Amostra do livro "Uma janela para nove irmãos"

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Uma janela para nove irmãos i Letícia Dal-Ri Uma janela para nove irmãos

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Um

a janela para nove irmãos

iLetícia Dal-RiUma janela

para nove irmãos

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Uma janelapara nove irmãos

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iLetícia Dal-RiUma janela

para nove irmãos Livremente inspirado

em fatos reais

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Copyright © 2013 by Letícia Dal-Ri Tórgo

CAPA

Victor Burton

FOTO DA AUTORA

Alline Ourique

CADERNO DE FOTOS

Renata Santos

DIAGRAMAÇÃO

Abreu’s System

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

2013

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA ELDORADO S.A.Rua Santa Clara 50/1107 – Copacabana

Rio de Janeiro – 22041-012Tel/Fax: (21) 3208-8777

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

D136j

Dal-Ri, LetíciaUma janela para nove irmãos / Letícia Dal-Ri. – Rio de Janeiro: Eldorado,

2013. 248p. : 21 cm

ISBN 978-85-85617-14-1

1. Romance brasileiro. I. Título

CDD: 869.93

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Para Jona Jovita, ou Ione— como eu a conhecia —,

que foi embora sem me contarpessoalmente estas histórias.

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“Quisera voltar ao passado e ver minha tapera.Os campos, as enormes figueiras

com sua aconchegante beleza.Suas sombras que davam descanso e paz

aos tropeiros em sua longa jornada.Seus galhos enormes pareciam braços estendidos,

onde eu me sentia protegida e feliz.Feliz aquele que tem algo a lembrar.”

Jona Jovita Haack ou Ione Dal-Ri

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Gramado, 2013.

Agora que habito minha própria solidão, não vejo mais motivos para guardar esta história em meu porão. O que minhas paredes vivenciaram ultrapassa as rachaduras do tempo e infiltrações provocadas pela chuva. Eu fui a mo-rada de uma história que o tempo não pode apagar. Se um dia certamente irei abaixo — como todas as vizinhas desta rua —, motivada pelo turismo que hoje ganha mais méri-tos que os antigos tropeiros, não quero levar comigo a vida de uma família e transformá-la em escombros, entu-lho e poeira.

Guardo em minhas paredes, portas, janelas e cômodos cada pedaço de uma história que durou pouco mais de meio século. Eu ainda era jovem e tinha a estrutura um pouco gasta quando eles aqui me habitaram. Foi em meus aposentos que garantiram abrigo e em meu aconchego que começaram a construir uma grande família. Aos poucos vi todos crescerem e sofri com as estripulias de nove filhos. Enchi meus varais de fraldas e meus quartos de beliches e

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alegrias. Amedrontei-os com histórias de fantasmas quan-do criava canções com o vento que batia em minha janela.

O tempo passou e um a um foi ganhando seus caminhos antes reservados ao jardim e ao meu velho portão de ma-deira. Eu não era mais o limite para quem poderia con-quistar o mundo.

Passei a compartilhar minha solidão com aquela que mais me deu carinho em toda a minha existência e sofri com ela todas as doenças que lhe abatiam como tempestade. Chegou o dia em que nem eu mesma merecia sua atenção. Somente sua solidão importava. Teias invadiam meus cantos, assim como imobilizavam seu coração esperando que ela ou eu — quem desistisse primeiro — não pudesse mais respirar.

E assim permaneci. Sustentada por minhas paredes silen-ciosas, em companhia apenas daquele que foi seu maior companheiro, enquanto ela partia para seu novo lar.

Pouco mudei desde que ela se foi. Ao mesmo tempo, muita coisa mudou. Sem ela por perto, eu não era nada além do que uma simples morada para a única pessoa que agora me habitava. Passamos juntos por um grande incêndio que qua-se ocasionou meu completo fim. Logo em seguida, ele foi embora para juntar-se a Adela, quem hoje sei que ele verda-deiramente amara.

Agora estou só. Sem saber ao certo o que o destino plane-ja para mim.

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Ao cair da tarde...

e depois de cumprir com seus afazeres diários, Adela tinha por hábito subir minhas escadas, geminadas entre a sala e a cozinha, em direção ao sótão. Ela era feita de madeira de pino com 11 degraus bem estreitos que a obrigavam a su-bir com os pés levemente de lado. No telhado, uma clara-boia esverdeada iluminava meu interior.

Era lá que Adela passava todas as tardes, costurando col-chas, pijamas e vestidos para as crianças. O ano era 1953. Nessa época, eram apenas três — Charisse, Elizabeth e Brigitte —, que se revezavam dia após dia na função de carregar o pequeno baú de vime gravado com as iniciais A e M e forrado com um tecido floral na parte interna.

O sótão era minha parte mais alta e tinha o chão todo em madeira de demolição e telhas aparentes. Pequenos e gran-des nós se abriam de tempos em tempos revelando meu piso inferior. Pela claraboia, a iluminação variava de acor-do com o tempo lá fora, oscilando sempre para o mais

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escuro por conta da cerração. Como não poderia deixar de ser, era minha parte mais silenciosa e por isso levemente assustadora, apesar de inofensiva. Com o passar do tempo, meu sótão se tornaria um refúgio para Adela.

Por enquanto era apenas sua sala de costuras.

6O baú era sempre posicionado por uma das meninas ao lado da mesa que equilibrava a antiga máquina de costura. Ele era repleto de novelos, linhas, retalhos de tecidos variados e alguns poucos pedaços de papel onde Adela es-crevia suas poesias e memórias. Para as crianças, aquele pequeno baú era uma espécie de arca dos tesouros de onde saíam suas futuras roupas e abrigos para o rigoroso inver-no que teimava, ano após ano, em sempre se aproximar.

Enquanto costurava, Adela contava histórias sobre a vinda de sua família da Alemanha para o Brasil e sobre como foi difícil a adaptação deles no Sul do país. Essa era a maneira que encontrava de deixá-las quietas por alguns instantes enquanto costurava.

Ouvi muitas dessas histórias e vi Adela dedicar-se ponto a ponto ao seu talento de cerzir, moldar e vestir. E assim as tardes passavam em meu sótão, até que não houvesse mais luz suficiente para enxergar o buraco da agulha. As quatro desciam, então, de mãos dadas por minha escada, apoian-do-se umas nas outras, até que a tarde seguinte chegasse.

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E tudo se repetia da mesma forma, como em uma bela sinfonia.

Nem eu mesma sei ao certo o que era verdade e o que era ficção nas histórias que Adela contava. O que posso afir-mar é que a maneira como descrevia cada um dos aconte-cimentos prendia de tal forma a atenção de três meninas — e a minha — que elas lamentavam quando seus relatos chegavam ao fim e era hora de dormir.

Até a tarde seguinte.

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Hamburgo, 1848.

Wanda e Erhardt partiram do porto de Hamburgo, no in-terior da Alemanha, rumo a São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, com quatro filhos pequenos nos braços — dois meninos e duas meninas — e alguns poucos pertences nas mãos.

Eles trabalhavam na indústria têxtil e foram obrigados a sair do país quando uma praga dizimou os bichos-da-seda, eliminando quase por completo a produção na fábrica em que trabalhavam. Deixaram para trás tudo o que tinham na Europa e colocaram suas vidas dentro de uma caixa de madeira para atravessar o temido oceano Atlântico — suas tempestades e monstros assustadores — amontoados na terceira classe de um navio superlotado.

Para quem não tinha mais nada a perder, a possibilidade de conquistar um novo continente fazia o coração de Erhardt se encher de esperança. Tudo o que ele queria era dar uma vida melhor para os filhos e a mulher. Wanda,

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por outro lado, estava insegura e tinha medo de que algo acontecesse às crianças durante a travessia. Ela jamais ha-via saído de sua cidade, talvez nem ao menos tenha conhe-cido outro bairro, e tinha muitos receios quanto ao novo mundo que se descortinava à sua frente.

A viagem transcorreu como se esperava, com grandes tem-pestades, doentes a bordo e mortos sendo arremessados ao mar. Wanda, Erhardt e as crianças permaneceram unidos nos poucos metros quadrados que lhes eram de direito, revezando momentos entre o local de descanso e a proa do navio, de onde se via um mar sem fim. Enquanto o sol se punha, os marinheiros juntavam-se no convés para cantar, e Wanda fazia daquele momento uma maneira de contar os dias para a tão esperada hora do desembarque.

Ao ver o primeiro pedaço de terra despontar no horizon-te, eles finalmente acreditavam ter passado por mais uma provação. Mas restavam menos de dois dias de viagem até atracarem no porto de destino, quando um mal súbito acometeu Erhardt, causando-lhe fortes dores abdominais. Seguiram-se ainda febre alta e alucinações ao longo da última noite no mar, provocando choros e soluços ininter-ruptos das crianças. Ele faleceu poucas horas antes do desembarque.

Sozinha e com quatro filhos para criar, Wanda não tinha mais como voltar atrás. Sem ter tempo nem ao menos de sentir o luto pelo marido, autorizou que o corpo fosse logo enterrado em um cemitério improvisado ao lado do

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porto, para que, pouco tempo depois, ela partisse com as crianças em um veleiro rumo a Porto Alegre. Era nesse local que iria receber do governo do Brasil a escritura das terras prometidas em São Leopoldo.

Ainda na Alemanha, o governo brasileiro havia prometi-do para cada família um cavalo, dois bois, duas éguas, uma vaca, uma enxada, uma foice e uma panela de ferro. Haviam prometido também algum dinheiro até que pu-dessem viver da própria colheita, mas nenhuma das famí-lias que aqui desembarcou recebeu qualquer ajuda finan-ceira. O que os encarregados lhes diziam era que o dinheiro havia sido gasto com o transporte para que aqui chegassem e que se colocassem as contas no papel, os ale-mães estariam devendo para o Brasil. Wanda não tinha forças para contestar depois de tudo o que passara e, sem condições físicas ou emocionais de brigar por qual-quer coisa, foi obrigada a aceitar que deveria viver com o pouco que tinha.

O local reservado para eles era ermo e ficava distante de tudo. Como forma de afastar a dor e solidão que sentia, ela arregaçou as mangas e começou a arar a terra com a ajuda dos filhos, que foram obrigados a aprender desde cedo sobre a dor da morte, a perda do pai e a labuta do trabalho no campo. Wanda e os filhos não tinham outra escolha na vida senão uma única tentativa de prosperar. Cabia a ela esforçar-se a todo custo para continuar acredi-tando no que a fazia levantar-se todas as manhãs e ir dor-mir chorando todas as noites que se seguiam.

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Os anos passaram mais rápido do que sua dor e nem Wan-da nem seus filhos conseguiam se adaptar à solidão do campo. Enquanto os via crescer, ela sofria calada por ter lhes dado um destino sem volta. Culpava-se ainda pela morte de Erhardt, que pagou com a vida o desejo de pro-porcionar um futuro melhor para sua família.

Pouco tempo depois de seus dois filhos homens completa-rem a maioridade, em 1864, foi declarada a Guerra do Paraguai e ambos foram convocados a lutar. Novamente, Wanda se via em lágrimas no píer, lado a lado com o ma-rido enterrado, desta vez despedindo-se dos filhos com a sensação de que eles jamais iriam voltar. Como previa, Wanda nunca mais teve notícias deles.

Em meio à sua dor, começou a ter visões e delírios, falan-do sozinha pelos campos como se visse o marido e os fi-lhos no pasto ou dizendo para as meninas que se cavassem a terra com muita força encontrariam ali o mar para vol-tarem juntas para a Alemanha. Corria pelos campos sem rumo, fazendo com que as meninas a encontrassem a qui-lômetros de distância em cima de grandes árvores, escon-dida e toda machucada.

Em uma madrugada de chuva forte, Wanda deixou as fi-lhas ainda dormindo e partiu em direção ao píer com uma pequena muda de roupas em uma sacola. As roupas foram encontradas no pasto dias depois. Dela, assim como dos filhos, ninguém jamais teve notícias.

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6Charisse, Elizabeth e Brigitte olham assustadas para a fotografia em preto e branco de Wanda e Erhardt, tirada quando ainda viviam na Alemanha. A foto é a única lem-brança que Adela tem da bisavó, a qual jamais conheceu.

Enquanto as meninas observam a foto curiosas, ela come-ça a recolher os materiais de costura para dentro do baú. Mais um quadrado para a colcha de crochê está pronto e é hora de colocar as três na cama. Adela não se incomoda em contar histórias que irão deixá-las com medo. Posso até mesmo acreditar que ela sente um certo prazer em amedrontá-las com as histórias de sua família. Mais uma vez, descem juntas por minhas escadas.

No escuro de meu quarto, ouvindo as tábuas estalarem com o frio que corre lá fora, elas sonham com a tataravó Wanda correndo pelos campos e subindo em grandes ár-vores em meio à chuva forte. Minhas noites são embaladas com o despertar assustado de cada uma delas e o movi-mento de cobrir o rosto com a colcha costurada pela mãe.

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É assim que tento resgatar na memória o passado

que vivi. Ainda estou aqui, imponente ao tempo e aos fa-tos, sem saber ao certo até quando, mostrando-me a única fortaleza capaz de guardar em minha base de pedras a ver-dadeira história que aqui aconteceu. Eu ainda pertenço à família, mas a família já não pertence mais a mim. Adela não ocupa mais o meu sótão, e as crianças não se amon-toam nos beliches de meus quartos.

Tudo o que conto aqui foi visto, ouvido e vivenciado por minhas paredes. Em meio a poucas casas existentes na pe-quena Gramado de 1952, fui a escolhida para acolher uma família. É a história dessa família que pretendo contar antes de virar poeira ou um grande empreendimento imo-biliário.

Antes de Massimo e Adela, existiram outros personagens em meu interior. Por mais que ninguém imagine, já havia uma história impressa em minhas paredes muito antes dessa chegada. Mas foi a partir dela que fui verdadeiramente casa.

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Diferente do que muitos pensam, casas não são feitas ape-nas para abrigar pessoas e mobília. Elas vivem verdadeira-mente suas histórias. E nem mesmo se tudo for abaixo, o que ocorre com homens e mulheres que desta vida não passam, o lugar onde se constrói uma casa jamais deixa de existir. Casas são a materialização mais pura da memória.

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Não há mais do que pão e café

para dar de comer às crianças. Adela sente-se culpada ao vê-las implorar por comida. Como faria diversas outras vezes pela mesma razão, leva Charisse, Elizabeth, Brigitte e Rubia ao meu sótão e conta novas histórias para distraí-las enquanto costura. Um ano já se passou, mais uma criança surgiu, e o que antes era uma maneira de deixá-las quietas, agora é uma forma de enganar a fome pela falta de comida em minha despensa.

Por sorte, em pouco tempo elas irão esquecer o vazio no estômago e estarão na cama, cobrindo o rosto com medo de meus fantasmas. Enquanto o sono não chega, acompa-nham com os olhos o cerzir de Adela e com os ouvidos as histórias que a mãe conta.

6O casamento dos pais de Adela não saiu bem como o pla-nejado. Pouco antes de entrar na pequena igreja de Novo

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Hamburgo e oficializar os votos do matrimônio, Magna descobriu que Siegfried já havia se casado com outra mu-lher antes de conhecê-la. Ele viveu durante quatro anos com Sila, com quem teve uma filha. Logo após dar à luz sua primeira menina, Sila teve uma forte hemorragia, vin-do a falecer em seguida. Siegfried ainda tentou criar a menina sozinho, mas acabou entregando-a para a sogra, de quem jamais voltou a ter notícias.

Saber desta história a caminho da igreja fez com que Mag-na desejasse mudar seu destino, mas, assim como aconte-ceu com sua avó, Wanda, era tarde demais para voltar atrás. Naquela época não havia muitas escolhas para as mulheres. Assim, ela casou-se com Siegfried mesmo saben-do que ele não era mais o príncipe que imaginara. Depois da cerimônia, mudaram-se para Várzea Grande, onde vi-veram juntos, compartilhando uma tentativa de felicidade infundada, por 36 anos. Tiveram oito filhos, Adela entre eles.

Magna era uma típica sonhadora e para cada filho esco-lheu um nome inspirado em seu significado. Adela, por exemplo, quer dizer “nobre”. Talvez daí venha toda a ins-piração de Adela ao batizar cada uma de suas filhas tam-bém pensando no significado que cada nome escolhido carrega.

A casa onde Magna e Siegfried viviam ficava localizada em uma área afastada e era comum ciganos montarem acampamentos nas proximidades. Quando Adela ainda

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era criança, um pouco mais velha que Charisse, adorava observá-los de longe, aprendendo pouco a pouco sobre sua cultura, seus hábitos e costumes. Em pouco tempo a menina já estava passando as tardes dentro do acampa-mento, divertindo-se com as mulheres, que a adotaram como filha.

Foi com os ciganos que aprendeu que todas as pessoas já nascem com um destino traçado, ensinamento que levaria como lição para toda a vida e que repetiria muitas vezes para as filhas. Sua música envolvente tocada ao som de violinos e as mulheres sempre vestidas com roupas colori-das, os cabelos presos em grandes tranças negras e as saias sobrepostas encantavam a menina.

Diferente da filha, Magna não acreditava que o seu desti-no já estava traçado, e quanto mais infeliz se sentia ao lado de Siegfried, menos atenção dava às crianças. Não se pre-ocupava quando se afastavam para brincar na mata fecha-da ou mesmo sobre os trilhos na estação, permitindo que corressem grandes perigos. Por pouco uma das meninas não foi pega pelo trem, quando seu sapato ficou preso entre os dormentes de madeira. Foi Adela quem a tirou de lá a tempo de a locomotiva passar.

Ao chegar em casa, ainda assustada com o ocorrido, Adela brigou com a mãe, assumindo a responsabilidade de filha mais velha e chamando Magna de irresponsável. Mesmo depois de apanhar muito, prometeu a si mesma jamais dei-xar seus filhos de lado no futuro.

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Ainda sem entender muito do que a mãe diz, as meninas se surpreendem com os relatos de Adela e se olham assusta-das enquanto ela continua a contar sua história. Minhas madeiras rangem com o frio, como se participassem de alguma maneira dos relatos de Adela em meu sótão.

Mesmo com o passar dos anos e os filhos crescendo, Mag-na ainda sonhava com um destino diferente para sua pró-pria vida. Assim, quando o circo chegou pela primeira vez em Várzea Grande, ela levou todas as crianças para assistir a uma apresentação. Nas apresentações seguintes, come-çou a ir sozinha, quase que escondida de Siegfried, que estava sempre mais atento aos negócios do que à própria família. Para ela, o circo era um mundo secreto de sonhos e fantasias onde tudo seria possível.

Quando a grande tenda foi desmontada e os artistas come-çaram a se movimentar para ir embora, Magna arrumou suas malas e decidiu ir junto com a comitiva. Assim que Siegfried encontrou o bilhete de despedida que ela havia deixado sobre a cômoda, colocou todas as crianças na car-roça e levou-as correndo para a casa da tia. Depois, foi a cavalo atrás do circo, que já estava a alguns quilômetros de distância, e resgatou a esposa na boleia de um caminhão apinhado de artistas. Diferente do que se possa imaginar, essa não era uma forma de mostrar seu amor por Wanda, mas sim uma necessidade de recuperar a honra — e a es-posa — em um tempo onde situações como essa não eram permitidas. No fundo, tanto Siegfried quanto Adela que-riam que ela realmente tivesse partido.

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Por mais que ele tenha conseguido trazer a esposa de volta para casa, a relação de Wanda com os filhos jamais voltou a ser o que era. Eles acreditavam que a qualquer momento a mãe poderia abandoná-los novamente, povoando seus pe-sadelos com Wanda partindo todas as noites. Felizmente, isso jamais aconteceu e Magna se acostumou com o seu destino.

Mas a história dos pais de Adela não termina por aí. Pouco antes de morrer, Siegfried pediu a Magna que realizasse seu último desejo: ser enterrado ao lado de Sila, a primeira esposa. A promessa foi cumprida, mas Magna acabou se transformando em uma pessoa solitária e rancorosa até o dia de sua morte. Por ironia do destino, Magna acabou sendo enterrada no mesmo cemitério em Várzea Grande, próximo aos túmulos de Siegfried e Sila. Os amigos que fez no circo, e que coincidentemente estavam de volta à cidade, foram lá para uma animada despedida.

6Em meu sótão, depois de mais uma história, Adela prome-te um dia levar Charisse, Elizabeth, Brigitte e Rubia até Várzea Grande para conhecerem o local onde a avó mora-va, mas lembra que já está tarde e é hora de ir para a cama.

Para sua sorte, as crianças esqueceram a fome que sentiam. Meus degraus marcam os pequenos passos das crianças até chegarem ao quarto onde certamente irão sonhar essa noi-te com ciganos, com o circo e novamente com a morte, um dos assuntos prediletos de Adela.

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Letícia Dal-Ri nasceu em São Paulo, em 1980. Formada em Publicidade pela PUC–Rio, é escritora e produtora cultural, sócia na Da Gaveta Produções, no Rio de Janeiro. Uma janela para nove irmãos é seu romance de estreia.

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“Não há mais do que pão e café para dar de comer às crianças. Adela sente-se culpada ao vê-las implorar

por comida. Como faria diversas outras vezes pela mesma razão, leva Charisse, Elizabeth, Brigitte

e Rubia ao meu sótão e conta novas histórias para distraí-las enquanto costura. Um ano já se passou,

mais uma criança surgiu, e o que antes era uma maneira de deixá-las quietas, agora é uma forma de enganar a fome pela falta de comida em minha despensa.

Por sorte, em pouco tempo elas irão esquecer o vazio no estômago e estarão na cama, cobrindo o rosto com medo de meus fantasmas. Enquanto o sono não chega,

acompanham com os olhos o cerzir de Adela e com os ouvidos as histórias que a mãe conta.”