era como se uma bomba de ar invisível tivesse sugado todo o oxigênio da atmosfera. Tudo que tinha para respirar era o perfume de Charlotte.

Uma sensação ardente percorreu seu corpo como uma carga elétrica, criando uma reação própria da alquimia. Os antigos acreditavam que, com ajudado fogo, era possível transformar o chumbo comum em ouro glorioso. Baxter sabia que era possível o calor do seu corpo transformar sua ira em desejo sexual intenso.

Ele a desejava. Naquele momento. Naquela noite. Jamais havia desejado tanto uma mulher em toda sua vida.

Segurou o rosto dela com as duas mãos quando ela começou a se afastar. Olhou nos olhos dela, atônito com a força do próprio desejo.

- Perdoe-me, Sr. St. Ives - Charlotte disse, com um sorriso trêmulo, olhando para a boca dele. - Eu não queria embaraçá-lo. O entusiasmo do momento deve ter dominado meu bom senso.

Baxter não respondeu. Não conseguia pensar em nada para dizer. Fez a única coisa possível no momento. Ele a beijou.

Capítulo IV Por um breve momento, Charlotte não sabia o que estava acontecendo. Só sabia

que a boca de Baxter estava sobre a dela e ele a estava beijando. Então compreendeu. Baxter estava fazendo amor com ela. Bem ali, na carruagem.

As chamas da paixão feroz e vital que havia notado nos olhos dele naquele primeiro encontro explodiram. Ofuscaram seus sentidos como a luz instantânea ofuscava a visão.

Era como entrar numa sala estranha e maravilhosa que cintilava com vários espelhos e com um número absurdo de velas acesas. Era excitante e confuso ao mesmo tempo e um pouco assustador. Charlotte não podia ver a porta. Não sabia como escapar, se fosse necessário.

A boca de Baxter se moveu na dela, aprofundando o beijo e ele deixou escapar um gemido rouco. Suas mãos apertaram gentilmente o rosto de Charlotte, até ela ter consciência da força dos dedos dele. Sentia os músculos firmes das pernas de Baxter contra as suas.

Um calor diferente a invadiu e se concentrou na parte inferior do seu corpo, provocando um arrepio dos pés à cabeça. Charlotte nunca havia reagido a qualquer coisa ou a qualquer pessoa daquele modo estranho.

- Charlotte - a voz de Baxter era baixa e infinitamente suave. Estava repleta de uma necessidade que precisava ser satisfeita e do tom doloroso de desejo reprimido. - Charlotte.

Ela segurou os ombros dele com força. Seus lábios se abriram como se tivessem vontade própria.

Ele afastou a boca dos lábios dela por um momento, ergueu um pouco a cabeça e olhou para ela com uma intensidade que em outras circunstâncias a teria apavorado. A luz no interior da carruagem refletia nas lentes dos óculos dele. Fogo ardia nos seus olhos cor de âmbar.

Os olhos de um alquimista, ela pensou. Com um movimento brusco e impaciente, Baxter tirou os óculos e os jogou no

banco oposto. - Com todos os demônios o que você fez comigo? Charlotte balançou a cabeça, sem tirar os olhos dele. Percebeu que segurava

com força os ombros de Baxter, como se tivesse medo de despencar num mar sem fundo, se o largasse.

- Eu ia perguntar a mesma coisa. - Com todos os demônios. - Ele a beijou outra vez. Charlotte sentiu a mão dele dentro do capuz, na sua nuca. Os dedos eram fortes

e quentes. A intimidade da carícia provocou outra onda quente de excitação em todo seu corpo.

Baxter mudou a posição das mãos, a fez deitar no seu colo, acalentando-a na curva do braço e abaixou a cabeça para beijar seu pescoço. Abriu a frente da capa que a cobria.

Charlotte ouviu a própria exclamação abafada quando os dedos se fecharam no seu seio. Sentia o calor da palma através da lã fina do vestido. Mas não tinha forças para afastá-lo. Uma espantosa sensação de urgência dominava seu corpo. Ela segurou as lapelas do sobretudo dele.

- Sr. St. Ives... A mão dele moveu-se lentamente para baixo sobre a curva do seio, desceu até

os quadris e apertou de leve. - Santo Deus - ela murmurou trêmula.

O volume sólido da masculinidade dele pressionava sua coxa. Charlotte fechou os olhos, mergulhando em outra onda de sensações. Era como se tivesse deslizado para um transe delicioso. Talvez fosse essa a sensação de uma sessão de mesmerismo.

Pôs as mãos dentro do casaco de Baxter, desesperada para sentir o corpo dele. Ficou encantada com o que encontrou. Através da camisa de linho, ela sentia os músculos lisos e fortes do peito dele. O calor e o cheiro dele eram embriagadores. Charlotte queria mais, muito mais.

Baxter levantou a saia amarrotada do vestido e a capa até os joelhos dela. Charlotte estremeceu outra vez quando ele tocou a parte interna da sua coxa. Ele acariciou a pele nua acima da liga. Um choque percorreu o corpo dela.

A carruagem parou. Charlotte ficou imóvel. A realidade voltou de repente. - Com todos os demônios. - Baxter endireitou o corpo rapidamente. Inclinou-se

sobre Charlotte e apanhou os óculos no outro banco. Depois abriu a cortina da carruagem. - Chegamos à sua casa. Como chegamos tão depressa? Eu queria dizer tantas coisas esta noite.

- E eu tinha muita coisa para conversar com você. - Charlotte procurou se controlar, cheia de embaraço e atordoada, além de corada e ofegante e com uma sensação de antecipação. - Nem começamos a conversar sobre os eventos desta noite.

- Não, nem começamos. - Olhou para ela com os olhos entrecerrados enquanto Charlotte passava para o outro banco e procurava se compor. - Eu estarei aqui amanhã.

A formalidade dele a deixou desanimada. O homem acabara de beijá-la com paixão, ela pensou, e agora falava como se ela o tivesse ofendido. Então pensou que talvez ele estivesse por demais abalado pelas emoções que os haviam tomado de assalto.

Na verdade, ela estava também perturbada pelo abraço repentino e tumultuoso. Mas como patroa de Baxter, era sua responsabilidade controlar a situação. Sem dúvida Baxter se censurava por ter se deixado levar pelos elementos mais passionais da sua natureza.

Charlotte inclinou-se para a frente para tocar a mão dele com a intenção genuína de tranqüilizá-lo.

- Não se preocupe senhor. O senhor não tem culpa alguma do que aconteceu. Esse tipo de emoção intensa geralmente é precipitado pela excitação do perigo. Nosso encontro com aquele homem horrível na frente da casa da Sra. Heskett ocasionou o descontrole das nossas emoções.

Baxter olhou para ela. - Pensa assim? - Sim, é claro. E a única explicação. A ameaça de violência pode abrir uma

comporta de intensas paixões. - A senhorita tem muita experiência desse tipo de coisa? - Bem, não exatamente - ela admitiu. - Mas tenho lido bastante Byron para saber

que o que aconteceu conosco há pouco não é incomum. Quando se enfrenta o perigo, todos os nossos sentidos despertam e... e são estimulados.

- Meu Deus. Está tirando conclusões com base na obra de um maldito poeta? Charlotte ficou um pouco ofendida com aquele desdém. - Byron escreve muito convincentemente sobre as paixões mais profundas.

Aparentemente ele tem uma compreensão perfeita dos seus efeitos. Sinto que posso aprender muito com seus versos e os de outros poetas românticos.

- Isso seria hilariante se não fosse tão ridículo. - Só estou tentando encontrar uma explicação lógica para uma coisa que

evidentemente o perturbou, Sr. St. Ives.

Baxter olhou para a mão dela sobre a sua. Quando olhou para ela, havia uma chama perigosa nos seus olhos.

- Muito obrigado, senhorita Arkendale, mas acho que posso sobreviver à experiência sem recorrer à sua lógica estranha. O dia em que eu procurar explicação e iluminação nos versos de um maldito poeta, será o dia em que estarei me internando no hospício.

Charlotte retirou apressadamente a mão da perna dele. Baxter estava de mau humor. Não adiantava procurar acalmá-lo nessa noite.

- Muito bem, senhor - ela disse resolvida a parecer alegre e calma. - Estou certa de que de manhã teremos esquecido o caso todo.

Baxter ficou calado por alguns segundos. Algumas batidas no lado de fora da porta anunciaram que o cocheiro havia descido do seu banco.

- Isso é o que veremos - Baxter disse, finalmente. Charlotte respirou fundo. - Amanhã, quando o senhor chegar, vamos comparar nossas observações sobre

a casa da Sra. Heskett. - Sim. - Terei oportunidade de examinar o livro de desenhos. Talvez descubra alguma

coisa útil nele. - Duvido muito. - Baxter se inclinou e encostou o lado da mão no queixo dela. -

Escute bem o que eu vou dizer. Esta noite quero vê-la a salvo dentro de casa. Quero que tenha certeza de que todas as janelas estão fechadas e as portas trancadas antes de se recolher.

Charlotte piscou os olhos. - É claro, Sr. St. Ives. Eu sempre verifico as fechaduras antes de me retirar para

o quarto. É um velho hábito, pode estar certo. Mas duvido que tenha algum motivo para alarme esta noite. Aquele vilão que nos abordou não teria condições para seguir esta carruagem através da neblina.

- Pode estar certa, mas vai fazer exatamente o que eu disse, mesmo assim. Fui bem claro?

Instintivamente, Charlotte compreendeu que não seria prudente permitir que Baxter tomasse as rédeas do seu relacionamento. Ela precisava ficar no comando.

- Agradeço sua preocupação, mas sou sua patroa. Embora esteja disposta a ouvir seu conselho, deve compreender que tenho opiniões próprias e sei tomar minhas decisões.

- Vai fazer mais do que ouvir o meu conselho, Charlotte. - Baxter disse, com uma calma irritante. - Vai obedecer.

A porta da carruagem abriu naquele momento. Consciente da presença do cocheiro esperando cortesmente no escuro, Charlotte se limitou a erguer as sobrancelhas.

- Esta noite o senhor provou que é um assistente excelente, mas sem dúvida existem outras pessoas que podem substituí-lo. Se quiser continuar no emprego, acho melhor demonstrar um mínimo de deferência por sua patroa.

Uma expressão zombeteira brilhou rapidamente nos olhos dele. - Está ameaçando me demitir, Charlotte? Depois de tudo que passamos esta

noite? Estou arrasado. A risada silenciosa nos olhos dele a deixou tão furiosa que Charlotte achou

melhor não dizer nada na frente do cocheiro. Sem uma palavra, ela segurou a saia e se preparou para descer da carruagem.

O cocheiro a ajudou com discreta cortesia. À luz fraca do interior da carruagem ela não podia distinguir a expressão do rosto dele, mas teria jurado ter visto uma centelha de simpatia.

Baxter desceu também, segurou o braço dela e juntos subiram os degraus até a porta. Tirou a chave da mão dela e a inseriu na fechadura.

- Boa noite, Sr. St. Ives. - Charlotte entrou no hall e voltou-se para ele, com o sorriso frio e autoritário do empregador satisfeito com o trabalho do empregado. - Devo dizer outra vez o quanto me impressionou a demonstração dramática das suas habilidades pessoais que testemunhei esta noite.

- Muito obrigado. - Baxter encostou a mão forte no batente da porta e olhou para ela pensativamente. - Há só mais uma coisa.

- O que é senhor? - Talvez deva considerar a conveniência de me chamar por meu primeiro nome.

Não vejo necessidade de manter muita formalidade entre nós, dadas as circunstâncias. Charlotte olhou para ele, sem palavras. Aparentemente satisfeito com a reação, ele puxou a porta gentilmente e a

fechou na cara dela. Vinte minutos depois, Baxter estava ainda furioso quando entrou na sua

biblioteca. Não podia acreditar naquela espantosa perda de controle. "Com todos os demônios." Atravessou a sala para a pequena mesa perto da lareira e apanhou a garrafa de

cristal. Ele era senhor das próprias emoções, pensou selvagemente. Era um homem de ciência. Durante toda a vida servira no altar da lógica, da razão e do controle.

Serviu conhaque num copo. Nem era capaz de se lembrar desde quando sabia manter todos seus sentimentos sob estrito controle. Era algo que sempre soube fazer. Mesmo durante seus breves relacionamentos sexuais jamais permitiu que a paixão dominasse o bom senso. Tinha consciência dos prejuízos que o descontrole pode provocar.

Tomou um gole demorado do forte conhaque e saboreou o calor. Para piorar as coisas, Charlotte teve a imperdoável ousadia de informá-lo que a

explicação do seu comportamento podia ser encontrada na poesia superardente e melodramática de Byron.

Era suficiente para fazer um homem se trancar no santuário do seu laboratório e nunca mais sair.

Sentou pesadamente na sua poltrona favorita de leitura e contemplou as chamas que o faziam lembrar-se de Charlotte. Ambas produziam reações químicas extremamente voláteis, do tipo que pode queimar um homem desprevenido.

Fechou os olhos, mas a ameaça do fogo não desapareceu. Mentalmente via outra vez as chamas que ardiam vermelhas no cabelo de Charlotte iluminado pela luz fraca da carruagem. Queria mergulhar os dedos profundamente naquele calor perigoso. Apertou com força o copo de conhaque.

Lembrou então que não foi o único a perder o controle. A resposta de Charlotte foi inegável. Se o cocheiro não tivesse parado a carruagem, a noite teria um fim diferente.

Baxter tinha uma visão quase real do corpo dela junto do seu, as unhas apertadas contra suas costas.

Tomou mais um gole do conhaque, percebendo que podia ainda sentir o gosto de Charlotte. Sua mente estava repleta do seu perfume. Sua mão lembrava a forma perfeita do mamilo rígido.

Ia ser uma longa noite. Raciocínio lógico e frio não ia adiantar muito. Baxter sabia que não seria capaz

de apagar a lembrança de Charlotte nos seus braços. Era forte demais, intenso demais. Porém, na próxima vez que a visse, estaria no comando das próprias emoções.

Não permitiria que o controle escapasse de suas mãos outra vez.

Olhou para o copo, viu que estava quase vazio e quando o pôs na mesa ao lado da cadeira viu um papel dobrado e selado. Ele o reconheceu imediatamente. Era uma carta deixada em sua casa um pouco antes de ele sair para se encontrar com Charlotte.

Era da viúva do seu pai, Maryann, Lady Esherton, a terceira mensagem que ela enviava naquela semana.

"Com todos os demônios." Resignadamente, Baxter apanhou a carta e quebrou o selo.

A mensagem era quase idêntica às outras duas que Maryann havia mandado nos últimos dias. Muito curta e muito clara.

“Caro Baxter Quero falar com você. É um assunto muito urgente. Peço que venha à minha

casa logo que puder. Sinceramente, Lady E”. Baxter amassou o papel e jogou-o no fogo, como havia feito com as outras

cartas de Maryann. A idéia que Maryann tinha de uma situação de crise não combinava com a dele. Os problemas mais sérios de Maryann geralmente eram relacionados a dinheiro, especificamente a fortuna Esherton. O pai de Baxter o deixara encarregado de administrar a herança até que o filho de Maryann, Hamilton, completasse vinte e cinco anos. Maryann não gostou desse arranjo. Nem tampouco Hamilton.

Baxter tinha ainda alguns anos para cumprir essa tarefa ingrata antes de passar toda a responsabilidade para seu meio-irmão.

Impaciente, ele deixou de lado seus problemas antigos e considerou os recentemente adquiridos. Apoiou os cotovelos no braço da poltrona de couro, juntou as pontas dos dedos em forma de pirâmide e olhou para o fogo.

Uma coisa era certa sobre os eventos daquela noite. A ameaça de perigo era clara e Charlotte estava bem no meio de tudo.

Na sala negra e carmesim, o carvão do braseiro queimava lentamente. Os

vapores ricos e pungentes do incenso abriam seus sentidos. Sua mente estava sintonizada com as forças do plano metafísico. Ele estava pronto.

- Leia as cartas, meu amor - ele murmurou. A cartomante virou a primeira carta. - O grifo dourado. - Um homem. - Sempre. - A cartomante olhou para ele do outro lado da mesa baixa. - Tome

cuidado. O grifo vai ficar no seu caminho. - Ele pode alterar meus planos? Ela virou outra carta e hesitou antes de falar. - A fênix - Virou outra carta. - O círculo vermelho. - Então? - Não. O grifo dourado vai criar dificuldades, mas no fim você vencerá. Ele sorriu. - Sim. Agora, fale sobre a mulher. A cartomante virou outra carta. - A dama com olhos de cristal. Ela procura. - Mas não vai encontrar. A cartomante balançou a cabeça. - Não. Não vai encontrar o que procura. - Afinal, é apenas uma mulher. Não será problema.

A cartomante também não seria problema, quando tudo estivesse acabado, ele pensou. Pretendia se descartar dela quando chegasse a hora. No momento ela era útil e tudo que tinha a fazer era mantê-la prisioneira das próprias paixões.

- O que acha deste curioso desenho, Ariel? - Charlotte empurrou o livro de

desenho de Drusilla Heskett sobre a mesa, na direção da irmã. - Você conhece melhor do que eu as tendências da moda atual. Já viu algo parecido?

Ariel parou no ato de se servir de outra xícara de chá e olhou para o livro que estava aberto mais ou menos no meio. Arregalou os olhos quando viu o desenho da estátua nua que decorava a página da esquerda.

- Bem, não - Ariel disse, secamente. - Não creio que já tenha visto alguma coisa semelhante a este desenho.

Com um olhar de censura, Charlotte disse: - Não a estátua. O pequeno desenho, no canto. Parece um círculo com um

triângulo dentro. E há pequenas figuras em volta e no centro do triângulo. - Sim, estou vendo. - Ariel balançou a cabeça. - Não se parece com qualquer dos

estilos de moda que tenho visto em La Belle Assemblée ou em Ackerman's Repository of the Arts. Talvez apareça em alguma outra revista feminina.

- Talvez seja egípcio ou romano. - É possível. - Com a ponta do dedo Ariel traçou o desenho malfeito. - Deus sabe

que existe um grande número de desenhos decorativos copiados das antiguidades egípcias e romanas. Todos os figurinistas e decoradores de Londres os usam. É uma verdadeira febre. Desde que o Zamar antigo passou a ser moda temos visto diversos golfinhos e conchas. Mas este desenho eu não conheço. Por que está interessada?

- Por algum motivo, Drusilla Heskett copiou o desenho nas páginas do seu livro. Um livro que, ao que parece, ela devotou inteiramente a desenhos de estátuas nuas.

Ariel olhou para ela interrogativamente. - Mas não é um desenho em aquarela. Foi feito com pena e tinta. - Sim. E é completamente diferente de todos os desenhos no resto do livro. - Certamente. - Ariel sorriu. - Imagino se a Sra. Heskett é o tipo da cliente que

você gostaria de atrair dos altos círculos. Ela parece ter um grande interesse pela figura masculina.

- Bem, sim, mas acho que seu gosto não tem mais importância. O que me preocupa é que não posso deixar de imaginar por que ela acrescentou esse desenho extremamente estranho ao seu livro.

- O que é essa mancha avermelhada na capa? - Ariel perguntou. - Tinta de aquarela?

- Talvez. - Charlotte tocou na mancha com a ponta do dedo. - Mas, e se for sangue seco?

- Santo Deus. - E se a Sra. Heskett, depois de ser alvejada, viveu o tempo suficiente para jogar

este livro debaixo do guarda-roupa? - Charlotte murmurou. - Provavelmente você jamais terá certeza. - Não, acho que não. - Charlotte mordeu o lábio inferior, pensando nas

possibilidades. Ariel levou a xícara de chá aos lábios e olhou para Charlotte por cima da borda. - Você tem muitas perguntas para responder, mas eu também tenho algumas. - Por exemplo? - O que exatamente aconteceu ontem à noite quando foram revistar a casa de

Drusilla Heskett? Charlotte recostou-se na cadeira. - Eu já contei tudo que aconteceu. O Sr. St. Ives descobriu o livro de aquarelas e

depois fomos abordados por um ladrão arrombador quando saíamos da casa. Isso foi tudo.

- Quer saber de uma coisa? O que não me sai da mente é a sua descrição do papel de St. Ives.

Charlotte sorriu satisfeita. - Como eu disse o Sr. St. Ives foi magnífico. - Magnífico não é a palavra que costumamos usar, especialmente quando

descrevemos um membro do sexo oposto. Charlotte tossiu discretamente. - Bem, na verdade não há outra palavra que se adapte a esta situação particular.

O Sr. St. Ives foi inteligente, pensou rápido e foi extremamente corajoso. Estremeço só de pensar no que poderia ter acontecido se ele não estivesse comigo.

- Resumindo, o perfeito assistente, você diria? - Perfeito. O Sr. Mareie estava absolutamente certo quando o recomendou para a

posição. - Ele a beijou, não foi? - Ariel perguntou em voz baixa. - Meu Deus, que observação mais estranha. Por que cargas d'água eu ia beijar

John Mareie? - Charlotte apanhou a xícara de chá. - Ele é um homem muito agradável, mas tem pelo menos mais trinta anos do que eu e não acho que esteja especialmente interessado em mulheres.

- Você sabe muito bem que estou falando do Sr. St. Ives, não do Sr. Mareie. Charlotte sentiu o sangue subir furiosamente ao rosto. - Você acha que o Sr. St. Ives me beijou? Onde foi arranjar essa idéia maluca? - Quando fui ao seu quarto na noite passada para perguntar como tinha sido sua

aventura, você parecia... - Ariel hesitou, procurando a palavra certa. - Diferente. - Diferente? - Emocionada demais. Luminosa. Praticamente cintilante. - Ariel balançou a mão

num gesto vago. - Um pouco desarrumada também. Com um olhar estranho. - Francamente, Ariel, isto é demais. Eu acabava de ter uma experiência chocante

com um vilão agressivo. Como queria que eu estivesse depois de uma coisa dessas? - Não sei qual é a aparência de uma senhorita depois de escapar das mãos de

um vilão, mas sei como você fica. - O que quer dizer com isso? Eu não tive nenhum outro encontro direto com

nenhum vilão. - Você teve um do qual eu lembro distintamente. - Ariel pôs a xícara no pires. -

Há cinco anos. Uma noite antes de Winterbourne ter a garganta cortada por um assaltante. Eu os ouvi no corredor, naquela noite. Você usou a pistola de papai para expulsar Winterbourne e um dos seus asseclas para fora da casa.

Charlotte olhou atônita para ela. - Eu não tinha idéia de que você sabia o que aconteceu naquela noite. - Eu só compreendi perfeitamente alguns anos depois. Mas mesmo assim,

compreendi que você havia enfrentado uma situação muito perigosa. E vi sua expressão depois. Não era a mesma que vi ontem à noite.

- Eu sinto muito. Eu não queria que você soubesse o quanto Winterbourne era vil.

- O companheiro dele era infinitamente pior, não era? Charlotte estremeceu lembrando. - Era um monstro. Mas isso foi há muito tempo, Ariel. E nós duas saímos disso

tudo ilesas. - O caso é que eu lembro perfeitamente de como você estava naquela noite.

Estava gelada. Seus olhos pareciam vazios. Charlotte passou as mãos nas têmporas.

- Não sei o que dizer. Eu fiquei apavorada. Não me lembro de mais nada sobre meu estado emocional.

- A noite passada você levou um susto também. Mas não estava fria. Seus olhos não pareciam de modo algum vazios. Na verdade, estava excitada, animada, quase exuberante.

- Diga aonde quer chegar, Ariel. - Estou dizendo que creio que o Sr. St. Ives a beijou. Com um gemido de impaciência, Charlotte levantou as duas mãos. - Muito bem, ele me beijou. Ambos estávamos cansados e de certo modo super-

estimulados pelos eventos da noite. O perigo às vezes tem esse efeito nos sentidos, você sabe.

- Tem mesmo? - Sim - Charlotte disse, com firmeza. - Os poetas estão sempre escrevendo sobre

o problema. Mesmo uma pessoa fria e de mente clara, não inclinada a paixões, pode ser vencida por uma experiência excitante dos sentidos.

- Até uma pessoa como o Sr. St. Ives? - Na verdade eu estava me referindo a mim mesma - Charlotte disse com um

sorriso tristonho. - O Sr. St. Ives é frio e tem a mente clara, sem dúvida, mas é evidente que deve usar um certo grau de autodisciplina para conseguir esse estado de serenidade.

Ariel entreabriu os lábios, atônita. - O que foi que disse? - Sob aquele exterior severo e firme, ele é um homem de paixões fortes e

perigosas. - Paixões fortes? O Sr. St. Ives? - Sei que no começo eu tive algumas dúvidas, mas não acredito mais que seu

temperamento causará dificuldades para nós - Charlotte disse, com falsa animação. - Estou convencida de que ele será ótimo como assistente.

- Fico feliz por você estar satisfeita, mas começo a ter algumas dúvidas. Charlotte, se o Sr. St. Ives a beijou, as coisas têm um novo aspecto. Quanto realmente você sabe a respeito dele?

- O que quer dizer? - Charlotte olhou interrogativamente para ela. - O Sr. Mareie me enviou uma carta de referências impecável.

- Sim, mas nós não investigamos o Sr. St. Ives. Nem mesmo fizemos o tipo de inquérito que teríamos feito se o estivéssemos investigando para uma cliente.

- Não seja ridícula. Meus instintos são perfeitos nesse assunto. Você sabe disso. - Meus instintos também são perfeitos. E começo a ter dúvidas quanto ao Sr. St.

Ives. - Não há nenhum motivo para se preocupar. - Charlotte, você deixou que ele a beijasse. - Muito bem, o que tem isso? - Charlotte cruzou as mãos sobre a mesa. - Foi só

um beijo. - Não é seu costume se entreter com beijos de cavalheiros - Ariel respondeu. Charlotte sabia que não podia rebater essa observação. A experiência de sua

mãe com Lorde Winterbourne e seu trabalho pesquisando o passado obscuro de vários cavalheiros empedernidos com supostas intenções honradas a haviam deixado com poucas ilusões sobre os homens.

Isso não significava que não tivesse alguma tendência para o romantismo e a curiosidade perfeitamente natural de uma mulher jovem e saudável. As lembranças do casamento dos seus pais eram boas e em certos momentos ela daria qualquer coisa para conhecer esse tipo de felicidade íntima que eles haviam partilhado.

Mas estava perfeitamente consciente dos riscos que o casamento representava

para as mulheres. Não pensava em se casar, o que era normal, dada sua idade e as circunstâncias, mas muitas vezes pensou num caso de amor discreto.

Infelizmente, era uma coisa mais fácil de pensar do que de executar. Não era fácil para uma mulher na sua condição encontrar um homem adequado.

Ela não freqüentava a sociedade. Não recebia convites nem era apresentada a pessoas importantes. O pequeno número de cavalheiros respeitáveis que haviam entrado em sua vida durante todos esses anos jamais inspiraram nenhuma emoção mais forte em Charlotte. Muitos, como o Sr. Mareie, eram velhos demais. Outros simplesmente não inspiravam nenhum sentimento fora do comum.

Parecia completamente inútil ter um caso a não ser que houvesse uma grande paixão, ela pensava. Para que se arriscar, quando não existiam as emoções estimulantes e os sentimentos metafísicos excitantes de que falavam os poetas?

O tipo de sentimento, por exemplo, que a dominou na noite anterior, quando Baxter a beijou.

A idéia a deixou gelada. Estaria realmente considerando a possibilidade de ter um caso com Baxter St. Ives?

Olhou para o desenho estranho feito por Drusilla Heskett no livro de aquarelas. Era um enigma. Não muito diferente daquilo que ela sentia por Baxter.

Capítulo V - Uma pessoa na sua posição tem de ser muito cuidadosa, Srta. Patterson. -

Charlotte sorriu para a mulher sentada a sua frente. Em sua opinião, era uma boa política elogiar a percepção e a cautela da cliente. - Foi muito sensato de sua parte a idéia de verificar a impressão que teve do Sr. Adams.

- Eu disse para mim mesma que precisava ter cuidado. - Certamente. Mas tenho a satisfação de informá-la de que nossas investigações

não revelaram nenhum motivo para duvidar da credibilidade ou da segurança da situação financeira do Sr. Adams.

- Acho que não preciso dizer que me sinto extremamente aliviada. Não sei como agradecer. - Honoria Patterson, uma mulher discretamente cheia de corpo, rosto bonito e olhos cheios de calor, relaxou os dedos que seguravam nervosamente a pequena bolsa no seu colo.

Havia em Honoria um ar de feminilidade suave e doce, quase maternal, que a fazia parecer frágil. Charlotte não se deixou enganar. Sabia muito bem que uma mulher capaz de manter o ânimo forte e otimista depois de trabalhar quase dez anos como governanta não era nenhuma flor delicada.

Honoria era a imagem típica de várias de suas clientes. Tinha quase trinta anos e era solteira. Depois de lutar para se manter desde os dezessete anos, recebeu uma pequena e respeitável herança, completamente inesperada.

Como sempre acontecia nesses casos, apareceram diversos pretendentes logo que se espalhou a notícia da boa sorte de Honoria. Ela dispensou muitos deles sem hesitar. Uma governanta aprendia a desconfiar das intenções dos cavalheiros. Mas um deles, William Adams, viúvo com trinta e poucos anos, dois filhos, cativou seu interesse e, aparentemente, seu coração.

Como Honoria explicou para Charlotte, os anos que passou ensinando aos jovens a seu cargo, os princípios de lógica e de bom raciocínio deram a ela um certo grau de sabedoria adquirida do modo mais difícil e uma saudável noção de cautela. Uma amiga, dona de uma agência de governantas, a encaminhou para Charlotte.

- Fico feliz por ter sido útil - Charlotte disse. - Especialmente em um caso como este, em que os resultados das nossas investigações foram positivos.

- Eu gosto tanto do Sr. Adams. - Honoria corou. - E os filhos dele são encantadores. Mas, sabe como é. Senhoras de idade avançada como nós precisam questionar as intenções de um homem. Afinal, o mundo nos considera realmente fora de circulação.

Fora de circulação. Charlotte suspirou. Estava com vinte e cinco anos completos. Para onde foi o

tempo? Parecia que ainda ontem estava procurando desesperadamente uma profissão para manter a ela e a irmã. Devotou todo seu entusiasmo e energia à tarefa e cinco anos passaram num piscar de olhos.

Charlotte não lamentava ter passado daquilo que a sociedade considerava a idade própria da mulher para o casamento. Na verdade, seus negócios prosperaram sensivelmente quando ela deixou de parecer recém-saída da escola. Mas não podia deixar de pensar agora no quanto tinha perdido por não chegar a conhecer a verdadeira paixão.

A sensação de melancolia a sobressaltou. Não era uma pessoa solitária. Gostava imensamente do seu trabalho. Era independente. O que mais podia desejar? Talvez estivesse lendo muita poesia ultimamente, ela pensou.

Mesmo assim, não queria que Ariel seguisse exatamente o mesmo caminho. O seu trabalho era importante e Ariel se interessava muito por ele. Mas Charlotte não

queria que a irmã sacrificasse tudo pelo trabalho, como havia feito. Não havia mais uma necessidade premente disso. Tinham renda suficiente para uma vida, se não luxuosa, pelo menos confortável. Se seus planos para atrair clientes da alta roda fossem bem-sucedidos, até um pouco de luxo seria possível.

Charlotte seria capaz de muita coisa para que Ariel tivesse oportunidade de experimentar alguns dos prazeres inocentes da juventude. Esses prazeres seriam parte do seu legado. A idade avançada, citada por Honoria, tinha chegado depressa demais.

Como costumava fazer há longo tempo, Charlotte afastou os pensamentos perturbadores e se obrigou a se concentrar na sua cliente.

- Uma mulher sensata e inteligente deve ser cautelosa numa situação como esta Srta. Patterson - ela disse com convicção.

- Afinal, não sou nenhuma beleza. - Honoria disse com o tom de voz prático de uma mulher que há muito tempo aceitou os fatos da vida.

Nem eu, Charlotte pensou com uma nova pontada de inquietação. A paixão de Baxter na noite anterior certamente fora induzida pela excitação da aventura. Precisava estar preparada para a possibilidade de ele não a achar tão desejável agora, sem o efeito estimulante do perigo.

- E ainda mais com essa herança recente do meu primo - Honoria continuou. - Bem, estou certa de que compreende por que eu precisava investigar o passado do Sr. Adams.

- Eu compreendo. - Eu nunca esperei casar algum dia. Na verdade, cheguei a me convencer de que

estava perfeitamente satisfeita com minha vida, agora que estou financeiramente independente. Mas o Sr. Adams apareceu e de repente comecei a ver outras possibilidades. Nós temos muitos interesses em comum.

- Fico feliz pela senhorita. Não era a primeira vez que uma cliente de Charlotte sentia necessidade de falar

em excesso depois de receber a boa notícia. A princípio as senhoras que procuravam seus serviços eram muito caladas e extremamente reticentes. Em geral ficavam rígidas e tensas quando sentavam pela primeira vez na cadeira no outro lado da mesa de Charlotte. Xícaras tilintavam contra os pires. Mãos enluvadas moviam-se ansiosamente. Os rostos eram solenes.

Quando a notícia era má, geralmente apareciam as lágrimas. Charlotte tinha uma pilha de lenços de linho numa das gavetas da mesa, para essas ocasiões infelizes.

Entretanto, um relatório favorável provocava uma leve euforia. A cliente falava sem parar sobre as virtudes recentemente verificadas dos seus pretendentes.

De um modo geral, Charlotte simplesmente ouvia, fazendo alguns ruídos encorajadores. Clientes satisfeitas eram referências excelentes e discretas. Ela podia se dar ao luxo de ser generosa com seu tempo na entrevista final.

Mas, nessa tarde, Charlotte sentia um impulso inexplicável de falar. - Estou feliz pela senhorita. E satisfeita por poder confirmar sua boa opinião

sobre o Sr. Adams. Mas deve compreender que há sempre um certo risco quando se trata de casamento.

Honoria olhou intrigada para ela. - Risco? - Fiz o melhor que pude para ter certeza de que o Sr. Adams não tem o vício da

bebida. Não é dado à jogatina. Não freqüenta bordéis. Tem uma renda sólida e parece ter um temperamento estável e calmo.

Honoria praticamente cintilou. - Resumindo, um cavalheiro maravilhoso. - Sim. Mas a senhorita compreende que eu não posso garantir com certeza que o

Sr. Adams vai continuar a ser esse modelo de perfeição masculina depois do

casamento. - Como assim? Charlotte inclinou-se para a frente num gesto impulsivo. - Ele pode resolver abandonar a senhorita e os filhos no próximo ano, para

procurar aventuras nos Mares do Sul. Ou pode se entediar com a nova vida de casado e começar a beber muito. Pode sofrer uma crise de melancolia e ficar extremamente desagradável. São muitas as coisas que podem dar errado num casamento.

- Bem, sim, suponho que seja verdade. - Honoria se mexeu inquieta na cadeira e parecia desconfiada. - Compreendo que não pode haver garantias numa situação como esta.

- Exatamente. Contudo a senhorita resolveu seguir o caminho que leva ao casamento.

Honoria franziu a testa. - Parece um tanto agitada de repente, Srta. Arkendale. Algum problema? - Apenas estou me perguntando por que está resolvida a se casar com o Sr.

Adams. É como se não houvesse outra alternativa. - Eu já disse nenhum dos outros cavalheiros me interessou. - Não é isso que quero dizer com alternativa. Srta. Patterson posso fazer uma

pergunta de natureza um tanto pessoal? Honoria olhou para a porta, como se estivesse calculando a distância. - O que quer saber, Srta. Arkendale? - Perdoe-me, mas não posso deixar de perguntar por que a senhorita não está

considerando a possibilidade de uma ligação discreta com o Sr. Adams. Por que enfrentar o acaso e os perigos do matrimônio?

Honoria olhou para ela perplexa. Por um momento, Charlotte teve medo de ter ofendido sua cliente de modo imperdoável. Mentalmente censurou suas palavras impulsivas. Negócios eram negócios, afinal. Ela não podia se dar ao luxo de escandalizar suas clientes.

- Ter um caso amoroso, quer dizer? - Honoria perguntou com ingenuidade encantadora.

Charlotte corou. - Poderia parecer a solução óbvia. E certo que uma senhora jovem não pode se

envolver num relacionamento romântico sem provocar escândalo, mas uma mulher de, bem, de idade madura como nós tem mais liberdade. Desde que aja com discrição, é claro.

Honoria olhou para Charlotte pensativamente. Então, um sorriso estranho curvou seus lábios.

- Talvez esteja nessa profissão há tempo demais, Srta. Arkendale. - O que quer dizer com isso? - Tenho a impressão de que o trabalho de investigar a vida de cavalheiros criou

na senhorita uma visão bastante cética do mundo e dos homens, em particular. Talvez tenha perdido de vista a razão pela qual uma mulher resolve fazer essas investigações, em primeiro lugar.

- Como assim? - Um caso de amor pode ser muito bom para certas pessoas. - Honoria ajustou

as fitas do chapéu e levantou-se da cadeira. - Mas o Sr. Adams e eu estamos procurando muito mais do que isso.

- Não compreendo. - É difícil pôr em palavras, Srta. Arkendale. Se não compreende instintivamente a

resposta à sua pergunta, duvido que eu possa explicar. Basta dizer que as pessoas entram no casamento com esperança.

- Esperança?

- E confiança. E uma visão do futuro. - Honoria olhou para ela com pena. - Uma aventura amorosa não pode oferecer nada disso, pode? Por sua própria natureza é uma ligação extremamente limitada. Se me dá licença, preciso ir. Agradeço outra vez por seus serviços.

Charlotte levantou-se rapidamente, impulsionada pela pergunta que fervia dentro dela. De repente queria saber o que Honoria Patterson esperava do casamento que fazia valer o risco terrível de se encontrar presa a um homem como Winterbourne, por exemplo.

Havia possibilidades muito piores, ela lembrou. Possibilidades que surgiam diretamente do centro de um pesadelo. O que podia valer o risco de se prender a um monstro como a criatura que ela encontrou no corredor, no lado de fora do quarto de Ariel cinco anos antes?

Charlotte percebeu que Honoria estava parada na porta e parecia extremamente preocupada.

- Está se sentindo mal, Srta. Arkendale? - Não, de modo algum. - Charlotte respirou profundamente. Afinal, o que estava

acontecendo com ela? pensou. Estendeu os braços e apoiou as duas mãos na mesa. Com esforço conseguiu o que achou que devia ser um sorriso muito profissional. - Peço desculpas. Vou chamar minha governanta para acompanhá-la até a porta.

Uma batida na porta interrompeu Charlotte quando ela estendeu a mão para a tira de veludo para chamar a governanta. A porta se abriu.

A figura majestosa da Sra. Witty apareceu imponente. - O Sr. St. Ives está aqui para falar com a senhora. Diz que tem hora marcada. Os pensamentos mórbidos e as perguntas sem resposta desapareceram da

mente de Charlotte. Baxter estava ali. Tentou sem resultado disfarçar a onda de prazer que a invadiu.

- Muito obrigada, Sra. Witty. A Srta. Patterson estava de saída. Quer acompanhá-la, por favor?

A Sra. Witty recuou e olhou para Honoria. - Sim, senhora. Honoria saiu para o corredor com passo leve, muito diferente de quando entrou

na sala de Charlotte, um pouco antes. Ocorreu a Charlotte que acabava de ser presenteada com outra oportunidade de

fazer outra experiência com Baxter. - Oh, Srta. Patterson, um momento, por favor. - Charlotte saiu de trás da mesa,

foi até a porta e olhou para o hall. Baxter estava ali parado, envolto naquela inabalável aura de calma infinita que

intrigava e perturbava Charlotte. Outros podiam interpretar aquele ar de segurança como a paciência de um indivíduo equilibrado e extremamente tedioso, mas ela sabia que era outra coisa. Era a manifestação do autodomínio e da sua força interior.

Charlotte respirou rapidamente quando o viu. Baxter vestia um casaco azul-escuro de corte austero, um pouco amarrotado, mas que, mesmo assim, revelava a linha poderosa dos ombros. A gravata com nó comum, o calção justo e as botas ficavam bem nele, ela pensou. Evidentemente ele pouco se importava com a moda. Era um homem de profunda sensibilidade.

Os olhos deles se encontraram os de Baxter brilhantes atrás das lentes. Charlotte teve a impressão desconfortável de que ele sabia exatamente o que ela estava pensando. Ficou aborrecida quando sentiu o calor intenso no rosto. Ela era uma senhora de idade avançada e com muita experiência do mundo para corar, pensou, censurando-se.

- Mais alguma coisa, Srta. Arkendale? - Honoria perguntou cortesmente.

Charlotte deu um passo para o hall. - Srta. Patterson, antes de se retirar, posso apresentar-lhe o Sr. St. Ives? -

Honoria voltou-se para Baxter. - Ele é o meu assistente. - Sr. St. Ives - Honoria murmurou. - Srta. Patterson. - Baxter inclinou a cabeça num gesto brusco. Charlotte observou atentamente a expressão de Honoria. Não viu nenhum sinal

de surpresa, curiosidade ou qualquer coisa indicativa de que ela desconfiava de que Baxter fosse alguma coisa mais além do que dizia ser, um comum homem de negócios.

Extraordinário, Charlotte pensou. Conteve a tempo o impulso de balançar a cabeça, incrédula, e sorriu para Honoria.

- O Sr. St. Ives é de grande ajuda no meu trabalho. Não sei o que eu faria sem ele.

Os olhos de Baxter brilharam. - A senhorita me lisonjeia. - De modo algum, St. Ives. O senhor é inestimável. - Fico feliz por ouvi-la dizer isso. Honoria sorriu vagamente para os dois. - Se me derem licença, tenho de fazer muitas visitas ainda hoje. Ela se voltou e saiu da casa sem olhar para trás. Charlotte esperou a Sra. Witty fechar a porta. Depois voltou para a sala e fez

sinal para Baxter entrar no seu sanctum. - Entre, Sr. St. Ives. Temos muito que conversar. Baxter atravessou o hall. - A senhorita não sabe nem a metade. Ela ignorou a observação e olhou para a governanta. - Quer, por favor, trazer o chá, Sra. Witty? - Sim, senhora. - A Sra. Witty foi para a cozinha. Charlotte fechou a porta e virou de frente para Baxter. - A Srta. Patterson nem hesitou quando os apresentei. Evidentemente ela o

aceitou como meu assistente sem nenhuma dúvida. - Eu disse que não teria dificuldade para representar o papel - ele disse com um

leve sorriso. - A senhorita é a única que já questionou minha espantosa habilidade para fazer o papel de bolo de batata.

A seriedade dele a fez ficar imóvel. - Qual é o problema, senhor? Ele foi até a janela. - Ontem à noite, depois que a deixei, pensei muito. - Eu também. - Duvido que tenhamos chegado às mesmas conclusões. - Sr. St. Ives, não estou compreendendo aonde quer chegar. - Há certas coisas que preciso explicar. - Que coisas? - Charlotte perguntou, com uma vaga inquietação. Por acaso ele

teria se esquecido da breve explosão de paixão da noite anterior? - Senhor, está muito misterioso hoje. Algum problema?

- Com todos os demônios. Estamos empreendendo uma caçada a um assassino. É claro que há problemas. Para sua informação, Charlotte, este tipo de aventura não é uma ocupação comum para senhoras. Também não é considerado um esporte para cavalheiros.

- Compreendo. - Ela procurou defesa no orgulho. - Se tem dúvidas, é claro que pode pedir demissão do cargo.

- Temo não estar mais representando o papel de assistente, por mais perfeito que eu seja para o cargo.

Acabou. Tão depressa. Antes de me dar oportunidade para conhecê-lo. Baxter ia embora. A intensa sensação de perda a alarmou. Isso era ridículo. Mal conhecia o homem. Precisava controlar as próprias emoções.

- Talvez queira ter a bondade de me explicar, senhor? - ela disse secamente. - Suponho que é melhor começar do começo. - Baxter olhou para ela finalmente.

Charlotte não conseguia decifrar a expressão dos olhos dele. - Não foi por coincidência que me candidatei a esta posição. Eu já havia localizado John Mareie com a intenção de descobrir tudo que fosse possível sobre suas finanças.

- Deus do céu. - Um arrepio percorreu o corpo de Charlotte. Ela sentou-se devagar numa poltrona. - Por quê?

- Minha tia era muito amiga de Drusilla Heskett. Ela me pediu para investigar o assassinato. As pistas levavam diretamente a você. Na verdade, começavam com você.

- Meu Deus. - Ela acreditava que você era responsável pela morte da Sra. Heskett. - Com todos os demônios. - Fosse o que fosse que estava preparada para ouvir,

certamente não era isso. Por um momento, Charlotte ficou sem fala. - Sim, eu sei - Baxter murmurou. - Eu avisei que isto seria difícil de explicar. - Deixe-me ver se entendi bem. Sua tia acredita que eu matei a pobre Sra.

Heskett? Mas por que ela ia pensar isso? - O fato de a Sra. Heskett ter recentemente pago a você uma grande soma em

dinheiro. Charlotte ficou ofendida. - Mas isso foi por meus serviços. Eu já disse, investiguei, a pedido de Drusilla

Heskett, a vida de alguns cavalheiros que queriam se casar com ela. Baxter passou a mão no cabelo. - Sei disso agora. Mas minha tia não sabia. Aparentemente a Sra. Heskett honrou

seu pedido de manterem segredo seus serviços. Ela jamais contou para minha tia a natureza dos negócios que tinha com você. Depois do assassinato, Rosalind imaginou o pior.

- Compreendo. Exatamente o que sua tia deduziu do fato de a Sra. Heskett ter me pago uma grande soma em dinheiro?

- Ela concluiu que você estava chantageando Drusilla. - Chantagem - Charlotte gemeu, cobrindo o rosto com as mãos. Visões da ruína

de sua carreira conquistada a duras penas, provocada por rumores de desonestidade de sua parte, passaram por sua mente. - Isto fica cada vez pior. Passamos do incrível para o bizarro.

- Tem razão. - Baxter caminhou vagarosamente para a cadeira em que ela estava na frente da mesa.

Charlotte ergueu a cabeça e o viu segurar com força a cadeira de mogno polido. Por um motivo que não sabia explicar, olhou fascinada para as mãos fortes e hábeis.

- Continue senhor. Sinto que tem mais para dizer. - Uma vez convencida de que você era uma chantagista, não foi difícil para

minha tia chegar à conclusão de que também tinha assassinado a Sra. Heskett - Não, acho que não. Posso perceber como uma suposição falsa leva a outra. - Você e minha tia sem dúvida se dariam às mil maravilhas. As duas pensam do

mesmo modo errático. - Continue Sr. St. Ives. Termine sua história. - Como eu disse, a lógica levou-me a Mareie, seu assistente. - Como assim? Ele deu de ombros. - Concluí que, se havia chantagem, fazia sentido começar com a investigação das

finanças.

Charlotte admirou o brilhantismo do raciocínio. - Como descobriu que John Mareie trabalhava para mim? - Não foi difícil. Também tenho um assistente. Charlotte estremeceu. - É claro. - Eu o instruí para consultar meus banqueiros, que investigaram os seus. Não

apenas fiquei sabendo da existência de Mareie, como também descobri que ele estava procurando alguém para substituí-lo.

- Então se apresentou como candidato. - Charlotte soltou o ar dos pulmões lentamente. - Muito inteligente da sua parte, senhor.

Ele hesitou e depois acrescentou com voz neutra: - Tenho alguma experiência dessas coisas. - Que coisas? Passar por assistente ou espionar? - Na verdade, ambas. - Olhou para as mãos que seguravam ainda o espaldar da

cadeira na sua frente. Então ergueu os olhos outra vez sem nenhuma expressão. - No que se refere a negócios, com o passar dos anos consegui uma fortuna considerável.

- Uma fortuna. - Era um choque atrás do outro, ela pensou, atordoada. - Na verdade, duas. A minha e a do meu meio-irmão. - Compreendo. - Charlotte engoliu em seco. - E aparte de espionagem? - Eu prefiro não usar a palavra espionagem. Ela entrecerrou os olhos. - Os espiões têm uma reputação bastante desagradável, não têm? Um bando

desonesto e perigoso, sem nenhuma honra. - Certamente. - A linha forte do queixo ficou mais rígida. - A profissão pode ser

necessária, mas não é considerada honrada. Charlotte sentiu-se péssima. Ele havia merecido o insulto, mas por algum motivo,

ela desejou não ter cedido ao impulso de retaliar. - Peço desculpas - ela disse bruscamente. - Cavalheiros não fazem espionagem. - Não, não fazem. - Baxter sequer tentou se defender. - Entretanto, um homem de honra - ela acrescentou, delicadamente - pode se

oferecer às autoridades para uma missão clandestina. - Quero esclarecer que não me apresentei como voluntário - Baxter disse,

secamente. - Meus conhecimentos de química chamaram a atenção das autoridades. Um cavalheiro num alto posto procurou meu pai e perguntou se eu estaria disposto a ajudar nas investigações. Meu pai me consultou e concordei.

- Quem exatamente é o seu pai? - O quarto conde de Esherton. - As mãos de Baxter apertaram o espaldar da

cadeira. - Ele morreu há dois anos. - Esherton. - Charlotte estava perplexa. - Certamente não vai me dizer que é o

quinto conde de Esherton? Isso seria demais, senhor. - Não. Sou filho ilegítimo, Charlotte, não um conde. - Ainda bem, graças a Deus por isso, pelo menos. Baxter pareceu surpreso com a reação dela. - Meu meio-irmão, Hamilton, é o atual conde de Esherton. - É um grande alívio saber disso. As sobrancelhas de Baxter se ergueram acima dos óculos. - É mesmo? - Definitivamente. Do contrário, as coisas ficariam muito mais complicadas. A

última coisa que preciso é de um conde na minha casa. - De repente se lembrou. - Qual o nome de sua tia?

- Rosalind, Lady Trengloss. - Deus do céu. Outro título. - Charlotte franziu a testa. - Trengloss. Creio que

Drusilla Heskett a mencionou brevemente. - Como eu disse a Sra. Heskett era muito amiga da minha tia. Charlotte assentiu balançando a cabeça com ar cansado. - É natural que tenha concordado em investigar o assassinato para sua tia. Eu

teria feito o mesmo no seu lugar. Baxter sorriu tristemente. - É muita compreensão da sua parte. - Posso supor que está me dizendo tudo isso porque chegou à conclusão de que

afinal eu não sou uma chantagista assassina? - Eu nunca me convenci disso, desde o começo. - Obrigada por isso, pelo menos. - Porém, existiam certas dúvidas. Minha abordagem desses assuntos consiste em

seguir a linha lógica da investigação até descobrir evidência em contrário. - Deve ser o cientista que há no senhor. - Charlotte olhou atentamente para a

ponta da pena que tinha na mão. - E qual das provas que descobriu o convenceu da minha inocência, Sr. St. Ives?

- Para começar, você aparentemente não conhecia o interior da casa de Drusilla Heskett.

Charlotte ergueu os olhos rapidamente. - Como disse? - A Sra. Heskett foi assassinada em casa. No seu quarto, para ser mais exato. - Sim, eu sei. - Quando chegamos ao topo da escada ontem à noite, você hesitou. Não sabia

qual era o quarto dela até descobrirmos onde estavam seus objetos pessoais. - Compreendo. - Charlotte engoliu em seco. - Muito lógico. - Além disso, você parecia não saber o que estava procurando. Achou o livro de

desenhos por acaso e, de um modo geral, parecia não ter idéia do que podia nos fornecer uma pista. Evidentemente não estava lá para recuperar alguma evidência específica que pudesse incriminá-la.

Sem dúvida ela devia estar satisfeita com o fato de a capacidade lógica de Baxter o ter levado à conclusão da sua inocência. Mas por algum motivo continuava deprimida. O que tinha esperado ouvir? Que bastou um olhar para Baxter confiar nela? Ridículo.

- Então - ela disse com o que esperava que fosse a maior dignidade naquelas circunstâncias, - uma vez resolvido o assunto da minha culpa, naturalmente deseja pedir demissão para tratar da sua vida.

- Não exatamente. - Perfeitamente razoável, dadas as circunstâncias. Afinal, não precisa mais

continuar sua investigação a meu respeito. O melhor que tem a fazer... - Não terminou a frase, e só então se deu conta das últimas palavras dele. - O que quer dizer com não exatamente?

Baxter tirou as mãos do espaldar da cadeira e atravessou a sala. Parou na frente da estante de livros, de costas para ela.

- Quero continuar a trabalhar para você nesta investigação, Charlotte. De repente, ela ficou animada. - Quer mesmo? - O problema que nos uniu permanece - ele disse. - O assassinato da Sra.

Heskett ainda não foi resolvido. Você e minha tia querem as respostas. - Sim. - Charlotte começava a se sentir muito mais satisfeita. - Sim, nós

queremos senhor. E certamente há muita verdade no velho provérbio de que duas cabeças funcionam melhor do que uma.

- Mas terá de haver uma pequena mudança na nossa sociedade.

Charlotte sentiu um arrepio de expectativa. - Uma mudança? Baxter voltou-se para ela e cruzou as mãos nas costas. - Temo que me seja impossível continuar no papel de seu assistente. - Admito que tive dúvidas a esse respeito, mesmo depois que minha irmã e

minha governanta afirmaram que não devia me preocupar. Porém, acho que a reação da Srta. Patterson à sua pessoa prova que sem dúvida poderá continuar a representar esse papel perfeitamente.

- O problema - Baxter disse, cautelosamente - é que nossa investigação provavelmente nos conduzirá ao círculo dos conhecidos de Drusilla Heskett.

- Sim, é claro. O que tem isso? - O círculo de conhecidos da Sra. Heskett está relacionado com o de minha tia. E

muitas pessoas que fazem parte dele me conhecem. - continuou com um sorriso frio. - Os que não me conhecem pessoalmente já ouviram falar de mim. Eu sou o filho bastardo de Esherton, afinal. Na alta roda, será impossível para mim passar despercebido.

- Compreendo. - A mente de Charlotte funcionava febrilmente. - Precisamos encontrar outro pretexto para sermos vistos juntos com freqüência.

- Passei grande parte da noite considerando o problema - continuou Baxter, depois de uma pausa. - Acredito ter examinado todas as possibilidades.

Charlotte sorriu numa expectativa ansiosa. - E então? - Então, cheguei à conclusão inevitável de que existe apenas uma razão social

aceitável para passarmos muito tempo juntos. - Estou ansiosa para ouvir. - Um noivado. Charlotte ficou sem respirar por alguns atônitos segundos. - Como disse? - Você e eu devemos anunciar que estamos noivos. - Baxter sorriu brevemente. -

E em vista dessa situação, devo insistir para que comece a me chamar de Baxter.

Capítulo VI Baxter estava preparado para a explosão. Porém, nem com seu extenso

conhecimento das substâncias voláteis, foi capaz de prever a reação inicial de Charlotte.

Ela ficou completamente imóvel. Arregalou os olhos, depois quase os cerrou. Abriu e fechou a boca duas vezes.

Então ela explodiu. - Um noivado? - Charlotte saltou da cadeira com o ímpeto de uma erupção do

célebre Vesúvio. Olhou para ele incrédula, de trás da barricada da sua mesa. - Ficou louco, senhor?

- É o que parece. - Baxter se perguntou brevemente por que estava tão ofendido com aquela reação. Era o que esperava. Por que diabo ela ia ficar feliz com a perspectiva de representar o papel de sua noiva?

Entretanto, considerando o fato de que ele havia passado grande parte da noite praticamente em claro, seria agradável ver um pouco menos de choque e consternação nos olhos dela. Ele não foi o único dominado por uma explosão de paixão na noite anterior.

- É uma sugestão insana. - Charlotte visivelmente se esforçava para manter a compostura. - O que pôs essa idéia na sua cabeça?

- Pensei ter deixado bem claro. - Tinha trabalhado arduamente na lógica da coisa toda. Charlotte era uma mulher inteligente. Devia ser capaz de ver o problema e a solução com a mesma clareza com que ele via. - Se vamos continuar com a investigação no círculo de amizades de minha tia, não pode continuar me apresentando como seu assistente. Não vai funcionar. Precisamos de uma razão que todos possam compreender para explicar nossa conexão.

- Uma razão que possa ser compreendida - ela disse atônita. - Sim. De repente, Baxter sentiu uma necessidade premente de começar a andar pela

sala. Só com esforço conseguiu ficar parado onde estava. Andar de um lado para o outro indicava um estado emocional instável. Suas emoções jamais eram instáveis.

- Acha que essa é uma razão perfeitamente compreensível? - Se puder pensar numa desculpa melhor, ficarei feliz em ouvi-la. - Deve haver um pretexto mais razoável. - Charlotte tamborilou com os dedos na

mesa. - Dê-me um momento para pensar. - Não se apresse. - A sensação de impaciência cresceu. Procurando se livrar dela,

Baxter apanhou o livro que estava sobre a mesa mais próxima e leu distraidamente o título na capa de couro. Quando viu o nome de Byron, praguejou em voz baixa e largou o livro como se estivesse queimando suas mãos.

- Podemos dizer que nos conhecemos devido a um interesse mútuo em química. - Charlotte disse, falando devagar. - Diremos que nos conhecemos na reunião de uma sociedade científica.

- Isso explicaria nosso primeiro encontro e uma conversa ocasional em público, mas não muito mais.

- Há outra possibilidade. Sem dúvida ela estava ansiosa para encontrar uma alternativa, ele pensou

contrariado. Evidentemente a idéia do noivado, mesmo de um noivado falso, era anátema para ela.

- Muito bem, qual é? Charlotte olhou de viés para ele, depois para um globo perto da janela. - Podemos permitir que sua tia e seu círculo de amizades acreditem que estamos

tendo um... relacionamento romântico. - Eu diria que essa é a essência do meu plano. - Estou falando de uma espécie de relacionamento romântico não formal. -

Charlotte corou intensamente e continuou a olhar para o globo. - Que estamos tendo uma ligação amorosa.

- Com todos os demônios. Quer que todos pensem que estamos tendo um caso. É a idéia mais idiota que já ouvi.

Ela levantou um pouco o queixo. - Para mim parece uma idéia perfeitamente razoável. - Não no meu caso. - O que quer dizer com isso? - Virou a cabeça rapidamente, mais corada ainda. -

Oh, meu Deus. Certamente não está dizendo que não se interessa por mulheres desse modo? Eu sempre soube que o Sr. Mareie não tinha inclinação para isso, mas depois da noite passada, eu, bem, tive a impressão de que não é o seu caso. Que tem inclinações. Desse tipo.

- Definitivamente tenho inclinações - Baxter disse, calmamente. - Mas não as introduzo na sociedade.

- Como disse? Baxter suspirou. A conversa estava ficando muito pior do que esperava. - Não sou do tipo que tem seus casos à vista de toda a sociedade. Para falar

francamente, não sou meu pai. - Compreendo. - Mas ela parecia intrigada. - Charlotte, as pessoas que me conhecem sabem muito bem que eu jamais

ostento uma amante, especialmente uma mulher relativamente jovem e solteira, na sociedade. Estaria completamente fora de caráter, se compreende o que quero dizer.

- Acho que começo a compreender a situação. É um cavalheiro, de coração, senhor. É muito nobre de sua parte se preocupar com a minha reputação, mas pode estar certo de que não me preocupo com o que os outros dizem.

- Pois acho melhor se preocupar, se espera continuar com sua profissão, quando tudo isto estiver terminado. - Foi um tiro no escuro, mas a única coisa que ele conseguiu pensar no momento.

Ela arregalou os olhos. - Deus do céu. Eu não havia considerado esse aspecto. Acredita mesmo que os

comentários sobre uma ligação romântica entre nós dois poderiam prejudicar meu trabalho?

Baxter viu uma abertura e atacou sem piedade. - A sociedade pode ser muito volúvel e extremamente hipócrita em relação a

esse tipo de coisa. Deve saber que as senhoras que espera atrair como clientes sempre exigem das pessoas que empregam padrões de conduta muito mais altos que os delas.

- Compreendo. - Charlotte olhou por algum tempo para as próprias mãos. - Minha governanta, a Sra. Witty me contou histórias de senhoras elegantes que têm diversos romances clandestinos, mas não hesitam em demitir uma criada que se deixa engravidar pelo lacaio.

- Exatamente. Essas senhoras certamente relutarão em procurar os serviços de uma mulher que teve um caso notório com um homem da minha posição.

- Sua posição? - Como já disse, sou filho bastardo. - Um filho bastardo que parece obcecado pela necessidade de evitar os

comentários da sociedade. - Talvez eu queira evitar comentários maldosos porque convivi com eles desde

que nasci. - Sim, é claro. - Ela se recostou na cadeira. - Aceite minhas desculpas, senhor.

Não havia considerado seus sentimentos sobre o assunto. Deve ser difícil para o senhor, às vezes.

- Digamos apenas que o escândalo não é um dos meus pratos favoritos. - Baxter não gostou da solidariedade que viu nos olhos dela. Finalmente ele cedeu à inquietação que ameaçava consumi-lo e caminhou deliberadamente para a janela. - Tive todo o escândalo que podia suportar nos últimos trinta e dois anos.

- Sem dúvida. Ele pôs a mão no peitoril da janela. - O que eu contei a meu respeito na nossa primeira entrevista é a pura verdade.

Sou tão inofensivo quanto um bolo de batata. E o que é mais importante, prefiro ser assim. Trabalhei arduamente para conseguir uma vida tranqüila e ordenada que não me obrigue a freqüentar a sociedade. Criei o hábito de evitar situações capazes de provocar maledicências. Amo minha privacidade acima de tudo.

- Perfeitamente compreensível. Baxter olhou para o jardim molhado de chuva e viu cenas do seu passado. - Não tenho romances escandalosos com belas e ousadas viúvas. Não permito

que a paixão instale o caos na minha vida. Não me envolvo em relacionamentos que me obriguem a defender a honra da minha amante ao amanhecer. Não tenho brigas escandalosas com minha amante no meio de um salão de baile enquanto meu filho de cinco anos assiste a tudo do andar de cima.

- Acredito nisso. Os dedos de Baxter apertaram com força o peitoril da janela. - Não tenho filhos ilegítimos que precisam responder com a força dos punhos às

provocações dos colegas. Não gero filhos aos quais serão negadas para sempre as terras e a herança que por direito lhes pertence.

- Resumindo, Sr. St. Ives, não conduz sua vida pessoal como seus pais conduziram as suas. É isso que está me dizendo?

- Sim. - Que diabo tinha dado nele, Baxter pensou. Procurou se descartar das velhas imagens. Jamais teve intenção de dizer essas coisas para Charlotte. Nunca comentava suas lembranças pessoais com pessoa alguma.

- Eu o congratulo senhor - Charlotte disse com voz muito baixa. - E o admiro. Baxter se voltou tão rapidamente que bateu com o cotovelo no globo. O mundo

rodopiou e caiu. Furioso com o gesto descuidado, tão pouco característico e que denunciava sua falta de controle, estendeu o braço rapidamente e apanhou o globo antes que caísse no chão.

- Maldição. - Sentindo-se como um completo idiota, concentrou-se em arrumar o globo exatamente como estava antes, no peitoril da janela.

Então, olhou para Charlotte, que o observava atentamente. - Pelo amor de Deus, por que diz que me admira? - Evidentemente, o senhor é um homem com grande força de vontade e bravura.

Criou suas próprias regras. Embora não tenha o título que por direito devia ser seu, possui honra e coragem.

A sinceridade daquelas palavras o deixou perplexo. Para disfarçar seu espanto, cruzou os braços e encostou o ombro na parede. Então procurou refúgio no humor frio.

- Muita bondade sua dizer isso. - Nesse ponto, temos algo em comum. - Charlotte tocou no tinteiro de prata

sobre a mesa. - Não são somente os filhos ilegítimos que muitas vezes vêem, sem poder fazer nada, sua herança ser roubada. Minha irmã e eu perdemos quase tudo a que tínhamos direito para o segundo marido de minha mãe.

- Winterbourne. - Sim. - Charlotte fechou os lábios com força. - Sempre que penso nas coisas que

Ariel deixou de ter por causa dele, todas as coisas que eu jamais poderei dar a ela, eu... bem, estou certa de que compreende.

Baxter a observava atentamente. - Uma vez que estamos sendo completamente francos um com o outro, devo

confessar que também tenho grande admiração por você. Charlotte ergueu os olhos rapidamente. - Tem mesmo? - Sei que não há muitas opções acessíveis a uma mulher que se encontra em

situação difícil, com uma irmã para cuidar. Estou impressionado com o que conseguiu. Charlotte disse, com um sorriso de surpresa: - Muito obrigada, Sr. St. Ives. Vindo do senhor, é um elogio muito gratificante,

sem dúvida. - Dada a minha profunda admiração - ele continuou, - tenho certeza de que

compreende por que não posso permitir que destrua sua reputação por causa deste empreendimento.

O momento fugaz de compreensão mútua passou com a rapidez de uma ilusão de mágica.

Charlotte olhou furiosa para ele. - Está tentando me manipular, senhor. - Estou tentando convencê-la com lógica e razão. Se estiver certa na sua crença

de que Drusilla Heskett foi assassinada por um dos seus pretendentes, então pode ser alguém que freqüenta a alta sociedade, correto?

- Sim, com exceção de um, os últimos pretendentes da Sra. Heskett eram membros da alta sociedade - ela disse, com impaciência. - O Sr. Charles Dill, o único que não a freqüentava, morreu de ataque cardíaco quase duas semanas antes do crime.

- Certamente. Então um daqueles que poderiam suspeitar de um comportamento estranho da minha parte pode ser o assassino da Sra. Heskett.

Charlotte abriu a boca e fechou-a rapidamente. Fez uma careta. - Talvez esteja certo. - Assim sendo, dada a minha inclinação pessoal para evitar escândalo e falatórios

e seu desejo de não arruinar a chance de ampliar seu negócio, ficamos apenas com uma alternativa. Devemos anunciar nosso noivado. Teremos assim o pretexto perfeito para freqüentar a sociedade enquanto conduzimos nossas investigações.

Um silêncio tenso seguiu-se a essas palavras. - Nós? - Charlotte repetiu, delicadamente. - Continua determinada a encontrar o assassino de Drusilla Heskett, não é

verdade? - Ela era uma cliente que pode ter sido morta porque eu deixei de descobrir

alguma informação importante. - Charlotte respirou profundamente. - Devo a ela alguma justiça.

- Discordo. Não deve a ela coisa alguma. Mas sei que não posso dissuadi-la desse objetivo.

- Não, não pode. - Como já expliquei, é o meu objetivo também por causa da promessa que fiz a

minha tia. - Seus olhos se encontraram. - Ao que parece, devemos cooperar para alcançar nossos objetivos mútuos.

Charlotte balançou a cabeça lentamente num gesto que era um misto de resignação e incredulidade.

- Tudo que pensei a seu respeito no nosso primeiro encontro provou ser verdade, Sr. St. Ives.

Ele franziu a testa, intrigado.

- Como assim? - O senhor é, sem dúvida, um homem muito perigoso. - Noivo? De Charlotte Arkendale? - Rosalind bateu elegantemente com a xícara

de chá no pires. - Não acredito. Você não pode ter ficado noivo dessa criatura. Deve estar louco.

- Uma possibilidade que considerei cuidadosamente. - Baxter admitiu. - Está brincando comigo? - Rosalind olhou zangada para ele. - Sabe muito bem

que eu nunca compreendi seu estranho senso de humor. Diga-me exatamente o que está acontecendo.

- Pensei já ter explicado. É o curso lógico de ação, presumindo que deseja que eu continue com a investigação.

Ele foi até o outro lado da sala para examinar a nova moldura da lareira. O desenho caprichosamente entalhado era no estilo zamariano, como quase tudo na sala. Rosalind havia redecorado recentemente a casa. A sala de estar em estilo egípcio com o papel de parede coberto de hieróglifos, palmeiras, estátuas exóticas e colunas artificiais fora transformada numa cena rural zamariana.

Era a última de uma longa lista de alterações da grande casa da cidade. Tendo crescido ali, com a tia e a mãe, Baxter brincava no chalé etrusco, estudava no jardim chinês, praticava esgrima num templo grego e, por sorte, finalmente saiu de um monumento romano sepulcral.

Desde o dia em que foi morar sozinho, Baxter estabeleceu uma regra rígida para sua casa. Nenhuma alteração na decoração do interior seria feita apenas com o objetivo de seguir a moda do momento.

Enquanto examinava a moldura dourada da lareira ocorreu a ele que sempre havia resistido a qualquer mudança e à confusão que sempre provocava.

Quando criança, as maiores confusões de sua vida sempre pareciam vir logo após alguma forte crise emocional entre seus pais. Ambos eram especialistas na arte de escandalosas brigas de amantes e reconciliações apaixonadas. Na verdade, tinham prazer com aquelas cenas e desempenhavam seus papéis maravilhosamente na frente do público. Pouco se importavam se o público às vezes se resumia a um pequeno garoto.

Baxter temia as batalhas inevitáveis, esperava ansioso pelas reconciliações e, nos intervalos, suportava a crueldade dos amigos e colegas.

Desde a infância, começou a trabalhar para se livrar de qualquer traço da natureza turbulenta dos pais que pudesse ter herdado. Criou um modo de vida hermeticamente fechado contra emoções fortes, do mesmo modo com que selava uma proveta contra vapores contaminados.

Dizia a si mesmo que a única emoção que o interessava era a que podia encontrar no seu laboratório. Porém, agora Charlotte entrava em seu mundo auto-suficiente e ordenado e Baxter temia não resistir à tentação de fazer algumas experiências arriscadas.

Se não tivesse cuidado, as coisas podiam explodir no seu rosto. - Você está completamente convencido de que a Srta. Arkendale é inocente? -

Rosalind perguntou. - Estou. - Baxter deu as costas ao friso da lareira. - Não tenho mais dúvidas a

esse respeito. Quando a conhecer, vai concordar comigo. - Se tem certeza - Rosalind disse hesitante. - Não temos muita escolha. Ela está tão resolvida a encontrar o assassino de

Drusilla Heskett quanto você. Não posso demovê-la, portanto sou obrigado a trabalhar com ela.

- Pretende usar esse noivado fictício como pretexto para estarem sempre juntos.

- É o único meio. Rosalind não estava convencida. Apoiou a mão no braço elegantemente curvo do

sofá verde zamariano e olhou atentamente para Baxter. - Não sei o que dizer. - Na verdade, não quero que diga nada. Nem aos seus amigos mais íntimos.

Ninguém deve saber que este noivado é uma fraude, compreendeu? Absolutamente ninguém.

- Então é uma conspiração? Francamente, Baxter, não espera que eu concorde com um plano tão absurdo.

- Ao contrário, eu a conheço muito bem, Rosalind. Acho que vai gostar demais dessa intriga toda. É o tipo de representação que gratifica sua queda para o melodramático.

Rosalind procurou parecer ofendida. - Que coisa para dizer à sua tia. - Pense do seguinte modo. Um cavalheiro do seu círculo social pode ser um

assassino. Rosalind estremeceu. - Tem certeza de que está procurando um homem? Pode ter sido uma mulher. Baxter deu de ombros. - A Sra. Heskett enviou uma carta para Charlotte dizendo que achava que

alguém estava tentando matá-la. Estava preocupada pensando que algum dos seus pretendentes rejeitados podia querer se vingar.

- Compreendo. Isto pode ser um empreendimento muito fascinante, Baxter. - Exatamente o que pensei que acharia. Charlotte e eu precisamos começar de

algum lugar, portanto pretendemos investigar os pretendentes da Sra. Heskett. O último a ser rejeitado foi Lorde Lennox.

- Lennox. - Rosalind franziu a testa. - Drusilla gostou muito dele, durante algum tempo. Dizia que o homem tinha muito vigor.

- Vigor? - Rosalind sorriu. - Drusilla gostava de vigor num cavalheiro. Gostava também num lacaio, num

cocheiro ou num cavalariço. Para ser franca, Drusilla gostava de qualquer homem capaz de acompanhar seu vigor na cama.

- Compreendo. - Baxter tirou os óculos e, depois, o lenço do bolso. - Supondo que o assassino foi um dos seus amantes, podemos estar olhando para uma longa lista de assassinos em potencial.

- Duvido. Poucas das conquistas dela teriam motivo para matar. Talvez eu possa ajudar em alguma coisa, Baxter.

- Eu gostaria de lhe pedir um favor. - O que é? Baxter pôs os óculos. - Eu agradeceria muito se levasse minha noiva para fazer compras. - Fazer compras. - E a irmã dela também. Pode mandar a conta para mim. Os olhos de Rosalind brilharam. - Meu Deus, Baxter, estou atônita. Isso é tão contrário a tudo que sei de você.

Acho que começa a parecer um pouco com seu pai. - Obrigado pelo aviso, ficarei atento. Três dias depois, Charlotte, olhando para o salão de baile repleto, sorriu com

indisfarçado prazer. - Devo dizer Sr. St. Ives, que seja qual for o resultado do nosso

empreendimento, serei grata pelo resto da vida à sua tia.

Baxter olhou para ela por cima da borda da taça de champanhe. - Minha tia? - Lady Trengloss fez da minha irmã um sucesso espetacular. Sei que não era

esse o objetivo desta noite, mas estou encantada mesmo assim. Ariel tem tido par para quase todas as danças. Olhe para ela. É um diamante de primeira água, não é?

Baxter franziu a testa procurando por Ariel entre os pares que dançavam. Não foi difícil encontrá-la. Ela era mais alta do que a maioria das outras mulheres. Baxter a viu rodopiando numa valsa exuberante com um jovem que parecia deslumbrado.

- Ela parece estar se divertindo - ele disse. - Sim. Meus pais ficariam orgulhosos. Lady Trengloss estava certa quando

afirmou que Ariel devia usar azul e dourado. As cores são perfeitas para ela. Ocorreu a Baxter que Charlotte estava muito bem com o vestido de cetim

amarelo-canário. Acentuava as chamas escuras dos cabelos e enfatizava o dos olhos. O decote era quadrado e ousado, revelando os ombros macios e sugerindo decorosamente a curva dos seios. Na cabeça tinha uma pequena touca delicada, com uma pluma amarela.

Era a primeira vez que ele a via sem um vestido de trabalho, de gola alta e mangas compridas. Baxter não entendia de moda, mas em sua opinião, ela era a mulher mais atraente no salão.

Ele tomou um pouco de champanhe. - Azul e dourado são bonitos, mas eu prefiro amarelo. - Amarelo ficaria horrível em Ariel. Baxter olhou para ela de soslaio. - Eu estava me referindo ao seu vestido. - Oh. - Charlotte exclamou com um sorriso brilhante. - Muito obrigada. O senhor

fica muito bem de preto e branco, Sr. St. Ives. Combina bem. Baxter não sabia se era um elogio ou não. De repente, achou que devia explicar

sua limitada seleção de trajes de noite. - Como eu já disse, raramente freqüento a sociedade. - Sim, o senhor mencionou o fato de tentar evitar a alta-roda. - Não há nenhuma razão lógica para se ter muitos trajes de noite quando se tem

uma vida social limitada. - Muito prático de sua parte usar o branco e preto. - Não tenho prestado muita atenção aos recentes e elegantes nós de gravata. - Compreendo. - Acho uma idiotice um homem usar um nó de gravata tão elaborado que mal

pode mexer a cabeça. - Muito se pode dizer a favor da simplicidade - Charlotte concordou

delicadamente. Baxter afundava mais a cada segundo. Olhou em volta, à procura de inspiração e

pela primeira vez ficou aliviado quando viu sua tia surgir no horizonte. Rosalind estava acompanhada por Lorde Lennox.

- Hora de trabalhar - ele disse em voz baixa. - O homem que vem em nossa direção com Rosalind foi o último pretendente de Drusilla Heskett.

- O homem calvo com suíças espessas é Lorde Lennox? - Sim. Pensei que você o reconheceria imediatamente. Charlotte franziu a testa. - Eu nunca o vi. Nem sempre é necessário conhecer pessoalmente o cavalheiro

para descobrir se ele é um jogador ou um devasso. - Não, creio que não. Charlotte franziu os lábios. - Porém, eu pensei que ele fosse mais jovem.

- Por que pensou isso? - A descrição que a Sra. Heskett fez dele, eu imagino. - O que ela disse? - Baxter perguntou. - Alguma coisa a respeito de Lennox parecer um garanhão na cama. Disse que

ele tinha vigor. Baxter se engasgou com o último gole de champanhe. - Compreendo. Por que ela o rejeitou? - Ela achava que ele era velho demais para ela e temia que seu vigor não

durasse muito tempo mais. - Ele não é nenhuma criança. Lennox tem duas filhas casadas. Seu herdeiro, o

mais novo da ninhada, está com vinte anos mais ou menos. Eu o vi há pouco na mesa do bufê.

- O herdeiro de Lennox? - Sim. O nome dele é Norris, se não me engano. Ele estava falando com

Hamilton. São muito amigos. - Quem é Hamilton? - Ah, perdoe-me. - Baxter pôs a taça vazia numa bandeja que passava por eles. -

Eu devia ter dito o quinto conde de Esherton. - Ah, sim, seu irmão. - Meu meio-irmão. - Ou isso. - Charlotte voltou-se para cumprimentar Rosalind com um sorriso

caloroso. - Boa noite Lady Trengloss. Com um largo sorriso, Rosalind parou ao lado deles. Olhou para Baxter e piscou

o olho. Ele conteve um gemido. Como havia previsto, a tia estava se divertindo a valer. Triunfante, Rosalind apresentou Lennox para Charlotte como se estivesse

entregando um prêmio. - Minha querida, permita-me apresentar um conhecido meu, Lorde Lennox. - Senhor - Charlotte murmurou. Baxter mal conseguiu disfarçar a surpresa quando a viu se curvar numa graciosa

mesura, seguida por uma elegante inclinação da cabeça. Tudo isso denunciava sua educação e sua família. Na verdade, Charlotte fora educada para uma posição muito mais alta na hierarquia social do que a que ocupava.

- Ora, ora, é sem dúvida um grande prazer, minha querida. - Lennox inclinou a calva brilhante sobre a mão enluvada de Charlotte. - Permita-me dizer que a senhorita está linda. Na verdade, é uma visão deslumbrante. Brilhante como a própria primavera.

- Muito obrigada, senhor - Charlotte murmurou. Lennox olhou para Baxter sob as sobrancelhas espessas com um ar de

cumplicidade. - Já estava na hora de encontrar uma esposa, St. Ives. Um homem na sua idade

deve ter coisas mais interessantes para fazer do que passar o tempo todo examinando produtos químicos num laboratório, não é?

- Tem razão. - Baxter evitou o olhar de Charlotte. - Coisas voláteis, soluções químicas. - Lennox inclinou-se um pouco para Baxter e

disse em voz baixa, para que Charlotte e Rosalind não pudessem ouvir. - Se fosse você, eu as evitaria completamente agora que está para se casar. Nunca se sabe o quanto pode danificar algo vital numa explosão. Seria uma pena ir para a cama na noite do casamento e descobrir que acidentalmente explodiu seus ovos em alguma maldita experiência.

- Vou lembrar-me do seu conselho - Baxter disse. - Esse é o espírito, St. Ives. - Lennox bateu amistosamente no ombro de Baxter.

- Alguma objeção se eu pedir à sua encantadora noiva para dar umas voltinhas comigo

na pista de dança? Baxter pensou no assunto e descobriu que tinha algumas objeções. A idéia de

Charlotte nos braços de outro homem, mesmo nos braços de um homem com idade para ser seu avô, era estranhamente desagradável. Mas ele viu o brilho nos olhos de Charlotte e achou melhor não dizer nada.

- Tenho a impressão de que a minha noiva gostaria de um pouco de exercício. - Baxter ajustou os óculos. - Estou certo Charlotte?

- Será um prazer dançar com o senhor, Lorde Lennox. - Charlotte apoiou a mão delicadamente na manga dele.

- Excelente. - Lennox a conduziu galantemente para a pista de dança. - Vamos começar, está bem?

Baxter viu os dois juntarem-se aos outros pares. - Pare de franzir a testa, Baxter - Rosalind murmurou. - Vão pensar que está se

preparando para desafiar o pobre Lennox para um duelo. - O dia em que eu desafiar um homem para um duelo por causa de uma mulher

vai ser o dia em que deixarei de estudar química para me dedicar à alquimia. - Às vezes você me irrita. Onde está sua paixão? Sua sensibilidade? Suas

emoções? Não, não precisa responder. - Rosalind olhou atentamente para a multidão. - Acredita mesmo que Lennox pode ter assassinado a pobre Drusilla?

- Eu duvido. Ele não tem um motivo financeiro, para começar. E em minha opinião, não tem o temperamento para cometer um assassinato.

Rosalind olhou para ele, surpresa. - Então, por que estamos perdendo tempo com este pequeno espetáculo esta

noite? - Eu expliquei que Charlotte está convencida de que a carta de Drusilla Heskett

se referia a um dos seus pretendentes mais recentes. Lennox é um deles. Devemos proceder com lógica.

- Acho que isso faz sentido. Muito bem, Lennox é tudo que temos no momento. Descobri que Randeleigh e Esly estão no campo, onde ficarão alguns dias. Não devem voltar antes do fim do mês.

- Mandarei meu assistente investigá-los. - Também não posso imaginar nenhum dos dois como assassinos. - Nem eu - Baxter admitiu. Rosalind olhou pensativamente para ele. - Quer saber? Por falar em lógica, seria perfeitamente razoável você dançar com

sua noiva. - Há anos eu não danço. Nunca fui muito bom. - Não se trata disso, Baxter, eu apenas... - Rosalind não terminou a frase,

olhando para alguém que se aproximava atrás dele. Com um sorriso gelado, ela disse: - Por falar em pessoas que acreditam que eles têm um motivo para matar, aí vem Lady Esherton.

Baxter voltou-se e viu Maryann caminhando para eles. Lembrou das três cartas que tinha jogado no fogo nos últimos quinze dias.

- Com todos os demônios. - Ela não pode ter nenhum motivo para falar comigo - Rosalind disse. - Portanto,

deve ser você quem ela quer encurralar. Se me der licença, acho que estou vendo uma amiga muito querida no outro lado do salão. - Deu meia-volta e desapareceu no meio da multidão.

- Covarde. Baxter ficou sozinho para enfrentar a viúva do seu pai. Maryann estava com cinqüenta e dois anos. Tinha dezoito quando casou com o

pai de Baxter, que tinha quarenta e três. Foi o segundo casamento do conde. Do

primeiro não tinha filhos e estava desesperado por um herdeiro. Rainha da beleza da temporada, Maryann podia escolher o homem que quisesse,

mas atendendo à insistência dos pais ambiciosos, escolheu Esherton. Ele, por sua vez, precisava de uma esposa virgem com reputação imaculada e de linhagem impecável. Foi o casamento da temporada. Todos, incluindo a amante de longo tempo do conde, Emma, Lady Sultenham, compareceram às festividades.

Com seu tipo mignon, olhos cinzentos e cabelos cor de mel, Maryann era o oposto de Emma em quase tudo. Baxter às vezes se perguntava se o pai a havia escolhido para ser sua condessa porque era tão diferente da amante, belíssima, de cabelos e olhos escuros, ou simplesmente porque gostava de variar.

Dois anos depois do casamento do amante, Emma, então com trinta e sete anos, o que era considerado tarde para uma mulher ter filhos, deu à luz o primeiro filho do conde. Esherton ficou muito satisfeito com Baxter. Deu uma grande festa para comemorar o evento. Infelizmente, nada podia alterar o fato de que Baxter era ilegítimo e, portanto não podia herdar o título.

Dez anos passaram antes de Maryann conseguir finalmente produzir um herdeiro para seu senhor. Baxter sabia que não foram dez anos fáceis para ela. O conde jamais se deu ao trabalho de esconder sua afeição pelo filho ilegítimo nem sua intensa paixão por Emma.

Baxter não gostou da expressão soturna de Maryann nessa noite. Não era bom agouro. Como sempre que era obrigado a falar com ela, lembrava do pedido do pai no leito de morte para que jamais ignorassem um ao outro por mais que desejassem.

O pai os uniu até que Hamilton completasse vinte e cinco anos. Nessa noite a cena estava muito viva em sua mente com se tivesse acontecido ontem. Ele estava num dos lados da cama larga e maciça do pai, Maryann e Hamilton, do outro.

- Chegou o momento de me despedir dos meus dois filhos. - Arthur, o quarto conde de Esherton segurou as mãos de Baxter e de Hamilton. - Eu me orgulho dos dois. Vocês são tão diferentes como a noite do dia, mas ambos levam meu sangue nas veias. Está me ouvindo, Hamilton?

- Sim, pai. - Hamilton olhou para Baxter com os olhos marejados de ressentimento.

O conde olhou para Baxter. - Você é o irmão mais velho de Hamilton. Nunca se esqueça disso. - Certamente nunca vou me esquecer de que somos parentes, senhor. - Baxter

tinha uma estranha sensação de irrealidade. Era impossível acreditar que aquele homem grande, vigoroso, maior do que a vida estivesse morrendo.

A mão trêmula de Esherton apertou brevemente a dele. - Você é responsável por ele e por sua mãe. - Duvido que venham a precisar alguma coisa de mim. - Baxter sentiu a fraqueza

nos dedos antes vigorosos do pai e piscou os olhos para conter as lágrimas. - Está enganado - Arthur murmurou com voz rouca. - Providenciei isso no meu

testamento. Você tem o temperamento certo para administrar dinheiro, Baxter. Maldição, meu filho, você nasceu equilibrado e digno de confiança. Hamilton é muito jovem para administrar os bens. Você terá de cuidar de tudo até ele completar vinte e cinco anos.

- Não. - Maryann foi a primeira a compreender o significado do que o marido estava dizendo. Ela levou a mão ao pescoço. - Meu senhor, o que fez?

Arthur virou a cabeça no travesseiro e olhou para ela. A despeito da sua fraqueza, ele conseguiu uma sombra do sorriso malicioso típico dos Esherton. - Você está mais bonita do que no dia em que nos casamos minha querida.

- Esherton, por favor. O que você fez? - Não precisa se preocupar. Estou deixando Baxter encarregado das finanças da

família até Hamilton ficar um pouco mais velho. Maryann, chocada, olhou para Baxter. - Não há necessidade disso. - Temo que sim. Hamilton tem meu sangue, minha doçura. Ele precisa aprender

a controlá-lo. Não sei como tive dois filhos tão diferentes, mas é a verdade. - Esherton teve um doloroso acesso de tosse.

Baxter sentiu o pai deslizar mais um pouco para as sombras que o esperavam. - Senhor... Arthur se refez da tosse e caiu, exausto sobre os travesseiros. - Eu sei o que estou fazendo. Hamilton vai precisar da sua orientação e conselho

durante uns poucos anos. Baxter. - Pai, por favor - Hamilton murmurou. - Não preciso que Baxter administre meu

dinheiro e tome decisões por mim. Tenho idade suficiente para tomar conta das terras e da fortuna de Esherton.

- Só mais uns poucos anos. - Arthur deu uma risada rouca. - Dê a você mesmo a oportunidade de aproveitar a juventude. Quem melhor para tomar conta de você do que seu irmão mais velho?

- Mas ele não é meu irmão verdadeiro - Hamilton insistiu. - É só meu meio-irmão. - Por Deus, vocês são irmãos. - Por um momento a chama da antiga força

brilhou nos olhos cor de âmbar. O conde olhou severamente para Baxter. - Você compreendeu meu filho? Você é irmão de Hamilton. Sua responsabilidade é olhar por ele. Quero ouvir seu juramento.

Baxter apertou a mão do pai. - Eu compreendo. Por favor, procure se acalmar, senhor. - Seu juramento, por Deus. - Eu juro - Baxter disse em voz baixa. O conde se acalmou. - Equilibrado e com a mente clara. Confiável como o nascer do sol. - Fechou os

olhos. - Eu sabia que podia depender de você para tomar conta da família. Baxter libertou-se das lembranças quando Maryann parou na frente dele. - Boa noite, Baxter. - Maryann. - Você não respondeu aos meus pedidos para um encontro. Mandei três cartas. - Estive ocupado com outras coisas - Baxter disse com a cortesia gelada,

cultivada há muitos anos para essas ocasiões. - Se é sobre dinheiro, sabe que dei aos banqueiros instruções para honrar qualquer pedido que fizer.

- Isto nada tem a ver com dinheiro. Se não se importa, eu preferia discutir o assunto em particular. Vamos ao jardim?

- Em outra ocasião, talvez. Pretendo dançar a próxima valsa com minha noiva. Maryann franziu a testa. - Então é verdade que está noivo? - Sim. - Baxter viu de relance Charlotte nos braços de Lennox, dançando

animadamente. Vigor. - Compreendo. Suponho que devo lhe dar os parabéns. - Não há motivo para se dar ao trabalho. Maryann apertou os lábios. - Baxter, por favor, preciso falar com você sobre Hamilton. Estou extremamente

preocupada. Sabe muito bem que seu pai me disse que se algum eu dia precisasse da sua ajuda você não negaria.

Baxter virou a cabeça lentamente, olhou nos olhos desesperados de Maryann e compreendeu que não tinha escolha. Tinha feito um juramento ao seu pai.

Baxter inclinou levemente a cabeça, aceitando o inevitável.

- Creio que está certa senhora. Sem dúvida será melhor conversarmos no jardim.

Capítulo VII - Ouvi dizer que o senhor conhecia muito bem a pobre Sra. Heskett. - Charlotte

percebeu, contrariada, que estava um pouco ofegante. Não era fácil acompanhar o ritmo de Lorde Lennox. Ele acompanhava a música vigorosamente e ela há algum tempo não dançava. - Coisa horrível sua morte. Nos faz perguntar aonde vai parar este mundo, não é mesmo?

- Certamente. Um incidente chocante. - Lennox fez Charlotte dar uma volta rápida e larga, atravessando a metade do salão. - A senhorita a conhecia também?

- Não éramos íntimas, mas conversamos algumas vezes. Ela, bem, mencionou o senhor.

- Eu gostava muito dela. Queria casar com ela, sabia? Mas infelizmente, ela rejeitou meu pedido. Não pude acreditar quando soube que foi assassinada por um maldito ladrão. É de gelar o sangue.

- Sem dúvida. O senhor disse que gostava muito dela? - Drusilla? Meu Deus, sim. Gostava imensamente da sua companhia. Uma pessoa

muito decidida, Drusilla. Aquela mulher tinha vigor, se sabe o que quero dizer. - Ela dizia o mesmo do senhor. - Dizia mesmo? - Lennox pareceu satisfeito por um momento. - Fico feliz por

saber. Vou sentir falta dela, embora ela tivesse rejeitado meu pedido de casamento. - Piscou um olho. - Dru deixou bem claro que não se oporia a um ocasional encontro na cama, depois que resolvesse o caso do casamento, sabia?

- Compreendo. - Eu devia visitá-la todas as noites, sabe? Charlotte ergueu os olhos rapidamente. - O senhor a visitou na noite em que ela foi morta? - Não, não. Eu devia ir naquela noite. Recebi um recado dizendo que ela estava

doente e não poderia me receber. Muitas vezes imaginei o que podia ter acontecido se eu estivesse na sua casa naquela noite.

- É verdade. - Charlotte percebeu que Lennox a conduzia num curso de colisão com um homem idoso de casaco azul que dançava com uma mulher de vestido de seda lavanda. - Lorde Lennox, talvez seja melhor nós...

- Dru tinha cabeça. - Lennox executou um ágil movimento passando de raspão pelo outro par. - Compreendia que o casamento não precisa interferir com um pouco de divertimento uma vez ou outra.

- Sim. - Charlotte viu com o canto do olho o movimento da seda cor de lavanda. Sorriu para Lennox, aliviada, e pensou qual seria o melhor meio de continuar o interrogatório.

O problema era que Lennox tinha toda a aparência de ser exatamente o que suas investigações haviam concluído, bom gênio e financeiramente estável. Charlotte não podia vê-lo como um assassino. Contudo, Drusilla tinha mencionado o nome dele especificamente na sua última carta.

- Vejo que seu noivo está indo para o jardim com Lady Esherton. - Lennox anunciou, girando Charlotte em outro galope veloz. - Não o invejo. O velho conde deixou St. Ives com uma tarefa dos diabos quando o encarregou de administrar o dinheiro da família.

Charlotte lembrou-se de Baxter ter dito que administrava o dinheiro do meio-irmão. Ela tinha imaginado que era somente porque ele era bom em finanças.

- Está dizendo que o velho conde determinou no testamento que o Sr. St. Ives devia controlar a fortuna?

- Não é segredo que o velho Esherton determinou que Baxter administrasse a

herança até Hamilton completar vinte e cinco anos. Muito sensato da parte de Esherton, em minha opinião. Qualquer um pode ver que o jovem Hamilton precisa de algum tempo para amadurecer. Puxou ao pai, isso é verdade. O velho conde foi um verdadeiro terror na juventude. - Lennox fez uma pausa. - Pensando bem, ele não mudou muito com a idade. Foi um terror até o dia da sua morte.

- Compreendo. - Mas não era tolo quando se tratava da fortuna - Lennox continuou. - Quando a

herdou, estava quase com trinta anos e a administrou muito bem, sem dúvida. Baxter tem a cabeça do pai para esse tipo de coisa e o velho sabia. Mas para St. Ives é uma posição bastante desconfortável. Sempre há muito ressentimento em situações como essa.

- Certamente. De repente, Lennox pareceu preocupado. - Hamilton não é o único jovem que está levando uma vida um tanto dissipada

nestes dias. Parece que todos eles começam a sentir o ardor da juventude. Não me importo de dizer que meu filho, Norris, ultimamente tem me preocupado bastante. Ele e Hamilton são amigos, sabe?

- Suponho que ambos estão agindo um tanto desregradamente como é comum nos jovens - Charlotte disse com cautela. - Dirigindo em alta velocidade, bebendo demais, arriscando o pescoço em tolas aventuras?

- Eu queria que isso fosse tudo - Lennox disse. - Compreenda, concordo plenamente que um jovem deve aproveitar a mocidade. O diabo sabe que me meti em muitas encrencas quando tinha essa idade. Quase morri num duelo por causa de uma pequena dançarina de ópera certa vez. Andei por algum tempo com um desordeiro chamado Buli Keeley. Envolvi-me um pouco com o contrabando de conhaque francês. Esse tipo de coisa.

- Compreendo. - Apenas os velhos e inocentes prazeres da juventude. - Lennox deu outro

rodopio pelo salão. - Mas hoje em dia parece que se tornar um homem é um negócio mais arriscado do que quando eu era jovem.

- O que quer dizer? - Para começar, os antros de jogo são mais perigosos - Lennox disse muito sério.

- Um amigo de Norris perdeu todas as suas propriedades num lugar chamado A Mesa Verde. O jovem Crossmore foi para casa e deu um tiro na cabeça.

- Isso é horrível. - Avisei Norris que se ele não tomar cuidado, vou mandá-lo para uma longa

viagem pela Europa. - Deu certo a ameaça? - Norris sabe que não tolero nenhuma bobagem. Infelizmente, para o jovem

Hamilton, o pai não está presente para puxar as rédeas. Deixou a tarefa para St. Ives além da responsabilidade pela fortuna.

Com um floreado final, a música terminou. Charlotte estava ofegante. Com outra mesura e um sorriso luminoso ela disse:

- Muito obrigada, senhor, eu precisava do exercício. - Aumenta o vigor - ele garantiu, conduzindo-a para fora da pista de dança. -

Posso oferecer um copo de limonada ou champanhe? - Não, muito obrigada, acho que vou procurar Lady Trengloss. - Ah, sim, a bela Rosalind. Mulher encantadora. - Por um momento, ele pareceu

tristonho. - Imagino que deve sentir muita falta da irmã. - A mãe do Sr. St. Ives? - Sim. Emma morreu há quatro anos. Quando jovem, ela e Rosalind animavam

bastante a sociedade. Nunca havia um momento de tédio. Emma sempre foi a mais

inquieta das duas. Seu romance com Esherton durou até o dia da sua morte. Vou dizer uma coisa, é difícil acreditar que St. Ives seja filho daqueles dois.

- Por que diz isso? - O temperamento do jovem Baxter é completamente oposto ao dos pais. Oh, ele

tem alguma coisa de Esherton. Os olhos, por exemplo. E o cabelo escuro da mãe. Mas não tem o senso de humor e a animação de Emma e nem um pouco do estilo St. Ives, infelizmente.

- O estilo St. Ives? - Sabe o que dizem sobre os homens da linhagem de St. Ives. Eles fazem tudo

com estilo. Hamilton vive da herança da família, mas, sou capaz de jurar, Baxter parece que ganha a vida trabalhando para alguém.

- As aparências enganam senhor. Se me dá licença. - É claro, é claro. Gostei muito da dança. Charlotte caminhou para as portas de vidro que estavam abertas para deixar

entrar o ar no salão repleto de gente. Chegou a um largo terraço iluminado com lanternas coloridas. Aqui e ali, casais murmuravam e riam discretamente nas sombras. Mais adiante ficavam os vastos jardins.

Não viu sinal de Baxter por perto, mas estava quase certa de que ele não havia voltado para o salão.

O luar permitia distinguir os contornos das cercas vivas e das moitas fechadas. Baxter devia estar lá, em algum lugar. Ele não gostava da sociedade. Era bem dele fugir para a solidão do jardim até a hora de ir para casa.

Ela desceu os degraus de pedra e seguiu pela alameda que levava ao coração do jardim. Seus sapatos de pelica macia não faziam nenhum barulho nos velhos tijolos. A noite estava fria. Charlotte cruzou os braços para se proteger do frio. Não poderia ficar ali fora por muito tempo sem um agasalho.

Uma voz baixa e angustiada de mulher a fez parar. Viu outro casal na extremidade da cerca alta à sua esquerda. Ia continuar seu caminho quando ouviu a resposta caracteristicamente brusca de Baxter.

- Eu não sei que diabos espera que eu faça, senhora. Hamilton tem vinte e dois anos. - Baxter hesitou por um momento antes de acrescentar secamente. - E afinal de contas, ele é o conde de Esherton.

- Ele é ainda um menino em muitas coisas. - As palavras da mulher tinham um tom de desespero. - E tão parecido com o pai. Você precisa fazer alguma coisa, Baxter. Desde a morte do conde, Hamilton está cada vez mais teimoso. Pensei que era uma fase que passaria quando ele se recobrasse da perda do pai. Mas ultimamente ele e seu melhor amigo, Norris...

- O herdeiro de Lennox? - Sim. Os dois arranjaram novos companheiros e eu temo o pior. Não vão mais

aos antigos clubes à noite. Hamilton diz que prefere um que eles descobriram. Um lugar chamado A Mesa Verde.

- Muitos jovens preferem os clubes que têm atrações para os jovens, aos que seus pais freqüentavam.

- Sim, mas acredito que esse lugar não passa de uma casa de jogo. - Procure se acalmar, Maryann. Hamilton não pode perder a fortuna Esherton

numa noite de jogo. Eu tenho o controle do dinheiro por mais três anos, se está lembrada.

- Nunca pensei que viveria para agradecer a Deus a visão do conde a esse respeito, mas devo admitir que seja uma boa coisa Hamilton não ter ainda acesso à sua fortuna. De qualquer modo, tantos são os riscos que corre um jovem com seu temperamento.

- Tais como?

- Eu não sei. - Maryann ergueu a voz. - Isso é o pior de tudo, Baxter. Eu não sei a extensão dos perigos que ele corre. Ouvimos coisas, coisas terríveis sobre as atividades nesses antros do jogo.

- Você está muito nervosa, Maryann. - Não estou nervosa, estou apavorada. Ouço histórias de depravação e deboche

entre os jovens herdeiros de hoje que alarmam qualquer mãe. Tenho ouvido histórias de pessoas que deliberadamente tomam uma grande quantidade de ópio para entrar em transe, por exemplo.

- Alguns poetas podem se divertir desse modo, talvez, mas acredite, é um número muito limitado.

- Quem sabe o que acontece realmente no novo clube de Hamilton? Ouça o que eu digo meu filho não é mais o mesmo. Não me ouve. Você precisa falar com ele.

- Por que pensa que ele vai me ouvir? - Você é minha única esperança, Baxter. Seu pai o encarregou de orientar

Hamilton até ele amadurecer. Não negue isso. Nós todos ouvimos as instruções do conde.

- É espantoso, não acha? - Baxter disse pensativamente. - Mesmo do túmulo, meu pai ainda é capaz de criar confusão em nossas vidas. Imagino se ele está se divertindo com os pequenos dramas que continua a criar.

- Não fale com tanto desrespeito do conde, Baxter. Estou contando com você. Precisa deter Hamilton antes que ele nos crie algum problema sério.

Charlotte ouviu o que parecia um soluço abafado, depois o farfalhar de saia de seda e o ruído de sapatos macios na grama. Ela recuou rapidamente para a sombra quando Maryann apareceu na extremidade da cerca viva.

Charlotte viu a outra mulher voltar rapidamente para a varanda iluminada com as lanternas coloridas.

Depois de uma curta pausa, Baxter disse da extremidade da cerca. - Você ouviu o suficiente ou quer que eu faça um resumo dos detalhes mais

importantes da conversa? - Sr. St. Ives. - Charlotte virou-se rapidamente. Por um momento ela não o viu na sombra. Então ele caminhou em direção a ela.

Quando ele passou por um fraco raio de luar, ela viu a expressão preocupada no rosto dele.

- Um dia destes você precisa começar a me chamar pelo meu primeiro nome, Charlotte.

- Peço desculpas, senhor. Não tive intenção de ouvir a conversa. - Mas fez isso muito bem. - Não pude evitar de ouvir o fim da sua conversa com Lady Esherton. - Não se preocupe com isso. - Parou na frente dela. - Somos sócios, não somos? - Bem, sim, mas isso não me dá o direito de interferir nos seus assuntos de

família. - Interfira quanto quiser. A sociedade há anos vem se divertindo com os assuntos

da minha família. Terminou o interrogatório do pobre Lennox? Charlotte suspirou. - Acho que tenho toda informação que vou conseguir nesta noite. Fiquei sabendo

que ele foi convidado para visitar a senhora Heskett na noite em que ela foi morta, mas recebeu um recado dizendo que ela estava doente e não podia recebê-lo.

- Humm, duvido que ele admitisse isso se fosse culpado. - Verdade. Eu não posso imaginá-lo como um assassino. - Concordo. Se estiver satisfeita, vamos embora. - Baxter segurou o braço dela e

caminharam para a casa - Já estou farto desse redemoinho social. Se tiver de agüentar mais sou capaz de morrer de tédio.

- Eu compreendo, mas Ariel está se divertindo tanto. Detesto pedir a ela para ir embora. E só meia-noite.

- Certo. E para a sociedade, a noite está apenas começando. Não se preocupe com sua irmã. Eu tenho um plano. Nós a deixamos a cargo da minha tia, que ficará com ela até o dia nascer.

Charlotte olhou para ele. - Acha que Lady Trengloss não vai se importar? - Nem um pouco. Entre anunciar nosso noivado e apresentar Ariel à alta

sociedade, ela está se divertindo imensamente. - Subiram os degraus da varanda e entraram no salão iluminado. - Dê-me um momento para localizar Rosalind e combinar tudo.

- Eu vou procurar Ariel e dizer que ela pode ir com sua tia. Sem dúvida, ela está dançando outra vez. Ela passou a noite inteira dançando. - Charlotte ficou nas pontas dos pés procurando a irmã.

- Já a encontrei - Baxter disse. - Ah, sim lá está ela. - Charlotte sorriu quando viu Ariel girando elegantemente

ao som de uma valsa. - Dançando com aquele belo jovem com aquela gravata absurdamente complicada. Quem será ele?

- O nome dele é Hamilton - Baxter disse, secamente. - O conde de Esherton. Meu meio-irmão.

Meia hora depois, a carruagem parou na frente da casa das irmãs Arkendale. Baxter emergiu dos pensamentos sombrios que passaram por sua mente durante todo o curto trajeto. Olhou para Charlotte no banco oposto e se perguntou por que tivera a idéia idiota de terminar aquela noite mais cedo.

Na verdade, ele não queria ficar no baile, especialmente depois da conversa desagradável com Maryann, mas certamente não queria se despedir de Charlotte.

Agora estavam na casa dela. A noite havia terminado e não tinham mais tempo para conversar ou qualquer outra coisa.

Além disso, ele pensou, havia desperdiçado a última meia hora. Para um homem que se orgulhava de sua lógica e inteligência, às vezes agia como um maldito idiota.

Charlotte olhou para fora, pela janela. - Parece que chegamos Sr. St. Ives. Baxter ouviu o cocheiro descer do seu assento. - Com todos os demônios. Charlotte ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada. Baxter imaginou o que

exatamente ela estaria pensando. Em ocasiões como essa é que se fazia sentir mais acentuadamente sua falta de compreensão do sexo oposto. A única coisa de que tinha certeza era de que não queria se despedir dela.

- Ah, Charlotte... A porta da carruagem abriu. Baxter não encontrou nenhum pretexto para adiar o

inevitável. Com um farfalhar de saias, Charlotte desceu e Baxter a acompanhou, com

relutância. Segurou no braço dela para subir os degraus da frente. Tolo. Maldito idiota. Meia hora desperdiçada. Podia ter passado esse tempo na

carruagem com Charlotte nos seus braços. Em vez disso, Mergulhara em pensamentos sombrios sobre o passado e o presente. Tudo por culpa de Maryann. Ela havia arruinado seu humor e sua noite. Era típico.

Charlotte tirou a chave da pequena bolsa de contas. - Quer entrar para um conhaque, Sr. St. Ives? Baxter, perdido ainda nos pensamentos, pensou que não tinha ouvido bem. Viu

Charlotte olhar para ele, intrigada. - Um conhaque? - Tirou a chave da mão dela e abriu a porta com dedos

repentinamente desajeitados. - Eu sei que é tarde, mas temos muito que conversar. - Ela entrou rapidamente

no hall escuro e voltou-se para ele. - Com os preparativos para ser apresentada à sociedade, não tive oportunidade de lhe mostrar o pequeno desenho que descobri no livro da Sra. Heskett.

Ela queria falar de negócios com ele. - Alguma coisa errada, Sr. St. Ives? Só então Baxter percebeu que estava parado nos degraus. - O que a faz pensar que haja alguma coisa errada? - Oh, meu Deus, eu ofendi seu senso de etiqueta, não foi? - Olhou para ele como

quem pede desculpas. - Posso garantir que não precisa se preocupar com sua reputação. Ninguém a não ser seu cocheiro vai saber que entrou por alguns minutos. A Sra. Witty vai passar a noite na casa de uma prima. Só volta amanhã.

- Compreendo. Charlotte disse, com um sorriso zombeteiro: - E para todos os efeitos, estamos noivos, se está lembrado. Resumindo, Sr. St.

Ives, sua virtude está perfeitamente segura comigo. Agora Charlotte estava zombando dele. - Acho que um conhaque vai cair bem. Muito bem... - Ele entrou no hall e fechou

a porta da frente bem devagar. O luar que entrava pelas janelas nos lados da porta deu para que ele visse

Charlotte tirando a capa de noite, que pendurou num cabide na parede. Viu quando ela ergueu o braço para acender um candelabro de parede. Não

podia tirar os olhos da curva dos seios acompanhando os movimentos dos braços. Logo depois a luz acendeu, iluminando a pele macia. Com mágica de alquimista, a luz revelou o fogo escondido no cabelo escuro e transformou o amarelo do vestido em ouro. Quando ela se voltou para ele, seus olhos eram jóias profundas.

- Vamos ao meu estúdio, Sr. St. Ives? Vou mostrar o desenho da Sra. Heskett. - É claro. - Baxter ficou surpreso com a própria resposta. Um desejo intenso o dominou vendo Charlotte caminhar pela sala escura. O

gracioso movimento dos quadris sob a saia dourada aqueceu o sangue em suas veias. - O conhaque está na mesa perto da janela - Charlotte disse, acendendo a luz no

pequeno estúdio. A claridade que vinha da porta atraiu Baxter com a força de um encantamento.

Ele hesitou por mais um segundo. Talvez não fosse boa idéia entrar no pequeno estúdio. Definitivamente não seria um ato sensato e lógico. - Com todos os demônios. - Com um gesto brusco, ele afrouxou o nó da gravata

e atravessou o hall para entrar no mundo de sonho que ficava no outro lado da porta do estúdio.

- O que você disse? - Charlotte perguntou quando ele entrou no aposento. - Nada importante. - Baxter acendeu a lareira e depois foi até a mesa onde

estava o conhaque. Charlotte foi até sua mesa de trabalho e inclinou-se para abrir uma gaveta. - Eu tirei do livro a página que tem o desenho. Pelo que eu vi nenhum dos outros

tem relação com ele e só servem para desviar a nossa atenção. - Certamente. - Baxter olhou para o traseiro redondo de Charlotte quando ela se

abaixou para apanhar o desenho na última gaveta. - Só servem para desviar a atenção.

- Cada vez que tentei falar sobre o pequeno desenho com Ariel, a atenção dela se desviava para os desenhos de nus. E foi a mesma coisa com a Sra. Witty.

- E quanto à sua atenção, Charlotte? Foi atraída também pelas figuras de nus?

- Eu tenho um talento para concentrar a mente no que é importante. - Charlotte ergueu o corpo e pôs sobre a mesa a folha tirada do livro.

- É mesmo? - Ele se concentrou em servir dois copos de conhaque. - É uma das minhas grandes artes também.

Voltou-se com os copos nas mãos e olhou para ela. Charlotte estava sentada à mesa de trabalho. Baxter imaginou se ela fazia idéia do quanto à luz do estúdio aquecia as curvas dos seus seios e aprofundava o mistério dos olhos.

- Fiquei desapontada com o interrogatório de Lennox - Charlotte disse. - Ele parecia mais preocupado com os perigos que ameaçam a jovem geração de cavalheiros hoje em dia do que com a morte de Drusilla Heskett.

Baxter pôs um dos copos na frente dela e ignorou a página do livro sobre a mesa.

- Ao que parece Lennox e Maryann têm algo em comum. - Acredito que em cada geração os pais sempre se preocuparam com os perigos

que os filhos correm. - Sem dúvida. - Baxter compreendeu que se ficasse ali de pé, tomando conhaque

e olhando para os ombros nus de Charlotte e para a curva suave dos seios, não ia conter o desejo de pôr as mãos nela.

Ele foi até a janela, esperando que a vista do jardim banhado de luar diminuísse a temperatura do seu sangue, mas tudo que viu foi o reflexo de Charlotte no vidro.

- Por falar em Lady Esherton - ela disse, suavemente, - o que vai fazer a respeito do seu irmão Hamilton?

Baxter ficou tenso. - Essa é a última coisa sobre a qual quero falar esta noite. - Compreendo. Só lembrei porque tive a impressão de que era no que estava

pensando na carruagem esta noite. - Não se preocupe com meus problemas pessoais, Charlotte. Eu me encarrego

deles. - Sim, é claro. - Charlotte hesitou e depois, como se não pudesse se conter,

acrescentou. - Eles estão certos, sabe? Baxter olhou para o reflexo no vidro. Charlotte apanhou o copo e tomou um

pouco de conhaque. - Quem? - Lennox e Lady Esherton. - Charlotte abaixou o copo lentamente. - Os jovens de

hoje enfrentam muitos perigos. - Sem querer ofender, Charlotte, mas você não está em posição de dizer nada

quando se trata de perigo. Posso lembrar que foi você quem sentiu a necessidade de contratar um assistente que servisse também de guarda-costas?

- Sou uma mulher madura que sabe muito bem com o que está lidando. É diferente com uma pessoa muito jovem.

Alguma coisa na voz dela despertou a atenção de Baxter. - Não parece estar falando em tese. Ela ficou calada por um longo momento. - Uma noite antes de ser morto, meu padrasto levou um monstro à nossa casa. Baxter virou-se devagar na direção dela. - Um monstro? - Winterbourne devia muito dinheiro à criatura. - Charlotte olhou para o copo de

conhaque como se pudesse ver o passado nele. - Meu padrasto queria pagar a dívida entregando minha irmã para o monstro.

- Santo Deus, Charlotte. O que aconteceu? - Eu usei a pistola do meu pai para expulsar o monstro e Winterbourne da nossa

casa. - O copo na mão dela estremeceu levemente. - Eles não voltaram.

Baxter a imaginou enfrentando os dois homens com apenas uma pistola e sentiu uma onda de raiva.

- Você é uma mulher muito corajosa. Charlotte pareceu não ouvir. - Na manhã seguinte Winterbourne foi encontrado morto. Sua garganta foi

cortada por um assaltante, eles disseram. Eu não sei o que aconteceu depois que eles saíram da casa, mas sei que meu padrasto tinha medo daquele animal. Às vezes me pergunto se o monstro o assassinou por não pagar as dívidas de jogo.

- Um homem capaz de entregar uma jovem nas mãos de um monstro para pagar suas dívidas merece morrer.

- Sim. - Charlotte ergueu os olhos para ele. - Não pense nem por um minuto que lamento a morte de Winterbourne ou que me sinto culpada por obrigá-lo a sair de casa na noite em que foi assassinado. Não é isso que me preocupa.

Baxter compreendeu instintivamente o temor secreto que se escondia sob o espírito determinado e independente de Charlotte. Era quase como os momentos de intensa compreensão que experimentava às vezes, quando uma experiência lhe permitia visualizar de relance uma grande verdade científica. Nesse caso, entretanto, era uma intuição de natureza muito mais íntima do que qualquer coisa que já havia descoberto no laboratório.

- Eu compreendo - ele disse, em voz baixa. - O que realmente a preocupa é o fato de que, mesmo depois de tantos anos, não pode esquecer que o monstro ainda está por aí, em alguma parte.

- Não. Não posso esquecer. Às vezes a lembrança vem sob a forma de sonho. Acordo repentinamente, à mesma hora que acordei naquela noite. No sonho eu me vejo no corredor escuro na frente do quarto da minha irmã. Tenho a pistola na mão, exatamente como naquela noite. Mas dessa vez o monstro sabe que está descarregada.

- Cristo. - Baxter ficou gelado. - Está dizendo que a pistola que usou naquela noite estava descarregada?

- Estava guardada há anos numa arca. Eu não tinha balas nem pólvora para carregar. Estava muito escuro no corredor e nem Winterbourne, nem o monstro sabiam que eu estava segurando uma pistola descarregada. Mas no meu sonho, o monstro ri porque ele sabe a verdade. Ele sabe que dessa vez não posso detê-lo.

Baxter deu um passo para ela. - Charlotte... - E no meu sonho, eu sei que não sou capaz de proteger minha irmã. - É só um sonho, Charlotte. - Baxter hesitou. - Eu também tenho um que se

repete de tempos em tempos e é suficientemente desagradável para me acordar no meio da noite.

Charlotte olhou atentamente para ele. - Sonhos podem ser coisas muito estranhas. - Sim. - Baxter pôs o copo na mesa ao seu lado. - Vamos falar de outras coisas. - É claro. A nossa investigação. - Não, não as nossas investigações. Gostou da valsa? - Com Lennox? - Charlotte fez uma careta. - Acho que sei por que Drusilla

Heskett o comparava a um garanhão. Baxter levantou as sobrancelhas. Charlotte riu. - O conde possui, realmente, muito vigor. Quando a música parou, tive a

impressão de estar terminando uma cavalgada matinal num cavalo forte e saltador. Baxter olhou pensativamente para ela, por um momento. - Eu já disse que você estava encantadora esta noite?

Charlotte piscou os olhos. - O que disse? - Acho que esqueci os elogios merecidos. Peço desculpas. - Não se preocupe Sr. St. Ives. - Cruzou as mãos sobre a mesa e disse com um

sorriso luminoso. - Somos sócios num negócio, não amigos íntimos. - Eu me esqueci de outra coisa também. - Foi até ela e pôs as mãos nos ombros

nus de Charlotte. A pele era quente e incrivelmente macia. - O que foi? - Não a convidei para dançar comigo. - Ele a fez levantar da cadeira. - Acha que

se tivéssemos dançado uma valsa esta noite, agora estaria disposta a me chamar por meu primeiro nome?

Os olhos dela, muito verdes, brilhavam refletindo a luz. Ela sorriu e lentamente passou os braços em volta do pescoço dele.

- Eu não sei. Por que não me convida para dançar e então veremos? - Dance comigo, Charlotte. - Terei muito prazer em dançar com você, Baxter. Era o que ele tinha esperado a noite toda, Baxter pensou. Era disso que ele

precisava. Inclinou a cabeça e a beijou.

Capítulo VIII Baxter estava fazendo algum tipo de experiência. Charlotte teve certeza absoluta

assim que os lábios dele tocaram os dela. Esse beijo era diferente do outro, do beijo na carruagem. Quando Baxter a puxou para ele, colando o corpo no seu, Charlotte sentiu que ele estava de certo modo distante, como mero observador.

Era como se quisesse controlar e observar os resultados do abraço. Charlotte imaginou se ele julgava-se capaz de regular o próprio desejo, como fazia com as chamas que usava para aquecer os compostos químicos voláteis.

Com a compreensão, veio o choque e a raiva. Ela não era uma mistura curiosa para ser testada e examinada no laboratório. Apertou os braços em volta do pescoço de Baxter e colou mais o corpo no dele. De repente estava determinada a mostrar que ele não podia se manter à distância da própria paixão.

Se era uma experiência, ela resolveu, os dois faziam parte dela. - Charlotte. - A boca de Baxter se moveu na dela, saboreando, explorando,

fazendo um reconhecimento. As mãos se moveram e seguraram sua cabeça. Enfiou os dedos nos cabelos dela, tirando os grampos. - Diga meu nome outra vez.

- Baxter. - A excitação tomou conta dela, tão intensa e quente que Charlotte não podia acreditar que ele não a estivesse sentindo também.

- Outra vez. - Ele passou os dedos no queixo dela. - Baxter. - Abra a boca para mim. Ela obedeceu. E deixou escapar uma exclamação abafada de surpresa quando os

dentes dele se apertaram suavemente no seu lábio inferior. - Não vou machucar você - ele murmurou. - Eu sei. - Abraçou-o com força, convidando-o a aprofundar o beijo. Baxter outra vez passou os dedos pelo cabelo dela. Os grampos caíam com um

ruído metálico sobre a mesa. E então as mãos dele desceram, parando brevemente nos ombros nus.

- Você é macia. - Ele acariciou a curva do pescoço e beijou-a logo abaixo da orelha. - Tudo em você é liso e macio.

Charlotte apoiou as duas mãos abertas no peito dele saboreando a sensação dos músculos sob a camisa de linho.

- E tudo em você é forte e sólido. Baxter levantou a cabeça. Tirou os óculos e os pôs na mesa, ao lado dos

grampos. Charlotte olhou nos olhos dele e prendeu a respiração. Sem as lentes, a chama

do alquimista brilhavam mais intensas do que ouro derretido. Charlotte viu o perigo, mas as chamas a fascinavam e deslumbravam.

- Quero sentir seus seios em minhas mãos. - Baxter abaixou delicadamente as mangas finas do vestido, despindo-a até a cintura.

Ela estremeceu violentamente consciente da luz que mostrava os mamilos rígidos. Sentiu dor. Era uma sensação incrivelmente deliciosa e excitante. Ouviu o próprio grito abafado quando Baxter segurou o seio com uma das mãos.

- Você é linda - ele disse em voz baixa, rouca, quase inaudível. Ele passou os polegares nas pontas dos seios intumescidos. Charlotte mal podia respirar. Apenas a necessidade compulsiva de inalar mais daquele perfume masculino embriagador a fez por fim respirar profundamente.

Uma grande urgência percorreu seu corpo. Ela amassou o tecido da camisa dele entre os dedos. Inclinou a cabeça para trás.

- Baxter, isto é incrível.

- Sim, é. - Ele inclinou a cabeça e mordeu de leve um dos seios dela. - Oh, meu Deus. - Rapidamente, ela desfez o nó da gravata dele e tentou

desabotoar a camisa com dedos trêmulos. Baxter ficou rígido. - Não. Charlotte o ignorou. Abriu a camisa e enfiou as mãos dentro dela. - Com todos os demônios. - Baxter não se moveu. Era como se esperasse um golpe que não podia evitar. Charlotte o tocou avidamente, saboreando o calor e a força do corpo dele. Seus

dedos se moveram entre os cabelos crespos do peito e então ela o abraçou e apoiou as palmas das mãos nas costas dele.

Ela sentiu a pele áspera e imediatamente reconheceu o que era. Baxter tinha uma grande cicatriz.

Foi a vez dela ficar imóvel. Levantou a cabeça e olhou para ele. - Você foi ferido. - Há três anos. - Olhou para ela sombriamente. - Cicatrizou há muito tempo. - O que aconteceu? - Ácido. - Meu Deus. Um acidente no laboratório? O sorriso dele não tinha nenhum humor. - De certo modo. - Eu sinto muito. Deve ter sido muito doloroso. - Não é mais. Mas as cicatrizes são feias. Dê-me um momento para apagar a luz.

- Ele tentou se afastar dela. - Não precisa. - Lenta e deliberadamente ela tirou a camisa de linho dele e a

deixou cair no tapete. Via agora as partes da pele mais pálidas no ombro. Fechou os olhos pensando na dor que ele devia ter sentido.

- Charlotte... - Certamente não pensa que suas cicatrizes me ofenderiam. A única coisa que

importa é que os ferimentos estão cicatrizados. Gentilmente ela tocou uma das marcas do ácido no ombro dele. Então, ficou nas

pontas dos pés e a beijou. Baxter estremeceu. Ela moveu os lábios no pescoço dele, até a boca.

- Charlotte. - Ele a abraçou com força. Por um momento não havia nada distante ou remoto no abraço. Charlotte sentiu

o fogo que ardia dentro dele. A sensualidade crua e quase dolorosa do beijo dele ameaçava envolvê-la.

Charlotte se entregou àquela chama com uma excitação exultante. Baxter segurou-a pela cintura, a ergueu do chão e beijou os seios nus. Charlotte murmurou quando sentiu os dentes na ponta dos seios. - Baxter. - Ela o abraçou com uma sensação de desespero. Ele a carregou para o sofá. Um momento depois, a sala estava girando sobre o

eixo. E então Charlotte sentiu as almofadas debaixo dela. A saia do vestido de noite esvoaçou em volta das suas coxas.

Antes que Charlotte tivesse tempo de se orientar, Baxter estava deitado em cima dela. Pesado. Excitantemente pesado. O corpo dele parecia afundar o seu no sofá macio. Ela sentia o tecido da calça dele contra sua pele, acima das ligas das meias.

E sentia também o volume da masculinidade dele. Charlotte prendeu a respiração.

Baxter ergueu a cabeça e olhou nos olhos dela. - Eu quero você. Charlotte olhou para o brilho ardente dos olhos dele e se perdeu no encanto do

desejo que os dominava. Certamente era impossível para qualquer homem, mesmo com uma vontade tão

forte quanto a de Baxter, olhar para uma mulher com um desejo tão intenso e continuar como um pesquisador frio.

Ela enfiou os dedos no cabelo dele sem se preocupar em esconder sua sensação de deslumbramento.

- Eu jamais conheci uma emoção tão forte. - Fico feliz com isso. - Ele a beijou avidamente. Charlotte sentiu a mão dele deslizar na sua perna, debaixo da saia do vestido e

os dedos que se curvaram em volta da sua perna. Charlotte enfiou as unhas nos músculos rígidos das costas e dos ombros dele. Baxter gemeu. Sua mão subiu e apertou o ponto entre suas pernas que pulsava

de excitação. Enfiou um dedo nela, gentilmente, abrindo caminho entre os músculos tensos.

Charlotte estremeceu, reagindo àquela invasão exótica. - Por favor. - Ela se moveu inquieta, procurando alguma coisa mais. - Não pare. Baxter retirou o dedo lentamente e o enfiou outra vez. Ao mesmo tempo seu

polegar acariciava de leve a pequena elevação firme na parte superior do seu sexo. - Baxter. - Ela não conseguia pensar. Estava mergulhada na sensação. Agarrou-

se a ele, em silêncio, exigindo um fim daquele tormento requintado, mas incapaz de se afastar. - Baxter.

Ele inclinou a cabeça sobre os seios dela. Seu dedo se movia dentro do seu corpo. Ao invés de forçar mais a entrada, ele fez pressão para cima. Repetiu a carícia muitas vezes.

Uma tensão enorme a invadiu. Jamais sentira um desejo, uma necessidade tão dominadora, tão total. Por intuição compreendeu que a sensação não podia continuar a crescer. Tinha de haver algum modo de libertar a pressão crescente.

Ela agarrou os ombros de Baxter. Tinha de haver uma forma de alívio. Certamente ela ia desmoronar se alguma coisa não cedesse. Aquela força

impulsionadora inexorável não podia durar para sempre. Quando menos esperava, ela se satisfez com uma série de estremecimentos

convulsivos. - Baxter. Ouviu o próprio grito ecoando na sala quando caiu de um penhasco

incrivelmente alto. Baxter a abraçou por algum tempo enquanto ela flutuava numa atmosfera

líquida, na qual ele era o único objeto sólido. Uma sensação de espanto deslumbrado a deixou sem fala.

Gradualmente mais uma vez ela ouviu as chamas crepitando na lareira e sentiu as almofadas do sofá debaixo das costas.

O peso de Baxter continuava sobre seu corpo. Quando finalmente Charlotte abriu os olhos, Baxter estava olhando atenta e intensamente para ela.

- Foi extraordinário - ela murmurou. - Maravilhoso. Ele sorriu e beijou a testa dela. - Sim, foi. Charlotte tocou o queixo dele. - Mas você não experimentou a mesma sensação. - Não desta vez. - Ele se levantou, desvencilhando-se cuidadosamente da saia do

vestido dela. - Mas haverá outras vezes. - Desenhou o contorno dos lábios dela com o dedo. - Pelo menos eu espero.

- Baxter, espere. Aonde você vai?

- Precisamos conversar. Ele atravessou a sala até onde estava sua camisa. A luz do fogo refletiu nas

cicatrizes das costas e dos ombros. Tanta dor, Charlotte pensou. Graças a Deus o ácido não atingiu os olhos. Sem dúvida teria ficado cego.

Ela o viu apanhar a camisa e vestir com movimentos rápidos e precisos. Deixando-a aberta, ele foi até a mesa e apanhou os óculos.

Sem uma palavra Baxter foi até a lareira e ficou parado, olhando para as chamas.

Alarmada com aquela mudança de atitude, Charlotte sentou-se no sofá e arrumou o vestido, cobrindo os seios.

- Alguma coisa errada? - Não. - Ele pegou o atiçador e se inclinou para atiçar o fogo. - Mas eu gostaria

que tivéssemos um entendimento, antes de continuarmos o que estamos começando. Charlotte olhou atentamente para ele. O cabelo escuro estava ainda despenteado

pelos dedos dela. As chamas iluminavam as sombras, os planos e os ângulos fortes e definidos do rosto. Charlotte teve outra vez a perturbadora sensação do primeiro dia em que o viu.

- Que tipo de entendimento? - ela perguntou cautelosa. - Você teria um caso comigo, Charlotte? - disse em voz baixa, completamente

sem emoção. - Um caso? - De repente ela ficou tão nervosa que mal conseguia fechar o

vestido. - Com você? - Ao que parece, há uma atração mútua entre nós dois. - Sim, mas... - Não terminou a frase, sem saber o que dizer. Afinal, lembrou, ela

havia considerado essa possibilidade. - Sei por experiência que esse tipo de emoção geralmente é ilusória. Parece real

por algum tempo e depois desaparece. - Compreendo. - Charlotte não podia negar isso. Não se podia confiar

unicamente na paixão. Ela sabia disso melhor do que muita gente. Sua profissão baseava-se nesse princípio. Só o verdadeiro amor pode acrescentar um elemento de segurança e de certeza àquela emoção perigosa. - Você acredita que a chama que nos aquece agora logo estará extinta.

- Minha observação sobre o assunto me ensinou que o tédio e a indiferença, depois de algum tempo, transformam as chamas em cinzas.

- Foi isso que aconteceu nos seus relacionamentos? - Sou um químico, não um poeta. - Baxter cruzou as mãos nas costas. - Com o

passar do tempo, a diferença se torna mais acentuada. - Não compreendo. - Para ser mais claro, as mulheres em geral me consideram uma pessoa pouco

interessante, uma vez satisfeita a atração inicial. - As mulheres o acham desinteressante? - Isso era demais. A fúria cresceu

dentro dela, quase expulsando a infelicidade que sentia. - Como se atreve, senhor. Não tente me enganar com essa tolice. Se não está interessado num relacionamento a longo prazo, pelo menos tenha a decência de ser franco. Não espere que eu acredite que todos seus romances anteriores terminaram porque suas amantes simplesmente morriam de tédio com sua presença.

Baxter olhou para ela, assustado. - Posso garantir, é a pura verdade. - Bobagem. - Charlotte levantou-se do sofá e arrumou a saia do vestido. - Está

procurando desculpas. Eu esperava mais do senhor. Baxter virou-se rapidamente para ela. - Não estou procurando desculpas. Estou tentando ser prático.

- Está mesmo? - Ela se empertigou com orgulho. - O que me diz da sua preciosa reputação, Sr. St. Ives?

- Acontece que esta farsa de noivado é um disfarce perfeito para um caso amoroso.

Charlotte estava furiosa. - Esta farsa, como diz, foi criada pelo senhor e destinada a durar o tempo

necessário para encontrarmos o assassino de Drusilla Heskett. - Não há motivo para que não continue com o seu objetivo. - O noivado convencional dura um ano no máximo e na melhor das hipóteses. - Eu não ousaria fazer uma estimativa da duração dos seus relacionamentos

anteriores, mas os meus duram em média dois meses, ou menos. - Não é uma boa recomendação, senhor. - É a maldita verdade. E então? - Ele entrecerrou os olhos. - Qual é a sua

resposta? Está interessada em ter um caso comigo ou não? Charlotte tremia não de paixão agora, mas de raiva. Levantou o queixo. - Certamente não espera uma resposta imediata. Eu o informarei da minha

decisão, depois de pensar mais detalhadamente no assunto. - Com todos os demônios. - Baxter indicou o sofá com um gesto brusco. - Depois

do que acaba de acontecer, diz que precisa pensar mais no assunto? Com um sorriso gelado ela disse: - Geralmente aconselho minhas clientes a não tomar decisões importantes no

calor da paixão. Os músculos do rosto dele ficaram tensos. Sem uma palavra, caminhou para ela,

os passos abafados pelo tapete. Charlotte ficou tensa também. Era arriscado levar Baxter ao limite do

autocontrole, embora não houvesse perigo de violência física. No fundo do coração ela sabia que ele jamais a machucaria. Mas havia um forte elemento de imprevisibilidade na situação.

Antes que ela tivesse tempo de descobrir o que ele pretendia, uma tábua do assoalho rangeu na frente da porta do estúdio. Charlotte ficou imóvel.

Baxter parou também. Olhou para a porta e depois para Charlotte, interrogativamente.

- Um dos criados? - Não. - Ela deu as costas para ele e ficou de frente para a porta. - Eu disse que

minha governanta ia passar a noite fora. Não pode ser Ariel. Teríamos ouvido a carruagem da sua tia.

Ouviram passos no corredor. Alguém estava correndo para a porta dos fundos da pequena casa.

- Com todos os demônios. - Baxter correu para a porta. - Fique aqui. Abriu a porta e correu para o hall de entrada. Com um candelabro pesado de prata numa das mãos e com a outra erguendo

um pouco a saia do vestido, Charlotte foi atrás dele. O corredor estava escuro. Alguém tinha apagado o candelabro que ela acendeu

ao chegar naquela noite. A única luz era a que vinha do estúdio. Ouviu passos no fundo da casa. Os de Baxter e os do intruso. Charlotte mergulhou na escuridão do corredor. Uma rajada de ar frio indicava que a porta estava aberta. Ela via a fraca luz da

lua no fim do corredor. O intruso já estava lá fora. No jardim. Charlotte parou na porta, esforçando-se para enxergar no escuro. Nenhum sinal

de alguém correndo entre os arbustos. - Baxter? Onde você está? Nenhuma resposta.

Charlotte entrou em pânico. O intruso sem dúvida estava armado. Não ouvira nenhum tiro, mas muitos assaltantes preferiam o silêncio de uma lâmina afiada.

- Baxter. Oh, meu Deus, onde você está? Fale comigo, Baxter. - Pensei ter dito para você esperar lá dentro. - O vulto de Baxter se materializou

no escuro. Num momento ele não estava ali e no outro estava de pé bem na frente dela. O luar iluminava um lado do seu rosto e se refletia na lente dos óculos.

- Você está bem? - Estou. - Segurou o braço dela e a levou para dentro. - Mas não consegui

apanhá-lo. Ele desapareceu na passagem atrás do jardim. Conhecia bem o caminho. Deve ter observado a casa e planejado a fuga, antes de fazer seu trabalho noturno. Parecia saber exatamente para onde estava indo.

- Graças a Deus você não o alcançou. Ele podia ter uma faca ou uma pistola. - Bondade sua se preocupar com minha saúde. - Não precisa ser sarcástico. - Desculpe. - Ele a fez entrar na casa. - Ocasionalmente eu recorro ao sarcasmo,

quando tenho excitação demais numa única noite. Charlotte resolveu ignorar a observação. Baxter tinha se arriscado a um

confronto com um ladrão. Tinha direito de estar de mau humor. - Deus do céu - ela murmurou quando Baxter fechou a porta. - Estou lembrando

que não ouvimos nenhum ruído no corredor ou na escada. Isso quer dizer que o intruso devia estar na casa quando chegamos.

- Provavelmente. - Que idéia horrível. - Charlotte estremeceu. - Pensar que ele estava ali,

escutando, o tempo todo, enquanto você e eu... - Não terminou a frase. - Acho que ele estava no andar de cima quando interrompemos seus planos. -

Baxter acendeu um candelabro do corredor. - Sem dúvida resolveu esperar até ter certeza de que estávamos bem ocupados antes de fugir.

- Acha que ele nos ouviu? Baxter ergueu os ombros, com indiferença. - Possivelmente. - Inclinou-se para examinar a fechadura da porta. - Mas imagino

que estava muito mais interessado em fugir ileso do que no papel de voyeur. - Será que ele conseguiu levar alguma coisa? - Olhou para Baxter que continuava

a examinar a porta. - O que está fazendo? - Tentando determinar exatamente como ele entrou. A porta da frente estava

trancada quando chegamos, portanto ele deve ter entrado por esta. - Baxter ergueu o corpo, pensativo. - Mas esta fechadura está intacta e não há nenhuma janela quebrada. Parece que o nosso homem sabia o que estava fazendo.

- Isso é horrível. Um criminoso profissional bem aqui, na minha casa. - Charlotte passou as mãos nos braços, sentindo um arrepio. -Vou verificar se alguma coisa está faltando. Espero que não tenha roubado o serviço de chá de prata nem o relógio de ouro.

- Vou revistar a casa com você. - Baxter foi até a escada. - Eu só vi o casaco dele de relance, mas não me pareceu que estivesse levando alguma coisa suficientemente pesada para impedi-lo de correr. Com sorte, vamos descobrir que não falta nada.

- Baxter? Ele olhou para trás, impaciente, atento à tarefa do momento. - O que é? - Muito obrigada. - Charlotte disse, com voz trêmula. - Foi muita coragem sua

perseguir o ladrão esta noite. - Tudo parte do trabalho diário, Srta. Arkendale. O incenso queimava suavemente na sala negra e carmesim. Seus sentidos

estavam abertos. Chegara a hora. - Leia as cartas, meu amor. A cartomante pôs a primeira carta na mesa. - O grifo dourado. - Ele é persistente. Ela virou a carta seguinte. - A dama com olhos de cristal. - Um estorvo. A cartomante tirou outra carta do baralho. - O anel prateado. - Ergueu os olhos. - O grifo e a dama formaram uma aliança. - Deve ser desfeita. Eu trato disso. - Inclinou-se para a frente. - E a fênix? A cartomante hesitou. Então pôs outra carta virada para cima na mesa. - A fênix triunfará. - Sim - ele disse, satisfeito. Quando a cartomante estremeceu de desejo, ele a fez deitar no tapete. Ele

conhecia bem as fraquezas do grifo dourado. E uma delas era a dama com olhos de cristal, a mulher que agora pertencia ao grifo.

Não havia um meio mais satisfatório para destruir um homem honrado do que degradar uma pessoa que ele se sentia obrigado a proteger.

Capítulo IX - Um assaltante? - Ariel parou no ato de se servir de ovos mexidos e olhou

atônita para Charlotte. - Eu não acredito. Está dizendo que ele estava bem aqui, dentro de casa, quando você voltou com o Sr. St. Ives?

- Sim. - Charlotte se concentrou em arrumar o guardanapo enquanto revia mentalmente as partes da história que não pretendia contar. Não precisava dizer para Ariel exatamente o que ela e Baxter estavam fazendo antes de o intruso os interromper. - O Sr. St. Ives e eu entramos no estúdio para falar sobre os resultados da nossa investigação e ouvimos alguém no corredor. Você sabe como aquela tábua perto da cozinha estala quando alguém pisa nela.

- Sim, eu sei. O que aconteceu? Ele levou alguma coisa? - Não, graças a Deus. O Sr. St. Ives perseguiu o vilão por todo o jardim. - Ariel

inclinou a cabeça para o lado. - St. Ives o perseguiu? - Sim. Ele é extraordinariamente corajoso e bastante ágil e rápido. Mas o intruso

estava muito na frente dele e desapareceu na noite. - Ágil e rápido? - Ariel ficou intrigada com a observação. - Eu jamais definiria o

Sr. St. Ives como ágil e rápido. Ora, muito bem, continue. Conte-me o resto. - Não há muito mais para contar. O Sr. St. Ives e eu revistamos toda a casa

depois que ele fugiu. Verificamos a prataria e outras coisas que um ladrão podia querer levar, mas aparentemente nada estava faltando. O Sr. St. Ives acha que interrompemos o assaltante antes de ele terminar o trabalho.

- Graças a Deus. - Ariel parecia ainda intrigada. - É absolutamente espantoso. Algum assaltante deve ter notado que a casa estava vazia e resolveu aproveitar a oportunidade.

- É o que parece. - Ainda bem que você não estava sozinha quando ouviu o ladrão no corredor. - Sim. - Por que não me contou logo que eu cheguei ontem à noite? - Ariel perguntou. - Como não aconteceu nada, achei que não valia a pena esperar acordada, só

para contar. - E nenhum motivo para dizer que, depois que Baxter saiu, ela ficou acordada durante horas, ouvindo cada estalo e cada rangido da casa, Charlotte pensou.

Quando não estava prestando atenção aos ruídos, estava pensando em Baxter. Seu estado de espírito mudou depois do incidente com o intruso. Ele recobrou o autocontrole. Não falaram mais de ter um caso.

Charlotte não sabia se devia sentir alívio ou desapontamento. - Já era bem tarde quando Lady Trengloss me trouxe para casa na sua

carruagem - Ariel admitiu. - Acho que nunca fiquei acordada até tão tarde em toda a minha vida. Lady Trengloss me disse que durante a temporada a maior parte da alta sociedade fica acordada até o nascer do sol.

Charlotte passou geléia de groselha na torrada. - Você se divertiu? Ariel corou satisfeita. - Foi uma noite maravilhosa. Era como se eu tivesse entrado em outro mundo. - Um mundo que nossa mãe adorava. - Charlotte sentiu a saudade tristonha que

sentia sempre que lembrava da sua vida antes de Lorde Winterbourne. - Lembra de como mamãe gostava da temporada?

- Ela estava sempre tão bonita quando saia à noite. - Os olhos de Ariel se suavizaram. - E papai era tão belo. Lembro que eu gostava de ficar na janela e ver os

dois saírem juntos na carruagem. Eu imaginava que eram um príncipe e uma princesa de conto de fadas.

Um breve silêncio envolveu a sala do café. Charlotte libertou-se das lembranças do passado. Percebeu que Ariel fez o mesmo. Não adiantava lembrar de como o conto de fadas tinha terminado.

- Notei que você dançou com o conde de Esherton no baile - Charlotte disse. Ariel corou. - Ele é um dançarino excelente. E sua conversa é muito interessante. - É um belo homem. - Sim, é. E um perfeito cavalheiro. Eu gostaria de ter dançado a valsa com ele.

Mas isso teria provocado comentários desagradáveis, é claro. - E claro. - Ele foi para o clube mais ou menos às três horas e não o vi mais depois disso. Charlotte não sabia dizer por que a felicidade que viu nos olhos de Ariel a

preocupou. Não tinha certeza se devia dizer alguma coisa. Sua irmã era uma jovem sensata, muito mais ajuizada do que a maioria das moças da sua idade. Essa experiência da temporada de festas era exatamente o que ela sempre havia desejado para Ariel. Certamente não faria mal encorajá-la a aproveitar. A aventura logo terminaria.

Ocorreu a Charlotte que podia dar a si mesma esse conselho. Um calor agradável envolveu seu corpo, lembrando outra vez do abraço apaixonado. A perspectiva de ter um caso com Baxter incendiava sua imaginação.

Então lembrou como ele parecia frio e distante quando perguntou se ela queria ser sua amante, como deliberadamente a seduziu no sofá controlando-se o tempo todo.

Sim, ela foi objeto de uma experiência, Charlotte lembrou. Não era uma idéia agradável.

A Sra. Witty apareceu na porta da sala do café. - Uma senhora para vê-la, Srta. Charlotte. Diz que é assunto urgente. - Uma cliente? - Charlotte olhou para o relógio e franziu a testa. - São só onze

horas. Só tenho hora marcada à tarde. - Pode ser que essa cliente esteja mais desesperada do que as outras. - A Sra.

Witty ergueu as sobrancelhas. - Ela parece precisar urgentemente de um marido, se entende o que quero dizer.

Charlotte sobressaltou-se. - Quer dizer que está grávida? - Grávida como uma ovelha na primavera - disse a senhora Witty, alegremente. -

Se eu estivesse no lugar dela não estaria perdendo tempo com investigações sobre o passado de qualquer homem que quisesse se casar comigo. Eu o agarrava antes que ele mudasse de idéia.

Ariel ergueu os olhos. - Se você quiser, posso entrevistá-la, Charlotte. A Sra. Witty olhou para Charlotte. - Ela pediu especificamente para ver a senhora, Srta. Charlotte. Disse que não

quer falar com mais ninguém. - Leve-a ao estúdio, Sra. Witty. - Charlotte levantou-se da cadeira. - Diga que

não demoro. - Sim, Srta. Charlotte. - A senhora Witty fez menção de sair da sala. - Mais uma

coisa. - Charlotte disse, rapidamente. - Quero um favor seu Sra. Witty. Sabemos que os criados da Sra. Heskett estavam fora da casa na noite do crime, mas acho que gostaria de dar uma palavra com a governanta. Ela pode nos dizer algo sobre os planos da Sra. Heskett para aquela noite. Acha que pode localizá-la?

A Sra. Witty inclinou a cabeça afirmativamente. - Vou tentar. - Estarei aqui se precisar de mim, Charlotte. - Ariel voltou ao aparador para se

servir outra vez. - Lady Trengloss diz que preciso me fortalecer para o programa desta noite. Ela afirma que a temporada exige uma mulher vigorosa.

- Lady Trengloss sem dúvida é uma autoridade no assunto. Charlotte saiu para o corredor. Parou na frente do espelho para se certificar de

que estava com a aparência profissional e competente e entrou no estúdio. A mulher sentada na frente da mesa aparentava ter a idade de Charlotte. Era

bonitinha, com cabelo castanho-claro e traços suaves. Estava também com a gravidez adiantada. Uma pelerine azul muito esticada

cobria a barriga redonda. - Srta. Arkendale? A mulher olhou para Charlotte com olhos ansiosos avermelhados de tanto chorar. - Sim - Charlotte disse com um sorriso tranqüilizador e fechou a porta do estúdio.

- Acho que minha governanta não me disse o seu nome. - Eu não disse a ela. - A mulher enxugou os olhos com um lenço úmido. - Meu

nome é Juliana Post. E estou aqui porque ouvi dizer que a senhorita estava noiva do Sr. Baxter St. Ives. E verdade?

Charlotte parou no meio da sala. - Sim, sim. Por que pergunta? Juliana começou a soluçar no lenço. - Porque eu fui sua última amante. Este filho é dele. Seu bastardo. Baxter

arruinou a minha vida e me deixou. Achei que a senhorita devia saber o tipo de homem que ele é.

Atordoada, Charlotte olhou para a cabeça inclinada de Juliana. - O que está dizendo? - Ele me prometeu casamento, Srta. Arkendale. - Juliana ficou de pé. - Ele disse

que íamos casar. Foi assim que me convenceu a me submeter às suas carícias. Mas quando soube que eu estava grávida, me abandonou. Eu não tenho família. Não sei o que vai ser de mim.

- Se isso é uma tentativa de conseguir dinheiro... - Não, não é. - Soluçando, Juliana correu para a porta. - Srta. Post, espere. Quero lhe fazer algumas perguntas. - Não suporto falar sobre isso. - Juliana parou na porta e olhou para Charlotte

com amargura. - Vim aqui hoje porque achei que era meu dever avisar à senhorita de que St. Ives é um bastardo, não só por nascimento, mas também por temperamento. Estou perdida, Srta. Arkendale. Mas não é tarde para a senhorita. Tenha cuidado ou vai ter o mesmo fim.

Capítulo X Charlotte ouviu Juliana Post bater a porta da frente quando saiu. Correu para o

hall e olhou pela janela. Viu Juliana entrar numa carruagem de aluguel com uma agilidade surpreendente para uma mulher em adiantado estado de gravidez.

Charlotte apanhou rapidamente o chapéu de palha de abas largas de um cabide na parede e o casaco de lã que estava ao lado dele.

A Sra. Witty apareceu vindo da cozinha. Enxugou as mãos no avental branco muito limpo que cobria o vestido de bombazina e ergueu as sobrancelhas.

- O que está acontecendo? - Vou seguir aquela mulher que saiu daqui. - Charlotte abriu a porta e desceu os

degraus. - Quero ver para onde ela vai. - Isso é loucura - a Sra. Witty disse da porta. - Ela foi embora numa carruagem.

Não pode seguir a carruagem a pé. - O tráfego a esta hora é tão lento que se eu andar depressa posso não perder a

carruagem de vista. - Charlotte pôs o chapéu e começou a correr. - Mas vai ter de seguir a uma grande distância - a Sra. Witty gritou. Charlotte

não deu atenção a ela. Muitas pessoas viravam a cabeça para acompanhar sua passagem. Ela ignorou os olhares zombeteiros e os de censura. Sabia que as pessoas que a conheciam já a consideravam um tanto estranha. Os desconhecidos apenas ergueriam os ombros vendo uma mulher correndo entre as carroças de entrega e as dos fazendeiros que enchiam as ruas àquela hora.

A carruagem de aluguel virou uma esquina na outra extremidade da rua. Charlotte achou que se cortasse caminho pelo parque, diminuiria a distância que a separava do veículo.

Passou rapidamente pelos portões de ferro da pequena praça verde, segurando o chapéu, e saiu ofegante, pelo portão oposto.

A Sra. Witty tinha razão. Não podia ir muito mais longe a esse passo. A carruagem de Juliana estava ganhando distância.

Olhou para os dois lados da rua, desesperada. Um carrinho de flores dirigido por um jovem de uns quinze anos estava no meio da rua. Ela correu para ele, acenando para chamar a atenção.

O rapaz olhou intrigado para Charlotte quando ela o alcançou. - Quer comprar flores, senhora? - Não, mas pagarei bem se me deixar subir no seu carro e seguir aquela

carruagem. O menino franziu a testa. - Não sei se meu pai vai gostar disso, senhora. - Eu farei com que valha a pena. - Charlotte ergueu um pouco a saia e começou

a subir na carroça. - Compro todas as suas flores se me ajudar. - Bem... - Pense um pouco, ficará livre o resto do dia e quando voltar para casa, esta

tarde, seu pai vai ficar feliz quando souber que você vendeu tudo. O jovem hesitava ainda. - Vai comprar todas as flores? - Sim, todas. - Charlotte sentou-se e disse com um sorriso encorajador: - Eu

adoro flores. O menino hesitou só por mais um segundo. Depois deu de ombros. - Meu pai sempre diz que os ricos são excêntricos. Sacudiu vigorosamente as rédeas. Assustado, o pônei gordo saiu num trote

animado. Charlotte lutou para retomar o ritmo da respiração enquanto o carro saltava

para a frente, perseguindo a carruagem de aluguel. Quinze minutos depois o carro de flores virou outra esquina num bairro modesto.

Charlotte viu a carruagem de Juliana parar na frente de uma casa. - Aqui está bem - Charlotte disse. - Não precisa me esperar. Posso voltar para

casa sozinha. - Espere um pouco, e as minhas flores? - Não esqueci. - Charlotte segurou a saia e saltou do carrinho. - Vou dar-lhe meu

endereço. Leve as flores e diga à governanta que eu disse para comprar todas elas. - Então, está bem. - O jovem olhou para ela. - Tem certeza de que não quer que

eu espere? - Tenho. Posso encontrar uma carruagem de aluguel. - Sorriu e deu a informação

de que ele precisava para encontrar sua casa. - É muita bondade sua se preocupar, mas eu garanto, posso tomar conta de mim.

- Se a senhora diz. - O menino estalou a língua para o pônei. Charlotte esperou que o carro com as flores estivesse no fim da rua e caminhou

para a pequena casa onde Juliana havia entrado. Mentalmente ela pensou em vários meios de pedir explicação para os atos da mulher. Finalmente concluiu que devia seguir a inspiração do momento, depois de entrar na casa.

Subiu os degraus da entrada e bateu na porta. Depois de um breve silêncio, ouviu passos pesados. Logo depois uma governanta gorducha abriu a porta.

- Sim, senhora? - Por favor, diga a sua patroa que eu vim visitá-la - Charlotte disse com voz

firme. A governanta olhou desconfiada para ela. - A senhora tem hora marcada? Uma pergunta estranha, Charlotte pensou. Uma governanta pode perguntar se

um visitante é esperado ou não, mas a expressão hora marcada só era usada para visitas de negócios.

- Tenho - Charlotte disse suavemente. - Tenho hora marcada. - Um pouco cedo - resmungou a mulher, abrindo mais a porta e recuando, para

dar passagem a Charlotte. - A Srta. Post geralmente só recebe os clientes à tarde. - Ela fez uma exceção para mim. - Charlotte entrou rapidamente, antes que a

governanta mudasse de idéia. - É muito urgente. A mulher olhou para ela intrigada, mas não fez nenhum comentário. Fechou a

porta. - Quer me dizer seu nome? Charlotte disse o primeiro nome que lembrou no momento. - Sra. Witty. - Muito bem. Por aqui, então. Vou avisar a Srta. Post de que está aqui, Sra.

Witty. - Obrigada. Charlotte olhou curiosa em volta enquanto seguia a governanta. A madeira toda

brilhava recentemente encerada. O chão de azulejos era limpo e polido. O armário de carvalho e ébano em um dos lados era artisticamente marchetado com latão. Juliana Post não parecia ser rica, mas certamente não era pobre. Na verdade, para uma mulher arruinada, parecia estar muito bem.

A governanta abriu a porta na outra extremidade do hall. - Por favor, entre, Sra. Witty. Vou chamar a Srta. Post. Charlotte entrou na pequena sala e parou atônita. Estava numa sala exótica decorada em estilo oriental. Tudo em carmesim e

negro. Era forte o cheiro de incenso que pairava no ar, embora o braseiro estivesse apagado.

Ainda não era meio-dia, mas podia ser meia-noite. As cortinas pesadas de veludo vermelho completamente fechadas mergulhavam a sala numa penumbra irreal. Grandes faixas de tecido, vermelhas e negras, pendiam do teto. A única luz vinha de dois candelabros em forma de flor de lótus.

Não havia cadeiras, apenas várias almofadas da cor de carmesim com franja negra dispostas sobre o tapete negro e vermelho. Um sofá baixo vermelho vivo estava na frente da lareira.

No centro da sala, sobre a pequena mesa de ébano, havia um baralho. - Sra. Witty - Juliana Post disse da porta. - Infelizmente não me lembro de a

senhora ter marcado hora, mas acredito que posso lhe conceder algum tempo. Charlotte tirou o chapéu e virou-se para ela lentamente. Juliana já havia trocado

de roupa. Estava com uma túnica escarlate e enfeitada com diversos colares de contas. - Eu não marquei hora - Charlotte disse. Juliana ficou rígida. - A senhora! - Algo que podia ser medo apareceu nos olhos dela. - O que está

fazendo aqui? Como me encontrou? - Não foi difícil. - Charlotte examinou o novo corpo esbelto de Juliana e sorriu. -

Suponho que não está mais preocupada de ser jogada na rua e arruinada para sempre?

Juliana corou. - Seria melhor ir embora agora, Srta. Arkendale. - Não pretendo ir embora sem uma explicação. - Não tenho nenhuma explicação para dar. Charlotte ficou calada por um longo momento. Então foi até a pequena mesa. - Essas não são as cartas usadas para jogar uíste. - Não. Charlotte inclinou-se para apanhar o baralho. Examinou o desenho nas costas

das cartas e depois olhou para as figuras estranhas no outro lado. Vira cartas iguais há muito tempo num baile à fantasia.

- A senhora lê a sorte, Srta. Post? Juliana olhou para ela desconfiada. - Eu leio as cartas para aconselhar jovens senhoras sobre assuntos de amor e

casamento. - Por um preço. O sorriso de Juliana era frio. - Naturalmente. - Quando sua governanta atendeu à porta, ela perguntou se eu tinha hora

marcada. Ela pensou que eu estava aqui para a senhorita ler as cartas para mim? - Sim. Charlotte olhou outra vez em volta. - Devo elogiar sua casa. A senhorita criou uma atmosfera curiosa para praticar

sua profissão. - Obrigada. - Ao que parece seu negócio é lucrativo. - Dá para viver. - Uma fúria amargurada passou pelos olhos de Juliana. - Eu me

tornei a última moda entre um certo grupo de jovens senhoras. Algumas delas acham divertido ter sua sorte lida nas cartas. Outras levam mais a sério. De um modo ou de outro, estão sempre preparadas para pagar bem a diversão.

- Está nessa profissão há muito tempo? - Desde que meu guardião acabou com o que restava da minha herança. - Uma

expressão cínica e divertida surgiu nos olhos dela. - Isso aconteceu quando eu tinha dezoito anos. Quando o dinheiro acabou, ele achou que minha presença na casa não

era mais conveniente. - Ele parece feito no mesmo molde do meu padrasto. - Charlotte pôs o baralho

na mesa. - Sabe, Srta. Post acredito que nós duas temos alguma coisa em comum. - Duvido muito. - Eu também tenho um pequeno negócio para senhoras. E fui também obrigada

a inventar uma profissão por motivos não diferentes dos seus. - Sorriu levemente. - Pelo menos nós duas conseguimos escapar do destino das mulheres nessa situação. Nenhuma de nós se tornou governanta nem foi obrigada a andar pelas ruas.

- Por favor, vá embora. - Juliana murmurou. - Não devia ter vindo hoje. - Não é fácil para uma mulher abrir caminho no mundo, é? Os sininhos pregados na túnica carmesim de Juliana badalavam

desafinadamente. Ela fechou as mãos nos lados do corpo. - Não pense que pode me convencer a dizer o que quer saber. Não vou dizer nada.

- Estou preparada para pagar pela informação que procuro. Juliana deu uma risada rouca sem alegria. - É uma tola se pensa que existe no mundo dinheiro suficiente para me fazer

responder à sua pergunta. - Quem foi que pagou para fazer o papel de uma amante abandonada? - Eu fiz um negócio. Cumpri a minha parte. O que acontece agora não é da

minha conta. Devo insistir para que se retire imediatamente. Charlotte quase parou de respirar quando compreendeu. - Você está com medo. - Isso é tolice. - De quem tem medo? Talvez eu possa ajudá-la. - Ajudar a mim? - Juliana olhou para ela, incrédula. - Não pode ter idéia do que

está falando. - Sabe, Srta. Post, em outras circunstâncias, acredito que podíamos ter sido

amigas. - Por que, em nome de Deus, me diz essas coisas? - Eu diria que é óbvio - Charlotte disse em voz baixa. - Suspeito que temos os

mesmos interesses e as mesmas preocupações. Por exemplo, você manda a conta para suas clientes depois da consulta ou pede que paguem antes de lhes prestar seus serviços?

Juliana franziu a testa. - Eu espero sempre receber no momento em que marcam a hora. Aprendi há

muito tempo que clientes têm o hábito de esquecer suas dívidas se eu esperar para mandar a conta.

- Aprendi a mesma lição no começo da minha carreira. - Juliana hesitou, desconfiada.

- Qual exatamente é a sua profissão? - Está dizendo que não sabe nem isso a meu respeito? - Não sei coisa alguma a seu respeito, exceto que mora onde mora e que está

noiva de Baxter St. Ives. Fui paga para representar o papel e cumpri a minha parte. Isso é tudo.

- Compreendo. Muito bem, como estamos ambas na mesma linha de atividade, não me importo de dizer alguma coisa sobre minha profissão. Porém, de um modo geral, procuro manter um certo grau de sigilo.

Juliana estava evidentemente curiosa, a despeito da inquietação. - Quais os serviços que oferece? - Serviços muito discretos. Senhoras que foram pedidas em casamento às vezes

me procuram. Faço uma investigação sobre a vida dos homens que expressaram desejo de casar com elas.

- Investigação? Eu não compreendo. - Eu tento verificar se os pretendentes são ou não dissolutos, jogadores, ou

caçadores de fortuna. Resumindo, Srta. Post procuro garantir que as senhoras que me procuram não cometam o erro de se casar com homens como seu guardião e meu padrasto.

- Isso é espantoso. A senhorita mesma faz essas investigações? - Tenho alguns assistentes. Embora com relutância, Juliana parecia fascinada. - Mas como obtém essas informações? - De várias fontes. Criados domésticos ou pessoas que trabalham nos antros de

jogo e nos bordéis podem nos dar algumas respostas. - Charlotte sorriu. - Ninguém jamais nota as pessoas que trabalham nesses lugares.

- Isso é verdade. - Juliana balançou a cabeça, atônita. - Investigações sobre a vida de cavalheiros. Que idéia extraordinariamente inteligente.

A despeito da situação, Charlotte não conteve um modesto sorriso de orgulho. - Vindo, como vem, de alguém que compreende também as dificuldades e as

recompensas de inventar uma profissão singular, é um grande elogio. Juliana apertou os lábios. - Parece também um negócio extremamente perigoso. - De modo geral, não posso dizer que tenho tido grandes dificuldades. - Até

recentemente, acrescentou mentalmente. Juliana hesitou. Olhou para trás como se esperasse ver alguém se materializar no

meio da sala. Então deu um passo para Charlotte e abaixou a voz. - Disse que tem a impressão de que, em outras circunstâncias, poderíamos ser

amigas e colegas. - Sim. - Falando como uma pessoa que podia ser sua amiga e colega vou lhe dar um

conselho. Não sei no que está envolvida que se relaciona com Baxter St. Ives, mas só sei de uma coisa, faria muito bem em abandonar seja o que for que está fazendo em associação com ele.

Charlotte ficou rígida. - O que quer dizer? - Não posso dizer mais nada. - Juliana estendeu o braço, indicando a porta. -

Precisa sair imediatamente. Não volte. Nunca. Charlotte ficou alarmada com o medo que viu nos olhos de Juliana. - Muito bem. - Caminhou lentamente até a porta. - Mas se mudar de idéia ou

quiser minha ajuda, por favor, mande uma mensagem. Sabe onde eu moro. - Pôs a mão na maçaneta.

- Srta. Arkendale? Charlotte virou para ela. - Sim? - Não acreditou naquela representação esta manhã, acreditou? - Juliana olhou

para ela atentamente. - Nem por um momento? - Não, nem por um momento. - Posso perguntar por quê? Sou tão má como atriz? - É uma atriz muito convincente - Charlotte disse, gentilmente. - Mas conheço

muito bem o Sr. St. Ives. Não é do tipo que abandona o filho que está para nascer. Juliana fez uma careta. - E surpreendentemente ingênua, considerando a profissão que escolheu. Vou

lhe dar mais um conselho, Srta. Arkendale. Não confie num homem que a faz sentir paixão. Esses homens são mágicos perigosos.

- Estou perfeitamente a par dos riscos. Vejo esse perigo diariamente no curso do meu trabalho. Bom dia, Srta. Post. - Charlotte saiu da sala perfumada de incenso e

fechou a porta suavemente. Só respirou realmente quando estava na calçada, fora da pequena casa de

Juliana Post. Baxter pensou no impulso idiota que o levara a pedir que o meio-irmão o

visitasse naquela manhã. Não compreendia por que cedera à idéia de ter aquela pequena conferência, mas de uma coisa estava certo. Foi um erro.

- Muito bem, Baxter, atendi ao seu chamado. - Hamilton começou a andar de um lado para o outro no laboratório.

Não era uma tarefa fácil. Tinha de passar entre mesas de trabalho, a bomba de ar e o balcão onde ficavam as lentes grandes que Baxter usava quando precisava gerar um calor muito intenso para uma experiência.

Como sempre, Hamilton estava impecável mente vestido. A calça pregueada cor de pele de búfalo, colete listrado de creme e rosa, o laço da gravata complicado, paletó jaquetão o identificavam como um homem da moda.

Baxter olhou para ele pensativamente. As roupas de Hamilton sempre caíam com perfeição e ele as usava com naturalidade aparentemente negligente. Ele era alto e magro e gracioso em seus movimentos. Os alfaiates o adoravam. As luvas ajustavam-se perfeitamente aos dedos longos. O nó da echarpe era sempre ousado para parecer casual. As botas brilhavam.

A roupa de Hamilton nunca tinha manchas de antigas combinações químicas. O casaco nunca estava amassado. Ele não usava óculos. O velho conde, pai dos dois, tinha a mesma elegância inata e segura e a mesma habilidade para determinar a moda.

Baxter sabia perfeitamente que era a exceção gritante à regra de que os homens de St. Ives sempre faziam tudo com estilo.

- Obrigado por vir tão prontamente - Baxter disse. Hamilton olhou intrigado para ele. - Espero que não me faça perder tempo. Resolveu afinal soltar as correias da

bolsa? Baxter encostou-se num dos balcões do laboratório e cruzou os braços. - Está precisando de dinheiro? Eu jamais adivinharia vendo a carruagem que está

parada lá fora. - Maldição, o caso não é esse, como você sabe muito bem. - Hamilton virou-se

rapidamente para ele, os ombros rígidos de raiva. - Eu sou o conde de Esherton e tenho direito à minha herança. Meu pai queria que eu tivesse dinheiro.

- Na hora certa. Hamilton entrecerrou os olhos. - Eu sei que você gosta do poder temporário que tem sobre o meu dinheiro. - Não especialmente - Baxter disse, com toda sinceridade. - Eu preferia que

nosso pai não me tivesse encarregado da tarefa de administrar seus negócios. E um maldito aborrecimento, se quer saber a verdade.

- Não espere que eu acredite nisso. Nós dois sabemos muito bem que controlar minha herança dá a você uma certa sensação de vingança. - Hamilton parou perto da mesa onde estava a balança de Baxter. Apanhou um dos pequenos pesos de bronze e examinou. - Pode se vangloriar enquanto é tempo. Eu já tenho o título. Dentro de poucos anos terei a fortuna.

- Acredite ou não, eu espero sobreviver muito bem a seu título e sua fortuna. Porém não é isso que importa no momento, Hamilton. Não o chamei para discutir sua situação financeira.

- Eu devia ter adivinhado que você não mudou de idéia sobre a minha herança. - Hamilton deixou o peso cair no prato da balança e caminhou para a porta. - Acho

melhor ir embora, pois parece que não temos nada a dizer um para o outro. - Sua mãe está preocupada com você. - Minha mãe. - Hamilton parou de repente. - Minha mãe falou com você a meu

respeito? - Sim. Ela me procurou ontem à noite numa das festas a que compareci com

minha... noiva. - Mamãe não tinha nenhum motivo para fazer isso - Hamilton explodiu. - Não

posso imaginar uma coisa dessas. Ela mal o tolera. Só de olhar para você ela sofre. - Eu sei disso. O fato de ela ter falado comigo sobre suas preocupações prova o

quanto está preocupada. Hamilton olhou para ele, desconfiado. - O que a preocupa? - Sua escolha de diversão. - Isso é tolice completa. Ela pensa que ainda estou sob seu controle. Mas sou um

homem agora. Minha mãe tem de aceitar o fato de que tenho direito de me divertir com meus amigos. E natural que passe mais tempo no meu clube.

- Sobre esse clube para o qual entrou recentemente - Baxter falou devagar. - Como se chama?

- Para que quer saber? - Mera curiosidade. Hamilton hesitou, depois deu de ombros. - Chama-se A Mesa Verde. Mas se está pensando em entrar para sócio, sugiro

que reconsidere. - Sorriu sem humor. - Não acredito que seja apropriado para um homem da sua idade avançada e temperamento sossegado.

- Compreendo. Não se preocupe. Passo tempo suficiente no meu clube. Não estou interessado em entrar para outro.

- Fico aliviado. Não posso imaginar nós dois sócios do mesmo clube. Seria extremamente embaraçoso.

- Sem dúvida. - Não é como se tivéssemos os mesmos interesses. - Não, não é. Hamilton olhou outra vez para ele, desconfiado. - Você não tem nenhuma curiosidade sobre a natureza dos acontecimentos no

plano metafísico. - Está certo em pensar assim. - E imagino que não teria nenhum prazer em conversar sobre os recentes

trabalhos dos poetas românticos. - O assunto não é um dos primeiros da minha lista de temas de conversa para

um jantar - Baxter admitiu. - E certamente não se interessaria por experimentar os vários métodos de

estabelecer a verdade sobre a filosofia do sobrenatural. - Mais baixo ainda na minha lista de temas favoritos do que a poesia romântica -

Baxter concordou cautelosamente. - São essas as coisas com que vocês se divertem no Mesa Verde?

- Na maior parte. - Pensei que fosse um antro de jogo, não um salão filosófico. - Meus amigos e eu criamos um clube dentro do clube. A direção do Mesa Verde

cuida das nossas preferências numa parte separada do estabelecimento. - Compreendo. Eu prefiro continuar com meu laboratório. - Sim, é o melhor. Não se divertiria no Mesa Verde. - Hamilton olhou para a

coleção de tubos na mesa ao seu lado. - Meu pai passava muito tempo aqui, no seu laboratório.

- Ele se interessava muito pela ciência. Minhas experiências o intrigavam. - Ele sempre repetia que você era brilhante - Hamilton disse com desdém. - Ele o

chamava de herói por causa de alguma coisa que você fez durante a guerra. A informação foi surpresa para Baxter. - Ele exagerou. - Tenho certeza que sim. Você não é do tipo heróico. - Verdade. O heroísmo exige uma grande dose de energia e de forte emoção. Por

demais cansativo para uma pessoa com o meu temperamento. Depois de uma breve hesitação, Hamilton disse: - Quando eu tinha quatorze anos, meu pai me fez estudar o livro que você

escreveu sob pseudônimo, Conversações sobre química. - Tenho certeza de que você achou tedioso. - Sim, para ser franco, achei. Mas segui uma das receitas para fazer um ácido

fraco, que derramei sobre o livro. - Hamilton sorriu. - Arruinou completamente todas as páginas.

- Compreendo. Hamilton sei que temos pouca coisa em comum, mas partilhamos o interesse por sua herança.

Um lampejo de alarme apareceu nos olhos de Hamilton. - Ora, escute aqui, Baxter, se está pensando em roubar minha fortuna... - Não precisa ficar agitado, não tenho intenção de pôr a mão no seu dinheiro. -

Baxter foi até a janela e olhou para os três vasos com ervilhas-de-cheiro. Nenhum sinal de brotos verdes. - Porém, ocorreu-me que, uma vez que o dinheiro que administro será seu um dia, você podia querer saber como eu o estou investindo.

- Explique-se. Baxter olhou nos olhos dele. - Posso ensinar a você como trabalhar com banqueiros e homens de negócios.

Teria prazer em ensinar os vários modos de investir sua renda. Como empregar as pessoas que precisa para administrar suas propriedades. Esse tipo de coisa.

- Não quero coisa alguma de você a não ser o dinheiro a que tenho direito. Não sou uma criança que precisa de um tutor em finanças. Não há nada que eu possa aprender com você. Nem uma maldita coisa. Compreendeu?

- Sim. Hamilton virou outra vez para a porta com um movimento brusco de raiva. - Já perdi muito tempo aqui hoje. Tenho coisas melhores para fazer. A porta

abriu exatamente quando ele estendeu a mão para a maçaneta. Lambert apareceu impassível e olhou para Baxter. - Uma visita um tanto impetuosa para o senhor. - Baxter... - Charlotte entrou no laboratório, sem esperar que Lambert acabasse

de anunciar sua presença. - Preciso contar o que aconteceu. Tive a mais espantosa... opa - interrompeu a frase confusa, por pouco evitando esbarrar em Hamilton. - Peço desculpas, senhor. Eu não sabia que estava aqui.

- Creio que você e meu meio-irmão não foram apresentados ontem à noite - disse Baxter. - Saímos do baile um tanto cedo, se está lembrada.

Charlotte olhou para Baxter. Corou levemente, mas Baxter não podia dizer se era o resultado da agitação ou por ter lembrado da resposta apaixonada às suas carícias na noite anterior.

- Sim, nós saímos cedo - ela murmurou delicadamente. - Permita que eu apresente o conde de Esherton - Baxter disse. - Hamilton, esta

é a minha noiva, Srta. Charlotte Arkendale. Com um sorriso caloroso para Hamilton, Charlotte disse: - Senhor conde. Baxter a viu se curvar graciosamente numa mesura.

- Srta. Arkendale. - A fúria de Hamilton desapareceu e ele segurou a mão dela com uma evidente impetuosidade. - Lady Trengloss me apresentou à sua irmã, ontem à noite. Tive a grande honra de dançar com ela. É uma jovem senhora extremamente encantadora.

- Nisso concordamos, senhor conde - Charlotte disse. Baxter tossiu discretamente. - Hamilton, não me deu os parabéns pelo noivado. Os músculos do rosto de Hamilton ficaram tensos de irritação, mas as normas da

cortesia prevaleceram. - Peço desculpas. Minhas felicitações a ambos. Se me der licença, eu já estava de

saída. - É claro - Charlotte disse. Hamilton inclinou a cabeça e saiu do laboratório apressadamente. Quando ficaram sozinhos, Charlotte favoreceu Baxter com um sorriso radiante de

aprovação. - Vejo que resolveu cuidar do seu irmão, afinal. - Tirou o chapéu de palha. - Lady

Esherton ficará extremamente aliviada, tenho certeza. - Não acredito. Hamilton não quer conselhos de ninguém. - Baxter olhou para o

relógio. - Onde diabos você esteve, Charlotte? Mandei um recado à sua casa há uma hora e meia. Recebi um bilhete da sua irmã dizendo que você tinha saído.

- É uma longa história. - Ela virou a cabeça, examinando o laboratório com interesse. - Então é aqui que você realiza suas experiências químicas.

- Sim. Charlotte foi até a janela. - O que você tem nesses vasos? - Sementes de ervilhas-de-cheiro. Estou fazendo uma experiência para testar a

eficácia de certos minerais adicionados ao solo cansado por vários ciclos de cultivo. Charlotte tocou a terra num dos vasos com a ponta do dedo. - As sementes não brotaram. - Não - ele disse. - Talvez nem cheguem a brotar. Isso acontece com muitas

experiências. O que era que você queria me contar? - A coisa mais espantosa. - Olhou para ele, outra vez febrilmente animada. -

Acho melhor começar do começo. Esta manhã recebi a visita de uma senhora que afirmou estar grávida de um filho seu.

- O quê? - Prepare-se, Baxter. Vai ficar mais interessante. - Você seguiu a mulher até a casa dela? - Baxter estava atônito. - E a enfrentou

na própria sala dela? Eu não acredito. A coisa mais idiota, louca, irresponsável que já vi.

- Ao contrário. Era a coisa lógica a fazer, dadas as circunstâncias. - Charlotte disse, em tom conciliador. - Eu tinha de descobrir o que a Srta. Post estava tramando. Certamente você compreende isso.

- Com todos os demônios. - Baxter sentia um misto de raiva e de medo puro e intenso. Tentou em vão conter aquela mistura de emoções. Sabia que não estava reagindo de modo totalmente racional, mas não podia fazer nada. - Como ousou correr esse risco? Será que ficou louca?

A surpresa de Charlotte foi sincera. - Não havia risco nenhum. Eu apenas falei com ela. - Devia ter falado comigo antes de se expor a tanto perigo. - Sacudiu a mão no

ar. - Afinal, sou seu sócio. E seu guarda-costas, que diabo. - E seu amante, alguma coisa nele queria acrescentar com voz alta e clara. Com todos os diabos, afinal sou seu

amante. - Mas não havia tempo para enviar uma mensagem, senhor. Tive de agir

rapidamente, do contrário teria perdido de vista a carruagem da Srta. Post. - Incrível. Você foi atrás dela num carro de flores com um estranho que podia

muito bem ser um vilão perigoso. - Tenho certeza de que era apenas um menino do campo. Suponho que poucos

vilões andam por Londres numa carroça cheia de flores. - Você foi direto à casa da mulher que acabava de contar uma mentira

fantástica. Não tem nem um pouco de bom senso? - Furioso Baxter passou pela balança que estava na extremidade de uma das mesas do laboratório. Bom Deus, ele estava se movendo pelo laboratório. Andando de um lado para o outro. Uma coisa que nunca fazia.

Isso o deixou mais irritado ainda. Infelizmente, não tinha escolha senão continuar a andar para cima e para baixo na passagem entre as mesas. Sabia que se parasse, nem que fosse por um segundo, não poderia conter o impulso de apanhar o tubo de vidro ou a retorta mais próxima e atirar contra a parede.

Charlotte não tinha direito de se arriscar desse modo. Certamente ela ia enlouquecê-lo antes que toda essa história terminasse. Sua natureza independente e imprevisível era uma séria ameaça à sua serenidade conquistada a duras penas. Ele era um químico, não um poeta. Não podia ter de enfrentar essas fortes crises de emoção.

Na noite anterior pensou ter encontrado um modo de resolver o ímpeto de desejo que Charlotte acendia nele. Estabeleceu com certeza o fato de que estava no comando de si mesmo e da situação. Concluiu que era seguro ter um caso com ela.

Raciocinou que esse tipo de relacionamento permitiria que a chama instável da paixão se extinguisse natural e controladamente. O princípio não era diferente da prática de usar uma chama cuidadosamente monitorada para aquecer o conteúdo de um frasco cheio de misturas químicas voláteis. Desde que fosse cauteloso e cuidadoso, não haveria nenhuma explosão perigosa.

No fim, o conteúdo do frasco se transformaria em cinza. Tinha agüentado demais nas últimas vinte e quatro horas, ele pensou. A resposta

de Charlotte o fez supor que ela aceitaria a sugestão de um caso. Porém, ao invés de dar uma resposta direta à pergunta simples, ela dissera que ia pensar no assunto.

Pensar no assunto. Que ousadia. Charlotte o deixou em suspenso no tempo, enquanto deliberava.

Então aquela cena desagradável com sua governanta. Agora, aquela aventura maluca. E ele estava fervendo de raiva. Ele jamais fervia. Ferver, como andar de um lado

para o outro, era sinal de falta de autocontrole. Indicava que a emoção e não a razão governava o cérebro.

Era demais para uma mente séria, metódica e lógica. Se não fosse um moderno homem de ciência sem dúvida seria tentado a acreditar que alguma força sobrenatural maligna havia entrado na sua vida com a intenção de criar o caos.

A certeza de que Charlotte tinha esse poder sobre ele eriçava o cabelo na sua nuca e provocava arrepios na espinha.

- Sinto-me ofendida com a insinuação de que não tenho bom senso, Sr. St. Ives. - Quase todo o entusiasmo havia desaparecido da voz dela. O tom apaziguador também. Ela começava a ficar irritada. - Afinal, sou uma pessoa madura. Há muitos anos dirijo um negócio bastante bem-sucedido. Não sou tola.

- Eu não disse que você era tola. - Diabos. Um erro depois do outro, Baxter pensou, soturnamente. Mais um pouco e toda a experiência estaria arruinada antes mesmo de começar e o único culpado seria ele.

- Fico feliz em ouvir isso - Charlotte disse, secamente. - Gostaria de notar que os eventos desta manhã ocorreram porque a Srta. Post ouviu dizer que estávamos noivos.

Ele parou ao lado da mesa das lentes. - O que isso tem a ver com o resto? Charlotte olhou para ele. - Foi sua idéia anunciar esse noivado fraudulento e foi o noivado que levou a

Srta. Post à minha casa com a sua história absurda. Portanto, não acho que pode me culpar por isso. Para ser franca, a culpa foi toda sua.

Baxter começava a se sentir acuado. Agarrou-se àquilo que por alguma razão irracional o irritava mais.

- Nosso noivado não é uma fraude. - Não mesmo? Como você o chamaria? Baxter procurou as palavras certas. - É um estratagema. - Não vejo muita diferença entre estratagema e fraude. - Bem, pois eu posso dizer a diferença. Ou por acaso esqueceu que nosso

noivado tem por objetivo permitir nossa entrada na sociedade para descobrir um assassino?

De repente pensativa Charlotte começou a girar o chapéu de palha distraidamente nas mãos.

- E provou ser um plano muito inteligente. Pense um pouco. Conseguimos a primeira pista real graças ao seu pequeno estratagema, como você o chama.

- Que pista? - Não está vendo? - Os olhos dela brilharam com renovado entusiasmo. - Quando

eu a enfrentei, a Srta. Post praticamente admitiu que alguém a contratara para me visitar e fingir que era sua amante grávida. Ela não quis me dizer quem foi, mas era evidente que sua tarefa consistia em destruir minha confiança em você.

- Obviamente. - Baxter sentiu um frio no estômago. Qualquer mulher da sociedade teria acreditado na história fantástica da Srta. Post.

- Alguém teve muito trabalho para destruir nosso suposto noivado. - Charlotte continuou. - Devemos nos perguntar agora quem faria isso.

Baxter passou os dedos no cabelo. - Com todos os demônios. - Ao que parece, alguém não quer que tenhamos uma associação muito íntima. - Acalme-se, Charlotte. Duvido muito que esse episódio com a Srta. Post tenha

alguma coisa a ver com nossa tentativa de descobrir o assassino. - O que quer dizer? Baxter respirou profundamente. - Suspeito que você tenha sido apenas a vítima do que alguém considera uma

brincadeira de mau gosto. Charlotte olhou para ele. - Mas quem faria isso? - A primeira pessoa que me vem à mente é meu agressivo meio-irmão. - Hamilton? Isso é ridículo. - Há alguns dias eu teria concordado com você. Não há grande afeição entre

Hamilton e mim, mas até esta manhã eu não imaginava que ele poderia ter... - Baxter hesitou não muito certo ainda das suas observações e conclusões - inveja de mim.

- Inveja? Baxter lembrou-se da amargura nos olhos de Hamilton quando contou sua

destruição deliberada do livro Conversações sobre química. - Sei que não faz sentido, mas tive a impressão de que ele tem um

ressentimento muito pessoal contra mim.

- Por que acha que podia ter? - Não tenho muita certeza - Baxter admitiu. - Maryann, a mãe, pode ter

influenciado sua opinião a meu respeito, é claro. Ela sempre me detestou e a razão é óbvia. Mas acredito que haja mais do que isso. Alguma coisa além do insulto à sua mãe quero dizer.

- Qual seria a razão? - Sua má vontade para comigo pode estar relacionada ao fato de meu pai e eu

passarmos muito tempo juntos trabalhando em experiências químicas. - Baxter fez uma careta. - Aparentemente, meu pai chegou a ponto de contar para Hamilton minha pequena contribuição para a Inglaterra durante a guerra. E certa vez obrigou Hamilton a ler um livro que eu escrevi. Aparentemente, Hamilton ficou ressentido com isso.

- Compreendo - Charlotte disse. - O irmão mais novo pode ter ciúmes do mais velho quando este conta com a admiração e a afeição do pai.

Outro tipo de emoção, antiga e familiar, teve um efeito tranqüilizador em Baxter naquele momento. Ele a conhecia muito bem. Ao contrário da raiva inquieta, era algo que ele compreendia e controlava.

- Hamilton tem o título e as terras. O que mais pode querer? Não tenho culpa se ele não partilhava o interesse do meu pai pela ciência.

- Não, não tem culpa, mas para um homem muito jovem pode ser um motivo para inveja. - Charlotte ficou pensativa. - Entretanto, não posso imaginar Lorde Esherton rebaixando-se a ponto de fazer uma brincadeira tão vil, como contratar uma mulher para desmanchar nosso noivado.

- Você não conhece Hamilton. - Verdade, mas tenho boa intuição. Além disso, Ariel parece gostar muito dele e

embora ela seja muito jovem, sua percepção dos homens é geralmente muito sólida também.

- Intuição. - Baxter nem tentou esconder o sarcasmo na voz. - Permita dizer, Srta. Arkendale, que a intuição é um guia extremamente falho. Baseia-se em emoção, não na ciência. Não merece confiança.

- Às vezes é a única coisa que temos - ela disse, gentilmente. - Agora chega. Eu resolverei o problema de Hamilton mais tarde. - Não pode ter certeza de que Hamilton teve algo a ver com a visita da Srta.

Post. - É a suposição mais lógica - Baxter disse. - O importante é que você não devia

enfrentar uma mulher estranha esta manhã. Não tinha idéia do que podia acontecer quando entrou na casa dela.

- Realmente, Sr. St. Ives. - Sim, realmente. - Baxter andou para ela na passagem entre as mesas. - Não vai

haver mais nenhum desses atos impulsivos da sua parte enquanto estivermos trabalhando juntos, está claro?

- Quero lembrar que não recebo ordens do senhor nem de ninguém. - Ele parou a alguns passos dela.

- Isso nos deixa com um pequeno problema, não é mesmo? Charlotte pôs o chapéu de palha numa das mesas com um movimento

deliberado. - Não haverá grandes dificuldades, desde que desempenhe seu papel nesta

empreitada. - Quer dizer, desde que não esqueça o meu lugar, é isso? - Eu não usaria exatamente essas palavras. - Acho muito bom não usar. Não sou seu criado, Srta. Arkendale. - Eu não disse que era. Entretanto eu o contratei se não está lembrado. Se isso

esclarece a situação, estou ainda preparada para pagar pelos seus serviços.

- Como se atreve a falar em salário? Depois de tudo que aconteceu entre nós ontem à noite?

Charlotte corou e olhou inquieta para a porta fechada. - Não precisa falar tão alto, senhor. Eu ouço muito bem. - Eu nunca levanto a voz. Falar em voz alta indica que a pessoa não sabe se

controlar. Charlotte olhou atentamente para ele. - Sim, acho que sim. - Que diabo, Charlotte, não vou ser tratado como se fosse seu empregado. - Deu

dois passos rápidos para ela, encurralando-a entre ele e a mesa. - Ontem à noite fiz uma pergunta. Já me fez esperar muito tempo. Mereço a cortesia de uma resposta.

Charlotte franziu a testa. - Mas estamos falando da Srta. Post. - A Srta. Post que vá para o inferno. Eu já disse que vou tratar disso mais tarde.

Apenas responda. Estaria disposta a ter um romance comigo? Charlotte olhou para ele, os olhos brilhando como a famosa Pedra Filosofal. Fez-

se um silêncio pesado no laboratório. Baxter quase podia ver as próprias palavras suspensas no ar, cintilando com uma luz perigosa.

Não podia ter escolhido um momento pior, ele pensou desesperado. Não precisava da sensibilidade refinada de um poeta romântico para compreender que não se pede a uma mulher para ser nossa amante no meio de uma discussão acalorada.

Charlotte quebrou o silêncio cristalino tossindo delicadamente. - Estamos discutindo nossa parceria num negócio, Sr. St. Ives. O que assuntos

pessoais têm a ver com esta situação? - Nada. Absolutamente nada. Se ele tivesse um pouco de bom senso se afastaria do cadinho ardente antes da

explosão. Mas não podia recuar. A única coisa que importava agora era obter o resultado conclusivo da sua ousada experiência.

- Nada? - ela repetiu suavemente. - Não, isso é uma tremenda mentira. Nossa situação pessoal tem tudo a ver com

isto. Preciso de uma resposta, Charlotte. Vou enlouquecer se não responder. De repente, os olhos dela eram dois lagos misteriosos, repletos de promessas

insondáveis. Mas a voz era extremamente fria. - Devo dizer Sr. St. Ives, que é o homem mais irritante que já tive a infelicidade

de empregar. Tudo que posso antever são complicações, mas sim, eu terei um caso com o senhor. Agora, podemos voltar aos negócios?

Por um breve e insuportável momento, Baxter não reagiu. Charlotte concordava em ser sua amante.

Notou que por uma sorte incrível, o perigoso cadinho superaquecido não explodiu em suas mãos, mas estava tão abalado como se a experiência tivesse derrubado as paredes.

Charlotte tocou no rosto dele com as pontas dos dedos. - Baxter? Você está doente? - É provável. - Segurou o rosto dela com as duas mãos. - Se estou, uma coisa é

certa. Você é a única pessoa capaz de fornecer o elixir para curar minha febre. - Oh, Baxter. - Ela ficou nas pontas dos pés e abraçou com força o pescoço dele.

- Você é o homem mais surpreendente, mais irritante que conheço. Ela o beijou com tanta fúria que seus dentes rasparam nos dele. Baxter recuou

um passo. Então a abraçou e respondeu ao beijo com uma sensação de euforia e desespero.

O desejo indisfarçado de Charlotte o desarmou completamente. Ela o desejava. Era tudo que importava no momento.

Baxter deixou de lado o autocontrole sem a menor hesitação e saboreou a fome imensa e devastadora que fervia em suas veias.

O mundo de repente parecia feito de mercúrio. Brilhante, cintilante, instável, infinitamente fascinante. Nada permanecia em foco. Era impossível se concentrar na lógica. Seu desejo insaciável era tudo.

Com os lábios sobre os dela, procurou o calor úmido da boca. Apoiou o peso do corpo, fazendo com que ela se curvasse para trás até encostar com força na mesa do laboratório.

- Hum! - Charlotte pareceu se assustar, mas não se afastou dele. Ao invés disso, emaranhou os dedos ferozmente no cabelo de Baxter.

Estremecendo de desejo, Baxter beijou o rosto dela, os olhos, as orelhas, o pescoço.

Levantou a cabeça apenas o tempo suficiente para tirar os óculos e jogar descuidadamente para o lado. Então, pôs um pé calçado entre as pernas dela cobertas pelas meias, levantando um pouco o joelho. Charlotte gritou e se agarrou nele, montada na parte superior das pernas de Baxter.

- Posso sentir seu calor através da minha calça - ele murmurou encantado. - Você já está molhando o tecido.

Com um gemido, ela encostou o rosto na camisa dele. - Está me deixando embaraçada, senhor. - Juro que não foi a minha intenção. - Tirou vários grampos do cabelo dela. - Se

quiser, posso estudar alguma coisa daquele maldito poeta romântico. Talvez possa aprender uma linguagem mais refinada para um momento como este.

- Não se dê ao trabalho. - Ela começou a abrir os fechos da camisa dele com mãos trêmulas. - Está indo muito bem sem nenhum estudo.

Apoiou as mãos espalmadas no peito dele. Baxter fechou os olhos e prendeu a respiração. Seu membro ameaçava atravessar a fazenda da calça.

Charlotte encostou os lábios nos mamilos dele. Disse alguma coisa com a boca colada nele. As palavras eram ininteligíveis, mas o significado muito claro. Baxter compreendeu, com uma sensação de puro triunfo e infinita gratidão, que o desejo de Charlotte por ele era tão desesperado quando o dele por ela.

Uma parte dele queria demorar tempo suficiente para saborear aquela primeira união. Mas não conseguia deter o desejo desenfreado enquanto Charlotte estivesse seguindo na mesma direção. A força combinada dos seus desejos era realmente irresistível.

Teriam oportunidade mais tarde de fazer o ato de amor durar horas, ele prometeu a si mesmo. Dessa vez, era uma coisa por demais elementar, pôr demais primitiva.

Baxter segurou a saia de musselina e a levantou até a cintura dela. Abaixou o joelho vagarosamente e deslizou as mãos sob as nádegas nuas e redondas. Então a levantou até a mesa de trabalho.

Um frasco de cerâmica caiu de lado na mesa enquanto ele lutava com a saia rodada de Charlotte, rolou para a beirada da mesa e caiu no chão partindo-se em mil pedaços. Baxter o ignorou.

- Baxter? - Charlotte parecia desorientada, confusa. - Apenas espere um pouco, querida. - Segurou as pernas dela e as passou em

volta da sua cintura. - É tudo que precisa fazer. Eu me encarrego do resto. Baxter abriu rapidamente a frente da calça e guiou o membro para ela. - Deus amado, Baxter. - Ela agarrou com força os ombros dele. As pontas dos dedos dela na antiga cicatriz provocaram uma onda de choque,

exatamente como na noite anterior. Mas dessa vez ele não lutou contra a sensação. A eletricidade rolou por seu corpo com a força do relâmpago e ele sentiu um prazer

glorioso. - Diga o que você quer de mim - ele disse, na curva do pescoço dela. - Quero

ouvir você dizer. - Eu quero você. - O desejo pulsava na sua voz. Baxter pôs a mão no sexo dela. Charlotte pulsava gentilmente contra ele,

intumescida de desejo. Baxter sentia o pequeno botão rígido contra a palma da sua mão. Ele o acariciou gentilmente e sentiu no próprio corpo o prazer com que o corpo dela estremeceu em resposta.

- Faça amor comigo, Baxter. Por favor. Baxter quase riu. O som saiu da sua garganta rouco e breve. - Eu não poderia parar agora, nem pelo segredo da Pedra Filosofal. Ele forçou o corpo dela contra a mesa e levou o membro para a entrada da

passagem úmida. Sentiu Charlotte ficar imóvel. Penetrou nela avidamente, tentando ir o mais devagar possível porque sabia,

pelas explorações da noite anterior, que ela era muito fechada. Sem dúvida há muito tempo não fazia amor, talvez há mais tempo do que ele.

Mas sua força de vontade estava enfraquecida. No momento em que sentiu a força prensora do canal estreito, esqueceu todo o cuidado. Dominado por uma triunfante avidez, segurou as duas nádegas dela e seguiu em frente.

Charlotte gritou. Seu corpo ficou rígido. Suas unhas se cravaram nas cicatrizes no ombro dele.

Então Baxter compreendeu. Charlotte nunca teve um amante. - Com todos os demônios. Apesar do conhecimento que tinha dos homens, a despeito do verniz de

sofisticação mundana, a despeito da idade, ela é virgem, Baxter pensou. Correção, disse mentalmente. Ela era virgem. Baxter parou de se mexer, mas já estava dentro dela. Sentia os pequenos

músculos da pequena passagem retesando-se para prendê-lo. - Por que não me disse? - ele perguntou. - Você nunca perguntou. - Beijou o pescoço dele e então sorriu. - E não importa.

Eu queria isto. - Que Deus me ajude, eu também queria. Baxter ajustou a posição cuidadosamente e começou a se mover. Retirou o

membro de dentro dela lentamente, sabendo da sensação que era prazer e dor ao mesmo tempo. Pareceu levar uma eternidade para chegar até a entrada. O tempo todo, Charlotte ficou agarrada nele com força. Finalmente ele parou quando só a ponta do membro estava dentro dela.

Charlotte respirou profundamente e estremeceu. Baxter pôs a mão entre os dois, encontrou o botão rígido escondido entre os

macios cabelos crespos do sexo dela e acariciou-o até sentir que ela começava a relaxar.

- Sim. - Ela o beijou freneticamente e suas pernas apertaram a cintura dele. - Sim, sim.

Charlotte abaixou a mão e hesitante segurou o membro dele. O sangue ferveu nas veias dele.

Acariciando gentilmente, ele penetrou nela até chegar outra vez ao fundo. Ela suspirou e moveu os quadris. - Pelo amor de Deus, não se mexa - ele murmurou. Mas ela não ouviu. Talvez não estivesse prestando atenção. Charlotte começou a

se mover com avidez crescente. Baxter fechou os olhos. Suas mãos tremiam quando tentou fazê-la parar. Mas ele estava muito perto da chama agora. O cadinho ardente o atraía com força invencível.

Charlotte o beijou outra vez. Baxter estava perdido. - Na próxima vez... - Ele ouviu a própria voz prometer num murmúrio rouco

enquanto avançava dentro dela - Na próxima vez... Mas não precisou fazer Charlotte esperar a próxima vez para se satisfazer. Baxter

ouviu o grito dela, um maravilhoso grito de triunfo, prazer e satisfação. Então ela era como ouro derretido em suas mãos. Com um espasmo depois do outro, pequenos e seguidos, ela envolveu o membro

dele. Baxter avançou mais uma vez dentro dela e depositou seu sêmen no corpo quente e hospitaleiro.

A mesa do laboratório tremeu e sacudiu. Baxter ouviu vagamente o som de vidro quebrado. Outro frasco espatifou-se no

chão. Algo pesado, talvez o alguidar de ar comprimido, virou e caiu. Um som metálico ecoou no laboratório quando dois instrumentos de bronze colidiram.

Baxter ignorou o caos à sua volta e se perdeu no redemoinho. Charlotte flutuou suavemente para baixo, saindo de um mundo composto de

sensação pura, e se viu sentada na beirada de uma das mesas do laboratório de Baxter. Abriu os olhos.

Baxter não estava mais dentro do seu corpo, mas ainda entre suas pernas. Ele a observava com atenção intensa.

- Devia ter dito que nunca teve um amante. A fantasmagórica falta de emoção na voz dele apagou de vez os últimos traços

de calor. - Era assunto meu - ela disse. - Não vejo por que você deve se preocupar com os

fatos da situação. Não precisa assumir nenhuma responsabilidade por ter sido meu primeiro amante. Não sou criança, sou uma mulher madura.

- Certamente - ele disse com severidade. - Mas não me agrada ser surpreendido por esse tipo de informação.

Por algum motivo ridículo, Charlotte sentiu que estava quase chorando. Piscou os olhos para deter as lágrimas com um ato de pura força de vontade. Recusava-se a chorar simplesmente porque Baxter havia retomado seus modos bruscos.

Não era assim que devia ser depois de uma experiência tão estimulante, ela pensou. Devia haver muita ternura entre os dois agora. Pelo menos por alguns momentos poderiam desfrutar a maravilhosa sensação de intimidade que os arrebatou durante aquele encontro apaixonado.

Talvez suas emoções estivessem ainda num estado anormalmente volátil devido aos recentes eventos. Mas, que diabo, ali estava ela se apaixonando por aquele homem tão difícil e ele continuava entre suas pernas, zangado como se ela tivesse feito algo imperdoável. Será que a paixão dos dois nada significava para ele?

- Baxter, você está dando muita importância a isto. - Os músculos do rosto dele ficaram tensos.

- Talvez esteja. Afinal, você estava tão ávida quanto eu. - Certamente - ela disse, com frieza. Baxter olhou para baixo, aparentemente surpreso por ver que seus dedos

seguravam ainda com força as coxas dela. Uma sensação de intenso embaraço tomou conta de Charlotte. Sentia um cheiro

estranho que, ela sabia, devia ser resultado do ato de amor. E uma umidade entre as pernas. Mudou de posição e procurou arrumar a saia.

- Espere - Baxter murmurou. - Tenho um lenço limpo aqui em algum lugar. Procurou por algum tempo e tirou do bolso um lenço limpo de linho. Charlotte se

encolheu e corou furiosamente quando ele o usou para limpar os traços da sua paixão. Ela se submeteu por alguns segundos e então empurrou a mão dele.

- Se você já terminou - ela disse, fechando as pernas.

Abaixou a saia e desceu da mesa. Seus joelhos ameaçavam se dobrar. Ela estendeu o braço para se equilibrar.

- Por quê? - Baxter perguntou. Charlotte olhou para ele. - Como disse? Baxter amarrotou o lenço. Os olhos de alquimista brilhavam como fogo. - Por que me escolheu para ser seu primeiro amante? Maldito seja ela pensou. Os dois faziam o mesmo jogo. Conseguiu o que

esperava que fosse um sorriso gelado. - O senhor, mais do que ninguém, devia compreender que às vezes não

podemos resistir ao impulso de fazer uma experiência.

Capítulo XI Ele era nada mais do que uma experiência para ela. Uma maldita experiência. A raiva inicial de Baxter era agora reforçada por uma sensação devastadora de

desespero e frustração. Lutou arduamente para esconder o que sentia, sob a aparência de um alheamento sem emoção que tantas vezes fora útil no passado.

Levou Charlotte até a casa dela com uma cortesia brusca que evidentemente a irritou, mas era tudo que Baxter podia oferecer no momento. Sentaram-se de frente um para o outro, na carruagem, Charlotte com as costas elegantemente retas, recusando olhar nos olhos dele durante a curta viagem. Olhou o tempo todo para a rua. Seu rosto estava corado, mas Baxter imaginou que devia ser por terem feito amor há pouco. Charlotte não disse uma palavra.

Aquele silêncio era conveniente, ele pensou. Deus sabia que tivera mais emoções do que podia suportar naquele dia. Certamente não queria falar sobre elas.

Subiu em silêncio os degraus da frente da pequena casa. Era um alívio poder recuar para o lugar remoto e profundo onde os sentimentos eram abafados e distantes, mais fáceis de ser controlados.

A Sra. Witty abriu a porta imediatamente. - Ainda bem que chegou Srta. Charlotte. A Srta. Ariel e eu começávamos a nos

preocupar. Pensamos em avisar o Sr. St. Ives... - Parou de falar quando viu Baxter atrás de Charlotte. Seu rosto se desanuviou. - Ah, vejo que a encontrou, senhor. Então tudo acabou bem.

- Isso depende do ponto de vista. - Baxter ignorou o olhar furioso de Charlotte e entrou no hall.

Ele parou de repente sentindo o perfume forte de flores. - Que diabo é isso? Transformaram a casa numa maldita estufa? - A Sra. Witty

fez uma careta. - Começaram a chegar esta manhã. Usei todos os vasos que tínhamos em casa.

Um espetáculo e tanto não é? Vasos e mais vasos de flores enfileiravam-se no hall. Outros, com cravos, subiam

a escada. Tulipas emolduravam o espelho. Rosas e orquídeas e lírios enfeitavam as paredes.

De repente, Baxter ficou furioso. - Quem diabo pensa que tem o direito de mandar todas essas malditas flores,

Charlotte? O único homem com quem você dançou a noite passada foi Lennox. - Eu mandei algumas delas. - Charlotte desamarrou a fita do chapéu. - Fiz um

trato com o jovem da carroça de flores. Ele só concordou em me ajudar a seguir a Srta. Post depois que eu disse que compraria todas as suas flores.

- Ah, sim. O maldito menino da carroça de flores. - Baxter olhou zangado para a Sra. Witty. - A senhora participou do episódio?

- Não olhe para mim, senhor. - A Sra. Witty apanhou o chapéu dele. - Sou inocente. Sugeri que ir atrás da Srta. Post não era a coisa mais sensata, mas quem dá ouvidos à governanta? Mas nem todas as flores são da carroça. Muitas foram enviadas esta manhã por admiradores da Srta. Ariel.

Charlotte se animou. - É claro. Ariel encantou todos os homens no baile, ontem à noite. Eles caíram

aos seus pés aos montes. - Charlotte, você voltou, afinal. - A voz musical de Ariel soou da outra

extremidade do hall. Ouviram seus passos rápidos na direção da frente da casa. - Estava começando a ficar preocupada. A Sra. Witty disse que você saiu correndo atrás da mulher que afirmou que o Sr. St. Ives a seduziu e abandonou... Oh, Sr. St. Ives. -

Ariel corou, surgindo do corredor. - Eu não o tinha visto senhor. - Não tem importância. - Baxter cruzou os braços e encostou-se ao batente da

porta. - Estou acostumado a ser ignorado. - Não dêem atenção a ele. - Charlotte dirigiu-se para a escada. - O Sr. St. Ives

está de mau humor. Leve-o ao meu estúdio, Sra. Witty. Desço num minuto. Quero me arrumar um pouco. Foi uma manhã um tanto atribulada.

- Atribulada. - Baxter olhou para Charlotte que subia a escada. - Sim, não há dúvida. Apenas outra manhã no laboratório, observando o resultado de uma experiência, não foi mesmo, Srta. Arkendale?

Ela parou e olhou para ele com um sorriso gelado. - Exatamente, Sr. St. Ives. - Lembre-se de que há certos casos em que o resultado de uma experiência leva

algum tempo para se desenvolver - ele disse. - Até nove meses, em alguns deles. Charlotte arregalou os olhos e Baxter viu que estava chocada. Com maldosa

satisfação ele entrou no estúdio. Outro perfume o envolveu. O estúdio estava também cheio de flores. Um vaso

grande com rosas dominava a cena. Nove meses. As palavras o atingiram com o impacto de uma martelada. E se

Charlotte ficasse grávida? Baxter foi direto à mesa das bebidas. O grito de revolta de Charlotte soou do andar de cima no momento em que

Baxter tirava a tampa da garrafa de conhaque. - Desapareceu. - Passos soaram acima da cabeça dele. - O maldito levou. Baxter pôs a garrafa na mesa com um longo suspiro resignado. Um homem não

podia sequer tomar uma dose terapêutica de bebida naquela casa sem ser interrompido.

Foi até a porta do estúdio. Ariel e a Sra. Witty estavam olhando para cima boquiabertas. Charlotte parecia ter acabado de receber um forte choque elétrico.

- O que aconteceu? - Ariel perguntou. - O que foi? A Sra. Witty olhou para ela. - O que aconteceu? Charlotte abriu os braços. - Acabei de dizer. Não ouviram? Ele o levou. - Acalme-se, Charlotte - Baxter disse. Todos ficaram calados e olharam para ele.

- Agora, por que não nos diz exatamente quem levou o quê? - O ladrão que surpreendemos nesta casa a noite passada - ela disse impaciente. - O que tem ele? - Eu pensei que não tinha levado nada, mas me enganei. Só pensei nas coisas

que achei que podiam interessar a um ladrão, prata e coisas assim. - Charlotte respirou profundamente. - Não verifiquei o livro de desenhos de Drusilla Heskett. Estava na gaveta do guarda-roupa.

Baxter ficou gelado. - Está dizendo que desapareceu? - Sim. Não era um ladrão comum, Baxter. Ele queria o livro de desenho. E

encontrou. - Apontou um dedo acusadoramente para ele. - Eu disse que aquele livro continha alguma pista valiosa, St. Ives.

Baxter ajustou os óculos, pensando no possível significado do roubo. - Quando terminar de trocar de roupa, desça imediatamente. Por favor, não fique

perdendo tempo. - Maldito seja, St. Ives. Não se atreva a me dar ordens na minha casa. Além

disso, eu não perco tempo. Fui eu quem seguiu a Srta. Post esta manhã, se está lembrado. Quando tentei contar o incidente, você me... distraiu do assunto no seu

laboratório. Qualquer perda de tempo esta manhã foi de sua parte, senhor. Baxter fechou a porta do estúdio silenciosamente e voltou ao conhaque. Quinze minutos depois, bem mais calma e controlada, Charlotte entrou no

estúdio. Ariel e a Sra. Witty entraram com ela. Baxter estava sentado na bergère na frente da lareira. Olhou para as mulheres e tomou mais um gole de conhaque.

- Afinal chegou - murmurou, levantando-se. Charlotte o ignorou. - Foi uma sorte eu ter arrancado a página do livro com o pequeno desenho de

Drusilla Heskett. - Foi até a mesa e abriu uma gaveta. A página do livro estava exatamente como ela havia deixado na noite anterior, depois que Baxter saiu. - Isto tem de ser a pista. Era a única coisa estranha no livro.

- Achei que havia uma porção de coisas estranhas naquele livro - Ariel disse, alegremente. - Algumas delas bem interessantes.

Charlotte olhou zangada para ela e pôs a página do livro sobre a mesa. - Exatamente por isso tirei esta página. A Sra. Witty espiou o desenho feito com pena e tinta. - Para mim parece uma bobagem. Um triângulo dentro de um círculo, três

vermes nadando e... - Apertou os olhos para ver melhor. - O que é essa coisa no centro? Um dragão?

- Uma espécie de criatura alada, eu creio. - Charlotte franziu os lábios. - É difícil ter certeza. A Sra. Heskett não tinha grande talento para desenho. A não ser para certos tipos de estudos anatômicos.

Baxter foi até a mesa. - Deixe-me ver o desenho. Charlotte sentiu um arrepio em todo o corpo quando ele parou ao seu lado e

olhou para o desenho. Agora tinha toda a atenção dele. O roubo do livro de desenho fez com que ele voltasse a se concentrar na situação.

Era como se a força tranqüila que emanava dele quando se concentrava assim intensamente o envolvesse como uma aura brilhante. Charlotte imaginou se Ariel e a Sra. Witty também o percebiam. Então notou que as duas fizeram um movimento para dar mais espaço para Baxter. Mas na verdade, ele tinha bastante espaço ao lado da mesa. Nenhuma delas parecia ter notado a sutil mudança de posição.

Charlotte quase sorriu. Muitos podiam não perceber conscientemente a sólida força interior de Baxter, mas isso não significava que deixassem de responder a ela instintivamente.

Ele apanhou a folha do livro e examinou mais de perto o desenho. Suas sobrancelhas se juntaram formando uma linha escura acima dos aros dos óculos.

- Há algo de familiar neste desenho. - Charlotte ficou imediatamente alerta. - O que quer dizer? Já viu este desenho em algum lugar? - Talvez. Há muito tempo. - Seus olhos ergueram-se do desenho e encontraram

os dela. - Terei de pesquisar em minha biblioteca. - Acha que tem alguma coisa parecida nos seus livros? - Ariel perguntou,

rapidamente. - Possivelmente. - Olhou outra vez para o desenho. - Não tenho certeza, mas se

estou bem lembrado, é uma coisa muito antiga. - Antiga. - Charlotte estremeceu. - Por que a Sra. Heskett teria copiado um

desenho antigo no seu livro e por que alguém iria querer roubá-lo? - Está supondo que quem levou o livro queria este desenho - Baxter disse. - O ladrão devia querer isto. Era a única coisa diferente e incomum em todo o

livro. - Hum. - Baxter dobrou a folha. - Minha experiência como químico me diz que o

modo mais fácil de encontrar soluções para um problema é começar por atar todas as

pontas soltas. A Sra. Witty suspirou. - Pois me parece que é tudo o que tem até agora, senhor. - Uma ou duas podem ser eliminadas - ele disse. - Com sorte, a situação ficará

mais clara depois que eu as tiver estudado. - Está se referindo à visitada Srta. Post? - Charlotte perguntou. - O que pretende

fazer? - Certificar-me de que não há nenhuma conexão com o assassinato de Drusilla

Heskett - Baxter disse. - O melhor modo de eliminar essa possibilidade é descobrir se foi ou não meu irmão quem a contratou, num ato de maldade deliberada.

- Hamilton? - Ariel abriu a boca ofendida. - Não pode estar sugerindo que Lorde Esherton mandou a Srta. Post contar aquela história absurda para Charlotte?

- Ele acha que Hamilton pode ter feito como uma espécie de brincadeira de mau gosto - Charlotte se apressou a explicar. - Eu disse a St. Ives que é pouco provável.

- Pouco provável? É impossível - Ariel disse com convicção. - O conde é um cavalheiro. Jamais se rebaixaria a uma manobra dessa espécie.

Baxter ergueu as sobrancelhas. - Vejo que Hamilton conseguiu causar uma ótima impressão nesta casa. Ariel mostrou o vaso grande com flores. - Ele mandou estas flores magníficas esta manhã. Seu gosto, como pode ver, é

muito refinado. Não é do tipo de fazer uma brincadeira de mau gosto. Baxter olhou com desprezo para as rosas. - Não é preciso sensibilidade refinada nem um nobre caráter para concluir que é

apropriado enviar rosas para uma dama, na manhã seguinte ao baile. - Uma observação interessante - Charlotte disse, secamente. - Era de se esperar

que um cavalheiro, embora não habituado aos costumes da sociedade, tivesse o bom gosto de enviar flores para uma senhora depois de uma noite especialmente memorável. - Fez uma pausa para efeito. - Ou até mesmo depois de uma manhã memorável.

Baxter olhou para ela surpreso. Charlotte era capaz de jurar que ele corou levemente. Ela o brindou com seu sorriso mais radiante. Ariel estava preocupada.

- Sr. St. Ives, certamente não acredita que seu irmão conspirou com a Srta. Post?

Baxter deu de ombros. - Como eu disse, pretendo descobrir a verdade sobre esse assunto. Se

soubermos qual a ligação da Srta. Post com tudo isto, teremos alguma idéia de como proceder.

Charlotte saiu rapidamente de trás da mesa. - Quero estar presente quando falar com seu irmão. - De modo algum - Baxter disse. Olhou para ele com outro sorriso, não tão brilhante quanto o primeiro. - Deixe-me explicar, St. Ives. Um acordo é um acordo. Ou me leva quando for

falar com Lorde Esherton, ou serei obrigada a concluir que prefere que continuemos a investigação separadamente. Nossa sociedade estará desfeita.

A expressão pensativa de Baxter não escondia completamente a chama que ardia nos seus olhos.

- Então agora é chantagem, Srta. Arkendale? A extensão dos seus talentos continua me surpreendendo.

A acusação ofendeu. Charlotte tentou bravamente disfarçar a dor com um olhar frio e desdenhoso.

- No meu negócio, Sr. St. Ives aprende-se a usar os instrumentos que estão à mão para completar a tarefa.

- Compreendo. - Ele inclinou a cabeça e deu alguns passos em direção à porta. -Bem, espero que tenha gostado do instrumento que usou há menos de uma hora, no meu laboratório, Srta. Arkendale. Posso garantir que aquela barra de ferro especial nunca foi tão bem aquecida num cadinho tão pequeno e quente.

Por um momento, Charlotte não acreditou no que estava ouvindo. Depois o ultraje a atingiu.

- É muita ousadia de sua parte. - Agarrou o objeto pesado mais próximo, um vaso de margaridas.

Ariel gritou alarmada. - Espere, essas flores são minhas. O protesto chegou muito tarde. Charlotte já tinha atirado o vaso que bateu na

porta que Baxter conseguiu fechar a tempo, depois de sair para o corredor. Era meia-noite e meia e Baxter, sentado no escuro, dentro da carruagem, vigiava

a entrada do clube A Mesa Verde do outro lado da rua. Uma leve neblina cobria a cena. Carruagens chegavam e partiam, deixando nos

degraus da frente do clube cavalheiros barulhentos, em vários estágios de embriaguez. Baxter viu Hamilton, Norris e vários outros descer de uma carruagem. Subiram os degraus para a entrada do clube.

- Então? - Charlotte perguntou. - Viu seu irmão entrar? - Sim. Ele conseguiu me evitar a noite toda, mas finalmente o encontrei. - Baxter

fechou a cortina da pequena janela e recostou no banco. - Acho que conheço este lugar. Esta casa era um bordel popular chamado O Claustro.

- Lembro-me de ter ouvido falar do Claustro. - A desaprovação era evidente na voz de Charlotte. - Alguns dos supostos cavalheiros que investiguei no começo da minha carreira o freqüentavam. O que sabe a respeito, senhor?

Baxter esperava que o escuro escondesse seu sorriso rápido e divertido. - Pode estar certa de que só conheço por ouvir falar. - Sei. - Charlotte tossiu discretamente. - Creio que há pelo menos dois anos não

ouço falar do Claustro. - Foi fechado há algum tempo. Evidentemente houve uma mudança na

administração. - Sim. Pode ser um antro de jogo agora, mas se me perguntar está a um passo

de um bordel. Baxter sorriu. No escuro ele mal via o rosto de Charlotte, protegido pelo capuz. Ele não sabia ao certo por que se deixou convencer a levar Charlotte naquela

noite. Independente das ameaças de chantagem, Charlotte tinha um modo todo especial de conseguir o que queria. Uma mulher forte, formidável, sem dúvida. Talvez fosse uma das razões da imensa lista de qualidades dela que o atraíam. Não era o tipo de mulher que desmaia por qualquer coisa ou chora quando quer conseguir algo. Ela enfrentava a pessoa de igual para igual e insistia na defesa do que achava que era seu direito.

Por mais difícil que fosse sua convivência com Charlotte, havia muitas vantagens em uma mulher de vontade forte, Baxter ponderou. Com Charlotte, um homem não precisava gastar tempo ou energia desnecessária com as suscetibilidades femininas.

Ela não reclamou do fato de ele ter feito amor numa mesa do laboratório, por exemplo. Certamente, muitas mulheres se sentiriam ofendidas. Baxter tinha de admitir que faltava ao cenário algo de romântico.

Por outro lado, foi ela quem definiu o interlúdio apaixonado como uma experiência. Baxter pensou que devia ter ficado aliviado por ela não dar muita importância ao caso, mas por alguma razão não conseguia sentir alívio.

Cada dia que passava mais Charlotte perturbava sua existência calma e

ordenada. - O que você vai fazer? - ela perguntou. - Vou entrar no Mesa Verde e arrastar Hamilton até aqui, onde podemos

conversar sem interrupções. - Baxter tirou os óculos e guardou no bolso do sobretudo. - Por que tirou os óculos? - Porque prefiro que não me reconheçam. Os que me conhecem sempre me

viram de óculos. Quero manter esse assunto somente entre mim e Hamilton. - Compreendo - Charlotte disse, gentilmente. - Assunto de família, não é? - Infelizmente, sim. - Mas como vai encontrar Hamilton no meio de tanta gente, sem os óculos? - Um amigo meu, o conde de Masters, é uma espécie de inventor. Ele desenhou

um relógio interessante para mim. - Abriu a cortinada carruagem o suficiente para deixar entrar um pouco de luz. Tirou do bolso o relógio, abriu o vidro e o levou para muito perto dos olhos, como se estivesse tentando ver as horas num quarto escuro. Olhou para Charlotte através do vidro que era, na verdade, uma lente.

- Muito inteligente - Charlotte disse. - Uma espécie de monóculo. - Masters é um homem inteligente. Desenhou alguns instrumentos químicos para

mim. - Baxter fechou o relógio e guardou no bolso. Estendeu a mão para a maçaneta da porta. - Suponho que não adiantaria tentar mais uma vez dissuadir você de estar presente quando eu interrogar Hamilton?

- Poupe seu tempo, senhor. Afinal, quem falou com a Srta. Post fui eu. Se Hamilton for culpado, o que eu duvido, quero fazer algumas perguntas a ele também.

- Era o que eu temia. - Baxter desceu da carruagem. Virou para trás como se tivesse lembrado de alguma coisa. - Tenho uma pergunta ã respeito da visita da Srta. Post.

- O que é? - Em meio a uma coisa e outra, deixei passar um elemento realmente estranho

nisso tudo. - Sim? - Por que você não acreditou na Srta. Post? O que a fez pensar que ela não era

minha amante abandonada? Charlotte respondeu com desdém: - Não seja ridículo, Baxter. Você jamais abandonaria uma pobre mulher grávida

do seu filho. Um ato tão cruel não combina nada com você. Seja quem for que mandou a Srta. Post com aquela história absurda certamente não o conhece muito bem.

Baxter olhou para o nariz reto e firme, a única coisa que aparecia sob o capuz. - Acho muito mais provável - ele disse suavemente - que quem contratou a Srta.

Post não conhece você, Charlotte. Fechou a porta da carruagem antes que ela tivesse tempo de responder. Baxter olhou para trás uma vez enquanto seguia para o Mesa Verde. Ela estaria

segura, ele pensou. O cocheiro de Severedges tomaria conta dela. A despeito da cena desagradável que o esperava, Baxter continuou seu caminho

na neblina com um leve sorriso nos lábios. Muitas mulheres teriam acreditado na história de Juliana Post. Era uma história muito comum. Mulheres sozinhas no mundo caíam nas mãos de cruéis sedutores que não hesitavam em abandoná-las quando o relacionamento se tornava inconveniente.

No curso da sua profissão pouco comum, Charlotte havia conhecido, melhor do que a maioria das mulheres, o lado escuro da natureza masculina. Sua visão dos homens era pragmática, chegando ao ceticismo. Seria natural para ela acreditar no que a Srta. Post contou. Mas nem por um momento ela acreditou.

Baxter saboreou a idéia enquanto se aproximava dos degraus da frente do clube.

Por um motivo que ele não queria examinar, era de importância vital saber que Charlotte tinha acreditado nele, mesmo em face de uma evidência tão impressionante. Sem dúvida tinha alguma afeição genuína por ele, que ia além do simples desejo de uma experiência de paixão.

Uma carruagem parou na frente da casa de jogo no momento em que Baxter começou a subir os degraus. Ele ouviu risos altos e piadas grosseiras gritadas dentro do carro de aluguel. A porta da carruagem abriu e cinco jovens embriagados saíram para a calçada. Um deles perdeu o equilíbrio e caiu sentado no chão. Os amigos acharam hilariante.

Baxter recuou para a sombra e esperou enquanto os recém-chegados pagavam o cocheiro. Quando se voltaram para subir os degraus, ele foi atrás. Ninguém notou sua presença e ele entrou com eles.

O clube Mesa Verde iluminado apenas pela luz da lareira estava cheio. Sem os óculos, a cena aparecia levemente fora de foco, perfeitamente de acordo com o ambiente. Baxter não precisava dos óculos para saber que dificilmente seria notado entre aquela multidão. Era cedo ainda pelos padrões da cidade, mas os homens que lotavam a sala superaquecida já estavam profundamente concentrados no jogo, nas mesas de feltro verde. Ninguém prestou atenção a ele.

As chamas altas crepitavam na lareira enorme iluminando a cena com uma luz infernal. O ar estava cheio do cheiro de cerveja, suor e fumaça.

Baxter encontrou um canto protegido por uma estátua de pedra de uma mulher nua e muito bem-dotada. Tirou o relógio do bolso e o pôs na frente dos olhos, como se estivesse examinando a estátua. Na verdade, examinou a multidão através da lente de aumento. Os traços dos fregueses estavam agora bem definidos.

Nem sinal de Hamilton ou de Norris. Intrigado, Baxter começou a fechar o relógio. Um movimento na escada no

fundo da sala o fez hesitar. Ergueu a lente outra vez e olhou rapidamente. Vários jovens, incluindo Hamilton e Norris, subiam para um dos andares

superiores. Baxter imaginou se havia salas de jantar reservadas lá em cima ou se o novo dono do clube continuava a oferecer os serviços de bordel de modo mais discreto.

Então lembrou-se de que Hamilton dissera algo sobre um lugar especial onde se reuniam os membros do seu clube exclusivo.

Baxter fechou o vidro do relógio e guardou no bolso. Não precisava da lente para atravessar a sala.

Porém, quando chegou perto da escada, viu um vulto grande e vago para sua vista fraca, encostado no corrimão.

No meio da multidão, Baxter tirou o relógio do bolso e arriscou outro exame. Não foi preciso mais de um olhar rápido para reconhecer o homem perto da escada. Era um guarda. Estava ali para proteger os membros do clube de elite e evitar que estranhos partilhassem dos seus prazeres nos andares superiores.

Baxter sentiu um misto de curiosidade e um estranho pressentimento de desastre. O andar térreo do Mesa Verde já era bastante perigoso. O tipo de lugar onde um jovem podia perder muito dinheiro numa noite. Fosse o que fosse que houvesse lá em cima só podia ser muito mais desagradável.

Em que tolice diabólica Hamilton estaria envolvido, Baxter pensou? Quase podia ouvir a voz do pai dizendo a ele para tomar conta do meio-irmão.

Contendo um gemido resignado, Baxter abriu caminho para a porta da frente. Parou para pôr os óculos. Então virou e seguiu para uma passagem que aparentemente levava aos fundos do Mesa Verde.

A maioria dos prédios próximos estava às escuras àquela hora, mas havia luz suficiente das janelas e das cozinhas do clube para se orientar. O clube tinha três

andares. Da passagem, ele via que as janelas do último andar estavam escuras. Mas no segundo, uma pequena réstia de luz passava pelos vidros.

Anos atrás, o Claustro era famoso, Baxter lembrou, atravessando o jardim escuro. Nos seus dias de glória, era o tipo de lugar que proporcionava inúmeras atividades ilícitas e satisfazia os gostos mais exóticos. Naquele tempo, precisava de entradas e saídas clandestinas, além de vigias nas portas e escadas secretas.

Era o tipo de lugar de que seu pai gostava. Viu uma privada no jardim malcuidado. Um homem bêbado saiu do reservado e

entrou no clube por uma pequena porta nos fundos. Pouco depois, Baxter o seguiu. Passou por um aposento para criados. Estava vazio. Um lance de escada circular levava aos andares superiores.

Baxter subiu com cautela. Felizmente, a escada estava em boas condições. Parou no primeiro patamar. A porta que dava para o corredor estava trancada. Não havia levado sua miniatura de gazua e teve de parar para resolver o problema com a haste dos óculos.

Um momento depois estava num corredor escuro. Quando começou a andar na direção da sala onde achava que tinha visto a luz,

ouviu o ruído de passos na escada de madeira. O som era muito leve e muito hesitante para ser feito pelo guarda. Baxter esperou na sombra. Um vulto envolto numa ampla capa entrou no

corredor estreito. Baxter avançou rapidamente e prendeu o intruso pelo pescoço com um dos

braços. - Não se mova. Nem uma palavra. Nem um som - ele avisou, em voz baixa. O vulto ficou imóvel e depois fez um sinal afirmativo, rápido e silencioso. Baxter

sentiu o perfume familiar, um misto de essência de ervas e de cheiro de mulher, inconfundível. Esse perfume estava gravado para sempre nos seus sentidos. Baxter o reconheceria até na hora da sua morte. Sem dúvida seria seu doloroso destino sentir, até no leito de morte, o chamado do desejo sempre que o aspirasse.

- Com todos os demônios, Charlotte. O que está fazendo aqui?

Capítulo XII - Eu vi você sair do clube para a rua. Mas então notei que foi na direção errada.

Eu não sabia o que pensar. - Charlotte estava ofegante, não apenas por causa da ansiedade que a fez sair da carruagem, mas também por causa da corrida pela passagem e a subida da escada.

O choque de ser segura pelo pescoço por um homem, no escuro, só serviu para piorar as coisas. Descobrir que o homem era Baxter foi um alívio tremendo, mas não ajudou a diminuir a velocidade do seu pulso.

Baxter estava zangado. Muito zangado. Havia um tom de aço frio em sua voz que ela jamais tinha ouvido.

- Eu disse para esperar na carruagem. Charlotte se esforçou para respirar profundamente várias vezes. - Eu fiquei preocupada. Não sabia o que estava acontecendo. Pensei que podia

precisar da minha ajuda. - Se eu precisasse teria pedido. - Francamente, Baxter, não precisa ficar zangado comigo. Estamos juntos nisto,

como sempre tenho de lembrar. - Como posso esquecer? - Baxter a soltou e empurrou levemente para a porta. -

Vamos voltar por onde viemos. Depressa. - Mas por que você veio para cá, afinal? - Para encontrar Hamilton. Mas isso pode esperar. A prioridade agora é tirar você

daqui. - Não vejo razão para não continuarmos com seu plano. - Temos uma porção de razões para não fazer isso. Risadas masculinas abafadas soaram vindas da sala no fim do corredor. Baxter

ficou imóvel. Virou para a direção do som. Charlotte olhou também. Havia uma janela pequena, sem cortina, na outra extremidade do corredor

estreito, por onde entrava a claridade necessária para iluminar as duas portas fechadas, nos dois lados do corredor. Um tênue raio de luz aparecia sob a última porta à esquerda.

- Hamilton está lá dentro? - Charlotte perguntou em voz baixa. - Acho que é aí que os membros do clube se reúnem. - Você pretende espioná-lo? - Charlotte quis saber. - Digamos que estou curioso. - Baxter estendeu o braço na frente dela para abrir

a porta que dava para a escada. Passos soaram na escada. Charlotte ficou alarmada outra vez. Alguém estava

subindo. Baxter não praguejou em voz alta, mas ela quase podia ouvir seu silencioso com todos os demônios.

Ele fechou a porta tão silenciosamente quanto a havia aberto. Segurou o braço dela e a puxou pelo corredor. Charlotte notou que ele não

tentou as três primeiras portas, apenas a seguinte. Com alívio ela viu a porta abrir quando ele a empurrou. Não a agradava a idéia de ser apanhada no corredor por quem subia a escada.

Seria não só desagradável e embaraçoso, mas definitivamente escandaloso se ela e Baxter fossem descobertos naquele lugar. Os elegantes jovens do clube certamente ficariam furiosos quando descobrissem que estavam sendo vigiados por Baxter e sua noiva. A história se espalharia na alta roda como fogo na palha.

Baxter a fez entrar na pequena passagem para a sala. Recebida por um forte cheiro de mofo, Charlotte franziu o nariz. Evidentemente aquela sala não era arejada há muito tempo. Ela se moveu cautelosamente, sem enxergar nada no escuro.

Outro som distante de risadas partiu da sala no fim do corredor. Baxter fechou a porta rapidamente. Pelo que podia ouvir dos movimentos dele, Charlotte deduziu que Baxter estava com o ouvido encostado na parede, ouvindo os passos da pessoa que acabava de subir a escada dos fundos.

Charlotte deu um passo e bateu com força em outra porta que devia dar para a sala ao lado, onde estavam Hamilton e os amigos.

No corredor, as tábuas do assoalho estalaram quando a pessoa passou pela frente da sala onde eles estavam. Fosse quem fosse não parou. Um criado, sem dúvida, ela pensou. Talvez levando clarete para os membros do clube. Ela e Baxter ficariam presos ali até o homem voltar para baixo.

Ela tocou no braço de Baxter. - O que é? - ele perguntou no ouvido dela. - Outra porta. Dá para a sala ao lado. Você pode ou vir o que eles dizem. - Tenho de sair daqui. - Você fica repetindo isso, mas não podemos fazer nada enquanto o criado não

voltar para baixo. E já que estamos por perto, parece uma pena desperdiçar a oportunidade.

Baxter hesitou. Charlotte segurou a mão dele e o levou para a porta. - Com todos os demônios. Mas Charlotte percebeu que ele começava a ceder. Imaginou se Baxter a

considerava uma má influência. Baxter passou por ela e abriu a porta cuidadosamente. Outra onda de ar viciado os agrediu. Charlotte se inclinou para espiar para

dentro. A luz que entrava por uma janela parcialmente coberta por uma cortina dava para ver alguma coisa. Viram uma cama velha, um guarda-roupa e um lavatório sobre o tapete puído. Um quadro emoldurado pendia da parede.

Baxter tocou os lábios de Charlotte com a ponta do dedo. Ela não precisava disso para ficar em silêncio. Apenas uma parede os separava de Hamilton e seus amigos.

Ouviram as risadas outra vez. Depois, vozes, muito altas. Charlotte viu intrigada, Baxter atravessar o quarto, ir até o guarda-roupa, abrir a

porta cautelosamente e examinar o interior, como se esperasse encontrar alguma coisa.

Evidentemente desapontado, ele recuou, fechou a porta do guarda-roupa e foi para a frente do quadro. Depois de alguns momentos de exame atento, ele o levantou da parede.

Um pequeno círculo de luz apareceu. Charlotte olhou atônita para o pequeno orifício na parede, de onde era possível ver a sala onde estavam Hamilton e seus amigos. Ela pensou em perguntar a Baxter, mais tarde, como ele sabia da existência daquela abertura atrás do quadro.

Baxter aproximou os olhos do orifício. Charlotte se adiantou ansiosa para olhar também e sentiu um leve cheiro de fumaça de ervas. Lembrava um pouco o incenso na casa de Juliana Post. Mas esse era mais forte, mais intenso. Viu Baxter recuar o suficiente para respirar profundamente antes de voltar ao posto de vigia.

Agora podiam ouvir com maior clareza as vozes dos membros do clube, mas vagamente amortecidas, como se eles estivessem não apenas embriagados, mas um pouco sonolentos.

- Pode ir, homem - alguém disse para o criado. A porta abriu e fechou. Passos soaram no corredor. - Está na hora de chamar nosso mágico - um dos homens disse, com voz

sonolenta. - Vamos ver quais as demonstrações dos poderes do plano metafísico ele nos preparou esta noite.

- Um teste - outro homem disse, com voz cantante. - Ele nos prometeu um teste. Deixemos que o grande mago mostre suas habilidades esta noite.

- Excelente idéia - alguém disse, com voz fraca. - Vamos ver o quanto nosso mágico é esperto. Vamos ver como ele faz Norris entrar em transe. Você se ofereceu para isso, não foi, Norris?

- Por que não? - A voz de Norris era lânguida, mas decidida. - Sempre disposto a cooperar para uma experiência no plano metafísico. Chamem o maldito feiticeiro.

Ouviram um ruído na sala ao lado, como se estivessem mudando os móveis de lugar. Baxter recuou do orifício na parede para respirar outra vez. Charlotte viu a luz que entrava pela pequena abertura diminuir até quase apagar. Alguém havia abaixado a luz na sala ao lado. Os membros do clube começaram a cantar com uma cadência sonhadora e sepulcral.

"Chumbo e prata, electro e ouro, Todos os poderes, antigos e velhos. Quando as leis da esmeralda revelam o signo. Mercúrio, enxofre e sal combinam. Puro conhecimento existe para ser visto por todos Mas poucos jamais conhecerão a chave..." Os homens repetiram o canto, as vozes cada vez mais arrastadas, as línguas

embaraçadas. Alguém riu nervosamente. Charlotte puxou a manga de Baxter. Ele hesitou. Ela o empurrou de leve e com

relutância ele se afastou para o lado para que ela pudesse ver. Charlotte respirou profundamente, ficou nas pontas dos pés e encostou o olho na

abertura. Viu uma sala com luz muito fraca, o ar cheio de fumaça de incenso. Havia um guarda-roupa grande encostado numa das paredes. Ela reconheceu Hamilton e Norris. Todos estavam recostados em grandes almofadas turcas em volta de um braseiro. Cada um tinha um copo de clarete na mão, mas pareciam mais interessados no perfume das ervas que queimavam do que no vinho.

“Aquele que os herdeiros de Hermes desejam É revelado aos que laboram no fogo.”

As palavras eram agora quase ininteligíveis. Os homens cabeceavam sobre os copos de vinho. O incenso que passava pela pequena abertura a incomodava. Seus olhos começaram a lacrimejar, ofuscando a visão. Ela virou a cabeça para respirar um pouco do ar menos pesado da sala onde estavam.

- Eis o mágico - um dos homens anunciou com uma breve risada. - Ele aparece na nossa frente.

Charlotte encostou o olho na abertura outra vez. Com espanto viu outro homem dentro da câmara secreta. Tinha certeza de que a porta não fora aberta. Era como se ele simplesmente tivesse se materializado de dentro do guarda-roupa.

O mágico atravessou a sala vagarosamente e parou no meio dos homens sonolentos. Vestia um manto negro que o cobria da cabeça aos pés. Um capuz pesado quase cobria seus olhos. Charlotte não podia ver o rosto dele - por causa da sombra do capuz, ela pensou. Então o recém-chegado virou um pouco a cabeça. A luz refletiu numa máscara de seda negra brilhante que cobria todo o rosto.

É só um jogo de cavalheiros, ela pensou. Uma diversão que Hamilton e os amigos inventaram. Mas não pôde conter o arrepio de medo que percorreu seu corpo.

- Vamos ver se seus poderes são realmente fortes - Norris disse, num tom de desafio que soou falso.

O vulto coberto de negro levantou a mão. Um objeto brilhante pendia dos seus dedos. Os membros do clube olharam para ele fascinados.

Dedos gelados percorreram a espinha de Charlotte. O incenso estava quase insuportável. Ela tentou ver melhor o pingente, mas era impossível ver a forma exata daquela distância.

Ela se encolheu num gesto nervoso quando Baxter pôs a mão no seu ombro.

Sem uma palavra, Charlotte afastou-se da abertura. Baxter olhou. Charlotte encostou o ouvido na parede. - Já sei o que vamos fazer - um dos homens disse. - Ponha Norris num transe

que possa ser testado mais tarde. - Faça Norris cacarejar como uma galinha, amanhã à noite, na festa, em

Clapham. - Faça com que ele mostre o traseiro em Pall Mall na hora de maior movimento. - Convença-o a dançar com a filha de Lady Buelton que tem cara de cavalo. - Não existe poder - Norris declarou com voz cantada - nem neste mundo nem

no plano metafísico que possa me fazer dançar com a filha de Lady Buelton. Risadas fracas receberam a afirmação. Então, tudo ficou em silêncio. Charlotte apertou o ouvido contra a parede, mas não ouviu mais nada. Puxou

outra vez a manga de Baxter. Ele hesitou e depois cedeu o lugar para ela. A sala estava mais escura. Alguém tinha apagado a luz. O carvão queimava ainda

no pequeno braseiro, mas o brilho vermelho-dourado não iluminava os rostos dos homens.

O mágico acendeu uma única vela e a pôs na frente de Norris. Charlotte viu o vulto de negro movendo-se na sombra. O manto flutuava em

volta dele como asas de um enorme pássaro negro. O pingente na sua mão oscilava suavemente, refletindo a luz da vela.

Os homens começaram a cantar outra vez, agora num ritmo cadenciado e pesado que ecoava nas veias de Charlotte.

"Chumbo e prata, electro e ouro, Todos os poderes, antigos e velhos." Charlotte se esforçou para ver o que acontecia, ignorando o cheiro forte de

incenso. Teve a impressão de ouvir o mágico dizer alguma coisa, mas sua voz era mais baixa do que a dos homens que cantavam. Outro arrepio percorreu sua espinha, mas ela não se moveu.

Precisava chegar mais perto, ela pensou. Queria ver o pingente. Precisava ver o pingente. Nada parecia mais importante.

Baxter segurou com força no pulso dela e a afastou da abertura na parede. Charlotte tentou se libertar da mão dele. Baxter pôs a outra mão sobre sua boca e a puxou com força para longe da abertura. Charlotte começou a lutar para se desvencilhar. Baxter segurou com mais força, com a palma apertando seus lábios. Segurou-a contra o peito imobilizando-a.

Zangada, Charlotte tentou soltar os dedos dele. Baxter apertou mais. Charlotte percebeu que sua cabeça parecia estar girando. Respirou fundo várias vezes o ar não carregado de incenso. De repente, o pequeno quarto iluminado pelo luar onde estavam ficou em foco outra vez. Ela relaxou o corpo bruscamente contra o de Baxter.

O que tinha acontecido, ela se perguntou, mortificada com o próprio comportamento. Com a mão cobrindo ainda os lábios dela, Baxter a puxou para a porta. Ele estava absolutamente certo, ela pensou. Era melhor saírem dali enquanto os membros do clube e seu mágico de estimação estivessem ocupados com o estranho ritual.

Tocou na mão de Baxter para avisar que estava pronta para acompanhá-lo. Depois de breve hesitação, ele tirou a mão dos lábios dela. Charlotte não disse nada.

Baxter segurou a mão dela e a levou para a porta. Entraram no primeiro quarto em que tinham estado.

Baxter foi até a porta, abriu e examinou o corredor. Depois puxou Charlotte para fora do quarto.

Seguiram cautelosamente até a porta que dava para a escada nos fundos do prédio. Baxter a abriu, olhou para baixo e inclinou a cabeça afirmativamente.

- Não tem ninguém na escada. Eu vou na frente. Precisamos nos apressar.

Charlotte não discutiu e desceu atrás dele a escada estreita em espiral. Baxter parou outra vez, brevemente, na pequena sala dos criados no fim da escada. Não viu ninguém. Ouviam o ruído distante da sala de jogo.

Um momento depois estavam fora da casa. A neblina tinha se adensado enquanto estavam dentro do clube e cobria todo o jardim, refletindo com um brilho fantasmagórico a luz das janelas.

Quando passaram pela privada envolta na névoa, ouviram um homem cantando com voz gutural uma canção indecente.

"Então eu mostrei para ela meu ferro e disse, pode escolher. A bela dama corou, gaguejou e suspirou.

É impossível escolher, por isso fico com os dois, ela exclamou." Charlotte deixou que Baxter a conduzisse para a passagem estreita onde era

quase impossível enxergar alguma coisa. A ponta do seu sapato bateu num objeto sólido. Com uma careta de dor, ela conteve um gemido.

- Você está bem? - Baxter perguntou sem diminuir o passo. - Sim. Foi só um engradado vazio, creio. Baxter não respondeu. Viraram a esquina e chegaram à rua. Carruagens

passavam na neblina, as luzes brilhando sinistramente na névoa densa. Gritos e risos de bêbados ecoavam dos degraus da frente do Mesa Verde.

Charlotte fechou mais o capuz em volta do rosto. Baxter, ao lado dela, tirou os óculos, abaixou a aba do chapéu e levantou a gola do sobretudo. Esses cuidados, embora simples, modificaram extremamente a aparência dos dois. Baxter conduziu Charlotte para o outro lado da rua.

Pouco depois estavam a salvo, dentro da carruagem. Charlotte soltou o ar dos pulmões com alívio e recostou-se no banco, assim que a carruagem partiu. Baxter estava acendendo o lampião do interior da carruagem, quando ela perguntou.

- O que era tudo aquilo? - Creio que Hamilton e os amigos iam assistir a uma sessão de hipnotismo. -

Terminou de acender a luz e recostou-se também no banco. Charlotte olhou atentamente para ele. A luz realçava os traços fortes do rosto,

como se fosse uma máscara, e refletia nas lentes dos óculos. Ela quase podia vê-lo mergulhando na vasta imensidão do pensamento. A inteligência fria apagava qualquer sinal de emoção nos olhos dele.

- Magnetismo animal, quer dizer? - ela perguntou. - Sim. Com os efeitos reforçados por algum tipo de droga, neste caso. - É claro. O incenso. - Charlotte ficou intrigada. - Acho que eu respirei um pouco

demais, no fim. Foi muito estranho, mas senti uma vontade intensa de ver o pingente que o mágico balançava na frente de Norris. Era como se eu simplesmente precisasse ver.

- Eu sei - Baxter disse, secamente. - Você foi muito insistente. Charlotte corou. - Pode ficar certo de que foi um efeito passageiro. Sinto-me perfeitamente

normal agora. - Charlotte, minha querida, a palavra normal nunca se aplicou a você. - Ela não

sabia como interpretar aquilo, por isso deixou passar. - Li relatórios do Dr. Mesmer acerca dessa bobagem e estudei as descrições dos

que afirmam usar técnicas similares com efeitos notáveis. Mas sempre pensei que tudo não passasse de um tipo de charlatanismo.

- Eu também pensei, mas os poetas estão muito entusiasmados com o método. Bem como meu mordomo Lambert, por falar nisso. Está tratando a dor nas juntas com o Dr. Flatt.

- Mas o que vimos esta noite, nada tem a ver com tratamento médico.

- Não. - Baxter olhou para a rua envolta na neblina por uma pequena abertura na cortina. - Mas dizem que certas pessoas, principalmente os seguidores de um homem chamado Mainauduc, fazem experiências com o mesmerismo para investigar o oculto.

- Oculto? - Alquimia, por exemplo. - O canto - Charlotte murmurou. - Pensei ter ouvido algumas referências à

alquimia naquele poema estranho que eles usaram para chamar o mago. Mercúrio, enxofre, sal.

- Está certa. - Baxter não olhou para ela, aparentemente absorto na noite escura. - Mercúrio, enxofre e sal foram usados pelos alquimistas como base para todas as coisas, incluindo ouro. Havia uma teoria segundo a qual se alguém conseguisse separar a essência sobrenatural dessas substâncias da forma material em que são encontradas, possuiria, entre outras coisas, o segredo de transformar qualquer metal em ouro.

Alguma coisa na voz dele chamou a atenção de Charlotte. - Entre outras coisas? O que mais pode um alquimista desejar além da

capacidade de transformar chumbo em ouro? Baxter olhou para ela. As chamas perigosas brilhavam atrás das lentes. - Para um verdadeiro alquimista, o segredo da transmutação de qualquer metal

em ouro não era mais do que um sinal de que ele estava no caminho certo. - Não compreendo. Qual o verdadeiro objetivo dessas experiências? - Os alquimistas buscavam a Pedra Filosofal, o conhecimento secreto e

fundamental do mundo que abriria as portas para o poder ilimitado. Outro arrepio subiu pela espinha de Charlotte. Não era diferente do que sentiu

quando estava espiando o mágico. Olhou para Baxter, fascinada como sempre pelo fogo frio dos olhos dele.

Isso era diferente. Baxter era diferente. Não tinha nada em comum com o mago vestido de negro que ela acabava de ver.

Mas uma mente poderosa aliada a uma vontade inabalável era sempre uma combinação perigosa. E Baxter possuía as duas coisas.

Os sons da rua perdiam-se na distância. A névoa e a noite pareciam absorver tudo até o interior da carruagem se transformar no único lugar sólido do mundo. Tudo o mais era feito de névoa insubstancial.

Ela estava presa naquela esfera de luz de lampião com seu amante, um homem cujos desejos ainda não reconhecidos rivalizavam com os dos antigos alquimistas. Naquele momento parado no tempo, ela compreendeu que se Baxter não descobrisse que o amor era o nome verdadeiro da Pedra Filosofal que ele procurava, eles dois podiam ser consumidos pela chama das suas paixões.

- O que foi Charlotte? Você parece estranha. A pergunta quebrou o encantamento. Charlotte piscou os olhos e os desviou do

olhar atento de Baxter. - Não foi nada - ela disse. - Eu só estava pensando na outra referência à alquimia

naquele canto. O que significa "os que laboram no fogo"? - Era uma velha expressão para designar os alquimistas. Surgiu porque todo seu

trabalho era feito num cadinho aquecido com fogo. - E a referência a Hermes? - Hermes Trismegisto. Muitos acreditavam que ele era a fonte das leis da

alquimia supostamente gravadas numa tábua de esmeralda. - A Mesa Verde - ela murmurou. O sorriso de Baxter era sem alegria. - Sim. O nome do próprio inferno. Ao que parece, Hamilton e seus amigos

fizeram do mesmerismo e da alquimia as vigas mestras do seu clube secreto. Acrescentaram alguns rituais e ervas e encontraram um mágico para diverti-los.

- Talvez ele os tenha encontrado - Charlotte sugeriu. - É possível. Um grande número de charlatães enriqueceram depois de atrair

pessoas da alta classe social. A maioria das pessoas da classe alta vive se queixando de tédio. Esse tédio infindável as faz procurar coisas exóticas e estranhas para se divertir.

- Suponho que não há nada de mal na escolha de divertimento de Hamilton - Charlotte disse pensativa. - Seu clube secreto parece ser menos perigoso do que a maioria dos clubes. Pelo menos não está arriscando a vida em corridas de fáetons à meia-noite. Nem vai às piores áreas da cidade à procura de novidades. O Mesa Verde não é um estabelecimento nobre, mas há piores.

- Isso é verdade. - Baxter voltou seu olhar para a noite e a névoa. O silêncio parecia flutuar em volta dele.

- O que o preocupa, Baxter? - Conexões. - Como assim? Quando ele se virou para ela, Charlotte sentiu outra vez o frio na espinha. - O pequeno desenho de Drusilla Heskett. - O que tem ele? - Sei agora por que me pareceu vagamente familiar. Estou quase certo de que eu

o vi há muito tempo em um dos textos antigos de alquimia da minha biblioteca. Charlotte perguntou, alarmada: - Você acha que está relacionado com a alquimia? - Não posso dizer com certeza. Ainda não o localizei. Pode levar algum tempo.

Há anos que o vi e não me lembro em que livro. - Meu Deus. - Charlotte examinou as implicações disso. - Significa que há uma

conexão entre o clube Mesa Verde e o assassinato da Sra. Heskett? - É só uma possibilidade - Baxter acentuou, em voz baixa. - E por sinal, pouco

provável. Mas pode estar certa que vou procurar. - Por que pouco provável? - Charlotte sentia-se quase febril com a descoberta. -

É um elo direto. Não esqueça de que a Sra. Heskett estava tendo um caso com Lorde Lennox e o filho dele, Norris, é sócio do clube. Era ele quem ia ser objeto da experiência de hipnotismo esta noite.

- Sim, mas o amante de Drusilla era Lorde Lennox, não o filho. - Baxter sorriu. -Acho que posso afirmar com certeza que Lennox não tem nada a ver com o Mesa Verde. Não é seu tipo de coisa. De qualquer modo, parece que todos os sócios são jovens da idade de Hamilton.

- Talvez, mas é possível que a pobre Drusilla tivesse obtido alguma informação sobre um membro do clube, enquanto estava envolvida com o pai de Norris. - Charlotte franziu a testa. - Não posso imaginar que tipo de informação poderia fazer com que a matassem.

- Esse é o grande mistério. O que ela podia saber que valia sua vida? Os sócios do clube parecem estar brincando com mesmerismo, mas tanta gente faz isso hoje em dia.

- Não estou gostando disso, Baxter. - Nem eu. - Se há um assassino no Mesa Verde, seu irmão pode estar em perigo. - Baxter

olhou para ela outra vez. - Vamos fazer isso passo a passo, exatamente como uma experiência bem-feita.

Primeiro, vou confirmar minhas suspeitas sobre o desenho. Depois, tentaremos descobrir o nome do dono do clube Mesa Verde. Seja quem for ele deve saber alguma

coisa a respeito. Charlotte olhou para ele com indisfarçada admiração. - Eu acredito senhor, que vai ser um assistente extremamente útil.

Capítulo XIII Era um livro pequeno, um dos mais antigos da biblioteca de Baxter. Há muito

tempo ele não o abria. Um dos muitos textos sobre alquimia, adquiridos através dos anos, ele não sabia ao certo por quê.

Alquimia era um assunto que pertencia ao passado, não à era moderna. Era o lado escuro da química, uma mistura diabólica de ocultismo, especulação metafísica e segredos sobrenaturais. Tudo bobagem.

Mas sempre o intrigou a sugestão de profundo mistério que pairava sobre a alquimia, especialmente quando era jovem. A procura infindável e obsessiva da Pedra Filosofal, das leis básicas que governam a natureza, o atraía de um modo profundo e elementar que Baxter não sabia explicar.

Por isso tinha uma coleção de livros como aquele. A capa de couro estava rachada, mas as páginas grossas em ótimo estado. Se

não estivesse exausto depois da longa noite em claro, acharia graça no título da primeira página. Na longa tradição dos alquimistas que escreveram tratados sobre o assunto, o autor escolhera um pseudônimo bombástico. Aristóteles Augustus.

Quase tão pomposo quanto Basil Valentine, Baxter pensou, o pseudônimo que havia usado para seu livro Conversações sobre química. Mas acontece que tinha só vinte anos quando escreveu recém-formado de Oxford. Achou que precisava de um pseudônimo que tivesse peso.

Basil Valentine era um lendário alquimista, um homem de mistério, que havia trabalhado profundamente nas artes ocultas do fogo. Tinha fama de ter descoberto grandes segredos e aprendido a natureza do poder elementar.

Em resumo, o nome parecia muito mais interessante e romântico do que Baxter St. Ives.

Baxter gostava de pensar que tinha amadurecido muito desde que saiu de Oxford.

Com as duas mãos apoiadas na mesa polida de ébano, ele examinou o livro aberto na sua frente. A tradução do título em latim era, A verdadeira história dos segredos do fogo.

O desenho, a representação muito simples de um triângulo dentro de um círculo, estava no centro do pequeno livro. Ao contrário do desenho de Drusilla Heskett, este era mais claro. As linhas em S não eram vermes, mas vários animais mitológicos. Os pontos eram símbolos minúsculos que Baxter reconheceu como tendo referências na alquimia.

Era a mistura habitual de metáforas e códigos tão apreciada pelos alquimistas. Os antigos gostavam imensamente do oculto e se esforçavam ao máximo para esconder seus segredos dos não iniciados. Baxter sabia que estava vendo um diagrama que devia ser uma chave da alquimia, uma descrição pictórica de uma experiência secreta que, se conduzida com perfeição, levaria à descoberta da Pedra Filosofal.

Não havia dúvida de que representava uma ligação direta com o clube Mesa Verde. Mas a questão permanecia. Por que Drusilla Heskett copiou o diagrama no seu livro de desenhos? Por que alguém achou que precisava roubar o livro da casa de Charlotte e por que Drusilla foi morta?

Baxter fechou A verdadeira história dos segredos do fogo e olhou para o relógio grande encostado na parede. Cinco e meia da manhã. Depois de deixar Charlotte em casa, ele não conseguiu dormir. A necessidade de encontrar as respostas o fez passar o resto da noite na biblioteca. Estava em mangas de camisa, o casaco e a gravata dobrados sobre uma cadeira.

Cansado, tirou os óculos e apertou com dois dedos a parte superior do nariz. Um mau pressentimento parecia pousado no seu ombro como uma negra ave de rapina. Sentia o perigo crescer a cada momento. Precisava formular um plano de ação o mais depressa possível. O objetivo mais importante era proteger Charlotte enquanto resolvia os problemas. Mas primeiro precisava dormir um pouco.

Um baque surdo e uma voz alta interromperam seus pensamentos. - Saia do meu caminho, seu grande idiota. Não pode me deter. Afaste-se de

mim, maldito. Baxter suspirou. A nova governanta tinha um vocabulário de estivador.

Considerando o lado positivo, ela sempre levantava cedo. A última, antes dela, quase sempre dormia até depois do café da manhã.

Outro baque surdo no corredor. - Não fico aqui nem mais um minuto. Eu teria ido embora ontem se minha irmã

pudesse me arranjar uma cama para a noite. - Se a senhora pelo menos quisesse tentar mais quinze dias, Sra. Pearson. - A

voz suplicante de Lambert soava abafada no outro lado da parede. - É tão difícil encontrar criados. E o Sr. St. Ives paga muito bem, a senhora sabe.

- Não me importa quanto aquele louco está disposto a pagar aos seus criados. Todas essas coisas estranhas no laboratório. E em pleno dia, também. Uma mulher gritando como se estivesse sendo torturada por demônios. Não vou tolerar esse tipo de coisa. Saia da frente da porta, seu velho tolo.

Outro breve murmúrio de protesto de Lambert, uma exclamação em voz alta e um baque definitivamente final. A porta da frente bateu com força suficiente para fazer estremecer a parede.

Silêncio. Baxter fechou os olhos, resignado, quando ouviu a leve batida na porta, logo

depois. - O que foi Lambert? - Virou-se vagarosamente para a porta. Lambert ficou

parado na porta, angustiado. Aparentemente tirado da cama à força, não teve tempo para se vestir adequadamente. O cabelo grisalho e ralo estava despenteado, a jaqueta desabotoada e só um pé estava calçado. Conseguiu tossir discretamente com dignidade, antes de falar.

- Com sua licença, senhor. A nova governanta acaba de pedir demissão. - Com todos os demônios. Não houve nenhuma explosão, nenhum flash de luz,

nenhuma experiência com eletricidade. Qual foi o problema desta vez? - Entre outras coisas, a Sra. Pearson aparentemente ficou perturbada com o...

bem... o incidente no laboratório, ontem. - Que incidente? Eu não fiz nenhuma experiência ontem. - Baxter lembrou então

do que tinha feito no laboratório no dia anterior. Estava torturando diabolicamente uma senhora. Sentiu uma sensação estranha no rosto. Meu Deus. Estava ficando corado.

- O grito de mulher - ele murmurou. - Sim, senhor. - Lambert passou o peso do corpo para o outro pé,

desajeitadamente. - O grito de mulher. Baxter ficou muito sério. - Eu estava apenas demonstrando a técnica mais eficaz para operar o fole. Minha

noiva interessa-se por assuntos científicos. Ela ficou muito entusiasmada quando viu a chama viva produzida.

- Certamente, senhor. - Lambert parecia triste. - Deve ser muito agradável poder operar satisfatoriamente um fole. O meu há anos me dá trabalho.

- Sim, muito bem, por que está aí parado, Lambert? Tome café, depois vá às agências procurar outra governanta.

- Sim, senhor. - Lambert inclinou a cabeça. - Devo preparar ovos e torrada para o senhor?

- Não é necessário. - Baxter passou a mão na nuca. - Vou dormir um pouco. Tive uma noite muito longa.

- Muito bem. - Ah, mais uma coisa. - Baxter foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta, tirou

uma folha de papel, apanhou a pena e escreveu rapidamente. - Por favor, mande levar esta mensagem à casa dos Esherton o mais depressa possível.

- Sim, senhor. - Lambert franziu a testa como se tivesse se lembrado de alguma coisa. - Por falar em mensagens, senhor, viu a que eu deixei na bandeja na mesa do hall? Chegou ontem à noite, quando o senhor estava fora.

- Não, eu não vi. - Da sua tia, eu creio. - Lambert foi até o hall, apanhou o papel dobrado da

bandeja de prata e o levou para a biblioteca. Baxter leu a mensagem de Rosalind enquanto esperava secar a tinta da que

acabava de escrever. Querido Baxter Alguma novidade? Estou ansiosa por notícias suas. Certamente já deve ter

descoberto alguma coisa. Sinceramente, Lady T. P.S. Lady G. já está querendo saber a data do casamento. Eu consegui distraí-la

por algum tempo, mas não posso fazer isso para sempre. Você sabe que ela é uma bisbilhoteira inveterada. Talvez seja melhor anunciar um dia num futuro distante? No Natal, por exemplo?

Como se ele não tivesse problemas suficientes, Baxter pensou. Ainda por cima,

Rosalind queria determinar uma data fictícia para coroar o seu noivado fictício com Charlotte.

- Com licença, senhor. - Lambert parecia mais preocupado do que de hábito. - É claro que vou providenciar outra governanta e mandarei enviar a mensagem. Mas este é o dia da minha consulta com o Dr. Flatt. Se não se importa, senhor, eu gostaria muito de não faltar. Minhas juntas estão bastante doloridas esta manhã.

- É claro, é claro. Não falte à consulta. - Então se lembrou. - O Dr. Flatt usa algum tipo de erva ou incenso na sua terapia?

- Não, senhor. Ele usa a força do olhar e certos movimentos das mãos para focalizar o magnetismo animal. Funciona maravilhosamente, de verdade.

- Compreendo. - Baxter bocejou e dobrou o papel para Esherton. - Juro que eu não sei o que faria sem você, Lambert.

- Eu tento agradá-lo, senhor - Lambert apanhou o papel e saiu, caminhando lenta e dolorosamente para a cozinha.

Baxter olhou para a escada pela porta aberta. Seu quarto parecia longe demais no momento. O sofá estava mais perto e muito mais conveniente.

Fechou a porta da biblioteca, atravessou a sala para deixar os óculos sobre a mesa onde ficava a garrafa de conhaque. Então deitou no sofá por um momento, olhou para o teto. Acima de tudo estava a segurança de Charlotte.

O sono o venceu. As abas pesadas e escuras da capa giravam em volta do monstro no corredor.

Era um alívio não poder ver o rosto dele na sombra. Uma parte dela não queria saber nada além do que já sabia sobre a criatura. Era como se um senso inato e profundo de decência resistisse à necessidade de olhar para o mal e ver sua face em forma

humana. Mas sua mente a avisava que o mal que não podia ser identificado e não tivesse

nome era muito mais perigoso no seu anonimato. Ela segurou com mais firmeza a pistola.

"Saia desta casa imediatamente", ela murmurou. O riso sonoro, belo e musical do monstro soou como ondas de medo no escuro.

As pequenas ondulações moveram-se para além do passado, para o futuro, onde ele sabia que a pistola não estava carregada.

“Acredita no destino, pequeno anjo vingador?”, o monstro perguntou suavemente.

A porta do quarto abriu violentamente. - Charlotte, Charlotte, acorde. Charlotte abriu os olhos. Viu Ariel correndo para sua cama. A saia da sua

camisola e um robe vestido às pressas agitavam-se sobre os pés descalços. - Ariel? - Você gritou. Devia estar sonhando. Um pesadelo acho. Você está bem? - Sim. - Charlotte sentou, recostada nos travesseiros. Seu coração estava ainda

disparado. Sua pele, úmida de suor. - Sim. Estou bem. Um pesadelo. Nada mais. - Provocado por esse negócio de Ficar investigando a morte de Drusilla Heskett,

sem dúvida. - Ariel parou para acender uma vela na mesa-de-cabeceira. A chama iluminou seu rosto preocupado. - Foi um dos velhos sonhos? Como aqueles que você tinha depois que Winterbourne foi assassinado?

- Sim. - Charlotte dobrou os joelhos sob o acolchoado e os segurou com os braços. - Foi um daqueles. Há muito tempo não me incomodavam. Pensei que tivessem desaparecido para sempre.

Ariel sentou na beirada da cama. - O que exatamente você e St. Ives fizeram esta noite? Você voltou tão tarde.

Não a vi mais depois que saiu do sarau dos Hatrich. Aonde vocês foram? - É uma longa história. Conto tudo de manhã. Basta dizer que Baxter tentou

localizar Hamilton no clube, mas não conseguimos falar com ele. - Compreendo. Depois de uma breve hesitação, Charlotte disse: - Hamilton alguma vez falou sobre mesmerismo com você? - Magnetismo animal, quer dizer? - Ariel tentou lembrar. - Sim, ele mencionou

quando saímos para o terraço, no baile dos Clyde. Acho que ele se interessa pelo assunto. Parece saber bastante a respeito. Afirmou que o potencial do mesmerismo é ignorado pelos cientistas modernos, como... como...

- O irmão dele? - Bem, sim. - Ariel suspirou. - Ele falou com desprezo sobre o interesse de St.

Ives pela química. - Compreendo. - Charlotte empurrou o acolchoado para baixo, levantou da cama

e foi para a janela. - Baxter e eu ficamos sabendo esta noite que Hamilton e seus amigos estão fazendo experiências com mesmerismo, no clube.

- O que tem isso? Muitas pessoas criam clubes e sociedades para investigar assuntos científicos.

- Sim, eu sei. - Charlotte tocou o vidro frio da janela com as pontas dos dedos. Não sabia como explicar o medo estranho e a fascinação instintiva que sentiu naquela noite, enquanto observava as atividades do Mesa Verde. O que tinha visto não era bom. Agitou sua imaginação a ponto de trazer de volta os antigos pesadelos. - Porém, temo que o clube de Hamilton seja um tanto diferente.

- Charlotte, faço questão de dizer que estou cada vez mais preocupada com esta

situação. - Eu também. - Era um alívio dizer isso em voz alta. Charlotte virou-se para a

irmã. - Baxter e eu achamos que há uma ligação entre o clube Mesa Verde e a morte de Drusilla Heskett.

- Não. - Ariel ficou de pé. - Não está insinuando que Hamilton tenha alguma coisa a ver com o assassinato da Sra. Heskett. Eu não acredito.

- Não estou insinuando coisa alguma. Mas talvez outra pessoa do clube tenha tomado parte no crime.

- Mas são todos amigos dele. Certamente, nenhum poderia estar envolvido num assassinato.

- Hamilton conhece bem todos os membros do clube? São vários, sabe? Contei uma meia dúzia, esta noite. Talvez um ou dois não sejam amigos íntimos de Hamilton.

- Talvez. - Ariel mordeu pensativamente o lábio inferior. - Posso verificar se isso é verdade. Acha que ajudaria se eu perguntasse a ele sobre seus amigos?

Charlotte hesitou. - Não. Deixe St. Ives tratar disso. Afinal, eles são irmãos. - Sim, mas temo que não haja muita afeição entre os dois. - Baxter é responsável por Hamilton. Ele não deixará de cumprir sua obrigação. - Parece estar muito certa disso. Charlotte disse, com um sorriso cansado: - Eu estou. Ariel olhou atentamente para ela. - Há pouco, quando eu disse que estava ficando cada vez mais preocupada com

tudo isso, não me referia somente ao assassinato da Sra. Heskett. - Do que estava falando, então? - Não compreenda mal. Eu me preocupo com a investigação, mas há outra coisa

que me assusta tanto ou mais do que isso. - Do que está falando? - Você está se apaixonando pelo Sr. St. Ives? Charlotte parou de respirar por um momento. Vários segundos passaram antes

de ela se recuperar do impacto. - Charlotte? - Estou - Charlotte disse, suavemente. - Era o que eu temia. - Ariel murmurou. - Afinal, parece que você tinha razão

quando disse que ele era perigoso. O tempo se movia espesso e contínuo como mel escorrendo de um vidro partido.

Baxter viu o frasco de ácido voando em direção a ele através das sombras produzidas pelas chamas. Tentou desviar, mas era impossível nadar rapidamente no âmbar deslizante e denso. Tudo que conseguiu fazer foi virar de costas e proteger os olhos com os braços.

O frasco bateu no seu ombro. O ácido atravessou rapidamente o linho fino da camisa. Em seguida, atingiu a sua pele, queimando como as chamas do inferno.

Ele conseguiu chegar na janela. Lá embaixo o mar o esperava. Ele saltou no escuro.

Explosões rugiram no laboratório, transformando-o num inferno. Um instante antes de o mar frio se fechar sobre sua cabeça, ouviu a voz de Morgan:

"Você acredita no destino, St. Ives? " E depois só havia as ondas batendo nas rochas. Finalmente Baxter acordou, o coração batendo acelerado. Sentiu a umidade nas

costas e por um terrível momento pensou que fosse o ácido.

Levantou-se do sofá, pronto para arrancar a camisa do corpo. Então, compreendeu que era o suor que colava o tecido nas suas costas. Sentou pesadamente e apoiou os cotovelos nos joelhos.

Exausto, inclinado para a frente, respirou profundamente várias vezes. Procurou no centro de si mesmo o controle de que precisava.

O ruído das ondas batendo nas pedras soava ainda em seus ouvidos. "Com todos os demônios, St. Ives. Controle-se." Baxter soltou o ar lenta e

deliberadamente, esforçando-se para voltar ao estado de calma e distanciamento que sempre o havia servido tão bem.

Ouviu outra vez o ruído de alguma coisa batendo. Não a lembrança de pesadelo do mar contra as rochas. Um punho batendo com força na porta.

Baxter levantou-se do sofá, passou as mãos no cabelo e arrumou a camisa. Estava furioso. Há muito tempo não tinha aquele sonho. Esperava que tivesse desaparecido para sempre.

- Abra essa porta. Hamilton. Baxter lembrou que Lambert não estava em casa. Atravessou a biblioteca,

chegou no hall e abriu a porta. Hamilton estava no último degrau da frente com os músculos do rosto tensos, os

olhos semicerrados. Levantou a mão com a luva cara mostrando o papel amarrotado. - Qual o significado desta mensagem ultrajante? - Eu quis chamar sua atenção. - Como se atreve a ameaçar cortar minha mesada se eu não fizer o que você

quer? - Hamilton bateu com o chicote elegante nas pernas e entrou no hall. Tirou o chapéu de copa alta e o atirou em cima da mesa. - Você não tem o direito de cortar a minha renda. Meu pai o mandou dirigir meus investimentos até eu completar vinte e cinco anos. Não o mandou roubar a minha herança.

- Acalme-se. Não tenho intenção de privá-lo da sua fortuna. - Baxter indicou a biblioteca. - Simplesmente quero que me dê algumas informações urgentemente. Sente-se. Quanto antes terminarmos esta conversa, mais depressa poderá ir embora.

Hamilton olhou desconfiado para ele, depois entrou na biblioteca e sentou numa poltrona.

- Então - ele perguntou. - O que você precisa saber? - Em primeiro lugar, vou mostrar uma coisa que descobri num livro. - Baxter

apanhou o livro que havia deixado sobre a mesa. Abriu na página do desenho do signo da alquimia. - Alguma vez viu este desenho ou alguma coisa parecida?

Hamilton olhou impaciente para o desenho. Abriu a boca, pronto para descartá-lo sem outro olhar. Mas arregalou os olhos, chocado.

- Onde diabo você conseguiu isso? - Então, você o reconhece. - Baxter fechou o livro, encostou-se na mesa e olhou

para o rosto furioso de Hamilton. - Algo a ver com seu clube, suponho? Hamilton apertou o cabo do pequeno chicote. - O que você sabe sobre meu clube? - Sei que fazem experiências com magnetismo animal. Mesmerismo, como

chamam. E que usam antigas referências da alquimia e queimam um tipo de incenso narcótico para criar a atmosfera, por assim dizer.

Hamilton levantou-se furioso. - Como descobriu tudo isso? Baxter deu de ombros. - Tenho minhas fontes. - Não tem o direito de me espionar. Eu já disse que o que faço no meu clube não

é da sua conta.

- Ficará surpreso se souber que concordo com você. - Então por que diabo estamos tendo esta conversa? Baxter virou o livro entre as mãos. - Por que um desenho muito parecido com o que acabei de mostrar apareceu

num livro de aquarela de Drusilla Heskett. Intrigado, Hamilton perguntou: - Está falando da Sra. Heskett que foi assassinada recentemente? - Sim. Vou ser franco, Hamilton. É possível que haja uma conexão entre os

membros do seu clube e a morte de Drusilla Heskett. - Você não pode saber disso - Hamilton explodiu. - Como ousa fazer uma

acusação dessas? - Não estou fazendo acusação alguma. Estou tentando alertar você para a

possibilidade de haver uma conexão. Isso é tudo. - Já agüentei muito esse ultraje. - Hamilton caminhou até a porta. - Não vou

tolerar sua interferência na minha vida. Posso não ter a fortuna a que tenho direito, mas sou o conde de Esherton, por Deus. Não me curvo aos caprichos de um bastardo.

Baxter ficou imóvel. Com a habilidade aperfeiçoada durante uma vida inteira, era capaz de esconder a menor centelha de reação.

- Há mais uma pequena coisa, senhor conde. Hamilton corou intensamente, reagindo à cortesia gelada da voz de Baxter. - Não pretendo responder a mais nenhuma das suas malditas perguntas. - Esta é simples - Baxter disse, suavemente. - Conhece bem Juliana Post? - Post? - Hamilton franziu a testa. - Não conheço ninguém com esse nome. -

Brandiu o chicote para Baxter. - Estou avisando, St. Ives fique fora da minha vida. Fui bem claro?

- Eu o compreendo muito bem. Meu pai também compreendia. - Baxter sorriu com ironia. - Ele sempre dizia que você tinha muita coisa dele.

Hamilton cerrou os lábios, confuso, como se não esperasse uma resposta tão tranqüila. Baxter teve a impressão de que ele ia dizer mais alguma coisa. Mas ao invés disso, deu meia-volta e caminhou até a porta.

Baxter lembrou das palavras de Charlotte na noite anterior. Se há um assassino no Mesa Verde, seu irmão pode estar correndo perigo.

Outra vez, a voz do seu pai também ecoou em sua mente. Você vai tomar conta do seu irmão quando eu não estiver mais aqui. Ele vai precisar de orientação por algum tempo. O menino é a minha imagem quando eu tinha essa idade. Sangue quente e imprudência. Cuide para que ele não quebre o pescoço, Baxter.

- Hamilton. - O que é agora? - Hamilton perguntou da porta. - Está certo quando diz que não tenho o direito de interferir no que você faz. -

Baxter hesitou, escolhendo as palavras com cuidado. - Mas, por sua mãe e pelo título que nosso pai deixou para você, espero que use um pouco de cautela. Seria uma pena se fosse morto antes de ter um herdeiro.

- Garanto que não corro perigo no Mesa Verde. Está só querendo me assustar. Quer que eu desconfie dos meus amigos. É muito mesquinho da sua parte.

- Você acha? - Certamente não espera que eu acredite que está realmente preocupado com

meu bem-estar. - Por que não? - Baxter sorriu sem alegria. - Pelo menos comigo pode ter certeza

de que não estou conspirando contra você. Afinal, se você for morto, o título não vem para mim. Vai para seu primo distante e antipático de Northumberland.

- Mas desconfio que você acharia um meio de ficar com o dinheiro. - Hamilton saiu intempestivamente para o hall, apanhou o chapéu e estendeu a mão para abrir a

porta. - Onde diabo está seu mordomo, pelo amor de Deus? Você o perdeu também? Não sei por que não pode conservar seus criados... - Parou de repente quando abriu a porta. - Peço desculpas, Srta. Arkendale.

- Conde Esherton - Charlotte murmurou. Baxter franziu a testa quando ouviu a voz dela. Chegou à porta da biblioteca a

tempo de ver Charlotte erguendo o corpo depois de uma de suas mesuras. A sensação familiar de desejo quase doloroso o invadiu ao vê-la. Charlotte estava

com uma pelerina verde e branca sobre o vestido enfeitado com fita de veludo verde. A aba larga do chapéu de palha combinando emoldurava os olhos muito vivos. Cachos de cabelo castanho-escuro dançavam na frente das orelhas pequenas.

- Charlotte. - Adiantou-se em direção a ela. Então viu a carruagem de aluguel que esperava na frente da casa. - Que diabo está fazendo aqui a esta hora? E por que está sozinha? Devia ter trazido a governanta ou sua irmã. Não quero que ande mais sozinha por aí.

Hamilton revirou os olhos para o céu, zombeteiramente. - Sempre o gracioso anfitrião, St. Ives. Suponho que podia receber sua noiva de

modo mais hospitaleiro. Baxter rilhou os dentes. Ocorreu a ele que Hamilton tinha razão. Depois de olhar

para ele com um sorriso superior e sarcástico, Hamilton inclinou a cabeça sobre a mão enluvada de Charlotte.

- Devo dizer que, no seu lugar, Srta. Arkendale, eu definitivamente reconsideraria a conveniência desse noivado. Os modos pouco gentis de Baxter não vão mudar depois do casamento.

Com um sorriso, Charlotte entrou no hall. - Vou pensar na sua advertência, conde Esherton. Espero não estar

interrompendo. - De modo algum. - Hamilton olhou outra vez furioso para Baxter. - Já

terminamos nossa conversa. - Já? - Depois de um olhar de censura para Baxter, Charlotte voltou-se para

Hamilton, toda sorrisos, desatando a fita do chapéu. - Ele perguntou sobre Juliana Post?

- O que é toda essa tolice sobre uma mulher chamada Post? - Hamilton estava no primeiro degrau da frente da casa. - Nunca ouvi falar nela.

- Eu tinha certeza de que essa seria sua resposta. - Os olhos de Charlotte cintilaram de satisfação. - Mas Baxter achou que devia perguntar.

- Compreendo. - Hamilton sorriu. - Meu querido meio-irmão parece decidido a interferir nos meus assuntos pessoais ultimamente. Eu acharia mais normal se estivesse interessado no próprio casamento. Tenha um bom dia, Srta. Arkendale. - Com isso, ele fechou a porta.

Charlotte virou-se rapidamente para Baxter. - Eu disse que queria estar presente quando você fosse falar com ele sobre a

visita da Srta. Post. Agora, veja o que você fez. Sou capaz de apostar que não usou nem um pouco de tato. Hamilton evidentemente está furioso com o que você disse, seja o que for.

- Tato não é o meu forte. - Eu já notei. Pelo menos tem sua resposta. Eu disse que ele não era responsável

pela visita da Srta. Post. - Sim, você disse. - O que significa que ela pode estar realmente ligada ao outro caso, afinal -

Charlotte disse. - O assassino com certeza a contratou para nos separar porque sabe que juntos somos uma ameaça para ele.

- Não vejo como ele pode saber disso. A única coisa que fizemos foi revistar a

casa da Sra. Heskett e depois ficarmos noivos. Maldição, Charlotte, por que veio aqui sozinha?

Charlotte ficou intrigada. - Não me diga que está zangado só porque vim sozinha. - Sim. - Tirou os óculos e começou a limpar as lentes com o lenço. - Sim, estou

furioso com você. Mais ainda agora que sei que não foi Hamilton quem mandou a Srta. Post.

- Mas Baxter, é dia claro. Não há nenhum perigo. - Com todos os demônios, mulher, estamos investigando um assassinato. - Pôs

os óculos com um gesto brusco. Chocado, percebeu que estava perdendo a calma outra vez. - O mínimo que podia fazer era agir com um pouco de bom senso.

- Não precisa ficar zangado comigo, senhor. Devo repetir que não recebo ordens do senhor.

Se ele tivesse um pouco de bom senso, Baxter pensou, não diria mais nada. Hamilton estava certo. Quando se tratava de lidar com mulheres e sua delicada sensibilidade, ele era desajeitado, desgracioso e rude.

Olhou nos belos olhos de Charlotte e teve outra vez aquela sensação de medo. Ela pode estar em perigo. As asas negras do pesadelo recente tatalaram de leve num canto da sua mente. A raiva era a única emoção com força suficiente para manter afastado o medo.

- Muito bem, Srta. Arkendale - ele disse - concordamos que não recebe ordens minhas. Se não se preocupa com a própria segurança, podia ao menos ter algum respeito por minha paz de espírito.

Ela arregalou os olhos, compreendendo. - Sim, é claro - murmurou. Por alguma razão obscura, aquela aquiescência inesperada, calma e cortês não

contribuiu em nada para acalmar sua fúria. Baxter se sentiu obrigado a defender sua irritação.

- Como se eu já não tivesse problemas suficientes com que me preocupar, minha tia insiste em exigir respostas que eu não tenho, Maryann espera que eu proteja de encrencas meu detestável meio-irmão, que não ouve nada do que eu digo. Não tenho mais tempo para minhas experiências científicas desde que isso começou e acabo de perder a quarta governanta em cinco meses.

- Eu compreendo Baxter. - Charlotte sorriu. - Sinto muito por essa desordem na sua vida. Mas não se preocupe. Logo tudo terminará e estará livre para voltar à sua rotina. Pense um pouco. Quando isto acabar, nunca mais vai me ver.

Baxter teve uma rápida visão da sua luta contra as ondas ao lado do castelo. As antigas cicatrizes arderam como chama gelada. Controlou um inexplicável impulso de pânico com toda a força da lógica e da razão de que podia dispor.

- Sim. Sei muito bem disso - murmurou. Um silêncio terrível os envolveu. Baxter caminhou para a biblioteca. - Já que está aqui, quero dizer que talvez seja melhor mudar o foco das nossas

investigações. Em lugar de investigar os outros pretendentes de Drusilla Heskett, devemos examinar mais de perto os membros do clube de Hamilton.

- Excelente idéia. Concordo plenamente. - Ela entrou na biblioteca. - Não podemos ignorar o fato de que há uma conexão com o herdeiro de Lennox, Norris.

- Certamente. A Sra. Heskett estava tendo um caso com o pai dele. Mas não consigo imaginar Norris como assassino.

- Eu também não - Baxter admitiu. - Mas é um ponto de partida. Vou pedir a ajuda da minha tia. Precisamos de um convite para a casa de Lennox o mais breve possível.

- Não deve ser difícil. - Charlotte disse. - Ariel me disse que a irmã mais velha de

Norris vai dar um baile de máscaras na casa da família daqui a dois dias.

Capítulo XIV Charlotte olhou com orgulho para Ariel que, fantasiada de espírito das águas, era

conduzida à pista de dança por mais um de uma extensa lista de jovens cavalheiros. - Ela não é espetacular? - Charlotte sorriu carinhosamente, olhando para os

pares que dançavam sob as luzes das lanternas coloridas que substituíam os candelabros, naquela noite. - Ela dançou todas desde que chegamos.

- Para mim ela é só um vulto vago. - Baxter resmungou - especialmente com essa pouca luz. Estou sem os óculos, está lembrada? Ficaram no bolso da maldita capa de dominó.

- Ah, sim, tinha esquecido. Não pode usar óculos com a máscara, pode? - Olhou para ele e sentiu uma apreensão estranha que nada tinha a ver com os planos dos dois para aquela noite.

A capa longa e negra com capuz da discreta fantasia de Baxter não se distinguia de várias outras. Charlotte sabia que a escolha dele tivera como objetivo torná-lo praticamente anônimo no salão cheio de gente e ele estava certo.

Porém, Charlotte tinha a impressão de que aquele disfarce, a capa longa, negra e larga e o capuz, combinava demais com Baxter. Teve uma breve visão de Baxter desaparecendo para sempre numa caverna escura com seu fogo e seu cadinho de alquimista.

Num capricho de momento, ela resolveu ir ao baile fantasiada de Diana, a caçadora. Explicou para Ariel que parecia apropriado para uma dama que estava caçando um assassino.

- Detesto bailes de máscaras - Baxter resmungou. - Gente adulta correndo de um lado para o outro com máscaras e fantasias. Completo absurdo.

- Deve admitir que este baile em particular vai ser muito útil para nós. - Muito. Dependo de você para me avisar quando Ariel for dançar com o jovem

Norris. - Ela me disse há poucos minutos que será a próxima dança. O plano fora formulado naquela tarde. Ariel sugeriu que ela podia fornecer mais

uma medida de segurança para Baxter. Garantiu que seria muito fácil manter Norris ocupado pelo menos pelo tempo que Baxter precisaria para localizar e revistar o quarto dele.

- Nesse caso temos poucos minutos de espera. - Baxter pôs a taça de champanhe numa bandeja. - Acho melhor passarmos esse tempo dançando.

Charlotte piscou os olhos. - Está me convidando para dançar, Baxter? - Por que não? Para todos os efeitos estamos noivos, não estamos? Noivos fazem

essas coisas. Suponho que pode dançar uma valsa com esse arco e flecha idiotas que tem dependurados no pulso.

- Fazem parte da fantasia. E, sim, acho que posso dançar a valsa. - Ergueu as sobrancelhas atrás da máscara de penas. - Eu não tinha idéia de que soubesse dançar, senhor.

- Já faz algum tempo que não danço. Na verdade, alguns anos. - Segurou a mão dela sem esperar a aceitação formal do convite. - Acho que é mais ou menos como montar cavalos. Duvido que alguém esqueça como se faz.

Com um sorriso, ela permitiu que Baxter a conduzisse para a pista de dança. - Esperemos que seja o caso porque, a não ser o galope por todo o salão com

Lennox, na outra noite, há séculos eu não danço. Ele parou e a tomou nos braços. - Não vamos tentar nada complicado.

Charlotte riu. - Provavelmente vamos parecer um par de barcaças enferrujadas arrastando-se

num lago cheio de veleiros elegantes e velozes. - Não seja ridícula. - Os olhos, nas aberturas da máscara, eram intensos. - Você

é a barcaça mais graciosa nesta sala. O elogio desajeitado devia ter provocado o riso, mas na verdade aqueceu a alma

dela. - Muito obrigada, senhor. Foi a coisa mais encantadora que já me disseram em

muito tempo. Sem outra palavra, ele a abraçou com força e a levou para o meio dos veleiros

brilhantes. Exatamente como ela havia previsto, o estilo de Baxter era todo força e controle.

Mas havia uma sugestão de sensualidade nos seus movimentos que a fazia lembrar o modo que ele fazia amor. Charlotte se entregou totalmente ao momento. Não haveria muitos outros, ela pensou. Devia agarrar cada um que aparecia retirar dele todas as lembranças e guardá-las para a possibilidade de um futuro longo e solitário.

Quando a música da valsa a envolveu, Charlotte esqueceu por que eles estavam ali. Só sabia que estava nos braços do seu amante, o homem cujo rosto ela veria em sonhos pelo resto da vida.

As lanternas coloridas formavam desenhos de luz nos pares que dançavam. O salão de baile foi transformado em uma sombria terra encantada cheia de lendas fantasiadas e mitos mascarados. Deuses e deusas da Grécia antiga ao lado das antigas deidades de Roma, do Egito e de Zamar. Salteadores de estrada e piratas conversavam com rainhas e duendes. E na superfície do lago enfeitado com pedras preciosas, que era a pista de dança, Diana, a caçadora, girava nos braços de um alquimista.

Quando a música parou finalmente, Charlotte sentiu uma vontade inexplicável de chorar. Seu caso com Baxter talvez não fosse durar muito mais do que aquela dança perfeita, ela pensou. Um momento roubado ao tempo, que ela guardaria com carinho para sempre.

- Charlotte? - Baxter parou e olhou para ela. - Meu Deus, o que foi? Pisei nos seus pés?

Ela esforçou-se para afastar aquela sensação momentânea de tristeza. - Não, é claro que não. - Sorriu. - Acho que nos saímos muito bem, senhor. Não

afundamos lá no lago entre os belos veleiros. Baxter apertou a mão dela. - Não, não afundamos. Conseguimos ficar na superfície. - E um bom sinal, não acha? - Ouviu a esperança mal disfarçada na própria voz.

Então viu os cabelos louros de Ariel, inconfundíveis, com a grinalda de folhas delicadas. - Baxter, Norris acaba de tirar Ariel para dançar. Acho melhor você sair agora.

- Sim. - Baxter virou-se bruscamente e a levou para um canto escuro perto da varanda. - Espere aqui. Não vou demorar.

- Tenha cuidado. Ele não respondeu. Tirou o relógio do bolso, olhou pelo vidro para se orientar,

depois saiu para a varanda escura. Charlotte o viu sair, admirando o modo como ele desapareceu na noite. Sabia

que ele estava indo para a estufa, atrás da casa, mas perdeu de vista o dominó negro antes de ele chegar aos degraus de pedra. Num momento estava vendo o contorno da capa negra e no outro não via mais nada.

Um criado de libré apareceu com uma bandeja de bebidas. Charlotte apanhou um copo de limonada e olhou para o salão para ver Ariel e seu par. Norris estava fantasiado de romano antigo, muito bonito na sua toga, mas Charlotte notou que ele

parecia não estar conversando com o entusiasmo habitual. Os minutos passavam lentamente. Charlotte começou a ficar inquieta. Devia ter

ido com Baxter, pensou. Não devia ter se deixado convencer a ficar ali. Em silêncio ela contava os segundos enquanto ouvia a música e olhava os pares

que dançavam. Sua inquietação cresceu. Esperava que Baxter tivesse conseguido encontrar o quarto de Norris rapidamente e que o revistasse sem demora.

Ela tentava acompanhar Ariel e Norris quando uma rajada de ar noturno vinda do terraço fez estremecer a saia do seu vestido verde-floresta.

Assustada, ela se voltou rapidamente e viu um vulto de dominó negro de pé na sombra no outro lado das portas de vidro abertas. No escuro era difícil ver quem era. O capuz da capa negra cobria quase a metade do rosto mascarado. A frente da capa estava fechada, escondendo as mãos. As pregas giravam em volta das botas negras.

- Baxter - Charlotte murmurou. Devia se sentir extremamente aliviada, ela pensou, correndo para ele.

Evidentemente Baxter havia conseguido o que queria. Charlotte não podia explicar por que sentia arrepios de frio no corpo todo. Talvez por causa do ar da noite que parecia bem mais frio do que há poucos minutos. Estava a poucos passos do homem de negro quando percebeu que havia alguma coisa errada. Tinha se enganado. Não era Baxter.

O vulto encapuçado era muito alto, muito magro, muito elegante. Não tinha os ombros fortes de Baxter nem a aura de força sólida. Instintivamente Charlotte sentiu que aquele estranho era alguém que ela não queria conhecer.

- Perdoe-me, senhor. - Ela parou bruscamente, embaraçada. - Pensei que fosse outra pessoa.

O homem não disse nada. Sob a máscara os lábios sensuais se curvaram num sorriso. A capa se abriu revelando uma rosa vermelha na mão enluvada. Em silêncio, ele estendeu a rosa para ela.

Charlotte recuou. Olhou para a rosa e depois para o rosto mascarado sob o capuz.

- Temo que tenha me confundido com outra pessoa, senhor. - Não. - A voz era áspera, sem nenhum traço de calor. - Não há nenhum engano. Charlotte estremeceu. Alguma coisa naquelas palavras despertava antigos

terrores. Impossível, ela pensou. Nunca tinha ouvido aquela voz. Ninguém esqueceria um som estranho como aquele.

Charlotte se esforçou para dominar aquela reação completamente irracional. O pobre homem sem dúvida havia sofrido algum dano nas cordas vocais, pensou. Talvez tivesse nascido com alguma deformidade na garganta ou na boca.

Conseguiu sorrir. - Creio que não nos conhecemos, senhor. Por favor, desculpe-me, mas preciso

entrar. Estão à minha espera. - Virou-se para fugir. Não, não estava fugindo dele, Charlotte pensou irritada. Estava apenas com frio

e ansiosa para voltar ao calor do salão de baile. - Em todas as suas pesquisas sobre as vidas dos homens, alguma vez parou para

pensar no destino? Charlotte tropeçou e quase caiu. Procurou apoio na parede do terraço. Não, não podia ser o monstro. A voz não era a mesma. Ela jamais se esqueceria daquela outra voz. Era sombria e pastosa, deslizando na

noite. Esta era áspera e fragmentada. Charlotte virou-se lentamente para enfrentar o vulto. Não devia permitir que sua

imaginação se descontrolasse. Lógica e razão, não antigos temores, eram os instrumentos de que precisava naquele momento.

- Perdão. O que foi que disse? - ela perguntou com uma calma que não sentia. - Não é importante. - O homem mascarado estendeu outra vez a rosa. - Isto é

para a senhora. Fique com ela. - Eu não quero senhor. - Deve aceitar a rosa. - A voz áspera era agora um murmúrio. - É para a senhora

e ninguém mais. Havia uma força estranha naquela voz arruinada. Atraía e fascinava. - Vamos. Aceite a rosa. As luzes e a música do salão de baile pareciam distantes. Ela estava sozinha na

noite com aquele homem. - Nós não nos conhecemos. Por que quer me dar uma flor? - Aceite a rosa e veja por quê. - As palavras eram lascas de gelo de um túmulo. Charlotte hesitou, sentindo que não podia fugir. O perigo não desaparece quando

damos as costas a ele. Tinha de saber o que significava tudo aquilo. Com relutância, ela deu um passo para ele, depois outro. O homem com o

dominó negro esperou com infinita paciência. Quando ela chegou ao alcance dele, a mão com luva negra abriu num gesto

gracioso. Só então ela viu o papel dobrado preso num espinho da rosa. Charlotte apanhou a flor. O estranho fez uma mesura perfeita, deu meia-volta e

desapareceu na noite. Charlotte voltou apressadamente para a luz das lanternas coloridas, parou assim

que entrou no salão e desdobrou o papel. Leu o que estava escrito à luz de uma lanterna cor de esmeralda. A luz verde e misteriosa punha pontos de cor nas palavras.

Seu amante alquimista procura a Pedra Filosofal da vingança. Está obcecado com

a idéia de destruir o irmão. Usará de todos os meios que, segundo ele acredita, podem mudar o passado, inclusive aqueles que o amam. Mas jamais conseguirá seu objetivo de transformar o metal da sua realidade de bastardo no ouro da verdadeira nobreza.

O bastardo certa vez traiu uma pessoa que confiava nele. Não hesitará em trair outra vez. Tenha cuidado, antes que seja tarde. Não se torne uma das suas vítimas.

Com uma exclamação abafada, Charlotte amarrotou o papel. Virou rapidamente

para a noite lá fora, mas o estranho dominó negro tinha desaparecido. Baxter tirou os óculos, guardou no bolso da capa e pôs a máscara outra vez. Saiu

para o corredor, fechou a porta do quarto de Norris e desceu rapidamente para o hall pela escada nos fundos da casa.

Não usou os óculos nem a lente do relógio para descer a escada. Os candelabros na parede estavam apagados e, de qualquer modo, estava escuro demais para ver alguma coisa. Confiou no sentido do tato e na lembrança da altura dos degraus.

Não tinha certeza se devia estar aliviado ou desapontado com o resultado da sua investigação. Não encontrou coisa alguma que fosse útil. O herdeiro de Lennox parecia ser a conexão mais óbvia entre a morte de Drusilla Heskett e o clube Mesa Verde. Mas talvez a conexão óbvia não fosse a verdadeira.

Ouvia os acordes abafados da valsa enquanto descia a escada. Pelo menos tinha calculado bem o tempo, pensou. A valsa estava no fim e ele ansioso para voltar para Charlotte.

Lembrou da valsa que tinham dançado antes de sair para sua missão infrutífera. O corpo quente de Charlotte, gracioso e cheio de vitalidade, nos seus braços, como quando fizeram amor. O perfume que, como sempre, despertava o desejo ávido que ultimamente parecia ferver sempre sob a superfície da sua consciência. Ficava cada vez mais difícil imaginar a vida sem ela.

As palavras dela ecoavam na sua mente enquanto atravessava a estufa escura. Pense um pouco, quando terminarmos este caso, nunca mais nos veremos.

O luar que entrava pelos vidros da estufa iluminava seu caminho. O cheiro de terra e de plantas enchia o ar. Ocorreu a ele que talvez Lennox estivesse interessado em alguma experiência de química agrícola. Resolveu investigar mais tarde. Então, lembrou dos vasos estéreis de ervilhas-de-cheiro na janela do seu laboratório. Talvez essas experiências fossem inúteis.

Usou a lente do relógio para não tropeçar em nenhum vaso enquanto se dirigia para a porta dos fundos.

Um momento depois estava no jardim. Caminhou para o brilho vago das luzes coloridas do salão de baile.

Quando chegou ao terraço, um vulto familiar, levemente fora de foco, surgiu na sua frente.

- Pensei ter dito para você esperar lá dentro, Charlotte. - Baxter, é você? - É claro que sou. Quem diabo pensou que fosse? - Não importa, é uma longa história. Conto mais tarde. Aconteceu uma coisa

muito importante. Hamilton está desesperado à sua procura. - Hamilton? - Baxter franziu a testa, intrigado. Chegou mais perto e viu a preocupação nos olhos dela, - O que ele quer? - Baxter, é você? - A voz de Hamilton vinha da outra extremidade do terraço. -

Estava à sua procura. - Aproximou-se rapidamente. - Preciso falar com você agora. - Muito bem, já me encontrou. Do que se trata? - É um... assunto pessoal. - Olhou constrangido para Charlotte. - Perdoe-me,

Srta. Arkendale. Preciso falar em particular com Baxter. - Seja o que for, pode falar na frente de Charlotte - Baxter disse. - Não se preocupem - Charlotte disse, rapidamente. - Eu espero no salão de

baile. - Com todos os demônios. - Baxter estava farto de forçar a vista. Tirou a

máscara e guardou no bolso. Pôs os óculos e olhou para Charlotte que já se afastava. A luz refletia no arco e flecha dourados. Mostrava também a rosa na outra mão dela.

Baxter ia perguntar de onde tinha vindo a rosa, mas fechou a boca quando viu que Charlotte não podia mais ouvi-lo.

- Baxter, isto é importante. - Hamilton ficou na frente dele e Baxter olhou para ele com relutância. Hamilton usava uma gravata com um nó elegante, um casaco de noite de corte perfeito e calça pregueada muito na moda. O rosto sem máscara estava contraído de preocupação.

- Hamilton, estou ocupado no momento. Do que se trata? - Anteontem... - Hamilton engoliu em seco e tentou outra vez. - Anteontem, você

me disse para ter cuidado. Avisou que podia haver algum perigo para mim ligado ao meu clube.

Hamilton tinha agora a completa e irrestrita atenção de Baxter. - Aconteceu alguma coisa? - Não comigo - Hamilton disse, rapidamente. - Mas estou preocupado com Norris.

Fizemos uma experiência com mesmerismo, outra noite. - Sim, eu sei. O jovem Norris foi o objeto da experiência. Hamilton olhou intrigado para ele. - Como sabe disso? - Não importa. O que tem isso? Norris fez papel de idiota no salão de baile esta

noite? Creio que Lennox não deve ter gostado, mas seja o que for, duvido que tenha sido um desastre. A fortuna dos Lennox é capaz de suplantar os efeitos de praticamente qualquer ofensa, incluindo o fato de Norris tirar a calça em público.

Hamilton ficou perplexo. - Não entendo como você pode conhecer os detalhes da nossa experiência, mas

isso não é importante agora. O caso é que no fim, o mágico... - O mágico? Hamilton apertou os lábios, impaciente. - A pessoa que contratamos para fazer as experiências. Nós o chamamos de

nosso mágico. Foi tudo muito divertido. Seja como for, o mágico não mandou Norris cacarejar como uma galinha nem tirar a calça no salão de baile. É muito pior do que isso.

- O que ele fez? - Ele o hipnotizou para convencer Norris a desafiar Anthony Tiles. - Norris desafiou Anthony Tiles para um duelo? Eu não acredito. - É verdade - Hamilton murmurou. - Nos últimos dois anos, Tiles esteve

envolvido em pelo menos três duelos. Tem um gênio terrível. E é um atirador perfeito. Sempre tira sangue do adversário.

- Sim, eu sei. - Dizem que pelo menos um dos seus oponentes morreu do ferimento. Outro

levou um tiro no ombro e não pôde mais usar o braço esquerdo. E o terceiro simplesmente desapareceu. Ninguém sabe o que aconteceu com ele, mas alguns dizem que o ferimento foi tão grave que ele precisa tomar continuamente láudano para aliviar a dor.

- Sim, eu sei que Tiles tem uma reputação formidável. - Dizem que ele pratica tiro ao alvo diariamente em Manton. Um atirador mortal.

Nenhum homem mentalmente são se atreve a desafiá-lo. - Exatamente. Não tem sentido Norris pensar em fazer isso. - Mas ele fez. É tão contrário a tudo que sabemos de Norris, Baxter. Ele é o mais

tranqüilo dos meus conhecidos. Não se irrita com facilidade. É meu melhor amigo e temo que tenha assinado a própria sentença de morte.

- Mande seu mágico desfazer os efeitos da experiência. - Não conseguimos encontrá-lo. - O desespero de Hamilton cresceu. - Não

sabemos aonde mora nem como entrar em contato com ele. Baxter franziu a testa. - Como o conheceram então? - Ele nos procurou. Ofereceu-se para nos ensinar certas técnicas especiais que

nos permitiriam entrar em contato direto com as forças do mundo metafísico. Foi tudo muito interessante e divertido. Mas agora alguma coisa saiu errada.

- Sem dúvida - Baxter disse em voz baixa. - As coisas estão fora de controle. Provavelmente Norris será morto ao nascer do

dia. - Estamos falando desta madrugada? - Baxter perguntou. - Sim, amanhã cedo. Tudo parece se movimentar com muita rapidez. - Faça Norris pedir desculpas a Tiles. Acho que ele aceitará. - Tentei convencer Norris a se desculpar, mas ele nem quer ouvir falar nisso.

Norris não parece o mesmo, Baxter. Há pouco ele dançou com a Srta. Ariel como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo. Mas ao nascer do dia estará enfrentando Tiles. É uma loucura.

Baxter olhou para as luzes do salão de baile. - Baxter? - Hamilton disse, irritado. - Ouviu o que eu disse? Norris vai arriscar a

vida ao nascer do dia. Temos de detê-lo. - Quem Norris escolheu para padrinhos? - Ele disse que, como sou seu melhor amigo, devo ser um deles. Quer que eu

escolha o outro. Diz que não pode se preocupar com essas coisas. - E você já escolheu? - Não. Pelo amor de Deus, a última coisa que eu quero é planejar este maldito

duelo. Vim diretamente falar com você. Tem de me ajudar, Baxter. - Muito bem, se ainda não tem outro padrinho, isso simplifica a situação - Baxter

disse calmamente. - Eu serei seu assistente. Hamilton ficou horrorizado. - Mas eu quero evitar que o duelo aconteça. - Isso pode não ser possível. A hipnose praticada por seu mágico parece ser

muito poderosa. - O que vamos fazer? Não podemos deixar que Norris se deixe matar por Tiles. - Deve haver um meio de controlar os resultados dessa experiência. Bateram na porta da frente às três e meia da manhã. Charlotte estava sozinha

no estúdio, fazendo anotações para se acalmar. Ariel não estava em casa e a Sra. Witty dormia a sono solto no seu quarto, no último andar.

Charlotte não conseguia descansar. Estava inquieta desde que voltou do baile de máscaras. Não sabia o que mais a preocupava, se o encontro com o estranho de dominó negro ou o desespero de Hamilton. Talvez uma combinação das duas coisas.

Quando ouviu a batida, levantou da cadeira e correu para o hall. Olhou pela janela ao lado da porta e viu Baxter de pé, na sombra.

Charlotte abriu a porta com um sorriso trêmulo. - Eu esperava que você achasse tempo para passar por aqui antes de ir para

casa. Preciso falar urgentemente com você. - Eu não sabia se a encontraria acordada ou não. Charlotte se afastou da porta, ele entrou e pôs o chapéu na mesa com um

movimento distraído. Parecia preocupado e distante. Charlotte sabia que a mente ágil estava concentrada no problema de Hamilton.

- É sério? - ela fechou a porta. Baxter foi para o estúdio. - Esta madrugada Norris vai enfrentar um dos mais infames duelistas de Londres. - Oh, não. - Charlotte entrou no estúdio atrás dele. - Como o pobre Norris se

meteu nessa situação? Ele parece tão delicado, amistoso e simpático. Não do tipo que se envolve em duelos.

- Ele não é mesmo. - Baxter apanhou a garrafa de conhaque. - Ele teve um pouco de ajuda.

- O que quer dizer? - Está lembrada do mágico que estava divertindo Hamilton e os amigos no Mesa

Verde? - É claro. O que ele tem a ver com isso? - Depois que saímos aparentemente ele usou o mesmerismo para convencer

Norris a desafiar um homem chamado Anthony Tiles. - Isso é horrível. - Hamilton e os outros não conseguiram deter Norris e depois não conseguiram

convencê-lo a pedir desculpas. Tentaram localizar o mágico para desfazer o transe, mas não sabem onde ele está.

- Meu Deus. - Charlotte sentou-se pesadamente na poltrona na frente da lareira. - Então Hamilton pediu sua ajuda.

- Sim. - Os olhos de Baxter brilharam por um segundo por cima do copo de conhaque. - Prova indiscutível de que estava no fim da linha e não sabia para onde se virar. Hamilton nunca pediu minha ajuda antes.

- O que você vai fazer? Baxter deu de ombros. - Tenho um plano. Se der certo, tudo vai acabar sem derramamento de sangue. - E se não der certo?

- Alguém pode ser morto. Charlotte apertou uma das mãos contra a outra. - Seu plano vai funcionar. - Muito obrigado pelo voto de confiança. Hamilton, é claro, tem suas dúvidas. - Qual é exatamente seu plano, Baxter? - Ele sorriu. - Nada muito ousado ou sensacional. Baseia-se nos meus conhecimentos de

química. - Então tenho certeza de que é muito ousado e sensacional. Na verdade, acho

que será perfeito. - Fez uma pausa e depois continuou. - Será interessante ver os resultados.

Baxter ergueu a mão num gesto de advertência e de súplica. - Nem considere a possibilidade de assistir a um duelo. Já tenho muito com que

me preocupar. - Acho que tem razão. Que tipo de homem é esse Anthony Tiles? Baxter tomou um pouco de conhaque. - Ele é um bastardo. Charlotte sorriu maliciosamente. - De que tipo? De nascimento ou por conta própria? - Ambos. O pai era visconde. Herdeiro da fortuna Coltrane. Anthony é filho

ilegítimo. Resultado de uma aventura do pai com a governanta da família. Não há nenhum filho legítimo. Um sobrinho ficou com o título e as terras. Isso vem atormentando Anthony há anos.

- Você fala como se o conhecesse. - Nos conhecemos em Oxford. - Se ele foi seu amigo, antes, não pode falar com ele? - Não adiantaria. - Baxter foi até a janela. - Tony professa um código de honra

muito rígido. Não toleraria qualquer tipo de desvio. - Compreendo. - Ele passa o tempo nas casas de jogo à procura de encrenca. E as encontra com

extraordinária freqüência. Tem pelo menos três duelos no seu histórico. Provavelmente mais.

- Não admira que Hamilton esteja apavorado pelo amigo. - Ela apertou mais as mãos. - Esse Anthony Tiles começou a vida mais ou menos como você.

Baxter apoiou a mão fechada na moldura da lareira e olhou para o fogo. - Nós dois somos bastardos, se é isso que quer dizer. - Mas ele se tornou um bastardo por suas ações tanto quanto por nascimento -

ela disse, em voz baixa. - Você, por outro lado, se tornou um verdadeiro cavalheiro. Baxter ergueu os olhos. A luz do fogo brilhou nas lentes dos óculos. - Que diabo quer dizer? - Anthony Tiles evidentemente permitiu que os fatos do seu nascimento o

levassem para um caminho que certamente vai destruí-lo. Ainda bem que você construiu um destino diferente.

- Hum. - Seu pai sabia que você seria um homem íntegro. Compreendeu que podia

confiar a você a fortuna da família e a segurança do filho mais moço. Ele devia se orgulhar muito de você, Baxter.

Baxter não disse nada. Olhou para o fogo por um longo tempo e então, sem uma palavra, foi até o sofá e sentou com um pé no chão e o outro sobre as almofadas. Com um gesto cansado passou a mão nos cabelos.

- Quando este problema do duelo tiver sido resolvido, pretendo encontrar aquele maldito charlatão que eles chamam de mágico. Não gosto das experiências dele.

Charlotte fechou os olhos e encostou a cabeça no espaldar da cadeira.

- Baxter, você vai ter cuidado amanhã, não vai? - Não sou eu quem vai enfrentar a pistola de Tiles se as coisas não saírem como

planejei. - Eu o conheço muito bem para saber que, se alguma coisa não der certo, você

não vai ficar parado e deixar que o melhor amigo de Hamilton seja morto a sangue-frio. - Ela abriu os olhos e olhou para ele. - Prometa que não fará nada para que esse Anthony Tiles se volte contra você e talvez o desafie para um duelo.

Os lábios de Baxter curvaram-se levemente num quase sorriso. - Não se preocupe. Há muitos anos prometi que jamais me deixaria matar em

algo tão estúpido quanto um duelo. - Fico feliz por saber disso. - Ela sorriu a despeito da preocupação. - Pobre

Baxter. Tudo que você queria era ser deixado em paz no seu laboratório e é obrigado a sair para tratar de uma porção de problemas desagradáveis.

Ele ergueu as sobrancelhas. - Há problemas e problemas. - O que quer dizer com isso? Ele pôs na mesa o copo ainda pela metade e se levantou. Foi até onde ela

estava, na frente da lareira, e gentilmente a fez ficar de pé. - Alguns problemas são muito mais interessantes do que outros. - E eu sou um dos seus problemas, Sr. St. Ives? - ela perguntou suavemente. - Sim. - Ele inclinou a cabeça e a beijou apaixonadamente.

Capítulo XV O desejo que sentia por ela o envolveu como uma onda. Baxter segurou a

cabeça de Charlotte com uma das mãos e a beijou, primeiro nos lábios, depois no pescoço.

Ela teria sempre esse efeito sobre ele? Baxter pensou. Num momento, sua mente estava absorta nos problemas de assassinato e de duelo e no outro só pensava na satisfação visceral de ter Charlotte nos braços.

Aos poucos, se acostumava com os efeitos arrebatadores da paixão, Baxter pensou, mas não estava mais perto de compreendê-los nessa noite do que quando a conheceu. O mistério era tão estranho e fascinante quanto à procura da Pedra pelos alquimistas.

- Baxter? - Charlotte segurou as lapelas do casaco dele. - Temos tempo? Baxter ergueu a cabeça o tempo suficiente para se perder por um instante na

promessa verde dos olhos dela. - Não tanto quanto eu queria. - A verdade dessas palavras o atingiu como uma

centelha de compreensão. - Com todos os demônios, nunca temos tempo suficiente. - Está tudo bem. - Ela passou os lábios de leve no queixo dele. - E sempre há a possibilidade de alguém nos surpreender. - Olhou para o

pequeno estúdio de Charlotte. - Além disso, nunca há uma cama por perto. - Baxter... - Como diabo se pode conduzir um caso amoroso adequadamente quando não se

tem nem um quarto à disposição? Charlotte encostou o rosto na camisa dele. Baxter ouviu os sons abafados e viu o

tremor dos ombros dela. Alarmado, ele a abraçou com mais força e a acariciou um tanto

desajeitadamente. - Meu Deus, Charlotte, não chore. Vou pensar em alguma coisa. - Estou certa que vai. Você sempre pensa. Os sons abafados contra seu peito ficaram mais altos. Todo o corpo dela tremia

sob as mãos dele. Baxter compreendeu que ela estava rindo. Levantou o queixo delicado com o polegar e a fez olhar para ele. O riso dançava

nos olhos de Charlotte. Baxter não precisava que Hamilton dissesse o que era óbvio. Nenhum homem

com um mínimo de sensibilidade romântica teria perdido tempo lamentando as inconveniências da situação num momento como aquele.

- Fico feliz por ver que acha isso tão divertido - ele resmungou. - Eu acho fascinante. Estimulante. Incrivelmente excitante. - Ficou nas pontas

dos pés, passou os braços em volta do pescoço dele e o beijou. Apaixonada e entusiasticamente.

Sem dizer nada Baxter mandou para o inferno sua evidente falta de romantismo e as inconveniências da situação.

A necessidade febril voltou numa onda que envolveu todos os seus sentidos. - Por que será - ele disse com os lábios roçando os dela - que eu nunca acho que

tenho o bastante de você? Charlotte não respondeu. Estava muito ocupada desfazendo o nó da gravata e

tirando o casaco dele. Num instante ele estava nu até a cintura. Os dedos dela acariciaram de leve as antigas cicatrizes. Beijou gentilmente o

ombro queimado. Baxter fechou os olhos, procurando dominar o desejo intenso que crescia dentro dele.

Respirou longa e profundamente e começou a abrir a frente do vestido dela.

Abaixou os ombros do vestido e viu a luz do fogo transformarem ouro os seios bem-feitos.

Charlotte tocou o canto da boca dele. - Quando você olha para mim desse modo, me faz sentir muito bela. Baxter balançou a cabeça, atordoado com a força da emoção que o dominava.

Reverentemente acariciou as pontas dos seios dela com os dedos. - Você é bela. - E o senhor - ela disse, com voz macia e rouca - é maravilhoso. - Com um

gemido surdo ele abaixou a cabeça para beijar a curva de um seio. Charlotte apertou com força os ombros dele e inclinou a cabeça para trás.

Passou a sola da sapatilha lentamente pela parte posterior da perna dele. Quando ela começou a abaixar a perna, Baxter segurou sua coxa e apertou contra a dele. A saia do vestido dela farfalhou em volta de sua calça. Baxter não podia esperar mais. Tomando-a nos braços, levou-a para o sofá. Afastou-se apenas o tempo necessário para abrir a frente da calça e depois inclinou-se para erguer a saia dela até a cintura.

Deliberadamente, abriu as pernas dela até o pé esquerdo se apoiar no chão. Com uma exclamação abafada, Charlotte percebeu o quanto estava exposta ao olhar dele. Tarde demais, tentou fechar as pernas.

- Não. Por favor. Quero ver você. - Baxter ajoelhou-se ao lado do sofá e sentiu a perna dela estremecer contra seu peito.

Pôs a mão aberta sobre o sexo dela, quente e rosado. Ela estremeceu. No chão, ao lado dele, seu pé se curvou, respondendo à carícia.

- Baxter? - A ponta da sua língua apareceu no canto dos lábios entreabertos e desapareceu quando ela gemeu baixinho.

Baxter se inclinou para a frente para inalar o perfume exótico do corpo dela. Separou as dobras delicadas da pele para revelar o pequeno botão. Inclinou a cabeça e a beijou intimamente com refinado prazer.

- Baxter. - Seus dedos se entrelaçaram no cabelo dele. - Meu Deus, o que está fazendo?

Ele ignorou a pergunta ofegante e os pedidos vagos de explicação que vieram depois. Usou a língua para excitar o pequeno botão até ficar rígido e intumescido. Só parou quando ela não podia mais falar.

Quando ela gritou e enfiou as unhas na cabeça dele, Baxter se levantou rapidamente e deitou em cima dela. Passou a língua nos lábios, saboreando o gosto dela e penetrou profundamente no corpo debaixo do seu.

Os movimentos quase convulsivos de Charlotte o levaram cada vez mais para o fundo, até parecer que fazia parte dela. Na alquimia daquela união, ele não estava mais sozinho.

Tudo dentro dele ficou rígido. No momento seguinte ele se satisfez um fogo que rugia e parecia queimar o corpo todo, um fogo purificador que de certo modo o libertava de um modo que jamais conhecera antes.

O incenso queimava no braseiro. Ele o inalava lentamente, saboreando o alto grau de percepção. O poder logo

estaria sob seu comando. Ele estava pronto. - Leia as cartas, meu amor - ele murmurou. A cartomante virou as cartas e as estudou por um longo momento. - O grifo dourado está mais perto da fênix - ela disse, finalmente. - Isto fica mais fascinante a cada momento. - E mais perigoso - ela advertiu. - É certo. Mas o perigo acrescenta um certo elemento de interesse. - A

cartomante virou outra carta na mesa. - A ligação do grifo com a dama de olhos de cristal fica mais forte. - Devemos concluir que ela não é um fio ocasional nesta tapeçaria, afinal - ele

disse satisfeito. - Baxter? - Charlotte moveu-se languidamente e entrelaçou os dedos nos cabelos

do peito dele. - Está ficando tarde. - Eu sei. - Com relutância ele mudou de posição para se livrar da saia do vestido

dela. Levantou-se, ajustou a calça e olhou para o relógio. - Menos de uma hora até o nascer do dia. Preciso ir. Hamilton deve estar ansioso.

Charlotte sentou-se no sofá rapidamente e arrumou o vestido. - E o pobre Norris? Eu diria que quem deve estar nervoso é ele. - Não o vi ainda. - Baxter apanhou os óculos e depois a camisa. - Hamilton diz

que ele está perfeitamente calmo. - Talvez essa calma seja efeito do transe. - Maldito mágico. Vai ter de explicar muita coisa. - Baxter apanhou o casaco e

virou para se despedir. Olhou para Charlotte, com a roupa deliciosamente desalinhada, e desejou não ter nenhum compromisso urgente. - Mando avisar quando tudo estiver terminado.

- Tenha cuidado, Baxter. - Os últimos vestígios de sensualidade desapareceram e ela se levantou do sofá. - Não gosto disso. Foi uma noite estranha. Há uma coisa que não tive oportunidade de contar.

- Venho vê-la no fim da tarde. - Baxter ia saindo quando viu a rosa vermelha murcha na mesa. - Aí está a maldita flor que vi na sua mão no baile, ia perguntar o que significa. Foi presente de quem?

- É uma longa história. Pode esperar até você resolver o problema de Hamilton. Baxter não gostou da preocupação que viu nos olhos dela. Atravessou a sala e

apanhou a rosa. Então viu o papel dobrado debaixo dela e sentiu um arrepio. - O que é isto? Um bilhete também? - Não há motivo para ciúmes. - Não estou com ciúmes. Não tenho o temperamento ardente necessário para

essa emoção ridícula. - Eu sei - ela disse pensativamente. - Eu tenho, sabia? - De que diabo está falando? - ele perguntou, desdobrando o papel. - Eu detestaria que uma mulher mandasse flores para você ou entregasse algum

bilhete. Baxter ergueu os olhos, estranhando a veemência na voz dela. Por um momento,

sua atenção se desviou do papel que tinha na mão. Pigarreou. - Duvido que alguma mulher me mande uma flor.

- Ah! Não aposte St. Ives. O que me admira é não precisar afastar minhas rivais. Suspeito do motivo que o levou a evitar freqüentar a nossa sociedade por tanto tempo. É uma sorte para mim você preferir passar tanto tempo no seu laboratório.

Baxter sentiu que corava. Com todos os demônios, agora ela está me fazendo corar. Será que não tem limite o poder que exerce sobre mim?

- Não precisa se preocupar com rivais. Não há nenhuma. - Excelente. Baxter olhou para o papel que tinha na mão, leu rapidamente, depois releu com

incredulidade crescente. Seu amante alquimista procura a Pedra Filosofal da vingança... Usará de todos os meios... inclusive aqueles que o amam... Não se torne uma das suas vítimas.

- Com todos os demônios. - Não é importante agora, Baxter. Você precisa primeiro tratar do duelo. Depois

conto tudo sobre o bilhete e a rosa. Baxter amarrotou o papel e olhou para Charlotte no outro lado da sala. - Quem lhe deu isto? - Não sei quem ele era. Estava com um dominó negro. Quando o vi, pensei que

fosse você. Mas a voz dele... - Ela hesitou, procurando as palavras. - Era estranha. Com algum defeito. - Olhou para o relógio. - Você precisa ir. Prometo contar tudo mais tarde.

- Esta é a segunda vez que alguém tenta colocá-la contra mim. - Um trabalho inútil. - Sacudiu a saia do vestido e foi abrir a porta do estúdio. -

Apresse-se, Baxter. Hamilton deve estar esperando. Depende de você para salvar a vida do amigo.

Sim, Charlotte tinha razão. Não tinha tempo para ouvir a história da rosa e do bilhete. As coisas mais importantes em primeiro lugar, ele lembrou.

- Maldição. - Saiu para o hall, apanhou o chapéu e abriu a porta da frente. Olhou para ela, parada na porta do estúdio. - Você não dormiu a noite toda. Vá para a cama. Venho vê-la à tarde. Conversaremos sobre isto com mais vagar.

- Muito bem, mas mande me avisar o resultado do duelo. - Sim. - E vai ter cuidado? - Como eu já disse - virou-se para descer os degraus da frente - não sou eu

quem vai enfrentar Anthony Tiles ao nascer do dia. - Eu sei. E como eu já disse Baxter, conheço você muito bem para acreditar que

não vai ter cuidado como eu desejo que tenha. - Não sei onde arranjou a idéia de que eu sou imprudente e ousado. Além de não

ter temperamento para esse tipo de coisa, não tenho o alfaiate adequado. Boa noite, Charlotte.

O dia chegou com uma névoa leve e ondulante cobrindo os campos de Brent como uma mortalha cinzenta. A atmosfera ideal para um encontro sinistro e idiota, Baxter pensou.

Ao lado de Hamilton ele viu os passos serem contados por um jovem com uma aparência devassa que cairia muito melhor em um libertino com o dobro da sua idade.

- Um, dois, três... Com as pistolas apontadas para o céu, Norris, muito pálido, e Tiles, com olhos

ferozes, caminharam um para cada lado. - Tem certeza de que vai funcionar? - Hamilton perguntou em voz baixa. - É a vigésima vez que me pergunta isso - Baxter murmurou. - E pela vigésima

vez tudo que posso dizer é que deve funcionar. - Mas se não... - Fique quieto - Baxter ordenou em voz baixa. - É tarde demais para alterar os

planos. Hamilton obedeceu com um silêncio nervoso. Baxter olhou rapidamente para ele enquanto os passos mortais eram contados.

Hamilton estava muito mais nervoso do que o amigo. Norris, definitivamente, não era ele mesmo. Baxter o observou atentamente durante as preliminares do duelo.

Norris parecia um autômato. Respondia a perguntas diretas, mas negava-se a discutir qualquer detalhe da situação. Parecia ignorar o que estava acontecendo a sua volta. Quando Hamilton pediu a ele, pela última vez, para se desculpar com Tiles, o que teria anulado o duelo, Norris pareceu não ouvir o que ele dizia.

-... quatorze, quinze, dezesseis... Hamilton olhou outra vez para Baxter. Baxter balançou a cabeça uma vez,

avisando-o para ficar calado. Baxter teve o cuidado de garantir a Norris as melhores oportunidades possíveis,

no caso do seu plano não dar certo. Negociou com os padrinhos de Tiles a distância de vinte passos, em vez dos quinze sugeridos. O espaço adicional entre os oponentes dificultaria a precisão do tiro, mesmo para um homem com a habilidade de Tiles.

-... dezessete, dezoito, dezenove, vinte. - O jovem devasso sorriu com sinistra antecipação. - Apontar. Fogo.

Baxter viu Hamilton prender a respiração. No campo, os dois homens viraram um de frente para o outro. Norris nem tentou mirar com cuidado. Simplesmente apontou a arma na direção geral e apertou o gatilho.

A explosão ecoou na névoa. Tiles não se abalou. Com um sorriso frio, ergueu a pistola. Norris abaixou a arma lentamente, perplexo. Olhou para Tiles, que fazia ainda

pontaria e, depois, para Hamilton. Baxter viu o choque e horror nos olhos dele. Norris olhou outra vez para Tiles. Seus lábios se moveram, mas não se ouviu nenhuma palavra.

Calculando friamente, Tiles atirou. Uma segunda explosão ecoou na névoa. Norris piscou várias vezes e depois olhou para o próprio corpo, como se

esperasse ver sangue. Não foi o único a ficar surpreso. Todos os homens presentes como testemunhas

do duelo olharam atônitos para Norris, ainda de pé e ileso. - Maldição, Tony errou o alvo - alguém disse, finalmente. O médico, pago para atender o ferido, desceu de uma das carruagens, com ar

muito profissional de expectativa. Parou quando viu Norris ainda de pé. Baxter deu um passo à frente.

- Um tiro cada um. Esse foi o combinado. Terminou. - Olhou para Tiles que examinava atentamente a própria pistola. - A honra foi satisfeita. Sabem como rumores de um duelo se espalham rapidamente. Vamos para casa antes que as autoridades sejam avisadas.

Houve um murmúrio geral de assentimento. A perspectiva de ser preso por participar de um duelo foi suficiente para apressar o passo de todos. Os homens foram para suas carruagens paradas debaixo das árvores ao lado do campo.

Baxter olhou para Norris, que continuava assustado e confuso. O olhar parado tinha desaparecido. Estava outra vez consciente do mundo à sua volta.

- Vou levar Norris para a carruagem. - Hamilton deu alguns passos na direção do amigo.

Baxter tocou de leve no braço dele. - Quero falar com vocês dois mais tarde. Esta manhã. Antes de você levar Norris

para casa. Hamilton hesitou, depois fez um gesto afirmativo. - Não sei o que ele pode dizer,

mas devemos a você algumas respostas. Norris e eu o acompanharemos à sua casa. Baxter caminhou para a carruagem. Anthony Tiles parou na frente dele. - St. Ives, uma palavra, se não se importa. Baxter parou, tirou os óculos e começou a limpar as lentes com o lenço. Não

precisava dos óculos para ver a atenção penetrante nos olhos cinzentos de Tiles. Apesar de toda a fama, Tiles não era depravado como seus companheiros.

Baxter sentiu que a raiva que o consumia era prova de uma noção de objetivo. Quando essa raiva chegasse a devorar demais, Tiles seria destruído. Charlotte estava certa. Anthony estava construindo o próprio fim inglório.

- O que foi Tony? - Faz muito tempo, desde Oxford, não faz? - Sim. - Não o tenho visto muito ultimamente. Senti falta da sua companhia. - Nossos

interesses divergiram. Anthony concordou pensativamente. - Tem razão. Você sempre gostou de trabalhar no seu laboratório. E eu sempre

preferi as mesas de jogo. Mas ainda temos uma coisa em comum, não temos? - Sim. - O fato de serem ambos bastardos por nascimento os tinha aproximado

em Oxford, Baxter sabia. Talvez houvesse ainda alguma coisa daquela amizade. - Confesso que fiquei surpreso quando o vi aqui esta manhã. Não imaginei que

fosse seu tipo de esporte. - Não é. - Baxter pôs os óculos. - E se você tivesse algum juízo, Tony, ia procurar

alguma coisa mais útil para ocupar seu tempo do que esses encontros de madrugada. Um dia destes vai enfrentar alguém com uma pontaria mais mortal do que a sua.

- E talvez alguém cuja pólvora não tenha sido alterada? - Baxter sorriu. - Espero que não esteja fazendo nenhuma acusação de fraude. Afinal, seus

padrinhos verificaram a pólvora das armas. - Sim, mas nenhum deles é químico. - Anthony parecia surpreendentemente

estar se divertindo. - Eles não iam notar se um cientista muito esperto substituísse a pólvora por outra substância.

- Ora, Tony, todos ouviram a explosão quando você apertou o gatilho. - Sem dúvida ouvi muito som e fúria - Anthony concordou. - Mas não significou

nada. A bala ainda está na minha arma. - Você não precisa do sangue do jovem Norris em suas mãos. Nós dois sabemos

que ele não é igual à sua presa habitual. Ele estava fora de si quando o desafiou. - Concordo que não combinou com ele. - Anthony estava pensativo. - E concordo

que eu não teria grande satisfação em pôr uma bala nele. - Fico feliz por saber disso. - Baxter deu alguns passos na direção da carruagem. - Mais uma coisa, St. Ives. - Sim? Anthony olhou para ele com os olhos semicerrados. - Acho que você está aqui porque o novo conde de Esherton pediu sua ajuda

para salvar o amigo. - E se for? - Estão dizendo que o velho conde o deixou encarregado da fortuna e mandou

tomar conta do jovem Hamilton. - Aonde quer chegar, Tiles? - Seu meio-irmão ficou com o que devia ser seu. Você está na posição ideal para

destruir a herança que lhe foi negada. - Anthony fechou a mão com força. - Por que não fez isso?

As palavras de Charlotte soaram na mente de Baxter. Anthony Tiles evidentemente permitiu que os fatos do seu nascimento o levassem para um caminho que certamente vai destruí-lo. Ainda bem que você construiu um destino diferente.

Olhou para o homem que fora seu companheiro, talvez até seu amigo, e percebeu a verdade que jamais havia enfrentado. Seu pai não deixou o título para o filho bastardo, mas deu a ele um pouco de si mesmo. Anthony não teve tanta sorte.

- Não vou dizer que às vezes não penso no passado - Baxter disse, pausadamente. - Mas talvez eu tenha evitado a tentação de uma vingança porque descobri algo que me interessa muito mais.

- Ah, sim, sua paixão pela química. - Anthony sorriu desdenhosamente. - Mas para mim, não há nada mais interessante do que a vingança.

- Aceite um conselho de um velho conhecido. Procure alguma coisa mais divertida do que o jogo e duelos. As pessoas acabam ficando velhas demais para esse tipo de coisa, Tony.

- Por favor, não me faça sermões. Já foi demais para mim sua interferência na

minha diversão esta manhã. - Não precisa bancar o cínico. - Baxter olhou para a carruagem onde Norris e

Hamilton o esperavam. - Sei muito bem que você escolheu o caminho mais nobre neste fiasco. Duvido que se preocupe com meus agradecimentos, mas eu sou grato.

- Excelente. - O sorriso de Anthony era decididamente maldoso. - Posso encontrar uma utilidade para sua gratidão. Mas garanto que é indevida. Nunca procuro me comportar nobremente. Não há nenhum proveito nisso para um bastardo.

- Então talvez você esteja mais cansado da vida que leva do que imagina. - Que diabo quer dizer com isso? - De onde eu estava, deu para ver que você apontou levemente para o alto e

para a esquerda. Se sua pistola não tivesse falhado, a bala provavelmente teria quando muito acertado a orelha de Norris e não penetrado no peito. - Baxter ergueu as sobrancelhas. - Eu acredito que minha intervenção foi desnecessária.

Com um olhar estranho para ele e sem dizer mais nada, Anthony virou e foi para sua pequena carruagem de dois lugares e para a solidão auto-imposta.

Baxter o viu subir no carro elegante e partir no meio da neblina e teve uma breve visão de Anthony transformado aos poucos num fantasma.

Sentiu um aperto no coração. Eu podia ser igual a ele. Superficialmente, Baxter e Anthony eram muito diferentes. Tiles levava uma vida

repleta de excitação febril e de perigo. Baxter preferia o mundo ordenado e silencioso do laboratório. Mas ambos haviam erguido paredes para isolar as emoções que podiam torná-los vulneráveis.

Essas paredes eram a certeza de que viveriam para sempre isolados. No passado, Baxter sempre se ressentia e resistia a todos que o faziam sair do

seu laboratório para resolver algum problema desagradável de família. Quando terminava a tarefa no mundo exterior, voltava aliviado para o ambiente previsível, silencioso e ordenado do seu reino particular.

Porém dessa vez não estava tão ansioso para voltar ao conforto dos seus frascos, cadinhos e foles. Não queria mais estar completamente sozinho.

Charlotte olhou para a mulher gorducha, de rosto rosado e cabelo grisalho

sentada à mesa, na frente do fogo da cozinha. - Foi muita bondade sua vir hoje, Sra. Gatler. - A Sra. Witty garantiu que eu seria recompensada. - A Sra. Gatler entrecerrou os

olhos azul-claros. - Ela garantiu também que a senhorita jamais dirá a ninguém que estive aqui para contar o que aconteceu naquela noite.

- Tem a minha palavra. Todos sabem que podem confiar em mim. - Foi o que a Sra. Witty disse. - A Sra. Gatler olhou de soslaio para a Sra. Witty,

que fazia massa de pão na outra extremidade da cozinha. - Pode contar qualquer coisa para ela, Maggy. - A Sra. Witty piscou o olho para a

amiga. - Ela sabe guardar segredos, sabe mesmo. - Mais chá, Sra. Gatler? - Charlotte apanhou o bule de chá. A visita da ex-governanta de Drusilla Heskett a apanhou de surpresa. Ariel tinha

saído há menos de uma hora para fazer compras com Rosalind. Baxter enviara um recado garantindo que tudo tinha dado certo no duelo, mas ainda não aparecera.

Charlotte estava tomando notas sobre a investigação, tentando descobrir alguma conexão entre os fatos, quando a Sra. Witty anunciou triunfalmente a visita da governanta de Drusilla Heskett.

- Levei algum tempo para encontrá-la - disse a Sra. Witty, enquanto as duas se dirigiam para a cozinha. - Ela na verdade não queria ser encontrada.

- Sim, acho que vou aceitar mais chá - disse a Sra. Gatler. - Para mim é uma novidade ser servida pela dona da casa.

Charlotte sorriu. - O prazer é meu. - Não disse que teria o mesmo prazer em servir gim se fosse preciso para soltar

a língua da sua visitante. - Agora, então, fale sobre o crime. Com outro olhar para a Sra. Witty, a Sra. Gatler se inclinou para a frente sobre a

mesa. - Ele não sabia que eu estava lá, compreende? - Quem não sabia? - O homem que atirou nela. A Sra. Heskett tinha dado a noite de folga para

todos os criados. Ela geralmente fazia isso quando esperava a visita de Lorde Lennox. - A Sra. Gatler riu. - Os dois gostavam de ter liberdade na casa toda quando faziam suas coisas. Cozinha, porão, sala de estar, tudo. Usavam toda a casa, aqueles dois.

- Vigor - Charlotte murmurou. - Pode apostar que sim. Bem, eu devia ter ido à casa da minha irmã naquela

noite, mas na última hora mudei de idéia. Não estava disposta. Resolvi ficar em casa e tomar um remédio para as minhas dores. Estava no meu quarto, atrás da cozinha, quando o ouvi no hall.

Charlotte franziu a testa. - Ouviu quem? Lorde Lennox? - Não, não, não ele. Eu sempre sabia quando Lennox estava na casa. - A Sra.

Gatler balançou a cabeça com admiração. - Aqueles dois faziam um bocado de barulho. Era incrível, era mesmo.

- Por favor, continue Sra. Gatler. O homem no hall fez algum barulho? - Não. Foi isso que eu estranhei. Chegou silencioso como a morte. Eu só percebi

que estava lá porque ouvi a Sra. Heskett falando com ele. Charlotte ficou atenta. - Então, ela o conhecia? - Acho que não. Ela parecia assustada. Perguntou o que ele estava fazendo na

sua casa. - Disse que o ouviu no hall. Ele não bateu na porta da frente? - Não. - A Sra. Gatler franziu as sobrancelhas. - Eu teria ouvido. Achei que ele

devia ter uma chave. - Uma chave? - A Sra. Heskett tinha o hábito de dar chaves da casa para seus amigos favoritos.

- A Sra. Gatler deu de ombros. - Lennox tinha uma. Charlotte trocou um olhar com a Sra. Witty. Depois voltou a atenção para a

visitante. - O que aconteceu então? - Bem, ouvi os dois conversando por algum tempo no hall. Pelo menos ouvi a

Sra. Heskett. Não conseguia ouvir a voz do homem, muito baixa. Mas eu sabia que ele estava falando porque uma vez ou outra a Sra. Heskett respondia.

- A senhora foi até o hall para ver se a Sra. Heskett precisava de alguma coisa para o visitante?

- Não. Certamente que não. Eu devia estar de folga. Se a senhora soubesse que eu estava em casa, ia me mandar para a cozinha, preparar uma refeição fria para o cavalheiro seu amigo. - A Sra. Gatler fez uma careta. - Os ricos nunca se lembram das folgas dos criados quando querem alguma coisa. Não é mesmo, Sra. Witty?

A Sra. Witty respondeu com um ruído de comiseração e voltou para sua massa de pão.

Charlotte serviu mais chá. - Por favor, continue com sua história, Sra. Gatler.

- Muito bem, deixe ver. Onde eu estava? - Franziu a testa. - Não tem muito mais para contar. Depois de algum tempo, a Sra. Heskett e o cavalheiro subiram a escada. Alguns minutos depois, ouvi o tiro. Entrei em pânico, eu juro, fiquei sem poder me mexer por um tempo. Então eu o ouvi na escada.

- Ouviu os passos do assassino? - Ouvi a voz dele. - A Sra. Gatler estremeceu. - O spaniel da Sra. Heskett devia

estar no caminho dele. O homem praguejou para o cachorro. Mandou sair do seu caminho.

- Conte tudo que ouviu Sra. Gatler. - Acho que ele chutou o cachorro. Ouvi o animalzinho ganir. Então, ouvi os

passos descendo para o hall dos fundos. Passou bem na frente do meu quarto. Eu prendi a respiração e rezei. Nunca tive tanto medo na minha vida.

- O homem parou? - Não, graças ao bom Deus. Continuou direto e atravessou a cozinha. Não saí do

quarto até ter certeza de que ele tinha ido embora. Então o cachorro começou a uivar. Depois de um tempo, subi a escada. Foi então que encontrei a Sra. Heskett. Estava deitada lá numa poça de sangue. Foi horrível. Acho que ela não morreu imediatamente.

- Por que diz isso? - Charlotte perguntou. A Sra. Gatler pareceu constrangida. - Ela tinha se arrastado no tapete. Chegou até o guarda-roupa. Abriu uma

gaveta. O guarda-roupa estava cheio de sangue. Provavelmente ela tentou se levantar. Foi horrível.

Não, Charlotte pensou. Drusilla Heskett não estava tentando se levantar. Usou seu último alento para esconder o livro de desenhos. Ela sabia que nele estava a única pista que apontava para o assassino.

- Por que não chamou o magistrado imediatamente? - Charlotte perguntou. - Por que não se apresentou para dizer o que tinha acontecido?

A Sra. Gatler olhou para ela como se Charlotte não fosse muito inteligente. - Pensa que sou louca? Eu era a única que estava na casa naquela noite. As

autoridades iam pensar que eu era a assassina. Os criados sempre levam a culpa em situações como essa, sabe? Eu seria presa. Iam dizer que fui apanhada tentando roubar a prata, ou coisa parecida.

Charlotte tamborilou na mesa com as pontas dos dedos. - Exatamente o que o assassino disse quando chutou o cachorro? - O quê? Oh, sim. Na escada. - A Sra. Gatler acabou de tomar o chá e ergueu os

olhos parecendo confusa. - Acho que ele disse "saia do meu caminho, cão maldito". Ou coisa parecida. Para dizer a verdade, o que ficou na minha cabeça não foi às palavras, foi a voz.

Charlotte ficou tensa. - A voz? - Muito áspera e rouca. - A Sra. Gatler estremeceu outra vez. - Me fez pensar em

pedras rolando dentro de um caixão. - Deus do céu. - Charlotte quase parou de respirar. O homem da rosa e do

bilhete era o mesmo que matou Drusilla Heskett. Ela tinha estado cara a cara com o assassino de Drusilla.

Não, não exatamente cara a cara, ela lembrou. O homem com o dominó negro estava de máscara. Só uma pessoa podia identificar aquela voz raspante com um rosto.

- O que foi Srta. Charlotte. - A Sra. Witty limpou a farinha das mãos e olhou preocupada para Charlotte. - A senhora parece que foi atingida por um raio.

- O homem que contratou Juliana Post para me contar aquelas mentiras sobre o

Sr. St. Ives provavelmente é o mesmo que me deu o bilhete ontem à noite. - Charlotte passou as pontas dos dedos nas têmporas, tentando descobrir a lógica da situação. - Tem de ser o mesmo homem.

- Como pode saber disso? - perguntou a Sra. Witty. - O estratagema foi o mesmo nos dois casos. Uma tentativa para me afastar de

St. Ives. - Charlotte apoiou as mãos na mesa e levantou-se. - E esse homem provavelmente é o assassino. Oh, meu Deus, preciso me apressar.

- Aonde pensa que vai? - disse a Sra. Witty, quando Charlotte atravessou a cozinha correndo.

- Vou ver Juliana Post. - Charlotte parou por um instante na porta. - Temo que ela esteja correndo grande perigo. Preciso avisá-la.

- Mas, Srta. Charlotte... - O Sr. St. Ives deve chegar em pouco tempo. Por favor, diga a ele aonde eu fui. A Sra. Witty olhou para ela, zangada. - Por que a Srta. Post estaria em perigo? - Porque é a única que pode identificar o assassino. Só espero que ele não tenha

ainda compreendido que a Srta. Post é uma ameaça para ele.

Capítulo XVI - Enquanto você conversava com Tiles, Norris me disse que não se lembra de

nada a respeito do duelo. - Hamilton começou a andar na biblioteca. - Não se lembra das instruções que recebeu quando o mágico o induziu ao transe. Nem tem lembrança da experiência.

- Ele disse por que desafiou Tiles? - Não. Não disse. Não se lembra de ter feito isso. Afirma que só depois de atirar

compreendeu de repente que estava enfrentando o mais perigoso duelista de Londres. E nem ao menos sabia por quê.

- Ele lembra que você e os outros membros do clube procuraram dissuadi-lo a ir adiante com o duelo?

- Não. - Hamilton parou na frente da estante de livros que cobria toda a parede e segurou o corrimão da escada da biblioteca. - Como você viu, ele ficou muito abalado com o incidente.

Um olhar para Norris, atordoado e exausto, bastou para Baxter se convencer de que um interrogatório seria inútil e, embora com relutância, mandou o cocheiro deixar Norris na frente da mansão Lennox. Hamilton acompanhou o amigo até ele entrar na casa, voltou para a carruagem e seguiu com Baxter para a casa dele. Não disseram uma palavra até entrar na biblioteca.

- Quando Norris se recuperar, vai descobrir que ganhou uma reputação invejável - Baxter disse. - Afinal ele é agora um dos poucos que tiveram a audácia de desafiar Anthony Tiles e sobreviveram ilesos.

- Verdade. - Hamilton sorriu, a despeito do ar sombrio. - É irônico, não é? Norris é o homem mais pacato e cordato que conheço e agora vai ficar conhecido como um ousado e imprudente homem do mundo.

- Vai ser maravilhoso para sua vida social. Espero que a nova imagem não lhe suba à cabeça.

- É pouco provável. - O sorriso desapareceu. - Ele dá graças a Deus por estar vivo. A última coisa que vai querer, por muito tempo, é arriscar o pescoço.

- Uma vez que ele parece não se lembrar de nada, terei de confiar em você para a informação. Quer me ajudar a descobrir a identidade desse charlatão que vocês chamam de mágico?

Hamilton voltou-se para ele com olhos frios e muito sérios. Parecia muito mais velho do que no dia anterior, Baxter pensou.

- Sim, farei o que for possível. Sei muito bem que devo isso a você, Baxter. - Não me deve nada. - De que diabo está falando? Você salvou a vida do meu amigo. Nunca poderei

pagar. Nem Norris. - Foi você quem deu os passos para salvar a vida de Norris. Deixou de lado seus

sentimentos e veio a mim pedir ajuda. Precisou coragem para isso, força de vontade e iniciativa.

Hamilton corou. Por um momento parecia tão confuso quanto Norris depois do duelo.

- Eu não sabia a quem mais recorrer. Tentei convencer Norris usando a lógica e a razão. Ele não respondeu aos meus pedidos nem aos meus argumentos. Não conseguimos encontrar o mágico. Eu estava desesperado.

- Eu sei. Você fez o que achou que era necessário para salvar a vida de um amigo, mesmo que significasse pedir a minha ajuda. Se Norris deve agradecer a alguém, é a você.

- Não fui eu quem alterou a composição química da pólvora.

Baxter deu de ombros. - Se isso serve de consolo, não acredito que Tiles teria atirado em Norris a

sangue-frio. - Todos sabem que Tiles é completamente impiedoso. - Certamente essa é sua fama. Mas ele não tinha coisa alguma contra Norris. - A falta de motivo não seria suficiente para deter um homem como Tiles. -

Hamilton franziu a testa. - Acha que ele suspeita de que havia alguma coisa errada com a pólvora?

- Ele não é bobo. Uma centelha de alarme passou pelos olhos de Hamilton. - Quer dizer que ele sabe o que aconteceu hoje? - Ele tem uma idéia bastante precisa do que aconteceu com sua pistola, sim. E

sabe que eu sou químico. Não foi preciso um grande poder de dedução para juntar os fatos e formar uma teoria.

- Que diabo, Baxter. Se ele sabe, pode culpar você. Pode desafiá-lo para um duelo. Você pode ser sua próxima vítima.

- Não vai dizer que está preocupado com minha vida? - Não seria direito Tiles se vingar de você por ter ajudado Norris. - Pode ficar certo de que não vai haver nenhum duelo entre mim e Tiles. No

passado, em Oxford, nós fomos amigos. Embora tenhamos seguido caminhos diferentes, há um antigo elo que nos une e que dificilmente será quebrado.

Hamilton olhou atônito para ele. - Que elo é esse? - Nós dois somos bastardos. - Eu não compreendo. O que isso tem a ver com o resto? - As circunstâncias do nascimento de uma pessoa têm uma influência notável no

seu círculo de amigos mais tarde. Considere sua amizade com Norris. O elemento básico que vocês têm em comum é que são herdeiros de títulos e de fortunas antigas. Esse fator cria um elo entre os dois para toda a vida. Você provavelmente terá filhos que se casarão com filhas dele e assim por diante. Assim são as coisas no mundo.

- Compreendo - Hamilton disse um pouco embaraçado. - Entretanto, a despeito da sua opinião, estou muito satisfeito pelo fato de a segurança de Norris esta manhã não ter ficado na dependência do capricho de Tiles.

- Tiles pode ser imprevisível, esteja certo. Mas acho que já falamos bastante sobre o duelo. - Baxter inclinou-se para a frente e cruzou as mãos na mesa. - Vamos tratar de assuntos mais urgentes. Precisamos encontrar esse maldito mágico antes que ele ponha em perigo a vida de mais alguém com suas experiências de mesmerismo.

- Eu concordei em ajudar a procurá-lo, mas ainda não acredito que ele queria a morte de Norris. - Hamilton passou a mão na nuca. - A experiência ficou fora de controle, foi tudo.

- Não estou tão certo de que tenha sido esse o caso. Hamilton olhou para ele. - O que quer dizer? - Suspeito que os resultados tenham sido perfeitamente satisfatórios para o

mágico. - Do que está falando? Por que o mágico ia querer matar Norris? - Esta é uma das muitas perguntas que quero fazer a ele. Agora, conte-me tudo

que puder. Hamilton suspirou. - Não vai ser fácil. Na verdade, nunca vi o rosto dele. Estava sempre com o

manto e capuz quando aparecia para nós. Era parte do jogo, compreende? - Suponho que ele tenha representado seu ato várias vezes para você e seus

amigos. Deve haver alguma característica que todos podem lembrar. - Bem, ele tem uma voz bastante estranha - Hamilton disse. Charlotte levantou a pesada argola de bronze na porta da casa de Juliana Post e

bateu com força pela terceira vez. Ninguém atendeu. A sensação de medo e ansiedade cresceu. Alguma coisa estava errada. Charlotte

sabia disso, do mesmo modo que sabia outras coisas, como o fato de Baxter não ser o homem desinteressante e inofensivo que o resto do mundo acreditava que fosse e que o vulto com voz áspera no dominó negro representava um perigo mortal.

Bateu mais uma vez. Juliana podia ter saído por algumas horas. Talvez para fazer compras.

Mas onde estava a governanta? Não adiantava ficar batendo na porta. Era evidente que ninguém ia atender.

Charlotte olhou para a parte da frente da casa, abaixo do nível da rua. Nenhum sinal de vida na cozinha.

Ela precisava entrar na casa. Não descansaria se simplesmente desistisse e voltasse para casa.

Com um rápido olhar para a rua, para se certificar de que ninguém estava olhando, abriu o pequeno portão e desceu rapidamente para a parte da casa abaixo do nível da rua. Ali embaixo não podia ser vista por quem passasse na rua.

Tudo estava silencioso na pequena área na frente da cozinha. Charlotte olhou pelas janelas. Ninguém lá dentro. Bateu com força no vidro.

Não obteve resposta e tentou a porta. Trancada. A decisão de quebrar o vidro da janela foi difícil, mas era o único modo de poder

entrar na casa. Seria melhor se Baxter estivesse com ela, pensou. Ele era muito bom nessas coisas.

Tirou o chapéu, cobriu com ele um dos pequenos vidros e esperou que uma carruagem passasse na rua. Quando o ruído dos cascos dos cavalos e das rodas se intensificou, bateu com a bolsa pesada no vidro coberto pelo chapéu.

O pequeno quadrado de vidro quebrou e os pedaços caíram no chão da cozinha. Charlotte esperou por algum tempo. Ninguém apareceu para ver o que estava acontecendo.

Passou o braço para dentro e abriu a porta. Em poucos segundos estava dentro da casa. Arrombamento era um negócio

surpreendentemente simples. Atravessou a cozinha para a escada que levava ao térreo. - Alguém em casa? - ela disse, em voz alta. - Srta. Post? Um silêncio sinistro foi a única resposta. A sensação de desgraça aumentou quando ela começou a subir a escada. Um

cheiro estranho impregnava o ar. - Juliana? É Charlotte Arkendale. Nenhuma resposta. Charlotte aspirou o ar cautelosamente. O cheiro de fumaça era familiar. Lembrou

que Juliana usava um tipo exótico de incenso para criar a atmosfera das suas sessões de cartomancia.

Este é diferente, Charlotte pensou. Não o mesmo da última vez. Mas eu conheço esse cheiro. De onde?

Então lembrou. Era semelhante ao cheiro do incenso que Hamilton e os amigos usavam naquela noite no Mesa Verde. Porém, havia uma diferença. O vapor parecia mais denso, mais acre.

- Juliana?

A porta da pequena sala que Juliana usava para ler a sorte estava fechada, e pequenas espirais de fumaça saíam pela parte de baixo.

Com uma terrível sensação de urgência, Charlotte atravessou o hall, segurou a maçaneta e tentou girar com toda a força.

A porta estava trancada. Chocada, ela olhou para a fechadura e viu a chave. Alguém havia

deliberadamente trancado a porta por fora. - Juliana. Quase frenética agora, Charlotte abriu a porta. Nuvens de incenso saíram para o hall e rodopiaram em volta dela. Charlotte

sentiu o ardor nos olhos e ficou atordoada. Recuou rapidamente e tirou o lenço da bolsa. Respirou fundo e segurou o lenço

dobrado sobre a boca e o nariz. Entrou rapidamente na sala exótica negra e carmesim. O incenso era tão pesado

como se a névoa da rua tivesse se instalado ali. Seus olhos começaram a lacrimejar. Tinha pouco tempo para procurar Juliana. Só podia ficar na sala enquanto conseguisse conter a respiração.

Quase tropeçou na mesa da cartomante e viu várias cartas viradas para cima. Uma delas tinha caído no chão. Mostrava uma figura encapuzada segurando uma foice. A imagem inconfundível da morte.

Passou para o outro lado da mesa e olhou para a lareira. Um amontoado de túnicas de cetim estava no chão, junto do sofá escarlate.

Juliana. Com os pulmões em fogo, Charlotte correu para a mulher deitada no tapete. Não

podia saber se estava viva ou morta. Não tinha tempo para verificar. Apertando o lenço no rosto com uma das mãos, segurou o tornozelo de Juliana

com a outra e começou a puxar para a porta. Felizmente, o manto de cetim de Juliana deslizou suavemente sobre o tapete.

Mas a porta estava muito longe. Charlotte sabia que não chegaria até ela se não respirasse. Já estava ficando tonta.

Respirou cuidadosamente através do lenço. O tecido de linho diminuía a intensidade do incenso, mas não podia filtrar todo o

ar. A princípio Charlotte pensou que nada tinha acontecido. Então viu com horror a sala negra e escarlate começar a se dissolver na frente dos seus olhos.

O incenso, ela pensou. Era efeito do incenso. Precisava continuar a se mover para a porta.

Juliana parecia mais pesada agora. A sala era um mar de sangue. A porta era à entrada do inferno. Um monstro a esperava no outro lado.

É o incenso. O incenso. Preciso continuar em frente. Mais um passo. Só mais um pequeno passo, ela prometeu a si mesma. Então,

poderia respirar. Puxou Juliana para fora da porta do inferno... e se encontrou num chão frio de

ladrilhos. Tirou o lenço do rosto e respirou profundamente o ar menos impregnado do hall.

Um violento acesso de tosse a acometeu. - Com todos os demônios, Charlotte. - Baxter. Baxter estou aqui. O som da voz dele era mais revigorante do que qualquer tônico. Charlotte

respirou outra vez profundamente e enxugou as lágrimas. Piscou várias vezes e viu Baxter caminhando para ela na fumaça menos densa do hall. Ele havia entrado pela cozinha também.

- O que aconteceu aqui? - ele perguntou com voz suave e terrível.

- Graças a Deus você veio. Estou tão feliz por vê-lo. É Juliana. Não sei se ainda está viva.

Charlotte não conseguia focalizar os olhos. Quando Baxter se aproximou, seu vulto parecia mudar de forma sutilmente. Era como se estivesse transmudando entre dois estados diferentes de ser, um humano e o outro... outra coisa qualquer. Alguma coisa perigosa. Os olhos de alquimista brilhavam intensamente na névoa do incenso.

Baxter olhou para ela. - Saia daqui. Depressa. Eu cuido da Srta. Post. - Há muito desse vapor estranho - Charlotte disse. O hall parecia diferente. A escada tinha deslizado para o lado. - Acho que há fogo na sala. - Vou verificar depois de levar você e a Srta. Post para a carruagem. Mexa-se,

mulher. Não, não pela escada da cozinha. Pelo amor de Deus, use a porta da frente. Está mais perto.

- Sim, é claro. - Charlotte não podia pensar com clareza. Tudo estava ondulando, mudando de cor, de forma. Era como se estivesse se

movendo num sonho, num pesadelo. Ela virou-se rapidamente e estendeu a mão para a maçaneta da porta, que

flutuava na névoa. Mal conseguiu segurar e a maçaneta voou da sua mão. Charlotte procurou alcançá-la.

- Abra a porta - Baxter ordenou com uma voz que cortou a névoa carmesim. Reunindo toda a força de vontade que possuía, Charlotte agarrou a maçaneta.

Para seu infinito alívio ela girou entre seus dedos. A porta abriu. Ar fresco e frio entrou no hall cheio de incenso. Charlotte respirou

profundamente enquanto descia cambaleando os degraus da entrada. O mundo começou a parar de girar. Ela viu a carruagem de Baxter na rua, na frente da casa.

Tentou andar até ela, mas a carruagem parecia mudar de posição e de tamanho quando estendeu a mão para abrir a porta.

- Deixe, Srta. Arkendale, eu abro para a senhorita. - O cocheiro saltou da cabine da boléia e abriu a porta.

Com a mão sob o seu cotovelo ele a ajudou a subir na carruagem. Charlotte caiu pesadamente no banco. Olhou pela janela e viu Baxter vindo logo atrás, com Juliana nos ombros.

- O que está acontecendo aqui? - perguntou o cocheiro. - A casa está pegando fogo? Devo pedir ajuda senhor?

- Acho que não há fogo. - Baxter pôs Juliana no chão da carruagem. - Espere um momento. Vou voltar para examinar melhor.

A cabeça de Charlotte começava a clarear. Ela se inclinou para fora, na janela. - Baxter, tenha cuidado. Aquele incenso é muito perigoso. Ele não respondeu. Charlotte o viu tirar o lenço do bolso e entrar na casa.

Esperou ansiosamente até ele reaparecer logo depois. - Não há fogo. Apenas um braseiro cheio de incenso. Uma coisa perigosa. Logo

vai acabar de queimar. - Baxter olhou para o cocheiro antes de entrar na carruagem. - Para a casa da Srta. Arkendale. Por favor, não perca tempo. Não quero ficar mais nem um minuto nesta vizinhança.

- Sim, senhor. - O cocheiro fechou a porta da carruagem e subiu para a boléia. A carruagem partiu velozmente. Baxter sentou de frente para Charlotte. Seus olhos estavam furiosos atrás das

lentes. - Você está bem? - Sim. - Ela olhou para Juliana deitada no chão da carruagem. - E a Srta. Post

está viva, graças a Deus.

Baxter se inclinou para tocar o lado do pescoço de Juliana. - Sim, está. - Ela deve ter desmaiado por causa do incenso. Tenho quase certeza de que não

é o mesmo que ela estava usando quando a visitei. Este me fez lembrar daquele que Hamilton e os amigos usaram naquela noite. Porém, mais forte.

- Sim. - Baxter olhou atentamente para Juliana. - Não acredito que a Srta. Post tenha sido sufocada acidentalmente pelo incenso.

Os olhos deles se encontraram acima do corpo imóvel de Juliana. - O mágico tentou matá-la. - Sim. - O nome dele é Malcolm Janner. Eu o amava e ele tentou me matar. - Juliana,

depois de tomar banho e vestir um dos robes de Ariel, estava no sofá, na frente do fogo. Sua voz estava ainda rouca por causa da fumaça, os olhos vermelhos e úmidos de lágrimas. - Pensei que ele me amava.

Charlotte parou no ato de servir outra xícara de chá e tocou na mão de Juliana. - Ele é um monstro. Monstros não correspondem ao amor. Baxter estava de pé ao lado da lareira. Charlotte sentiu o olhar intenso dele,

observando-a atentamente, mas não disse nada. Charlotte voltou-se outra vez para Juliana.

- O que aconteceu hoje? - Ele me pediu para ler as cartas. Faz isso freqüentemente. Era uma das coisas

que nunca consegui compreender nele. - O que quer dizer? - Malcolm é um homem muito inteligente, mas obcecado com a metafísica e o

ocultismo. Ele acredita que eu posso mesmo ler a sorte. Na verdade, acho que foi um dos motivos pelos quais fingiu que me amava. Eu nunca tive coragem de dizer a ele que minha habilidade para ler a sorte não passava de uma representação que eu uso como meio de vida.

- Por que o incenso? - Baxter perguntou. - Ele está sempre fazendo experiências com incenso. Criou uma mistura especial

que, segundo ele, intensifica as faculdades e eleva a percepção. Diz que o ajuda a entrar em contato com as forças do plano metafísico.

- Era isso que estava queimando no braseiro? - Charlotte perguntou. - Sim. Mas o incenso é muito poderoso. Deve ser usado com cuidado. Uma

pequena quantidade altera o modo como se vê as coisas. E, demais, pode matar. - Então havia incenso demais na sua sala hoje - Charlotte disse. - Depois que li as cartas para ele esta manhã, ele pôs mais incenso no braseiro. -

Juliana fechou os olhos, angustiada. - Quando eu disse que aquilo me assustava, ele disse que tomaria cuidado para que não me fizesse mal. Ele pôs a máscara, a que usa sempre que quer se defender dos efeitos do incenso. Eu fiquei atordoada e desorientada.

- Continue - Charlotte disse gentilmente. Juliana abriu os olhos. As lágrimas desciam no seu rosto. - Ele me carregou e me levou para o sofá. Pensei que ia fazer amor como

sempre faz depois que leio as cartas para ele. Eu já não conseguia vê-lo claramente, mas jamais me esquecerei de sua voz quando disse que não precisava mais de mim. Que eu tinha me tornado um problema. Prometeu que eu não sentiria dor. Ia adormecer e nunca mais acordar.

- Meu Deus - Charlotte murmurou. - Você estava no chão quando a encontrei. Deve ter caído do sofá.

Baxter disse:

- Não há dúvida de que foi por isso que viveu o tempo suficiente para Charlotte entrar na sala e levá-la para o hall, Srta. Post.

Juliana olhou surpresa para ele. - Como assim? - No curso das minhas experiências tenho observado freqüentemente que os

vapores da fumaça tendem a ser mais leves do que o ar. Pode-se dizer que tendem a subir e flutuar acima do ar. O ar mais próximo do solo na sala estava menos impregnado de incenso.

Charlotte ficou impressionada. - Uma análise muito inteligente da situação, Baxter. Baxter olhou para ela e disse, com ironia: - Muito obrigado. Gosto de pensar que nem todo o tempo que passo no

laboratório é perdido. Juliana estremeceu. - De qualquer modo, devo minha vida à senhorita. Se não tivesse me visitado

naquela hora, eu teria morrido intoxicada por aquele incenso horrível. A que devo a sorte de a senhorita resolver me visitar hoje?

- Não foi sorte. - Charlotte disse, secamente. - Foi lógica. E, bem, talvez um pouco de sorte. Digamos que consegui alguma informação que me fez concluir que a voz desse homem misterioso era a chave de todo o caso. Você era a única pessoa que eu conheço capaz de juntar um rosto àquela voz.

Juliana segurou a lapela do roupão e olhou para as chamas da lareira. - Malcolm odiava a própria voz. Dizia que era um ultraje ter sido punido daquele

modo. Baxter olhou para Juliana por um momento. - Falei com meu irmão hoje. Ele confirmou que o suposto mágico que diverte os

membros do clube Mesa Verde tem uma voz estranhamente rouca e áspera. Charlotte olhou para ele. - De acordo com a pessoa que entrevistei esta manhã, o homem que assassinou

Drusilla tinha também uma voz rouca e áspera, assim como o homem que falou comigo ontem à noite no baile de máscaras.

- Com todo os demônios - Baxter disse. - Por que não me contou tudo isso? - Não houve oportunidade. - Pode ser Malcolm - Juliana murmurou. - Ele criou o clube Mesa Verde e atraía

para ele jovens de famílias importantes. Era tudo parte do seu plano. - Que grande plano era esse? - Baxter perguntou. - Ele pretende destruir todos

os jovens do clube? - Destruir? - Juliana estava genuinamente assustada. - É claro que não. Por que

ele faria isso? A luz se refletiu nas lentes dos óculos de Baxter. - Algumas pessoas fazem coisas incríveis por vingança. Se esse mágico tem

alguma coisa contra os jovens que atrai para o clube, deve ter planejado a morte deles por meio do mesmerismo. Esta manhã fui testemunha de como isso pode ser feito.

- Está certo em uma coisa - Juliana admitiu. - Malcolm não gosta dos cavalheiros de alta linhagem. Ele despreza todos eles. Mas não acredito que quisesse matar qualquer um deles. Se eu pensasse que seu objetivo era assassinato, jamais concordaria em ajudá-lo.

- Qual, exatamente, era o objetivo dele? - Charlotte perguntou, gentilmente. - Ele procura riqueza e poder. Afirma que, por direito de nascimento, ele devia

possuir ambos. O fato de ter sido privado da sua herança é uma grande fonte de angústia e revolta. - Juliana hesitou. - Devido a circunstâncias da minha vida, eu posso compreender a intensidade dos seus sentimentos a esse respeito.

- Sim, é claro. - Baxter segurou com força na moldura da lareira. - Tudo se torna claro agora. Ele pensou que poderia controlar a nova geração de homens jovens e poderosos por meio do mesmerismo e do incenso de sua invenção.

Juliana inclinou a cabeça, assentindo e enxugou os olhos com a ponta do roupão. - Ele estudou os trabalhos do Dr. Mesmer e de muitos outros que fizeram

experiências com magnetismo animal. Aperfeiçoou as técnicas para induzir ao transe. Usa o incenso para facilitar a operação.

Charlotte sentiu as palmas das mãos úmidas. - Baxter, o que aconteceu esta madrugada foi sem dúvida um teste, não foi? - Sim, o teste final do controle do mágico sobre seus súditos. - Baxter tirou os

óculos e desdobrou o lenço. - Não admira que Hamilton e os outros não pudessem encontrá-lo quando queriam pedir para suspender o transe. Ele não tinha intenção de anular a experiência antes de ver os resultados.

Charlotte estava impressionada com as implicações do que estavam descobrindo. - Se fosse provado que com suas técnicas podia mandar um jovem para a morte,

saberia que tinha alcançado o grau de poder que procurava. - Eu não sei o que o senhor testemunhou esta manhã - Juliana disse

desesperada. - Mas tenho certeza de que Malcolm não pretende matar todos os jovens nobres.

- Acredito em você. - Baxter limpou metodicamente as lentes dos óculos. - O que aconteceu esta manhã foi apenas uma experiência, como eu disse. Seu objetivo é controlar todos os jovens do Mesa Verde depois que entrarem na posse dos títulos e das terras. Evidentemente estava disposto a sacrificar um dos seus súditos para provar que havia alcançado seu objetivo.

- Pense no que ele faria se pudesse hipnotizar todos esses jovens ricos e poderosos - Charlotte disse. - Podia usar isso para conseguir qualquer coisa. Podia controlar seus investimentos, suas opiniões políticas, suas vidas.

- Certamente. - Baxter pôs os óculos. As chamas douradas cintilaram nos seus olhos. - E com isso seu poder seria quase ilimitado.

Os lábios de Juliana tremeram. - Malcolm nasceu bastardo. Não podia aceitar nem suportar o capricho de um

destino que deixou um homem com sua inteligência e força de vontade para sempre privado da sua fortuna e dos círculos mais poderosos e fechados da sociedade.

- Então ele resolveu construir o próprio destino - Charlotte disse, pausadamente. Baxter franziu a testa. - Por que está falando em destino? - Na noite do baile Malcolm Janner me perguntou se eu acreditava no destino. -

Apesar do fogo Charlotte teve a impressão de que a sala estava muito fria. - Lembro de suas palavras claramente porque alguém certa vez me disse algo muito parecido.

Juliana enxugou os olhos. - Malcolm sempre falava sobre destino. Achava que o dele era muito grandioso.

Essa era uma das coisas que ele queria verificar sempre que eu lia as cartas. Eu tinha sempre o cuidado de predizer a sorte que ele queria. Tinha medo do efeito no seu espírito se fizesse o contrário.

- Com todo os demônios - Baxter falou tão baixo que Charlotte quase não ouviu. - Não é possível. O homem está morto.

- Quem está morto? - Charlotte perguntou, rapidamente. Baxter fechou a mão sobre o mármore frio da moldura da lareira. - Explico depois. Charlotte hesitou. Queria prosseguir com o assunto, mas percebeu pelo olhar de

Baxter que ele não ia dizer nada na frente de Juliana. - Quando entrei na sua sala esta manhã - Charlotte disse a Juliana -, notei que

uma das cartas estava no chão, virada para cima com a figura da morte. Juliana balançou a cabeça. - Eu fiz a leitura de sempre. Tive cuidado para que todos os sinais indicassem um

final positivo para os planos dele. Ele ficou muito satisfeito. Charlotte visualizou a cena mentalmente. - Talvez quando ele a carregou para o sofá a bainha do seu vestido tenha

derrubado aquela carta no tapete. - Pode ser - Juliana disse, com ar cansado. - Estranho que a carta tenha caído virada para cima e que fosse a única carta

que o mágico não queria ver - Charlotte disse, em voz muito baixa. Baxter olhou atentamente para Juliana. - Onde mora esse homem que se diz chamar Malcolm Janner? Juliana corou. - Sei que não vão acreditar, mas a verdade é que não sei. Ele disse que era

melhor assim. Dizia que era para me proteger no caso do seu plano falhar. Tudo que posso dizer é que ele passava muito tempo no Mesa Verde. Acho que tinha uma espécie de escritório no clube.

Charlotte olhou para Baxter. - Não investigamos o último andar do clube. - Duvido que ele more lá - Baxter disse. - Óbvio demais. Mas precisaria ter

acesso ao último andar para seu ato de mágica. Talvez valesse a pena examinar outra vez o lugar.

- Excelente idéia - Charlotte disse. Baxter olhou para ela, com toda a força da sua vontade implacável. - Desta vez, eu vou sozinho. - Mas eu posso ajudar. - Nem pense nisso. Charlotte ergueu as sobrancelhas ao ouvir aquele tom frio e decisivo. - Discutiremos isso mais tarde, senhor. - Não - Baxter disse, com a voz neutra e monótona que usava para indicar que

sua decisão era inflexível. - Não discutiremos. Charlotte abandonou o assunto no momento. Tinha coisas mais urgentes para

resolver. - Precisamos providenciar proteção para a Srta. Post. Se Malcolm Janner

descobrir que ela não está morta, pode tentar outra vez matá-la. Os lábios de Baxter se curvaram num sorriso frio. - Então, devemos providenciar para que ele pense que ela não está mais entre os

vivos. - Como vai fazer isso? - Juliana perguntou. - Faremos o que todos na cidade fazem quando precisam anunciar alguma coisa

importante para a sociedade - Baxter disse. - Informaremos os jornais.

Capítulo XVII Duas horas depois, Baxter andava inquieto de um lado para o outro na sala de

Charlotte. Juliana Post, com os olhos ainda úmidos, fora despachada em segurança para o norte, numa carruagem dos estábulos Severedges. A notícia de uma ocorrência fatal devida a um incêndio numa pequena casa foi enviada aos jornais. Com sorte seria publicada na manhã seguinte. Planos para uma investigação do terceiro andar do Mesa Verde começaram a tomar forma em sua mente.

Estava fazendo progresso na lista das tarefas que pretendia realizar, mas isso não lhe dava nenhum prazer. Estava no controle da situação, mas não conseguia se livrar da sensação de escuridão crescente que nada tinha a ver com o cair da noite.

Morgan Judd estava vivo. Era impossível, mas os fatos não podiam mais ser negados. A única coisa que não combinava era a descrição da sua voz.

- Muito obrigada por tudo que fez pela Srta. Post. - Sentada no canto do sofá amarelo, Charlotte o via andar de uma extremidade à outra da sala. - Você foi muito bondoso, Baxter.

- Foi você quem saiu para avisá-la e com isso salvou sua vida. - Baxter parou na frente da janela e cruzou as mãos nas costas. - Considerando o papel que ela desempenhou nisto tudo, seria interessante saber por que faz tanta questão de protegê-la.

- Suponho que é porque temos muita coisa em comum - Charlotte disse. - O que em nome Deus você pode ter em comum com aquela mulher? - Pensei que fosse óbvio. Nós duas descendemos de famílias cujas fortunas

declinaram, para dizer de modo delicado. Nós duas fomos deixadas à mercê de homens insensíveis e sem honra que controlaram nossas vidas e nosso dinheiro. Nós duas encontramos um meio de criar uma profissão para escapar da sorte mais comum às mulheres nessa situação.

Baxter olhou para ela, intrigado. - Suas profissões também permitiram a vocês evitar os riscos do casamento, não

é mesmo? - Isso mesmo. Porém a pobre Juliana envolveu-se com um homem que parece

mais perigoso do que os maridos comuns. O que prova que uma aventura amorosa pode ser tão perigosa quanto um casamento, eu suponho.

Baxter ajeitou os óculos. - Eu não diria que o caso da Srta. Post possa ser generalizado. - Talvez não. - Charlotte ficou pensativa. - Entretanto, eu me pergunto se não

valeria a pena empregar meu tempo oferecendo serviços a senhoras que esperam ligações românticas tanto quanto às que pensam em casar.

Ela fala sério, Baxter pensou e de repente se deu conta de que estava com os músculos do rosto tensos. Engoliu em seco para aliviar um pouco da tensão.

- Duvido que seria muito procurada para esse tipo de serviço. - Talvez tenha razão. Essas decisões são governadas pela paixão e quando a

pessoa está consumida por essa emoção forte, não se interessa muito por fatos. - Exatamente. - E todos sabem que a paixão é um sentimento passageiro, de curta duração.

Quando se esgota, basta simplesmente terminar o caso. Nem um pouco parecido com o casamento, que exige maior discrição e lógica porque afinal a mulher está presa ao marido pelo resto da vida.

Presa. Baxter suspirou mentalmente. - Tem razão. - Sim. Acredito que você está certo, Baxter. Provavelmente eu não teria muitas

clientes interessadas em investigar um amante em potencial. - Ao que parece você já tem grande demanda por seus serviços sem precisar

disso. - Sim, bem, tenho bastante. Vi seu olhar quando a Srta. Post falou sobre Malcolm

Janner. Você o conhece, não conhece? Quem é ele, Baxter? E como você o conheceu? Baxter se obrigou a voltar para o problema que enfrentavam. - Se estou certo, seu nome verdadeiro é Morgan Judd. - Judd? - Sinto dizer isso, mas éramos amigos em Oxford. - Amigos? - ela perguntou incrédula. - Tinha com esse Morgan Judd a mesma

coisa em comum que tinha com Anthony Tiles? - Sim. Morgan é também bastardo, filho do herdeiro de um condado e da filha de

um proprietário de terras do campo. Sua mãe morreu quando ele nasceu. O pai ignorou sua existência, mas a família da mãe tez com que fosse educado como um cavalheiro. Acho que Morgan jamais perdoou seus pais.

- Ele os culpava por privá-lo da posição a que tinha direito? - Sim. - O fato de serem filhos ilegítimos era a única coisa que o ligava a Morgan Judd? - No começo, sim. - Baxter viu uma carruagem passar na rua. - Mas Morgan e eu

partilhávamos outra coisa. Algo que nos aproximava mais ainda. O interesse pela química.

- Acho que começo a compreender. - Em Oxford nos chamavam de os dois alquimistas. Passávamos o tempo todo

estudando química. Instalamos um laboratório na nossa casa e usávamos a mesada para comprar equipamento. Quando os outros se reuniam para tomar café e ler poesia, à noite, Morgan e eu estávamos fazendo experiências. Vivíamos e respirávamos ciência.

- O que aconteceu? - Depois de Oxford, nos afastamos. Nos correspondemos, no começo.

Trocávamos informações sobre os resultados do nosso trabalho. Mas depois de alguns anos, simplesmente perdemos contato. Morgan morou em Londres por algum tempo, mas raramente nos encontrávamos.

- Há mais nessa parte da história que você não contou - Charlotte disse, gentilmente.

- Você tem boa intuição. A verdade é que, além da química, Morgan tinha... outros interesses que eu não compartilhava. Esses interesses se tornaram cada vez mais importantes para ele, depois de Oxford, uma verdadeira obsessão.

- Que tipo de interesses? - Ele freqüentava os piores antros de jogo e os bordéis mais vulgares. Com o

passar do tempo, seu gosto por essas coisas se tornou mais depravado. Alguma coisa nele se alimentava com a parte sombria da vida.

- Não admira que a amizade tenha terminado. - Ele também começou a se interessar pela metafísica e as ciências ocultas. No

começo era um jogo para ele. Brincava com elas como os poetas românticos. Mas quando deixamos Oxford, era muito mais do que uma diversão para ele. Morgan começou a falar em realizar seu verdadeiro destino.

- Destino - Charlotte repetiu a palavra em voz baixa e preocupada. - Esta palavra me assusta.

Baxter voltou-se devagar e olhou para ela. - Eu o encontrei na rua, certa vez, há alguns anos. Ele achava que eu era um

tolo porque não usava meus conhecimentos de química para forjar um grande destino para mim.

- Você disse que pensou que ele estivesse morto. O que aconteceu com ele? - Você lembra de minha pequena aventura a serviço da coroa? - Baxter, está dizendo que tinha ligação com Morgan Judd? - Sim. Ele estava trabalhando para Napoleão. Criando gases químicos letais que

seriam usados contra o nosso povo. Procurei usar nossa antiga amizade para convencê-lo de que queria trabalhar com ele. Eu disse que tinha mudado de idéia a respeito de forjar um grande destino.

- Compreendo. - Eu o traí - Baxter disse. - Disse a ele que queria partilhar da riqueza e do poder

que Napoleão prometia. Mas quando tive certeza do que se tratava, destruí o laboratório e as anotações sobre suas experiências. Houve uma explosão. Por milagre escapei com vida.

- O ácido - ela murmurou. - Ele jogou em mim quando lutávamos. - Meu Deus. Você podia ter ficado cego. - Sim, bem, eu estava tentando arruiná-lo. - Ele merecia. - Charlotte fez uma pausa, depois continuou. - Você pensou que

ele tivesse morrido na explosão? - Eu tinha certeza disso. Foi encontrado um corpo dois dias depois.

Irreconhecível, completamente queimado. Mas estava com os anéis de Morgan. Não havia nenhum motivo para pensar que não fosse Judd.

- É muito estranho - Charlotte disse em voz baixa, quase inaudível. - Mas estou quase convencida de que já me encontrei com Judd certa vez.

Baxter olhou para ela. - O monstro no corredor, no lado de fora do quarto de Ariel? - Sim. - Ela estremeceu e abraçou o próprio corpo, como se estivesse com frio. -

Naquela noite ele perguntou se eu acreditava no destino. O homem com o dominó negro que me deu a rosa fez a mesma pergunta.

- Com todos os demônios. - Mas a voz era completamente diferente. - Charlotte olhou interrogativamente

para ele. - O monstro que eu vi há cinco anos tinha uma voz que podia atrair qualquer pessoa até para o inferno.

- É isso exatamente que faz sentido. - Baxter tirou os óculos e depois o lenço do bolso. - A voz de Morgan Judd era um instrumento bem afinado. Não há outro modo de descrever. Quando ele recitava poesia, todos ficavam fascinados. Quando ele falava, cabeças se voltavam para ouvir. Ele seria um sério rival de Kean se tivesse escolhido a carreira teatral.

- Mas a voz do mágico é o oposto. É como vidro rachado. - Charlotte pensou por um momento. - Embora tenha um estranho fascínio.

- Se estou certo, e ele for Morgan Judd, há duas explicações possíveis para a mudança da voz.

- Quais são? - A primeira é que ele está manipulando deliberadamente sua voz para não ser

reconhecido. Charlotte balançou a cabeça. - Não creio que seja esse o caso. Você precisava ouvir para compreender. É uma

voz que sofreu um grande dano. - Então, devemos considerar a segunda possibilidade. - Qual é? - Eu não escapei completamente ileso do fogo e da explosão. - Baxter terminou

de limpar os óculos. - Fiquei marcado pelo resto da vida. Talvez o mesmo tenha acontecido com Morgan.

- Eu não compreendo. A Srta. Post não disse nada sobre cicatrizes ou defeitos quando o descreveu. Ela disse que ele é belo como o próprio Lúcifer. A não ser pela voz.

- Havia vários compostos químicos perigosos no laboratório de Morgan, naquela noite - Baxter disse. - Quem sabe quais os gases cáusticos que a explosão e o fogo podem ter libertado?

- Você acha que algum deles podia afetar á garganta de uma pessoa se fosse inalado?

- É possível. - Baxter ajeitou os óculos. - De qualquer modo, sabemos que o mágico é perigoso. Ele matou Drusilla Heskett e tentou matar a Srta. Post e o jovem Norris.

- Baxter, ele sabe que o estamos investigando. - Sim. Por duas vezes ele tentou nos separar minando sua confiança em mim. A

esta altura já deve saber que fracassou. - Não há dúvida de que fracassou. Baxter sorriu. - Charlotte, você me honra muito com isso. - Bobagem. Eu trabalho com fatos. O que ele esperava? Baxter se perguntou. Pensou realmente que ela ia dizer que

acreditava nele porque sua paixão era por demais profunda? Estava ficando idiota. Ele tossiu discretamente. - Sim, bem, aprecio seu apoio, mesmo assim. Devemos esperar que Morgan

pense que está a salvo no momento. - Porque vai acreditar que a única pessoa capaz de identificá-lo está morta? - Sim, mas não podemos saber por quanto tempo podemos fazer com que ele

acredite que Juliana Post morreu devido aos efeitos do incenso. Charlotte tamborilou com os dedos no sofá. - Precisamos agir depressa. - Vou dar uma olhada no último andar do Mesa Verde esta noite. Enquanto isso

devemos continuar a agir como se nada de incomum tivesse acontecido. É imperativo não demonstrar de nenhum modo que hoje estamos mais perto dessa identificação do que estávamos ontem.

- Suponho que está dizendo que devemos comparecer, como sempre, às recepções e saraus programados para esta noite.

- Sim. E sua irmã e minha tia devem continuar com sua rotina habitual. Mas vou providenciar para que vocês três estejam bem protegidas. - Charlotte ergueu os olhos, surpresa.

- Como assim? - Vou contratar dois homens da vigilância. Um para proteger você, Ariel e

Rosalind quando saírem esta noite e o outro para vigiar esta casa. Charlotte disse com um pálido sorriso: - Não vou discutir com você. - Nem posso dizer o quanto fico aliviado ouvindo isso. - Porém - ela acrescentou rapidamente - eu acredito realmente que posso ajudá-

lo esta noite no Mesa Verde. - Não. Eu a proíbo de vir comigo e ponto final. - Mas, Baxter, você deve levar alguém. Não vou admitir que vá sozinho. - A fúria,

alimentada pelo temor pela segurança dela, ferveu dentro dele. - Charlotte, estamos falando de um perigo mortal. Vai fazer o que estou

mandando. Não se discute mais o assunto. - Francamente, Baxter, você está agindo de modo abominável. Não tem direito

de tomar todas as decisões. Eu comecei a investigação e não vou tolerar seus modos

arrogantes e autoritários. Você não é meu marido, sabe disso. Baxter prendeu a respiração por um segundo. - Sei muito bem disso, Srta. Arkendale. Sou apenas seu amante, não sou? -

Ouviram um movimento no hall. Baxter voltou-se rapidamente e viu Hamilton parado na porta da sala.

- Peço que me perdoem - Hamilton disse, embaraçado. - Eu disse à governanta que não precisava me anunciar. Estou interrompendo alguma coisa?

- De modo algum - Charlotte disse. - Entre, Hamilton. Ariel saiu, mas deve chegar a qualquer momento.

Hamilton entrou na sala e disse: - Na verdade, quero falar com Baxter. O mordomo disse que ele devia estar aqui. - O que você quer? - Baxter perguntou. - Estou ocupado. - Eu compreendo. - Hamilton apertou os lábios. - Vim oferecer minha ajuda. - Baxter está planejando revistar o último andar do Mesa Verde esta noite -

Charlotte disse. Hamilton olhou para ela, depois para Baxter. - Talvez eu possa ajudar. Conheço muito bem o prédio, pelo menos até o andar

onde meu clube se reúne. - Não preciso da sua assistência - Baxter disse, rapidamente. Hamilton ficou tenso. - Baxter, por favor, considere esse oferecimento - Charlotte disse. - O fato de o

seu irmão conhecer o clube pode ser muito útil. Baxter fechou as mãos. - Você não compreende. - É claro que compreendo - ela disse, secamente. - Você se sente preso à

promessa que fez ao seu pai. Prometeu cuidar de Hamilton, não permitir que ele se exponha ao perigo.

- Que diabo, não sou criança - Hamilton disse, irritado. - Não preciso de uma ama.

- Tem razão - Charlotte disse. Voltou-se para Baxter. - Tenho certeza de que seu pai não esperava que você protegesse Hamilton a vida inteira. Ele queria que seu herdeiro amadurecesse adequadamente.

Hamilton olhou para ela, agradecido. Depois disse para Baxter: - Pelo amor de Deus, tenho vinte e dois anos. Quando alguém vai notar que já

sou um homem? Baxter olhou para ele por um longo momento. Lembrou das palavras do pai no

leito de morte. Sei que posso confiar em você para cuidar de Hamilton. - Seu conhecimento do clube pode ser útil. - concedeu relutante. - Mas a

situação não está livre de risco. - Aquele maldito mágico quase provocou a morte do meu melhor amigo esta

manhã - Hamilton disse furioso. - Quem sabe o que mais ele vai fazer? Tenho o direito de desmascará-lo.

Baxter olhou para Charlotte. Ela o surpreendeu ficando calada. Inclinou levemente a cabeça encorajando-o, em silêncio.

Quando um menino se torna homem? Baxter pensou. Não sabia a resposta porque não se lembrava de ter sido criança. Era como se o tivessem obrigado a assumir as responsabilidades de adulto durante toda sua vida.

- Muito bem - ele disse, em voz baixa. - Vamos fazer nossos planos. Pelo amor de Deus, não conte à sua mãe.

A tensão desapareceu do rosto de Hamilton, substituída pelo famoso sorriso dos Esherton.

- Nunca. Tem a minha palavra.

- Espero não me arrepender disto - Baxter disse mais tarde, naquela noite. Estava com Charlotte, ao lado do salão de baile. A festa em Hawkmore estava

perfeita. Seria comentada em toda a cidade no dia seguinte. Nessa noite oferecia o disfarce perfeito.

Se Morgan Judd tinha espiões, eles teriam dificuldade para localizar qualquer pessoa no meio daquela multidão. Com sorte, ninguém ia notar quando ele e Hamilton saíssem da festa para o Mesa Verde.

- Sei que não é fácil para você aceitar a oferta de ajuda de Hamilton. - Charlotte disse. - Mas é a oportunidade perfeita para mostrar que acredita nele.

- Ele ainda parece jovem demais em muitas coisas. O fato de se envolver com o clube Mesa Verde prova que não amadureceu.

- Acredito que Hamilton aprendeu muito com essa experiência. O que aconteceu com Norris o fez ver as coisas de modo diferente.

- Não posso negar. Entretanto... - Veja o lado bom, Baxter. Se levar Hamilton com você, terá o pretexto ideal para

recusar minha ajuda. Baxter sorriu apesar da preocupação. - Você descreve a situação de modo muito sucinto, minha querida. Eu estava

curioso para saber por que desistiu de insistir para ir comigo. Agora vejo que você simplesmente não perde uma oportunidade para promover um elo fraterno entre Hamilton e mim.

- O elo já existe. Você sempre o honrou embora negasse. - Olhou para ele muito séria. - Tenha cuidado esta noite, Baxter.

- Eu já disse uma porção de vezes que não tenho temperamento para correr riscos inúteis.

- Não, isso é verdade, você prefere o risco calculado. - Tocou a manga dele. - Vou esperar por você.

- Não é necessário. Eu a vejo de manhã para dizer se descobrimos alguma coisa. - Não. Por favor, venha me ver esta noite quando tudo terminar. Não importa a

hora. Não vou poder dormir enquanto não souber que você e Hamilton estão a salvo e longe do Mesa Verde.

- Está bem. - Olhou para a mão enluvada dela no tecido escuro do seu casaco. Uma sensação intensa o invadiu.

“Ela se importa”. Apesar de toda sua desconfiança dos homens, aparentemente Charlotte confiava

nele. E a despeito de todos os anos de solidão auto-imposta, Baxter teve certeza de que a vida seria muito solitária sem ela.

Fosse qual fosse a emoção que tinha alterado tanto sua vida ordenada e calma, era mais do que uma paixão passageira.

A sensação era de urgência e nada tinha a ver com o Mesa Verde. Apertou com força a mão dela.

- Baxter? - Olhou para ele interrogativamente. - Alguma coisa errada? - Não. Sim. - Procurou as palavras certas para ser lógico no que ia dizer. -

Quando tudo isso terminar, quero falar com você sobre o futuro do nosso relacionamento.

Ela não compreendeu. - O futuro? - Com todos os demônios, Charlotte, não podemos continuar desse modo.

Certamente você compreende isso. - Pensei que tudo estivesse correndo muito bem. - Um caso de amor sempre vai bem por algumas semanas.

- Algumas semanas? - Talvez até alguns meses - ele admitiu. - Mas no fim a coisa toda fica

extremamente tediosa. Charlotte ficou imóvel. - Sim, é claro. Tediosa. Feliz por ela ter compreendido tão rapidamente, Baxter continuou: - Para começar, é extremamente inconveniente. - Inconveniente. - Todo aquele trabalho para encontrar um lugar adequado para, bem, para

demonstrar os sentimentos mútuos - ele explicou. - Quero dizer, está muito bem usar uma mesa de laboratório, uma carruagem ou o sofá de uma biblioteca, uma vez ou outra, mas a longo prazo, suspeito que se torna extremamente cansativo.

- Compreendo. Cansativo. - Um homem na minha idade prefere o conforto da própria cama. - De repente,

Baxter lembrou com extrema clareza do pouco que a falta de uma cama havia significado nas poucas ocasiões em que haviam feito amor. - De um modo geral.

- Baxter, você tem só trinta e dois anos. - A idade não tem nada a ver com isso. Eu nunca tive inclinação para acrobata. Ela abaixou os olhos. - Eu sempre o achei bastante ágil senhor. Baxter preferiu ignorar a observação. - E, depois, a ameaça constante dos falatórios. Pode ser muito desagradável.

Como já conversamos, pode ter um efeito negativo nos seus negócios. Charlotte franziu os lábios. - Sim, creio que sim. Baxter se esforçou para encontrar outros argumentos. O mais óbvio o atingiu

com a força de um soco no estômago. - E deve considerar a possibilidade de gravidez. - Pelo que eu sei existem certas coisas que um cavalheiro pode usar para evitar

esse tipo de coisa. - É muito possível que seja tarde demais - ele disse, soturnamente. - Essa é a

grande dificuldade dos casos amorosos, compreende? Nem sempre se pode controlar a situação. Charlotte, na maioria das vezes, o relacionamento não pode continuar indefinidamente.

Charlotte olhou para ele sem dizer nada. Naquele momento, Baxter teria negociado o segredo da Pedra Filosofal para saber o significado da expressão nos olhos dela. Então, Charlotte olhou por cima do ombro dele e sorriu.

Hamilton tossiu discretamente. - Baxter? Segundo nossos planos, está na hora. - Com todos os demônios. - Baxter olhou para trás. Hamilton e Ariel estavam

atrás dele. Esperava que não tivessem ouvido a conversa. - Na hora. Sim. Precisamos ir.

- Baxter. - Charlotte tocou outra vez no braço dele. - Não se esqueça da promessa de ir à minha casa esta noite.

- Sim, sim. Passo por lá a caminho de casa para contar tudo. - Inclinou a cabeça bruscamente para Ariel, voltou-se para abrir caminho entre a multidão.

Hamilton ergueu uma sobrancelha, depois se despediu galantemente, curvando-se sobre a mão de Charlotte, depois de Ariel. As duas responderam com uma mesura graciosa.

Baxter conteve um gemido de impaciência. Faria um papel ridículo se voltasse agora para tentar uma despedida mais delicada, ele pensou.

Hamilton recostou-se no banco de veludo verde da sua carruagem leve e

elegante e olhou para Baxter, divertido. - Por que não vai direto ao assunto e a pede em casamento? - De que diabo está falando? - Baxter resmungou. - Ouvi o bastante da conversa para concluir que você estava tentando convencer

Charlotte a considerar um pedido de casamento em lugar de um simples caso amoroso. Por que tantos rodeios?

- A natureza da minha associação com a Srta. Arkendale não é da sua conta. Hamilton examinou demoradamente sua bengala de ébano. - Como quiser. - Além disso, se ousar associar a expressão caso amoroso ao nome dela outra

vez, pode estar certo de que não só jamais tomará posse da sua herança, como também sentirá a falta de vários dentes quando quiser usar seu sorriso para cativar uma mulher.

- Então é sério assim? - Sugiro que mudemos de assunto. Hamilton balançou a cabeça. - Você pode ser um homem de ciência, irmão, mas é completamente inepto para

lidar com uma dama. Devia passar mais tempo lendo Shelley e Byron e menos tempo estudando química.

- É um pouco tarde para reformular todo meu caráter. De qualquer modo, não adiantaria para nada.

- Por que diz isso? É evidente que Charlotte tem uma tendre por você. - Baxter ficou aborrecido com a centelha de esperança que acendeu no seu coração.

- Pensa assim? - Não tenho nenhuma dúvida. - Ela pode gostar de mim, mas não acredito que goste da idéia de casamento. - Bem, nesse caso, compete a você convencê-la de que casar com você será uma

decisão sensata. Baxter franziu as sobrancelhas. - E isso exatamente que eu estava tentando fazer quando você me interrompeu

há pouco. Hamilton sorriu como quem sabe das coisas. - Nosso pai acreditava que eu podia aprender muito com você. Porém, talvez

haja algumas coisas que você pode aprender comigo. Esteja à vontade para pedir meu conselho, sempre que quiser.

- Temos coisas mais importantes a fazer no momento, caso você tenha esquecido.

- Não esqueci. - Trouxe sua pistola? - Sim, é claro. - Hamilton bateu no bolso do casaco. - Na verdade, duas. E você? - Nunca pratiquei o suficiente para atirar decentemente. Dependo de outros

instrumentos. - Como assim? Baxter tirou do bolso uma das ampolas de vidro. - Coisas como esta. Hamilton ficou intrigado. - O que é? - Uma espécie de luz instantânea. Quebre o vidro e terá uma pequena explosão

muito brilhante. Pode iluminar o caminho por dois ou três minutos ou cegar temporariamente um oponente. Se for aberta perto de material combustível, como gravetos secos, acende um fogo.

- Muito inteligente. Onde conseguiu?

- Eu fiz no meu laboratório. - Hamilton disse, com um sorriso estranho: - Talvez eu devesse ter prestado mais atenção a Conversações sobre química.

Quando isto acabar, será que pode ceder um pouco do seu tempo para me mostrar algumas das suas experiências mais interessantes?

- Se quiser - Baxter hesitou. - Há muito tempo não tenho um assistente no laboratório.

Hamilton sorriu. - Ultimamente tenho me perguntado se não herdei um pouco da paixão do meu

pai por mais coisas do que nunca imaginei.

Capítulo XVIII Tomando limonada, Charlotte observava o salão de baile, onde Ariel dançava

uma valsa com outro jovem cavalheiro extremamente belo. Satisfeita com a felicidade que via no rosto de Ariel, ela sorriu para Rosalind, que estava ao seu lado.

- Lady Trengloss, quero agradecer por tudo que tem feito por Ariel. Minha mãe ficaria feliz por saber que minha irmã está tomando parte na temporada em Londres.

- Foi um prazer. Desde a apresentação de minha última sobrinha, não tive oportunidade de apresentar outra jovem à alta sociedade de Londres. Cheguei a esquecer o quanto é divertido. - Rosalind balançou vigorosamente o elegante leque de seda pintada. - Ariel é uma jovem encantadora. Atraiu um grande número de admiradores.

Charlotte suspirou. - Temo que todos desapareçam quando souberem que meu noivado com seu

sobrinho foi desfeito. Confesso que me preocupei bastante com isso quando começamos este empreendimento, mas Ariel insiste em dizer que pouco se importa se seus admiradores desaparecerem quando souberem a verdade.

- Ela é muito sensata para tão pouca idade. - Rosalind olhou para Charlotte. - E acredito que o crédito é todo seu, minha querida.

- De modo algum. Ela sempre teve um espírito muito prático. Ariel concorda em dizer que a temporada é uma ótima fonte de diversão, como o teatro. Ela diz que quando a cortina descer ficará contente por voltar à vida que sempre levou.

Charlotte rezava para que isso não acontecesse. Ariel era ainda muito jovem. Por mais sensata que fosse, aos dezenove anos, sem dúvida sua vida ia parecer tediosa quando deixasse de receber convites e flores. O importante era que Ariel não tivesse o coração partido durante sua breve experiência na sociedade.

Quanto ao seu coração, Charlotte pensou, sua única esperança era mergulhar no trabalho até sarar. Porém, sabia que, não importaria quantas novas clientes tivesse ou quantas investigações interessantes pudesse fazer da vida dos cavalheiros, jamais esqueceria seu amante com olhos de alquimista. Nunca haveria outro Baxter.

Rosalind olhou para ela, pensativa. - Já que estamos falando no assunto, acho que devo dizer que, se como diz é

grata ao que estou fazendo, também sou muito grata a você. - Se se refere à investigação, pode estar certa de que eu a comecei por mim

mesma. - Eu não estou falando na investigação do crime. - Rosalind fechou o leque com

um estalo. - Acho melhor falar francamente. Tenho me preocupado com Baxter desde que ele voltou da Itália, há três anos. Ele sempre foi sério demais para a idade. Mesmo quando era criança, tinha um alto grau de autocontrole e força de vontade. Sempre se mantinha um tanto distante das outras pessoas.

- Como se estivesse observando e medindo, do mesmo modo que examina suas experiências químicas?

- Isso mesmo. - Rosalind estremeceu delicadamente. - Muito desconcertante às vezes. Mas depois do terrível acidente na Itália, ele desapareceu completamente da sociedade. Eu temi que estivesse desenvolvendo uma tendência para a melancolia.

- Melancolia? - Há casos na família, sabia? Charlotte ficou surpresa. - Não, eu não sabia. Todos dizem que os pais dele formavam um casal

extremamente encantador, muito querido na sociedade. Minha impressão era de que eram muito alegres e cheios de vida.

- Às vezes até um pouco demais - Rosalind disse, em voz baixa. - Tinham de pagar um preço por uma paixão tão intensa. E não estou falando de reputação.

- Compreendo. Tenho observado que as pessoas com paixões muito fortes sempre têm um lado claro e outro escuro no seu temperamento. É como se a natureza, no processo de tentar equilibrar seus humores, criasse extremos.

- Muito observadora, minha querida. Exatamente o que acontecia com os pais de Baxter. Esherton, com toda sua inteligência e seu prazer de viver, tinha um gênio perigoso e uma tendência para atos imprudentes. Foi um milagre ele ter vivido até uma idade avançada. Quanto à minha irmã...

- Quanto à sua irmã...? - Ela era muito bonita, inteligente e gloriosamente cheia de vida. A maior parte

do tempo. Era bastante indulgente para com a própria independência e suas excentricidades. Todos que a conheciam a adoravam, mesmo quando ela se comportava de modo absurdo. Só a família e os amigos mais íntimos sabiam que uma vez ou outra ela mergulhava nas profundezas da melancolia.

- Parece que Baxter se tornou um alquimista por necessidade. - Charlotte disse. - Alquimista? O que quer dizer com isso? - Acredito que ele se julga o produto de uma mistura de compostos químicos

extremamente voláteis. Achou que não tinha escolha senão aprender a controlar as chamas que podem provocar explosões perigosas.

Rosalind levantou as sobrancelhas, intrigada. - Uma analogia interessante. O que eu queria dizer, minha querida, é que acho

que você é a melhor coisa que já aconteceu para Baxter em muitos anos. Charlotte ficou tão perplexa que quase derrubou a limonada. - Lady Trengloss. É muita bondade sua, mas certamente está exagerando. - É a pura verdade. Você parece compreendê-lo e o trata de um modo que nunca

ninguém conseguiu. - Ora, vamos, ele não é assim tão misterioso. - Na verdade, ele é, mas não é esse o caso. Perdoe minha curiosidade, mas devo

fazer uma pergunta pessoal. Charlotte olhou para ela, desconfiada. - Sim? - Não há nenhum modo delicado de dizer isso, portanto vou direto ao assunto.

Baxter, por acaso, mencionou a possibilidade de um verdadeiro casamento entre vocês dois?

- Não. - Charlotte respirou profunda e lentamente. - Não mencionou. - E há pouco, praticamente me disse que não há possibilidade de outra forma de relacionamento a longo prazo para nós.

Seu relacionamento apaixonado tinha se tornado inconveniente. Charlotte teve a impressão de que o brilho do grande candelabro do salão diminuiu por um momento.

Mas tinha coisas mais importantes em que pensar. Não descansaria essa noite antes de ter certeza de que Baxter estava a salvo.

Baxter ergueu a vela na sala vazia em que ele e Hamilton tinham entrado.

Examinou a camada de poeira no chão, intacta. - Nenhum sinal de alguém ter estado aqui há anos. Era como se estivessem numa casa abandonada, ele pensou. As paredes

espessas e as tábuas pesadas do assoalho abafavam até o eco da sala de jogo no andar térreo.

O último andar do Mesa Verde era outro mundo, cinzento e espectral onde só um mágico podia se sentir em casa.

- Esta é a quarta sala que investigamos neste andar - Hamilton disse. - Juro que

eu esperava ver um fantasma a qualquer momento. - Só uma pessoa dada à leitura de poesia romântica ou de romances góticos

veria fantasmas nestas salas. - Acontece que gosto tanto de poesia quanto de romances góticos. - Hamilton

disse, alegremente. Baxter olhou para ele, intrigado. - Tenho a impressão de que você está se divertindo com tudo isso. - É a coisa mais interessante que faço em muitos meses - Hamilton sorriu. -

Quem poderia imaginar que estaria com você quando isso acontecesse? - Sei que me acha extremamente tedioso, Esherton. Mas não se esqueça de que

terei nas mãos os cordões da bolsa com sua fortuna por mais alguns anos. - Você certamente sabe como acabar com a alegria de uma pessoa. Baxter voltou-se para sair da sala empoeirada. - Venha. O tempo está passando e temos ainda mais uma sala neste andar. -

Com um último olhar para a sala ele saiu para o corredor. - Estou bem atrás de você, irmão. - Hamilton o acompanhou silenciosamente. Baxter caminhou até a porta fechada no fim do corredor. Um tapete velho e

rasgado cobria toda a extensão do corredor, silenciando os passos deles. - Esta deve ser mais interessante do que as outras. - Baxter parou na frente da

porta. - Porque diz isso? - Esta sala fica quase diretamente em cima daquela que você e seus amigos

usam para as reuniões do clube secreto. Hamilton olhou para a porta com atenção. - E o que tem isso? - Você disse que o mágico aparece inesperadamente. Num momento ele não

está lá, no outro está de pé entre vocês. - Acha que ele desce desta sala? - Como eu disse para Charlotte, esta casa já foi um bordel. Esse tipo de

estabelecimento geralmente é equipado com buracos nas paredes e escadas secretas. - Meu Deus. - Hamilton olhou para ele atônito. - Está dizendo que você fala

dessas coisas com a Srta. Arkendale? - Charlotte é uma senhora com interesses variados e incomuns. - Baxter

examinou a maçaneta. Nem sinal de poeira no metal que brilhava a luz da vela. Alguém havia entrado recentemente naquela sala.

- Se falar em bordéis é sua noção de uma conversa cortês, não admira que não tenha muita sorte com as mulheres, Baxter. - Hamilton estendeu a mão para abrir a porta. - Preciso me lembrar de indicar a você alguns tópicos apropriados. - Olhou para trás com um largo sorriso, abriu a porta e entrou na sala.

Baxter sentiu mais do que ouviu o ruído da engrenagem secreta. - Hamilton, espere. - O que foi? - Hamilton tirou a vela da mão dele e caminhou para o centro da

sala. Olhou para Baxter, que hesitou na porta. - A sala está vazia, como as outras. Alguma coisa... Baxter, a porta.

Baxter percebeu o movimento acima de sua cabeça. Olhou para cima e viu um portão sólido de ferro. Com o som de uma espada sendo tirada da bainha, o portão desceu rapidamente do teto. Baxter viu que quando o portão acabasse de descer fecharia completamente a sala.

Tinha apenas um segundo para tomar a decisão. Podia voltar para o corredor ou entrar na sala traiçoeira onde Hamilton já estava.

- Com todos os demônios. - Baxter agachou-se e passou rapidamente pela porta. Com um rangido suave como um suspiro, a porta de ferro bateu no chão.

- Cristo. - Hamilton olhou para o metal que agora substituía a porta. - Estamos encurralados.

No silêncio da sala, Baxter endireitou o corpo. Hamilton tinha razão. A única janela era fechada com uma placa de ferro.

- Abrir a porta e atravessar o limiar evidentemente dispara o mecanismo que ativa o portão - Baxter disse pensativo. - Muito inteligente. Provavelmente o dono deste lugar sabe como evitar que essa guilhotina o faça em pedaços cada vez que entra aqui. Deve ser alguma coisa escondida na parede, no lado de fora.

Hamilton virou-se para ele. - Baxter, este não é um pequeno problema interessante, para ser resolvido por

meio de dedução científica. Estamos encurralados. - Talvez. - Baxter continuou a examinar a sala. Ao contrário das outras salas naquele andar, estavam num quarto

suntuosamente mobiliado. Havia uma cama com cobertas pesadas, um guarda-roupa grande, uma mesa maciça e um biombo chinês. Uma lareira de pedra ocupava toda uma parede.

Ele começou a andar pelo quarto. - Talvez não. - Que diabo quer dizer isso? Devo dizer Baxter, que não é hora de ser misterioso

e inescrutável. - Dê-me um momento para pensar. - Você devia ter ficado no corredor - Hamilton disse. - Por que entrou neste

quarto quando viu que o portão estava descendo? Agora estamos trancados aqui. Se você tivesse ficado lá fora, pelo menos estaria livre.

- Quem desenhou este quarto foi suficientemente esperto para garantir uma via de fuga - Baxter disse pensativo.

Apanhou a vela e a segurou com o braço erguido. Viu imediatamente o papel dobrado e fechado sobre a mesa.

- Mesmo que haja uma saída, como vamos encontrar? - Hamilton perguntou. - Baxter, podemos ficar presos aqui até morrer de sede ou de fome. Ninguém vai nos ouvir com essas paredes.

Baxter não respondeu. Toda sua atenção estava voltada para o papel sobre a mesa.

- Baxter. O que é isso? - Uma mensagem. - Baxter pôs a vela na mesa, apanhou o papel e olhou para o

selo. Gravada na cera viu a mesma imagem desenhada por Drusilla Heskett no caderno de aquarelas. Um triângulo dentro de um círculo. - Do mágico, eu creio.

Hamilton foi apressadamente para o lado dele. - O que diz? Baxter quebrou o selo e desdobrou o papel. Havia uma única frase: Um homem nascido sem destino deve construir um para si mesmo. - O que significa? - Hamilton perguntou. - Significa que éramos esperados. - Baxter amarrotou o papel. - Venha. Não

temos tempo a perder. - Estou perfeitamente disposto a sair deste quarto. - Hamilton entrecerrou os

olhos. - Como exatamente você sugere que podemos fazer isso? Nenhum de nós é suficientemente pequeno para passar pela chaminé.

Baxter ia dizer que o guarda-roupa era o lugar mais provável para esconder uma saída ou uma escada secreta, mas um cheiro familiar chamou sua atenção.

- Incenso - ele murmurou. - Com todos os demônios.

Hamilton disse: - Sim. Estou sentindo. - Olhou em volta, consternado. - Mas como está entrando

no quarto? Não vejo nenhum braseiro. Baxter voltou-se para a lareira e ergueu a vela. Nuvens de vapor saíam

silenciosamente da velha lareira de pedra. - Alguém está no telhado, usando foles para forçar o incenso pela chaminé. - Não é o mesmo incenso que usamos nas nossas reuniões. É mais forte. O

cheiro não é tão agradável. - Hamilton tossiu. - E tem incenso demais. Meu Deus, o que estão tentando fazer conosco?

- Use a gravata para proteger a boca e o nariz. - Baxter tirou a sua gravata e fez com ela uma máscara.

Hamilton fez o mesmo. Baxter voltou para o guarda-roupa e abriu as portas. - Tem de haver um mecanismo em algum lugar. Seu mágico aparecia de dentro

do guarda-roupa na sala abaixo desta. Tocou um dos painéis do fundo, depois a parte de baixo. - O incenso é forte demais. - A voz de Hamilton estava abafada pela gravata. -

Vamos morrer sufocados. Baxter olhou para ele. Hamilton olhava apavorado para as nuvens de vapor que

enchiam o quarto. - Preciso de ajuda aqui, Esherton. - Baxter disse em tom deliberadamente

autoritário. Precisava desviar a atenção de Hamilton das nuvens de incenso. Hamilton virou com um movimento brusco e estranho. Seus olhos, acima da

máscara, estavam esgazeados. - O que... o que quer que eu faça? Baxter passou os dedos em duas pequenas reentrâncias num canto do guarda-

roupa. - Acho que encontrei nossa via de fuga. - Apertou com força. A parte posterior

do guarda-roupa abriu com um chiado de dobradiça bem lubrificada. Apareceu uma abertura escura.

- Uma escada. - Hamilton olhou para a escada estreita e escura. - Como você sabia que estava aí?

- Eu vi seu mágico se materializar na sala do segundo andar na outra noite. Tinha de haver uma escada nesta parede. Era a única solução.

- Você o viu? Baxter, ultimamente você não pára de me surpreender. Descobrir esta escada foi uma dedução brilhante.

- Simples lógica. - Baxter apanhou a vela e entrou no guarda-roupa. - Como eu disse, o bordel que ocupava este prédio oferecia todo o tipo de diversão exótica. Os fregueses pagavam mais para usar escadas e orifícios nas paredes para assistir às atividades em vários quartos.

Hamilton entrou no guarda-roupa atrás dele. - Para um químico, você parece estar muito bem informado sobre essas coisas. - Não posso levar o crédito. - Baxter começou a descer a pequena escada. - Meu

pai mencionou este bordel para mim uma ou duas vezes. Ele era um grande conhecedor desse tipo de estabelecimento. Feche a porta do guarda-roupa para diminuir a passagem do incenso.

- Por Deus, ele era casado. - Hamilton fechou a porta do guarda-roupa. - E tinha uma amante também. Por que diabo precisava freqüentar bordéis?

- Uma excelente pergunta. - Baxter respirou e sentiu o gosto ácido do incenso através do tecido da gravata. - Maldição. O incenso está passando através da porta do guarda-roupa. Rápido.

- Estou me sentindo um pouco estranho. - As botas de Hamilton batiam de leve

nos degraus. - Minha cabeça está girando. - Não devemos estar longe. - Baxter prendeu a respiração quando a chama da

vela que segurava cresceu, transformando-se numa bola de fogo dourada. Ele quase a deixou cair. - Com todos os demônios.

Aquele incenso era muito forte, sem dúvida. Começava a afetar seus sentidos, mesmo em dose limitada.

- Baxter? - Não pare. Parecia que estavam levando uma vida inteira para descer a escada estreita.

Gavinhas invisíveis de vapor os acompanhavam. Baxter percebeu que estava olhando fixamente para a luz da vela. De repente, foi dominado pelo impulso poderoso de se atirar de cabeça em cima dela.

A mão de Hamilton segurou com força seu ombro. - Tudo está tão estranho. Este incenso é horrível. Passos pesados soaram no quarto acima deles no momento em que Baxter

colidiu com um painel de madeira na parede. - Tem alguém lá em cima - Hamilton murmurou. - A nossa procura. Baxter ouviu

as vozes enquanto examinava o painel de madeira. - Onde eles estão? - um homem rosnou. - Não vou ficar muito tempo neste

quarto. Nem mesmo com estas máscaras. - Estão em algum lugar aqui. Eles pisaram na armadilha, não pisaram? Devem

estar desmaiados agora. Caídos no outro lado da mesa ou atrás do biombo, provavelmente.

- Depressa. O mágico disse que essa fumaça pode matar. Ele os quer vivos. Baxter encontrou uma alavanca na madeira e empurrou com força. O painel se

moveu silenciosamente para o lado. A luz da vela revelou o interior de outro guarda-roupa. Por algum motivo só com muito esforço ele conseguiu abrir as portas.

A sala estava vazia e escura. Ele cambaleou para fora do guarda-roupa. - Conheço este lugar - Hamilton murmurou, atrás de Baxter. Tirou a gravata do

rosto e respirou profundamente. - É a sala onde nosso clube se reúne para as experiências. Eu sempre quis saber como o mágico fazia o truque de aparecer quando nós o chamávamos.

Vozes do quarto acima deles ecoaram sinistramente na escada. - Que diabo, não estão aqui - um dos homens gritou. Parecia quase em pânico. - Mas têm de estar - disse outra voz, desesperada. - Nós os ouvimos quando

estávamos no telhado. - Veja atrás do biombo. - A fumaça é tão espessa aqui que quase não se vê nada. Tenho de encontrá-los.

Pete e Long Hank devem estar com a tal de Arkendale agora. Se não levarmos St. Ives para ele, o mágico nos mata com um dos seus malditos truques.

Baxter empurrou Hamilton para a porta. - Vá. Encontre Charlotte. Talvez seja tarde demais. - Você contratou policiais para protegê-la. - Não posso confiar neles. - Mas e você? - Hamilton perguntou, em voz baixa. - Vou deixar que eles me encontrem. - Não. Baxter olhou para ele. - Não compreende? Se ja estiverem com Charlotte, é o único modo de encontrá-

la. - Mas e se eles ainda não a pegaram? Vai arriscar a vida por nada.

- Eu sei me cuidar. Agora, vá. Deve tentar proteger Charlotte. Os olhos de Hamilton, lacrimejando ainda por causa do incenso, eram eloqüentes

de compreensão. Inclinou a cabeça uma vez, bruscamente, e sem uma palavra correu até a porta.

Baxter respirou longa e profundamente o ar relativamente fresco da sala e voltou para a escada. Fechou o painel e começou a subir.

- A cama - disse um dos homens no quarto acima com voz rouca. - Olhe debaixo da cama.

Baxter chegou ao topo da escada. O incenso não estava tão forte quanto antes. O portão de ferro estava aberto e o ar entrava no quarto. Mesmo assim havia incenso suficiente no ar para perturbar sua concentração. Só com muito esforço conseguiu entrar silenciosamente no guarda-roupa.

- Não tem ninguém debaixo da cama. Isso é muito estranho, se quer saber. Talvez estejamos lidando com outro mágico.

- Não seja tolo. Veja dentro do guarda-roupa. Baxter fechou o painel secreto do guarda-roupa e deitou no chão de madeira

procurando fingir um desmaio com a maior realidade possível. As portas do guarda-roupa se abriram violentamente.

- Um deles está aqui - o homem disse, aliviado. - Está de óculos. Deve ser St. Ives. Nem sinal do outro.

- Então o melhor é não dizer para o mágico que havia outro homem com ele - o homem disse, decidido. - Vai quebrar nosso pescoço se descobrir que o outro fugiu.

- Está certo. Mas para onde foi o outro? - Deve ter fugido antes de a porta descer. Não tem importância nenhuma. St.

Ives é que importa. E pelo jeito ele vai dormir por um longo tempo. Mãos pesadas se estenderam para Baxter. Ele procurou continuar com o corpo

flácido e sem reação quando o arrastaram para fora do guarda-roupa. Já que estava com os olhos fechados para dar mais realidade ao papel, resolveu

dizer uma prece. Faça com que Hamilton encontre Charlotte antes dos homens do mágico.

Capítulo XIX Uma hora mais tarde, Baxter estava deitado num chão frio de pedra ouvindo as

vozes dos dois homens. - St. Ives não parece nem um pouco perigoso. Se quiser saber, foi perda de

tempo aquele negócio todo com o incenso. Seria muito mais simples apenas usar uma pistola.

- Você ouviu o que o mágico disse. - O tom de voz era defensivo. - St. Ives é mais esperto do que parece.

- Em minha opinião, você e Virgil ficaram com a parte fácil. A Arkendale quase arrancou meus olhos. Deixou o pobre Long Hank atordoado com aquela bolsa dela. Ele ainda está com dor de cabeça. E sabe praguejar como um estivador também.

Lá se foi a esperança de que Hamilton conseguisse encontrar Charlotte antes dos homens de Morgan Judd, Baxter pensou.

- Acho que usamos um pouco de incenso demais em St. Ives - o segundo homem disse, preocupado. - Ele ainda está dormindo profundamente.

- Ainda bem que não o matamos acidentalmente com aquele maldito vapor. O mágico não ia ficar contente. Ele quer tratar pessoalmente dessa parte do negócio.

Depois de um curto silêncio, o segundo homem disse em voz baixa: - Você já notou que o homem está ficando esquisito? - Quem? St. Ives? Pelo que ouvi, ele sempre foi esquisito. - Não St. Ives, seu idiota, o mágico. O primeiro homem deu uma risada áspera. - Aposto que ele sempre foi. Mas paga bem. - Seus passos soaram no chão de

pedra quando se dirigiu para a porta. - Vou até a cozinha comer alguma coisa. Toque esse maldito sino quando St. Ives abrir os olhos.

- O mágico mandou dar sinal para ele, primeiro. Você sabe como ele é se a gente não faz exatamente o que ele manda.

- O maldito mágico e seu maldito sinal. - Traga um pedaço daquela torta de presunto para mim - o homem que ficou de

guarda disse em voz mais alta. - E um pouco de cerveja. Pelo jeito deste homem parece que vamos ficar aqui por algum tempo.

Baxter ouviu uma resposta abafada e passos que se afastavam e depois silêncio. Baxter examinou a situação. Era mais ou menos como uma experiência de

laboratório. Uma variedade de substâncias voláteis misturadas num cadinho e levadas ao fogo. Mas nesse caso ele não era o observador tomando notas. Era uma das substâncias da mistura.

Tinham revistado sua roupa antes de levá-lo para a carruagem. Um dos homens tirou sua faca. Felizmente não tiraram os óculos. Podia sentir OS aros de arame nas orelhas. Por duas vezes ele teve medo de perdê-los durante aquela terrível viagem.

Por sorte Baxter viajara sozinho no carro. Seus raptores, aparentemente certos de que sua vítima amarrada e drogada não criaria problemas, preferiram a cabine da boléia e uma garrafa de gim.

Baxter se ocupara em cortar as cordas que o prendiam com o vidro quebrado do relógio. A faca improvisada funcionara. Os homens que o carregaram escada acima alguns minutos atrás não notaram que apenas alguns fios de corda prendiam seus pulsos.

Ficou quieto por mais um momento, pensando nas possibilidades, nas contingências e nas probabilidades.

Como no caso de qualquer boa experiência de química ou de alquimia, tudo se resumia no fogo. E como em toda experiência interessante, havia sempre o risco de

explosão. Baxter se mexeu, gemeu e abriu os olhos. Um homem baixo e atarracado levantou-se rapidamente de uma banqueta.

Baxter viu a pistola na cintura dele. O homem olhou para Baxter com um sorriso de alívio que revelava ausência de vários dentes.

- Muito bem. Resolveu acordar, não foi? - O homem ficou de pé ao lado dele. - Mais do que na hora. O mágico está à sua espera. Disse que era para dar o sinal assim que você abrisse os olhos. Acho que é melhor eu fazer o que ele mandou.

- Um momento, por favor. - Baxter chutou com força a perna do homem. O homem pesado soltou um grito, cambaleou e segurou a pistola que tinha no

cinto. - Seu miserável idiota. Isso não vai ser nada bom para você. Baxter livrou-se do que restava da corda e rolou no chão num só movimento. O homem arregalou os olhos quando viu que ele estava com as mãos livres.

Virou para o lado, mas a perna machucada o traiu. Num instante Baxter estava sobre ele e deu um soco poderoso no queixo do homem.

A pistola caiu no chão. Baxter a apanhou destravou e ficou de pé. Apontou a arma para a barriga do homem.

- Não sou considerado um bom atirador, mas este é um alvo bem grande. O homem piscou os olhos várias vezes, confuso. - O mágico disse que você ia estar atordoado e lento por causa do efeito do

incenso. - O mágico estava errado - Baxter disse, em voz baixa. - Agora, fale sobre esse

sinal. Charlotte puxou desesperadamente a corda que a prendia pelos pulsos à coluna

da enorme cama vermelha. Estava lutando com o nó desde que os seqüestradores a deixaram sozinha no quarto.

O comprimento da corda permitia algum movimento, mas o nó continuava apertado. Sentada, ela podia erguer as mãos até a franja de veludo do dossel, mas não passava disso.

A cama era maciça. As quatro colunas de madeira pesada eram entalhadas com estranhas criaturas míticas. Serpentes, dragões e fênix feitas com tal perfeição que pareciam se mover na madeira.

Ela examinou o quarto de pedra e concluiu que a cama combinava com o ambiente. Um tapete espesso carmesim cobria o chão de pedra. A moldura da lareira era de granito negro. Cortinas pesadas vermelho-escuras com franja de seda negra pendiam das janelas com as pontas dobradas no chão.

Tudo era em tom de vermelho sangue e negro. Charlotte se lembrou da sala onde Juliana lia a sorte. Negro e vermelho eram obviamente as cores do mágico.

Olhou para a mesa-de-cabeceira. Tinha só uma vela. Um dos bandidos que a raptaram havia tirado sua bolsa depois que ela a usou para bater na cabeça de um deles. Charlotte não sabia o que tinham feito com a pequena pistola que estava dentro.

Olhou para a vela num castiçal de ferro negro e imaginou quanto tempo à chama levaria para queimar a corda que a prendia. Era o tipo de questão científica a que Baxter sem dúvida responderia imediatamente.

A porta se abriu. Charlotte virou a cabeça, com a louca esperança de que Baxter fosse aparecer

num golpe de mágica. Do pouco que tinha ouvido durante a viagem na carruagem até aquela estranha mansão, Charlotte concluiu que ele também fora apanhado.

Sentiu um frio no estômago quando viu o homem na porta.

Não estava com o dominó negro, nem seu rosto estava escondido pelas sombras como na primeira vez que se encontraram, há cinco anos. Mas o frio que parecia emanar dele era inconfundível. Charlotte se perguntou por que não o reconheceu imediatamente na noite do baile de máscaras.

Estava face a face com o monstro do corredor. Charlotte viu que a verdadeira natureza daquele homem escondia-se sob um

rosto de extraordinária beleza. Cabelo negro e crespo, testa alta, nariz fino e reto e maçãs do rosto arrogantes emprestavam a ele um ar de nobreza. Estava vestido na última moda. O nó da gravata branca como a neve era intricado. O casaco, a calça e as botas eram feitos sob medida para o corpo alto e magro. Ele as usava com uma elegância casual, como se tivesse nascido para aquele estilo.

Uma camuflagem perfeita, Charlotte pensou. Só olhando com atenção era possível ver a inteligência fria e cruelmente astuta que cintilava nos olhos escuros.

Ela sentou com o corpo ereto no acolchoado carmesim e respirou fundo para se acalmar. Sentia o coração bater com força. O pânico não vai resolver nada, ela pensou. Era preciso enfrentar o mal, do contrário estaria perdida.

Ergueu o queixo e endireitou os ombros. - Morgan Judd, eu suponho? - Então, finalmente somos adequadamente apresentados, meu pequeno anjo

vingador. - A voz áspera demonstrava claramente a ironia gelada. Morgan inclinou a cabeça numa mesura fingida. - Há muito tempo espero este encontro.

- Onde está Baxter? - Meus homens me enviarão um sinal quando St. Ives acordar. - Morgan tirou

uma pistola do bolso da calça pregueada e a empunhou descuidadamente enquanto atravessava o tapete negro e vermelho para a mesa onde estavam as bebidas. - Temo que ele tenha respirado uma dose excessiva do incenso. Meus homens não têm muita prática ainda.

- Meu Deus. - Outra pontada de medo. E se Baxter não acordasse nunca mais? Charlotte se lembrou do estado em que

encontrou Juliana. Morgan franziu levemente a testa alta. - Na verdade, preciso fazer novas experiências com o composto. É ainda por

demais imprevisíveis. Charlotte resolveu que não ia pensar na terrível possibilidade. Precisava se

concentrar naquele momento. Baxter devia estar bem. Tinha de estar bem. Ela disse, num tom carregado de desprezo: - Não creio que precise brandir essa pistola, Sr. Judd. - Indicou os pulsos

amarrados. - Ou será que tem prazer em andar com ela na mão? - Perdoe-me, Srta. Arkendale. - Morgan serviu-se de uma dose de conhaque e

virou-se para ela com um leve sorriso. - Não é por sua causa que prefiro ter a arma preparada.

Charlotte compreendeu. - Tem tanto medo de St. Ives? Uma centelha de irritação brilhou nos olhos maldosos. - Não tenho medo dele,

mas aprendi a tomar precauções do modo mais difícil. Ele é um homem astuto. Muito mais perigoso do que parece.

- Concordo plenamente. - Charlotte olhou para ele com o que ela esperava que fosse uma expressão autoritária. - Por que nos trouxe para cá?

Morgan tomou um pouco de conhaque. - Eu pensei que seria óbvio para uma mulher com sua admirável inteligência.

Estou tecendo um destino para mim mesmo e por alguma razão inexplicável, a senhorita e St. Ives aparentemente estão condenados a aparecer na tapeçaria. Tentei

excluí-los do desenho, mas quando não consegui, concluí que preciso tecer de novo essa parte.

Houve um movimento na porta. - Ainda trabalhando no seu grande destino, Judd? - Baxter perguntou secamente. Morgan sorriu calmamente. - St. Ives. - Baxter. - O coração de Charlotte saltou quando ela o viu. Ali estava ele, exatamente como quando saíram do salão de baile várias horas

antes. Exatamente como devia estar ela pensou. Um pouco fora de moda, um pouco amarrotado, e muito sóbrio para tão pouca idade. Mas o disfarce adotado por ele não era mais eficaz que o de Morgan Judd. Ela podia ver as verdadeiras naturezas dos dois claramente.

Baxter entrou no quarto com a pistola na mão. Seu sobretudo estava dobrado sobre o braço como se acabasse de voltar de um passeio no parque, mas a luz do fogo se refletia nas lentes dos óculos e seus olhos brilhavam ameaçadoramente.

Morgan apontou a pistola para Charlotte e pôs o copo de conhaque na mesa. - Vejo que meus homens falharam. Na verdade, é muito difícil conseguir bons

criados. Eu devia receber um sinal quando você acordasse St. Ives. - Não culpe seus criados - Baxter disse. - Eu cortei a corda da campainha a

caminho daqui. Na verdade localizei todas as campainhas e cortei todas as cordas. Ninguém vai ouvir se tentar usar esses mecanismos. A propósito, muito engenhoso, mas completamente inútil agora. É espantoso como uma pequena fraqueza pode destruir um plano quase perfeito.

Os músculos do rosto de Morgan ficaram tensos, mas ele apenas deu de ombros. - Não esteja tão seguro disso, St. Ives. Eu sobrevivi ao que aconteceu na Itália e

triunfarei esta noite. - Fez um leve movimento com a mão. - Largue a pistola, do contrário espalho o cérebro dela pelas paredes. Nós dois sabemos que essa coisa maldita não vai adiantar nada a essa distância. Você nunca foi um bom atirador.

- Tem razão. - Baxter pôs a pistola na mesa mais próxima. Depois olhou para Charlotte. - Você está bem, minha querida?

Sua voz estava calma como sempre, mas os olhos pareciam queimar como as chamas do inferno. Charlotte teve de engolir duas vezes antes de responder.

- Sim - ela murmurou. - Não estou ferida. E você, Baxter? - Perfeitamente em forma, como pode ver. - Voltou a atenção novamente para

Morgan. - Que diabo significa tudo isto? Morgan suspirou. - Sua interferência nos meus negócios foi um aborrecimento a princípio, mas

depois comecei a vê-la como um desafio que eu não podia deixar passar. Afinal não se pode ignorar o caminho do próprio destino.

- Certamente. - Com o casaco sobre o braço, Baxter atravessou lentamente o tapete até a janela mais próxima. Olhou para a noite pensativamente. - Assunto interessante, o destino. Os filósofos antigos acreditavam que o caráter da pessoa é o princípio básico do que nos acontece na vida.

- Tem razão - Morgan murmurou. - Concordo plenamente. Charlotte o observava tensa de antecipação. Embora a pistola estivesse ainda

apontada para ela, a atenção de Morgan estava toda em Baxter. Baxter virou para trás e olhou para ela rapidamente. Seu rosto estava

inexpressivo, mas a intensidade do olhar a impressionou. Ele estava tentando enviar alguma mensagem. Charlotte percebeu que ele queria que ela fizesse alguma coisa.

Mas o que ele esperava? Não podia fazer muita coisa naquelas circunstâncias. A não ser falar. É claro. Se Baxter tinha um plano, e ela estava certa de que não teria entrado no

quarto sem um plano, então sem dúvida queria que ela distraísse a atenção de Morgan Judd enquanto ele fazia o que precisava.

- Por que se deu ao trabalho de nos trazer aqui esta noite, Sr. Judd? - ela perguntou no tom mais incisivo possível.

Morgan olhou brevemente para ela. - Não é sempre que se tem oportunidade de conversar com pessoas capazes de

apreciar nossas habilidades. - Bobagem. Certamente não é tão vaidoso a ponto de nos trazer aqui só para se

vangloriar. - Você o subestima, minha querida - Baxter disse. - A vaidade de Morgan não

tem limites. Mas não foi por isso que ele nos seqüestrou, foi, Morgan? - Por mais agradável que seja estar com pessoas inteligentes, capazes de

compreender a grandiosidade dos meus planos - Morgan disse, - devo confessar que tive outro motivo para me dar ao trabalho de trazê-los para cá esta noite.

- Nós chegamos muito perto, muito depressa, não foi? - Baxter sorriu. - Quer saber como conseguimos.

- Uma explicação muito sucinta, St. Ives. Pensei que me livrando da Heskett, tudo estaria terminado. Mas como nem sempre se pode ter certeza dessas coisas, mandei vigiar a casa dela. Pela descrição, tive certeza de que foi você quem esteve na casa naquela noite. E quando fiquei sabendo que estava envolvido intimamente com a Srta. Arkendale compreendi que ela devia ser a sua companheira na aventura.

Baxter inclinou a cabeça num gesto afirmativo. - Seu homem contou que tiramos alguma coisa da casa de Drusilla Heskett. - Um livro, ele disse. Disse também que foi a mulher que o levou e que ela

parecia estar no comando da situação. - Morgan emitiu um som raspante, um substituto para a risada. - Eu não podia acreditar que tinha ouvido a coisa certa, mas resolvi revistar sua casa assim mesmo.

- E levou o livro de desenhos - Charlotte acusou. - Quando eu vi que não havia nada incriminador no livro, ousei ter esperança de

que tudo estava terminado. - Morgan balançou a cabeça. - Mas vocês dois continuaram unidos.

- Uma união que você tentou desfazer primeiro enviando Juliana Post à casa de Charlotte com uma porção de mentiras e depois dando a ela aquele bilhete avisando que eu não era digno de confiança.

Morgan deu de ombros. - Evidentemente, nenhuma dessas tentativas abalou a confiança dela em você.

Devo lhe dar os parabéns, St. Ives. Eu jamais imaginaria que tivesse o charme necessário para induzir tanta lealdade numa mulher. Quem o imaginaria como um romântico?

Baxter ignorou a observação. - Por que, em nome de Deus, achou necessário assassinar Drusilla Heskett? - Infelizmente a Sra. Heskett era bastante indiscriminada na escolha dos seus

amantes. Ela teve um breve relacionamento com um homem em quem fui obrigado a depositar uma certa confiança. Tento evitar contar meus segredos mais importantes, mas às vezes não há outro meio. Afinal de contas, não se pode fazer tudo sozinho. Precisamos de um assistente.

Charlotte estava atônita. - A Sra. Heskett teve um caso com seu assistente? - Para todos os efeitos, ela era bastante democrática nesses assuntos. Seja como

for, parece que meu assistente se embriagou certa noite e mostrou a ela um dos meus medalhões. Disse a ela que sabia muita coisa a meu respeito e que estava só esperando a hora certa. Quando eu tivesse o poder e a riqueza que procuro, ele

pretendia me chantagear. Acredito que chegou a ponto de convencê-la de que era um ótimo candidato ao casamento porque suas expectativas para o futuro eram muito favoráveis.

- O Sr. Charles Dill - Charlotte murmurou. - Ele era um dos pretendentes. - Exatamente. - Eu não o recomendei - Charlotte disse. - Meu assistente disse que o senhor Dill

era dado a negócios fraudulentos. - Ele estava certo - Morgan disse, secamente. - Mas afinal, eu exijo isso dos

meus assistentes. - Como ficou sabendo que o Sr. Dill tinha confiado essas informações à Sra.

Heskett? - Charlotte perguntou. Morgan ergueu uma sobrancelha. - Tenho por hábito hipnotizar periodicamente os homens que estão mais

próximos do meu trabalho. Faço perguntas sobre sua lealdade. É claro que depois eles não se lembram de terem sido interrogados.

- Quando descobriu que o Sr. Dill pretendia traí-lo e havia contado uma parte dos seus planos para a Sra. Heskett, resolveu matar os dois - Baxter disse, ainda de pé ao lado da janela.

- Era o único curso de ação lógico. - Morgan explicou. - Dispor de Dill foi fácil. Usei um incenso mais potente no braseiro quando terminei o interrogatório. Ele nunca saiu do transe. Quando o corpo foi descoberto, dois dias depois, deram a causa da morte como ataque cardíaco.

- Depois assassinou a Sra. Heskett - Charlotte disse. - Tentou duas vezes contra a vida dela e, como falhou, foi à sua casa e a matou com um tiro à queima-roupa.

- Nem sempre é conveniente usar incenso e hipnose - Morgan disse. - E eu acho prudente mudar os métodos de tempos em tempos. A previsibilidade não é uma virtude.

Charlotte entrecerrou os olhos. - Duvido que precise se preocupar com o peso de muitas virtudes. - Eu adoro uma língua ferina. - Morgan olhou para Baxter. - O que descobriram

no livro da Sra. Heskett? - Por que acha que ele vai responder? - Charlotte mudou de posição na cama,

curiosa para ver se o movimento chamaria a atenção de Morgan. - Vai nos matar assim que souber o que quer saber.

- Na verdade terei de matar St. Ives - Morgan concordou. - Ele sabe que não posso deixá-lo viver. Agora que ele sabe que estou vivo e prestes a realizar meu destino, não descansará enquanto não destruir meus planos. St. Ives é extremamente obstinado.

- Não pode esperar que ele diga o que quer saber, então - Charlotte disse em voz muito alta.

Morgan não olhou para ela. Continuava a focalizar toda a atenção em Baxter. - Ele vai me dizer por que estou disposto a negociar sua vida com ele, minha

querida. Charlotte ficou gelada. - Não espere que eu acredite nisso. Sou uma ameaça a seus planos tanto quanto

Baxter. Sei tudo que ele sabe a respeito. E eu também não descansarei enquanto não o destruir.

Morgan dignou-se a olhar rapidamente para ela com desprezo. - A senhorita é apenas uma mulher e, além disso, sem nenhum encanto especial.

Mas possui algumas qualidades capazes de atrair um homem na minha posição. Sua linhagem é respeitável. Não excelente, é verdade, mas o bastante para meus objetivos.

- Minha linhagem - Charlotte estava perplexa. - O que é mais importante, demonstrou possuir uma inteligência superior para

uma mulher e um certo grau de ousadia e coragem que eu gostaria de passar para meus filhos.

- Deus do céu, está louco? - Charlotte murmurou. - Como minha mulher, não poderá testemunhar contra mim. - Morgan olhou para

ela com um sorriso frio e cruel. - E estará na posição ideal para me dar um herdeiro. - Sua mulher. Impossível. - Charlotte ficou de joelhos na cama e olhou para

Morgan com uma fúria mortal. - Não há nada neste mundo capaz de me fazer casar com o senhor.

- Ah, mas há sim. - Os olhos frios de Morgan encontraram os dela por um breve e terrível momento. - Hipnotismo.

- Suas técnicas jamais funcionarão comigo. - Não tenha tanta certeza. Eu as estou aperfeiçoando a cada dia. A dose certa de

incenso com a aplicação correta dos meus métodos científicos para induzir um transe a transformarão numa esposa perfeita, minha doçura.

Charlotte sentiu a boca seca. - Não acredito que nenhuma quantidade de incenso ou de hipnotismo poderá

suplantar meu ódio pelo senhor. Porém mesmo que seja verdade, os efeitos serão apenas passageiros. Mais cedo ou mais tarde sairei do transe e quando isso acontecer, encontrarei um meio de matá-lo.

- Essa possibilidade pode acrescentar um incentivo à nossa vida conjugal, não é mesmo? - Morgan deu uma risada breve e áspera. - Talvez sirva para evitar o tédio inevitável de uma mulher muito submissa.

- Mesmo que fosse possível, e eu garanto que não é, por que ia querer casar-se com uma mulher que o despreza tanto?

O belo sorriso de Morgan gelou o sangue de Charlotte. Porém, foi Baxter quem respondeu, com voz suave, completamente sem emoção.

- Porque você me pertenceu, é claro. Charlotte mal podia respirar. Olhou para os ombros fortes de Baxter sem dizer

nada. - Exatamente - Morgan disse com fria satisfação. - Todas as vezes que abrir as

pernas para mim, Charlotte, sentirei o prazer do triunfo sobre o único homem que chegou muito perto de ser meu igual.

- Está completamente louco - ela murmurou. A raiva acendeu nos olhos de Morgan e ele olhou para Charlotte com desprezo. - Ora, vamos, meu amor, você me deve muito. É uma mulher honesta.

Certamente ia querer me pagar. - O que quer dizer com isso? - Fui eu quem providenciou para que seu padrasto acabasse boiando no Tâmisa,

no dia seguinte ao nosso primeiro encontro. Eu alterei seu destino naquela noite. O que você teria feito se eu não a tivesse livrado de Winterbourne?

- Certamente não o matou para me prestar um serviço - ela disse. - Fez isso porque ele não podia pagar sua dívida de jogo.

Morgan ergueu um ombro num gesto elegante. - Admito que esteja certa. Não fiz por você. Baxter se afastou calmamente da janela e caminhou até a mesa onde estava o

conhaque. - Conte como conseguiu escapar do castelo, naquela noite, na Itália. - Morgan

virou a cabeça bruscamente. - Pare aí, St. Ives. Nem mais um passo. Baxter parou.

- Muito bem. Quer ter a bondade de satisfazer minha curiosidade? - Havia um túnel secreto que levava para fora do laboratório. Consegui entrar

nele a tempo de escapar das chamas, mas não dos gases resultantes do incêndio. Quase morri sufocado pelos vapores.

- Sua voz foi danificada pelos gases, não foi? Fúria, a sombra negra de uma nuvem de tempestade, passou pelo rosto de

Morgan. - Você fez isso - disse com sua voz raspante. - E esta noite, finalmente, vai

pagar. - Como se atreve? - Charlotte exclamou. - Você tentou matar Baxter naquela

noite. - Cale-se! - Morgan olhou outra vez para ela, brevemente, depois para Baxter. -

Acho que chega de lembranças do passado por enquanto. - Concordo - Baxter disse. - Diga-me o que encontrou no caderno de desenho de Drusilla Heskett que me

denunciou - Morgan disse. - Diga agora, St. Ives, ou eu mato sua tagarela Charlotte. - Encontramos um desenho muito interessante. - Baxter, não - Charlotte disse. - Não diga nada. Ele vai matá-lo. - Cale a boca, Srta. Arkendale - Morgan disse com desdém - ou eu faço isso por

você. Charlotte imediatamente abriu a boca para dizer o que pensava dele, mas não

teve tempo de dizer nada. Com uma lufada terrível e invisível de vento e um som seco e crepitante, as

cortinas pesadas da janela onde Baxter tinha estado se incendiaram. Morgan ficou imóvel por um instante, o belo rosto contraído numa expressão de

puro terror. - Não - ele murmurou. - Não, maldito seja não. - Isso traz algumas más recordações? - Baxter disse, calmamente. - Sem dúvida,

traz para mim. Morgan estremeceu e depois fez um esforço visível para se controlar. Apontou a

pistola para Baxter com mãos trêmulas. - Vou matá-lo agora. Conseguirei com sua mulher a informação de que preciso. E

terei grande prazer em fazer isso. Pense em mim entre as pernas dela quando estiver morrendo.

Charlotte viu a mão de Morgan segurar a pistola com firmeza. Ela abriu a boca e soltou um grito de gelar o sangue. Morgan recuou, sobressaltado. Então, com um rugido, o pequeno fogo da lareira explodiu num clarão intenso.

As labaredas atravessaram a grade protetora, como as garras de um animal enorme procurando a presa.

- Não. - Morgan deu um passo incerto para trás e esbarrou na cama. Entre duas colunas de fogo, Baxter caminhou lenta e deliberadamente para Morgan.

- Não há tempo - ele disse. - Você deve fugir. - As chamas cresciam atrás dele enquanto se aproximava de Morgan.

Charlotte sabia que ele esperava que o medo de Morgan fosse maior do que sua fúria, mas não confiava apenas nisso. Era preciso mais alguma coisa.

De joelhos, ela estendeu o braço e segurou a franja de seda das cortinas vermelhas e puxou-a para baixo com toda a força.

As cortinas pesadas caíram numa avalanche de tecido escarlate. Uma parte caiu sobre a cabeça e os ombros de Morgan.

O resto caiu sobre Charlotte, cobrindo-a com uma massa de veludo vermelho cheio de pó.

O grito de raiva de Morgan ecoou nas paredes de pedra. O estampido da sua pistola explodiu no quarto.

- Baxter. - Charlotte saiu de baixo da cortina, tossindo por causa do pó e da fumaça que enchia o quarto.

As chamas alastravam-se rapidamente. Contra o cenário de fundo de fogo, Baxter e Morgan engalfinharam-se num abraço violento. Caíram sobre o tapete e rolaram de um lado para o outro. A luz do fogo refletia no aço enquanto os dois lutavam pela posse da outra pistola, a de Baxter.

Outro tiro ecoou nas paredes. Por um momento o tempo parou e ninguém se moveu. - Baxter. Oh, meu Deus! - Charlotte se arrastou freneticamente para a beirada da

cama. A corda a impediu de prosseguir. - Baxter. Morgan olhou atônito para Baxter. Sua camisa branca pregueada estava

encharcada de sangue. - Não. Eu não posso acabar assim. Tenho de realizar meu destino. - Baxter

começou a se levantar. Morgan segurou o braço dele. - Estou destinado a triunfar sobre o grifo dourado - Morgan murmurou com sua

voz rouca. - Tudo errado. Eu sou um mágico. - Sangue escorria da sua boca. Ele começou a dizer mais alguma coisa, mas as palavras se afogaram na corrente

vermelha. Sua mão soltou o braço de Baxter, ele caiu no tapete e ficou imóvel. Baxter levantou-se rapidamente e olhou para Charlotte. Ela viu que ele havia

perdido os óculos na luta. - Temos de sair daqui. - Ele se adiantou para ela. - Não consigo desatar estas cordas. - Pela primeira vez Charlotte sentiu medo do

fogo. Pensou que talvez não fosse escapar do quarto em chamas. O pânico a dominou com força avassaladora. - Eu tenho uma faca na bolsa, mas não sei onde ela está. Eles a tiraram de mim. Por Deus, Baxter. - Olhou para ele, incapaz de descrever o terror que sentia.

- Meu sobretudo, eu o deixei cair. - Baxter olhou em volta. - Depressa. Onde ele está?

- No chão, atrás de você. A uns três passos. Bem atrás. - Ele se voltou e seguiu as instruções.

- Ah, sim. Você é ótima orientadora, minha querida. - Procurou nos bolsos e encontrou a faca.

Baxter correu para a cama. - Tirei isto do homem que a tirou de mim. Orientando-se pelo tato, ele procurou a corda, encontrou e a cortou com a faca. Ela estava livre. Charlotte quase desmaiou de alívio. - Venha. Não podemos perder tempo. - Segurou a mão dela e a tirou da cama. -

Você tem de ir na frente, Charlotte. A partir de uma certa distância, tudo está fora de foco e invisível para mim.

- Sim, é claro. - Ela quase tropeçou no corpo imóvel de Morgan no seu caminho até a porta. Olhou para baixo e viu o sangue na frente da camisa e do casaco dele. - E se ele escapar outra vez?

- Não vai escapar - Baxter disse com voz inexpressiva. - Ele está morto. - Mas como pode ter certeza? - Charlotte perguntou enquanto corriam para a

porta. - Nem mesmo eu posso errar dessa distância. Charlotte estava quase na porta quando notou o brilho de alguma coisa dourada

ao seu lado. - Seus óculos. - Ela os apanhou e pôs na mão dele. - Uma lente está quebrada,

mas a outra parece inteira.

- Muito obrigado, minha querida. - Baxter levou a lente perfeita a um dos olhos. - Vai servir muito bem.

Saíram do quarto, seguiram pelo corredor, na direção da escada de pedra. A fumaça serpenteava atrás deles.

O quarto negro e carmesim explodiu num inferno. Baxter calculou que quase um terço do último andar estava em chamas quando

ele e Charlotte chegaram ao hall de entrada. Ouviu gritos ao longe. Criados e asseclas de Morgan em pânico, fugindo do fogo.

A confusão era bem-vinda. Facilitaria a fuga dos dois. Mas havia ainda o perigo de que um dos bandidos, sem saber que seu mestre estava morto, tentasse detê-los.

- Vê alguém por perto? - Baxter segurou a lente inteira na frente dos olhos e procurou sinal de movimento nas sombras.

- Não. - Charlotte estava ofegante, mas não diminuiu o passo. - Acho que estão todos muito ocupados tentando escapar.

- Excelente. - Baxter sentiu o vento frio no hall e viu o escuro na outra extremidade. - A porta está aberta.

- Ao que parece, a maior parte do pessoal já fugiu. Não passamos por ninguém na escada, portanto acho que podemos concluir que nenhum dos criados pensou em salvar seu mestre das chamas.

- Como Morgan disse, é muito difícil conseguir criados de confiança hoje em dia. Chegaram à porta da frente e pararam no alto dos degraus. - Não vejo ninguém. - Charlotte olhou para as sombras. - Para que lado vamos?

Não tenho idéia de onde estamos. - Nem eu, mas certamente o fogo vai logo atrair a atenção de alguém. Deve

haver fazendeiros e arrendatários no distrito. Vamos para a estrada. - Segurou a mão de Charlotte e começaram a descer os degraus da frente.

- Baxter. O alarme na voz dela o fez parar e virar-se rapidamente, com a faca na mão. Um vulto escuro apareceu na porta. - Ora, ora, aonde pensam que vão? O homem levantou a mão. Mesmo sem a ajuda da única lente, Baxter teria

reconhecido a pistola. - Deus do céu - Charlotte disse. - É o bandido que nos abordou na frente da casa

da Sra. Heskett. - Isso mesmo e desta vez não tentem nenhum dos seus truques. - Não temos nenhuma utilidade para você agora - Baxter disse. - Se o mágico teve todo esse trabalho para pegar vocês, acho que devem valer

alguma coisa. Vou levar os dois comigo e descobrir do que se trata. - Seu patrão está morto num dos quartos no último andar - Baxter disse,

calmamente. - Não vai ganhar nada com esse trabalho noturno. Trate de dar o fora antes que a casa desmorone em cima de você.

- Deve haver algum dinheiro nessa coisa toda, em algum lugar - o homem disse, com voz lamentosa.

Baxter suspirou. - Se é só dinheiro que procura, podemos chegar a um acordo. O homem se animou. - Um acordo, senhor. Antes que Baxter tivesse tempo de fazer uma oferta, ouviram o estampido de um

tiro atrás do homem. Com um grito de surpresa e de dor, o homem levou a mão ao ombro e

cambaleou para trás, para dentro do hall. - Baxter, Charlotte. - A voz de Hamilton soou na noite. - Estão bem?

Baxter voltou-se e levou a lente ao olho. Hamilton e Ariel correram até eles, saindo do abrigo de algumas árvores.

Hamilton empunhava uma pistola em cada mão. A gravata flutuava em volta do seu pescoço com uma elegância ousada. Suas botas brilhavam. O cabelo estava despenteado pela brisa. Havia nele um ar de excitação exuberante. Baxter vira essa mesma expressão no seu pai.

- Charlotte. - Ariel correu até ela. - Graças a Deus, eu fiquei tão assustada. Hamilton chegou logo depois que aqueles homens horríveis dominaram os guardas e a levaram. Conseguimos segui-los na nova carruagem de Hamilton. É espantosamente veloz, sabe?

- Agiram com muita inteligência. - Charlotte abraçou a irmã com força. - Foram inteligentes e corajosos.

Hamilton pôs as pistolas no cinto. - Desculpe o atraso, irmão. Perdi a pista deles a alguns quilômetros daqui. Levei

um tempo enorme para encontrar um fazendeiro que lembrava de ter ouvido uma carruagem passar por sua casa. Ele nos falou deste lugar e disse que ninguém tinha permissão para chegar perto da casa, exceto os criados. Muito misteriosa, ele disse. Achei que devia ser o esconderijo do mágico.

- Brilhante dedução. - Baxter sorriu para o belo irmão. - Acredito que seja verdade o que dizem sobre os condes de Esherton.

Um pouco da animação de Hamilton desapareceu. - Como assim? - Fazem tudo em grande estilo. - Hamilton ficou surpreso, depois riu. - Está no sangue, irmão. Todos os homens de St. Ives têm estilo. Só que levei

algum tempo para perceber o seu. Realmente singular. Charlotte levantou a cabeça do ombro de Ariel e olhou para Baxter com um

sorriso brilhante que ele podia ver claramente mesmo sem os óculos quebrados. - Seu estilo é uma das muitas coisas que sempre admirei nele - ela disse.

Capítulo XX Dois dias depois Hamilton estava encostado numa das longas mesas do

laboratório. Observava com interesse o trabalho de Baxter arrumando as substâncias químicas e os instrumentos de trabalho que enchiam todas as mesas.

- Como você conseguiu pôr fogo nas cortinas e como criou a explosão? - Hamilton perguntou.

- Eu já disse que tinha uma caixa da minha luz instantânea. - Baxter poliu cuidadosamente com um pano um cadinho Wedgwood. - Charlotte distraiu Judd o tempo que eu precisava para quebrar algumas ampolas nas dobras das cortinas. Joguei outra no fogo da lareira.

- Muito inteligente. Então Morgan Judd assassinou seu assistente e Drusilla Heskett e pensou que era o fim de tudo - Hamilton disse.

- Ele não contou com o fato de a Sra. Heskett ter contado a alguém sua desconfiança de que um dos seus pretendentes estava tentando matá-la. - Baxter estava concentrado na arrumação de duas fileiras de garrafas de vidro verde que continham sais alcalinos e metálicos. - Nem previu a possibilidade de tia Rosalind insistir na investigação da morte da amiga. Morgan tinha um grande desprezo pelo sexo feminino. Sempre subestimou as mulheres.

- E no fim foi derrotado por elas. - Hamilton sorriu. - Foi bem feito. - Certamente. - Por que você acha que a Sra. Heskett fez o desenho do emblema de Judd? Baxter deu de ombros. - Só podemos fazer suposições. Charlotte acha que foi o assistente de Judd

quem fez o desenho no livro da Sra. Heskett. Talvez tentando explicar os princípios das técnicas de mesmerismo de Morgan.

Hamilton inclinou a cabeça, concordando. - Ele fez o desenho para ilustrar a explicação. - Talvez. Jamais saberemos ao certo. - Sabe Baxter, é a coisa mais estranha, mas só agora percebo que sempre quis

olhar dentro do guarda-roupa da nossa sala de reuniões no Mesa Verde. Eu sabia que o mágico devia ter uma passagem secreta, mas nunca cheguei a investigar.

- Estou certo de que ele providenciou para que nenhum membro do clube soubesse muita coisa acerca de suas atividades.

- Quer dizer que usou o mesmerismo para nos convencer a nunca examinar a sala?

- Parece provável. - Baxter pôs uma das garrafas na mesa. Estava cansado de responder perguntas. Refugiara-se no seu laboratório com a

intenção de arrumar seu material. A limpeza era uma das coisas que sempre fazia quando queria pensar em algum assunto. Limpar retortas, polir instrumentos e fazer o inventário da coleção de frascos e vidros tinha um efeito relaxante quando ele precisava pensar.

Infelizmente seus planos de um longo tempo de meditação foram desfeitos quando Hamilton entrou na casa há vinte minutos para conversar sobre os eventos dos últimos dias.

- É difícil acreditar que Drusilla Heskett estivesse tendo um caso com um simples assistente - Hamilton disse. - Baxter, você acha que a maior parte das senhoras da sociedade têm ligações ilícitas com todo mundo, desde o lacaio até o melhor amigo do marido?

- Em minha opinião, o número dessas mulheres não é maior que o dos homens que fazem a mesma coisa com governantas dos filhos e as melhores amigas das suas

mulheres. Hamilton fez uma careta. - Não é uma idéia agradável. - Ficou sério de repente. - Acho que eu não

gostaria de estar casado com uma senhora que tivesse amantes. - Isso é definitivamente uma coisa que temos em comum. - Baxter examinou um

frasco rachado. - Não sei se o meu fornecedor pode consertar isso. - A Srta. Ariel jamais trairia os votos do casamento - Hamilton disse suavemente.

- Ela é uma dama virtuosa e com grande nobreza de sentimentos. Baxter ergueu uma sobrancelha. - Se está pensando em fazer um pedido de casamento nessa direção, acho

melhor ouvir um conselho. Hamilton levantou a mão. - Nada de sermões, por favor. Sei muito bem que vou receber minha herança

dentro de poucos anos. Mas gostaria de lembrar que nada no testamento do nosso pai diz que não posso casar antes disso.

- O problema não é o testamento. Para mim tanto faz que você case ou não. Acontece que acho que a Srta. Ariel seria uma excelente condessa.

Hamilton se animou. - Acha mesmo? - Certamente. Mas acho melhor dizer também que, se pretende pedi-la em

casamento, deve estar preparado para uma investigação completa da sua reputação e dos seus negócios pessoais por Charlotte. Tenho certeza de que ela não permitirá que a irmã case com um homem com tendências para a libertinagem.

Hamilton sorriu brevemente. - Em outras palavras, nosso querido e falecido pai não é uma boa recomendação

para mim? - Não, não é. Hamilton respirou profundamente. - Então, talvez seja melhor eu não ter herdado nada dele. Aqui entre nós, não

tenho interesse em andar atrás de dançarinas nem em freqüentar bordéis. Quero um casamento de amor e afeição verdadeiros.

Baxter olhou atentamente para ele. - Bom Deus, está falando sério, não está? - A respeito de pedir a Srta. Ariel em casamento? Sim. Jamais conheci uma

mulher mais encantadora e mais inteligente. Nenhuma tão corajosa. Quer saber, Baxter, ela insistiu em me acompanhar naquela noite em que seguimos a Srta. Charlotte e o seu seqüestrador. Nada do que eu disse a convenceu a ficar. Chegou a pedir que a ensinasse a usar a pistola, para o caso de ser preciso. Ela é uma jovem muito forte e muito destemida.

- Aparentemente é de família - Baxter resmungou. Passos soaram no hall. Rosalind, com um vestido rosa-claro, uma pelerina cor de

amora e um pesado chapéu de cetim, apareceu na porta. - Aí está você, Baxter. Estive à sua procura. Hamilton ficou em posição de sentido. - Lady Trengloss. - Hamilton. - Ela olhou para Baxter. - Por que não respondeu às minhas

mensagens? Mandei pelo menos duas ontem e outra esta manhã. Baxter se perguntou se algum dia teria outra vez o laboratório só para si. - Bom dia, minha tia. Lambert não me avisou da sua presença. - Seu mordomo mal conseguiu abrir a porta há pouco. - ela disse. - Não tive

paciência de esperar que ele se arrastasse pelo hall para me anunciar. Francamente, Baxter, precisa providenciar a aposentadoria de Lambert. Como pode dirigir esta casa

só com ele? - Lambert é o único membro da criadagem que já conseguiu ficar mais de dois

meses. Se me livrar dele, não terei ninguém para dirigir a maldita casa. - Baxter jogou o frasco rachado numa lata de lixo. - Queria alguma coisa?

Depois de um olhar impaciente para Hamilton ela examinou Baxter com atenção. - Eu vim agradecer por você ter resolvido o mistério da morte de minha amiga. - Já agradeceu na manhã seguinte aos eventos. - Baxter apanhou um espanador

de penas e começou a espanar tudo que estava sobre as mesas. - Estou muito ocupado no momento, portanto, se não há nada mais...

- Muito bem, não é só por isso que estou aqui. - Rosalind entrecerrou os olhos. - Quero tratar de um assunto de família.

- Hamilton é da família - Baxter disse. Hamilton olhou surpreso para ele e depois sorriu. - Certamente. - Como quiser. - Rosalind olhou zangada para Baxter. - Vou direto ao assunto.

Ainda pretende desfazer seu noivado com a Srta. Arkendale agora que terminaram a investigação?

O espanador parou no ar. Baxter virou-se lentamente para enfrentar a tia. - Este é um assunto pessoal que só interessa a Srta. Arkendale e a mim. -

Alguma coisa na voz dele a sobressaltou. Rosalind piscou os olhos, confusa. Abriu e fechou a boca duas vezes e depois disse, num tom que não lhe era habitual:

- Bem. Bem. Eu só queria dizer que... - Ele está com medo de pedir a mão dela - Hamilton explicou em tom

confidencial. - Ele acha que ela vai recusar. - Cala a boca, Hamilton - Baxter disse, com os dentes cerrados. Hamilton sorriu, sem se abalar. - Por que diabos ela recusaria? - Rosalind perguntou. - Ela tem vinte e cinco

anos. Uma solteirona sem fortuna para recomendá-la. Ela deve saber que, nessas circunstâncias, é pouco provável que encontre alguém melhor do que Baxter.

- Muito obrigado, tia Rosalind - Baxter resmungou. - É sempre agradável ter esse tipo de apoio da família.

- Ela parece gostar muito de Baxter - Hamilton disse. - O problema é que ela não é muito a favor do casamento. Ariel me disse que a irmã acha o casamento um risco terrível para uma mulher.

- Que bobagem. Estamos falando em casar com Baxter. - Rosalind deu uma risada pouco própria de uma dama. - Garanto que não representa nenhum risco. Não conheço nenhum homem em Londres mais cortês, calmo e de bom gênio do que Baxter.

- Concordo plenamente. - Os olhos de Hamilton brilharam com ironia. - Pode-se dizer que Baxter é o mais imperturbável, mais confiável, mais sólido

dos homens. Todas as qualidades de um bom spaniel, Baxter pensou, voltando a espanar com

exagerado vigor. - Que negócio é esse de solidez e bom temperamento? - Maryann perguntou da

porta. - Sobre o que estão falando, Hamilton? Baxter gemeu. - Com todos os demônios. - Se ele acreditasse em destino, pensou, seria tentado

a pensar que estava sendo vítima de um gênio maligno nesse dia. Será que nunca ia ter paz no seu laboratório?

- Olá, mamãe, o que está fazendo aqui? - Hamilton perguntou. - Vim visitar Baxter. Rosalind inclinou a cabeça com um mínimo de cortesia.

- Lady Esherton. - Maryann disse friamente: - Lady Trengloss. Não notei que estava aqui. - Deu as costas para Rosalind e

olhou para o filho. - Espero que tenha dado a Baxter uma lista das características mais desejáveis num bom criado. Ele certamente precisa de outro mordomo. O que abriu a porta para mim nem se deu ao trabalho de me anunciar. Apenas acenou na direção desta porta.

- Na verdade, estávamos descrevendo as grandes qualidades de Baxter - Hamilton disse. - Concluímos que ele tem todas as características que o recomendam a Srta. Arkendale.

- Verdade? - Maryann disse, vagamente. - Estou certa de que vão se dar muito bem. Baxter gostaria de falar em particular com você.

- Não estou concedendo entrevistas particulares hoje, Maryann. - Baxter apertou com força o cabo do espanador. - Como pode ver, estou ocupado com outras coisas no momento.

Maryann franziu a testa. - O que está fazendo com esse espanador? Não tem uma criada na casa? - Não. Mas isso não quer dizer nada. Nunca permito que outra pessoa faça a

limpeza do meu laboratório. As criadas costumam derrubar garrafas e quebram instrumentos. - Com as mãos na cintura, continuou: - Gostaria de pedir que todos se retirassem agora.

Maryann ficou furiosa. - Francamente, não precisa ser indelicado, Baxter. - A falta de delicadeza é parte do seu estilo singular - Hamilton murmurou. Maryann o ignorou e empertigou o corpo com grande dignidade. - Eu vim para agradecer o que fez por Hamilton. Hamilton revirou os olhos para o alto. - Não precisa me agradecer - Baxter disse, asperamente. - Hamilton ajudou a

salvar a si mesmo e a todo mundo. Ele demonstrou ser muito calmo em situações críticas e se eu me encontrar outra vez nas mesmas circunstâncias, não pensarei em outro homem para me dar cobertura.

Hamilton corou intensamente. Seus olhos brilharam com relutante gratidão. - Quando quiser Baxter. - Tendo dito isso - Baxter ergueu o espanador como se fosse uma varinha

mágica com a qual pudesse expulsar as visitas indesejáveis do laboratório - por favor, queiram considerar que os agradecimentos foram feitos e sair daqui? Tenho muito que fazer.

Antes que alguém pudesse responder, Baxter viu um redemoinho de musselina amarela. Voltou-se e viu Charlotte na porta, com Ariel atrás.

- Srta. Ariel - Hamilton exclamou - e Srta. Charlotte. - Inclinou a cabeça num cumprimento gracioso e depois se adiantou para segurar as mãos das duas. - Permitam-me dizer que ambas estão com ótima aparência hoje.

Baxter viu Hamilton se inclinar galantemente primeiro para uma, depois para outra mão enluvada. Devia fazer o mesmo, ele pensou. Na verdade, podia aprender uma ou duas coisas com o irmão. Mas por algum motivo ficou pregado no chão.

Baxter sentiu a sua alma se expandir quando viu Charlotte. Ela parecia tão maravilhosamente cheia de vida. O laboratório ficou mais ensolarado com a presença dela. Não, não apenas o laboratório, ele pensou. Toda sua maldita vida ficava mais clara por causa dela. Um futuro sem Charlotte seria incrivelmente tristonho.

Ela era a sua Pedra Filosofal. Que Deus o ajudasse se a perdesse. - Charlotte - ele disse suavemente. Hamilton olhou para ele significativamente.

Baxter pigarreou. - Srta. Ariel. Bom dia para as duas. - Bom dia para todos. - Charlotte sorriu para todos, mas seus olhos estavam em

Baxter. - Vejo que temos uma multidão. - Já estão de saída - Baxter garantiu bruscamente. - Não vi você chegar,

Charlotte. Onde diabo está Lambert? Vou pedir a ele para trazer chá ou coisa assim. - Ao que parece ele se instalou mais ou menos permanentemente ao lado da

porta - Charlotte disse. Ariel riu. - Ele disse que com todo esse entra e sai desta manhã, não vai ser possível fazer

mais nada. Hamilton sorriu. - Estamos todos tentando agradecer a Baxter, mas ele insiste em nos mandar

embora. - Tenho muito que fazer - Baxter rosnou. Todos o ignoraram. - Mas que incrível série de acontecimentos. - Ariel disse. - Quem podia saber

como acabaria? - É verdade. - Hamilton riu. - O mágico deve ter ficado atônito quando viu que

seus planos diabólicos haviam atraído sua antiga nêmese, Baxter, para sua esfera. - Não estou muito certa disso. - Charlotte pôs a bolsa grande numa das mesas. -

Prefiro pensar que ele via Baxter como parte de tudo, outra manifestação do que ele chamava de destino.

Hamilton ergueu as sobrancelhas. - Talvez fosse mesmo. Ariel achou interessante a idéia. - Realmente. Tenho pensado em uma coisa que Charlotte mencionou no dia em

que ela salvou a vida de Juliana Post. Ela disse que viu a carta da morte no chão, virada para cima. A Srta. Post afirmou que sempre lia para o mágico o que ele queria ouvir. Mas naquele dia, inadvertidamente, ela leu a verdade para ele.

Rosalind arregalou os olhos. - É de dar arrepios, não é mesmo? Baxter disse, irritado: - Que grande bobagem. A Srta. Post garantiu que não tirou aquela carta. Deve

ter sido derrubada acidentalmente pela saia dela quando Morgan a carregou para o sofá.

Hamilton disse pensativo: - Talvez não tenha sido mero acidente. - Seria um tanto difícil atribuir esse tipo de presságio a mera coincidência -

Rosalind concordou. - Definitivamente, o caso todo sugere alguma intervenção misteriosa do reino

metafísico - Ariel declarou. Maryann estava fascinada. - Muito estranho tudo isso. - Chega - Baxter rugiu. - Toda a situação não passou do resultado de uma

progressão lógica de eventos. - Como assim? - Ariel perguntou. Charlotte respondeu. - Baxter está certo, em parte. Há uma inevitabilidade lógica nos fatos. Afinal,

Morgan Judd deve ter compreendido que estava pondo certas engrenagens em movimento quando admitiu Hamilton no Mesa Verde.

Maryann perguntou intrigada. - Por que diz isso? - Charlotte olhou para ela. - Judd devia saber que se envolvesse Hamilton no seu plano, certamente atrairia

a atenção de Baxter, mais cedo ou mais tarde. Em minha opinião, uma parte da sua

natureza obsessiva queria que Baxter soubesse que ele não morreu na Itália. Ele queria ter o prazer de mostrar que era o mais esperto dos dois alquimistas. E queria vingança.

- Compreendo. - Hamilton inclinou a cabeça para o lado, pensativo. - Posso compreender que Judd quisesse demonstrar sua superioridade. Mas por que pensar que Baxter iria se importar com o que acontecesse comigo?

Charlotte disse, com um sorriso: - Tenho certeza de que nunca ocorreu a ele que Baxter tentaria tirar você do

Mesa Verde, muito menos que fizesse alguma coisa para salvar seu amigo Norris. Para ele, Baxter tinha destruído a própria alma com ressentimento e raiva exatamente como ele próprio. Mas sabia que podia usar você para chamar a atenção de Baxter e isso era tudo que ele queria.

- Mesmo sabendo que Baxter podia ser uma ameaça para seus planos? - Rosalind perguntou.

- Ele pretendia matar Baxter depois de provar sua esperteza. - Charlotte deu de ombros. - Judd era seu próprio pior inimigo. Sua arrogância, seu rancor e sua natureza cruel criaram uma poção diabólica dentro dele mais virulenta que qualquer ácido.

Rosalind disse pensativa: - Então, de um modo ou de outro, Baxter terminaria fazendo parte dos seus

planos, mesmo que eu não tivesse pedido a ele para investigar a morte de Drusilla. - Exatamente - Charlotte disse. - E eu não tive escolha a não ser me envolver

também porque a Sra. Heskett era minha cliente. Eu precisava saber se o assassino era um dos pretendentes que eu tinha investigado. - Sorriu para Baxter. - A única parte disso tudo que pode ser remotamente chamada de coincidência ocorreu no começo, quando eu precisei de um assistente.

- E Baxter se candidatou ao cargo - Rosalind concluiu. Baxter jogou para longe o espanador. - Mesmo que ela não estivesse procurando um assistente, eu a teria contatado

mais cedo ou mais tarde. A pista da morte da Sra. Heskett apontava diretamente para ela.

Hamilton disse, com voz sepulcral: - Destino ou uma progressão lógica dos eventos. Quem pode dizer? - Eu posso dizer muito bem - Baxter falou com convicção. - E digo que não há

um único fato nessa história toda que não possa ser explicado pela lógica. E este é o fim da discussão. Quero que todos saiam imediatamente deste laboratório. Desapareçam.

- Todos ouviram. - Hamilton disse, alegremente. - Nossa presença não é mais desejada. Vamos embora.

A satisfação de Baxter durou pouco. Todos seguiram em direção à porta. Então, ele percebeu que Charlotte também se preparava para partir.

- Com todos os demônios, você não, Charlotte. Precisamos conversar. Ela parou, olhando para ele interrogativamente. Hamilton balançou a cabeça com um ar de censura tristonha e conduziu todos

para o corredor. - Num dia destes, Baxter, precisamos ter uma conversa sobre sua falta de

traquejo social. Baxter sentiu um calor incômodo no rosto. - Quando sair, por favor, diga a Lambert para servir o chá aqui no laboratório -

ele disse, secamente. - E outra conversa sobre seus problemas com a criadagem - Hamilton

acrescentou, olhando para trás. Baxter esperou até ouvir a porta da frente abrir e fechar e só então olhou para

Charlotte. Ela sorriu para ele, intrigada. - O que você quer Baxter? Baxter pigarreou. Depois tirou os óculos e começou a limpar as lentes com o

lenço. Era mais fácil assim, ele pensou. Não podia olhar para o rosto dela naquele momento. Talvez sem a distração daqueles olhos maravilhosos pudesse ordenar coerentemente seus argumentos.

Começou a andar pelo laboratório. - Deve estar lembrada de que duas noites atrás estávamos juntos nos degraus

na frente da mansão de Morgan Judd. - Dificilmente me esquecerei da noite em questão. - Sim, bem, talvez não esteja lembrada exatamente do que você disse na

ocasião. - Sei que eu disse uma porção de coisas. Afinal, tínhamos muita coisa para

comentar. Acabávamos de escapar da morte por um fio. Baxter estava concentrado nas lentes dos óculos. - Eu me refiro a uma frase em particular. - Sim. Qual foi a frase? - Você disse que uma das coisas que mais admira é o meu estilo. Um momento de silêncio. - Sim - ela disse. - O estilo inato dos homens de St. Ives. Muito impressionante. Baxter parou na frente da janela e pôs os óculos. - Eu estava pensando se haveria, por acaso, alguma outra coisa que você

poderia admirar... - Interrompeu a frase quando olhou para os vasos no peitoril. - Meu Deus, Charlotte, as ervilhas-de-cheiro.

- O que têm elas? - Estão brotando. - O tom de voz era de euforia. Ele pegou um dos vasos e se

voltou, mostrando a ela a pequena haste verde. - Veja. Em todos os vasos. - Isso é maravilhoso. - Charlotte sorriu e seus olhos brilharam. - Meus parabéns. Baxter estava atônito. - Com todos os demônios. Talvez existam coisas como presságios e destino.

Charlotte acho melhor ir direto ao assunto. Eu me apaixonei por você. - Oh, Baxter. - Preciso saber se acha que há uma chance de você retribuir esse amor. O sorriso dela era glorioso. Os olhos verdes continham todos os segredos da

Pedra Filosofal. - Acho que me apaixonei por você no dia em que nos conhecemos. Baxter olhou atônito para ela, temendo não ter ouvido bem. - Tem certeza? - Eu tinha tanto medo de que você nunca pudesse me amar. Baxter pôs o vaso na janela e a puxou para ele. - Eu diria que sempre foi óbvio. - Você disse que nosso relacionamento era inconveniente - ela lembrou. Baxter franziu a testa. - E é. Tremendamente inconveniente. Charlotte, eu sei que você não quer se

casar. Se quiser continuar como estamos, eu concordo com sua vontade. Mas preferia ter você com mais freqüência. Quero ver seu rosto à mesa do café todas as manhãs. Quero ter você nos meus braços quando adormeço à noite.

- Sim. - Ela levantou a cabeça do ombro de Baxter e passou as mãos no cabelo dele.

- Eu quero poder mostrar a você os resultados das minhas experiências - ele continuou. - Quero passar noites longas e tranqüilas com você. Quero conversar sobre suas investigações. Acho que provei que sou um ótimo assistente.

- Sem dúvida provou. - Sei muito bem que não sou o homem mais romântico do mundo. - Está enganado, senhor. É o homem mais romântico que já conheci. - Baxter

olhou para ela, encantado. - Sou? - Definitivamente. - Charlotte sorriu outra vez e ficou nas pontas dos pés para

encostar os lábios nos dele. - Se está tentando me pedir em casamento, a resposta é sim.

Epílogo Era a noite do seu casamento. Estranho, ela pensou. Jamais havia pensado em se casar. Charlotte apoiou os cotovelos no peitoril da janela, o queixo nas mãos e olhou

para a noite. Fora um dia movimentado, com a festa de casamento, a mudança para a casa de Baxter e a excitação geral própria do acontecimento. Ela devia estar exausta, mas sentia-se intensamente viva como nunca havia se sentido.

Afastou-se da janela quando ouviu abrir a porta que ligava os dois quartos. Quando viu Baxter, seu espírito se elevou.

Ele estava com um robe simples e negro. Os aros dourados dos óculos refletiam a luz das velas. Atrás das lentes, os olhos brilhavam de amor e de desejo. Ele olhou em volta satisfeito e caminhou para ela.

- Um quarto aquecido, uma cama confortável e todas as amenidades possíveis. Eu disse que o casamento seria mais conveniente do que um caso de amor, para um homem da minha natureza.

- Tenho de admitir que se pode dizer muita coisa sobre conveniência. - Ela sorriu e pôs os braços em volta do pescoço dele. - Mesmo assim, espero não descobrir que casou comigo simplesmente para ter os serviços da Sra. Witty na sua casa.

Com um sorriso ele a abraçou. - Confesso que sempre precisei melhorar minha criadagem, mas não chegaria a

ponto de me casar para ter uma governanta, nem mesmo uma admirável como a Sra. Witty.

- Fico feliz com isso. O contato com o corpo forte e sólido de Baxter despertou em Charlotte uma

sensação de calor e desejo. Descansou a cabeça no ombro dele e saboreou a sensação de felicidade que a envolveu.

Uma parte dela, Charlotte pensou, sempre esteve à procura desse homem. Baxter era a verdadeira alma companheira da sua. Essa sensação indefinível de sempre ter estado ligada a ele existiu desde o começo do relacionamento. Destino? Jamais saberiam. E no fim, não importava. Ela e Baxter haviam se encontrado.

- Quer saber - Baxter murmurou com os lábios no pescoço dela. - Passei a acreditar que a química afinal não pode explicar tudo que existe no mundo.

- Talvez alguns mistérios não devam ser revelados pelos poderes da ciência. - Pode ser verdade. - Ele a tomou nos braços e a carregou para a cama. - Eu tive certeza, desde o início, de que era um homem de paixões fortes e muito

perigoso, senhor. Baxter a fez encostar-se ao travesseiro e inclinou-se sobre ela com as mãos

apoiadas nos lençóis brancos. Seus olhos tinham a cor de ouro derretido num cadinho muito quente.

- Que estranha coincidência - ele disse, suavemente. - Dei a mim esse mesmo aviso a seu respeito. Uma mulher, de paixões fortes e tendências perigosas, eu disse. Não é para mim.

Charlotte ergueu os braços e o puxou para ela. - Evidentemente fomos feitos um para o outro. - Evidentemente - Baxter a tomou nos braços. Seu beijo tinha o segredo do fogo que jamais se apaga, o criador da alquimia do

amor.