Ana Carolina Rubini Trovao - TCC...

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Ana Carolina Rubini Trovao ISSO NAO E FILME DE ACAO Trabalho Monografico apresentado ao Curso de Pas GraduBrr:io em Cinema da Faculdade de C~ncias Sociais Aplicadas da Universidade Tuluti do Parana, como requisito parcial para a oblen~o do titulo de Especialisla. Orfentadora: Professora Oculara 'Sandra Fischer ". <,"<f.' CURITIBA 2007

Transcript of Ana Carolina Rubini Trovao - TCC...

Ana Carolina Rubini Trovao

ISSO NAO E FILME DE ACAO

Trabalho Monografico apresentado aoCurso de Pas GraduBrr:io em Cinema daFaculdade de C~ncias Sociais Aplicadas daUniversidade Tuluti do Parana, comorequisito parcial para a oblen~o do titulode Especialisla.Orfentadora: Professora Oculara 'SandraFischer

".<,"<f.' CURITIBA

2007

SUMARIO

Resumo .. p.01

Introdul'ao .... p.02

I.. p.12

II.. p.20

III.. p.2B

IV .. p.34

Ficha Tecnica .. p.36

Referencias BibHogratlcas .. p.37

RESUMO

o documentario naD diz respeito diretamente a realidade, mas a

interpreta9ao de uma realidade a partir de elementos do mundo visivel. Mesma

porque existe 0 ponto de vista do qual 0 sujeito, no caso 0 realizador, observa e que

e determinante para a leitura da realidade vislumbrada; existem as categorias de

pensamento e paradigmas vigentes que norteiam a visao dos observadores; enfim,

entre aquila que se olha e a realidade divisada, pade-se perceber uma infinidade de

filtros e meandros. Em ()nibus 174, Jose Padilha se utiliza de diferentes formas

imageticas na construt;,;ao de sua narrativa. entrecruzando imagens da camera de

contrale do tratego, da imprensa e de arquivo para nos apresentar 0 drama de

Sandro da Rosa Nascimento, dos policiais envolvidos na operayao e das viti mas de

um seqOestro que terminou se tornando uma tragedia publica na medida em que foi

televisionado. Esta pesquisa procurou compreender que reflexao a filme 6nibus 174

propoe, ou se ele, ao contnlrio, apenas prostra os espectadares diante de uma

tragedia, djante da vioh§ncia e morte sabre as quais os que assistem na~ podem

fazer nada, para modificar ou evitar que a pior acontec;a.

INTRODU<;:Ao

Durante as cursos que realizei na Especializac;ao em Cinema na

Universidaqe luiuti do Parana, foi-me solicitado que analisasse urn documentario a

partir dos criterios propostos na Disciplina de Oocumentario. Na ocasiao, ista

representou urn exercfcio bastante interessante, urna vez que me utilizei das novas

categorias analiticas que havia aprendido e daque[as que tra90 da Sociologia e, em

particular, da Sociologia da Cultura.

Essa tarefa foi proficua porque pude colocar a prava a nOyaO de que, para

ser passfve! a profunda compreensao de urna produya.o cultural, e preciso uma

analise interna a partir das caracteristicas especificas do prod uta cultural estudado, e

Dutra externa, que diz respeito as condic;Oes socia is da produc;:ao e das possiveis

discussoes sociol6gicas que podem ser realizadas a partir do objeto estudado.

Em concordancia com Bill Nichols 1, admito a documentario como sendo uma

forma de representac;:ao do mundo hist6rico moldado a partir de um registro filmico

au fotografico que discarre a respeito de um aspecto do mundo sob uma

determinada perspectiva. Diria que tal perspectiva e sempre marcada par um othar

de uma epoca, de um determinado grupo social, do campo de possibilidade no qual

a cineasta au a pesquisadar esteja atuando e de suas pr6prias vivencias.

Quero dizer com isso que, apesar de existirem aqueles que acreditam que

as sujeitos modernos sao espontaneamente realistas porque creem no que veern e

adrnitem que tudo que e passfvel de ser vista e real sabe-se, entretanto, que as

coisas que sao passlveis de serern observadas nao contern intrinsecarnente a status

da verdade. Existe a ponto de vista do qual a sujeito observa e que e determinante

para a leitura da realidade vislumbrada; existem as categorias de pensamento e

paradigmas vigentes que norteiam a visao dos observadores; enfim, entre aquila que

se olha e a realidade divisada, pode-se perceber uma infinidade de filtros e

meandros.

Portanto, e possivel afirmar que parti do pressuposto de que todo

documentario nao diz respeito diretamente a realidade, mas a uma interpretac;ao de

uma realidade a partir de elementos do mundo visivel. Por isso, num primeiro

momento, considerei a questao das vozes que regem os documentarios como a

questao fundamental daquele ensaio e procurei demonstrar como esses "pad roes

intangiveis, formados pela intenc;13.odos c6digos de urn filme~2 constroem, por meio

de estrategias organizacionais e por urna estrutura dramatica, uma serie de

asserc;oes sobre 0 mundo visivel e sobre os acontecimentos que se desencadearam

num determinado espac;o de tempo, em urn determinado lugar a partir de categorias

de pensamento vigente.

Tal afirmac;ao me leva a crer que nao e possivel urn documentario que

evidencie uma deterrninada situac;ao como uma representac;ao direta e objetiva da

realidade. Em outras palavras existe sempre, ainda que muito sutilmente, uma voz

que nao emana nem dos atores socials que participam do filme, nem das imagens

captadas, sejam elas da natureza que forem, e sim das crenC;as, das vivencias, em

outras palavras, trata-se de uma forma de compreensao da realidade mediad a pelas

ideologias, pelas grandes teorias, pelos paradigmas vigentes, por todo urn universe

de categorias de percepc;ao pertinentes aos diferentes momentos em que os

individuos vivem e interagem. Neste sentido, trata-se de uma construc;ao que se da

1 NICHOLS, BilL Introdw;io ao documentario. Tradu~o de MOnica Saddy Martins. Campinas. saoPaulo: Papirus. 2005.

entre as experi€mcias pessoais, historicas e sociais a que as cineastas e as

pesquisadores se encontram expostos. Portanto, e poss[vel afirmar a existencia de

urn posicionamento do criador a respeito da realidade que pretende divisar, da

mesma forma que e possivel dizer que nao existe urn documentario que nao tenha

uma inten9~0.

Seguindo as orientac;oes de Bill Nichols, conc1uf que havia formulado uma

primeira questa 0: nenhum documentario e efetivamente neutro.

Oentre tantos documentarios possiveis, escolhi Onibus 174 de Jose Padilha.

Trata-se de uma reflexao filmica a respeito do drama que manteve os muitos

telespectadores brasileiros atentos par varias horas. Nele vemos a tragico sequestra

do Onibus 174, a morte de urna das refens, Geisa Gonc;alves, e a do sequestrador

Sandra do Nascimento.

Escolhi este documentario par dais motivos em especial. Em primeiro lugar,

pela utllizac;ao de varias vozes que, a primeira vista, parecem dispares, mas que

mostraram confluir para urn mesmo ponto. Trata-se, portanto, de uma estrategia

narrativa e de uma estrutura dramatica que convergem para a ideia de que todos as

envolvidos sao vitimas das mazelas sociais que, muitas vezes, desejamos ignorar.

Em segundo lugar, porque Jose Padilha se utiliza de diferentes formas

imageticas na construc;ao de sua narrativa, entrecruzando imagens da camera de

contrale do tratego, da imprensa e de arquivo para nos apresentar a drama de

Sandra da Rosa Nascimento, dos policiais envolvidos na operac;ao e das vitimas do

seqOestro.

Entretanto, existe ainda uma outra problematica que me fez escolher a

Onibus 174 para a realizac;ao daquele primeiro estudo e que foi urn incentivo para

2 NICHOLS, Bill. Introduc;ao ao documentario. Traduyao de MOnica Saddy Martins. Campinas. Sao

retoma-Io neste momento: ela nao diz respeito as tecnicas ou esteticas utilizadas,

mas as tradiyoes e rupturas que marcaram a produyao cinematografica documental

brasileira ao longo des anos.

Em funyao deste novo questionamento procurei, na disciplina de Hist6ria do

Cinema Brasileiro, ampliar minha analise problematizando de forma rna is profunda

as vozes deste filme e, ao mesmo tempo, contextualizei tal documentario na hist6ria

do genero no Brasil.

Percebi que esta forma de trabalhar me ajudava a campor um texto que

vislumbrava 0 mesmo objeto a partir de varies angulos. Minha reflexaa me levou a

crer que assim poderia comeyar a construir meu projeto de pesquisa para 0 final do

curso. Assim, aproveitando diferentes oportunidades, me debrucei sobre a

documentario de Jose Padilha e pouco a pauco fui construindo minha analise.

Contudo, no momenta em que me dis pus, de fato, a construir 0 trabalho final,

novas questOes sugiram. Trata-se de um processo natural do desenvolvimento das

pesquisas academicas, mesmo porque, quanto mais arnadurecemos

intelectualmente e mais nos dedicamos a urn assunto, maior e a possibilidade de

percebermos novas e interessantes sutilezas que permeiam nossos objetos de

pesquisa. Assim, somos constantemente instigados por novas e desafiadoras

questoes.

Tinha, entao, um novo caminho a minha frente, uma problematica que se

apresentava era como aproveitar 0 conhecimento que ja havia introjetado, ao

mesmo tempo em que proporia uma nova questao.

Oentre as tematicas que me chamavam atenyao, escolhi trabalhar a

problematica da transformayao de urn ato violencia extrema ern espetaculo publico e

Paulo: Papirus. 200S. p.SO.

da possibilidade do narcisismo nao ser a unica forma de forc;:a motriz para as

acontecimentos desencadeados. Tinha, portanto, uma nova hip6tese a ser

verificada.

Procurei tecer considerac;:Oes a respeito da narrativa, da hist6ria apresentada

e das representac;:oes formuladas a urn s6 tempo. Para tanto, nao separei ° trabalho

em capitulos, mas em sec;:oes, porque entendo que as tematicas estao

intrinsecamente ligadas. Obviamente, ha 0 risco de tamar 0 texto fragmentado,

entretanto, existe tambem a possibilidade de demonstrar que e possivel articular

esses niveis de compreensao de forma a possibilitar urn conhecimento mais

profundo do filme.

A primeira sec;:ao trata a respeito de marcos importantes da historia do

documentarismo brasileiro. Nela, procurei discutir nao apenas a historiografia, mas

tambem tec:er alguns comentarios sobre as tradic;:oes teoricas e as rupturas que

contribuem para que nosso cinema documental seja de vanguarda. Nesta parte do

texto, procl,Jrei tambem falar a respeito das teorias que marcaram a trajetoria deste

genero em nosso pais ao mesmo tempo em que intentei falar sobre 0 cinema de

Jose Padilha e, em particular, do filme em questao.

Num segundo momento, retomei as discussOes iniciadas nos trabalhos que

apresentei durante os creditos. Em outras palavras, procurei analisar 0 filme por

meio da forma como as vozes, que nele se apresentam, se intercalam, se

sobrepoem, se complementam e se anulam tornando todos viti mas de uma violencia

em que a figura do agressor se dissolve nos dramas pessoais enos jogos de poder.

Na terceira parte deste estudo, procurei explorar como fomos, e como somas

toda vez que vemos este documentario, expostos adores alheias. Neste sentido,

tentei perceber se 0 fato do seqOestro ter sido transmitido em cadeia nacional e de

ter tido uma audi€mcia alta nao nos revelaria urn estranho padrao em que de urn

lado vern as verdadeiros narcisos e de outro, sadicos que transformaram uma serle

de atos de extrema violi3ncia em urn espetaculo publico, au se, ao nos colocarmos

diante da dos alheia, voltamos nossos olhos para nossas pr6prias questoes e, entre

elas, a do misterio da morte.

Procurei, portanto, compreender que reflexao a filme Cnibus 174 nos propOe

au se ele, ao contra rio, apenas nos prostra diante da dor dos outros, diante de

viol€mcias e mortes sobre as quais nao podemos fazer nada.

Quanto as quest6es metodologicas, em um primeiro momento realizei uma

pesquisa bibliografica que me auxiliou a compreender a inserc;;ao deste filme na

tradic;:ao cinematografica brasileira. Neste periodo, me preocupei tam bern em

construir urn referencial teorico que se prestasse as minhas necessidades.

No processo de arnadurecirnento intelectual exigido pelo trabalho, muitas

vezes nao distingui a literatura especifica do cinema daquela relacionada afotografia. Como muitos autores, compreendo que existe uma dimensao importante

que aproxima estas duas linguagens. Mesmo porque tanto as imagens fotograficas

quanta as cinematograficas, e em particular as que comp6em as documentarios, sao

tecnicas e, portanto, segundo Flusse~, possuem uma ambigOidade que se revera

nas relac;:6es que estabelecem com a mundo e com os sujeitos. A um mesmo tempo,

sao: fruto da imaginac;:ao, produto de urn equipamento e procedimentos tecnicos;

reflexo de urn referente imediato identificavel e de escolhas pessoais e subjetivas.

JFLUSSER, Vilem. Filosofia da Caixa Preta: Ensalos para uma futura filosofia da fotografia. Riode Janeiro: Relume Duman:\. 2002.

Contudo, Raymond Bellour4 afirma que no caso das imagens

cinematograficas, aquela cuja seqOencialidade reproduzem as movimentos perdidos,

de um lado existe a movimento, a presen9a: en quanta do outra, a imobilidade e uma

certa forma de aus~ncia que presumem 0 consentimento, a ilusao, uma especie de

pacta de sus pen silo da descren,a que anuta a passibitidade de participa,aa. Neste

sentido, a espectador e urn ser alienado de sua propria exist~ncia ao mesmo tempo

em que e aprisionado nas viv~ncias de outrem. Portanto, a cinema, ao duplicar a

vida na tela, mata aquela que pertence ao espectador e a foice, que a ceifa, e a

mantagem sequencial porque ela fecha as brechas par meio das quais a

participa~ao poderia se desenvolver.

Bellour afirma que as imagens seqOenciais do cinema possuem uma

velocidade que se imprime na perceP9ao. Para 0 autor, a espectador de cinema

pode pensar que um deterrninado filme e lento sem se aperceber a quanta seu olhar

e apressado pela seqOencia de imagens que Ihe e apresentada, caso contrario, nao

seria possivel contar a historia de uma vida, ou de um sequestra, em pouco rnais ou

pouco menos que duas horas. A ilusao temporal, que ali se estabelece, esconde a

fato de que nao ha tempo para se deter em uma situac;ao au outra, como 0 autor

afirma, Mdiante da tela nao sou livre para fechar as alhos, se nao abri-Ios nao

encontrarei rna is a mesma imagem."5

Por outra lado, diante da fotografia ha tempo para se fechar as athas e,

partanto, para ver e rever, para estabelecer relac;6es, para refletir. Flusser afirma que

a tempo da imagem tecnica e cidica, a que implica aceitar que nele ha sempre a

4 BEllOUR. Raymond. 0 espectador pensativo. In: Entre imagens. Campinas. sao Paulo: Papirus.1997. p.B4.5 BEllOUR. Raymond. Entre imagens. Campinas. sao Paulo: Papirus. 1997. p.84.

possibilidade do eterno retorno e que, por meio de tal procedimento, e possivel que

o sujeito se situe em relac;:ao ao que observa.

Nao obstante, 0 tempo que rege nossas vidas nao e 0 tempo magico do

eterno comec;:o, como aquele da fotografia, mas 0 tempo linear que implica urn

avanc;:o continuo em direc;:ao ao fim, a morte. Nao ha possibilidades de reviver 0

tempo que se foi. Ha de lembrar do tempo passado, de reconstituir por meio de uma

estrah~gia mental os eventos que culmina ram num grande amor ou numa decepc;:ao.

Mas e importante lembrar a carater seletivo da memoria.

Por outr~ lado, se pensarmos que 0 dacumentario e uma forma de registro,

parcial e opinativa, e ainda assim urn dacurnento de urn fato ocorrido, podemos

prop6-lo como urna forma de nos atermos sobre eventos durante os quais nao

pudemos, em func;:ao da fugacidade au da emor;ao, refletir. Contudo, nao devemos

nos esquecer das palavras de Bellour quando este nos diz que frente as imagens,

que a tela nos mostra, entramos numa especie de torpor que anula temporariamente

nossa exist~ncia e nos lan~ aquela projetada. Neste sentido, os documentarios nos

fazem viver uma experiencia em terceiro grau sobre a qual nao temas dominio

algum do curso dos acontecimentas. Portanta, se tomarmos 0 caso particular do

documentario que ora analiso, seria passivel dizer que no momento em que nos

deixamos levar pela seqOencia de fato apresentados, nos tornamos entes sem vida

assistindo a urn espetaculo do violencia e morte?

Entretanto, se as questoes te6ricas sao importantes, tambem a e a analise

sistematica do texta imaginetico. Destarte, num segundo momenta, me voitel ao

filme e a reflexaa sabre a narrativa que ele engendra. Procurei observa-Io e

decomp6-la em blocas de analise para que melhor pudesse compreender os

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elementos narrativQs as significantes ativados no discurso que 0 documentarista

construiu.

Por fim, a perspectiva que anima este estudo se fundamenta no fata de que,

embora saibamos que do final dos anos 70 ate a atualidade as estudos referentes

ao genero documental ten ham avanlfado de mane ira significativa, ha ainda a

necessidade de promover a divulga~ao e a reflexao a cerca desta tematica para que

o dOGumentarisma brasileiro possa reconquistar as salas de cinema e 0 grande

publico.

Para Eduardo Victorio Morettin6, um dos motivos que contribuiram para que

as estudiosos do cinema se dedicassem aos documentaries advem do

reconhecirnento da importancia de obras como as do cineasta Eduardo Coutinho.

Contudo, ouso dizer que nao apenas a dele, mas tambem obras, como a de Jose

Padilha entre tantos outros, tem sido de fundamental importancia para que 0

documentario brasileiro alcance a popularidade e reconhecimento de que ja gozou

no passado e que tem, por direito, hoje.

Tal como 0 autor afirma, sabemos tambem que a analise da produ~ao

documental nacional e variada, destacando-se textos onde ora predomina a analise

filmica, como 0 pioneiro trabalho de Jean-Claude Bernardet, ora a contextualiza~ao

hist6rica, ou a perspectiva autoral.

Contudo, tendo em vista a conjuntura acima descrita, meu intento e 0 de

contribuir, mesmo que minimamente, com refiexoes e questionamentos que possam

colaborar para 0 fortalecimento da importante iniciativa de pensar a respeito da

produyao nao-ficc;onal brasileira, mesmo porque pensar nossas produ~oes e pensar

6 MORETTIN, Eduardo Victoria. Oimensoes hist6ricas do documentilrio brasileiro no periodosilencioso. In: WNW.scielo.brfsdelo.php?pid=S0102-01882005000100007&script=scLpdf. Acesso:09.03.2007

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sabre nos mesrnos, sabre nosso futuro e nosso passado, possibilitando assim a

tomada de consciemcia de nossa hist6ria e identidade.

12

Segundo Amir Labaki, 0 documentario brasileiro da era mud a a Abertura, do

Cinema Novo ill Retomada 0 Brasil, produziu documentarios, em outros termos, 0

autor acredita que a produy80 naD ficcional tenha permeado teda a cinematografia

brasileira. Tanto que afirma 5er comum que cineastas brasileiros realizem, em algum

momento de suas trajet6rlas, narrativas construidas a partir de fatas pertencentes ao

mundo visivel. Em sua perspectiva, ainda que nern todo documentarista tenha feita

filmes de ficc;:ao. e passivel afirmar que uma grande parte dos diretores que se

dedicam as hist6rias imaginarias tenha realizado narrativas documentais.

Portanto, e correta pensar que a long a trajet6ria do genera em nossas

produ90es cinematograficas tenha nos possibilitado 0 amadurecimento da narrativa

e a construc;ao de particularidades que formam a identidade do documentarismo

brasileiro.

Segundo este autor, 0 nascimento do cinema brasileiro nao se deu de forma

diferente da gl!nese da linguagem em outros pontos do globo terrestre. Labaki

afirma que, em terras tupiniquins, 0 "cinema nasceu cinemat6grafo, mudo e nao-

ficcional~7.

A primeira filmagem realizada no Brasil, segundo as convenc;oes

historiograficas, como nos alerta 0 autor, ocorreu em meados de 1989 na entrada da

Baia de Guanabara. As imagens, produzidas pelo italiano Affonso Segreto, n05

fazem pensar que 0 cinema brasileiro nasceu documental, uma vez que elas

mostravam urn pequeno passeio pela aria do Rio de Janeiro. Em concordancia com

7 LABAKI, Amir. Introduc;ao ao documentario brasileiro. sao Paulo. Francis. 2006. p.17.

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estas ideias, Ana Paula Galdini afirma que das imagens, que Segreto produziu,

nasceram a cinema nacional e 0 genera documental brasileiro.

Interessante notar que, como afirma a autera, 0 destina das imagens do

"filmador" italiano, ass;m como outras produzidas na epoea, eram as mesmas: as

salas de exibi9ao. As imagens de Afonso eram exibidas pelo irmao, Paschoal

Segreto, dono de salas de cinema e teatro e um dos maio res empresarios no ramo

de entretenimento do Rio e Sao Paulo daquela epoea. 0 que chama atenc;ao no

relata de Galdini e 0 fata dela argumentar que 0 cinema brasileiro nasceu sendo

apresentado em salas de exibic;a.o, quando sabemos da crise que 0 cinema nacional

atual tern para garantir a exibiC;c30 de seus filmes na contemporaneidade.

Vale a pena ainda lembrar que esta crise se agrava quando os filmes em

questao sao documentarios. Neste sentido, parece que, apesar do cinema nacional

nascer documental, perdeu ao longo dos anos 0 potencial de eXibilfao que possuia

tornando·se, muitas vezes, quase que inacessivel ao grande publico. Contudo,

apesar do cinema documental muitas vezes ficar restrito a mostras e festivais, nao

se deve ignorar a importancia que 0 Canal Brasil possui para a divulgalf30 do

genera, nao obstante se trate de urn canal pago e, portanto, de exclusividade de

uma minoria abastada.

Entretanto, nas primeiras decadas do seculo XX, quando 0 cinema

documental nacional atingla 0 grande publico, 0 Parana marcou sua presenya no

cenano cinematogr<ifico brasileiro com os filmes realizados por Joao Batista Groff.

Groff filmou 0 mundo que 0 cercava e os acontecimentos que se sucederam

a sua volta. Destarte, filmou a pesagem de Gelulio Vargas, pelo Estado. Getulio,

naqueles anos, estava a frente da revoluy30 de 1930 e, com seu olhar, Groff

acompanhou a ascensao do politico a Presidemcia da Republica. Seguindo a

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revoIUC;:80, como afirma Labaki, de seus primeiros momentos ate a posse do

presidente no Rio de Janeiro. Groff nos mostra tanto cenas de descontraC;:8o das

tropas quanta mementos mais series e, par vezes, elaborados, como e 0 casa da

cena de abertura de Patria Redimida de 1930, em que surge na tela uma estatua

especial mente confeccionada para 0 documentario.

Neste sentido, podemos afirmar que Groff antecipou a nOyaD de que a

documentario e uma narrativa construfda e nao a representaC;:i1o crua de uma

realidade exterior aos homens como muitos documentaristas eriam.

Contudo, as produc;:oes daquela epoca naD eram compreendidas como

narrativas cinematograficas 8, sim, como registros isolados da rea1idade. Contudo, 0

desenvolvimento da tecnica e a amplia9aO destes relatos come9aram, pouco a

pouco, a incorporar elementos dramaticos as hist6rias contadas. Estas estrategias

dramaticas foram as primeiras marcas autorais do cinema documental brasileiro.

Dentre os cineastas da epoca e interessante ressaltar as trabalhos realizados por

Thomaz Reis na Comissao Rondon entre 1912 e 1914.

Importante perceber 0 quanto 0 documentarismo brasileiro se desenvolve

pr6ximo daqueJe que fora produzido mundo a fora. Notemos que, par volta de 1915,

a produ9ao brasileira come9ava a estabelecer elementos visuais e estrategias

narrativas pr6prias, em outras palavras, come9ava a esbQ(;ar uma linguagem e que,

nestes mesmos anos, dois8 dos mais importantes documentarios cI;~ssjcos foram

filmado, lan9ando as bases para uma estetica que aproximava a antropologia do

cinema9. Afirma-se que 0 mento de Nanook 10 e ter encontrado drama no cotidiano.

B Em 1914 Edward Curtis filmou In Ifle Land of the Headhunters e Robert Flaherty filmou Nanook ofthe North em 1922.9 Nesta linha de trabalho, Robert Flaherty, Dziga Verto" e Jean Rouch sAo, cada um a seu modo eem enquadramentos diferentes, expoentes do filme documentario do seculo XX.10 FlAHERTY, Robert. Nanook of the North.1922.

15

o mesma pode ser dito de filmes como No Pais das Amazonas de Silvino

Santos, realizado em 1922. A respeito desta obra, Marcia Souza 11 afirma se tratar da

expressao artfstica mais apaixonante do cicio da borracha, ao mesma tempo em que

Labaki12 chega mesma a dizer que, ao ver 0 documentario de SHvino, e inevitavel

lembrar de Robert Flaherty e que Nanook e extrema mente contempon3neo a No

Pais da Amazonas.

Se nos remetermos ao presente, 0 mesma argumento pede ser feito a

respeito do documentario Edif/cio Master (2002) de Eduardo Coutinho. Neste filme,

que intenta revelar naD as hist6rias dos moradores, mas a do predia, nos deparamos

com toda beleza e complexidade dos individuos em seU$ conflitos mais cotidianos.

Nele observa-se uma enfase na beleza do ordinaria, a ponto de atastar a narrativa

de sua ideia primeira nos lan9ando no universo da alteridade dos moradores.

Ao falar sobre Ed/lido Master, podemos perceber que 0 tascinio pel a drama

cotidiano se constitui na atualidade como uma tematica relevante, mesmo porque

ver e refletjr sabre 0 outro nos lanya sernpre ern n6s mesmos. Em certo sentido, 0

Eu e 0 Outro sao faces opostas de urna mesrna moeda que permitem a identificayao

de diferenl'.s e igualdades.

Contudo, No Pais da Amazonas e Edificio Master sao produc;;Oes que se

encontrarn separadas nao apenas tempo-espacialmente, mas que tazem parte de

tradic;;oes diferentes do cinema nao-ficcional nacional e dialogam com condic;;oes

hist6ricas e culturais distintas.

Como afirma Fernao Ramos, dentro da tradiC;;ao do cinema documental

existem momentos chave que influenciaram a hist6ria do cinema como urn todo e,

portanto, 0 fazer filmico desenvolvido no Brasil ao longo dos anos subseqOentes.

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Urn momento que revolucionou 0 dOGumentarismo foi 0 surgimenta do

Cinema Verdade. Segundo a autor, nesta estetica 0 documentario deve Wjogar limpo"

e sempre revelar a caminho percorrido na composicyao dos procedimentos

enunciativQs do discurso cinematografico. Em outras palavras, 0 Cinema Verdade

condena a encenac;:ao nao revel ada. Nao obstante, tal forma de tazer cinema

revolucionou a documentarismo tambem ao aceitar procedimentos estilisticos

proporcionados par cameras leves e ageis. Para alem dessas possibilidades, a

Cinema Verdade introduz as entrevistas e as depoimentos como recursos filmicos.

Neste sentido, como afirma Ramos, ao tamar como aspirac;:ao ser uma wmosca na

parede-, 0 cinema direto inaugura urn momenta de reflexividade construindo assim

urna etica da nao intervenyao. Entretanto, em bora tal estetica tenha surgido em urn

momenta em que se acreditava na objetividade da verdade, ela nao deixa de revelar

a visao de quem escolhe 0 que deve au nao ser filmado ou projetado. Em outras

palavras, 0 ponto de vista do autor estava impressa, mesmo que camuflado par uma

suposta neutralidade.

Nao obstante, para pensar 0 documentarismo brasileiro do seculo XX e inicio

do seculo XXI e preciso levar em consideragao nao s6 as influencias do Cinema

Verdade, mas tam bern sua estreita relagao com a Cinema Novo. Talvez por

influencia das proposiyOes humanistas e humanizantes advindas dos movimentos de

contracultura no mundo; talvez pela consolidayao da "estetica da fome- de Glauber,

o cinema brasiieiro demonstre urn grande interesse pelo rnundo dos rnarginalizados

e excluidos.

Esse interesse pelo Brasil que, dentro das concepgoes de Glauber, os

brasileiros insistem em nao ver, ou para a qual constantemente cerrarnos as athos,

11 LABAKI, Amlr. Introdu1;ao ao documentario brasileiro. sao Paulo. Francis. 2006. p.22.

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ainda hoje e uma tematica cara aos documentaristas contemporaneos. Tal afirma9ao

se evidencia nos numerosos titulos que tern 5e dedicado a problematizar a exclusao

social, a marginalidade13 e, muitas vezes, a poetica da decadencia e da moda14.

Exemplos de documentarios contemporaneos que tratam destas

problematicas sao: Noticias de urna Guerra Particular (1999) de Joao Moreira Salles

e Katia Lund, Santo Forte (1999) e Editicio Master (2002) de Eduardo Coutinho, 0

proprio doc~mentario ora analisado, Onibus 174 (2002) de Jose Padilha, A Pessoa E

Para a Que Nasee (2003) de Roberto Berliner, 0 Prisioneiro da Grade de Ferro

(2004) de Paulo Sacramento e Estarnira (2005) de Marcos Prado 15

Mas, em bora as influencias dos primeiros momentos do documentarismo

brasileiro ainda 5e fayam presentes, muito mudou desde Arraial do Cabo (1959) de

Paulo Cesar Saraceni. Nos dias atuais, nao 5e tern mais a ilusao de neutralidade. 0

que se busca, acima de tudo, no documentario experimental e evidenciar as varias

facetas que uma mesma temiltica pode assumir quando observada por ladas

diferentes qe urn mesmo prisma. Nao se trata mais de buscar verdades absalutas,

au mesma a verdade dos fatos, e sim de evidenciar a intrincada retrato das

situagoes que apresentam.

Neste sentido, nao se prendem a urn modelo ficcional calcado no que

Francisco Elinaldo Teixeira chama de "fun9ao-espetaculo", nem em um modelo

ilusionista herdado, segundo 0 autor, de uma forte influencia do griersonismo. Se

aproximam mais de urn modele sociologica, sem entretanto se deixarem seduzir

pela crenga em uma realidade bruta e dogmatica.

12 Esta cita~o se encontra em seu livro Introdut;ao ao documentario brasileiro.13 Marginalidade, tomada aqui, como aquele que se encontra a margem. Nao, necessariamente, sereferindo ao banditismo.14 Moda, em estatrstica, diz respeito ao valor que detem 0 maior numero de observa90es, ou seja, 0

valor ou valores mais freqOentes. Em outras palavras, refere-se III media, ao corriqueiro, ao cotidiano.

18

Onibus 174, como afirmei anteriormente, segue esta vertente. 0 filme e uma

investigac;ao baseada em imagens de arquivo, entrevistas e documentos oficiais,

sabre a seqOestra de urn onibus em plena zona sui do Rio de Janeiro.

o incidente, que aconteceu em 12 de junho de 2000, fai filmado e

transmitido ao vivo par quatro heras, paralisando a cotidiano carioca, mobilizando as

meies de comunicac;ao brasileiros e sendo assistido par grande audiencia. No filme,

a hist6ria do seqOestra e contada paralelamente a hist6ria de vida do seqOestrador,

intercalando imagens feitas pela televisao da ocorrencia policial, imagens de arquivo,

das cameras de controle de trans ito e entrevista com as viti mas do seqOestra.

Trata da trajet6ria de Sandro da Rosa Nascimento de menino de rua carioca

a band ida. A hist6ria de Sandro e do seqOestro dialogam, formando um discurso que

transcende a ambos e mostram ao espectador, por meio de diversas vozes que se

altern am, a complexidade da situa9ao apresentada, dos jogos de poder que ali

transcorreram, da miseria e da falta de pre para dos policiais brasileiros.

Oentrodeste contexto, 0 filme de Jose Padilha, produtor do premiado Os

Carvoeiros, de Nigel Noble, e diretor e produtar de as Boiadeiros, co-produ9ao com

a National Geographic Society, se destaca par evidenciar as nuances e contradi90es

que permeiam as assuntos e eventos que aborda.

Segundo 0 cineasta, grande parte do trabalho do documentarista acontece

antes de se come9ar a filmar. Em outros termos, ele afirma que a grande dificuldade

e convencer e ganhar a confian9a das pessoas. No caso de Onibus 174, Padilha

reconhece como seu maior desafio convencer os policiais a falar. Todavia, obter 0

material filmado sabre Sandro do Nascimento, jogando capoeira au andando nas

ruas perto da Candelaria um dia antes da chacina dos meninos, tambem se

15 Importante lembrar que Marcos Prado fOI produtor de 6nibus 174.

19

constituiria em barreiras que precisaram ser ultrapassadas para que a narrativa

pudesse contar nao apenas do sequestrador, mas tambem do homem que Sandro

era.

Neste sentido, seguindo a trad;~ao documentarista em que se ;nsere, Onibus

174 naD oferece respostas as angustias contemporaneas evidenciadas per urn

homem que vive a margem da sociedade capitalista e dos desejos que ela

engendra, mas apresenta as mazelas sociais, que via de regra queremos esquecer,

ao naD abrir mao dos minutos 16 de fama que a midia contemporanea promete.

16 No caso as qualro horas ern que esteve no ar em cadeia nacional.

20

Segundo Bill Nichols, existem quatro estilos de vozes que se destacam na

hist6ria do documentario. A primeira seria 0 discurse direto: a segunda a do cinema

direto; a terceira a do discurso direto na forma de entrevista e a quarta a auto-

refiexiva.

Acredito que esta divisao seja de carater didatico, tais como tipos ideais, elas

nao podem ser encontradas de forma pura em nenhum documentario. Nao obstante,

pode haver a predominancia de uma forma sabre as autras. Em ()nibus 174,

encontramos todos estes estilos funcionando em confluemcia e em consonancia com

as imagens apresentadas.

De certa forma, Padilha obscurece a pr6pria voz em detrimento da voz de

suas personagens, de seus entrevistados. Porem, percebo que elas, par vezes,

aparecem como uma especie de voz-de-Oeus, quando em off, e em outras como um

discurso articulado de urn ator social. Entretanto, a estrategla narrativa revela 0

posicionamento do diretor.

Como em Nanook, primeiramente somos inform ados do que estamos

prestes aver: tomamos conhecimento de que no dia doze de julho de 2000, houve

uma tentatlva frustrada de assalto a urn 6nibus que resultou em uma ocorrencia com

11 refens.

Na cena subseqOente, ve-se uma panora-mica aerea, que vai do mar para a

cidade, mostrando como no Rio de Janeiro 0 Morro e 0 Asfalto se imbricam,

tornando evidente 0 fato de que ali, periferia e centro se misturam, acentuando a

tensao entre a mise ria e a riqueza, que em outras cidades e camuflada par urn

distanciamento espac;o-temporai. Neste momento, entram as primeiras vozes a se

21

pronunciar, sao moradores de rua que narrarn as hist6rias de violemcia e

desesperanc;:a que vivem.

Ha aqui uma tensao entre a cidade apresentada e a voz daqueles a quem

esta e negada. Neste momento, percebo tambern a 5urgimento de uma primeira

tematica, que se encontra constantemente presente nas representayoes e nas teses

a respeito das favelas e dos marginais e se traduz na busca par uma estrategia de

sobrevivencia, segundo a qual estes homens e mulheres estao fad ados a uma etica

do que deve ser feita em detrimento de uma Dutra etica: a do que desejo fazer.

Apresentar diferentes narrativas, ora femininas, ora masculinas, sem mostrar

quem sao as pessoas que estao falando, despersonaliza esses individuos tarnanda

as hist6rias particulares em comuns. Temos a sensagc30 de que 0 que nos esta

sendo dito e a voz da verdade de uma forma de existencia sobre a qual pouco ou

nada sabemos. Portanto, nao 13ousado afirmar que 0 cineasta usa do discurso direto

para nos introduzir no universo de Sandro, apresentando-o para toda urna gama de

pessoas, muitas delas leigas aos univers~s de relagoes em que 0 seqOestrador se

inscrevia.

Na seqOencia, somos introduzidos no tema central do documentario, ou seja,

no que aconteceu no bairro do Jardim Botanico naquela tarde. Quem nos apresenta

13a voz de urn policia!. Em outras palavras, surge ern cena urna segunda voz, desta

vez tecnica: a de um profissional de urn batalhao especializado em ocorrencias com

refEms, 0 BOPE. Entretanto, e irnportante ressaltar que neste depoimento temos a

imagem de quem fala.11

17 Um dado interessante e que em nenhum momento nos e dado 0 nome ou a profissao dosent{evistados.

22

Em seguida, uma Dutra voz entra em cena, e a da midia. Temas, entaD,

jornalistas comentando a falta de recursos humanos no local e a ineficacia do cerco

que a palicia criou em torna do 6nibus.

Portanto, nao estamos mais trabalhando na ordem do geral, mas do

especifico. Temas as vozes dos marginalizados, dos policiais e dos jornatistas, au

seja, de diferentes pontcs de vista que se intercalam e que servern de preludio para

as primeiras sequencias de Sandro ja dentro do 6nibus.

A partir dessas entrevistas e comentarios, e passivel afirmar que 0 cineasta

naD acredita que as verdades do rnundo existern par 5i s6, e que basta apresenta·

las para que elas se mostrem e se expliquem. Desta forma, ele nao se deixa caif na

armadllha qa crenc;:a de que 0 filme tem a potencialidade de criar uma representa9ao

direta e objetiva da realidade, enos apresenta a problematica que permeara todo 0

documentario.

Por um lado, nos fala da condiyao de exclusao e sofrimento dos moradores

de rua; por outro do problema da falta de infra-estrutura e de prepara9ao da poll cia e

da praxis jornalistica que torna a miseria e 0 sofrimento espetaculos. Temos, entao,

um complexo panorama da situa9ao social e politica do Brasil contemporaneo.

Neste momento, surge a voz de urn quarto elemento, que chama rei aqui de

voz das Ciencias Humanas. Ela se encontra representada par uma mulher,

possivelmente urna assistente social ou urna psic61oga, que nos apresenta a hist6ria

de Sandro e por urn possivel pesquisador que problematiza a invisibilidade dos

meninos de rua. Ha, portanto, uma retornada da hist6ria de Sandra que nos leva da

tragedia familiar que presenciou ainda crian9a it conquista da visibilidade per meio

da violencia e da mldia que culminou com sua morte.

23

Destarte, e passivel afirmar que a narrativa nao e linear, ela vai e volta no

tempo, buscando elementos que levern 0 espectador a compreender rna is

clara mente 0 que ocorreu durante a seqOestra.

Entretanto, e importante destacar que a cineasta nao S8 deixa seduzir par

explica90es faceis, optando 0 tempo todo par contrapor as diverses pontes de vista

dos agentes sociais que entrevistou, como que interpelando a espectador para que

S8 posicione em meio as opiniOes diversas.

Nao obstante, ele se exime de problematizar com profundidade a falta de

opor1unidade e 0 determinism a que a condiyao de exc!usao, de certa forma, imprime

nesses hom ens e mulheres. Efetivamente, ele aceita quase como fato que 0 destine

do marginal e a criminalidade, ainda que romantizada.

Mas ha uma ressalva a ser feita. Apesar de apontar para esse determinismo,

Padilha permite-nos ouvir a opiniao muito pouco romantizada de urn homem que se

assume como bandido e que, encapuzado e sem meias palavras, nos fala da logica

da band idagem de forma crua e fria, inclusive nos apontando para ° uamadorismo~

da a9ao de Sandr~. Esse depoimento permite que 0 filme nao se torne maniqueista

e que nao conceda espa90 demasiado as ideias do senso comum.

Ademais, pouco a pouco, vamos tambem ouvindo e vendo os depoimentos

das vltimas de Sandra. Estas entrevistas ora tendem a humanizar 0 bandido, ora a

apontar para a imprevisibilidade de suas a90es.

Interessante notar que, em muitas ocasiOes, as passagens que estao sendo

narradas coincidem com as imagens que sao apresentadas. Quando uma das

vitimas, por exemplo, relata 0 momenta em que 0 seqOestrador queria que ela

dirigisse 0 onibus, as imagens que vemos sao justa mente as dela sentada ao

volante com uma arma na cabe9a e tentando dar partida no motor.

24

Essa estrategia organizacional do filme realiza uma dupla func;ao. Em

primeiro lugar, ela reafirma ao espectador a coerencia da narrativa das viti mas e em

segundo Ihes confere uma legitimidade quase inquestionavel que parte da estrategia

que "exige" a entrega do espectador, a aceitac;ao do que esta acontecendo na vida

do filme. Tem·se, dessa forma, uma voz que se torna portadora da verdade dos

acontecimentos. Assim, se elas nos afirmam que Sandra nao tinha, na verdade, a

intenC;c30de matar alguem, somas levados a acreditar piamente nisso. Se nos diz€m

que ele negociava e incentivava as vitimas. a encenarem desespero naa nos

permitimos tamar tais afirmac;Oes como uma especie de Sind rome de Estocolmo na

qual a vitima se apaixona par seu algoz, e somos levades a crer que ele de fato nao

sabia 0 que fazia.

Ademais, como afirma Nichols, alguns documentarios se ap6iam nos

precedimelltos da narrativa classica. 6nibus 174 nao foge a esse fato.

Segundo 0 autor, uma primeira caracteristica seria a constru9aO de uma

cranologia que evidenciasse a causalidade dos fatos apresentados. Percebo tal

caracteristica no filme de duas farm as. Em primeire lugar a narrativa, rnesmo que de

forma nae linear, leva-nos a compreensao da tragedia que permeia a vida de Sandre

desde sua infancia ate sua morte prernatura e selitaria. Em segundo, porque somos

levades a cornpreender 0 seqOestra como conseqOencia das condi90es precarias de

existencia do seqOestradar e de sua vontade de reafirmar sua visibilidade em urn

mundo que se recusa a ve-Io. Ademais, ja ao final do docurnentario, 0 pesquisador

nos afirma que Sandre, antes uma vitima do Massacre da Candelaria, torna-se algoz

de seus algozes para entao ser morta por eles como que fechando urn cicio que se

iniciou nos alicerces da Igreja do centro do Rio. Ha, portanto, uma rela'Yao de

causalidade entre tragedia familiar, abandono, chacina e sequestra.

25

Uma segunda caracteristica apresentada por Nichols seria a construc;ao de

"pianos organizados em cenas dramaticamente reveladoras que, apenas no final do

filme, reconhecem a camera como participante-observador,,18.

A meu ver, a pelicula naD cumpre essa premissa porque nos informa, ja de

inicio, que as imagens utilizadas sao provenientes de diversas Fontes e que

interagem com 85 situac;Oes segundo as intenc;6es que Ihes serviam na epoca em

que fcram produzidas. Tambem, porque, ainda que 5utilmente, e evidenciado que

alguns depoimentos sao dados por pessoas que estao revendo 0 que foi veiculado

pera mfdia na epoca, explicitando as condic:;Oes em que imagens e depoimentos

fcram realizados.

Entretanto, se a documentario nao cum pre essa segunda premissa, a

terceira aparece de forma bern evidente. Ela trata do desempenho das personagens

que representam a si mesmas.

Nao posso afirmar que exista de fato uma representa9ao dos atores socia is

nas cenas de arquivo que foram feitas durante 0 seqOestro. Nao e possivel afirmar

que a garcta, que escreve nos vidrcs do onibus, esteja buscando uma

representa930 eficiente de si mesma. Posso apenas dizer que, possivelmente, ela

buscasse uma forma de sobreviver a vioh~ncia a que estava exposta.

Entretanto nas entrevistas, cada urn dos atores sociais que se apresentam

se esmeram em desempenhar de forma eficaz e convincente seus papeis. Assim, os

vitimados se portam como viti mas, os policiais como policias e as marginalizados

como marginas e assim por diante. Pode-se mesmo, em alguns momentos, perceber

a presem;a de frases do senso comum, frases feitas que visam ao refor90 das

representa90es que se tern dos grupos. Dessa forma, vemos moradores de rua

26

falando da culpa da sociedade civil; policiais que falam da imobilidade gerada a

partir de urn comando vindo de instancias superiores, da tia ausente reafirmando a

importancia da familia.

Tendo em vista, a presenya destas caracteristicas, compreendo que apesar

de, como afirma Nichols, 0 advento do de documentaries, construidos em torna de

seqOemcias de entrevistas, parecer urna resposta estrategica ao reconhecimento de

que nern aS fatos falam par si mesmas, nem urna unica voz pede falar com

autoridade par todos as pontes de vista.

Em se tratando das vozes presentes neste dOGumentario, gostaria de

ressaltar a presenya de duas outras que nao poderiam mais ser ouvidas nao fosse a

metodologia escolhida pelo cineasta na concretizar;:ao de seu documentario. Trata-

se das de Sandra e a de Geisa.

Mal podemos ouvir a que Sandra fala, mas a vemos apontar culpados e

afirmar que nao se trata de uma ficr;:ao, de um filme de ar;:ao e sim de um

acontecimento. 0 que presenciamos, portanto, nao sao apenas imagens de um

homem envaidecido com a tensao que lhe e dispensada, nao se trata apenas de

narcisismo, mas de uma reflexao a respeito da visibilidade que a midia Ihe oferece e

das possibilidades que tal circunstancia engendra.

o vemos chamar pelo ~delegado" e nao ser atendido em seu pedido. Sandra

grita pela janela do 6nibus, mas mesmo assim sua voz e muitas vezes abafada. Nao

obstante, os apelos de Geisa surgem em alto e bom som, inclusive na hora em que

ela briga com um dos policiais que lhe pede para ficar calma. Em outras condi<;6es,

tais argumentos nao poderiam mais ser ouvidos porque ambos fcram mortos no

deccrrer do evento .

•t NICHOLS, Bil1. IntrodUl;io ao documentario. Tradutyao de MOnica Saddy Martins. Campinas. sao

27

Entretanto, apesar do documentario apresentar muitas entrevistas

provenientes de diversos pontcs de vista e posic;:5es socia is, mostrando as

dimens6es sOciol6gicas, dramaticas, psicol6gicas, tecnicas e politicas da ocorrencia,

as falas parecem apontar todas para urn mesma ponto, pois em vez de sucurnbir as

asserc;:oes ~as personagens-testemunhas, 0 dOGumentario conserva urn voz propria

ao mesmo tempo em que nos deixa a responsabilidade de construir urna explicac;:ao

para a ocorrido.

Nao obstante, percebo que ha um elemento ideol6gico que afirma que tantos

as seqOestrados quanta a seqOestrador e as policiais sao todos vitimados par

problematicas pollticas e sociais que, como urn dos entrevistados mesma afirmou,

se tornam vis[veis em ocorrencias com reUms. Assim, se Onibus 174 nao

homogeneiza a pobreza, demonstrando a cornplexidade da violencia sem idealizar

a miseria, ele ainda assim constr6i um argumento em torno de urn humanismo

romantizado segundo 0 qual nao ha algozes, somente vitimas.

Paulo: Papirus. 2005. p. 51.

28

III

Contudo, talvez haja uma dimensao em que todos sao vitimados de fato.

Afinal, sao envolvidos em urn drama que ultrapassa as dimensoes das tragedias

particulares para se constituir em urn ata publico de medo e violemcia.

Em materia veiculada pela Falha de Sao Paulo 19, 0 jornalista afirma que

MNao ha roteirista, par rnais delirante que seja, capaz de imaginar uma hist6ria tao

absurda, cruel, dolorosa e tragicamente humana.~ Tal como afirma Sandra Nodari2o,

a narrativa naD apenas trata de urn ata violento, mas tambem 0 dramatiza para

aumentar a tensao e assim manter a publico atento aos acontecimentos.

Neste senti do, ha uma dupla exposi9ao dos fatas pela midia. Em primeiro

lugar, houve 0 seqOestra que foi transmitido ao vivo para todo 0 pais e, ern segundo,

houve 0 seqOestra apresentado pelo documentario. Entre urn e outra ha a diferen~a

de urn ser drarnatizado e 0 outro ser efetivarnente urn drama.

A posi~ao de Ismail Xavie~l quando este afirma que a repeti~ao em camara

lenta da cena de Geisa morrendo e uma especie de soco no estomago que faz com

que os espectadores sejam conclamados a participar da a~ao a que assistem, nos

mostra a morte transformada ern espetaculo. E comum 0 argumento de que tal

estrategia se presta a recuperar os sentimentos vivid os por aqueles que

presencia ram ou que viram 0 seqoestro pela televisao. Nao obstante, trata-se de

urna representa~ao e mesmo de uma apresenta~ao de urn fato que ocorreu. Como

194.10.20022ONOOAR1, Sandra. Onibus 174: a relac;ao entre imagem e voz no telejomalismo e nodocumentario. Curitiba. Parana. 2006. Dissertat;ao de Mestrado. Ptograma de Mestrado emComunicat;ao e Linguagem. Pr6-reitoria de P6s-graduat;ao e Exlensao. Universidade Tuiuti doParana. p.106.21Citado por Sandra Nodari em: Onibus 174: a relac;ao entre imagem e voz no telejomalismo e nodocumentario. Curitiba. Parana. 2006. Dissertac;ao de Mestrado. Programa de Mestrado em

29

afirmei anteriormente, em certo sentido, mesma as entrevistados representam a si

mesmas e seus personagens sao constituidos a partir do que viveram e da

elaborat;ao mental que construiram dos fatos.

Oestarte, como Sontag aleria, as fatos violentos que presencia mas

transformam as pessoas que estao sujeitas aquelas ac;oes em caisa. Logo, estamos

diante de urna representac;ao do seqOestra e, portanto, de urna forma de simulacra

do fato ocorrido. Par simulacra compreende-se urna forma que a urn mesma tempo

fala de urna realidade, mas mascara a profundidade que ela engendra. Cnibus 174 e

urna simulacra, mesma que imperfeito, dos fatos que Gulminaram com as maries de

Gefsa e Sandra porque seleciona, exclui, organiza e elabora as argumentos e

situa96es que ocorreram.

Ademais, como afirma Susan Sontag, algumas pessoas irnaginam que se a

horror e apresentado de forma nitida pode levar a consciencia da situa9ao limitrofe

que a violencia gera. Entretanto, como a autora constata se por urn lado a irnagem

pode apreender toda a indignidade e a insanidade de atos agressivos; par outro

poder incitar a violencia. Neste sentido, na presenya de imagens de horror nos

posicionamos diante da dar dos outros confarme a nosso lugar na sociedade. Essa

afirmativa implica uma dupla constatayao.

A partir deja podernos nos perguntar a respeito da posi9ao do cineasta e dos

entrevistados em relayao aos fatos representados. Interessante nolar como cada

uma das vozes presentes em lJnibus 147 tenta explicitar a posi9ao social que valida

as opini6es que sao proferidas. Assirn, a que as policiais entrevistados relatam nao

carresponde ao que a marginal menciona. Trata-se de uma esp(kie de confronto

entre a urn voz institucional que percebe as jog as de poder e submissao que

Comunicat;;:io e Linguagem. Pr6-reitoria de P6s-graduat;;Ao e Extensao. Universidade Tuiuti do

30

permeiam a90es policiais e de Dutra voz que tala de uma tecnica, de uma praxis que

confronta as ideais burgueses da cidade formal.

Contudo, podemos ainda nos questionar sabre nosse posta, como

espectadores, frente ao seqOestra. Nao podemos esquecer que ha uma distancia

espac;o-temporal entre aquila que vern os e a coerencia relatada. Ha ainda uma serle

de filtros que se colocam entre nasses ethos e as cenas do seqOestra. Diante da

seqUencia filmica se estabelece urn distanciamento entre a espectador e a tragedia

que permite que as imagens de uma atrocidade possam suscitar reac;:6es opostas

em individuos diferentes. Diante da dar dos Qutros, como disserta Sontag, a

individuo pode ser tornado par sentimentos opostos. Pode desejar a paz au sentir a

clamor da vinganc;a, contudo, ha ainda possibilidade da simples constatac;ao de que

coisas terriveis acontecem.

Tais reac;oes estao para alem do fato de que a midia constr6i explicac;oes,

par vezes maniquelstas, para os acontecimentos que nos cercam. Segundo

Thomposon, as sujeitos modernos nao sao completamente submetidos as

compleic;oes das interac;oes mediadas au mesmo das quase-interac;oes

evidenciadas pelas midias modern as.

Para ele, nao nos constituirnos nurn mar de seres passiveis e

indiferenciados, engendrados a partir de uma cultura homogenea e branda que nos

prende a atenc;ao sem, no entanto, exigir a usa de nossas faculdades criticas. Em

outros termos, a autor compreende que a recepc;ao e uma realizac;ao habil, de

carater interpretativo, na qual sao empregadas tanto as habilidades e competencias

exigidas palos meios tecnicos quanta as conhecimentos adquiridas no decorrer de

nossas existencias.

Parana. p.106.

31

Entretanto, nao podemos negar a poder simbalieD de que as midias gozam,

entre elas 0 cinema, mesma porque, se tada comunicayao e uma forma de ac;ao par

meio da qual os individuos renovam e estabelecem as relac;oes entre si, aquelas

forjadas pelas midias contemporaneas possuem 0 status de detentoras da verdade

dos fatos, t~mando para si a tarefa de formar opiniOes.

Neste sentido, embora nao sejamos passivos perante as ideias e

informac;6es que nos sao apresentadas, em certa sentido, a midia detem urn certa

poder sabre as subjetividades humanas.

Segundo Sandra Nodar;, uma vez que a seqOestrador percebe que esta

sendo filmado teria se iniciado urn jogo de atuac;oes entre ele, as policiais e a midia.

Tal afirmativa pareee oferecer uma perspectiva interessante de analise. Sob esse

argumento, podemos vislumbrar Sandro como uma especie de Narciso cercado por

"aguas impotentes". Neste senti do, a encenayc30 tanto de Sandro quanto ados

policiais parece carecer de anima.

Contudo, ha uma outra assertiva que pode ser tecida a luz dos

acontecimentos que nos sao apresentados por Padilha. Nesta, Sandro percebe que

sua exposi.yao a midia, mais do que permitir que interaja com as cameras, da voz e

sobrevida a todos os que nao sao ouvidos pelo mundo capitalista e elitista em que

estava inserido. Nessa perspectiva, as cameras nao estao filmando apenas Sandro,

mas a realidade dos margina1izados e excluidos e, portanto, 0 que 0 seduz nao sao

seus quinze minutos de farna, mas a possibilidade de mostrar que a carencia de

oportunidades, a decadencia fisica e a fome sao muito mais vis que a representayao

cinematografica da dor, da penuria e da miseria.

Sandro grita a todos que as ayces que ali se desenvolvern nao sao da

mesma natureza daquelas que transcorrem em filmes de ficyao. Desta forma,

32

anuncia que naD havera final feliz. Todavia, tambem grita que e urn sobrevivente da

chacina da Candelaria e, par isso mesma, naQ havera urn final feliz, sua marca ja

esta tra~ada. Sandro naD esta apaixonado par si mesma e sim, sob 0 signa da

violencia que 0 forjou e desta forma anuncia a pr6pria marte.

No entanto, a morte e uma experiencia vetada aos vivos e, embora seja a

unico fato inegavel da experiemcia da vida, ela e uma forma de realidade com que

nao nos deparamos amiude.

Sontag nos tembra de que a fotografia, desde seu advento em 1839, flerta

com a marte. Existe uma iconografia da morte que rementa as tradivoes pict6ricas

pertencentes ao mundo antigo e pre-maderno e que se faz sentir na

contemporaneidade por meio do fotojornalismo, da fotografia dita artfstica22 e de

documentarios como Onibus 174.

Na verdade, a morte nao pode nem mesmo ser representada de fato. Na

cena em que Geisa e alvejada, 0 que vemos e um corpo que esmorece e que cai;

vemos uma mulher sendo carregada. Contudo, ela poderia estar desmaiada, muito

ferida au marta. Nao teriamos como ter certeza do ocorrido se nao f6ssemos

informados de que ali esta urn corpo sem vida, sem anima.

Ficamos, portanto, presos a representac;ao do limiar entre a imagem do

corpo vivo e do corpo desalmado. Mas essa experiencia lacunar nao impede que

homens e mulheres se sintam atraidos pelo pouco que pode ser representado dessa

experiencia limitrofe. Susan Sontag afirma que nossa fame de imagens que mostrem

corpos em sofrimento e quase tao presente quanto 0 desejo que mostrem imagens

de corpo nus. Segundo a autora, W •• a espectador pode condoer-se ante a dor do

22 Um exemplo e a exposicao realizada em Nova York em 2001 intilulada Aqui e Nova Yorl<. Nelaforam expostas fotografias de profissionais e amadores que registraram 0 atentado do World TradeCenter.

33

sofredor ...D23, contudo, afirma que nos sentimos atraidos pelo desafio que cenas

violentas propoem. Diante do martirio alheio, somas questionados a respeite dos

limites de nossa olhar. Para a autora existe uma satisfa9ao na constata9ao de que

somas capazes de vislumbrar imagens que retratem cenas de horror sem titubear,

como hi!. um certo prazer em desviar as olhos.

Nao obstante, nao somas, necessariamente, atraidos pel a morte. mas pelo

misterio que ela engendra. Presenciar, ainda que marginalmente, 0 momento em

que a vida se ausenta do corpo e uma forma de nos expormos e questionarmos a

finitude humana em 5i. Desta forma, e passlvel compreender que nao se trata de um

sadismo propriamente dito, mas da busca por respostas que sao constantemente

negadas e escondidas daqueles que permanecem animados.

Neste sentido, do ponto de vista da experiemcia que vivificamos no decorrer

deste documentario, tanto no momenta da morte de Geisa quanto no momenta em

que Sandro e asfixiado, estamos diante da dar dos outros, mas pensando no nosso

proprio destin~. Mais uma vez, aqui, 0 Eu e 0 Outro se encontram ern urna relac;ao

que perrnite a renexao e a auto reflexao nurn espaC;o de tempo relativamente curto,

neste sentido, estar diante da dar alheia e tam bern estar frente a nossa propria dar.

23 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradwyao Rubens Figueiredo. sao Paulo. Companhiadas Lelras, 2003. p.37.

34

IV

Contudo, mesma que perante a representat;ao do sofrimento e 0 horror

sejamos capazes de urna relaC;ao entre 0 que vemos e 0 que vivemos, nao estamos

aptos a fazer nada por aqueles que padecem diante de nossos elhos.

Trata~se, portanto, de urna quase-intera9ao e e justamente esse "quase" que

nos impede de fazermos qualquer caisa para impedir que as 890es de vioh§ncia, que

presencia mas, cessem. Nao somas capazes de libertar as reMns de Sandra, nem de

corrigir a trajeteria da bala que vitimou Geisa, somas obrigados a urna posh;:ao de

irnobilidade e torpor frente aos acontecimentos.

Como afirmei anteriormente, nao defendo a n09ao de que nao reagimos ao

que vemos e sim de que somas despertados e estimulados a refletir a partir de

cenas nas quais nao podemos interferir.

Talvez em nome dessa impossibilidade de ar;:ao e que Sontag afirme que, a

excer;:ao daqueles que poderiam ter feito algo, ou que poderiam ter aprendido

alguma coisa a partir do ocorrido, todos nos tornamos voyeurs. Neste sentido, a

representar;:ao do sofrimento a que estamos expostos quando assistimos a Onibus

174 objetifica os homens e mulheres que sofreram e voyeuriza a todos n6s.

Como conclusao, e possivel pensar que 0 documentario em questao nos

coloca um paradoxo. Jose Padilha, por meio de seu documentario, nos convida a

uma reflexao sobre a complexidade do mundo contemporaneo enos deixa livres

para percebermos a invisibilidade dos culpados, ao mesmo tempo em que nos leva a

refletir sobre nossas ar;:6es e rear;:6es as comunicar;:oes forjadas a partir das midias

modernas.

35

Contudo, 0 dilema que nos e apresentado implica 0 fato de que a ausencia

de uma forma de interac;:ao direta ou mesmo de uma resposta, mesmo que parcial,

ao problema da violencia urbana , nos prostra diante da dor dos outros, diante de

violencias e moties sobre as quais nao podemos fazer nada. 0 desafio que se

estabelece, portanto, e 0 de descobrir formas por meio das quais as imagens que

criamos, ou que vern os se tornem, de fato, instrumentos da reflexao e da ac;:ao,

mapas do mundo, como afirma Flusser, e nao tapumes que nos alienam de n6s

mesmos e do mundo que nos cerca.

36

FICHA TECNICA

ONIBUS 174

Genero: OocumentarioTempo de Duras;ao: 133 minutosAno de Lan~amenlo (Brasil): 2002Oistribuis:ao: RiofilmeDire~ao: Jose PadilhaProdu~ao: Jose Padilha e Marcos PradoFotografia: Cesar Moraes e Marcelo GuruEdi~ao: Felipe Lacerda

37

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

BARBOSA, Neusa. Jose Padilha radiografa a questao social brasileira em 6nibus174. Oisponivel em: http://www.cineweb.com.br/index textos.php?id texto=14.Acesso em: 10 de marc;o se 2007.

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