Âmbar

Lucas Dallas

Âmbar1ª Edição

MauáEdição do Autor

2015

Copyright © by Lucas Dallas

Todos os direitos reservados.

– É PROIBIDA A REPRODUÇÃO –

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou

gravações, assim como traduzida, sem a permissão, por escrito, da autora. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor.

Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

1ª Impressão/ 2015

Projeto Gráfico e diagramação: Giselle VieiraFoto: Lucas da Silva Santos

Foto Contracapa: Jure Sucur | (Jsucur) FreeImagesCapa: Giselle Vieira

Preparação e revisão de texto: Giselle Vieira

[Dallas, Lucas]

Âmbar/ Lucas Dallas – Mauá – São Paulo/2015

Registro na Biblioteca Nacional Nº 666387 em 23/12/2014.

1. Literatura Brasileira. I. Título2. Romance/ Suspense/ Drama

Dedicatória

Dedico este livro a todas as “Almas de Bruços”!

Prefácio

Vou contar para vocês a história de um menino que pensava não saber escrever.

Era uma vez Lucas Dallas, uma gaveta e algumas folhas de rascunho... Assim nasceu Âmbar, a meu ver, a melhor surpresa de 2014, um presente para nossa literatura contemporânea!

“O cemitério, na verdade, tem mais vida do que morte...”

Milo é um personagem pitoresco que nos leva a uma sucessão de risos ao compartilharmos, consigo, desgraças tão familiares e ao mesmo tempo tão espantosamente surreais. É nessas nuanças da existência que poderemos admitir que o riso é cruel!

“Adaptabilidade”

Como equilibrar razão e emoção quando “a vida é um perigo sorridente”? Numa narrativa frenética, Lucas Dallas nos apresenta Anna, uma representação da “mulher da criação”. Astuta e naturalmente bela, que através de seus olhos âmbar, nos permite enxergar com os olhos do amor, seu amor à vida.

O âmbar é “uma resina natural perfeita para preservar

um organismo”. Seria ele também capaz de preservar uma promessa de amor eterno?

“Eu te amo para sempre.”

Milo nos arremessa ao desequilíbrio em que se encontra sua fé e a adaptabilidade de sua vida, num tempo demarcado pela velocidade do pensamento, das suas escolhas, das lembranças, dos afetos e desafetos, da solidão, do primeiro amor, do amor eterno e da morte!

“Eu sei que está aqui!”

Uma fala dispara como um gatilho mental, faz surgir à tona o medo e uma adrenalina capaz de nos arrastar junto a eloquência de Milo. A presença marcante de seu irmão gêmeo, Danilo, o avesso de si, é a razão latente que lhe constitui seus dias de vida, ao menos era assim, até conhecer Anna, nada convencional. Com ela a vida não se repetia.

“Então meu choro se mistura com a chuva numa dança macabra.”

Lucas Dallas nos envolve numa narrativa deliciosa, intrigante, divertida e autêntica! É perceptível sua marca no texto, há uma forma ímpar de narrar, onde o autor tece os fios de sua trama e nos permite um passeio de montanha russa enquanto deslizamos para a próxima página.

Sameerah Sy,

Autora de “Ela é o Meu Pecado - Proteja-me”24/11/2014.

Sumário

Capítulo 01 – Rachaduras.....................................11Capítulo 02 – A Paciente Risonha........................19Capítulo 03 – Coincidência..................................27Capítulo 04 – De Adulto Responsável Para Manchas de Molho...............................................................33Capítulo 05 – Mumificação..................................43Capítulo 06 – Meio Termo...................................49Capítulo 07 – Personalidade Quebrada.................59Capítulo 08 – Lago dos Cisnes............................69Capítulo 09 – A Grande Noite..............................77Capítulo 10 – A Moeda Cai em Pé.......................87Capítulo 11 – Catarse...........................................97Capítulo 12 – A Mulher de Preto........................107Capítulo 13 – O Quarto Escuro..........................115Capítulo 14 – Intuição........................................127Capítulo 16 – O Diário da Bruxa........................135

Capítulo 17 – Âmbar..........................................149Capítulo 18 – Metamorfose................................163Capítulo 19 – Cabelos Bracos............................173Capítulo 20 – Apenas Uma Cerca de Ferro...........185Capítulo 21 – As Evidências..............................197Epílogo...............................................................205

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O que estou fazendo aqui? Isso não é pra mim! Fazer as mesmas coisas todos os dias. Às vezes, sinto vontade de dizer a todos que vou embora, mas...

Será que sentiriam minha falta?Covardia. Por que essa palavra não sai da minha

cabeça? Espera aí, eu sei o porquê.Essa é a quarta sutura que faço num cara chamado

Ovídeo. Que tipo de nome é Ovídeo? Fico pensando no que se passava na mente de uma mãe pra batizar alguém com esse nome...

— Parabéns, é um menino!— Ah, meu Deus! Que lindo é o meu filho! Já tenho

um nome perfeito pra ele... Ovídeo.

...

Hum... Acho que Ovídeo não foi muito popular no colégio.

Rachaduras

~ 01 ~

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Pelo menos tem algo de bom em passar metade da minha vida nesse hospital suturando, receitando, enfaixando e examinando. Posso pensar o que quiser dos meus pacientes. Mas Ovídeo parece ser uma boa pessoa, mesmo desmaiado, cortado e sangrando. Foi uma queda e tanto! De acordo com a ficha preenchida pela esposa, ele caiu da varanda de casa, de aproximadamente seis metros de altura e isso poderia matar alguém, porém o dito cujo sofreu apenas quatro cortes. Exatamente quatro.

Pessoas normais chamariam isso de “sinal dos céus”, “sorte” ou “milagre”, mas pra mim tudo não passa de matemática e probabilidade. Ninguém pode negar que se Ovídeo caísse de cabeça de uma altura dessas, a queda seria mortal. Porém ele caiu, não com o corpo em linha reta como uma vareta, mas sim na horizontal e isso fez com que o impacto se distribuísse através do seu corpo. Além disso, outros fatores favoreceram para que ele ainda esteja vivo, como: O chão não era denso o suficiente para uma fratura grave e a queda não foi direta, visto que Ovídeo se prendeu nos fios do poste de energia antes de atingir o solo.

E com isso, surgem dúvidas em minha mente, que causam rachaduras naquilo em que acredito. Como por exemplo: Mesmo que o impacto da queda de Ovídeo tenha sido na areia molhada, foi a uma altura de seis metros! Claro que ele poderia ter quebrado metade dos ossos. Ou então... O que fez com que justo 20 minutos antes dele cair, a companhia de luz desligasse a energia de todo o quarteirão para fazer testes nas linhas e cabos, fazendo com que Ovídeo não tivesse sido eletrocutado e tido uma morte horrível e, além disso, ter ajudado para que ele não caísse com mais impacto no chão?

São perguntas que me faço todos os dias. Razão ou sorte? Matemática ou sinal divino? Coincidência ou

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milagre? Acho que, o que realmente tenho que concordar, é que nem uma verdade é confiável. Mesmo não acreditando em milagres, pra mim é um fato que toda verdade é questionável.

Mas pensamentos filosóficos não vão me tirar dessa rotina, então tudo que posso fazer é pensar em nomes engraçados que rimam com Ovídeo. E uma coisa é certa, se ele era famoso por seu nome peculiar, quando voltar para casa vai ter outros motivos para se gabar: “Ovídeo... Mais um que engana a morte.”. E uma coisa eu digo... Pela quantidade de pessoas que morrem todos os dias nesse hospital, tenho certeza que a morte não gosta de ser enganada.

Covardia. De novo essa palavra.

Ela tem muitos significados, mas acho que o que mais se aplica a mim é “falta de confiança em si mesmo” ou “desistir no meio do caminho”. Não que eu seja um completo fracasso ou que não realizei meus sonhos, mas é que não vejo sentido em algumas coisas e, na maioria das vezes, tenho medo delas.

Por exemplo: Um pai antes de morrer faz de tudo para o seu filho seguir uma profissão decente, para ele ser, como a sociedade diz, “alguém na vida”. Esse filho passa metade da sua vida estudando, investindo um dinheiro que não tem em busca de mais estudos e quando finalmente chega ao seu objetivo, se dá conta de que aquilo nunca foi o que ele realmente queria fazer. Eu fico pensando... Se for pra largar as coisas e seguir o seu sonho, por que não fazer isso agora? Por que esperar anos e anos que nunca mais voltarão? Só para agradar a família? Para ser bem aceito na sociedade? Tenho certeza de que todos sabem a resposta para essas perguntas.

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MEDO.

Essa é a resposta que todos temem em assumir. Medo do novo... Medo do fracasso... Medo do sucesso. Então apenas por medo as pessoas deixam seus sonhos no fundo de uma gaveta de meias e passam a seguir o fluxo que é mais bem aceito.

Aí vem à pergunta de um milhão de dólares: Por que alguém como eu, um doutor, clínico e blablabla, faz tantas perguntas chatas e se questiona tanto da vida? Para a maioria das pessoas eu seria alguém que conseguiu conquistar tudo que sempre sonhei, seria alguém que venceu na vida, seria um cara de sorte. O que elas não sabem é que ser clínico geral de um hospital decadente não é uma coisa legal.

Pois bem, acho que todos nós temos um “demônio particular” que vai nos acompanhar até o fim de nossa existência, então o jeito é aprender a conviver com ele. Afinal, se alguém pode se acostumar a ser chamado de Ovídeo para o resto da vida, meus problemas não parecem tão ruins assim, parecem?

Trabalho na clínica geral de um hospital. Não é nem um sonho realizado, mas acho que já me acostumei com essa rotina... Trabalho 36 horas e folgo dois dias, mas hoje foi diferente. Um cara caiu da varanda de casa e chegou ao hospital desmaiado e ao que tudo indicava ele estava bem, tirando três cortes nas costas e no braço. Eu era o único médico disponível e como foram apenas cortes superficiais, executei os procedimentos necessários. Claro que Ovídeo não sairá tão cedo daqui, afinal será preciso fazer alguns exames para saber se nem um órgão foi afetado, porém, meu palpite é que hoje mesmo ele saia daqui. Por isso, nunca confiei muito nesse lugar, afinal... Como numa emergência

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como essa não tinha nenhum profissional disponível? Mas essa é apenas a minha opinião.

A grande vantagem de se trabalhar na Vila Mariana em São Paulo, é que tem vários cafés perto da clínica. Então, nas pausas, eu passo lá de vez em quando, assim não tenho que beber o piche do hospital que chamam de café. O lugar que mais gosto de comer e passar o tempo é o café Boris, mas infelizmente a placa com o aviso de “fechado para reforma” ainda está pendurado na entrada. Como não quero experimentar outro bar ou alguma lanchonete, decidi ficar no hospital durante minha pausa e tomar a lama de sempre. Rotina.

— Oi Milo! – Disse Rosalie, a recepcionista, bem atrás da minha nuca. Isso faz com que eu entorne um pouco de café nos meus tênis brancos... Ou melhor, amarelados e surrados.

— Rose, já disse pra não chegar assim! Você sabe que a nuca é meu ponto fraco. Olha só o que você fez com meus tênis.

— Não exagere tanto! Eu te fiz um favor, isso sim. Olha o estado que estão seus tênis, quer ter a atenção chamada de novo? – Diz Rosalie em tom brincalhão e com um sorriso discreto nos lábios. — Vamos Milo! Isso aqui é um hospital, você não pode vir trabalhar com os tênis de Don Pedro II.

— E então a melhor opção foi sujá-lo mais ainda? – Agora quem tem o tom brincalhão sou eu.

— Acho que essa era a única opção, concorda?— Então o mínimo que você me deve são tênis novos!

– Digo com voz sedutora.— Eu sou a recepcionista, você que é o doutor! Quem

devia te pedir sapatos novos sou eu. – Rosalie sorri e eu concordo com a cabeça.

— E o cara que caiu do prédio? Já acordou? – Ela agora

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tem uma expressão curiosa.— Não foi de um prédio! Foi da varanda da casa...

Espera! Como é que você sabe disso? – Pergunto com surpresa, afinal nunca percebi os funcionários comentando da vida dos pacientes. Pelo menos não em voz alta.

— Todo mundo já sabe. Até as faxineiras! Como pode alguém sair de uma dessas com apenas um corte superficial? Não acha incrível?

— Hey, espera aí! Não foi apenas um corte superficial. Acabei de suturar quatro cortes bem feios no Ovíd... No paciente.

— Mesmo assim, Milo! Ele caiu de uma altura de 20 metros e continua vivo. Isso não é impressionante? Com certeza não era a hora dele.

— O quê? 20 metros? De onde tirou isso? – Digo gargalhando, ainda surpreso. — Rose, você deveria analisar melhor suas fontes de informação.

— Está bem, que seja! Olha, arrume logo tênis novos, ok? Compre sapatos como uma pessoa normal! E corte esse cabelo senão vão pensar que quem caiu do prédio foi você. – Disse Rosalie, indo para sua mesa.

— Da varanda! – Grito sorrindo, pois Rose já esta longe.

— Que seja! – Ela me dá às costas e segue em direção à sua mesa, talvez a espera de uma nova fofoca.

Olho o relógio. “Hora de voltar para meus pacientes.”Estou no corredor principal e minha sala é a última.

Qual será o nome do próximo? O que será que ele tem? Febre alta? Coceira? Será que pisou em algum parafuso e vai precisar de pontos? São tantas histórias que vejo aqui que poderia escrever um livro. Teve, por exemplo, o garoto que entrou junto com a mãe e disse que estava com dificuldade para urinar.

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— É que eu estou com problema pra urinar, sabe? Arde um pouco!

— Acontece só de manhã? Ou todas às vezes que você vai ao banheiro?

— Todas às vezes. E está saindo um tipo de pus dele... Tipo uma gosma amarela. – Disse o garoto assustado e constrangido. Meu palpite era que ele estava com mais medo da mãe do que do problema em si.

— Acha que pode ser alguma infecção urinária, doutor? Ele bebe tanta água! – Disse a mãe preocupada.

— Bem, saberemos com o exame. Vou receitar um de urina. Se der infecção, iremos tratar.

A mãe e o filho se levantam e seguem em direção à porta.

— Senhora! Posso ter uma palavrinha particular com seu filho? Só para informá-lo de seus hábitos alimentares...

Que desculpa esfarrapada! Mas para minha surpresa ela acabou concordando e assim que a mãe fechou a porta, eu olhei para o garoto e disse:

— Cara! Você transou sem camisinha? Sabe como isso é perigoso?

— Por favor, não conte a ela! Se ela souber, me mata.— Olha só sua ficha. – Eu digo ao pegar a ficha do

garoto. — 14 anos? Sua mãe parece bem religiosa... Imagina só o que ela faria se soubesse que o filhinho anda afogando o ganso sem camisinha! – Claro que eu nunca poderia falar assim com um paciente, o treinamento diz para sermos educados e compreensivos, mas eu precisava me divertir um pouco... E fazer um pouco de terrorismo para ver se ele não cometia esse tipo de erro de novo.

— Por favor, ela me mata. Foi só uma vez, não sabia que teria problema. – O garoto estava prestes a chorar.

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— Vou te receitar uns antibióticos. São para Gonorreia. – Entreguei o papel da receita para o garoto. — Um comprimido de oito em oito horas por sete dias, entendeu? Pegue as pílulas na farmácia do hospital. Diga a sua mãe que são vitaminas, sei lá...

— Valeu mesmo doutor! – O garoto suspirou de alívio. – Eu juro por Deus que nunca mais vou transar.

— É claro que não... – Enfiei a mão no bolso do garoto e coloquei alguns preservativos dentro.

— Pergunte a sua mãe como se usa uma dessas. – Eu disse com o rosto sério, mas por dentro estava gargalhando.

Eu rio ao me lembrar da cara dele e me sento à mesa. Que venha o próximo paciente.

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A Paciente Risonha

~ 02 ~

Um monte de fichas de pacientes me esperam sobre a mesa... E eu nunca gostei da minha sala, ela é pequena. Aciono o meu metrônomo e ouço o TIC

TAC que sempre me deixa relaxado, enquanto dou uma olhada nos prontuários.

“Vamos lá, daqui a três horas você vai pra casa e terá dois dias para hibernar no sofá.” – Então chamo o primeiro nome.

— Anna Paranhos!

Espero... Espero... E nada.

— Anna Paranhos! – Tempo... Tempo...Fecho o metrônomo e grito o nome mais uma vez.— Anna?!— Oiii! Sou eu! – Alguém grita.Então uma garota aparece na porta da sala, suspirando

como se tivesse corrido uma maratona. Ela entra e reparo que está com a mão tapando o ouvido direito quando se senta na cadeira em frente à minha mesa.

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— Anna?! Quantos anos você tem?— O que? – Pergunta a garota ainda cobrindo a orelha

com a mão.— Qual sua idade!— Aah! Tenho 20.— E qual o problema, Anna? – Indago, olhando seu

rosto. Maquiagem carregada nos olhos, cabelos escuros e compridos, pele pálida.

— Esse é o problema! – Ela tira a mão da orelha.“Mais uma!” – Observo a ponta de um cotonete dentro

de seu ouvido.— Ui! Você fez isso? – Tento não assustar a garota e

mantenho uma expressão calma, mas ela não parece muito assustada. Na verdade começa a rir ao se explicar.

— Eu estava bem no meio de uma apresentação quando senti uma coceira no ouvido. Peguei um desses e comecei a coçar. Daí que me assustei com alguma coisa e... Enfiei-o lá dentro. Nossa como doeu! – A garota dá uma gargalhada. — E ainda está doendo!

Ela ri como se dez pessoas estivessem fazendo cócegas em sua barriga. – “Ou ela é bem humorada ou está chapada...”

— Tá legal. Sente-se na maca. – Digo sorrindo. Uma garota gargalhando daquele jeito com um cotonete dentro do ouvido é algo engraçado.

Eu higienizo a orelha e agarro o cotonete com uma pinça.

— Agora vou puxar devagar, pode doer um pouco.— Já está doendo. – Ela ri, tentando não se mover.Eu puxo o cotonete dando um leve giro com a pinça

e ele vai saindo. Neste momento Anna dá um gemidinho de dor que mais parece um miado de filhote de gato abandonado na chuva.

— Pronto, ele saiu. – Pego meu otoscópio para

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examinar a parte interna do ouvido e pela posição que estou perante ela, tenho uma boa visão de seus seios. “Que profissionalismo olhar os peitos da paciente em vez de seu ouvido”. Desvio os olhos de seu busto e me concentro em sua orelha.

— E então, cara? Tá muito feia a coisa? – Ela pergunta com uma expressão de dúvida no rosto.

— Não dá pra ver direito, tem muito sangue. Vou te passar um remédio para usar em gotas...

— Que droga! Hoje era o dia da minha audição. Esperei por isso há semanas. – A garota mudou a expressão radicalmente e agora eu podia apostar que se não fizesse algo, ela ia acabar chorando.

— Quando finalmente consigo uma oportunidade de fazer algo de verdade... – Diz a garota. Eu estava certo! Ela explodiu em choro e prantos. — Justo quando consigo uma chance dessas, eu enfio um maldito cotonete na porcaria do meu ouvido.

O choro dela é agudo e estranho. Fez-me lembrar de gritos de gatos quando estão cruzando de madrugada. Tento afastar esse pensamento da minha mente para não começar a rir na frente dela, mas já é tarde demais e começo a gargalhar.

— Por que você está rindo? – Ou ela estava mesmo chapada, ou se deu conta do quanto à situação era engraçada. Então, sem mais nem menos, com os olhos molhados e a maquiagem borrada, voltou a se entregar ao riso.

— Posso ficar com o cotonete? – Anna pergunta... E isso foi como um gatilho para as gargalhadas retornarem. Não é algo que controlo... Simplesmente é uma crise de riso. Claro que é comum as pessoas pedirem os objetos de seus acidentes pessoais para guardar de recordação, mas dessa vez é diferente.

Eu não consigo... Não consigo controlar as gargalhadas.

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É como a vez em que fui a um velório de um amigo do meu pai e meu irmão não parava de fazer piadas das sobrancelhas do falecido. Eu era garoto, então não conseguia segurar as risadas. Fico pensando em quem nunca teve vontade de rir nas horas erradas. Parece até que é uma brincadeira do nosso corpo para nos sacanear.

— Claro que pode. – Digo sorrindo e finalmente consigo aliviar a gargalhada. — Você pode fazer um chaveiro com ele se quiser.

— Claro! É uma ótima ideia! – Disse Anna sorridente, descendo da maca e secando as lágrimas.

Depois de receitar o remédio, a garota foi embora às pressas, porém o cheiro do seu perfume permaneceu na minha sala. Um cheiro doce e um tanto amadeirado. Aquele cheiro... Lembrava-me alguma coisa.

Mas veja só! Ainda há muitas pessoas para atender. “Vamos Milo, daqui a pouco chega o outro clínico e você poderá voltar para a sua caverna descansar.” Penso. “Não vejo à hora de chegar em casa...”

— Roberto Lima! – “Tirar os tênis que agora estão totalmente manchados de café...”

— E então, Roberto? O que está sentindo? − “Ligar a TV e cair no sofá...”

— Estou com um caroço muito estranho nas nádegas doutor! – “E então dormir com a TV ligada. Ah... Isso me faz sonhar!”

•••

“Até daqui a dois dias.” Finalmente consigo sair daquele hospital.

Em pouco tempo estou em casa. Subo as escadas do meu prédio e por um momento me lembro do dia em que

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meu irmão esteve aqui pela primeira vez.

— Milo... Está brincando comigo, não? Está me dizendo que esse é o lugar que você escolheu pra morar? – Disse ele, seus olhos arregalados como os de um garoto quando assiste a um filme pornô pela primeira vez.

— Por que não? É confortável e é perto do hospital. Posso até ir trabalhar andando se estiver inspirado. – Eu disse com um sorriso falso.

— Você é um doutor, Milo. Você não passou metade de sua vida estudando pra ser alguém na vida, para então, decidir morar num lugar como esse!

— Espera aí, rapaz! Eu não sou um “Doutor”, sou apenas um clínico! E mesmo que fosse o cirurgião chefe de algum hospital da mais alta classe como você, não teria motivos para fingir ser feliz morando num lugar onde todas as casinhas são enfileiradas e rodeadas por uma cerca branca! – Disse, tentando argumentar com meu irmão. Mas argumentar com ele é o mesmo que um leigo em xadrez topar um desafio contra um profissional.

— Não é falsidade querer o melhor pra você! Quando o pai estava vivo, ele tinha fé em você tanto quanto tinha em mim. Ele tinha esperanças. Meu Deus, como tinha! Ele se dobrou em dois para poder pagar seus estudos e mesmo assim você...

— Eu sou muito grato a tudo o que ele fez! Mas o pai nunca perguntou se era realmente isso o que eu queria. Nunca perguntou o que eu pensava, ou o que eu esperava da vida. – Quando percebi que estava elevando a voz, me segurei e voltei ao tom normal. — Não me venha falar que não sou grato por tudo o que ele sacrificou por mim, porque tudo o que ele queria de mim eu fiz. Fiz tudo quieto, assim como ele desejava.

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— Você acha mesmo que era a vontade dele que você morasse no apartamento da Bruxa de Blair? – Odeio quando ele é irônico. – Acha que ele apoiaria essa sua decisão?

— Mas o que é que você quer de mim, Danilo? Você construiu sua vida, casou, fez questão de morar em outra cidade, tem a “família perfeita”. O que você quer de mim?

— Quero que venha morar conosco. Você poderia exercer a profissão no Hospital Santa Tereza. Estou cansado de ver você aqui sozinho, vivendo como um vampiro. A nossa casa é grande. Poderíamos viver uma vida diferente... Poderíamos voltar a ser uma família.

Como forma de acabar com aquela discussão, eu disse com a voz mais calma possível:

— Acho que você nunca vai entender ou aceitar o que eu realmente quero.

— Como posso aceitar e entender algo que você nunca me disse?!

Xeque mate! Ele ganhou mais uma vez a discussão. Fico quieto e pensativo enquanto ele segue para a porta.

— Podemos ser gêmeos, mas ainda assim somos muito diferentes. – Disse ele com um tom de decepção na voz. — Eu te amo, irmão. Não importam quais sejam as suas escolhas. As portas da nossa casa sempre vão estar abertas! Você tem 32 anos, não é mais criança. – Ele deu um beijo no meu rosto e foi embora.

“Finalmente em casa!” Tiro os sapatos e caio no sofá. Ligo a TV. A preguiça de zapear os canais toma conta do meu corpo, então decido que a melhor opção é desligar a televisão e dormir ali mesmo. Fecho os olhos e sinto meu corpo relaxar. Esse é o momento do dia em que mais gosto! Pouco antes de pegar no sono, é a hora em que faço as perguntas que pessoas como meu irmão não entendem,

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como: “Qual é a única coisa de que temos certeza? Se todas as verdades são questionáveis, então não existe uma verdade suprema?”

Aquela garota...“Qual o sentido das pessoas acumularem dinheiro?”Aquele sorriso...“Não será a morte a única verdade incontestável?”Aquele perfume... “Será que as pessoas que passam uma vida inteira estudando

e acumulando dinheiro, tem consciência de que a morte é certa?”Anna...