ANA CRISTINA CÉSAR_ NÃO TÃO MARGINAL ASSIM

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    DILOGO E INTERAOVolume 5 (2011) - ISSN 2175-3687

    http://www.faccrei.edu.br/dialogoeinteracao/

    ANA CRISTINA CSAR: NO TO MARGINAL ASSIM

    Leandro Garcia Rodrigues1

    RESUMO: Este artigo busca compreender certas dimenses da produo potica de

    Ana Cristina Csar, um dos principais cones da chamada Poesia Marginal dos anos70, especialmente quando detectamos certos resduos da Tradio potica brasileira,algo que nos leva a questionar o epteto de marginal sempre aplicado sua obra.PALAVRAS-CHAVE: Ana Cristina Csar. Poesia Marginal. Brasil. Anos 70.

    ABSTRACT: This paper seeks to comprehend some dimensions attributed to AnaCristina Cesars poetry, one of the main icons of the so called Underground Poetry ofthe 70s in Brazil. On the contrary, we perceive some residues of the Brazilian poeticTradition, what leads us to question the epithet Underground given to her work.KEYWORDS: Ana Cristina Cesar. Underground Poetry. Brazil. 70s.

    1. INTRODUO

    A primeira vez que ouvi falar de Ana Cristina Csar foi em 1998, quando secompletavam 15 anos do seu suicdio e o suplemento literrio Idias, do Jornal doBrasil (RJ), fez uma reportagem apresentando aquela que era o principal cone dachamada Literatura Marginal. Ambos os nomes o da poeta e o da sua literatura mesoaram estranhos: seria mais uma artista que tinha cometido suicdio, dentre os tantosda Literatura? Mas as fotos apresentavam no uma pessoa esqulida e aparentementemoribunda ou depressiva, mas uma linda jovem loira, magra, da classe mdia cariocaque decidiu pr um termo sua efmera passagem. Quem seria Ana Cristina Csar?

    Certamente, a falta de uma resposta para essa pergunta se deve, dentro de

    algumas faculdades de Letras, falta de interesse por esse tipo de produo literria emvirtude de preconceitos ainda existentes, ou mesmo por puro e total desconhecimento.O cnon, ainda que esgotado, sempre mais seguro de ser analisado, no provoca tantasrupturas naquele que o analisa; da o ceticismo e a desconfiana que as produesartsticas ditas s margensdespertam: interpelam os nossos conceitos muitas das vezesengessados e at necrosados por anlises crticas viciadas em conceitos tericos que jfuncionam.

    Por essas e outras razes, este ensaio contemplar os seguintes assuntos: umaabordagem a respeito do contexto histrico que motivou o desenvolvimento de umaesttica da marginalidade. Sob o Signo Marginal a primeira parte deste trabalho etem este objetivo: mostrar a cena e a encenao do Rio de Janeiro e do prprio Brasil natransio dos anos 60-70; especialmente nas inmeras revolues experimentadas em

    nvel comportamental que contriburam para fazer da Marginalidade mais do que umavanguarda potica, mas principalmente uma forma de viver. A segunda parte se chamaPor Uma Potica Marginal e explorar os aspectos de uma teoria literria voltada,exclusivamente, para a tentativa de compreender melhor o que representou (e aindarepresenta) a Poesia Marginal. Por ltimo, Ana Cristina Csar No To Marginal

    1 Doutor e Ps-Doutor em Estudos Literrios pela PUC-RJ. Professor e Diretor de Pesquisas doColgio Naval (Marinha do Brasil) e Professor Adjunto de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofiade Campo Grande (RJ).

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    Assim tem o ttulo homnimo do prprio trabalho; seu principal objetivo questionarum pouco a alcunha de marginalsempre dada poeta: esse adjetivo a encarcera numtipo de produo potica que, pelo prprio nome, nos faz esperar atitudes e obragenuinamente marginais? Marginal sempre sinnimo de desregrado? So algunsaspectos que esta parte do trabalho procurar desmistificar.

    Em linhas gerais, estes so os assuntos que sero abordados ao longo dasprximas pginas. Espero poder levantar provocaes e questionamentos quepromovam algum tipo de debate, pois a obra de Ana Cristina Csar temporalmentenova, criticamente bastante estudada, mas ainda muito pouco lida.

    2. SOB O SIGNO MARGINAL

    A chamada Vanguarda Marginal que predominou na poesia brasileira nos idosdos anos 70 j , historicamente falando, um tema deveras estudado e podemos dizerque tais debates tm contribudo para o seu ingresso no cnone literrio, especialmentepela investigao que se instaura atravs de estudos e crtica especializados. Neste af,

    ainda existe algum tipo de novidade acerca desta gerao que j no tenha sido trazido lume? O que ainda nos chama ateno neste grupo que tinha a idia de marginal noapenas nos versos criados mas, principalmente, nas atitudes? Nesse sentido, tentamosentender a transgresso dos anos 70 como uma consequncia (continuidade) cultural doque se iniciara na dcada de 60, especialmente com o Movimento Tropicalista.

    Aps a promulgao do AI-5, em dezembro de 1968, a Ditadura brasileira iniciao seu perodo mais sombrio e desequilibrado quanto ao terrorismo militar instaurado. OBrasil testemunhou um verdadeiro clima de guerra civil entre o sistema de podersituacional e as diversas foras polticas descontentes intelectuais, estudantes,determinados setores da Igreja Catlica, alguns artistas, partidos polticos jclandestinos etc. O clima era tenso, especialmente com a institucionalizao da Censurafeita pelo AI-5 (no nos esqueamos do fechamento do Congresso, tambm nestemomento). O aparelho censor do Estado atuava em diversas realidades da sociedadebrasileira; todavia, as classes artsticas foram as mais penalizadas com os interditos eproibies que vinham do Ministrio da Justia.

    Na msica, so j clssicas as intervenes acontecidas nas diferentesgravadoras, nas letras de msica, na seleo de msicas para alguns shows etc. Aliteratura tambm sofreu perseguies, especialmente na escolha de determinadastemticas, de ttulos para livros e publicaes. Tal realidade levava necessidade de secriar sob o signo da metfora, da rgida ambiguidade dos sentidos que um texto poderiaoferecer, no jogo de trocadilhos insinuado, por exemplo, no ttulo da cano de GilbertoGil: Clice/Cale-se. Essa tcnica de ocultamento do verdadeiro contedo da obra dearte chega a um refinamento que s era compreendido por um nmero restrito de

    receptores, na sua maioria estudantes universitrios e intelectuais que possuam cdigose conhecimento suficientes para tal exegese. Nessa perspectiva, a censura passou a ser agrande interlocutora da produo cultural como um todo, j que a Literatura, a Msica eo Cinema tiveram de conviver com as suas proibies e incompreenses. Na opinio deFlora Sssekind,

    Em vez de dialogar com a realidade, nossa interlocutora predileta era a censura. Assim,a realidade foi se convertendo em miragem, e a censura foi perdendo o seu tradicionalpapel policial e burocrtico para se converter em musa inspiradora. (SSSEKIND,1990: 18)

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    nesse sentido que alguns artistas desenvolveram posturas propositalmenteanrquicas e de desvio quanto s normas estabelecidas do politicamente correto. Umdos principais exemplos desse comportamento desviado foi realizado, ainda nadcada de 60, pelo Movimento Tropicalista (1968). Surgido a partir das

    experimentaes estilsticas de alguns artistas baianos (Caetano, Gil, Bethnia e o seugrupo), os tropicalistas surgem no cenrio cultural brasileiro com o LP Tropiclia.Num primeiro momento assustaram, fosse pelo tipo de msica que faziam, fosse pelaprpria postura comportamental assumida pelo grupo como uma espcie de manisfesto.A respeito desta nova proposta cultural, a prpria Ana Cristina Csar quem opina2:

    com o chamado movimento Tropicalista (1967-68) que vo surgir as primeirasmanifestaes culturais desse desvio. [...] A produo musical dos novos compositoresera marcada, nessa poca, por uma tendncia participante, ligada ao engajamentopoltico: a cano de protesto. Inclinada para a denncia social explcita, a cano deprotesto procurava atuar como catalisadora poltica de setores da classe mdia,especialmente os estudantes, e subordinava o elemento esttico s exigncias imediatasda agitao poltica. (CSAR, 1993: 123).

    Ou seja, perceptvel que o contexto cultural brasileiro do final dos anos 60estava sofrendo uma intensa ebulio de estilos e experimentaes que culminaram nasinmeras tendncias margem dos anos 70.

    2.1 Marginalidade e comportamentosS podemos entender o fenmeno das margens se o concebermos como uma

    reao direta s posturas de centro. O Brasil no poderia ficar parte de toda umarevoluo cultural que o mundo testemunhava, como a ampla luta pelos direitos civis gays, lsbicas, negros, hippies, latinos exilados, mulheres todos berrando paraserem vistos e notados pela sociedade. As ruas e avenidas das grandes capitais

    mundiais serviram de palco para passeatas e protestos cujo principal foco era aconquista de autonomias na sexualidade, nos direitos mais bsicos, pelo uso dedrogas, pela expresso mais sincera do prprio eu, sempre perdido em meio smultides. So os efeitos da contracultura que comeam a chegar ao nosso dia a diaimprimindo uma gama de (re)questionamentos acerca da nossa prpria situaohistrico-cultural. O centro (as condies do status quo) j no mais visto comoestrela de valores a serem seguidos, criando um espao hbrido e tenso de reviso dosvalores. A este respeito, o histrico ensaio O entre-lugar do discurso latino-americano,de Silviano Santiago, j antecipava tal realidade:

    Entre o sacrifcio e o jogo, entre a priso e a transgresso, entre a submisso ao cdigo ea agresso, entre a obedincia e a rebelio, entre a assimilao e a expresso ali, nesse

    lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali se realiza oritual antropfago da literatura latino-americana. (SANTIAGO, 2002: 26)

    2 Em 1979, Ana Cristina Csar estava cursando Mestrado na Escola de Comunicao da UFRJ,matriculada na disciplina Comunicao e Direito ministrada pela professora Ester Kosovski. Foijustamente para finalizar este curso que ela apresentou uma monografia intituladaLiteratura Marginal e oComportamento Desviante, publicada postumamente em Escritos no Rio(1993), de onde retirei algumasnotas.

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    Tal ritual no acontece somente na literatura, mas nas artes e tambm nocomportamento em geral. Este entre-lugar um espao de tenso, de (re)avaliao dosparadigmas, de propostas ideologicamente hbridas que tentam dar um posicionamentocultural a esta gerao. Toda esta fria de reivindicao por novos paradigmasacontece justamente quando se percebe a debilitao dos esquemas cristalizados de

    unidade e de autenticidade, da a cultura ser vista como um processo constante demontagem multicultural, da tentativa de se organizar os fragmentos ideolgicos queajudam a nos configurar. Ana Cristina Csar e sua gerao testemunharam a ordemdessas mudanas, como ela mesma afirma:

    por essa poca que comea a chegar ao pas a informao da contracultura, colocandoem debate as questes do uso das drogas, a psicanlise, o rock, os circuitos alternativos,jornais underground, discos piratas etc. Os principais veculos de divulgao dessanova informao surgem com os primeiros jornais de uma imprensa alternativa Pasquim, Flor do Mal, Bondinho, A Pomba e outros que procuram romper com oprincpio da prtica jornalstica estabelecidos pela grande imprensa. (CSAR, 1993:125)

    nesse sentido que se construiu uma espcie de esttica underground,marginal por excelncia, como resposta aos mais diferentes cnones entoestabelecidos. quando surge uma noo fundamental para esses grupos discordantes:no existir uma transformao social radical sem que haja revolues e transformaesindividuais, isto , o desvio em relao s estruturas hermticas mais abrangentes sseria possvel mediante um profundo desvio de natureza comportamental.

    A partir da, inicia-se um processo irrevogvel de identificao comdeterminadas individualidades expressas nos grupos (minorias) historicamenterelegados s margens: negros, gays, artistas (especialmente roqueiros) malditos comoRaul Seixas, valorizao de figuras culturalmente hbridas (vivas ou no) comoMadame Sat ou anti-heris como Lcio Flvio. Identifica-se com indivduos e suasrespectivas experincias de vida e no mais com o coletivo, com o povo em geral

    proposta histrica da esquerda utpica. Com isso, a marginalidade (aqui entendidanesta ampla perspectiva) e as suas dinmicas prprias so consideradas comopossibilidade de agresso e transgresso ao sistema de valores oficial. Um bomexemplo de tal fato foi a imagem/postura de Ney Matogrosso num hibridismosintomtico entre homem, mulher e pavo a contorcer-se sensualmente nos seus shows,no ento grupo Secos e Molhados. Ele assumiu conscientemente a contestao usandoum poderoso veculo semntico: o prprio corpo.

    Dentro de todas essas propostas, o corpo irrompe com uma violenta forasignificativa: ele o texto onde se escrevemas novas letras culturais e tambm onde inscrita uma nova dinmica da prpria sociedade. Nesse sentido, estamos tentandocompreender o abalo cultural que foi a exposio do corpo de Fernando Gabeira vistoatravs da nudez da sua famosa tanga de croch, ou ento a beleza insinuante do surfistaPetit com o seu famoso drago tatuado no brao que tanto encantou Caetano Veloso ef-lo, inclusive, compor um grande sucesso musical da poca Menino do Rio. estaexposio pblica do fsico, o consumo desenfreado de drogas, a bissexualidade, acrena na existncia de uma sociedade alternativa com amplas atuaes quecontriburam para que o corpo se escrevesse/inscrevesse nesta nova dinmica cultural,fazendo com que essas atitudes e prticas contestatrias e marginalizadas alcanassem,inclusive, uma dimenso poltica.

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    em virtude desses fatores que a cultura marginal uma manifestaotipicamente urbana a cidade (especialmente as capitais) o espao por excelncia paraa culminncia dos valores caros revoluo cultural que aconteceu no Brasil. acidade com todas as suas dinmicas constitutivas fragmentao de pensamento, faltade paradigmas ideolgicos, pluralidade comportamental, individualismos e as

    mitologias urbanas prprias que servem de lcus adequado para todas essastransformaes que tanto afetaram a nossa maneira de ver/sentir o mundo, no nossojeito particular de fazer/expressar a arte.

    Trata-se da emergncia de um novo sistema cultural, no qual a produo artsticado momento era feita no apenas atravs das obras de arte em si, mas tambm pelaprpria vivncia desses artistas a vida se tornou um poderoso veculo semntico querefletia o conjunto de todas essas mudanas que o prprio contexto histricopreconizava.

    3. POR UMA POTICA MARGINAL

    At aqui falamos de cultura marginal num sentido bem amplo, semespecificarmos a literatura. Esta foi diretamente influenciada por todo esse conjunto detransformaes pelas quais passou a cultura brasileira na dcada de 70. O nome Poesia(ou Literatura) Marginal usado de forma convencional para abarcar as principaismanifestaes literrias, especialmente no mbito da produo potica.

    Os anos 60 foram marcados por uma intensa politizao das principaismanifestaes da nossa cultura: o Cinema Novo, a Tropiclia, o Teatro do Oprimido ealguns romances lanados procuravam, cada um a sua maneira, fazer algum tipo dedenncia a respeito da realidade poltico-social brasileira. A cano Pra no dizer queno falei das flores, de Geraldo Vandr, foi emblemtica neste perodo legies demanifestantes marchavam nas diversas passeatas caminhando e cantando e seguindoa lio. Tornou-se uma espcie de cano-manifesto, ainda mais por no ter ganhado oprimeiro lugar no Festival da Cano promovido pela extinta TV Tupi.

    O cinema deu a sua importante contribuio atravs do Cinema Novo. Algumasprodues cinematogrficas deste perodo ultrapassaram as fronteiras brasileiras eecoaram em alguns circuitos cinematogrficos de outros pases, especialmente naFrana, o caso da obra de Glauber Rocha. Aps a adaptao de Vidas Secasfeita porNelson Pereira dos Santos, o cinema produzido por Glauber deu importantescontribuies, especialmente Terra em Transe e Deus e o Diabo na Terra do Sol; oprimeiro fazendo um jogo metafrico entre o Brasil daquele momento e o pasrepresentado ao longo do seu enredo. A literatura tambm utilizou de alguns enredospara falar um pouco do que estava acontecendo, ainda mais pelo fato de que muitos

    jornalistas estavam sendo perseguidos e outros torturados, muitos migram para o texto

    literrio como espcie de vlvula de escape para a produo da escrita.O fato que percebemos uma clara sofisticao na qualidade de inmerasprodues artsticas deste momento textos e enredos bem elaborados, atoresrepresentando de forma magistral, o processo de metaforizao cada vez mais evoludoem virtude da censura sempre voraz. Na poesia, a dcada de 60 testemunhou oamadurecimento definitivo da obra e do estilo de Joo Cabral de Melo Neto, e colheuos frutos da canonizao da obra de Carlos Drummond de Andrade e de outrosmodernistas ainda vivos ou falecidos recentemente ao longo daquela dcada. Contudo,a dcada de 70 se apresentou com matrizes culturais bem diferentes como falamos

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    anteriormente. O clima de arte sria e politicamente engajada aos poucos perdeuespao para uma nova gerao que j no tinha mais tanta esperana de mudar o mundocom passeatas, greves, sequestros de autoridades e at mesmo atos de violncia urbanacontra prdios e espaos pblicos. A gerao de 70 j tem o regime militar brasileiromais engolido e pleno quanto a sua existncia e permanncia nas nossas estruturas

    polticas. quando mudou radicalmente o posicionamento do artista, como podemosobservar nesta fala de Chacal:

    Chega de temas filosficos e importantes. A gente queria falar do dia-a-dia, da polciano calcanhar, do pastel que comia no botequim da esquina. E falvamos isso como sefosse um discurso poltico, tal era a comoo que havia pela represso e por reunirgrupo de pessoas para ouvir poesia, numa poca que ainda no tnhamos, como tivemosdepois, a base do rock para sustentar nossas letras e que, portanto, tnhamos que sairberrando-as no meio da rua. Sair reclamando poesia. (CHACAL, 1998)

    deste dia a dia que saram as temticas utilizadas nos textos poticos ditosmarginais, dos acontecimentos mais corriqueiros que nos fazem esquecer dos eptetosarte sria, poesia sria etc. Um bom exemplo este poema de Cacaso:

    indefiniopois assim a poesia:esta chama to distante mas to perto deestar fria.

    Rpida, objetiva e direta sem relaes contextualizadas com o momentohistrico pelo qual o Brasil estava passando. O maior marco literrio desta geraofoi a publicao, em 1976, do livro 26 Poetas Hoje, de Helosa Buarque de Hollanda. Olivro fomentou o debate em torno da poesia marginal, publicando poemas selecionadosdesses vinte e seis representantes do que, para a organizadora, era a melhorrepresentao da poesia brasileira. a prpria Helosa quem explica, no prefcio

    segunda edio, suas razes para ter escrito o referido livro:O que interessa que, por volta de 1972-1973, surgiu, assim como se fosse do nada, uminesperado nmero de poetas e de poesia tomando de assalto nossa cena cultural,especialmente aquela freqentada pelo consumidor jovem de cultura, cujo perfil, atento, vinha sendo definido pelo gosto da msica, do cinema, dos shows e dos cartoons.Esse surto potico, que a cada dia ganhava mais espao, s podia portanto ser vistocomo uma grande novidade. Alm disso, nos anos 60, marcados pela intensidade davida cultural e poltica no pas, a produo literria, ainda que fecunda, ficara um poucoeclipsada pela fora e originalidade dos movimentos artsticos de carter mais pblicocomo o cinema, o teatro, a MPB e as artes plsticas. Tnhamos, portanto, uma duplanovidade: a literatura conquistava um pblico em geral avesso leitura e conseguiarecuperar seu interesse como produto original e mobilizador na rea da cultura. Atradapor esta ostensiva presena da poesia, comecei a me interessar por este fenmeno que,

    na poca, foi batizado com o nome poesia marginal, sob protestos de uns e aplausos deoutros. (HOLLANDA, 1988: 256)

    Esta produo potica dita marginal se caracterizava por uma dico feita defala coloquial, com um certo tom de confisso, algo de dirio ntimo, uma poesia que semostrava colada s experincias do cotidiano, uma poesia despoetizada naperspectiva da teoria literria tradicional. A esse conjunto de novos valores, ou de des-valores, se acrescentaria ainda um certo descuido na linguagem, uma ausncia de rigorformal. Como exemplo dessa nova ordem potica, um poema de Ana Cristina Csar:

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    acreditei que se amasse denovoesqueceria outrospelo menos trs ou quatrorostos que amei

    num delrio de arquivsticaorganizei a memria em alfabetoscomo quem conta carneiros e amansano entanto flanco aberto no esqueoe amo em ti os outros rostos

    Neste exemplo, ressaltam-se os verbos na primeira pessoa do singular,predominando a funo emotiva (ou expressiva) da linguagem, valorizando o tomconfessional do eu-lrico. Em termos formais, o texto refora a permanncia dastendncias anrquicas das vanguardas modernistas europeias no que concerne despreocupao com os aspectos ortogrficos: no h pontuao regular e os versos soiniciados por minsculas, o que nos faz lembrar um pouco o estilo de escrita potica deOswald de Andrade, especialmente na chamada fase herica do Modernismobrasileiro. Um dos mais importantes legados dos marginais foi a retirada da poesia dopedestal do sublime onde havia sido colocada pela tradio literria brasileira, fazendoda experincia potica uma possibilidade apenas para alguns afortunados que tiveramalgum tipo de acesso s instncias legitimadoras da cultura como a Escola ou grupostemticos especficos. A este respeito, importante a concluso de Helosa Buarque deHollanda:

    A desierarquizao do espao nobre da poesia - tanto em seus aspectos materiaisgrficos quanto no plano do discurso - faz lembrar a entrada em cena, nos idos de 60, deum gnero de msica que, fazendo apelo tanto ao gosto culto quanto ao popular,conquistou a juventude universitria e ganhou seu lugar no quadro cultural. Foi a pocados Festivais da Cano e do Tropicalismo, do aparecimento de Caetano, Gil e Chico.Assim tambm, h uma poesia que desce agora da torre do prestgio literrio e aparececom uma atuao que, restabelecendo o elo entre poesia e vida, restabelece o nexoentre poesia e pblico. Dentro da precariedade de seu alcance, esta poesia chega na rua,opondo-se poltica cultural que sempre dificultou o acesso do pblico ao livro deliteratura e ao sistema editorial que barra a veiculao de manifestaes no legitimadas

    pela crtica oficial (HOLLANDA, 1988: 10).

    Tal desierarquisao foi sentida nos mais diferentes espaos desta gerao:frente ao bloqueio sistemtico das editoras, um circuito paralelo de produo edistribuio independente foi se formando e conquistando um pblico jovem que no seconfundia com o antigo leitor de poesia. Armando-se de mimegrafos e precriasmquinas de xerox manivela, esses poetas passaram a produzir seus livros em casa.Imprimiam vrias cpias e, perambulando pelos circuitos underground das cidades,procuravam freneticamente por pessoas ansiosas por novidades que adquiriam"livrinhos" de poemas, distribudos num circuito margem do mercado editorial, muitasvezes de mo em mo; por isso foram tambm conhecidos como "GeraoMimegrafo". Um bom exemplo desta postura de total desbunde frente ao

    tradicionalismo da linguagem potica o poema de Charles:

    preso porpenetrar na festajogar pedra no monumentoarrotar no juramentomijar na praa pblicacuspir no reitorjogar dinheiro foratrepar com a filhinha do papai

    brincar demaisdar bandeirase olhar no espelhotirar a cala na ruamatar o industrialfumar maconharoubar um queijoganhar um beijo

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    olho muito tempo o corpo deum poemaat perder de vista o que noseja corpo

    e sentir separado dentre osdentesum filete de sanguenas gengivas

    Ou seja, o corpo de um poema pode denunciar as agruras de um outro corpo

    metafsico e metafrico que se constri, pouco a pouco, com filete de sangue nasgengivas.

    4. ANA CRISTINA CSAR NO TO MARGINAL ASSIM

    Aps as ltimas publicaes de alguns textos: cartas, relatos autobiogrficos epoemas ainda inditos de Ana Cristina Csar, temos percebido o quanto a poeta ainda desconhecida para o grande pblico. Aps estudos crticos recentes, a obra de AnaCristina nos soa como um corpo um tanto estranho dentro do projeto potico daPoesia Marginal brasileira dos anos 70. Originalmente, a potica marginal sugere umacerta postura displicente em relao ao passado e tradio literria; j a poesia de AnaCristina parece procurar um dilogo com determinados valores da Tradio que ela fazquesto de no ocultar, especialmente em alguns raros depoimentos e em trabalhos decrtica literria que ela mesma produziu ao longo da sua efmera vida.

    Sua obra apaziguadora em relao s inmeras influncias literrias que elateve ao longo da sua formao acadmica e da sua formao enquanto poeta e leitora depoesia. Nunca escondeu o seu apreo pela obra de Walt Whitman, Katherine Mansfield,Virginia Woolf, T.S. Eliot, Silvia Plath, Clarice Lispector e Guimares Rosa. Tal fato importante j que ela se tornou uma autora tecnicamente bem (in)formada a respeito dasparticularidades tericas do texto literrio, o que a diferenciou bastante do restante dochamado grupo marginal; no que estes fossem menos capazes, mas Ana Cristinadesenvolveu esse diferencial em alguns aspectos da sua produo potica inclusive

    discutindo, teoricamente, determinados aspectos de uma teoria acerca da sua criaopotica:

    Quando voc faz poesia, quando voc faz romance, quando algum produz literaturapropriamente, qual a diferena em relao a esses gneros? Voc est escrevendopara todo mundo? Do ponto de vista pessoal, do ponto de vista de como que nasce umtexto voc, quando est escrevendo, o impulso bsico de voc escrever mobilizaralgum, mas voc no sabe direito quem esse algum. Se voc escreve uma carta,sabe. Se escreve um dirio, voc sabe menos. Se voc escreve literatura, o impulso demobilizar algum a gente podia chamar de outro continua, persiste, mas voc nosabe direito, e m f dizer que sabe. Ento, se Jorge Amado disser escrevo para opovo, no sei se ele escreve para o povo, entendeu? Ou algum que diz assim escrevopara ..., a gente no sabe direito para quem a gente escreve. Mas existe, por trs do quea gente escreve, o desejo do encontro ou o desejo de mobilizao do outro. Agora, voc

    no sabe direito. s vezes, na tua cabea, te ocorre algum. Algum realmente. Vocest apaixonado por algum ou voc est querendo falar com algum, mas isso, notrabalho literrio, no trabalho de construo esttica, esse algum se perde de certaforma. (CSAR, 1993: 193)

    No dia 06 de abril de 1983, Ana Cristina participou do curso Literatura deMulheres no Brasil, ministrado por Beatriz Resende nas dependncias da Faculdade daCidade, no Rio de Janeiro. Este fragmento parte da resposta que Ana Cristina deu aum dos alunos a respeito do seu processo de criao literria. neste sentido que Ana

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    difere bastante de alguns representantes da sua gerao, ela tinha o que dizer, o que(contra)argumentar a respeito dos mais diferentes assuntos que giravam em torno dosdebates culturais daquele momento. justamente pensar que existe o desejo doencontro ou o desejo de mobilizao do outroque deu um certo tom diferencial ao seuprojeto marginal no foi anrquico numa perspectiva de radicalizao vanguardista.

    Ao contrrio, foi conciliador dos diferentes eixos norteadores da produo: asinfluncias, o prprio estilo, a construo da linguagem e o interlocutor, este outroquevagueia o imaginrio do poeta de forma vampiresca pois suga parte do pensamentodo artista, apropriando-se um pouco das suas inquietaes e tenses, como podemosperceber neste poema de sua autoria:

    Tu queres sono: despe-tedos rudos, e

    dos restos do dia, tira datua boca

    o punhal e o trnsito,sombras de

    teus gritos, e roupas,

    choros, cordas etambm as faces queassomam sobre a

    tua sonora forma de dar,e os outros corpos

    que se deitam e sepisam, e as moscas

    que sobrevoam o

    cadver do teu pai, e a dor(no ouas)

    que se prepara paracarpir tua viglia, e os cantosque

    esqueceram teus braos etantos movimentos

    que perdem teussilncios, o os ventos altosque no dormem, que te

    olham da janelae em tua porta penetram

    como loucospois nada te abandona

    nem tu ao sono.

    bem clara a presena desse outro/interlocutor a (re)soar ares e vozesdiretamente ao eu-lrico. No toa que pronomes pessoais retos e oblquos e tambmpossessivos so aqui sintomaticamente utilizados: tu, te, teu(s), tuae verbos conjugadosna segunda pessoa. Formalmente, os versos deste poema so bem construdos: perodos

    compostos por coordenao e por subordinao se entrelaam perfeitamente nosfazendo esquecer do epteto marginal que a poeta recebe. Neste texto, o eu-lrico fazuso de inmeras imagens e vocbulos que o inserem dentro de uma tradio da poesia (etambm do poeta) maldita: moscas, cadver, gritos, corpos que se deitam denunciam aabordagem de temticas explicitamente escatolgicas inerentes ao ser humano; isto semdizer da prpria idia de abandono no silncio. Da a importncia de analisarmos soboutros ngulos crticos, fugindo um pouco dos famosos lugares-comunstradicionalmente empregados. Por essas razes, podemos dizer que a poesia de AnaCristina Csar ampla, escrita sob diferentes perspectivas estilsticas.

    4.1 Entre algumas tradies

    No seu livro Os Filhos do Barro, o poeta, terico e crtico mexicano Otvio Pazdefende que existem duas linhas que configuram e atravessam a histria da poesiaocidental: a tradio da analogia e a tradio da ruptura (da ironia). Entretanto, anossa noo de tempo tem mudado sobremaneira, da a nossa relao com a Tradioter sofrido, consequentemente, inevitveis mudanas, por isso mais apropriadousarmos o termo tradies este se mostra mais amplo e lacunar.

    Historicamente, a ideia de Tradio algo conservador, reacionrio, inflexvel eat negativo sinnimo de velho e anacrnico. Certamente, essa noo errnea acercada Tradio se construiu, ao longo do tempo, ao lado de um conceito de Histria como

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    uma narrativa unicamente diacrnica e linear. Grande equvoco, j que a Histria tambm sincronia e, por isso mesmo, possui uma natureza porosa e arejada que nosleva a considerar a Tradio algo necessrio para que se instaure a prpria noo deruptura: rompemos com qu? A partir do qu? Para qu? Contra quem? Com qualfinalidade? Ou seja, a Tradio se faz necessria como paradigma constitutivo que

    auxiliar no surgimento de novas propostas e de novos estilos individuais ou deprogramas coletivos. Tal fato corrobora umas das mximas de Otvio Paz:A linguagem um signo em rotao. Considerando Histria e Tradio tambm como signos,percebemos que as rupturas da/na linguagem acontecem em virtude desta constanterotao dos valores e das hierarquias constitudas.

    Mas atendo especificamente s duas tradies mencionadas acima, a esttica daanalogia se caracteriza por uma prxis de estilo que tem o passado como eternareferncia, mantendo viva a continuidade das tradies literrias antigas transmitidas aolongo dos sculos. Seria uma perspectiva mais diacrnica de transmisso dos valores eestticas de outrora. A outra perspectiva a esttica da ruptura, caracterstica maisclara da cultura moderna. Seu eixo de atuao se fixa no mais no passado, masclaramente para o futuro o que norteia o discurso e a prtica das vanguardas, sempre

    se radicalizando em busca do novo em detrimento do antigo. Por isso que amodernidade nega o sentido de tempo como algo meramente cclico, inserindo-se nasfissuras (optando por elas) desta narrativa no-linear. Da a crena de que modernoum conceito, em sua prpria natureza, flutuante, uma vez que configura toda umatradio de rupturas quer nos temas, nos estilos, nas atitudes e na prpria linguagem.

    Neste sentido, o projeto esttico de Ana Cristina Csar recupera, ainda que nototalmente, aspectos da tradio analgica para a sua poesia. A utilizao de um lirismomuito pessoal, a sensao de corpo a corpo com o receptor (aproximao com este) ea preocupao com o cotidiano tomam o lugar utpico da poesia tradicionalmenteconsiderada como politicamente engajada. Inclusive, a poeta usa formas tradicionaispara a escrita da sua poesia:

    SONETOPergunto aqui se sou loucaQuem quer saber dizerPergunto mais, se sou sE ainda mais, se sou eu

    Que uso o vis pra amarE finjo fingir que finjoAdorar o fingimento

    Fingindo que sou fingida

    Pergunto aqui meus senhoresquem a loura donzelaque se chama Ana Cristina

    E que se diz ser algum um fenmeno maiorOu um lapso sutil?

    Ou seja, a forma aqui optada foi o soneto nada mais diacronicamentetradicional dentro da perspectiva literria ocidental. Inclusive explorando prticasestilsticas tipicamente simbolistas, como o uso das aliteraes e das assonncias nos

    seguintes versos: E finjo fingir que finjo /Adorar o fingimento / Fingindo que soufingida.Isto sem dizer de abordagens de temticas tipicamente do Simbolismo, como o questionamento do eu-lrico a respeito da tnue relao entre a loucura e a sanidade.Em Ana Cristina Csar, essa tradio analgica tambm se fez sentir atravs da redeintertextual de influncias com a qual ela dialogou na sua formao. Sua poesiaextravasa os limites dos cnones brasileiros e vai buscar relaes de sentido emBaudelaire, Rimbauld, Fernando Pessoa, Anne Sexton e em outros j citados. Dossimbolistas franceses vem uma forte relao com os aspectos decadentistas daexistncia a pendncia entre os elos da vida e da morte:

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    O encarcerado s sabe que no vaimorrer,

    Pinta as paredes da cela.Deixa rastros possveis, naquele curto

    espao.

    E se entala.

    Estalam as tbuas do cho, o piso rompe,e todo sinal uma

    Profecia.Ou um acaso de que se escapa inclume,

    a cada minuto.

    Este meu testemunho.

    Esta imagem do encarcerado, em si mesma, uma intertextualidade simbolista o crcere das almas, para lembrar Cruz e Souza. O eu-lrico se sente encarcerado dentrodo seu prprio espao fsico, tentando buscar uma forma de alento frente possibilidadede morrer pinta as paredes da cela buscando amenizar tal realidade. Alm dessesaspectos, percebe-se tambm um certo tom romntico no que concerne efemeridadedo momento Ou um acaso de que se escapa inclume, a cada minuto sensaotipicamente romntica, onde se tem uma sensao de que a vida vai se esvaindo pouco apouco nas fissuras do tempo e das experincias. E por falar em Romantismo, outropoema de Ana Cristina se mostra sintomtico:

    Um Beijoque tivesse um blue.Isto imitasse feliz a delicadeza, a sua,assim como um tropeoque mergulha surdamenteno reino expressodo prazer.Espio sem um aias evolues do teu confronto minha sombradesde a escolha

    debruada no menu;um peixe grelhadoum namoradouma guasem gsde decolagem:leitor embevecidotalvez ensurdecido"ao sucesso"diria meu censor" escuta"diria meu amor

    Percebemos a vrias relaes semnticas com valores de tendncia romnticacomo nos versos Um beijo / que tivesse um blue, este blue moderno totalmenteinterligado ao spleen, to caro gerao de lvares de Azevedo. Moderno porquesempre atual. Moderno e no modernista, ou seja, na linha terica de Otvio Paz comouma manifestao renovada por uma noo de tempo no linear que a Histria,sincrnico e diacronicamente, desenvolve. Vemos um eu que mergulha surdamente/no reino expresso / do prazer a busca de alguma satisfao, de uma aventura talvezmuda por um namoradocomo opo gastronmica de um menu. Alm desses aspectos,temos ainda trs possveis interlocutores: o leitor, o censore o amor todos a dialogarcom o eu-lrico. Outro aspecto essencialmente romntico explorado por Ana CristinaCsar a morte. Em vrios dos seus poemas percebemos alguma aluso a esta verdadeprpria da condio existencial humana. Todavia, sua relao temtica com a morte se

    faz um tanto diferente daquela dos romnticos estes faziam desta realidade umaespcie de projeo literrio-escatolgico, a morte era encenada, fingida teatralmente,esperada messianicamente. Segundo Edgar Morin, aproveitamos mais intensamente avida no momento em que estamos mais cientes da morte:

    Corre-se o risco de morte por amor, por xtase, por vaidade, por masoquismo, porloucura, por felicidade... Por amor do prprio risco, como acontece com o alpinista, isto, afinal de contas, por amor pela vida, a fim de usufruir dela mais intensamente, e comela se embriagar, mesmo pagando com esta vida. (MORIN, 1997: 72)

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    neste sentido que percebemos a morte para os marginais por xtase, porprazer, por renascimento, desafio e at mesmo como uma espcie de fuga.Especialmente se levarmos em considerao que dois grandes cones deste grupo sesuicidaram: Torquato Neto e a prpria Ana Cristina Csar. Ou seja, o suicdio vistocomo um ato defensivo do eu para alm do seu prprio corpo e da vida uma

    oferenda, holocausto transgressor feito por vontade prpria daquele(a) que um mistode vtima e heri. Em vrios dos seus poemas, Ana Cristina tematiza a morte:

    Quando eu morrer,Anjos meus,Fazei-me desaparecer, sumir, evaporarDesta terra loucaPermiti que eu seja mais umdesaparecidoDa lista de mortos de algum campo debatalhaPara que eu no fique expostoEm algum necrotrio brancoPara que no me cortem o ventre

    Com propsitos autopsianosPara que no jaza num caixo frio

    Coberto de flores mornasPara que no sinta mais os afagosDesta gente to longePara que no oua reboando eternosOs ecos de teus soluosPara que perca-se no terO lixo desta memriaPara que apaguem-se bruscosAs marcas do meu sofrerPara que a morte s sejaUm descanso calmo e doce

    Um calmo e doce descanso.

    Neste poema, o eu-lrico vislumbra uma certa aproximao da prpria morte Quando eu morrer da que inicia uma sintomtica desmaterializao do seu eu.Roga as entidades divinas Anjos meus para eliminar todo resqucio de matria queainda possa persistir: Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar. Imagens e abordagensque nos lembram um pouco da potica de outro cnone brasileiro Augusto dos Anjos,famosa pela aluso a termos escatolgicos relativos morte e matria corprea. Masnuma direo diferente, j que o eu-lrico de Augusto dos Anjos expe claramente osrestos cadavricos autopsiados; e o eu-lrico de Ana Cristina j os quer escondidos:Permiti que eu seja mais um desaparecido / Da lista de mortos de algum campo de

    batalha /Para que eu no fique exposto / Em algum necrotrio branco / Para que nome / cortem o ventre / Com propsitos autopsianos. Ou seja, temos uma vida de mortevivida, na qual a vida que mata lentamente numa nova possibilidade semntica demal do sculo. Muitas outras relaes dialgicas poderamos encontrar pesquisandoaspectos da sua obra literria, empreitada esta que as limitaes prprias de um trabalhodesta natureza no permite. Passemos outra linha (tradio) esttica da sua obra.

    A tradio da ruptura se firmou, ao longo da histria literria, como umempreendimento de criao sempre necessrio para se instaurar o novo. Estilos depoca ou individuais sempre sentiram a necessidade de se renovarem para que semantivesse a dinmica prpria da Arte. Neste sentido, no caso especfico da literaturabrasileira, percebemos uma maior ao da tradio da ruptura no nosso Modernismo.Todos os estilos romperam de uma prxis artstica instaurada para algo novo, desde oBarroco tal fato notado; todavia, a ao das vanguardas modernistas foi de umradicalismo tamanho que marcou definitivamente esta transio como tendo sido amais radical dentro do nosso projeto literrio nacional. Nesse sentido, a poesia de AnaCristina Csar no possui muitos arroubos de transgresso formal e temtica dentro daPoesia Marginal. Sua marginalidade se mostrou mais lrica num certo sentido demansido que este termo oferece, no possui radicalismos experimentais que vemos emoutros poetas da sua gerao. Especialmente pelo fato de que ela no demonstrou seruma discpula literria da vanguarda concretista, a tradio de ruptura mais radical e

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    prxima da sua poca. Em alguns poemas, Ana Cristina experimenta uma verve deradicalismo formal:

    tenho uma folha brancae limpa minha espera:mudo convite

    tenho uma cama brancae limpa minha espera:

    mudo convite

    tenho uma vida brancae limpa minha espera:

    mudo convite

    Neste texto, percebemos alguns aspectos de ruptura formal: a nica pontuaoque encontramos so os dois pontos que introduzem o estribilho mudo convite, osversos propositalmente iniciados por letras minsculas, ignorando as orientaes daortografia oficial da lngua. Na verdade, os nicos vocbulos que se modificam atravsdo caminhar das estrofes so folha, cama e vida; estes termos funcionam comoncleos semnticos que destoam entre si e que fornecem as poucas mudanasimagticas que temos. A prpria disposio de arrumao dos versos nos remete sestticas propriamente de rupturas no h uma continuidade visual e ao olharmos o

    poema como um todo, nossa viso levada a criar imagens onduladas e no lineares.Certamente, tal constatao nos remete a pensar numa certa influncia de naturezaconcretista presente neste texto. Outro sinal desta tradio da ruptura o percebemos emalguns poemas nos quais Ana Cristina faz uso de versos de outros idiomas. Tradutoraexmia, inclusive com Mestrado em Traduo na Universidade inglesa de Essex, AnaCristina rompeu estilisticamente fazendo colagens lingsticas, como aqui:

    hoje sou eu queestou te livrando da verdadete livrando:

    castillo de alusiones

    forest of mirrors

    anjoque exterminaa dor

    bem clara as relaes de ruptura presentes nesse pequeno poema: alm do usode um verso em Espanhol e outro em Ingls, o eu-lrico tambm radicaliza seexpressando em versos minsculos dotados de grande fora lrica, principalmente naterceira estrofe onde a ao exterminadora desse anjo (o prprio interlocutor) realada.Este anjo se mostra como espelho (mirrors) do prprio eu-lrico, o seu duplo. Arespeito do uso de termos em outros idiomas na sua escrita, a prpria Ana CristinaCsar quem explica ao ser questionada numa entrevista:

    ENTREVISTADOR: Ana Cristina, voc usa muito ingls, no ?ANA CRISTINA: , atravessa, de vez em quando.ENTREVISTADOR: , e s vezes atravessa at o leitor, que fica meio embananado,no sabe onde fica ... um meio de afastar o leitor, um meio de afastamento, ou uma

    coisa natural?ANA CRISTINA: Mas eu acho que a tal coisa do primeiro contato. Mas depois ... oingls est to dentro da vida da gente. Letra de msica, o rock, baby... O ingls seincorporou um pouco, ele entrou na vida da gente. (CSAR, 1993: 206-207)

    Enquanto poeta e leitora teoricamente instrumentalizada, Ana Cristina seaproveita de uma realidade sciolingustica o fato incontestvel da dominao culturalda Lngua Inglesa e a incorpora ao seu projeto potico, neste ltimo exemploanalisado numa perspectiva transgressora, de clara ruptura. Com isso, percebemos que

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    coube Ana Cristina Csar e a tantos outros poetas da sua gerao, viver/escrever tantoa vida cotidiana como tambm a morte, experincias poticas do impossvel, daquiloque no se comunica, do silncio e tambm dos aspectos mais corriqueiros do dia a dia.

    5. CONCLUSO

    Toda concluso possui um certo carter de sntese, da apresentao de uma ideiadefinida, quase que uma espcie de postulado de tudo o que foi apresentado e analisadoao longo da monografia; e tal fato me parece, justamente, o contrrio do que um temacomo a cultural marginal quer transmitir. Nas ltimas dcadas, os estudos literrios tmdeslocado o seu olhar para as chamadas produes margem, perifricas; o que antesera estudado apenas como paraliteratura cartas, dirios, anotaes, bilhetes,anotaes (auto)biogrficas etc. agora adquire um certo estatuto exegtico e crtico degrande importncia. justamente no entre-lugar das tenses entre o cnon e as margensque se instaura uma nova forma de analisar as mais diferentes produes literrias,especialmente as contemporneas. nesta rachadura epistemolgica que analisamos

    determinados aspectos da obra de Ana Cristina Csar e da chamada Poesia Marginal.Ana Cristina foi formada em Letras pela PUC-RJ e tradutora profissional,

    tambm tendo produziu textos e ensaios na rea de crtica literria e de arte. Lanadano livro 26 Poetas Hoje, de Helosa Buarque de Hollanda, Ana destoousignificativamente do restante do grupo marginal em vrios dos seus poemas eladeixou clara a influncia recebida de outros predecessores literrios chegados at ela viaTradio. No fez tantos experimentalismos estilsticos na composio dos seus versos,optando por uma escrita firme e versos bem elaborados nos seus perodos, alguns atbem longos graficamente. Tal fato j contribui para sentirmos uma nova possibilidade,uma nova retrica quanto a sua criao potica: no opta tanto pela fragmentao doverso como era de se esperar de uma poeta dita marginal, ainda mais tendo comoprecursora toda uma tradio concretista pautada numa verdadeira revoluoformal/visual da poesia. Uma das suas frases de auto-reflexo mais conhecidas : Souuma mulher do sculo XIX disfarada em sculo XX. Ou seja, ela entra, vive e produzliteratura em pleno sculo XX sem ainda quitar totalmente o sculo XIX.Certamente, por isso, que Ana Cristina Csar confirma o ttulo deste trabalho NoTo Marginal Assim.

    6. REFERNCIAS

    ARIS, Philippe. Sobre a Histria da Morte no Ocidente desde a Idade Mdia.Lisboa: Teorema, 1989.

    CAMARGO, Maria Lcia de Barros. Atrs dos Olhos Pardos: Uma Leitura daPoesia de Ana Cristina Csar. So Paulo: USP, 1990, Tese de Doutorado(disponvel on-line).CHACAL. Posto 9. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1998.CSAR, Ana Cristina. A Teus Ps. So Paulo: tica, 1998.__________________. Escritos no Rio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Brasiliense,1993.__________________. Inditos e Dispersos. So Paulo: Brasiliense, 1985.

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    HOLLANDA, Helosa Buarque de (org.). 26 Poetas Hoje. Rio de Janeiro: Labordo Brasil, 2. Ed, 1988.HUTCHEON, Linda. Moldando o Ps-Moderno: a Pardia e a Poltica. In: APotica do Ps-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

    PAZ, Otvio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1974.SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trpicos. Rio de Janeiro: Rocco,2000.SSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1985.