Anais 2013
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Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB (ELLUNEB)
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB (ELLUNEB)
Verbena Maria Rocha Cordeiro (ORG.)
Rodrigo Matos de Souza
Caio Vinicius de Souza Brito
Reitor da Universidade do Estado da Bahia
Lourisvaldo Valentim da Silva
Diretor do Departamento de Ciências Humanas
Prof. Antônio José Batista de Azevedo
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem
Prof. Gilberto Nazareno Telles Sobral
Presidente da Comissão Organizadora do IV ELLUNEB
Profa. Verbena Maria Rocha Cordeiro
Projeto Gráfico da Capa
Rodrigo Matos de Souza
Caio Vinicius de Souza Brito
Formatação
Rodrigo Matos de Souza
Caio Vinicius de Souza Brito
Endereço para Correspondência
UNEB
Departamento de Ciências Humanas
Rua Silveira Martins, nº. 2555, Prédio da Pós-Graduação
Cabula, 41195-001, Salvador BA
Fone (71) 3117-2442
E-mail: [email protected]
Ficha catalográfica
Comissão Organizadora
Elizabeth Gonzaga de Lima
Elizeu Clementino de Souza
Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios
Jussara Fraga Portugal
Lícia Maria Freire Beltrão
Marcia Rios da Silva
Midian Angelica Monteiro Garcia
Verbena Maria Rocha Cordeiro
Comitê Científico
Biagio D’Angelo – PUCRS
Carlos Augusto Magalhaes – UNEB
Dislane Zerbinatti Moraes – USP
Edil Silva Costa – UNEB
Katia Maria Santos Mota – UNEB
Kenia Maria de Almeida Pereira – UFU
Lícia Maria Freire Beltrão – UFBA
Lynn Rosalina Gama Alves – UNEB
Maria Anória de Jesus Oliveira – UNEB
Maria Antônia Ramos Coutinho – UNEB
Maria do Socorro Silva Carvalho – UNEB
Maria Helena da Rocha Besnosik – UEFS
Marly Amarilha – UFRN
Obdalia Santana Ferraz Silva – UNEB
Sayonara Amaral De Oliveira – UNEB
Silvio Roberto dos Santos Oliveira – UNEB
Vera Dantas de Souza Motta – UNEB
Sumário
APRESENTAÇÃO
15
Literatura e Leitura na escola
CÍRCULOS DE LEITURA DENTRO E FORA DA ESCOLA: A vez e a voz do leitor
Andréia Caricchio Café Gallo
21
ESPAÇOS DE LEITURA NA ESCOLA: Uma articulação entre a sala de aula e a
biblioteca escolar
Edileide Reis
35
LETRAMENTO LITERÁRIO NO LIVRO DIDÁTICO: A circulação da leitura no
Projeto Intervalo
Aparecida de Fátima Brasileiro Teixeira
53
O LÚDICO, A LEITURA E O ENSINO HOJE
Zélia Malheiro Marques
Ginaldo Cardoso de Araújo
71
PRÁTICAS DE LEITURA NO I CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL: Desafios e
contribuições do PIBID
Fabrício Oliveira da Silva
81
Mídias e práticas de recepção
A LITERATURA INFANTIL E OS NOVOS PARADIGMAS DO FENÔMENO
LITERÁRIO: Os entrelaces da hipermídia com a hiperliteratura
Enia dos Santos Costa
99
DO FEMININO E OUTROS ESPELHOS: Um estudo analítico do curta-metragem ‘No
Coração de Shirley’
Jober Pascoal Souza Brito
113
PARA ALÉM DA PLATAFORMA NOVE E MEIA: Um estudo de Recepção Crítica
do Fenômeno Pottermania
Roberto Rodrigues Campos
125
RESSONÂNCIAS DO FANTÁSTICO NA AMÉRICA LATINA: A construção da
realidade meta-empírica no filme O Labirinto do Fauno
Calisto Ribeiro dos Santos
137
Leitura, literatura, experiência e autobiografia
CONFLITOS FAMILIARES, TRANSGRESSÃO E REVOLTA: elementos de uma
lavoura destruída
Aline Nery dos Santos
157
DAS EXPERIÊNCIAS LEITORAS DE PROFESSORES À ALFABETIZAÇÃO
ATRAVÉS DAS ESCRITAS DE SI
Sara Menezes Reis
Fulvia de Aquino Rocha
171
ENTRE MEMÓRIAS, HISTÓRIAS, SABORES E SABERES LITERÁRIOS: a trajetória
de vida de uma formadora de leitores
Nanci Rodrigues Orrico
185
HISTÓRIAS DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS: práticas de leitura na escola
Natalina Assis de Carvalho
197
INFLUÊNCIAS, REFERÊNCIAS E INTERTEXTOS POÉTICOS: aparições de
Elizabeth Bishop em Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas
Raquel Machado Galvão
211
LEITURAS E LEITORES: o papel do Núcleo de Leitura Multimeios da UEFS na
formação de leitores
Sônia Moreira Coutinho
Rita de Cassia Brêda M. Lima
Maria Helena da Rocha Besnosik
224
NUNCA É TARDE PARA FORMAR-SE LEITOR: A contribuição das cartas com
indicações literárias circunscritas em Projetos Institucionais
Aline Carvalho Nascimento
239
O CANTO DA LEMBRANÇA: A memória nas canções de Caetano Veloso
Juan Müller Fernandez
253
O PAPEL DAS EXPERIÊNCIAS LEITORAS NA FORMAÇÃO INICIAL DE
PROFESSORES PARA AS SÉRIES INICIAIS: CONTRIBUIÇÕES DO PIBID
Maria do Socorro da Costa e Almeida
265
O POETA E A POESIA EM TEMPOS DE CANTAR O FEIO
Vanusa da Mota Santana
277
Oralidades no trânsito das culturas contemporâneas
NARRADORES DE JAVÉ: história e discurso
Jorge Augusto de Jesus Silva
Célia Ribeiro
291
ORALIDADE, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÕES: Quem somos e qual é a nossa
voz?
Tatiane Malheiros Alves
Rita de Cássia Mendes Pereira
309
Literatura, alteridade e políticas afirmativas
“GRITARAM-ME NEGRA”: Sou negra sim! E daí?
Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro
325
IDENTIDADE NEGRA NA CENA LITERÁRIA BRASILEIRA
Rosilda da Silva
343
IDENTIDADES DESTERRITORIALIZADAS: o entre-lugar dos personagens híbridos
de Milton Hatoum
Sandra Lúcia Sant’Ana dos Santos Pimentel
359
LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRO-BRASILEIRA NAS ESCOLAS
MUNICIPAIS DE SALVADOR: analisando o livro EPÊ LAIYÊ
Valdecir de Lima Santos
373
MULHER NEGRA: representações de gênero e raça em A Menor Mulher do Mundo, de
Clarice Lispector
Malane Apolonio da Silva
Cristian Souza de Sales
385
O DESENCLAUSURAMENTO DO SILÊNCIO DE STELA DO PATROCÍNIO EM
REINO DOS BICHOS E DOS ANIMAIS É O MEU NOME
Inaê Silva Pereira Sodré
397
“QUEM ODEIA LER AGORA”? Os Saraus como mola propulsora do incentivo à
leitura nas margens
Jacqueline Nogueira Cerqueira
411
Apresentação
O Encontro de Leitura e Literatura da UNEB
Com a publicação dos Anais do 4º Encontro de Leitura e Literatura da Universidade
do Estado da Bahia (ELLUNEB) encerramos um ciclo de ações que teve início onze meses
atrás, em março de 2013, quando da primeira reunião preparatória do evento, passando pela
publicação do Caderno de Resumos, pela realização do encontro e, por fim, da publicação
dos textos completos das comunicações apresentadas nas seções temáticas coordenadas,
editados nesse volume.
A publicação dos anais também tem o caráter de reafirmação dos interesses, antes em
potência, do evento, que realocam leituras e propõem outros rumos para abordagens
consagradas pela crítica e pelos estudos literários, provocando encontros e desvios teóricos
muito oportunos e produtivos nos percursos dos textos que ora se apresentam. O trabalho de
compilação, organização e edição do Anais é a derradeira oportunidade de aproximar
questões, mesmo que seja pela proximidade física dos textos, e de provocar outras
considerações, não pensadas ou conjecturadas nos dias de ELLUNEB.
O Evento deste ano ocorreu sob o título “Modos de Ler – oralidades, escritas e
mídias”, realizado no período de 21 a 24 de Outubro de 2013, é fruto da parceira dos grupos
de pesquisa Literatura e Ensino: imprimindo identidade, tecendo leitura, vinculado ao Programa
de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (PPGEL/UNEB) e o grupo de pesquisa
(Auto)Biografia, Formação e História Oral – GRAFHO, vinculado ao Programa de Pós-
graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC/UNEB) na organização do
evento e a colaboração, reiteradas nas quatro edições do evento, do Centro Universitário
Jorge Amado (UNIJORGE) e do grupo de pesquisa Educação e Linguagem (GELING) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
O primeiro ELLUNEB foi realizado há quase uma década, em 2005, a partir dos
desdobramentos das ações de pesquisa e extensão promovidos pela professora Drª. Verbena
Maria Rocha Cordeiro, que mobilizava (e continua a mobilizar) um contingente de alunos,
professores e funcionários da universidade em torno dos temas da leitura e da literatura e
suas relações com outras linguagens e fenômenos culturais. Desde o evento inicial, além das
preocupações com o papel da leitura literária na escola, se promoveu espaços para que a
leitura e a literatura se manifestassem, através de prêmios, concursos e da publicação das
produções intelectuais apresentadas no formato de comunicação nos Anais, por reconhecer
que esta é uma forma de preencher espaços que, por ventura, ainda restem – e são muitas e
espaçosas as lacunas - nos campos de conhecimento que atravessam as temáticas do evento.
Sua realização nos últimos nove anos não só reafirma a importância dos temas que
aborda, notadamente a Leitura e a Literatura, para os grupos de pesquisa que hoje
participam da organização do evento, mas consolida o interesse pela leitura como um objeto
de estudo frequente para a UNEB, de onde emergiram, nas últimas décadas, uma série de
profissionais que se ocupam da interseção entre estes conceitos e seus desdobramentos
práticos na escola, no contexto e na vida dos leitores.
Os Anais que aqui se apresentam são uma representação em dimensão menor do
material apresentado nas comunicações orais – foram 75 inscritos, 72 comunicações
apresentadas, mas somente 28 trabalhos finais foram remetidos para a edição final dentro do
prazo estipulado pela Comissão Organizadora do encontro. Este fator, longe de ser um
problema, qualifica os textos aqui publicados, não sendo apenas uma versão escrita das
comunicações proferidas, são o extrato que pode ser melhorado a partir dos comentários e
críticas que receberam em sua leitura pública. Acreditamos que, apesar de não oferecer a
totalidade das comunicações apresentadas oralmente, os textos aqui publicados são
significativos da qualidade do evento e um singular extrato das motivações que a leitura e a
literatura puderam provocar nos dias de ELLUNEB.
A publicação foi organizada em blocos homônimos às seções de comunicação, o que
permitirá aos autores a rápida localização de seu texto a partir da identificação do eixo em
que apresentaram suas leituras. As seções são as seguintes, por ordem, ao longo do texto:
Eixo I: Literatura e Leitura na Escola, Eixo II: Mídias e Práticas de Recepção, Eixo III:
Leitura, Literatura, experiência e autobiografia, Eixo IV: Oralidade no trânsito das culturas
contemporâneas, Eixo V: Literatura, alteridade e políticas afirmativas.
Esperamos que a leitura dos Anais, que compartilhamos agora com os demais
leitores, extrapole a condição de arquivo, de repositório que muitas publicações desta
natureza acabam por se conformar e encontre nas ressignificações propostas outras leituras e
outros enlaces problematizadores e uma nova história provocada pela citação, pela
paráfrase, pela menção, pela crítica e, neste devir, reencontre-se novamente como texto vivo
e em diálogo com seu horizonte epistemológico.
Verbena Maria Rocha Cordeiro
Rodrigo Matos de Souza
Caio Vinicius de Souza Brito
Eixo I
Literatura e Leitura na escola
CÍRCULOS DE LEITURA DENTRO E FORA DA ESCOLA: A vez e a voz do leitor.
Andréia Caricchio Café Gallo Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
[email protected] Resumo: O presente trabalho visa a defender a prática dos círculos de leitura como uma alternativa de trabalho com leitura de textos literários em contraposição às práticas tradicionais de leitura que ocorrem em contextos diversos, mas principalmente naqueles cujos objetivos são educacionais, como as instituições de ensino. Para tanto, utilizamos como referencial teórico Chartier (1994), Hérbrard (1999), Goulemot (2011) e Certeau (2012) no que concerne ao entendimento das práticas de leitura; Mendonça (2001) e Pfeiffer (1998) no que se refere ao modo como o ensino tradicional trabalha com leitura e, finalmente, Dagnino et al. (2004) para uma compreensão sobre tecnologias sociais, dentre as quais os círculos de leitura estão inseridos. A ideia de que os círculos de leitura são uma alternativa aos modos tradicionais de trabalho com textos literários nas instituições de ensino surgiu a partir de nossas observações como integrante do Núcleo de Leitura Multimeios (NULM), um dos núcleos de extensão da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), que tem como um de seus objetivos promover a circulação de textos variados entre as comunidades interna e externa à UEFS. O NULM oferece oficinas de leitura para alunos da graduação e desenvolve dois projetos de extensão. O primeiro intitula-se Projeto Leitura Itinerante: uma alternativa de mobilização de leitores e promove círculos de leitura para alunos e professores do ensino fundamental I de uma escola pública de Feira de Santana ― a Escola Irmã Rosa Aparecida ― ; o segundo intitula-se Círculos de Leitura: uma tecnologia social para além do espaço escolar e atua junto a mulheres beneficiadas pelo Programa Bolsa-família, também proporcionando círculos de leitura com textos literários, em comunidades pertencentes ao município de Antônio Cardoso. Com base nessa experiência e no referencial teórico supracitado, percebemos que os círculos de leitura podem mobilizar leitores de faixas etárias, graus de escolaridade e situações socioeconômicas diversas e ativar o que Certeau (2012) afirma ser um leitor atuante e criativo, que escapa à condição de mero receptor, imposta por uma “ideologia do consumo-receptáculo”. Verificamos que os círculos de leitura proporcionam aos seus participantes a possibilidade de fugir dessa condição de apatia e de prisão na qual o sistema tenta encerrá-los. Se a condição do leitor já é preestabelecida por um sistema que privilegia aqueles que Certeau (2012) chama de “produtores” em detrimento dos “consumidores”, é na escola, segundo Pfeiffer (1998) e Mendonça (2001), mais do que em outros contextos, que o leitor se encontra submetido a mecanismos de controle tais que lhe subtraem a possibilidade de se desenvolver e de atuar como produtor de sentidos. Entretanto, com base em Dagnino et al. (2004), que oferece um esclarecimento sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social (TS), os membros do NULM concebem o círculo de leitura como uma TS, uma vez que surgiu, espontaneamente, no seio dos grupos humanos, como solução para a necessidade de socialização e de circulação de textos orais e escritos. Daí por que o círculo de leitura constitui uma atividade alternativa que devolve ao leitor seu potencial criativo.
Palavras-chave: círculos de leitura; práticas de leitura; tecnologia social.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Apresentação
A motivação para esta defesa dos círculos de leitura (CL) como uma atividade
alternativa aos modos tradicionais de trabalho com textos literários na escola veio de
nossas observações feitas a partir de CL com alunos da graduação da UEFS, com
professoras do ensino fundamental e com mulheres moradoras das comunidades do
município de Antônio Cardoso. Contrariamente ao que costuma acontecer nas aulas
de leitura e interpretaçãode texto ― quando as atividades de leitura são direcionadas
pelo livro didático ― ou nas aulas de literatura, nas quais a leitura de literatura fica
limitada ao conhecimento das características das escolas literárias, a leitura através
dos CL promove momentos de fruição dos textos, de reflexão e de trocas de
experiência entre os participantes. Como consequência, os leitores se sentem
incentivados a ler outros textos, o que provoca uma ampliação cada vez maior da
visão de mundo das pessoas envolvidas nesse tipo de atividade.
Refletindo sobre práticas escolares tradicionais de leitura
Segundo Pfeiffer (1998), as clássicas queixas por parte dos professores sobre a
dificuldade de se criar o hábito da leitura nos alunos requer que se faça uma reflexão
a respeito dos mecanismos envolvidos na constituição do leitor no contexto escolar
brasileiro. Alicerçada no aporte teórico da Análise do Discurso, a autora empreendeu
uma pesquisa sobre o trabalho com leitura na escola, tendo, para isso, gravado aulas,
entrevistado professores e alunos e analisado livros didáticos. Dentre os elementos
encontrados pela pesquisadora como constituidores do sujeito-leitor no contexto
escolar estão: a) o conceito de “bom leitor” e suas implicações, b) o “contexto
estruturante” dos discursos, c) a representação da linguagem, d) a divisão social do
trabalho da leitura e e) o apagamento da oralidade. Existe na escola uma ideia de que
o “bom leitor” é aquele que sabe classificar os textos de acordo com as escolas
literárias, sabe ler o “sentido único das palavras” e está atento à transmissão de um
saber literário estático e inquestionável. A noção de “contexto estruturante”,
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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conforme Pfeiffer, está baseada em Orlandi (1989)1 e refere-se ao modo como os
discursos são colocados em prática na aula. Na maior parte das aulas observadas por
Pfeiffer, o modo discursivo predominante foi o dissertativo, isso implica o
apagamento das vozes tanto dos alunos quanto dos professores, ou seja, os
professores apenas repetem e transmitem um saber pronto, estático e inquestionável
e os alunos são os receptores passivos de tudo isso. Não há espaço para a reflexão
nem para o diálogo2. Esse modo discursivo predominante nas aulas está em
comunhão com o papel designado a alunos e professores na divisão social do
trabalho da leitura. Com base em Pêcheux (1981)3, a autora ressalta que, da oposição
por ele proposta entre intérprete (aquele que tem o poder de atribuir sentidos) e
escrevente (aquele que só pode sustentar o sentido estabilizado), professores e
alunos, nessa divisão do trabalho da leitura, ficam com o papel de escrevente.
Quanto à representação da linguagem, a autora percebeu que o sentido das palavras
e dos textos é concebido como algo inerente e não como algo atribuído pelos leitores.
Por fim, o apagamento da oralidade acontece porque na escola o escrito é muito mais
valorizado do que o oral, portanto algo é verdadeiro porque está escrito. Além disso,
a anulação da oralidade fica mais evidente quando, em algumas matérias, a leitura
oral é aplicada como um castigo.
Ainda com relação às práticas de leitura na escola, Mendonça (2001), também
tomando como base os pressupostos da Análise do Discurso, destaca o fato de que as
atividades de leitura na escola funcionam como uma forma de silenciamento dos
sujeitos, uma vez que autorizam uma leitura única, reforçada pelas respostas dadas
pelo livro do professor para as questões de interpretação de texto, silenciando, assim,
professores e alunos, os quais somente podem exercer a função de escreventes. A
respeito disso, a autora afirma o seguinte:
1 ORLANDI, E. Vozes e contrastes: discurso na cidade e no campo. São Paulo: Cortez, 1989. 2 São três os modos discursivos: dissertativo, descritivo e narrativo. No modo dissertativo, o professor não emite opinião nem permite que os alunos o façam. O conhecimento é direcionado pelo que está escrito pelas autoridades nos livros. O modo descritivo refere-se à descrição de cenas cujos atores não
são o professor e os alunos; são sujeitos atemporais. O modo narrativo é o único em que professor e alunos dialogam. Ocorre quando, por exemplo, o professor narra um fato de sua própria vida. 3 PÊCHEUX, M. Lire l’arquive aujourd’hui, St. Cloud, Paris: 1981
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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É importante destacar que determinados sentidos de textos (principalmente os sentidos de textos literários, que têm sua história de leituras mais conhecida) são naturalizados. A seleção desses sentidos é feita da perspectiva dos leitores privilegiados (diga-se, formadores de opinião: críticos literários, autores de livros didáticos etc.), que se utilizam também da escola e do professor [...] para produzir a monoleitura autorizada. [...] Mas não só com textos literários essa política de silenciamento de sentidos de textos ocorre. Em livros didáticos, frequentemente, a prática de leitura de quaisquer textos segue de perto um conceito de sentido transparente, não com a opacidade própria da heterogeneidade discursiva. Procura-se abolir dos textos sua tendência natural à ambiguidade, ao meio-tom, à relatividade. (MENDONÇA, 2001. p. 245-246)
Se atentarmos para o que diz Hébrard (1999), a respeito do desenvolvimento das
práticas de leitura e de escrita nas escolas da França, é possível vislumbrar possíveis
explicações para o que temos hoje em termos do trabalho com leitura na escola
brasileira. Ao traçar uma trajetória dessas atividades do século XVI ao XX na França,
ele nos oferece, sob a ótica da história cultural, valiosas informações sobre como se
tem lidado com essas questões na escola do Ocidente. De acordo com cada época,
foram atribuídas à leitura e à escrita finalidades diversas; para tanto, métodos
apropriados a cada finalidade foram utilizados no decorrer da história. O autor
identifica quatro períodos distintos do trabalho com leitura e escrita com seus
respectivos objetivos. Inicialmente ler e escrever serviam para a memorização do
catecismo, posteriormente o trinômio “ler-escrever-contar” objetivava a formação de
artesãos e comerciantes, em seguida a leitura passou a ser direcionada para a
divulgação de um saber científico, enciclopédico ou para a formação de uma
consciência moral e, a partir da última década do século XIX, a leitura passou a ter
como propósito a fruição do texto literário, ou seja, “a leitura pelo amor do texto”. A
despeito da diversidade de objetivos ao longo dos séculos, é possível detectar um fio
condutor ideológico que liga todas as etapas: a preocupação em moldar a consciência
dos alunos. Mesmo quando a leitura passou a ter como meta a fruição do texto
literário, havia a seguinte recomendação:
[...] os professores tinham de “fazer sentir” os textos às crianças que instruíam. Para consegui-lo, não se precisava de retórica. Bastava dominar a arte de dar voz ao autor, de restituir por meio das palavras
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os sentimentos, as emoções que tomavam conta do leitor no momento em que ele se impregnava das idéias do texto, aderindo a elas. Ao mesmo tempo que eles as fizessem suas, nesse movimento de simpatia, eles as comunicavam quase “fisicamente” a seus jovens leitores. A leitura expressiva era, então, o exercício que possibilitava, formando o leitor, formar o professor. (HÉBRARDT, 1999.p. 68)
Segundo Hébrard, no século XX, a leitura que passou a vigorar nas escolas francesas
era realizada de forma a não mais ler um texto por seu valor literário, mas para
proporcionar o conhecimento e o acúmulo de palavras e expressões que
posteriormente seriam trabalhadas em ditados (para o trabalho com ortografia e com
gramática) e em redações. Por essas informações, percebemos que a leitura de um
texto literário sempre esteve atrelada a outros interesses dentro do ambiente escolar.
Nem mesmo o chamado “ler por prazer” acontece de forma efetiva na escola, pois
esta sempre se preocupou em direcionar a leitura dos alunos de forma a fazê-los se
impregnar de determinadas ideias consideradas convenientes em cada momento
histórico. Na perspectiva de Hébrard, apesar de a escola não ser o único lugar “onde
se constroem e transmitem os equipamentos intelectuais de uma sociedade” o
conhecimento de sua atuação no decorrer da história passou a ter um lugar de
destaque no âmbito da pesquisa em história cultural. A respeito do estudo sobre a
história dos cânones escolares, ele nos diz:
A história dos cânones escolares (obras no programa), por exemplo, mostrou-se um meio proveitoso para abordar a difusão das práticas de leitura da elite. Da mesma forma, a história das modalidades de explicação de textos (a praelectio nos colégios de Antigo Regime, a “leitura explicada” nos liceus do século XX) permitiu melhor compreender a formação das elites e as especificidades da relação letrada com a literatura francesa e a latina. Mais recentemente as técnicas retóricas foram compreendidas não somente como modos essenciais de formação para a escrita até o final do século XIX, mas também como instrumentos fundamentais na formação do pensamento nos séculos XVI e XVII. (HÉBRARDT, 1999. p. 37-38)
A leitura como construção de significados
Historicamente a leitura de textos literários tem sido orientada e monitorada, seja
pela tradição formada por especialistas, estudiosos de literatura e críticos literários,
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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que oferecem ou impõem suas exegeses aos leitores comuns, seja por professores
imbuídos em criar nos alunos o hábito da leitura dos cânones e preocupados em
fazer com que estes sejam interpretados de uma forma considerada correta, ou seja,
de uma forma que garanta uma efetiva identificação das intenções do autor ou que
garanta uma aproximação entre a interpretação do aluno e as exegeses elaboradas
pela tradição. Sendo assim, ao leitor considerado comum, ao neófito ou ao aluno não
se tem dado o direito a uma leitura, como um processo de atribuição de significados,
de acordo com uma experiência individual e com o contexto histórico dentro do qual
essa experiência se insere. Como vimos em Pfeiffer (1998) e em Mendonça (2001), tal
situação compromete também a leitura do professor, que fica submetido a todo um
conjunto de interpretações preestabelecidas, formadoras de uma espécie de cânone
exegético, que ele deve transmitir ao aluno. Dessa forma, o contexto escolar tem sido
um dos que mais cerceiam a atividade, a liberdade e o potencial criativo do leitor.
Esse é o estado de coisas que caracteriza a maioria das nossas salas de aula, o qual se
contrapõe ao que nos revelam pesquisadores como, Chartier, Certeau e Goulemot
sobre a natureza da atividade da leitura, tomando como o centro da atenção a relação
leitor-texto, ou seja, a relação que existe entre o leitor e o texto, a despeito dos
esforços e imposições de instituições como, a escola, a Igreja, a mídia e o Estado.
Em A ordem dos livros, Chartier descortina o universo móvel, instável e dinâmico que
abriga os livros, seus autores, seus editores e seus leitores. Sob o enfoque da história
da leitura, o autor nos aponta a natureza contingente da leitura, ao revelar que,
novos leitores atribuíam novos significados aos textos e que editores, ao longo da
história, mudavam o formato das obras literárias com o intuito de torná-las mais
acessíveis ao público comum, o que resultava em leituras inéditas e todo esse
movimento acabava por interferir na própria atividade criadora dos autores das
obras. Percebe-se com isso o quão complexa e rica é a atividade leitora, cujos tipos,
manifestações e consequências são imprevisíveis, estando muito além das investidas
institucionais, pois, segundo Certeau:
Quer se trate de um jornal ou de Proust, o texto não tem significação a não ser através de seus leitores; ele muda com eles, ordenando-se graças a códigos de percepção que lhe escapam. Ele só se torna texto
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através de sua relação com a exterioridade do leitor, por um jogo de implicações e de ardis entre duas expectativas combinadas: aquela que organiza um espaço legível (uma literalidade) e aquela que organiza uma diligência, necessária à efetuação da obra (uma leitura). (CERTEAU, 2012. p. 242)
Apesar dos mecanismos de controle empregados por uma ideologia denominada por
Certeau de ideologia do “consumo-receptáculo”, que elege leitores autorizados, os
quais forjam um sentido único para o texto, tentando deixá-lo inacessível ao público
comum, os leitores, inconscientemente, criam estratégias, que se manifestam nas
pequeníssimas ações cotidianas para fugir dessa manipulação.
Hoje há os dispositivos sociopolíticos da escola, da imprensa ou da TV que isolam de seus leitores o texto que fica de posse do mestre ou do produtor. Mas por trás do cenário teatral dessa nova ortodoxia se esconde (como já acontecia ontem) a atividade silenciosa, transgressora, irônica ou poética, de leitores (ou telespectadores) que sabem manter sua distância da privacidade e longe dos “mestres”. (CERTEAU, 2012. p.244)
Portanto, contrariando a práxis escolar, que cerceia a capacidade leitora do aluno, ao
frear sua liberdade de atribuir novos sentidos aos textos, a história das práticas de
leitura nos apresenta um panorama no qual o texto depende do leitor para existir,
para significar algo e ter sua significação renovada e até mesmo transformada ao
longo do tempo a partir das leituras feitas pelas novas gerações. A respeito disso,
Goulemot ressalta:
Ler é dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequências. Não é encontrar o sentido desejado pelo autor, o que implicaria que o prazer do texto se originasse na coincidência entre o sentido desejado e o sentido percebido, em um tipo de acordo cultural, como algumas vezes se pretendeu, em uma ótica na qual o positivismo e o elitismo não escaparão a ninguém. Ler é, portanto, constituir e não reconstituir um sentido. A leitura é uma revelação pontual de uma polissemia do texto literário. (GOULEMOT, 2011.p. 108)
A natureza polissêmica do texto literário ― destacada por todos os autores aqui
citados ― é também dependente do leitor. Este, inscrito num dado momento
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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histórico, atribui sentidos diversos daqueles atribuídos por leitores de outros
momentos. Somente neste sentido ― o de estar circunscrito numa conjuntura
histórica ― é que a liberdade do leitor conhece um limite.
Por história cultural entendo a história política e social, que, sem que sejamos seus autores, trabalha aquilo que nós lemos. Há alguns anos, uma determinada representação do Tartufo em Paris provocou apenas debates estéticos ou morais. Esse Mesmo Tartufo, na Madri dos anos 1970, quando o Opus Dei estava no poder, desencadeou uma manifestação política e foi proibido. A história, aceitemos ou não, orienta mais nossas leituras do que nossas opções políticas. (GOULEMT, 2011. p. 110)
Os círculos de leitura como uma tecnologia social
Os círculos de leitura têm sido registrados pela história cultural e pela história da
leitura como uma prática de socialização de textos orais e escritos. É, portanto, uma
prática culturalmente significativa, surgida a partir das necessidades dos grupos
humanos de fazer circular seus textos orais e escritos; estes últimos podendo ser
manuscritos ou impressos. Por ter emergido das comunidades de forma espontânea,
como fruto de um desejo coletivo de suprir uma necessidade real de
compartilhamento de histórias e todo um conjunto de saberes, ideias e valores nelas
contido, os círculos de leitura constituem uma herança cultural da humanidade.
Partindo desses pressupostos, os membros do NULM consideram o círculo de leitura
uma tecnologia social, uma vez que se encaixa no conceito estabelecido por Dagnino
et al. (2004), que estabelecem o marco analítico-conceitual para a TS.
[...] a TS é em si mesma um processo de construção social e, portanto, político (e não apenas um produto) que terá de ser operacionalizado nas condições dadas pelo ambiente específico onde irá ocorrer, e cuja cena final depende dessas condições e da interação passível de ser lograda entre os atores envolvidos [...] (DAGNINO et al., 2004.p. 51)
O caráter social dessa forma ou técnica de ler textos ― em que um leitor-guia lê o
texto em voz alta para um grupo de pessoas alfabetizadas ou não ― manifesta-se na
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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sua contribuição em formar leitores e em proporcionar conversas e livres discussões
sobre o texto lido, possibilitando troca de experiências e, consequentemente,
ampliação da visão de mundo dos participantes. Da forma como nasceu e se
desenvolveu no seio das sociedades, os círculos de leitura constituem um processo
livre de qualquer tipo de normatização por parte de instituições como, escola, mídia,
Igreja ou Estado. Portanto consideramos os CL uma TS que pode ser realizada tanto
dentro quanto fora da escola como uma alternativa para mobilizar leitores e
incentivar leituras livres e criativas.
Círculos de leitura dentro e fora da escola: a vez e a voz do leitor
Como foi mencionado anteriormente, o NULM promove atividades de leitura para
as comunidades interna e externa à UEFS. Temos realizado círculos de leitura com
alunos da graduação e, através de dois projetos de extensão, temos proporcionado
essa atividade para professores e alunos de uma escola pública de Feira de Santana e
para mulheres do município de Antônio Cardoso. Trataremos de cada uma dessas
experiências e de como os diferentes públicos têm reagido durante nossos encontros.
Nossas atividades com alunos da graduação deram-se através de duas oficinas de
leitura com carga horária de 30 horas cada, com grupos de aproximadamente vinte
alunos. A primeira oficina intitulava-se “O homem, o mundo e a religiosidade” e foi
realizada a partir de contos e poemas cujos temas giravam em torno da relação do
homem com sua espiritualidade, com uma religião ou com Deus. A segunda oficina,
intitulada “Representações literárias de um real absurdo”, foi planejada com contos
cujas temáticas giravam em torno de situações absurdas, as quais, muitas vezes são
interpretadas como naturais. No primeiro encontro de cada oficina, esclarecia-se para
os alunos que nossas leituras seriam feitas através de círculos de leitura em que eu,
leitora-guia, leria o texto em voz alta e depois a palavra seria franqueada para que
pudéssemos conversar sobre ele, sem nenhum compromisso com teorias literárias ou
com avaliações para nota. Além disso, eles poderiam falar, não necessariamente do
texto, mas de quaisquer coisas que tivessem sido suscitadas pela leitura: lembranças
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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de fatos ocorridos, filmes vistos, outros textos lidos, músicas etc. Ao final das 30
horas, aqueles alunos que quisessem escrever algo para comentar a experiência da
oficina poderiam fazê-lo sem a necessidade de assinar o texto. Observamos que, no
início, os alunos sentiam-se inseguros para falar porque estavam acostumados a ter
de interpretar um texto à luz de uma teoria ou da opinião de um crítico literário. Aos
poucos, eles foram sentido mais segurança e começaram a participar ativamente e
das conversas. Alguns dos alunos da primeira oficina gostaram tanto da experiência,
que se inscreveram na segunda oficina, oferecida no semestre seguinte. A maioria
dos participantes entregou seu comentário por escrito ao final de cada oficina; a
avaliação que eles fizeram da atividade foi muito positiva.
O projeto Leitura Itinerante: uma alternativa de mobilização de leitores proporciona CL
com professores e alunos do ensino fundamental I da Escoa Irmã Rosa Aparecida.
Nossas bolsistas de extensão realizam leituras com os alunos e nós realizamos
leituras com as professoras. O objetivo desse projeto é mobilizar o leitor em
formação, seja ele professor ou aluno, numa tentativa de incentivar a adoção de
práticas prazerosas de leitura de literatura na escola. Entendemos que somente o
professor que tem o hábito de ler literatura por prazer pode levar seus alunos a fazer
o mesmo. As bolsistas, após os CL ou uma sessão de contação história, propõem aos
alunos atividades como, dramatização ou ilustração do texto lido, escrita de finais
alternativos para a história etc. Em nossos seminários internos, as bolsistas relatam
que, no início, os alunos ficam dispersos, inquietos ou com vergonha de falar sobre o
texto lido, porém, com a continuidade das leituras eles vão ficando cada vez mais
interessados e participativos e chegam a dar sugestões de leituras para os próximos
encontros. No decorrer dos encontros quinzenais com as bolsistas, os alunos vão se
tornado cada vez mais interessados nas atividades de leitura.
Com as professoras, foram realizados CL mensais com dois romances (leitura de
alguns capítulos), dois contos, dois poemas e um filme, cujos temas tocavam na
questão da relação entre professor e aluno. Após a leitura, a palavra era franqueada
para as professoras falarem sobre o texto ou qualquer coisa que tivesse sido suscitada
por ele. Geralmente as professoras falavam pouco sobre o texto lido ou sobre outros
textos relacionados a ele; preferiam falar de seus alunos, do quanto eles estavam cada
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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vez mais difíceis de controlar e cada vez mais desrespeitosos e agressivos. Os textos
acabaram provocando momentos de desabafo e de reflexão sobre a relação dos
alunos com elas. A Escola Irmã Rosa Aparecida, situada nas dependências do
Dispensário Santana, recebe alunos baixa renda, moradores de uma comunidade
localizada no entorno do Dispensário, conhecida por seus casos de violência. São os
mesmos alunos atendidos pelas nossas bolsistas, segundo as quais, inicialmente se
mostram difíceis, mas, com o andamento das atividades de leitura tornam-se
cooperativos.
Outro projeto de extensão desenvolvido pelo NULM é o Círculos de Leitura: uma
tecnologia social para além do espaço escolar, cujo público alvo é composto por mulheres
do município de Antônio Cardoso. O objetivo geral do projeto é divulgar entre essas
mulheres o CL como uma forma de socializar textos e de proporcionar troca de
experiências dentro da comunidade, mobilizando e formando leitores através de
uma TS, que, por ser também uma prática de letramento secular, pode ser apropriada
pela comunidade, auxiliando na busca de soluções para os problemas locais. Os
círculos ocorreram em cinco localidades: Gavião, Caboronga, Santo Estevão Velho,
Tocos e na sede do município. O grupo do NULM se organizava em duplas,
acompanhadas de uma ou duas bolsistas, para fazer CL mensais em cada localidade.
Os CL foram realizados com contos populares brasileiros e estrangeiros, filmes e
contos da literatura brasileira e estrangeira. Nos primeiros encontros, as mulheres
mostravam-se acanhadas, o que foi mudando com o passar do tempo. A partir do
segundo ano de atividades, as mulheres de Gavião começaram a pedir que
levássemos textos que tratassem da temática das drogas, pois estavam muito
preocupadas com a situação dos jovens da comunidade. Levamos o filme Meu nome
não é Johnny, que foi amplamente discutido por todas as participantes. Pudemos
observar que, do primeiro ao último CL, as mulheres de Antônio Cardoso foram se
envolvendo cada vez mais com as discussões sobre os textos e sobre os problemas de
cada comunidade, que, muitas vezes, eram identificados nas narrativas lidas.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Considerações finais
A partir de observações feitas durante as atividades de leitura realizadas como ações
do NULM, pudemos verificar que os CL mobilizam leitores de faixas etárias,
condições socioeconômicas e graus de escolaridade diversos e reativam o que
Certeau (2012) afirma ser um leitor atuante e criativo, que escapa à condição de mero
receptor ou de mero escrevente ― nos termos de Pêcheux (1981) ― imposta por uma
ideologia do consumo receptáculo.
Por ser uma atividade que restitui ao leitor o seu papel criativo, o seu poder de fazer
um texto existir a partir de seu trabalho de criação de sentidos é que o CL é aqui
apesentado como uma atividade alternativa de leitura que oferece vez e voz ao leitor,
tanto dentro quanto fora da escola. Portanto professores podem adotá-la como uma
maneira de trabalhar com leitura de textos na escola de forma a mobilizar o leitor que
existe em cada um de seus alunos. Entretanto é preciso ter cuidado para não
desvirtuar o CL, isto é, transformá-lo em mais uma daquelas práticas escolares que
tolhem a criatividade dos alunos. O professor deve ser apenas o leitor-guia ou um
dos que acompanham a leitura enquanto um aluno voluntário lê o texto. Ele não
deve cobrar dos alunos uma interpretação preestabelecida por livros didáticos ou por
quem quer que seja. É imprescindível que os alunos estejam completamente à
vontade para expressar suas opiniões e para que possam também sugerir textos para
os CL.
Referências
DAGNINO, R.; BRANDÃO, F.; NOVAES, H. Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social. In: BARBOSA, E. J. et al. Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. CERTEAU, M. de A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer. 18ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: UNB, 1994.
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GOULEMOT, J. M. Da leitura como produção de sentidos. In: CHARTIER, R. (org.) Práticas de leitura. 5ª. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. HÉBRARDT, J. Três figuras de jovens leitores: alfabetização e escolarização do ponto de vista da história cultural. In: ABREU, M. (org.) Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999. MENDONÇA, M. C. Língua e ensino: políticas de fechamento. In: MUSSALIN, F., BENTES, A. C. (orgs.) Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v. 2. São Paulo: Cortez, 2001. PFEIFFER, C. C. O leitor no contexto escolar In: ORLANDI, E. P. (org.) A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998.
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ESPAÇOS DE LEITURA NA ESCOLA: Uma articulação entre a sala de aula e a biblioteca escolar
Edileide Reis Universidade Federal da Bahia
[email protected] Resumo: Este artigo focaliza dois dos principais espaços de leitura na escola – a sala de aula e a biblioteca –, tomando-os como ambientes educativos, que possuem potencial para o fomento do ato de ler e, consequentemente, o desenvolvimento de competências leitoras em estudantes da educação básica. A sala de aula – “universo pluricultural e pluridialetal” (MENDES; CASTRO, 2008, p. 8) – é uma amostra do universo escolar, que agrega aspectos comuns e distintos, simultaneamente, e nela os educandos passam a maior parte do tempo durante o período de escolarização, fase em que dão continuidade ao seu processo de aprendizagem já instaurado em outros espaços extraescolares. A partir da sala de aula, também é possível discutir aspectos relacionados à construção de identidades de indivíduos letrados, conforme estudo sobre o processo de letramento de alunos do ensino fundamental realizado por Silva (2007). Isso evidencia que tal ambiente dispõe de elementos que precisam ser observados e analisados, pois o ensino-aprendizagem de leitura ainda está restrito a ele. Para além do espaço da sala de aula, a biblioteca escolar, segundo Andrade e Blattmann (1998), constitui-se em “[...] instrumento indispensável como apoio didático-pedagógico e cultural, e também elemento de ligação entre professor e aluno na elaboração das leituras e pesquisas”. Nesse sentido, é também responsável pelo processo de ensino-aprendizagem de estudantes, por isso não pode ser relegado a mais um anexo nem apêndice da escola. Com esse olhar, foi elaborada a dissertação de mestrado Herdando uma biblioteca: uma investigação sobre espaços de leitura em uma escola de rede pública estadual, proveniente de uma pesquisa de campo da qual participaram como agentes a gestora da instituição selecionada, uma professora de língua portuguesa e seus alunos cursantes do 9º ano. Um dos objetivos específicos do estudo realizado consistiu em investigar a relação da docente e dos educandos participantes com a biblioteca escolar, a qual era beneficiária do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), uma das mais importantes políticas de Estado de promoção da leitura na sociedade brasileira. Apoiado na etnografia educacional, o referido estudo utilizou os seguintes instrumentos de pesquisa: questionários, entrevistas e observações de aulas, os quais deram subsídios necessários para a discussão empreendida. A pesquisa etnográfica em educação se caracteriza também pela interação construída entre o pesquisador e o contexto educacional, bem como com sua comunidade, buscando, assim, descrever os aspectos culturais que os particularizam e os significados produzidos por eles, sobretudo, nas atividades pedagógicas desenvolvidas na sala de aula ou fora dela. (MATTOS, 1995; TELLES, 2002). Esta teve como alicerce os pressupostos da Educação, da Ciência da Informação e, sobretudo, da Linguística Aplicada, a qual “[...] se ocupa da pesquisa sobre questões de linguagem situadas na prática social com procedimentos específicos determinados pela natureza aplicada da pesquisa que tipicamente a serve”. (ALMEIDA FILHO, 2008, p. 26). Assim, o presente artigo reflete sobre alguns resultados da pesquisa desenvolvida por ocasião do mestrado, apresentando um recorte dos dados coletados e analisados, bem como as contribuições do estudo para as referidas áreas, que focalizam, comumente, a formação de leitores. Palavras-chave: formação de leitores; espaços de leitura; biblioteca escolar.
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Introdução A queixa de que os estudantes apresentam dificuldades para ler e escrever já
transpassou há muito tempo os recintos das salas de aula e das paredes dos
ambientes educativos. Ela é reproduzida pela sociedade civil, que, além de conviver
com essa realidade, vê nos programas televisivos e nas capas de jornais de grande
circulação o sucateamento do sistema educacional brasileiro. Essas constatações
desencadeiam a elaboração de propostas diversificadas, tanto por parte da iniciativa
pública quanto privada, as quais consistem em uma espécie de força-tarefa para
amenizar os efeitos de fatores presentes no contexto familiar e no cotidiano dos
espaços escolares, de onde egressam milhares de indivíduos com déficits de
habilidades e competências leitoras e escritoras. Tal cenário inquietou-me a ponto de
fomentar a reflexão sobre a leitura, como objeto de estudo, sobretudo, nos limites
territoriais da escola. A iniciativa tornou-se projeto de pesquisa de mestrado, o qual
foi desenvolvido e resultou na dissertação Herdando uma biblioteca: uma investigação
sobre espaços de leitura em uma escola da rede pública estadual. Desta,
especificamente da seção de análise dos dados, intitulada de Espaços de leitura na
escola: uma articulação entre a sala de aula e a biblioteca escolar, nome atribuído a
este texto, compartilho algumas ideias.
Pautada nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – PCNLP –
(BRASIL, 2001), propus que o processo de ensino-aprendizagem de Língua Materna
(LM) na escola deve ser articulado aos seguintes elementos: aluno – língua/leitura –
ensino-aprendizagem – biblioteca escolar – professor, valorizando-os por
compreender que cada um deles delineia a escola e intervém de forma direta em sua
dinâmica.
Nesse sentido, cabe ressaltar que o ensino-aprendizagem de leitura ainda está restrito
à sala de aula, que, sob o ponto de vista da estrutura física, é um espaço onde,
geralmente, estão enfileiradas as carteiras e os alunos, tendo estes à sua frente o
professor, atrás do qual há um quadro. (MOREIRA, 2005). Apesar de a estrutura das
salas de aula da maioria das escolas públicas não atenderem a requisitos que os
docentes e profissionais da educação consideram favoráveis para os fins a que se
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destina, esse ambiente é o santuário para o exercício docente e a realização de uma
aprendizagem significativa. Por isso, a complexidade do processo de ensino-
aprendizagem de leitura exige que sejam utilizados, ainda dentro dos muros da
escola, outros espaços que tornem a ação de ensinar crianças e adolescentes a ler
variados gêneros textuais, de diferentes modos e competentemente. (ABREU, 2001).
Assim, esses indivíduos poderão atuar de forma ativa e relevantemente em suas
comunidades e na sociedade em geral.
Embora a estrutura curricular seja fragmentada, a escola somente conseguirá cumprir
sua missão mediante ações coletivas e comprometidas por parte de toda a sua
comunidade. Desse modo, considerar a biblioteca escolar, doravante BE, como um
ambiente de ensino-aprendizagem de leitura é exigência do contexto
socioeducacional. Ela possui potencial para contribuir com o cumprimento do papel
social da escola e fomentar ações de incentivo à leitura. (SILVA, 1998; BARRETO,
2006). Para além do espaço da sala de aula, a biblioteca escolar, segundo Andrade e
Blattmann (1998), constitui-se em “[...] instrumento indispensável como apoio
didático-pedagógico e cultural, e também elemento de ligação entre professor e
aluno na elaboração das leituras e pesquisas”. Nesse sentido, é também responsável
pelo processo de ensino-aprendizagem de estudantes, por isso não pode ser relegado
a mais um anexo nem apêndice da escola.
A relação entre sala de aula e biblioteca escolar é uma prática pouco fomentada na
maioria das unidades de ensino no nosso país; situação que caracteriza o cenário
pesquisado, constituído por um colégio estadual situado em Salvador e a gestora
deste, bem como pela professora de língua portuguesa do 9º ano e uma turma deste
seriado no período letivo de 2011. Esses participantes contribuíram
significativamente para a discussão do tema apresentado.
Tomando a escola como contexto específico, o estudo de campo empreendido se
identificou com a etnografia educacional, por isso fez uso de diferentes instrumentos
e procedimentos que lhe são característicos (aplicação de questionário, observação de
aula, entrevista gravada em áudio e análise documental). A etnografia em sala de
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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aula, segundo André (2008), volta-se para experiências e vivências dos indivíduos e
grupos que participam e constroem o cotidiano escolar.
A sala de aula de português
Segundo Rojo (2009), as ações em sala de aula reclamam pelo desenvolvimento de
capacidades afetivas, cognitivas, discursivas, linguísticas, motoras, perceptuais e
sociais. Tais competências têm sido objeto de inúmeras pesquisas, pois a importância
em se tratar dessas questões tão contemporâneas deve-se à trajetória do panorama
educacional brasileiro, sobretudo, na sua configuração atual e aos múltiplos
contextos em que estão inseridos os estudantes do/no nosso país. (ANTUNES, 2009).
Estudos, como este, ponderam o ponto de vista expresso nos documentos oficiais
para discutir as nuances da educação linguística. Esse exercício é pertinente, porque
apesar de certos esforços empreendidos por parte do governo, dos educadores e da
sociedade em geral, a discrepância entre o que dizem esses textos e o que predomina
na nossa realidade é bastante acentuada. Nesse sentido, o trabalho docente
corporifica uma opção política, que abrange aspectos teóricos e metodológicos
presentes em sala de aula. (GERALDI, 2002). E um desses elementos condutores da
atividade pedagógica é a concepção adotada pelo educador.
Para Antunes (2003, p. 39):
Toda atividade pedagógica de ensino de português tem subjacente, de forma explícita ou apenas intuitiva, uma determinada concepção de língua. Nada do que se realiza na sala de aula deixa de estar dependente de um conjunto de princípios teóricos, a partir dos quais os fenômenos lingüísticos são percebidos e tudo, conseqüentemente, se decide.
Assim, o professor delineia o seu trabalho na escola, considerando os conteúdos a
abordar durante o ano letivo, bem como quais metodologias e estratégias de ensino o
apoiaram, o que inclui o acesso a outros espaços em que a aprendizagem possa ser
fomentada. Essa etapa do contexto escolar resulta no Planejamento Anual do
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Professor (PA), o qual se associa a outros documentos, como o Projeto Político-
Pedagógico (PPP), e ambos interferem na dinâmica do universo escolar e da sala de
aula.
Segundo Matencio (1994, p. 99):
A elaboração do plano de trabalho de um ano letivo envolve tanto as exigências do currículo do curso e da série como sua interpretação pela instituição escolar em questão. Portanto, esse planejamento deve atender, por um lado, à demanda dos elementos que são externos à escola e, por outro, às características das pessoas envolvidas na instituição em particular.
O PA da professora (P) privilegia aspectos textuais e gramaticais da língua, os quais
estão listados intercaladamente. Um plano de trabalho com essas características
tende a abarcar diferentes competências linguísticas e é um indício de que práticas de
letramento, como a leitura e a escrita, se fazem presentes na sala de aula analisada. O
observado, entretanto, foi que o foco esteve na metalinguagem e no ensino
tradicional de gramática, norteando as aulas ministradas. Esse modelo de atuação
docente tem sido exaustivamente discutido por diversos especialistas de educação
linguística (SILVA, 1998; GERALDI, 2002; ANTUNES, 2003; MENDES, 2008 e outros)
e nos PCNLP (BRASIL, 2001), que censuram o trabalho exclusivo com a gramática,
porque ele reproduz concepções educacionais equivocadas e descontextualizadas.
A colega participante concebe a leitura como decodificação dos sinais gráficos e
apreensão das ideias de quem escreve os textos circulantes na sala de aula.
Entendimento que se contrapõe com a leitora crítica, que assume ser, e reforça a sua
atuação docente. Os alunos da turma 9M1 partilham da mesma concepção de leitura
de P. Esses indivíduos, quanto à influência das aulas de LP no exercício das práticas
de leitura, dizem que essa disciplina tem uma intervenção positiva, embora suas
respostas exprimam que a língua é um mero sistema, uma estrutura, ou,
simplesmente, gramática. Então, pode-se dizer que a opinião do que seja tal prática
social nas palavras da docente já foi incorporada pelos educandos, os quais
reproduzem a ideia supracitada, que já faz parte do senso comum.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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As limitações quanto ao que é o ato de ler e ser leitor na escola são reforçadas,
sobretudo, porque oportunidades cultivadoras entre o estudante e os livros são
escassas e reduzem as práticas de leitura a textos curtíssimos, seguidos de exercícios
de interpretação. As respostas dos educandos a seguir ratificam isso:
As aulas de Língua Portuguesa influenciam no seu hábito de leitura? De que maneiras elas influenciam? A2: Por que nas Aulas de português sempre há historia para os Alunos ler A11: Derivações, prefixal, sufixal ensinando frases como endentificalas etc. A12: A professora fala muitas coisas que cada vez mais me influência a leitura A19: Influenciam no habito de ler A26: Na maneira de entender a pronunciação das palavras que leio
(Questionário dos alunos)
A partir do exemplo e dos demais dados gerados, pode-se afirmar que embora a
linguagem na sala de aula observada seja trabalhada mediante o uso de textos, os
conteúdos de gramática são o foco. Eles, apesar da ênfase, não têm se refletido na
escrita dos alunos, que apresenta quase o espelhamento da fala.
Os alunos, ao opinarem sobre as aulas de português, falam como a leitura se faz
presente, como podemos verificar no trecho a seguir:
A5: Eu acho as aulas muito boa mais ela tinha que focar mais aqui na biblioteca, pra gente levar mais livro pra ler várias coisas. Então, passar mais textos. Acho que é isso. A12: Eu acho que as aula de português ensinava nós a aprender falar direito. Só isso. A24: São boas as aulas. As aulas nos ensina muito sobre a leitura bastante, porque sempre nas aulas dela ela entrega texto pra nós ler, refletir, resumir e isso nos interessa muito na leitura e nos traz mais benefício. A30: Eu gosto lá da aula de português, mais só que... ela não passa muito texto pra gente interpretar. Não. Passa, aliás, mas ela não dá um livro pra gente ler, ela dá um texto dela lá pra gente resumir. (Recorte da entrevista dos alunos)
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A triangulação dos dados gerados na pesquisa explicita que as práticas de leitura e
escrita no fazer-pedagógico da professora ocupam posição marginal, o que contribui
com a manutenção dos estágios crítico e muito crítico de proficiência de estudantes do
9º ano referentes aos atos de ler e escrever.
A biblioteca no contexto da escola
O colégio analisado possui uma biblioteca e herdou materiais informacionais
bastante variados:
livros didáticos; livros paradidáticos; romances; livros literários; dicionários; enciclopédias e revistas informativas. (Questionário da gestão escolar)
Parte desse acervo é proveniente do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE),
uma das principais iniciativas governamentais gerenciadas pelo Ministério da
Educação, que também envia para a escola vídeos, documentários e filmes
educativos. Quanto aos livros didáticos distribuídos, segundo Campello e outros
(2010), eles não compõem o acervo da BE, por se tratar de um material de apoio às
atividades pedagógicas. Apesar de o acesso a eles ser quase irrestrito, isso não
impede que a BE seja seu almoxarifado.
É positivo o fato de a biblioteca da escola analisada ter mais de mil exemplares entre
obras literárias, de gêneros textuais e formatos diversificados, e títulos teórico-
metodológicos, considerando as áreas de formação universitária dos professores. A
BE, porém, não é uma das principais rotas indicadas pelos docentes e gestoras para a
circulação de livros e, consequentemente, a promoção do gosto e do cultivo pela
leitura. A respeito disso, Ezequiel Silva (1998, p. 28) defende que “[...] a biblioteca
deve se transformar num ambiente rico em estimulação sociocultural para a leitura, e
com significação para professores, alunos e comunidade”. Tal perspectiva,
entretanto, ainda não é compartilhada por todos os agentes da educação, enquanto
isso a BE fica a mercê de pequenas iniciativas.
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Em uma das reuniões pedagógicas, a diretora incentivou o corpo docente a utilizar a
BE. As condições, entretanto, não eram convidativas à realização de atividades no
espaço, nem ao uso do seu acervo. A própria gestora reconhece que os professores
somente fazem uso dos materiais disponíveis na BE esporadicamente, porque não há
uma assistência mínima que possibilite uma utilização efetiva. Situação ratificada
pelos alunos, que pouco utilizam a BE ou até desconhecem sua existência. O quadro
1 demonstra as opiniões desse grupo.
Quadro 1 – Usuários e não-usuários da biblioteca escolar do CEAV
Neste colégio, há biblioteca escolar. Você a utiliza? Por quê?
Sim 11 34,37%
Não 21 65,63%
Sim
A1 Porque e muito importante
A11 Porque ler e bom para meditar e divertido as vezes, e é um modo de quando crecer se formar trabalhar etc.
A18 Eu já havia ultilizado quando não havia professor dando o horario na sala de aula
A24 Por quê quero conhecer mais sobre o meu desenvolvimento na leitura, e tambem conhecer coisas novas que atraves da leitura garantimos ao nosso futuro coisas boas.
A30 Por quê quando eu quero fazer pesquisa eu vou a biblioteca da minha escola para ultilizar os livros.
Não
A6 Por que não tem!
A8 Não utilizo por que so anda fechada.
A12 Por que ela não abri a biblioteca. Já ouve uma vez na 5ª seríe só essa vez e depois nunca mas
A20 porque a biblioteca vive fechada.
A25 Por quê sempre esta fechado ou responsavel não estar.
A28 Por que não tenho tempo.
A26 Não justificou sua resposta.
Fonte: Dados da pesquisa: Questionário dos alunos.
As respostas da maioria dos educandos denunciam uma das contradições mais
perversas do sistema educacional brasileiro: a falta de condições que estimulem o
convívio com livros e publicações impressas. A escola, como organismo social, deve
desenvolver medidas educacionais e culturais que proporcionem à sua comunidade e
à sociedade em geral a apropriação da leitura e de seus benefícios. (BARRETO, 2006).
No entanto, não é isso que se tem promovido no âmbito dos seus muros.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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A escola, como uma das principais instituições sociais, tem a responsabilidade de
assegurar aos seus atores a oportunidade de experimentar situações de
aprendizagem significativa, principalmente, com as práticas de letramento. Sendo
assim, as ações para a sua implantação e implementação dependem da participação
de todas as equipes atuantes nesse recinto.
A relação da docente e dos educandos com a biblioteca
Como o referido estudo discute o uso da biblioteca escolar, busquei conhecer se e
como esse espaço interveio na formação leitora da docente. Então, ao questionar se
seus professores utilizavam de algum modo a BE, a resposta foi não e o(s) porquê(s)
de tal prática desconhecido(s), mesmo havendo o referido ambiente pedagógico em
duas das unidades de ensino onde a professora estudou.
Essa postura, infelizmente, é bastante comum há décadas, o que reverbera a
deficiência tanto na oferta de materiais de leitura e no acesso a eles no contexto da
escola, quanto na formação de professores e, como já se discute na
contemporaneidade, na formação de bibliotecários para atuar no cenário educativo.
Ambos os profissionais são agentes fundamentais na promoção de atividades leitoras
no que tange à disseminação e ao gerenciamento da informação, ao ensino-
aprendizagem de práticas de letramento, bem como à aquisição e ao
desenvolvimento de competências relacionadas a essas ações, sobretudo, por parte
dos educandos.
A professora informa que a sua família e a escola contribuíram para que ela se
tornasse uma leitora, ao responder:
Sempre tive acesso a livros em minha casa, pois meus irmãos mais velhos também gostam de ler e as atividades escolares me ajudaram a manter o hábito de ler. (Questionário da professora)
Contudo, as demais respostas dadas ainda no questionário e na entrevista,
contrastadas com sua atuação profissional, não ratificam sua fala. Para a docente,
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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ambas as entidades se complementam na formação de leitores, entretanto, se a
família fracassar nessa área, a escola pouco ou nada pode fazer para reverter os
impactos da educação leitora. Ela considera-se, uma leitora crítica; criticidade que
não aparece em seu percurso profissional, haja vista que sua postura reforça o status
de “não-leitores” dos alunos. Isso porque a docente não se dispõe a oferecer um
processo de escolaridade que se caracterize pela imersão dos aprendentes na cultura
letrada.
O ensino-aprendizagem de leitura deve incentivar o acesso a uma variedade de
materiais impressos (GERALDI, 2002) como os que constituem o acervo da biblioteca
do colégio. Assim, Ezequiel Silva (1998) e Geraldi (2002) propõem algumas ações
para que um programa de leitura na sala de aula seja efetivado quanto ao acesso à
diversidade de livros: aquisição com pais e responsáveis dos educandos, pedido a
editoras, uso de bibliotecas públicas, constituição de biblioteca com auxílio de
associações de bairro, clubes etc. e, claro, bibliotecas escolares. Coaduno com a ideia
desses autores de que não há leitura qualitativa em apenas um livro durante uma
trajetória escolar extensa.
A certeza de que a colega não usava a BE se deu em momento singular para os
educandos da turma 9M1: visita a esse ambiente pedagógico, quando ela justificou
que não ia a esse lugar, porque sofre de renite. As condições de higiene mencionada
pela colega também foram ratificadas pelos alunos em diversos momentos. Em
relação à aproximação entre os aprendentes e o acervo da BE, eles admitem o fosso
entre a “teoria” e a prática. Quanto à atividade realizada na BE, os educandos a
avaliaram da seguinte maneira, como mostra o excerto a seguir.
A8: [...] Como a professora fez mesmo essa aula aqui que ela pede pra gente pegar o livro aqui, responder as perguntas que tem no bagulho, ela nunca fez uma aula assim, acho diferente interessante que além da gente buscar o conhecimento da leitura, a gente aprender mais sobre a língua portuguesa. A30: [...] ela não dá um livro pra gente ler, ela dá um texto dela lá pra gente resumir. Essas coisas assim, mas podia trazer a gente mais pra biblioteca, pra sempre escolher livro, pra fazer comentário de livro na sala. Ah! Sei lá acho que ficaria legal a aula. Não pra ficar aquela rotina passar texto, ler texto, copiar... Umas coisas assim... Sei lá. (Inc.) ah se ela fizesse assim trouxesse a gente pra biblioteca seria melhor. A aula ia se diferenciar, entendeu? (Recorte da entrevista dos alunos)
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Considerando as falas destacadas acima e a de P, depreende-se que a aproximação
entre o grupo 9M1 e a BE ocorria apenas para a consulta de livros didáticos, cuja
finalidade era a pesquisa para trabalhos extraclasse – momentos em que esse espaço
era citado também por outros professores ou ainda, por iniciativa própria, como
apontam alguns alunos, o que era bastante difícil, pois como não havia um
responsável pela biblioteca o acesso era muito restrito. Em geral, os alunos, inclusive,
os veteranos, desconheciam a existência de outras publicações e ficavam admirados
quando viam as estantes repletas de obras para leitura.
O quadro a seguir evidenciam a relação dos estudantes com a biblioteca.
Quadro 2 – Usuários e não-usuários de biblioteca
Você frequenta biblioteca? Por quê?
Sim 13 40,62%
Não 19 59,38%
Sim
A1 Porque tenhe muitas coisas boas
A9 Por que eu adoro ler
A24 Por que lá é onde tem o que eu procuro para o meu enteresse que é a leitura
A29 De vez em quado, para mim distrair um pouco
Não
A3 Por que procurar na internet e mas fácil de achar
A4 Por que ela só anda fechada
A7 Porque a biblioteca da escola ñ abre mais durante o turno que estuda.
A8 Por que não acho uma perto de mim e a daqui da escola anda fechada
A20 Porque a dá escola vive fechada
A10, A15, A16, A17, A27, A31
Não justificaram
Fonte: Dados da pesquisa: Questionário dos alunos.
No quadro supracitado, as vozes dos alunos denunciam a situação de descaso com a
educação, pois a coleção de livros da BE dificilmente circula entre esse público. A
falta de contato com os materiais, conforme mostram os próprios aprendentes, deve-
se também ao fato de a BE estar fechada e não ser higienizada. A consequência ou
causa disso é que não há uma pessoa (professor, funcionário ou voluntário)
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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responsável pelo espaço, com a função de oferecer à comunidade escolar serviços
bibliotecários. E é claro que apenas essa justificativa não constitui esse cenário.
Uma proposta didática: atividade de leitura e visita à biblioteca escolar
É imprescindível que o fazer-pedagógico no interior da sala de aula corrobore com o
hábito de leitura dos aprendentes e o gosto por essa prática, promovendo mudanças
que extrapolem as paredes da escola, ou seja, possibilitar que esses atores sociais
percorram as etapas dos diferentes níveis educacionais, (re)construindo
competências e saberes necessários para alcançarem objetivos individuais e coletivos,
almejados durante e após egressarem do recinto escolar. Sendo assim, propostas
pedagógicas devem ser planejadas e implementadas tanto para grupos pequenos
quanto para públicos maiores. Para isso, torna-se fundamental conhecer as
especificidades das diversas turmas com as quais os professores estabelecem uma
interlocução. Um programa bem fundamentado, não apenas teoricamente, mas,
sobretudo, nos contextos em que estão inseridos os partícipes desse processo, tende a
repercutir positivamente. Alguns princípios são importantes nessa trajetória
educativa e um deles é a reflexividade, a qual contribui muito para que se corrijam as
imperfeições e busque-se o aperfeiçoamento e a sensibilidade, visando perceber os
elementos que interferem em uma ação que se quer efetiva, sem, contudo, se deixar
abater por ele. (SILVA, 1998).
Como parte do objetivo principal da pesquisa realizada, foi apresentada a docente
uma proposta didática, cuja finalidade era:
Promover a leitura de diferentes obras literárias, constituintes do acervo da biblioteca escolar, a partir da preferência dos educandos, viabilizando o acesso a esse material e incentivando-os a essa prática. (Recorte da proposta didática)
Nessa proposta didática, a turma 9M1 visitaria a BE e seus integrantes poderiam
escolher os livros literários dispostos e organizados nas estantes, segundo seus
próprios critérios. Embora o foco não estivesse na obrigatoriedade do cumprimento
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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da atividade por parte da turma 9M1, sugeri que ela integrasse o rol de trabalhos
avaliativos da unidade letiva em andamento, deixando a critério de P as possíveis
adaptações, as quais incluíam as orientações para os alunos, a estrutura do roteiro de
leitura, a atribuição de nota e o peso desta etc., bem como a adoção ou não do
projeto. A princípio, esperava que a docente participante e eu dialogássemos, a ponto
de analisarmos, conjuntamente, a configuração da Proposta Didática, o que não
aconteceu.
A exposição oral foi sugerida, porque, dessa forma, toda a turma poderia conhecer os
livros lidos pelos colegas, mediante a audição das narrativas e o compartilhamento
de experiências leitoras, fomentando, então, que outras atividades fossem realizadas
a partir desta. Nesse sentido, em outra oportunidade, o grupo poderia ler as obras
mais interessantes em sua visão, debater os temas abordados, dentre outras
possibilidades. Essa prática, chamada por Ezequiel Silva (1998) e Geraldi (2002) de
circuito da leitura e circuito do livro, respectivamente, poderia desencadear um certo
encantamento pela leitura, aproximar os aprendentes também da BE, além de
proporcionar à docente a construção de um programa de trabalho com a leitura e as
competências relacionadas a esse eixo de ensino e aos demais da educação
linguística.
A professora pressupõe que os alunos escolherão livros pequenos e que somente umas três alunas se disporão a apresentar oralmente o livro lido. Compartilhei com ela os resultados bons e ruins obtidos com a atividade, quando eu mesma a apliquei, estando ciente de que, geralmente, são selecionadas obras pouco densas, com fontes grandes e imagens. Apesar disso, afirmei que valia a pena realizá-la. A colega diz que trabalhará os conceitos necessários para que os alunos realizem as atividades bem, levando em consideração a escolha dos livros. (Recorte do diário de campo)
No trecho destacado, aparece uma das ocorrências mais comuns no discurso dos
professores e de outros agentes de letramento: a censura da leitura (SILVA, 1998;
LAJOLO, 2010), a qual consiste em preterir os livros escolhidos pelos alunos,
elegendo, assim, o que pode ou não ser lido pelos educandos. A censura da leitura
também influencia as experiências leitoras nos diferentes ambientes e se caracteriza
pelo desrespeito à caminhada dos leitores. (GERALDI, 2002; LAJOLO, 2010).
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Pude observar a surpresa de muitos discentes por vislumbrarem os diversos livros
literários, principalmente, os livros novos, e acompanhar a interação de alguns com
os materiais que agora estavam em suas mãos.
Os aprendentes discutiam entre si a escolha dos livros. Para isso, eles focalizaram,
principalmente, o número de páginas e ilustrações, o tamanho e formato das fontes,
além de o título das narrativas e outros elementos que se destacavam em um
primeiro olhar. Alguns queriam saber que obras eu indicaria e se poderiam levar
mais de uma. Havia também aqueles alunos que desconheciam a finalidade da
visitação e/ou o que fariam com o livro selecionado.
Uma proposta didática simples, que, embora tenha sido breve, foi significativa para
os aprendentes presentes no dia em que ela, finalmente, pôde ser realizada. É o que
expressa um aluno participante da entrevista, ocorrida no dia seguinte à aludida ação
pedagógica.
Pe: Então, considerando o que alguns colocaram é... usar mais a biblioteca, o que vocês acharam da... da experiência de ontem, né, de vim, escolher um livro? É..., enfim, o que vocês... qual é... foi a sensação de vocês e o que vocês acharam mesmo da proposta? A8: Eu achei legal. É interessante mesmo. É tanto que todo mundo que... que vi que tava aqui hoje, todo mundo trouxe o livro e tava lendo... Sim. Foi que bateu o tempo da outra aula e quando esse intervalo entra na sala todo mundo tava lendo. Achei interessante. (Recorte da entrevista dos alunos)
De modo geral, A8 e outros educandos entrevistados destacam como uma aula
diferenciada a ida à BE e como novidade o empréstimo de livros. A maioria dos
alunos demonstra algum interesse em manusear livros e espera por atividades mais
dinâmicas, criativas e atrativas por parte de cada professor, em suas aulas específicas,
e da escola em sua coletividade.
Considerações finais
A respeito do que acontece na escola, Rojo (2009, p. 8) sintetiza bem a atual situação,
que é agravada pela configuração das práticas educativas, as quais são ineficazes,
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devido ao “[...] desinteresse, desânimo e resistência dos alunos das camadas
populares diante das propostas de ensino e letramento oferecidas pelas práticas
escolares [...]”. As causas e as consequências do sucateamento da educação já fazem
parte de um processo cíclico, o que dificulta reconhecer cada uma delas, o que as
provoca e como interromper essa continuidade. Embora isso aconteça, a elaboração
de medidas contextualizadas e, por isso, exequíveis, é possível; estas precisam ser
realizadas, principalmente, em respeito aos mais prejudicados com a atual
conjuntura educacional.
Apesar de os percalços para concretizar a Proposta Didática, pode-se concluir que a
prática promovida pode ter provocado algum impacto na vida de todos os
participantes. Os significados e sentidos construídos, por exemplo, pelos educandos,
dimensionam que pequenas medidas podem apontar outros caminhos para que o
contexto escolar seja melhorado e a articulação entre sala de aula e biblioteca escolar
seja estreitada.
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LETRAMENTO LITERÁRIO NO LIVRO DIDÁTICO: A circulação da leitura no Projeto Intervalo
Aparecida de Fátima Brasileiro Teixeira (UNEB/UESB)
Resumo: Nas práticas diárias escolares, a leitura encontra lugares de prestígio, desde os espaços extraclasse às empoeiradas estantes das bibliotecas e porque não no protagonista diário que trilha os trajetos dos leitores, o livro didático. Este gênero discursivo traz constante nuances de leitura, embora este texto debruce na leitura literária, especificamente no letramento literário. Utilizado como um dos poucos recursos leitores na sala de aula, este material didático preenche o espaço escolar e insere, mesmo que em fragmentos textuais, um olhar limítrofe para a leitura e convida o leitor, em seus projetos e suas atividades leitoras, a inserção no processo de recepção leitora. Como um mediador social, a voz do projeto editorial do livro didático é amparada com a intersecção da tessitura do educador que ora pode compactuar com as propostas utilizadas, ora pode modificá-la. O livro didático de Língua Portuguesa é um dos recursos que norteia uma das esferas da atividade humana, a esfera educacional, e traz consigo características próprias de utilização da língua de acordo com uma visão cultural proposta pelos enunciados entendidos como produtos sociais. Ademais, é um dos poucos recursos utilizados nas aulas de Língua Portuguesa, único meio de formar leitores. Destarte, este texto debruça em um estudo do livro didático do Ensino Médio, da forma pela qual a leitura é vista no ensino de literatura, configurando-se em um exercício de investigação, em estágio de execução do objeto que tematiza o letramento literário no livro didático de português no Ensino Médio. Neste sentido, a proposta desta pesquisa tem por objetivo verificar de que forma o letramento literário é exposto no Livro didático do Ensino Médio. Com isso, esta investigação teórica basear-se-á em autores que discutem gêneros do discurso, Bakhtin (1997,1981) letramento literário, Cosson (2006) e livro didático de língua portuguesa, Bunzen (2005), dentre outros. Para compor uma intersecção entre as bases teórico-metodológicas serão tecidas uma verificação de como se configura o letramento literário no livro didático “Português: linguagens” de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, da Editora Saraiva, Edição de 2010, 2º ano, tomando como recorte da pesquisa a análise discursiva do Projeto Intervalo, seguida das atividades que norteiam a leitura e a interação com o leitor do texto literário. A dialogia prevista entre o aspecto estético composto na obra, pelo autor da obra literária e os efeitos causados nos diferentes leitores ao perfazerem o caminho da leitura no livro didático do Ensino Médio se configura em uma perspectiva de compreensão responsiva (Bakhtin) do leitor, por meio de questões norteadoras das atividades de leitura.
Palavras-chave: leitura; letramento literário; livro didático
Apresentação A discussão que será delineada discutirá sobre a proposta de leitura norteada através
de uma análise do Projeto Intervalo do livro didático de Língua Portuguesa do
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Ensino Médio “Português: linguagens”, volume 2 de autoria de William Roberto
Cereja e Thereza Cochar Magalhães, edição de 2012- considerado com uma avaliação
positiva pelo Programa Nacional do Livro de Ensino Médio (PNLEM). A forma como
a leitura circula no projeto analisado e as adjetivações do letramento literário nas
atividades sugeridas esboça o papel cultural deste material pedagógico que transita
todo um percurso, do seu processo de produção até as salas de aulas e espaços
pedagógicos diversos.
Após a discussão sobre linguagem, interação relacionada com a compreensão
responsiva do leitor e associada ao percurso do ensino de literatura no LD, no viés do
letramento literário será analisado um dos projetos do LD citado, a fim de verificar
de que forma os enunciados são expostos e se a compreensão responsiva pode ser
vista como um réplica ativa verificando o letramento literário como base de interação
e relação com outros leitores. Com o foco na formação do leitor, sendo este o seu
papel fundamental, o LD considerado como gênero discursivo complexo traz
diversidade de diálogos capazes de propor a discursividade prenhe dos enunciados,
oportunizando a interação desde o processo de produção à circulação.
Relação dialógica: “a palavra minha” e a “palavra do outro”
A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor.” Mikhail Bakhtin/V. N. Volochínov (1981, p. 84)
Atinente a teoria bakhtiniana que desfaz a visão de isolamento, de individualidade e
de abstração da linguagem este mote enunciativo, exposto na epígrafe acima,
preludia a exposição iminente que se desdobra na perspectiva teórico-metodológica
desta pesquisa. Visto que ao refletir sobre a palavra no âmbito enunciativo-
discursivo salienta a mobilidade significativa que esta transporta. E sendo uma
“ponte entre mim e os outros” fica evidenciada a transitividade presente nessa
relação interativa entre interlocutores. Com esse quadro situacional, a citação do
autor, oriunda de discussões do Círculo de Bakhtin, atém a valorização desse
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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mosaico interacional, deixando bem claro a possibilidade de não priorizar, mas sim
de relacionar tanto a “palavra minha” como a “palavra do outro”. Nessa ótica, a
produção de sentido oportuniza embates construtivos de aspectos discursivos,
históricos, culturais e identitários.
Para a reflexão do objeto em análise, Projeto Intervalo do livro didático,
primeiramente, serão destacados pontos cruciais abordados na teoria bakhtiniana
(1997), com o intuito de visualizar uma abordagem teórica consistente para
compreender os gêneros discursivos na esfera da atividade humana. Assim, seguem
breves assertivas que adjetivam esse aparato linguístico com sua cientificidade. A
proposição do diálogo se evidenciará no percurso teórico-metodológico ao propor
um aspecto discursivo dialógico no corpo da pesquisa.
Cada esfera comunicativa está repleta de enunciados com particularidades
correspondentes à(s) finalidade(s) de cada falante e sua identidade linguística
situacional. Sendo que os enunciados mesclam-se, complementam-se e interagem,
produzindo conhecimentos e saberes. Nesse sentido, a duplicidade de faces não se
postula na linearidade do ir para alguém, mas sim no processo cíclico que se constrói
e se relaciona produzindo discursos. Nesse prisma, Bakhtin (1981, p. 84) informa que:
Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade.
Não há, nessa tessitura apresentada pelo autor, uma relação monológica e limítrofe,
mas sim uma coletividade de vozes que vai tecendo e produzindo enunciados,
através da interação dos discursos. Essa concretização do diálogo não pode ser
considerada como inovadora, pois traz indícios temporais e sociais, marcantes de
espaços culturais.
É nessa relação entre o interlocutor e o outro que constitui a resposta. E a busca pela
resposta não se finda na “palavra do outro”, nem na “palavra minha”, visto que em
cada palavra do outro há, necessariamente, a palavra de um outro e com essa palavra
de outros elabora-se a “palavra minha”. (BAKHTIN, 1997, p. 313). Essas
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particularidades são próprias do enunciado, ou seja, é a partir do elo entre os
interlocutores que é possível vislumbrar este diálogo em um prisma construtivo da
linguagem e seu processo interativo. Uma analogia fundante é esboçada por
Bakhtin/Voloshinov (1981, p. 93) quando representa uma comparação entre a
enunciação e uma ilha capaz de se manter emersa no espaço ilimitado do discurso
interior:
A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório. A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação. Uma questão completa, a exclamação, a ordem, o pedido são enunciações completas típicas da vida corrente.
Um gênero discursivo... Construções dialógicas
Os enunciados, produtos dessa diversidade, não são construídos convencionalmente
e intercalados em um elo entre o locutor e seu interlocutor. Há uma intenção
comunicativa que se desdobra diante do trânsito linguístico em que o sujeito
enunciador visa promover uma manifestação - de concordância, resignação,
consenso - do interlocutor ao evidenciar sua presença através da linguagem. O
produto dessa intenção desdobra nos escritos de Bakhtin (1997, p. 301) ao priorizar a
escolha do gênero do discurso condizente com a esfera da atividade humana e a
necessidade de abordar a temática com o propósito de adaptar ao querer-dizer do
falante:
O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc. Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua individualidade e à sua subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gênero escolhido, compõe-se e desenvolve-se na forma do gênero determinado.
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Diante da diversidade e heterogeneidade dos gêneros do discurso, na esfera
comunicativa, fica evidente a sua polaridade, não em uma perspectiva estável, mas
sim em um nível taxionômico, a fim de diferenciar situações simples e complexas
expostas no dia a dia em circunstâncias da vida que englobam o elo ideológico
linguístico. Tanto os gêneros primários quanto os secundários, expostos por Bakhtin
(1997, p.281), vêm se modificando e mesclando, de acordo com cada contexto sócio
cultural, visto que a atividade linguística constitui um processo ininterrupto e de
constante interação. Bakhtin, então, assevera: “Qualquer enunciado considerado
isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos
gêneros do discurso” (1997, p.280).
Fazem parte dos enunciados e constituem os gêneros discursivos, nos pressupostos
das ideias do Círculo de Bakhtin, o conteúdo temático relacionado ao estilo e a
construção composicional.
De antemão, o conteúdo temático traz consigo o objeto temático do enunciado e este
direcionará ao estilo e a estrutura composicional. No que tange o LD, Teixeira e
Souza (2012) enfocam: “o(s) conteúdo(s) temático(s), no caso em questão,
apresentam-se em um viés pedagógico do ensino de língua, em uma perspectiva da
linguística aplicada”. É com essa visão que os gêneros que se inserem no LD terão
um valor discursivo diferenciado da sua esfera comunicativa de uso, pois as
finalidades dialógicas desdobram-se partindo de objetivos do ensino de língua,
desde aspectos referentes à leitura, à compreensão dos diversos gêneros que o
completa, às propostas direcionadoras da produção textual. Bunzen (2005, p. 46) cita
Brait (2000) com o intuito de ratificar o que foi enfatizado acima: “os textos em
gêneros diversos, quando são recontextualizados para os LDPs, passam a integrar a
realidade concreta do gênero do discurso LDP que se constitui justamente através
desta complexa intercalação”.
Enquanto que o estilo não é determinado e específico. Alguns gêneros, como os
literários, oportunizam uma participação mais individualizada, quanto outros, com
um enfoque padronizado, ocultam exigências a esse respeito. Corroborando com
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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uma visão bakhtiniana, o estilo linguístico se dá a partir da apropriação a sua
especificidade com uma determinada esfera comunicativa; no gênero discursivo
analisado, livro didático, com aspectos individuais baseados nas escolhas feitas por
todos que fizeram parte do projeto editorial. Tanto autores, editores, revisores, ao
fazerem uso de estruturas linguísticas/lexicais, escolhas de imagens ou textos,
deixarão evidentes a expressividade imanente no contexto de produção direcionado
pela apreciação valorativa de cada interlocutor. Ferreira (2013, p.28) confirma a
particularidade do estilo e menciona o filósofo russo que: “ressalta o caráter dialógico
da linguagem e dos seus enunciados, chamando a atenção para o aspecto social do
estilo, já que o autor/escritor está sempre dialogando com outros enunciados e se
dirigindo a alguém”.
O estilo não perfaz o seu trajeto isolado, ele juntamente com o tema são responsáveis
pela concepção de cada contribuição dada para montar a estrutura composicional,
visto que elementos da composição do gênero serão fundantes para a relação entre os
pares comunicativos. O livro didático, considerado como um gênero do discurso
secundário e complexo, em seu projeto editorial gráfico, é possível distinguir dois
momentos: o de planejamento destinado à edição, e o de realização gráfica baseado
na concretização das atividades previstas. A divisão em unidades, a intercalação
entre atividades diferenciadas, o entremeio de gêneros, de fato, ficam visíveis, nesse
material impresso, tanto aspectos pedagógicos, quanto um produto comercial que
visa categorias diferenciadas de leitores ao pensar no corpo central de elaboração,
circulação e produção.
O livro didático do ensino médio insere-se em uma esfera educacional, por
conseguinte esfera da atividade humana, relacionada com o uso da língua, uso este
imbrincado em situações comunicativas diárias, independente do espaço sócio
histórico. E divide o espaço de diversos outros gêneros, que dispõem os educandos,
desde a escola até o âmbito familiar com seus diversos eventos de letramentos.
Ao refletir sobre a esfera educacional, o LDLP faz parte de um dos materiais
didáticos mais utilizados e traz consigo uma heterogeneidade de gêneros
discursivos. Bunzen (2005) cita a terminologia utilizada por Canclini ao mencionar o
processo de “hibridação” e deixa evidente o que se visualiza no LDLP, pois é notória
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a junção e modificação constante dos gêneros de acordo com a agilidade diante do
processo tecnológico constante. E como enunciado discursivo, BAKHTIN (1997,
p.279) apresenta:
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Cumpre salientar de um modo especial a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos), que incluem indiferentemente: a curta réplica do diálogo cotidiano.
A adjetivação esboçada pelo autor sobre os gêneros discursivos (riqueza e variedade)
representa este misto de incompletudes e isso possibilita amplos olhares que são e
podem ser vislumbrados diante do processo de construção e uso social. Com essa
vertente, vale a advertência feita por Bunzen (2005, p. 37):
Estudar o LDP como um gênero do discurso implica justamente procurar entendê-lo como um produto sócio-histórico e cultural em que atuam vários agentes (autores, editores, revisores, leitores críticos, professores, etc.), com certas relações sociais entre si, na produção e seleção de enunciados concretos com determinadas finalidades.
A compreensão responsiva e o letramento literário: réplicas dialógicas
Nesse decurso interativo, elos ideológicos unem-se na trama discursiva promovendo
réplicas ativas de discursos anteriores constituídos de outros que estão por vir. A
relação que se tece na situação vivenciada no contexto extra verbal constitui em um
processo indissociável. Em seu texto, Voloshinov/Bakhtin (1926, p. 4) explicitam esta
relação interativa e esboça a asserção seguinte:
Na vida, o discurso verbal é claramente não auto-suficiente. Ele nasce de uma situação pragmática extraverbal e mantém a conexão mais próxima possível com esta situação. Além disso, tal discurso é diretamente vinculado à vida em si e não pode ser divorciado dela sem perder sua significação.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Os autores mencionados (Voloshinov/Bakhtin, 1926, p. 5) estruturam uma tríade de
categorias que compreendem este contexto extra verbal, alicerçado na compreensão
de sentidos do enunciado e na interação entre interlocutores: 1) a espacialidade
comum dos interlocutores, a “unidade do visível”, exposta às visualizações do
entorno social; 2) a “unidade do saber”, compreendida das informações obtidas sobre
a situação dos interlocutores; 3) o julgamento de valor da situação visualizada, o que
foi “unanimemente avaliado”. Para vislumbrar os elementos citados em uma ótica
dos parceiros discursivos, os interlocutores na sua atitude respondente, participam
da situação externa à língua verbal, conhecem e compreendem esta situação e na
subjetividade de cada sujeito são possíveis de expor a sua apreciação valorativa sobre
o fato visualizado.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin/Volochinov (1981, p. 22) expõem que a
compreensão não se revela isolada do material semiótico, à proporção que:
“compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos
já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio
de signos”.
Partindo dos elementos mencionados, a discussão esboçada, sucintamente, detém
um olhar mais específico sobre a visualização de aspectos similares sobre a
compreensão responsiva.
Nas reflexões bakhtinianas, o receptor/ouvinte despe da sua função singular de
apenas receber o já dito por outro e se configura na posição dialógica de ativo no
discurso e com isso promove atitudes responsivas que o faz mudar de posição no
quadro comunicativo, revertendo papéis. Nessa réplica, o receptor mescla a sua
colocação (que não se constitui estática, mas sim em constante flexibilidade
linguística) posicionando como enunciador e se manifestando como participante
ativo.
Diante da breve exposição sobre a responsividade, em um cunho geral da linguagem,
vale especificar a necessidade desta pesquisa de direcionar esse trajeto específico à
leitura e pensar sujeitos norteadores do ato de ler, em um contexto não só
imanentista do texto literário, mas também sociológico. Com isso, tem-se desde o
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autor, a sua palavra e o leitor com sua palavra. São tessituras de palavras diversas,
“marcadas pela individualidade e pelo contexto” e vistas para Bakhtin (1981, p.313):
a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade.
Nesse trançar de palavras não há junções arbitrárias, há diálogos e réplicas que
surgem constantemente. A troca de palavras (autor - texto - leitor) constrói um novo
dizer capaz de mobilizar outras palavras que possam trilhar esse percurso. Fica claro
que nunca será possível uma repetição dos dizeres. São infinitas construções
enunciativas possíveis e que juntas podem colher leitores em demasia.
Destarte Bakhtin/Volochinov (1981, p. 9) argumentam que o modo de expressar de
cada leitor, insere-se na conjuntura de comunicação organizando um desempenho
enunciativo, o qual se esboça em uma atuação responsiva capaz de protagonizar
todos os envolvidos nesta trama. Dessa forma:
qualquer locução realmente dita em voz alta ou escrita para uma comunicação inteligível (isto é, qualquer uma exceto palavras depositadas num dicionário) é a expressão e produto da interação social de três participantes: o falante (autor), o interlocutor (leitor) e o tópico (o que ou o quem) da fala (o herói).
Com isso, abordar o ensino de literatura, limitado no termo ensinar a literatura, é
uma incompreensível expressão, visto que não se configura ensinar literatura sem
antes de ler literatura. E por que não traçar um viés pelo letramento literário? Cosson
(2011, p. 23) considera o letramento literário como prática social inserido e de
responsabilidade da escola, além disso, questiona “como deve ser feita a
escolarização da literatura sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro
de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização.” Uma
relação significativa se faz presente na discussão de Rangel (2007, p.128) ou seja, a de
“um convívio pedagógica (SIC)e culturalmente mais interessante entre escola e
literatura, livro didático e texto literário”. Pensar a literatura em outra vertente traz a
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possibilidade de ser vista da forma como ela é, arte literária. Arte como uma relação
dialógica entre aquele que cria e o contemplador da obra lida. Tendo em vista a sua
inserção no meio social.
As atividades no ensino de literatura são apresentadas por Cosson (2011, p. 22) ele
demonstra como se oscilam ao prescrever informações sobre literatura e a autoridade
veemente sobre o exercício do gosto de ler. No objeto estudado, livro didático, não há
espaço para o que o leitor deseja ler, e sim “imposições” de leituras, consideradas
como artísticas por um grupo que as julgam a partir de atitudes valorativas
condizentes com seu grupo de valor. Na verdade, a leitura fica em segundo plano e o
priorizado são contextos sócio-históricos de períodos ornados por excerto de poemas,
romances que serão produtos de análises procedimentais formais, temáticas e
ideológicas, em atividades. Na conclusão do capítulo Intervalo, objetivos direcionam
qual será o roteiro de estudo, informando ao aluno quais habilidades ele deve ter ao
final da leitura dos textos. Com isso vale ater ao que menciona Rangel (2007, p. 143):
os textos literários do LDP não poderão ser tratados como sendo toda a literatura. O complexo mundo de autores e obras que uma certa ordem cultural consagrou como literários devera ser lembrado a todo momento, a começar pelas obras e pelos autores dos excertos que figuram no próprio LDP.
O entrelaçar sociológico do método bakhtiniano no projeto intervalo
Na anunciação do processo de tessitura, o corpus dessa pesquisa será analisado
recorrendo ao método sociológico proposto por Bakhtin/Volochinov (1981). Os
autores reiteram que o foco compositor da enunciação não é interior, mas sim
exterior e se situa no contexto social que circunda o indivíduo. Ainda traz consigo o
fulcro fundante da interação social.
De acordo com a proposta conceitual, nessa pesquisa, a língua constitui vivaz e
evolve historicamente com nuances variadas. Para tanto, a metodologia basear-se-á
no método sociológico esboçado por Bakhtin/Volochinov em Marxismo e Filosofia da
Linguagem. Isso não será criteriosamente seguido como um preceito, mas a
adequabilidade permitirá dá voz e autonomia ao objeto, a fim de que ele, por meio
das particularidades da pesquisa dialógica, possa falar ao indicar o percurso a ser
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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seguido. Em virtude disso e da análise do objeto livro didático, a disposição
metodológica, para este estudo, será configurada em uma pesquisa qualitativa e
lança mão da análise discursiva do projeto “Intervalo” do livro didático “Português:
linguagens” de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, da Editora
Saraiva, 7ª edição reformulada, 2º ano, manual do professor, integrante do Programa
Nacional de Livro Didático do Ensino Médio 2012.
Perante a totalidade atividades de ensino de literatura foi priorizado o enunciado,
nas suas condições de produção para buscar o leitor/ouvinte do gênero discursivo
em suas variadas tessituras. Diante da complexa circulação do LD e da
heterogeneidade de gêneros discursivos que o compõe será feita uma análise do
Projeto Intervalo: “Romantismo em revista”, objeto de pesquisa deste texto.
O projeto é estreado com o título do projeto INTERVALO, disposto em composição
gráfica irreverente com uma fonte colorida; na sequência uma tela introdutória para
a contemplação dos educandos, pois não expõem atividades direcionadas. Abaixo a
imagem:
Figura 1- Abertura do capítulo Intervalo
Fonte: CEREJA e MAGALHÂES (2010)
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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A proposição inicial sugere uma interação discursiva entre os alunos ao recomendar
a organização da turma em grupo. Isso fica evidente ao visualizar que toda
enunciação ao focar na sua organização central não é interior, mas sim exterior e se
situa no meio social em que o indivíduo está envolto. Diante das sugestões de
atividade do projeto supracitado, é sugerida a escolha e a realização de uma delas.
Como interlocutor do discurso, a esfera educacional mantém constante a interação e
o dialogismo. Esse processo prévio não segue prescrições. Ante a flexibilidade
linguística e os seguintes imperativos: “Escolha uma delas e realizem-na”, “Busquem
informações complementares em livros, enciclopédias” o ouvinte compreende ou
não a significação linguística do discurso do LD, as possíveis modificações feitas pelo
docente e assume para com esta enunciação uma réplica ativa. É permissível fazer
um paralelo com a formação polifônica dos enunciados, pois eles estão ligados tanto
aos elos que os antecedem quanto aos que os sucedem na conjuntura da comunicação
verbal. Para Goulart (2007, p.38-39): “o papel dos outros, como interlocutores,
destinatários - participantes ativos, é, então, muito importante. Aqui, destacamos o
papel dos Outros na escola - Outros/professores, Outros/autores, Outros/colegas”.
São estas vozes que se encontram constantemente no dia a dia da sala de aula e que
serão convocadas a ocuparem sua colocação de enunciador discursivo ao aceitarem o
proposto no projeto, modificarem sugerindo novas possibilidades ou silenciarem à
atividade e de forma autônoma substituindo-a por outra condizente com sua prática
situada.
Figura 2 - Projeto Intervalo “Romantismo em revista”
Fonte: CEREJA e MAGALHÂES (2010)
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O gênero literário (poesia e prosa) é sugerido como base na seção ‘O amor romântico’
e inicia-se com um questionamento ao sujeito em dialogia solicitando que eles
respondam “O que era o amor para os românticos?”. Nesta atividade, evidencia-se
uma compreensão responsiva ativa, em que ao leitor/aluno são propostos poemas
canônicos e leituras teóricas para definir o amor romântico. O iniciar do projeto não
norteia a leitura a partir da vivência do leitor. O contexto social não é indicativo de
manifestação nessa proposição e são feitas indicações de um tempo e espaço do
século XIX. O leitor/aluno não se posiciona integralmente, e é necessário buscar o
outro (textos teóricos e poéticos), para a partir desses se evidenciar a manifestação do
“eu”. Outras seções são sugeridas e buscam um diálogo entre a literatura e outras
artes. A seção 2 direciona a pesquisa para as artes plásticas, a seguinte para a música
romântica propondo um paralelo entre a erudita e a música popular hodierna.
Enquanto que as atividades seguintes prosseguem com o estilo literário. Como a
próxima que será esboçada.
Figura 3 - Seção: Sou muito romântico! - Declamando poemas
Fonte: CEREJA e MAGALHÂES (2010)
Nessa mesma temática, em ‘Sou muito romântico! Declamando poemas’, a primeira
solicitação sugere a escolha de poemas estudados para serem declamados e
caracterizados com vestimentas correspondentes a cada estilo. Essa escolha do
gênero poema pode ser uma enunciação provocativa em que o leitor/ouvinte faça
questionamentos sobre autores, estilos, estrutura de poemas, uma atitude
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respondente ativa ou o discente pode apenas seguir a determinação do educador.
Isso pode ser evidenciado outrora na leitura dos poemas, e montagem da “mostra
panorâmica da poesia romântica” (CEREJA e MAGALHÃES, 2010, p. 130). O
procedimento metodológico induz, também, o leitor/aluno manifestar, por meio do
desempenho do aluno, gestos, enunciados, produzidos espontaneamente e
resultantes do seu processo interpretativo do letrar literalmente. Na próxima seção
há a presença de outra fase romântica.
Figura 4 - Seção: “Stamos em pleno mar!”
Fonte: CEREJA e MAGALHÂES (2010)
Em ‘Stamos em pleno mar! - Declamando ou encenando “O navio negreiro”’, após a
leitura do poema “O navio negreiro”, visualiza-se seguindo particularidades
referentes à trama anterior, embora acrescente a montagem de um cenário e
transmutação do poema em peça teatral. Esse fato possibilita adaptações a serem
feitas de acordo com o interesse do leitor/aluno. Ao mobilizar o leitor para
montagem do cenário, isso é feito a partir da responsividade inerente ao texto e ao
seu contexto de vivências. Fica evidente o convite a leitura e a significação dada a
leitura do texto literário.
A proposta acima traz outra roupagem para o ensino de literatura, nesse sentido
indaga-se qual o valor atribuído à pluralidade cultural dos discentes na prática de
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ensino de literatura proposta pelo livro didático do ensino médio? Estuda-se
literatura sem que se leia literatura, sem que se perceba a inserção das obras literárias
no seu contexto de origem, permitindo um diálogo ente culturas diversas. Leituras,
em excesso, são feitas de fragmentos contidos no livro didático e estes são base para
o estudo da literatura e suas configurações estéticas. Já que passam suas aulas de
literatura sem experiências de leitura como menciona Cosson (2011, p. 22-23):
Raras são as oportunidades de leitura de um texto integral, e quando isso acontece, segue-se o roteiro do ensino fundamental, com preferência para o resumo e os debates, sendo que estes são comentários assistemáticos sobre o texto, chegando até a extrapolar para discutir situações tematicamente relacionadas.
Nessa seção final, há indicação de interlocutores, desde a voz do professor,
juntamente com os leitores, mas também há a proposta de participação dos leitores
do LD, ao indicar através de verbos no imperativo, sugestões de como a atividade
pode ser desenvolvida. Nessa proposição, a indicação de escolha de espaço para
apresentação da revista e material a ser utilizado, manifesta de forma evidente. Há
uma interação constante e pode ser intensificada com a voz do educador que ao
analisar a proposta e sugerir outra condizente com o a prática situada do âmbito
escolar.
Figura 5- Proposta de atividade para montar a revista
Fonte: CEREJA e MAGALHÂES (2010)
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Algumas considerações
A leitura do texto literário é representante de interação e diálogo entre o autor, o
texto e o leitor, seguido da possibilidade de troca discursiva com a comunidade que é
vivenciada. A noção de compreensão responsiva ativa é necessária para qualificar o
trabalho com as práticas de leitura, pois, quando se focaliza a multimodalidade dos
gêneros literários, provoca-se produção de respostas demandadas dos percursos
interativos de ensino da língua. Isso reforça a possibilidade do desenvolvimento de
atividades didáticas que focalizem a exploração dialógica dos gêneros escolares.
Nesse sentido, a prioridade pelo ensino de literatura no Ensino Médio deve repensar
a prática docente e o uso do livro didático ao rever de que forma a literatura está
sendo “imposta” a estes jovens. Mudar este panorama requer uma mudança de
atitude dos docentes, enfocando no ensino de literatura o gosto pela leitura.
Após termos em sala de aula um grupo de leitores literários é possível falar de
literatura com aqueles que leem literatura. O espaço de leitor será mais visível ao
deparar com situação similar. E ao questionar o porquê da escola ser um momento
de leitura se este ato pode ser feito fora dela, difere completamente, visto que é na
escola que presenciamos o âmbito de diversidades de olhares, cada um com seu
modo significativo montará a colcha de retalho da leitura.
Referências
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In:_____. Estética da criação verbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 277-327. ______. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 2ed. São Paulo: Hucitec, 1981. BUNZEN, Clecio. Livro didático de Língua Portuguesa: um gênero do Discurso. 2005. 168p. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Departamento de Linguísticas Aplicada, no Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas. São Paulo. 2005. CEREJA, William Roberto & MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português linguagens: vol. 2. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
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COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed.1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2011. FERREIRA, Valméria Brito Almeida Vilela. Dialogismo e cronotopia no livro didático de português: a construção de um gênero do discurso. 2013. p. 124. Dissertação (Mestrado em Letras: Cultura, Educação e Linguagens) -Departamento de Estudos Linguísticos e Literários, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, BA. 2013. GOULART, Cecília M. A. Questões de estilo no contexto do processo de letramento: crianças de 3ª série elaboram sinopses de livros literários. In. PAIVA, Aparecida et all (orgs.) Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces - O jogo do livro. 2. reimp. Belo horizonte: Autêntica/ CEALE/UFMG, 2007.p. 35-49 RANGEL, Egon. Letramento literário e livro didático de língua portuguesa: “os amores difíceis”. In.: PAIVA, Aparecida et all (orgs). Literatura e letramento: espaço, suportes e interfaces - O jogo do livro. 2. reimp Belo Horizonte: Autêntica/CEALE/UFMG, 2007. p.127-145
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O LÚDICO, A LEITURA E O ENSINO HOJE
Zélia Malheiro Marques Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus VI, Caetité.
Ginaldo Cardoso de Araújo Professor da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus VI, Caetité.
Resumo: Este texto é resultado das ações do Programa de Iniciação à Docência – PIBID/CAPES da área de Língua Portuguesa, Campus VI, em desenvolvimento no Instituto de Educação Anísio Teixeira – IEAT, em Caetité – Bahia. Também se vincula às discussões da Linha de Pesquisa Leitura e Formação Docente do Grupo de Pesquisa Leitura, Cultura e Formação Docente – GPLEC. Das ações vivenciadas, tanto em sala de aula, quanto em outros espaços dessa escola pública, importante refletir sobre o tema deste trabalho O lúdico, a leitura e o ensino hoje, cujo objetivo é discutir as relações entre ensino, leitura e ludicidade, apresentando práticas de leitura exitosas desenvolvidas pelos bolsistas de Iniciação à Docência nos espaços do IEAT, numa perspectiva de constituição leitora. Como exemplo dessa articulação entre a leitura e as atividades lúdicas, apresentamos o “carrinho da leitura”, proposta que transformou o carro da merenda escolar em um carrinho contendo livros, histórias em quadrinhos, gibis, revistas, dentre outros e “visitava” as salas de aula dos anos finais do Ensino Fundamental do IEAT promovendo dramatização de textos literários, atividades lúdicas e mediação da leitura. Os estudos de teóricos como Nóvoa (1992), Moraes (2000), Chartier (2001), Paulino (2001), Abreu (2007), Freire (2009) e Yunes (2009, 2012), dentre outros, servem de sustentáculo para pensarmos as ações que estão em desenvolvimento nessa escola pública, pioneira na região. As atividades desenvolvidas pelos bolsistas, sob a orientação dos coordenadores do PIBID, demonstram que é possível ampliar a formação leitora de nossos alunos, à medida que diversificamos as formas como apresentamos e trabalhamos com os textos na escola. Numa sociedade em constantes transformações, garantir a formação de sujeitos leitores letrados é condição fundamental para o exercício pleno da cidadania. Assim sendo, a escola deve se organizar como um espaço de mediação da leitura e do letramento. Nossa contribuição com este texto é suscitar reflexões que possam desencadear práticas pedagógicas favoráveis ao exercício do ato de ler nos diversos segmentos da Educação Básica e nas diversas áreas do conhecimento, que concebam a leitura como uma atividade significativa, prazerosa e necessária para a apropriação e construção de novos conhecimentos.
Palavras - chave: Leitura; Lúdico; Práticas Culturais de Leitura.
APRESENTAÇÃO
[...] o recurso da pesquisa é indispensável como recolha de dados para iniciar o trabalho, mas a experiência não deve se esgotar nesses dados. Sobretudo se estivermos em sala de ensino médio, onde as
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experiências são mais diversificadas e já se deve discutir inclusive, questões de linguagem deste e/ou daquele autor [...] (PINHEIRO, 2007, p. 367).
Pensar temas importantes, como o lúdico, a leitura e o ensino, na atualidade,
perpassa pela importante combinação entre ensino e pesquisa. Com pesquisa
associada a outras experiências, o professor poderá buscar conhecer o aluno e
trabalhar temáticas mais prazerosas relacionadas às atividades mais procuradas e
vivenciadas no cotidiano do educando, como acena a epígrafe escolhida.
Pretende-se, neste texto, discutir a relação entre o lúdico, a leitura e o ensino,
apresentando práticas de leitura, associadas à ludicidade, desenvolvidas pelos
bolsistas de Iniciação à Docência do curso de Licenciatura em Letras, UNEB, Campus
de Caetité, vinculados ao Programa de Iniciação à Docência – PIBID/CAPES, em
execução com alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio no
Instituto de Educação Anísio Teixeira – IEAT.
A ideia é pensar os leitores e o seu campo diversificado. Isso não quer dizer que seja
uma ação simples. Ao contrário, difícil é inferir análise e interpretações nessas
circunstâncias. Pensamos, no entanto, que o campo não é para essas considerações,
talvez seja mais relevante favorecer produção de experiências em que todos os atores
sejam atraídos a pensar a vida, sendo possível favorecer ações atrativas para as
experiências formativas, a exemplo do ensino hoje, cujas ações podem ser pensadas
pelo viés do lúdico, uma leitura que convida a atrair leitores pelas ações necessárias
no processo de ensino e da aprendizagem.
Uma leitura que transforma a sala de aula ou os outros espaços eleitos para o saber,
como lugar que lembra um teatro, um cinema ou uma praça de diversão em que o
divertir é também uma ação educativa e não destrutiva. Por essa condição, ao
favorecer as ações do PIBID com alunos do Instituto de Educação Anísio Teixeira –
IEAT, fomos entrelaçando teoria e prática e propiciando práticas culturais em que o
lúdico, a leitura e o ensino se articularam para a expressão de leituras e de leitores,
sendo experiências de leitura individual e coletiva, socializadas nas diversas práticas
leitoras em que se fez possível intensificar o diálogo com teóricos, como Nóvoa
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(1992), Chartier (2001), Paulino, (2001), Abreu (2007), Moraes (2000), Yunes (2009,
2012), na perspectiva de poder favorecer a construção de atividades formativas, a
exemplo do projeto IEAT: 50 anos de educação, uma continuidade da escola normal
de Caetité e do Projeto “Carrinho da Leitura”, ambos com o envolvimento dos
bolsistas do PIBID.
O trabalho com o lúdico e a leitura com alunos do IEAT, em Caetité/BA
São muitos os estudos e as pesquisas que abordam o conceito e a importância da
leitura. Entretanto, a compreensão clara por parte de todos os atores do cenário
educacional de seu significado no processo de ensinar e aprender ainda é algo que
precisa ser discutido e apropriado com mais segurança. Para Martins (2007), o ato de
ler nasce desde os nossos primeiros contatos com o mundo, com a necessidade da
comunicação. Assim, a leitura é uma prática social e não podemos considerar a sua
aprendizagem somente a partir do momento em que o educando adentra o espaço
escolar. Por isso, consideramos aqui a leitura como diálogo, interação entre sujeito e
mundo materializado nas suas mais diferentes formas de textos. Freire (2009) traduz
essa ideia quando afirma que
a leitura da palavra é sempre precedida da leitura do mundo. E aprender a ler, a escrever, a alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto não numa manipulação mecânica de palavras, mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e realidade. (FREIRE, 2009, p.8)
Ampliando essa idéia sobre a importância da leitura, Yunes destaca:
Ler é, pois, um ato de primeira instância no esboço da consciência de si mesmo e do outro e sua inscrição no mundo se dá como uma escrita de vida. Do ato de ler decorre o ato de se escrever, de escrever a própria história e dos outros, de marcar a própria existência social com traços que podem, no entanto, guardar-se sob a forma das oralidades, tanto quanto ganhar volumes, cores e sinais. [...]. A leitura
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não é mero exercício sobre a escrita dos outros, mas formulação lenta da própria escrita em resposta, em diálogo, seja como relatos, seja como ações. Ler é inscrever-se no mundo como signo, entrar na cadeia significante, elaborar continuamente interpretações que dão sentido ao mundo, registrá-las com palavras, gestos, traços. Ler é significar e, ao mesmo tempo, tornar-se significante. A leitura é uma escrita de si mesmo, na relação interativa que dá sentido ao mundo. (YUNES, 2009, p.35)
A leitura, nessa perspectiva, só desperta interesse quando interage com o leitor,
quando faz sentido e traz conceitos que se articulam com as informações que já se
tem. Essa idéia nos levou a pensar em como promover, na escola, situações que, de
fato, favoreçam a aprendizagem e o gosto pela leitura, bem como pelos conteúdos
que se trabalham nas disciplinas do currículo. Os estudos na linha de pesquisa do
Grupo de Pesquisa Leitura, Cultura e Formação Docente – GPLEC contribuíram para
pensarmos nessas alternativas. Assim, surgiu o projeto PIBID A leitura na sala de
aula sertaneja com a preocupação de trabalhar práticas de leitura que levassem em
consideração os aspectos culturais e lúdicos. São os resultados das práticas de leitura
desenvolvidas nesse projeto que constituem o fio condutor da escrita deste texto.
Com a vinculação entre leitura e ludicidade, o trabalho parece ser mais aceito entre
os alunos e o professor pesquisador, como ganho, tem a sensação de quem descobre
alternativas em meio à complexidade do mundo contemporâneo, podendo propiciar
a novidade como causadora de entusiasmo e de prazer. Ressalta-se, pois, a ideia de
avançar por caminhos não conhecidos, na expectativa de que o desconhecido venha
favorecer planos de trabalho inéditos, necessários e indispensáveis, tanto em
ambientes escolares, quanto em outros espaços em que se faz possível a mediação do
saber. As práticas de leitura das mais diversas formas passam a ser instrumentos de
leitura, impressas ou não:
[...] A necessidade de compreensão do impacto da invenção e da difusão da escrita e, posteriormente, da imprensa e dos suportes eletrônicos converteu a escrita, o impresso, esses novos meios eletrônicos e as práticas de leitura em instrumentos para a exploração, por historiadores, antropólogos e psicólogos, dos processos sociais, culturais, políticos, econômicos e cognitivos
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associados ao surgimento e ao uso dessas tecnologias de comunicação e conservação do conhecimento [...] (BATISTA & GALVÃO, 2005. p. 12).
Como um instrumento relevante, a leitura é entendida para apoiar na compreensão
dos diferentes grupos sociais, como são representados, quais suas experiências
leitoras. Para isso, faz-se necessário um mediador para essas leituras. Dentre os
muitos mediadores, o professor, ao ser bom leitor, poderá demonstrar o quanto é
significativo ler pela partilha de situações vivas e emocionantes, mobilizadoras da
vida, pelas experiências diversas, sendo docentes, discentes ou não, todas que
estiverem na proposição da ação de ler.
Com essa ideia, podemos pensar a palavra “atração” para associá-la ao lúdico, à
leitura e ao ensino hoje pelas práticas culturais de leitura em que a ação de ler
perpassa pela ludicidade e pelo dinamismo do mundo em combinação com os
muitos textos, verbais ou não. Aliás, no mundo atual, tem sido uma forte marca das
relações cotidianas, a utilização dos diversos tipos de textos, como se o leitor, para se
sentir assim, venha exigir esse entrelaçamento textual.
Mundos pessoais e sociais, a todo instante, se integram ou desintegram numa
tentativa de oferecer compreensão da vida para um público diversificado e exigente:
“[...] aposto numa Educação que se esvazie da substância humanista que a satura e
na busca de alternativas à sobrevivência em um estado pós-humano: sonâmbulo,
inconsciente, sem ação, inabitado” (AMORIM, 2010, p. 55).
Com o projeto IEAT: 50 anos de educação, as narrativas educacionais de tempos
anteriores se entrelaçaram com as atuais para as necessárias discussões sobre o
ensino, especificamente, sobre o trabalho pedagógico do momento atual.
Experiências e subjetividades vivenciadas foram expressas pelos diversos espaços de
mediação do saber. Para isso, o planejamento realizado previu ações de divulgação e
de execução pela integração das práticas de leitura teórico-metodológicas em
intercâmbio com a história da educação de Caetité, sua contextualização, alguns
docentes e discentes, suas características da época em confronto com as atuais.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
76
No momento da culminância do projeto, em meio à Feira de Educação, evento anual
que acontece na escola com tema em discussão durante o desenvolvimento das ações
cotidianas das diversas áreas, foi pensada também a gincana em meio aos jogos
abertos envolvendo direção, professores, alunos, funcionários e o público geral
relacionado ao IEAT.
Dentre as muitas ações, elegemos as atividades pensadas para a gincana da leitura
em meio aos jogos abertos. Por elas, os leitores foram criando novas ações, a exemplo
da confecção de jornais sobre as ações em espaços escolares e virtuais pelas redes
sociais. As equipes foram distribuídas, algumas tarefas reveladas, outras divulgadas
no momento da gincana. Desse lugar, entrelaçamos algumas experiências que
evidenciaram a possibilidade de integração entre o lúdico, a leitura e o ensino,
revelando o quanto se faz importante pensar essas temáticas de forma imbricada.
Desde o momento da apresentação das equipes, observamos a criatividade na
escolha do nome, o texto justificativo, a camiseta e o grito de guerra demonstram a
sintonia com a história docente do lugar. Como havia, nas tarefas, a solicitação de
que houvesse divulgação dos trabalhos nas redes sociais, as ações ganharam um
espaço bem mais amplo e participativo, fazendo com que mais leitores se inteirassem
da proposta.
Na apresentação das coreografias, as equipes realçaram questões significativas,
reveladoras de outros tempos, trazendo oportunidades das leituras de época pela
música, pela dança, pelas roupas e por todo o cenário em que o público presente
passou a interagir, à medida que a apresentação foi acontecendo, porque favoreceu
lembranças reveladoras de outros espaços do saber. A caricatura de Anísio Teixeira,
o educador, deixou em destaque sua filosofia de trabalho, realçando a arte como uma
habilidade dos alunos criadores desses painéis.
A campanha “Natal com Leituras”, coleta de instrumentos de leitura, para
idealização de novas práticas leitoras em lugares sem essa mediação do saber,
contribuiu para a integração com a comunidade. Nessas leituras, evidenciou-se a
ideia do quanto devemos e podemos contribuir para que a leitura ganhe força em
outros lugares, além dos muros escolares.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
77
Para a realização dessas ações lúdicas, muitos espaços foram utilizados, tantos os
ambientes formais, quanto os não formais e assim em salas de aula, ginásios
esportivos, praças públicas, auditórios, dentre outros, conforme leitura a ser
realizada, os alunos, os professores, a direção, os funcionários e o público em geral
formam os leitores que aceitam discutir uma temática pela criação de práticas
culturais de leitura, fazendo um intercâmbio de uma diversificada tipologia textual.
Para finalizar, o grupo leitor confraterniza as ações em meio a comidas que são
partilhadas num clima festivo e comemorativo.
Neste momento, até mesmo a equipe não vencedora não se sente em situação de
perda. Os diversos depoimentos trazem o prazer de vivência no grupo e o esforço
pela busca de ações mais interativas e participativas parece ser evidenciado como o
mais importante troféu e não necessariamente a pontuação da equipe vencedora. A
vitória está associada ao esforço de criar ações e de ocupação desse palco da vida.
Outra experiência bastante significativa, desenvolvida pelos bolsistas do PIBIB, com
os alunos dos anos finais do Ensino Fundamental, e que deixa evidente como o
lúdico pode motivar a formação de leitores, foi o projeto “A leitura em movimento”.
A proposta consistiu em levar o “carrinho da leitura” contendo livros, histórias em
quadrinhos, gibis, revistas, dentre outros para a mediação da leitura em sala de aula,
combinando dramatização, diálogos sobre as leituras realizadas e culminava com o
oferecimento e livros aos alunos para que eles levassem para realizar a leitura em
casa. Nas aulas seguintes, os alunos retornavam com os livros, e tinham a
oportunidade de contar para os colegas as experiências adquiridas com a leitura
feita. Como o “carrinho”, antes era da merenda escolar, nessa adaptação, os bolsistas
que fizeram a mediação da leitura com os alunos, vestiam-se de copeiros e se
juntavam aos que se caracterizavam de personagens literárias, conforme texto
escolhido para ser dramatizado antes de exploração dos textos/livros pelos alunos.
Assim, entre formação docente e leitura, é possível pensar uma prática pedagógica
pela acolhida aos diversos textos, ressaltando a importância da ludicidade tão aceita
entre leitores contemporâneos. Acreditamos que o lúdico, nesse processo, funciona
como motivador para a interação dos alunos com os textos. Importante também
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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destacar que atividades como essas contribuem de forma positiva para a constituição
de leitores ávidos por ler o mundo e os textos que nele circulam.
Nesta perspectiva, as ações do PIBID estão se multiplicando nos espaços da escola,
disseminando a ideia de que é possível trabalhar o gosto pela leitura e formar leitores
conscientes de que o texto mais importante a ser lido é o mundo em que vivemos.
Para tanto, a escola deve se colocar, de forma ativa, como mediadora desse processo.
Considerações finais
Consideramos a iniciativa como propiciadora do necessário intercâmbio entre o
lúdico e a leitura tão indispensáveis à prática pedagógica de hoje, cujos resultados
podem revelar leitores produtores de novas práticas de leitura. Por se sentirem
assim, colocam-se abertos para acolher novos textos como os que chegam pela
literatura ou pela exigência curricular de cada série correspondente ao ensino
fundamental ou médio. Assim sendo, muitas novas ações são pensadas, ressaltando
a importância do trabalho associando à ludicidade tão aceita entre leitores
contemporâneos. Podemos dizer que esta ideia favoreceu aos leitores o desejo de
construção de ações para a ressignificação do IEAT, escola com história de formação
docente desde longas datas. Desse entrelaçamento, o espaço museológico começou a
ganhar força para ser edificado, favorecendo a necessária discussão da formação
docente do lugar.
Para os bolsistas, as experiências vivenciadas no PIBID estão se tornando verdadeiras
aulas de formação de professores mediadores da leitura. Para a escola, a
oportunidade de reflexão sobre suas práticas de leitura e letramento nas diversas
áreas do conhecimento e seu papel na formação de leitores. Esperamos, assim,
contribuir com a ressignificação do conceito de leitura e sua importância no processo
de construção de saberes no cenário educacional e na vida social, permitindo aos
educandos a aplicação desses conhecimentos no enfrentamento dos desafios do
mundo contemporâneo, que a cada dia se torna mais complexo e exigente. O
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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desenvolvimento da competência leitora torna-se, portanto, uma aprendizagem
necessária e indispensável para o pleno exercício da cidadania.
Referências
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da leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 2007 , pp. 9-15. AMORIM, A. C. Experiência do cinema brasileiro na/pela identificação popular. In. BARBOSA, R. L. L. e PINAZZA, M. A. (Orgs). Modos de narrar a vida: cinema, fotografia, literatura e educação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. BATISTA, A.A. G. e GALVÃO, A. M. de O. Práticas de leitura, impressos, letramentos: uma introdução. In: GALVÃO, A. M. de O. e BATISTA, A.A. G. (Orgs.) Leitura: práticas, impressos, letramentos. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. CHARTIER, R. (org). Do livro à leitura. In: _________. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, pp. 35-73. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. 27 ed. Cortez. São Paulo. 1992 MARTINS, Maria Helena. O que é leitura? São Paulo: Brasiliense, 2007. MORAES, A. A. de A. Histórias de leitura em narrativas de professoras: uma alternativa de formação. Manaus: EDUAM, 2000, 238p. NÓVOA, A. Vida de Professores. Porto: Porto Ed., 1992, 215p. PAULINO, G. et al. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001, 163p. PINHEIRO, H. Poesia na sala de aula. Campina Grande: Bagagem, 2007. YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. 1ª ed.. Curitiba: Aymará, 2009. YUNES, E. Leituras partilhadas, leitores multiplicados. In.: PINA, P. K. da C. e RAMOS, R.T. (Orgs.) Leitura e transdisciplinaridade: linguagens em múltiplos olhares. Salvador: EDUNEB, 2012.
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PRÁTICAS DE LEITURA NO I CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL:
Desafios e contribuições do PIBID
O PIBID na formação de leitores
Fabrício Oliveira da Silva Professor Auxiliar, Nível B da UNEB – DCHT – Campus XVI – Irecê
[email protected] Resumo: O trabalho discute os impactos das práticas de leitura em crianças do ensino fundamental I, a partir das experiências desenvolvidas no PIBID. Faz uma análise das questões referentes ao PIBID, Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, desenvolvido no âmbito da UNEB no Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – DCHT – Campus XVI. Propõe-se uma discussão sobre o objetivo caracterizador do PIBID, enquanto programa de iniciação à docência que visa incentivar o desenvolvimento de práticas de leitura na escola básica. Evidenciam-se as propostas pedagógicas constantes do subprojeto intitulado: Acompanhamento pedagógico das crianças das séries inicias do Ensino Fundamental de Irecê -Bahia: intervenções e aprendizagens da leitura escrita. As abordagens metodológicas centram-se nos relatos de experiências de bolsistas de iniciação à docência e de supervisores. Analisa-se a importância desse projeto na formação dos futuros licenciados em pedagogia do referido Departamento e aborda-se a sua contribuição para o entendimento de como se dá o processo de alfabetização a partir das experiências de leitura vivenciadas no âmbito do PIBID. Como referencial teórico aponta-se a discussão com base nos estudos realizados por Emília Ferreiro (2000), Ana Teberosky (1985) e Josette Joliberte (1994) que abordam saberes e aspectos essenciais sobre a aprendizagem da leitura/escrita elucidando a configuração de processos alfabetizadores. Discute-se, ainda as concepções de Paulo Freire (1996), quanto à formação docente, contribuindo para o entendimento da importância do PIBID na formação de leitores. O trabalho discute algumas atividades de leitura na escola, as quais foram resultados da pesquisa-ação produzida por bolsistas PIBID a partir das experiências pedagógicas de fomento a leitura dos diversos gêneros textuais presentes na sala das séries iniciais. Analisa-se o PIBID como programa que favorece o desenvolvimento de estratégias metodológicas de fomento à leitura, que promove a potencialização da aprendizagem dos alunos da escola básica pela dinamização das propostas pedagógicas que facultam a prática de leitura em sala de aula. Ressalta-se a relevância do programa como forma de aproximar os futuros professores às práticas docentes inovadoras e eficazes, desenvolvidas a partir das realidades da escola, que realmente promovem aprendizagens no dia a dia de sala de aula, considerando o ato de ler como um ato criador e de liberdade da imaginação da criança. O artigo finaliza apresentando sugestões para a promoção de práticas de leitura que se considerem significativas para o desenvolvimento do gosto pelo ato de ler. Palavras-chave: Leitura; PIBID; Escola; Ensino Fundamental
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Introdução
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência - PIBID é um programa
financiado pela CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível
Superior) que busca inserir os estudantes de licenciaturas durante o período de
formação nas escolas básicas, com o intuito de promover uma melhora na formação
acadêmica, valorização profissional, articulação entre teoria e prática, parceria da
universidade com as escolas básicas. Proporciona aos bolsistas de ID (iniciação à
docência) um incentivo na condição financeira, visando a continuidade dos estudos,
e possibilitando um contato maior com a realidade escolar, sua dinâmica estrutura e
vivências do cotidiano escolar, antes mesmo da conclusão da graduação.
De acordo com dados da CAPES, a intenção do programa também é unir as
secretarias estaduais e municipais de educação e as universidades públicas, a favor
da melhoria do ensino nas escolas públicas em que o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (IDEB) esteja abaixo da média nacional de 4,4.
O programa é desenvolvido em várias instituições de ensino superior em todo o
Brasil, com diversos projetos e subprojetos, envolvendo vários coordenadores de
área, professores supervisores, e a uma grande quantidade de bolsistas graduandos
nas mais diversas licenciaturas.
Atualmente, participam do Pibid 195 Instituições de Educação Superior de todo o país que desenvolvem 288 projetos de iniciação à docência em aproximadamente 4 mil escolas públicas de educação básica. Com o edital de 2012, o número de bolsas concedidas atingiu 49.321, o que representa um crescimento de mais de 80% em relação a 2011. (CAPES, 2013)
Tem crescido significativamente, inclusive no âmbito da UNEB, o número de pojetos
e subprojetos, e consequentemente o número de beneficiados, pois cada subprojeto
deve ser composto por Coordenador de Área, Pofessores Supervisores, e Bolsistas ID.
Para desenvolvimento do programa em sua universidade o Coordenador de Área
deve construir um subprojeto, que será sujeito a aprovação pela CAPES. Após a
aprovação acontece o processo seletivo das escolas básicas que serão atendidas, e dos
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Professores Supervisores de cada instituição. Depois da escolha das escolas e dos
Professores Supervisores acontece a seleção dos Bolsistas ID.
De acordo com as diretrizes propostas pela CAPES, o coordenador de área deve
possuir experiência em projetos de ensino, ter disponibilidade de vinte horas
semanais para o projeto, não possuir bolsa de estudo, e apresentar um subprojeto
que esteja dentro dos critérios exigidos.
Os professores supervisores devem lecionar em escolas públicas da rede municipal
ou estadual, estar trabalhando por no mínimo dois anos na escola onde será
desenvolvido o projeto, ter experiência na área do tema do subprojeto e se
comprometer em auxiliar os bolsistas nas atividades referentes ao projeto.
Já os alunos que pretendem participar do programa devem estar regularmente
matriculados em um curso de licenciatura presencial, possuir frequencia mínima de
75% nas aulas, média miníma de sete nas disciplinas cursadas nos semestres
anteriores, não possuir renda mensal, tampouco vínculo empregatício. Os bolsistas
selecionados devem dispor de oito horas semanais, ou trinta horas mensais para
dedicação exclusiva ao projeto, porém este não deve promover prejuizos às
atividades acadêmicas. Para participar os mesmos devem elaborar uma carta de
inteção mostrando o porquê do interesse em participar do programa, e
posteriormente passar por uma entrevista com o Coordenador de Área. São
selecionados aqueles que atederem aos critérios, e se enquadrarem no perfil do
subprojeto.
Além de todos esse deveres, e regras que os Bolsistas, Supervisores e Coordenadores
devem cuprir, segundo oedital do PIBID/UNEB 2012 os mesmos também devem
estar em dias com a obrigações eleitorais, ser brasileiro ou possuir visto de
permanencia no país. É necessário entregar frequência mensalmente, bem como
apresentar quadrimestralmente relatório das atividades desenvolvidas pelo
subprojeto.
O subprojeto PIBID da UNEB no campus XVI Irecê - Bahia é desenvolvido em três
escolas públicas municipais e é composto por vinte e quatro Bolsistas de ID (iniciação
a docência), três Professores Supervisores (da rede municipal) e um Coordenador de
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Área, os quais recebem mensalmente 400,00R$, 750,00R$ e 1.400,00R$
respectivamente como auxílio na formação acadêmica.
A proposta do subprojetode Irecê-Ba está voltada para questões relacionadas à
leitura e escrita. Inicialmente o objetivo do projeto foi o de desenvolver base teórica
nos bolsistas, com relação às questões de leitura e escrita. Num segundo momento, os
Bolsistas ID passaram a referenciar suas leituras e discussões as partir de observação
detalhada do cotidiano escolar, das dinâmicas das aulas, de estratégias pedagógicas
utilizadas pelo professor entre outros. Somente após certo período de
desenvolvimento do programa, con solidada oela formação ofertada pelo
coordenador de área, os bolsistas puderam participar do planejamento do professor
dando sugestões e fazendo pequenas participações nas aulas, e atuações junto ao
professor regente.
Segundo o que consta como proposta de atuação dos agentes a partir das diretrizes
do subprojeto, os Bolsistas ID do subprojeto do PIBID em Irecê-Ba cumprem uma
carga horária de 30 horas mensais, sendo quatro horas semanais na escola, fazendo
observações, e pequenas atuações nas aulas junto ao professor regente. Duas
reuniões mensais com o professor regente tendo duas horas de duração, momento
em que se discutem as observações produzidas, evidenciando o que tem sido feito e
o que pode ser melhorado. Também é durante esse período que os bolsistas dão
sugestões de atividades para as aulas, participam do planejamento do professor, e
fazem uma reflexão sobre as aulas. Há ainda duas reuniões com o coordenador de
área do projeto também com duração de duas horas a cada quinze dias. Esses
encontros servem para realizar formação, dar os informes gerais sobre entrega de
frequência, orientações para escrita de trabalhos, eventos sobre o PIBID, indicações
de leituras, e principalmente ouvir o relato dos Bolsistas e dos Supervisores sobre o
que tem sido desenvolvido dentro da escola, quais as dificuldades, e quais as
aprendizagens construídas.
É atraves dessas observações do contidiano escolar, das estratégias pedagógicas
utilizadas pelo professor regente, das pequenas participações nas aulas, nos
planejamentos, e também a partir da junção teoria e prática que os Bolsistas ID do
subprojeto Irecê – Ba estão se constituindo pedagogos, professores reflexivos, e bem
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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capacitados para enfrentarem a realidade que se apresenta como desafiadora a todo
aquele que se licencia porofessor na região de Irecê.
As contribuições do PIBID para a formação do docente alfabetizador.
Ao ser inserido em algumas escolas de Irecê o PIBID tinha como principal foco
contribuir para aprendizagem da leitura e escrita e proporcionar aos licenciandos de
pedagogia uma aproximação com o contexto escolar. Ao longo do projeto os bolsistas
passaram a interagir com as atividades e consolidar o processo de formação docente
uma vez que sentiram a necessecidade de estar inseridos no contexto escolar e agir
sobre essa realidade, contribuindo para aprendizagem da leitura e escrita ao mesmo
tempo em que buscavam a compreensão do processo de alfabetização. Diante de tal
afirmativa nos remete Freire (1996), que ao discutir o conceito de docência e discência
diz que “Não existe docência sem discência, quem ensina aprende ao ensinar e quem
aprende ensina ao aprender”(FREIRE, 1996, p.12)
É diante dessa perspectiva que o PIBID está inserido nas escolas de Irecê propiciando
ao licenciando de pedagogia saberes necessários para a formação docente ao mesmo
tempo em que contribui para a aquisição da leitura e escrita das crianças do ensino
fundamental.
Embora o PIBID não propricie aos estudantes de pedagogia total regência da sala de
aula, tem sido destinado pelos supoervisores um tempo em que são desenvolvidas
atividades propostas pelos bolsistas. Tal ação tem revelado uma condição de se
perceber como a criança desenvolve seu processo de leitura e escrrita, que apesar de
heterogêneo, se conslida por práticas docentes uniformizadoras. Isso tem sugerido ao
grupo poder orientar as crianças e consequentemente pensar em alternativas para
ampliar a prática docente, percebendo qual a melhor estratégia para trabalhar na sala
de aula. Assim ampliam-se saberes essenciais a formação docente. Como aborda
Freire (1996) é na prática que se confirmam, modificam e ampliam saberes.
O PIBID proporciona ao licenciando total autonomia para pensar em estratégias para
tornar as aulas mais produtivas, instigar a curiosidade das crianças e assim
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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contribuir para à aprendizagem. Segundo Freire (1996) o licenciando em pedagogia
deve ter conciência diante do processo de ensino e aprendizagem desde o início da
sua formação, compreendendo que ensinar não é tranferir conhecimento, mas
fornecer os caminhos necessários para a própria criança buscar suas respostas, pois
ensinar vai além de depositar um conteúdo vazio é provocar inquietações,
curiosidade, desejo de aprender. É nessa perspectiva que os bolsistas de iniciação a
docência vem construíndo sua identidade docente.
Por ter como foco a aprendizagem da leitura e escrita, o PIBID proporciona ao
licenciando de pedagogia articular o processo de alfabetização a outras disciplinas,
pensando em estratégias que propiciem a aquisição dos códigos escritos de forma
prazerosa. Durante essas atividades o bolsista vai percebendo as dificuldades das
crianças como trocar letras, formulação de silabas e associar o som a escrita. Disso
constrói saberes práticos para poder sanar as dificuldades dos alunos da Educação
Básica, partindo de princípios práticos e reais do processo de ensino e aprendizagem.
O desenvolvimento da leitura e escrita, como o de qualquer outro conhecimento, não
acontece de forma isolada e muito menos mecânica, para a qual basta o professor
treinar o aluno. O conhecimento parte das experiências da criança, da sua relação
com mundo e com o outro. Como aborda Franchi (1988)
O professor não pode deixar de considerar a necessidade de atividades que exijam dos alunos a concentração de esforços individuais. Mas o trabalho cooperativo, quando se integra aos hábitos sociais das crianças, não se confunde com uma exibição de liderança: transforma-se em um exercício de partilha que abre espaço, em círculos menores e mais discretos, a uma participação de todos mesmo que com diferentes papéis. (FRANCHI 1988, p.128)
São os sentidos da vida no sujeito que se constroem na relação com o outro. Ao
mediar este processo, cabe ao professor fornecer os estímulos necessários, instigando
e provocando a criança para que a aprendizagem surja de forma prazerosa.
O PIBID levou os bolsistas perceberem as maiores dificuldades das crianças durante
a aquisição da leitura e escrita. Favoreceu a possibilidade de se articular conceitos
estudados a partir do que estava posto no subprojeto sobre a prática docente.
Compreendeu-se, contudo, que o processo de alfabetização se dá de maneira distinta
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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para cada sujeito. Disso vislumbraram-se aplicações de atividades com um caráter
lúdico que tornasse este processo mais prazeroso e significativo, além de possibilitar
uma pequena reflexão diante de sua formação docente.
Contribuições do PIBID no processo inicial de alfabetização
O desenvolvimento de leitura e escrita é uma das contribuições que o PIBID tem
promovido para os alunos da Educação Básica que são contemplados com as ações
do subprojeto. O processo de alfabetização é o início dos estabelecimentos formais do
desenvolvimento de leitura e de escrita. Nesse sentido, a escola Municipal São Pedro,
escolhida como campo de observação e reflexão para inserção dos bolsistas, tem
duplamente ofertado oportunidades de criação e participação em experiências
metodológicas, tecnológicas e práticas docentes, que culminam na potencialização e
dinamização dos primeiros procedimentos de leitura e escrita, materializados nas
ações da alfabetização.
Previamente, vale ressaltar que os bolsistas são alunos de licenciatura e certamente
estão se inserindo num universo de discussão térorico-metodológica do processo de
alfabetização. Dessa maneira, o bolsista ID está em desenvolvimento de
conhecimentos prévios que lhe permite promover uma possível articulação entre
teoria e prática de esnino, com vistas a analisar e fundamentar as trajetórias adotas
pela escola para poder alfabetizar os alunos. Ferreiro e Teberosky (1985) nos mostra
os processos e as formas mediante as quais a criança chega a aprender a ler e a
escrever:
(...) Pretenderemos demonstrar que a aprendizagem da leitura e da escrita, entendida como o questionamento a respeito da natureza, função e valor desse objeto cultural que é a escrita, inicia-se muito antes do que a escola o imagina, transcorrendo por insuspeitados caminhos. (FERREIRO e TEBEROSKY, 1985, p. 11).
Ferreiro (2011) nos explica todo o processo de alfabetização, especificando
como ocorre cada procedimento até chegar à lógica da escrita alfabética. No início do
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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processo de alfabetização antes mesmo de aprender a ler, a criança precisa pensar
sobre o que a escrita representa e como ela se apresenta nas mais diversas
representações linguisticas. A priori a criança vai representar a escrita como uma
forma de desenho. Mas, é preciso que ela à compreenda como uma representação da
linguagem falada, e só a partir de então, quando a criança começar a perceber as
características formais da escrita, iniciará a criação de hipóteses as quais
acompanhará o seu processo de alfabetização. Perceberá que uma letra só não serve
para ler e que é preciso ter mais de duas letras para formar uma palavra. Perceberá a
relação sonora das letras, o que caracterizará o início da hipótese silábica, em que
cada letra representa uma sílaba. A posteriori observará que as letras têm um valor
sonoro silábico, e que partes sonoras semelhantes entre as palavras começam a
exprimir-se por letras semelhantes.
Diante de tal complexidade esse procedimento pode gerar conflitos, favorecendo a
configuração de uma nova fase, que se correlaciona com a fase da hipótese silábico-
alfabética, na qual a sílaba não pode ser considerada como uma unidade, e que a
cada letra tem um valor sonoro. Então, chega-se à fase alfabética que é quando a
criança já tem uma compreensão melhor do que está escrevendo, mas ainda comete
alguns erros ortográficos.
Porém, é preciso que atentemos ao perigo de se reduzir na escola o desenvolvimento
de leitura a este processo amplamente técnico. Existem, de fato, outros elementos que
devem ser levados em consideração para que o processo de alfabetização se construa
num cenário real, contextual e específico de cada sujeito. Neste cenário, o PIBID
juntamente com as ações de experiências e vivências de cada professor no espaço
escolar tem se articulado em torno de preocupações em se desenvolver leituras pelos
alunos, permitindo-lhes a compreensão do porquê de se aprender a ler, e criando
situações reais de leitura para que esse aprendizado tenha sentido expressivo para
Daca sujeito aprendente. Segundo Emília Ferreiro:
Temos uma imagem empobrecida da língua escrita: é preciso reintroduzir, quando consideramos a alfabetização, a escrita como sistema de representação da linguagem. Temos uma imagem empobrecida da criança que aprende: a reduzimos a um par de olhos, um par de ouvidos, uma mão que pega um instrumento para marcar
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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e um aparelho fonador que emite sons. Atrás disso há um sujeito cognoscente, alguém que pensa, que constrói interpretações, que age sobre o real para fazê-lo seu (FERREIRO, 2011, p. 41)
No que se refere às atividades de leitura e escrita, observa-se que as contribuições do
PIBID somam-se de maneira bastante significativa ao processo de desenvolvimento
da aprendizagem dos alunos. Inicialmente isso ocorre porque o professor/supervisor
da sala de alfabetização tem o suporte de outras mentes pensantes (bolsistas) para
apoiá-lo na criação de metodologias que vão acelerar e potencializar os saberes
necessários para que se empreenda um processo eficiente e funcional de leitura e
escrita. Entretanto para que isso ocorra, se faz necessário que cada aluno seja levado
em consideração e que seu desenvolvimento seja objeto de análise e reflexões dos
educadores. E pela sua natureza larga, extensionista, de ações extremamente
fundamentadas, tem o PIBID colaborado para efetivar um novo olhar do professor
para os encaminhamentos que cada docente deve fazer para atender as reais
necessidades dos seus alunos.
O olhar dos bolsistas ID constrói uma alternativa de superação e inovação dos
problemas identificados por meio das observações feitas em sala, e do
acompanhamento proximal com o aluno. É a partir das horas estabelecidas aos
bolsistas, dedicadas às atividades formativas de ensino e pesquisa acerca das
necessidades das crianças no processo de alfabetização que se pensa contribuir com
uma dupla formação: A dos supervisores que constantemente se inserem em
discussões mais pontuais e atualizadas e a dos bolsistas que aprendem a desenvolver
sistematicamente técnicas e estratégias metodológicas de aperfeiçoamento de leitura
e escrita nesta etapa de escolarização.
Segundo Ferreiro (2011) não existe um método específico e ideal para a alfabetização.
Tendo em vista este conhecimento, entendendo que o processo é algo relativo e
flexível, os bolsistas acompanham os alunos e fazem intervenções pedagógicas (sobre
o acompanhamento do professor/supervisor).
A ajuda consiste em transmitir o equivalente sonoro das letras e exercitá-las na
realização gráfica através de atividades que não ignoram os conhecimentos prévios
dos alunos, mas que permitem interpretar esses dados prévios com os novos dados, a
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
90
fim de produzir novos conhecimentos. Tratando-se da leitura, são enfatizados
diversos gêneros textuais que têm funcionalidades distintas para os alunos. Pelos
gêneros textuais se contextualizam seus cotidianos e suas rotinas de modo que se
aproxime da sua própria realidade, e dessa forma chegue-se à compreensão e ao
desenvolvimento da leitura. O apoio de imagens também facilita a interpretação e o
desenvolvimento da escrita, pois, segundo Ferreiro (2011) as antecipações que o
aluno realiza através de imagens são elementos essenciais da atividade de leitura:
Se há fotografias ou desenhos, antecipa-se que o texto mais próximo tem a ver com o desenhado ou fotografado e, em se tratando de uma personagem pública, pressupões que seu nome esteja escrito. [...] Construir antecipações sobre o significado e tratar depois de encontrar indicações que permitam justificar ou rejeitar a antecipação é um atividade intelectual complexa, bem diferente da pura adivinhação ou da imaginação não controlada. (FERREIRO, 2011, p. 35 e 36)
O processo inicial da leitura e escrita é relevante, pois incidirá nos futuros níveis de
formação dos alunos, positivamente ou negativamente, porque este processo, em
sendo deficiente, prejudicará a construção e internalização dos saberes necessários ao
seu desenvolvimento cognitivo. Com isto, a leitura e a escrita são instrumentos
imprescindíveis para que possamos elaborar conhecimentos, refletir sobre as
informações e sistematiza-las numa perspectiva dialógica.
Concepções e aplicações dos processos de leitura no pIBID
A leitura sempre se fez presente na vida dos seres humanos. Antes mesmo das
crianças ingressarem na escola, estas já estão imersas no universo das letras, pois em
todos os espaços, seja nas ruas, na escola ou na televisão o signo linguístico está
presente. Compreende-se que viver sem ter contato, seja direta ou indiretamente,
com a leitura é impossível, uma vez que ler é fator preponderante nas vidas dos
sujeitos.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Em seu livro Reflexão sobre Alfabetização, Ferreiro (2001) traz considerações
imprescindíveis que auxiliam os educadores, pois de fato, é interessante que estes
saibam que a codificação e a decodificação se entrelaçam, promovendo assim, a
relevância de ambos os processos para o desenvolvimento cognitivo das crianças.
Conforme a autora, numa sala de alfabetização deve haver materiais para serem
lidos, sejam cartazes, murais informativos entre outros. O ato de leitura é um ato
essencial para a vida dos sujeitos. As pessoas ao lerem podem ter diversas sensações,
rir ou chorar, e isto não significa que estão loucas ou desequilibradas. Ler permite a
criação de um imaginário que projeta o sujeito a sensações e moções diversas. O
leitor pode visualizar formas distintas diante de uma página de texto. A revelação
dos sentidos se dá de maneira diferente para cada leitor. Neste sentido o PIBID nos
permite compreender e acompanhar o desenvolvimento do ato de ler, bem como a
representação que este ato promove.
É exatamente nesta direção, de um olhar atento às práticas de leitura na sala de aula,
que nos faz entender como efetivamente promover dinamismo nas leituras das
crianças. Entender a essência discursiva sobre leitura disposta nos mais diversos
livros que abordam o tema, nos é factível pela condição efetiva de estar vivenciando
de modo prático como isso se dá na escola. Aí ficam pistas para produzirmos
material de apoio ao professor regente na condução de práticas significativas de
leitura.
Por meio do PIBID entendemos uma nova concepção daquilo que chamamos de
linguagem. Vemos na atuação escolar uma linguagem que possui palavras
diversificadas e que se organiza de maneira sistemática, mas também aleatória.
Talvez seja por esta natureza tão heterogênea da produção de fala que a escola tenha
dificuldade de lidar com a diversidade das falas dos alunos. Nesta direção,
percebemos que a linguagem na escola é percebida pelas leituras que pudemos a
cada momento realizar. Defende-se então, a função da leitura, sabendo da sua
influência exercida na vida de todos os sujeitos. Entretanto, deve-se também saber,
que a leitura além de possibilitar momentos prazerosos, possibilita ao indivíduo
enxergar o mundo de diversas formas, como por exemplo: ser um sujeito mais crítico
e participativo.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Expressivamente a prática de leitura em sala de aula ainda é encarada de forma
vazia. Muitos professores se apegam ao tradicionalismo, trabalhando numa
perspectiva ilusória. Ferreiro (2001) incrementa que não se deve conservar as crianças
assepticamente afastadas da língua escrita. E nem tampouco trata-se de ensinar-lhes
o modo de sonorizar as letras, nem de inserir atividades de escrita mecânica e a
repetição em coro na sala de sala. Esta visão das crianças sentadas, quietas e
repetindo o texto ditado pelo educador é um paradigma ultrapassado, em que o
professor se estereotipa como detentor do saber, e os educandos são tachados de
tábulas rasas.
Em sua obra Escola leitura e produção de textos, Kaoufman e Rodriguez (1995),
abordam a leitura e a produção de textos numa perspectiva diferente. Sob um olhar
aprofundado, crítico e despertador, o educador deve propiciar o encontro adequado
entre as crianças e os textos, usando as diversas possibilidades que a leitura pode
proporcionar.
Kaoufman e Rodriguez ressaltam:
É indiscutível que os leitores não se formam com leituras escolares de materiais escritos elaborados expressamente para a escola com a finalidade de cumprir as exigências de um programa. Os leitores se formam com a leitura de diferentes obras que contêm uma diversidade de textos que servem, como ocorre nos contextos extra-escolares, para uma multiplicidade de propósitos (informar, entender, argumentar, persuadir, organizar atividades, etc.). No entanto, isso não implica descartar a priori todos os textos escolares. Alguns destes textos- usados convenientemente- podem favorecer os trabalhos de produção e de compreensão. (2001. p. 45).
É fundamental que os educadores saibam selecionar materiais de leitura para os
alunos, suprindo as necessidades dos mesmos. É importante levar para sala de aula
textos que fazem parte do contexto dos alunos, estabelecendo vínculos entre o
cotidiano e os conteúdos escolares. Infelizmente muitos educadores ainda se apegam
somente aos textos escolares ou livros didáticos, nunca trabalham com a diversidade
de textos, ou seja, os materiais extra-escolares, como por exemplo: enciclopédias,
dicionários, jornais, revistas, obras de literatura infantil livros de consultas sobre
temas diversos.
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Vemos sempre nas diretrizes e propostas de ensino a defesa da ideia de que o
educador deve provocar no educando o espírito critico por meio da leitura. De fato a
nosso ver esta é uma visão idealista do processo educativo, mas que pode claramente
se tornar realidade factível em nossas escolas. Afirmamos isso, baseadas nas
vivências e experiências que o PIBID tem nos proporcionado, ao percebermos o
desenvolvimento mágico e fantástico dos processos de leitura na escola. As crianças
se revelam a cada instante, apresentando diferentes estágios de construção do seu
conhecimento linguístico. Verdadeiramente é muito fascinante perceber a evolução,
bem como compreender em que consiste a dificuldade de um ou de outro aluno.
O espaço da sala de aula, para os professores, representa um local em que a maioria
do tempo se destina às práticas organizativas do fazer pedagógico. Ao professor
pouco tempo sobra para que ele perceba as reais necessidades dos alunos. São tantos
os afazeres, como proceder chamada dos alunos, orientar questões disciplinares,
registrar as ocorrências, elaborar avaliações, proceder checagem de tarefas, elaborar
planejamento, atender pais, participar de reuniões, elaborar e planejar
comemorações, entre tantos outros, que falta tempo para perceber as dificuldades de
leitura de seus alunos. Falta mais tempo ainda para promover ações efetivas e
significativas de desenvolvimento do ato de ler e escrever.
A criticidade do aluno, tão desejada, só poderá acontecer se o papel do professor
for além de um mero expositor de aulas. Por isso, espera-se que as aulas de leitura
não sejam simplesmente limitadas ao componente curricular de português, mas que
perpasse por outros componentes, como matemática, educação física, arte entre
outros.
A leitura desempenha papel fundamental na vida do sujeito, seja política, social ou
economicamente. É por este e outros motivos que ela deve ser valorizada na escola,
espaço onde se acredita que a criança saia lendo convencionalmente. Por isso, espera-
se que os professores despertem nos educandos o gosto pela leitura, e ainda mais,
que estes saibam exercer sua autonomia. A nós bolsistas o gosto pela leitura tem se
configurado a cada instante em que sentamos para planejar e provocar os saberes e
sabores que o ato de ler promove. Estar semanalmente na escola, acompanhando o
desenvolvimento deste processo tem se constituído como grande momento
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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formativo. É como se fosse o componente curricular de grande valia e relevância na
nossa formação pedagógica.
Considerações finais
O trabalho buscou evidenciar que o PIBID está sendo fundamental na formação
inicial oferecendo uma experiência na formação acadêmica de licenciandos, visto que
insere estudantes de graduação na escola e os proporciona trabalhar com as crianças
numa ótica de compreensão das dinâmicas do ato de ler. Favorece desde cedo uma
inserção nas práticas de leitura da escola, relacionando essas práticas com o saber
universitário.
Neste sentido o trabalho evidenciou a relevância de se conhecer as práticas leitoras
na realidade escolar, a partir da compreensão de técnicas para favorecer o processo
de leitura e escrita, e aí está também a essência do processo de alfabetização, de
crianças em situação real.
Buscou-se delinear como o PIBID possibilita fazer uma articulação entre os
conteúdos, de forma a enriquecer o processo de desenvolvimento educativo, em se
tratando dos processos de leitura trabalhados em escolas do Ensino Fundamental I a
partir de uma abordagem interacionista entre estudantes do Ensino Superior e da
Educação Básica.
Portanto é essencial a todos os graduandos terem experiências como as apresentadas
no trabalho, que visam promover uma compreensão da dinâmica escolar e como esta
favorece os processos de leitura. De fato o trabalho sinalizou que a leitura e escrita
constitui-se em um desafio que deve ser assumido pela escola, como forma de
favorecer ao aluno a potencialização do seu ato comunicativo.
O PIBID, no cenário descrito neste artigo, se apresenta como um programa
promissor, por meio do qual as experiências de leitura e escrita na escola se
desenvolvem num contexto real das dificuldades linguísticas apresentadas pelos
alunos. Destas dificuldades, criam-se condições e atividades que promovam o
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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desenvolvimento de competências e habilidades que tornem a criança um pouco
mais comunicativa, transitando entre diferentes normas linguísticas.
O programa foi entendido como potencializador da formação dos licdenciandos, bem
como de crianças contempladas com a participação dos bolsistas, o que contribuiu de
forma eficaz para uma aprendizagem significativa, pois como foi discutido ao longo
do artigo, o PIBID através de suas preocupações e ações oportuniza às crianças a
descoberta de suas habilidades, e capacidades comunicativas. Por meio da leitura e
escrita ofereceram-se reais condições para que os alunos da Educação Básica
pudessem participar de todas as atividades oferecidas no ambiente escolar a fim de
contribuir para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e psicomotor em todo o
processo de desenvolvimento da alfabetização.
Conclui-se, enfim, que o PIBID é um programa que vem potencializando e
dinamizando as estratégias pedagógicas de fomento e desenvolvimento de leitura.
Tem promovido uma efetiva articulação entre os saberes teóricos e práticos, além de
aproximar a universidade e a escola básica, garantindo uma parceria que tem dado
certo. Neste cenário a universidade vê a escola não como palco para proceder críticas
e delas criar conjecturas sobre o exercício profissional docente. Portanto, a escola
constitui-se como campo de estudo e de desenvolvimento de práticas pedagógicas,
que junto à universidade tem a missão de formar os novos trabalhadores da
educação.
Referências
CAPES. Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência. Edital, Pibid nº /2012 FERREIRO, Emilia. Reflexões sobre alfabetização. 26 ed, São Paulo: Editora Cortez, 2011. FERREIRO, Emilia: TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Tradução de Diana Myriam Lichtenstein, Liama Di Marco e Mario Corso. – Porto Alegre: artes Midicas, 1985. 284.p.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: paz e terra, 1996. FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pedagogia como ciência da educação. Campinas: Papirus, 2006.
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FERREIRO, Emília. Reflexões sobre Alfabetização. – São Paulo: Cortez, 2001.
JOLIBERT, J. Formando crianças leitoras. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. KAUFMAN, Ana Maria e RODRIGUEZ, Maria Helena. Escola, leitura e produção de textos. – Porto Alegre: Artes Médicas- Artmed, 1995.
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Eixo II
Mídias e práticas de recepção
A LITERATURA INFANTIL E OS NOVOS PARADIGMAS DO FENÔMENO LITERÁRIO:
Os entrelaces da hipermídia com a hiperliteratura.
Enia dos Santos Costa Universidade del Salvador - USAL
[email protected] RESUMO: A literatura infantil tem atualmente um papel fundamental na formação da identidade dos sujeitos sociais, sendo disseminada e assumindo novas formas de narrativas com os gêneros digitais que criam novos paradigmas narrativos, e consequentemente, sociais. O nosso estudo vem suscitar uma discussão sobre a temática da literatura infantil associada às novas mídias e à cibercultura, posto que há ainda uma lacuna nestes estudos, e sua repercussão social e cultural é relevante, já que a hiperliteratura surge com um novo modo de fazer e chegar às narrativas. Com o advento da cibercultura, a literatura vem tomando novos rumos, e com destaque para a literatura infantil que consegue uma adaptação aos mais variados suportes de veiculação das narrativas, seja no papel ou nas mídias digitais e audiovisuais: quadrinhos, livros, e-books, audiobooks, cinema, tv, blogs, games, etc. Conquanto a literatura infantil tem papel relevante na formação das crianças e jovens, os novos gêneros digitais favorecem o desenvolvimento de novos processos cognitivos, e portanto, novas formas de ver, entender e dar sentido ao mundo e a si próprio. A junção das palavras, sons e imagens transformam as narrativas atuais, dando maior dinamismo e rapidez na leitura, exigindo, no entando, mais dos leitores em termos de habilidades perceptivas, de decodificação e interpretação. Acrescente-se o fator da interatividade que os leitores têm com as narrativas veiculadas por suporte digital. O fator de interatividade entre os leitores e o hipertexto trazem mudanças significativas no comportamento daqueles. O leitor deverá ter novas habilidades visuais, auditivas, de memoria e processamento mental para poder dar conta das informações. Desta forma, a maneira de sentir e dar sentido aos textos divergem das leituras estáticas e lineares de outrora, apenas com os livros impressos. A hipermídia vêm acrescentar complexidade à literatura infantil, que abarca todos os gêneros literários, adaptando-se perfeitamente ao gênero digital. Um novo foco de investigação e entendimento da teoria literária surge a partir da literatura infantil, que reposiciona os estudos e leituras literárias, destacando-as das leituras filosófica, de psicologia, sociologia e política. A literatura infantil destaca o aspecto ficcional do objeto de investigção literária, acoplando a este estudo, com as novas mídias digitais, recursos de som e imagem que despertarão e desenvolverão a imaginação e criatividade dos leitores. O crítico em literatura infantil, Peter Hunt, o filósofo Pierre Lévy, Lev Vigotsky, além de outros estudiosos do fenômeno literário como Cademartori, Jesualdo, Khéde, Longhi subsidiam nossos estudos na tentativa de entender o que conecta a literatura infantil ao mundo cibernético, trazendo novos parâmetros de entendimento do fenômeno literário diantedos novos gêneros digitais.
Palavras-chave: Literatura infantil; Cibercultura; Hipermídia; Hiperliteratura; Teoria da Literatura.
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INTRODUÇÃO
O universo da literatura infantil é bastante amplo e instigante, e vem
crescendo, se diversificando e tornando-se mais complexo à medida que as
tecnologias intelectuais vão se desenvolvendo e surgindo. Desde os primórdios da
escrita, novos suportes para esta são criados, e hoje temos os espaços virtuais como
cenário das narrativas infantis. Podemos dizer cenários porque não mais só com
palavras estas narrativas se desenvolvem, mas através da junção de múltiplos
aspectos como sons, imagens, animações, utilização das hipermídias e
hipertextualidades, os sentidos das narrativas vão se ampliando, pari passu aos novos
processos de leitura que se justapondo a esta nova realidade, com configurações de
tramas que são colocadas em espaços dinâmicos e interativos.
Para compreendermos este universo, precisamos antes saber o que é a
literatura infantil, para quem é dirigida e suas características latentes. Sem este
entendimento não seria possível contextualizá-la e inferir seu papel social, nem como
compreender o modo como atua na criação de sentidos. Hoje mais ainda com as
novas tecnologias intelectuais.
A cibercultura criou um novo fenômeno dentro da literatura que é a
hiperliteratura, própria dos ciberespaços, com características próprias e
diversificadas, dependentes dos recursos de hipermídia existentes. As mídias digitais
e audiovisuais: quadrinhos, livros, e-books, audiobooks, cinema, tv, blogs, games, dão
novos contornos às narrativas. Esta interação entre as narrativas e os novos suportes
criam novos significados e novos processos de leitura, que irão ser refletidos nas
respostas dos leitores quanto às leituras feitas. O fenômeno literário amplia desta
forma sua função e influência nos leitores e na vida social e cultural.
A literatura infantil, sendo a primeira a que os sujeitos têm contato, em geral,
exerce uma influência significativa na construção do imaginário dos indivíduos, e na
formação de sua identidade. Os ciberespaços requerem sujeitos com habilidades
especificas para a sua utilização. A adaptação das narrativas a estes espaços
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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cibernéticos, estão de acordo com estas novas exigências, e requerem novos
parâmetros cognitivos dos indivíduos.
Nosso estudo se direciona a reflexões sobre o fenômeno literário da literatura
infantil que se insere no contexto da cibercultura, e que precisa de novas
metodologias e ideias, a fim de apreender os novos sentidos que as narrativas tomam
e como estes sentidos vão se delineando dentro dos novos paradigmas sociais e
culturais.
1. LITERATURA INFANTIL
A literatura infantil é a fonte original e primária da formação intelectual,
cognitiva e imaginativa do ser humano. Tem um papel fundamental na formação da
identidade dos sujeitos sociais, pois atua propiciando o desenvolvimento das
habilidades cognitivas a partir da leitura de textos literários em variadas
modalidades, estas que vão assumindo novas formas com o desenvolvimento
tecnológico. Como Lajolo explicita “... a obra literária é um objeto social” (1991, pag.
16), e o diz acertadamente, já que não existiria sem a coletividade e sem os sujeitos
sociais, e é criada para estes sujeitos. Desta forma, a literatura infantil tem a sua
função ligada ao social, e dentro dos contextos sócias deve ser estudada.
Sempre ocupou lugar de relevância na vida das pessoas, mas enquanto foco de
estudo, vem sendo relegada a uma categoria de menor valor. Poucos estudos são
feitos, e a maioria dos que existem focam sua atenção para a educação. A literatura é
usada, desta forma, como subsídio para formação pedagógica dos indivíduos. No
entanto, entendemos que o estudo da literatura infantil perpassa uma gama de
interesses bem maior, indo de estudos da formação de ideologias, passando por
estudos sobre o desenvolvimento cognitivo, a apreciação estética, e de análise da
narrativa, do discurso em geral e da estrutura cultural contida nos textos.
Com o desenvolvimento tecnológico, novos suportes surgem dando novos
desenhos de significação e alcance das obras literárias. Modificações nos processos de
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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leitura e de apreensão de significados são desenvolvidos, mudando a estrutura
cognoscente do indivíduo, o que irá influenciar o seu comportamento.
1.1. LITERATURA INFANTIL: O QUE É? PARA QUE SERVE?
Devemos pensar primeiramente o que seja a literatura infantil para podermos
traçar qualquer consideração sobre o assunto. Os livros para crianças são diferentes
dos de adultos. Aqueles são escritos para uma audiência diferente, com habilidades
diferentes, e diferentes caminhos e formas de ler.
Quando se fala em literatura infantil, através do adjetivo, particulariza-se a questão dessa literatura em função do destinatário estipulado: a criança. Desse modo circunscreve-se o âmbito desse tipo de texto: é escrito para a criança e lido pela criança. (CADEMARTORI, p. 21).
Cademartori (1991) é bastante objetiva e clara, e nos traz uma definição que
direciona nosso entendimento do objeto a que nos propomos estudar. Se a literatura
é qualificada como infantil, aos infantes se direciona e deverá ter características que
satisfaçam às necessidades de linguagem e aparato psíquico destas. Daí termos a
necessidade de saber quais características são estas para podermos apreender com
mais pertinência seu significado. O que Jesualdo (1978) coloca como características
do texto literário infantil e delimita o que em um texto literário deverá apresentar
enquanto estrutura linguística e desenvolvimento narrativo. O autor nos diz que um
texto de literatura infantil deverá ter: linguagem simples; dramatismo (o drama
vivido por seus sentidos repetem-se nos movimentos interiores que passam a ser seu
drama, o da criança); técnica de desenvolvimento sóbrio, sem criar confusão; e
enredo fantástico. Estes irão caracterizar a literatura infantil diferenciando-a da
literatura para adulto, mas, mesmo sendo caracterizada pela simplicidade de
linguagem bem como de enredo, não deixa de ser complexa, e ter influência para a
criança no que diz respeito à sua formação psíquica, cognitiva e social. Estas
características se conciliam com a própria origem da literatura, que nasce da Poesia e
do mito, que é a infância da literatura.
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A poesia é um tipo de literatura que requer especial tipo de leitura. Assim, a
literatura surge com a literatura dentro dos padrões da simplicidade, exercendo
predominantemente a função poética, que irá destrinchar-se em todas as outras
funções que a literatura possa ter. Toda poesia visa comunicar ao sujeito o ser
próprio de seu ser em si e no mundo. Está intrinsecamente associado a constituição
do homem em sua subjetividade, que irá moldar-lhe a identidade.
O homem constrói seu meio ambiente à medida dos padrões de interpretação que lhe forem oferecidos... o processo de constituição de um homem depende de sua formação conceitual. (Cademartori, 1991, p. 22).
É através das leituras que o sujeito faz ao longo de sua vida, que a sua forma
de pensar, a formação de sua personalidade, sua cultura se constitui, em um processo
dialógico do sujeito com a leitura e com o meio que o cerca. Deste entrelace dialógico
o sujeito vai surgindo.
Peter Hunt (1999) reitera este pensamento ao considerar que devemos pensar
que a literatura infantil tem influência social, cultural e histórica. Os reflexos da
literatura infantil sobre a ideologia, a linguagem política é patente. Não podemos
negar o peso ideológico que os livros infantis trazem, formando desde cedo modos
de pensar, de ver, enxergar a realidade. As respostas às leituras feitas refletem a
formação conceitual do indivíduo e o patamar cognitivo alcançado em termos de
referencias à realidade em que se encontra inserido.
1.2. UMA TEORIA DA LITERATURA (INFANTIL).
O estudo da literatura infantil interessa a estudiosos de diversas áreas do
conhecimento: estudiosos da literatura, educação, história, psicologia, arte, cultura
popular, media, profissões da saúde (terapêuticas), filosofia, sociologia e política,
pedagogia, folcloristas, além da indústria cultural, artes gráficas, psicolinguística e
sociolinguística, etc. Interessa também ao mercado. O seu estudo é amplo, complexo
e interdisciplinar, já que os livros infantis são complexos e seu estudo é infinitamente
variado. A complexidade maior está na disposição da linguagem e no formato da
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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comunicação, que oferecem leituras que afetam nossa cognição, e desta forma,
influenciam nossa personalidade e nosso modo de pensar, nosso comportamento e
ser no mundo.
Peter Hunt (1999) considera que a literatura infantil tem visíveis e práticos
usos, bem como leitores com diferentes argumentos. Desta forma, a teoria da
literatura infantil traz uma prática que combina livros e leitores, ou seja, deve estar
atenta não só ao estudo das narrativas infantis, mas também aos leitores a quem estes
textos são dirigidos. Da combinação do estudo destes dois elementos poderemos ter
dispostos os parâmetros de análise da literatura que se dirige a infantes como um
todo.
O estudo desta literatura específica não pode estar separada da vida real, pois
é para a vida real que ela existe, sendo verossimilhante a esta, como um espelho que
reflete sua realidade e faz com que os sujeitos possam capturar sua essência, e a
partir daí assumir uma postura social advinda de uma construção psíquico-cognitiva,
a partir da formação de sua subjetividade.
Children's literature is an obvious point at which theory encounters real life, where we are forced to ask: what can we say about a book, why should we say it, how can we say it, and what effect will what we say have? We are also forced to confront our preconceptions. Many people will deny that they were influenced by their childhood reading ('I read xyz when I was a child, and it didn't do me any harm'), and yet these are the same people who accept that childhood is an important phase in our lives (as is almost universally acknowledged), and that children are vulnerable, susceptible, and must be protected from manipulation. Children's literature is important - and yet it is not… to work through fundamental arguments, to look at which techniques of criticism, which discourses, and which strategies are appropriate to - or even unique to - our subject. (Hunt, 2013, p. 1991).
Para se traçar uma teoria que abarque a literatura infantil, precisamos
estabelecer alguns conceitos básicos, ideias e métodos. Precisamos nos subsidiar de
considerável aparato teórico advindo desde a filosofia até a psicoterapia. O estudo é
denso.
Devemos estar atentos para o fato que a infância é diferente de lugar para
lugar, de tempo a tempo, e nos dias atuais algumas peculiaridades devem ser
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levadas em conta devido às substanciais mudanças nos códigos linguísticos, nos
modos de comunicação associados às novas tecnologias intelectuais que vêm
modificando os processos de leitura. A cibercultura tem feito surgir novos espaços de
leitura e a infância tem suas peculiaridades neste momento sociocultural. No papel
ou nas mídias digitais e audiovisuais, como: quadrinhos, livros, e-books, audiobooks,
cinema, tv, blogs e games, as narrativas vão sendo dispostas e criadas. Cada suporte
deste oference um tipo de interação com o leitor e novos olhares para o texto vão
sendo desenvolvidos. A inserção de sons, imgens, animações, recursos de interação e
co-criação narrativa agregam novos parâmetros aos processos de leitura.
Os estudos literários devem seguir este desenvolvimento e adequar-se em seus
métodos para poder extrair desta realidade cibernética as ideias que acompanham o
fenômeno literário atualmente. Precisamos de uma teoria da literatura que contemple
estes novos parâmetros de leitura e estes novos paradigmas socioculturais,
desvendando-lhes os caminhos, características e ideias contidas no fenômeno
literário hodierno.
Para a literatura infantil, este novo espaço se faz bastante propício, pois
oferece uma infinidade de possibilidades expressivas e criadoras de sentidos.
2. CIBERCULTURA E HIPERLITERATURA
A hiperliteratura nasce a partir da cibercultura, que fornece os recursos
necessários para o desenvolvimento de novas formas de narração, que conglomeram
palavras, sons, imagens, mecanismos de interação, tudo atrelado aos meios
hipermidiáticos.
Há uma estreita relação entre a hiperliteratura e a cibercultura. Os
ciberespaços fomentam novas formas de comunicação e informação. Pedem mesmo
novos aparatos comunicativos e informativos que servem às narrativas hipertextuais.
Para entendermos esta relação, precisamos saber o que seja tanto a
cibercultura quanto a hiperliteratura.
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2.1. A CIBERCULTURA
A cibercultura designa uma rede digital como lugar que abriga encontros,
relações, conflitos, estabelecendo uma nova fronteira econômica e cultural. Este novo
espaço subsidia novas correntes artísticas e novas subjetividades. Sons, imagens,
movimentos, gestos, perfazem uma rede de sentidos e novos sentidos, alargando as
possibilidades de leitura e, consequentemente, apreensão de sentidos da realidade. A
leitura insere-se, na cibercultura, em uma inter-relação com os novos espaços do
conhecimento, não mais em um processo linear de apreensão, mas em uma
hipercognoscência que exige novos métodos, técnicas e tecnologias. E com as novas
tecnologias intelectuais, técnicas de transmissão têm como suporte o coletivo social
que condicionam novas formas de cognição e, concomitantemente, novos valores e
estabelecimento de novas culturas.
A cibercultura contribui para o estabelecimento de novos paradigmas acordes
com as novas tendências e necessidades culturais, que se constroem com as novas
redes sociais, na WEB, nos ciberespaços.
[...]o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas: memória (banco de dados, arquivos digitais de todos os tipos), imaginação (simulações), percepção (sensores digitais, telepresença, realidades virtuais), raciocínios (inteligência artificial, modalização de fenômenos complexos). (Lévy, 1999, p.157).
O que condiciona estas novas tendências e necessidades culturais são as novas
tecnologias intelectuais que revelam-se nas hipermídias. Todo este aparato
tecnológico precisa de um suporte para ser efetivado e funcionar.
[...]não pode haver, no universo físico, comunicação sem suporte material: ora , a informação é codificada diferentemente, conforme passamos de um suporte para outro...ou seja, não há comunicação sem operações de tradução. (Lévy, 1998, p.92).
Através das novas tecnologias intelectuais as informações são decodificadas,
ou melhor, são disponibilizadas à decodificação, pois ficam expostas à leitura e
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interpretação, e por um processo de interação dialógica entre o leitor e o texto
(hipertexto) os sentidos vão se formando. Para a cibercultura, o suporte textual não
pode ser apenas de transposição textual. Isto os meios gráficos dão conta. Nãose
criariam novas possibilidades de novos sentidos apenas com esta transposição. Há
mister uma dinâmica que condicione novos olhares, e suscite novos processos
mentais de leitura, sem a linearidade habitual, mas em um esquema circular de
leitura que agrega leituras diversas em uma só.
2.2. HIPERLITERATURA
O texto é linguagem. Devemos, antes de tudo entender o texto enquanto
linguagem para podermos fazer sua análise. O estudo da literatura deverá, assim,
focar-se na linguagem para desvelar as estruturas narrativas e seus aspectos culturais
contidos nele. Atualmente, o estudo as linguagens adentraram no mundo da
cibercultura, já que, como explicita Lévy “As metáforas centrais da relação com o
saber são hoje, portanto, a navegação e o surfe” (1999, pag.161) Por traz de um
grande hipertexto fervilham a multiplicidade e suas relações” (1999, p.162) “ Porque
a pessoa que lê não está se relacionando com uma folha de celulose, ela está em
contato com um discurso, uma voz, um universo de significados que ela contribui
para construir, para habitar com sua leitura” (1999, p.162) “Nossas faculdades de
conhecer trabalham com línguas, sistemas de signos e processos intelectuais
fornecidos por uma cultura” (1999, pag. 163). Estes sistemas de signos podem ser
linguísticos, sonoros, pictóricos, imagéticos, gestuais, em justaposição.
As imagens não são tão fáceis de se entender como muitos pensam. O ícone é
polifônico e exige do leitor uma habilidade de leitura complexa. A experiência de um
livro começa antes das palavras e das imagens contidas em suas páginas.
Com o advento da internet as narrativas passaram a ter formatos digitais, que
se renovam constantemente, adquirindo novas formas de compor e de escrita, com a
articulação de escrita, som, imagens, design, contando com os aspectos
multimidiáticos, da interatividade e hipertexto. Temos a invenção das webnovelas,
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que contam os clássicos, as twitelitaraturas, com 140 caracteres, os games (RPG). As
narrativas digitais agregam vários tipos de interação.
Numa época extremamente audiovisual, a ilustração predominante é resultado da soma de diversos códigos: o desenho, a fala dos personagens, a articulação das imagens na página ou na tira e até mesmo o discurso gráfico-narrativos, que se dá através dos cortes. Esta multiplicidade é um atrativo a mais para provocar a atenção da criança para o livro. (Khéde, p. 83).
Segundo Vygotsky (1997), a utilização dos instrumentos modifica globalmente
a estrutura das funções psicológicas superiores, exigindo mudança e evolução nas
estruturas intelectuais. O homem por meio do uso dos instrumentos modifica a
natureza e acaba modificando a si mesmo, numa dupla constituição de realizar e ser
realizado.
Al estar inserto en el proceso de comportamiento, el instrumento psicológico modifica globalmente la evolución y la estructura de las funciones psíquicas, y sus propiedades determinan la configuración del nuevo acto instrumental del mismo modo que el instrumento técnico modifica el proceso de adaptación natural y determina la forma de las operaciones laborales. (VYGOTSKY, 1997, p.65).
Para Vygotsky (1995), as pessoas são fruto da história e da cultura da
sociedade onde nasceram e se desenvolveram e as características dessa cultura são
internalizadas em um processo mediado por instrumentos (físicos e psicológicos).
Vygotsky (1993) via o individuo como um ser inserido em um processo histórico em
constante movimento, transformando-se a partir da interação com os outros seres
humanos e da apropriação da cultura. Assim, a construção da mente humana, para
esse autor, é um fenômeno social. Ela não é inerente à natureza humana, não
preexiste no ser humano, mas vai sendo formada a partir da condição social,
econômica e cultural em que vive esse ser. Assim, a vida social é entendida como
reguladora da conduta humana, ideia explicada pelo autor no seguinte trecho:
[...] la posibilidad de que se forme un nuevo principio regulador de la conducta es la vida social y la interacción de los seres humanos. En el proceso de la vida social, el hombre creó y desarrolló sistemas
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complejísimos de relación psicológica, sin los cuales sedan imposibles la actividad laboral y toda la vida social. [...] La vida social crea la necesidad de subordinar la conducta del individuo a las exigencias sociales y forma, al mismo tiempo, complejos sistemas de señalización, medios de conexión que orientan y regulan la formación de conexiones condicionadas en el cerebro de cada individuo. La organización de la actividad nerviosa superior crea la premisa indispensable, crea la posibilidad de regular la conducta desde fuera. (VYGOTSKY 1995, p. 85-86).
Vygotsky (1995) argumenta que a relação do homem com o mundo não ocorre
de forma direta, como nos animais, essa relação é mediada. A mediação, então, está
na base dos processos psicológicos superiores. Ela é levada a cabo, principalmente,
por meio do uso de instrumentos. O uso de instrumentos permite o controle
voluntário da atividade psicológica humana, ampliando a capacidade de atenção, de
memória e a possibilidade de acumular informações, entre outras funções. Vigotsky
(2001) argumenta ainda que cada ser, no caso, cada ser humano resulta de um
contexto social, histórico e cultural em que está inserido, e onde tem experiências e
inter relações pessoais, e que estas relações ocorrem através da mediação, que está na
base dos processos psicológicos superiores, e que se utiliza de instrumentos que
aumentam a capacidade de atenção, de memória e de acumular informações. No
mundo cibernético, a mediação ocorre através das tecnologias intelectuais, através a
hipermídia.
Transpondo para a literatura infantil, os livros no formato digital agregam
plúrimas formas de interação nas narrativas, como a animação, ilustrações, design de
personagens, design de som.
O computador e a internet são instrumentos culturais de aprendizagem, são
instrumentos de linguagem, de leitura e de escrita. Na Era da Mídia, segundo
Palange (2012), a escrita evoluiu da linearidade para uma organização em árvore,
com hierarquia de conteúdos:
A escrita digital é a do hipertexto, um conjunto de nós de significação interligados por palavras, páginas, imagens fotografias, gráficos. O hipertexto é um rizoma, modelo de crescimento orgânico, caótico. Apropria-se das tradições oral e escrita. (2012, p. 63).
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O processo de apropriação da cultura, por meios digitais de informação,
podem preceder do entendimento de novos aspectos das narrativas como a
hibridação, a não-linearidade ou a estrutura circular, a navegabilidade. Estes novos
parâmetros nos mostram aspectos das narrativas digitais como a inserção de sons e
imagens; ausência da sequência lógica de princípio, meio e fim; repetições; uso do
espaço virtual. Todos estes aspectos significam rupturas literárias que atribuem
novos sentidos às coisas, que vão sendo produzidos e incorporados culturalmente.
(LONGHI, 2001, p.84).
Na hiperliteratura a palavra não é a última palavra na criação literária. Há a
cooperação da música da palavra, de sons diversos, imagens.
A ideia de referências cruzadas e não-linearidade já existiam muito antes da
palavra hipertexto, e na literatura isto se chama dialogismo, nos quadrinhos, cross-
overs e na informática, hipertexto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O instigante na literatura infantil é que ela se adapta ao meio pelo qual é
veiculada, criando novos sentidos e com um brilho e propriedade que torna a leitura
muito prazerosa. Podemos dizer que com o advento da cibercultura e a inserção das
narrativas nas hipermídias, um novo tom foi dado à literatura infantil, conferindo-lhe
maior dinamismo e permitindo uma interação entre os leitores e o texto.
A teoria da literatura dispõe atualmente de material riquíssimo para suas
investigações do fenômeno literário, e que irá dialogar com os novos paradigmas
sociais, desvendando seu perfil e características dentro do meio social. Uma jornada
interdisciplinar, profunda e ampla se abre a todos aqueles que se aventuram por este
caminho de estudos. Não poderemos nos furtar a entender o fenômeno da
hiperliteratura, suas conexões com as várias disciplinas sociais, humanas e da
informação para podermos entender a literatura, e mais especificamente a literatura
infantil. Logo, conhecer os produtos hipermidiáticos, as novas tecnologias da
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comunicação e informação, os novos processo de leitura e de cognição são
imprescindíveis a todos que querem estudar a literatura.
Deveremos seguir buscando novos métodos de estudos e novas práticas de
leitura, ter um novo olhar sobre o texto. Ou melhor, entender que um texto pode ser
muito mais que palavras rabiscadas em papel, que pode ampliar-se com os sons, as
imagens, a música, e ser refeito interativamente por seus próprios leitores. Estamos
neste momento rico e entusiasmante de leituras e novas leituras, de sentidos e novos
sentidos. Façamos nossa parte.
Referências
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HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. Tradução de Cid Knipel. São Paulo, Cosacnaify, 2010.
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PALANGE, Ivete. Texto, hipertexto, hipermídia: uma metamorphose ambunte. B. Téc. SENAC: a R. EDUC. PROF., Rio de Janeiro, vol. 38, nº 1, jan./abr. 2012 Disponível em: http://www.senac.br/BTS/381/artigo6.pdf
VIGOTSKI, Lev S. A Construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 2001. 496p.
VYGOTSKY, Lev S. Obras Escogidas, Tomo III, Historia Del desarrollo de lãs
funciones psíquicas superiores . Madri, Editorial Visor, 1995.
DO FEMININO E OUTROS ESPELHOS Um estudo analítico do curta-metragem ‘No Coração de
Shirley’
Jober Pascoal Souza Brito Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – UNEB/BA
Resumo: Este trabalho busca compreender como se ampara a cinematografia dirigida por mulheres no Brasil, em presença da cada vez mais frequente multiplicação de telas, da ampliação tecnológica engendrada pela era digital e pelos movimentos teóricos produzidos pelo Feminismo, Pós-Estruturalismo e pelas teorias das Representações Sociais. Nestas condições, tomar-se-á como objeto de análise, o curta-metragem baiano No Coração de Shirley (2002) de Edyala Lima Yglesias, cuja narrativa enovela uma rede de tensões agenciadas por relações de negociação e conflito, tomando como referente simbólico o reordenamento urbano vivenciado pela cidade de Salvador em fins de década de 90. O filme alude para o encontro de duas personagens que atuam como profissionais da noite, uma é prostituta (Shirley), a outra, uma travesti (Eva). Elas estão inscritas em contexto tanto de disputas simbólicas, quanto de fronteiras genéricas. O argumento fílmico busca ajustar confissões, rivalidades e carências, que podem ser percebidas como espaços de interlocução entre o discurso da tradição do ser mulher em compasso ao devir mulher e outros devires, como efeito das discussões instigadas pelas novas tecnologias de gênero na contemporaneidade, introduzidas na narrativa a partir de um jogo de espelhos, simbolicamente montado no camarim, que serve de artefato tanto para o cenário onde as personagens estão inscritas, quanto de metáfora para o jogo estabelecido entre a tela e o espectador. A película encena dramas que emergem por meio de uma atmosfera complexa e densa, evocada, sinestesicamente, através da combinação de aromas de cigarros e cafés em compasso ao uniforme movimento em vermelho e azul dos veículos da Avenida Manoel Dias, acedendo a uma leitura saturada da cidade, emoldurada a partir de um colorido soturno em que corpos e órgãos são exibidos em um mercado de prazeres difusos. Um dos principais objetivos deste trabalho é investigar como este filme produzido por uma feminista, ao recorrer a uma coletânea de estereótipos, busca dilatar, a seu estilo, a maneira como é sujeitado pelo discurso hegemônico, de modo a permitir a fabricação de novos códigos sexuais para a leitura do feminino e de suas variantes. É no imaginário projetado pelo cinema – aqui adotado como uma progressiva elaboração do inconsciente psíquico, intercedido pelos códigos simbólicos engendrados mediante diversas linguagens – que se dá o diálogo que interessa a esse trabalho, como tentativa de redimensionar as representações genéricas fundadas pelo monismo sexual masculino, que toma a mulher como um outro do discurso dominante. Esse estudo, neste sentido, busca constituir-se em mais uma via produtiva para se discutir o lugar ideológico e simbólico do feminino na contemporaneidade, recorrendo-se a outras linguagens, potencializando a crítica à ideia de unidade identitária. Palavras-chave: Cinema, No Coração de Shirley, Gênero
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1 APRESENTAÇÃO
Uma pequena nota no jornal baiano sobre o assassinato de uma travesti na
Avenida Manoel Dias na madrugada de 04 de agosto de 1998. O fato.
Quatro anos depois, resultando de um workshop em parceria com diversos
profissionais do ramo artístico, o curta-metragem que será analisado, No Coração de
Shirley da diretora Edyala Lima Yglesias.
A narrativa enovela uma rede de tensões agenciadas por zonas de negociação
e conflito, tomando como referente simbólico o reordenamento urbano da cidade de
Salvador em fins da década de 90. O foco, a anulação dos estranhos, tomados como
rudimentos invisíveis que sujam e enfeitam o universo noturno da Cidade da Bahia.
A película alude para o encontro de duas profissionais da noite, uma
prostituta, Shirley; a outra, a travesti Eva, inscritas em contexto tanto de disputas
simbólicas, quanto de fronteiras genéricas, buscando justapor confissões, rivalidades
e carências, que podem ser compreendidas como espaços de interlocução entre o
discurso da tradição do ser mulher em compasso devir mulher e outros devires, como
efeito das novas tecnologias de gênero na pós-modernidade, introduzidas na
narrativa a partir de um jogo de espelhos, simbolicamente montado no camarim e
que serve de artefato tanto para o cenário onde estão inscritas as personagens,
quanto de metáfora para o jogo estabelecido entre a tela e o espectador.
A montagem deste drama emerge através de uma atmosfera complexa e
densa, evocada, sinestesicamente, pela combinação de aromas de cigarros e cafés em
compasso ao uniforme movimento em vermelho e azul dos veículos, acedendo a uma
leitura saturada da cidade, enquadrada a partir de uma tonalidade soturna em que
corpos e órgãos são exibidos em um mercado de prazeres difusos.
2 O CORAÇÃO DA CIDADE INVISÍVEL
Sexta-feira, 23:15 h, Avenida Manoel Dias. Mediada por estas marcações
espaço-temporais e em meio ao incidental barulho dos carros, em um
enquadramento de perspectiva, surge Shirley, em pequenos trajes, sem maquiagem,
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aparentando tratar-se de uma prostituta em decadência. Ao fundo, ironicamente
esboçam-se na tela propagandas com mulheres e um manequim com roupas
femininas, metaforizando um corpo que serve de modelo ao ideal feminino, pretenso
pelo mercado, e Shirley, o modelo disponível para consumo.
A cena expande-se e Eva, a travesti, é revelada no foco principal da câmera,
dublando Crazy. Embora o plano esteja enquadrado na imagem da travesti, a canção
americana evoca o drama de sua rival, Shirley. A canção de Willie Nelson traduz a
sensação de isolamento experimentada pela prostituta face à espera duradoura pelo
taxista Silveira, objeto de seu desejo, e que se encontra seduzido pela imagem
imantada em brilhos de Eva.
Uma nova personagem é projetada na história, Fafá, amiga de Shirley e
também profissional da noite. Um relance sonoro toma destaque quando dois
motoqueiros trafegam e um deles grita Vai, Puta! O comentário do motociclista
direcionado às prostitutas, Fafá e Shirley, aponta para as conformações da violência
exercitada sobre os agentes que negociam o corpo no mercado do prazer. Na medida
em que o sexo pago é uma prática indispensável ao público masculino, que,
historicamente, fundamentou o uso comercial através da prostituição, de igual efeito,
são também os mesmos usuários que aplicam sobre os indivíduos agenciadores desse
comércio as maiores infrações.
Este fenômeno das violências verbal e física sobreposto às profissionais da
noite deve-se a vários fatores, dentre os quais destaca-se o estereótipo calcado na
ênfase da pobreza resultante do estar na rua e o fato de o sujeito prostituído também
ser do gênero feminino e/ou de suas variantes genéricas resvalando entre travestis e
transexuais, aprofundam sintomaticamente a condição de vulnerabilidade do
trabalho ofertado.
Michel Foucault (2011) nos informa que o direito de morte e poder sobre a vida
tenderá a funcionar na sociedade moderna como um atributo da sociedade civil, para
manter a vigilância e o controle dos desvios comportamentais, visto que até a época
monárquica o poder sobre a vida e a morte era reservado aos reis e à igreja. O
Filósofo francês informa que a potencialidade da morte, que era um símbolo de
poder de um único domínio sobre os demais, será, a partir do iluminismo,
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reencenado pela administração pública dos corpos e pela gestão calculista da vida,
desenvolvendo-se, com isso, técnicas diversas e numerosas a fim de se obter a
sujeição dos corpos e o controle das populações. O dispositivo da sexualidade
funcionará como um dos itens mais importantes. Instaura-se a era do que o autor
classifica como biopoder, e que será um elemento indispensável ao desenvolvimento
do capitalismo, podendo ser assimilado à custa da admissão vigiada dos corpos no
aparelho de produção e por meio de uma acomodação dos fenômenos de grandes
populações aos interesses econômicos.
3 ENTRE AS MALHAS DO CORPO
O corpo da travesti pode ser interpretado como um enfrentamento à gestão
calculista da vida, desajustado ao controle, expande-se atuando como um corpo sem
órgãos, conforme conceituam Gilles Deleuze e Félix Guattari (2012), funcionando
muito mais como uma prática, ou conjunto de práticas, em vez de uma noção bem
acabada. Não é necessário compreender o CsO (Corpo sem Órgãos). É preciso
experimentá-lo, vivê-lo.
O corpo organizado trabalha como uma aparelho que aponta para a sua
produção. Quando este corpo alcança os contornos de organismo, ganha, portanto,
uma funcionalidade e serve para realizar determinados fins, muito mais de caráter
externo do que interno, muitas vezes, abafando e camuflando o desejo, que deverá
ser fundeado a uma lógica capitalista de ordenação social. O órgão é sempre um
instrumento para além dele mesmo, agindo de forma contraventora a seus
deslimites. Esse modelo de corpo com órgãos opera como uma espécie de prisão,
retirando do agente a autonomia de decidir acerca de quais modelos aplicar sobre si
e quais experiências podem ser efetivadas. O CsO é sempre uma tecnologia a serviço
da desordem visto que deseja tomar o que é dele: a potência de existir.
No tocante a investigar como estes novos corporais projetam-se sobremaneira
sobre as travestis e menos nas prostitutas, acendendo nestas um certo mal-estar,
toma-se a base dos estudo realizados pela psicanalista Maria Rita Kehl (2004) sobre o
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corpo, que à maneira de Foucault tematizar o cuidado de si como uma técnica de si,
autora replicará este conceito, visando compreender a cultura do corpo no mundo
contemporâneo.
Diferentemente do conceito cunhado pelo filósofo francês – que apresenta a
cultura de si, na antiguidade, articulada ao papel dos homens na Grécia, ou seja, ser
capaz de cuidar bem do corpo e da mente como condição para cuidar bem dos
assuntos na polis – o corpo, na atualidade, representa o depositório de todas apostas
do mercado de trocas simbólicas. A cultura do corpo, diz a psicanalista, não é uma
cultura voltada à saúde, mas ao exibicionismo, como cultivo de um sistema fechado,
claustrofóbico e tóxico, encerrado pelo uso cada vez mais frequente de anabolizantes
e silicone, a fim de turbinar e produzir um corpo que seja capaz de render as somas
de um comércio da imagem de si como esteticamente admissível.
O primeiro conceito elencando um corpo sem órgãos aplica-se
convenientemente à vivencia das travestis, que podem, através das novas tecnologias
de produção e modificação do corpo, desafiar as estruturas que estabelecem a
obediência e o controle da subjetividade. Já o segundo pressuposto, apresentado por
Kehl, relaciona-se ao mal-estar suscitado por uma cultura do corpo que atende a
processos de dessubstanciação, ou deontológicos.
O curta explora, criticamente, essa cultura voltada ao corpo, atravessada pela
sensação de desconforto e desvantagem das prostitutas em relação ao mercado de
prazeres difusos, cada vez mais vantajoso às travestis.
“Shirley, por que você não vira Mona?”, diz Natanael, vendedor de cafezinho.
A prostituta contesta: “Tá trocando as bolas, é? Eu sou 100% mulher. Tá vendo não?
Eu lá quero ser imitação barata. Aliás, vá se picando logo daqui, maquete de viado”.
A escolha de Silveira por Eva e a subsequente pergunta de Natanael reeditam o mal
estar experimentado por Shirley, por não encontrar-se agenciada, tecnologicamente,
a atender à libido do mercado do sexo. Kehl afirma que é somado ao corpo uma
dupla função, o de oferecer a si um amor narcísico e de ofertar ao outro uma imagem
pessoal como tentativa de inclusão social. O corpo será um escravo a que se
submeterá uma rigorosa disciplina na indústria da forma, e um senhor a quem será
sacrificado tempo, economias e prazeres.
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Fafá, amiga de Shirley, desabafa: “(...) Que sinaleira é essa, Shirley, pode uma
coisa dessas, também com tanta novidade, o cliente nem tem tempo de olhar para a
gente”. A cidade também adquire um corpo, muitas vezes amorfo visto pelas suas
contingências, pelas suas reformulações, transformando-se como um elemento
concorrente que desafia o ordenamento desajustado do mercado do sexo.
A reconfiguração urbana projetada para as cidades modernas, com seus
semáforos com medidor de tempo, faixas de pedestre, radares e câmeras, funciona
como uma tecnologia em contravenção ao trabalho ofertado pelas profissionais da
noite, subordinado às paradas de veículo.
4 A ANULAÇÃO DOS ESTRANHOS SOCIAIS
A narrativa aprofunda-se com a prisão e posterior assassinato de Dora,
episódio que reencena o martírio suportado na madrugada do dia 04 de agosto de
1998 pela travesti Luana, Júnior da Silva Lago, 22 anos, vítima de assassinado por
afogamento cometido por um cabo e dois militares da 13ª Companhia Independente
da Polícia Militar, sediada no bairro da Pituba, em Salvador.
Conforme o Primeiro Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil,
os policiais acusados pelo crime faziam parte de um programa de policiamento
comunitário que estava sendo implantado pela Polícia Militar. O relatório ainda
aponta os índices anuais de assassinatos de homossexuais na Bahia, correspondendo
a dezesseis em 1996, 12 em 1997 e 9 de janeiro a setembro de 1998. O conteúdo ainda
informa que Gays, lésbicas e travestis continuam sendo vítimas constantes de
agressões físicas, tortura, discriminação, ameaças de morte, extorsões, com
participação de policiais civis e militares.
Nas palavras da policial-personagem que inquire à travesti que horas depois
será assassinada “Tá pensando o que, Boneca, que reformaram essa avenida para
vocês desfilarem, é? Isso aqui é bairro nobre. Não é passarela de viado, não”, vê-se
amparado o olhar feminino em space-off da diretora Edyalla Iglesias acerca do
genocídio de travestis e das políticas sanitaristas que cultivam a eliminação dos
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estranhos que tornam a Avenida Manoel Dias uma enorme Passarela de Viados,
como refere o policial, e reedita a sensação de impotência vivenciada e relatada pela
cineasta, moradora da Pituba que, a passeio pela orla marítima que desenha
turisticamente a região da Avenida, leu uma pequena nota no jornal baiano
noticiando a morte da travesti Luana. Essa sensação lhe acompanhou por quatro
anos, culminando no curta analisado neste trabalho.
No que tange a entender as políticas higienistas cultivadas ainda no fim do
século XX, e que permanecem ativas na contemporaneidade como um dispositivo a
serviço do status quo, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro O Mal-
estar da Pós-Modernidade (1998), busca controverter a universalização do medo ou
das perdas derivadas de ordem pela busca da liberdade. Já no segundo capítulo A
Criação e Anulação dos Estranhos, o intelectual afirma que todas as sociedades
produzem suas espécies particulares de estranhos, à sua própria maneira, inimitável,
e estes formam uma classe de pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral
ou estético do mundo é tomada como ameaça para a noção de pureza, de higiene
social aplicada às sociedades.
Os estranhos, apenas por sua simples presença, deixa turvo o que deve ser
transparente, confuso o que deve ser coerente. Os seres humanos que transgridem os
limites se convertem em estranhos sociais e são o refugo do zelo do estado. Na
sociedade moderna, e sob o escudo do estado moderno, informa o sociólogo, a
aniquilação cultural e física dos estranhos e do diferente “foi uma destruição
criativa” – assim conclui, ironicamente – demolindo e construindo, mutilando e
corrigindo, na tentativa de ordenar a nação, pondo os elementos constitutivos em
harmonia com as suas dessemelhanças, ou extirpando-os do convívio em sociedade.
5 O JOGO DOS ESPELHOS
A captura e o posterior afogamento da personagem Dora, o medo provocado
pelos policiais, são componentes que colaboram para que Shirley e Eva possam
encontrar uma na outra o apoio que geralmente recusam em condições de trabalho.
Os mundos, anteriormente separados por fronteiras simbólicas, vão paulatinamente
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se liquefazendo e se humanizando ante os desabafos enunciados em caráter de
confissão.
As duas personagens duelam a todo instante num jogo de perguntas e
respostas, ao mesmo tempo, em que ocorre, como uma estratégia discursiva de
cinema, a inversão dos papéis assumidos na narrativa.
A primeira pergunta instalada por Eva à colega refere ao sucesso que as
travestis possuem na noite quando comparada às prostitutas, diz: “A diferença é que
nós, as travecas, vivemos a fantasia da mulher ideal”, e ainda enceta, “Pra que ser
mulher, basta parecer!”. Esta alocução atualiza o aforismo de Simone de Beauvoir em
O Segundo Sexo (1960) em que se celebra uma mulher que é, principalmente, um
produto da cultura, e menos um resultado da biologia. Eva ainda diz que foi o
“homem que pariu a mulher. Tá na bíblia!”. Ou seja, que a mulher tenderia a ser uma
produção agenciada para/pelo homem desde a bíblia. A travesti encerra dizendo
que todas as mulheres maravilhosas que se conhece inclusive as divas do cinema,
foram tiradas da cabeça do homem. Eva diz que aliado ao sucesso das travestis ao
tornar possível a fantasia da mulher ideal, seus clientes geralmente invocam uma Eva
com o sexo de Adão, assim reeditando o mito judaico-cristão.
O universo das duas personagens vai sendo revelado a partir de um jogo de
espelhos inserido no camarim, que serve de cenário, como uma alusão ao jogo de
telas, convoca experiências em que entra em cena o olho do espectador em diálogo ao
trabalho do cineasta. O olho ocupa uma posição de destaque e poderia ser
considerado um órgão com função sexual, como a diria a psicanálise, por desnudar o
corpo, distinguindo-os entre órgãos sexuais feminino e masculino.
É no encontro da imagem com o olho que o cinema instala a possibilidade de
participação do espectador. É no imaginário – aqui adotado como uma progressiva
elaboração do inconsciente psíquico, intercedido pelos códigos simbólicos
engendrados mediante diversas linguagens – que se dá o diálogo cinematográfico e
que, a depender das experimentações estéticas, conecta as mais diversas tramas de
natureza paradoxal e conflitante para o mundo real. Universos que se discordam
mutuamente encontram no cinema a ponte para a sua complementariedade, ou sua
polarização. Estas relações cambiadas entre o imagético do cinema e o olho do
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espectador só podem ser lidas e/ou tornadas complexas através do recurso da
linguagem.
6 CORTA
A narrativa culmina com um Corta! ouvido pela voz da narração feminina,
que até aquele momento não havia se personificado. A tentativa de pôr um corte à
sequência de planos em que as duas personagens decidem procurar a Corregedoria
de Polícia a fim de denunciar os policiais pela morte de Dora, expõe o outro lado do
espelho, que a tela não exibe, o lado do espectador, que a partir desta perspectiva
funcionará como um interlocutor para o qual a imagem de Eva e Shirley buscam
dialogar, ou mirar. Como se, ao mesmo tempo que relata até onde é possível contar a
história, estivesse convocando o público de cinema a uma experiência de coprodução
da narrativa ou convidando-o a tomar ciência dos fatos verídicos ocorridos com a
travesti Luana, assassinada por afogamento.
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PARA ALÉM DA PLATAFORMA NOVE E MEIA Um estudo de Recepção Crítica do Fenômeno Pottermania
Roberto Rodrigues Campos Universidade Estadual da Bahia
[email protected] Resumo: Em 1997, foi publicado na Inglaterra o livro Harry Potter e a pedra filosofal, escrito pela britânica Joanne Kathleen Rowling, que se configura no mundo como o primeiro volume de uma série de narrativas fantásticas reunidas em sete volumes, a qual, hoje, já representa um fenômeno literário e cultural, quando adicionados livros spin-off, versões em audiobooks, adaptações cinematográficas recordes de bilheteria, jogos, brinquedos, vestuário, um parque temático, e até mesmo criação de um vocabulário particular; obra, a qual jamais alguém cogitaria dizer que faria tanto sucesso ao ponto de, quinze anos depois, ter se tornado a terceira obra mais lida nos últimos 50 anos, vendendo mais de 450 milhões de cópias, traduzidas em 72 idiomas. Questiona-se o porquê de tanto sucesso, uma vez que, para os estudiosos mais conservadores, Harry Potter e todas as obras contemporâneas de entretenimento não correspondem ao ideal literário, e combatem toda e qualquer produção literária de mesmo estilo, alegando má qualidade estético-literário por sempre seguirem uma mesma forma, por terem seus sucessos premeditados, perdendo, assim, a beleza estética e o espírito artístico. A crítica literária já vem apreciando textos como os de Rowling, tornando-se importante discutir o significado de literatura, uma vez que ela é um fenômeno cultural e histórico, e, portanto, passível de receber conceitos diferentes de pessoas diferentes em ocasiões diferentes. Nesse sentito, este trabalho busca apresentar parte da fortuna crítica do fenômeno cultural massivo - Pottermania -, articulando uma análise da recepção da série de narrativas Harry Potter, no ambiente acadêmico brasileiro. Para tanto, tomar-se-á como objeto de análise o livro Além da Plataforma nove e meia: pensando o fenômeno Harry Potter, uma coletânea de estudos sobre a série do menino bruxo, organizada pelos professores doutores Sissa Jacoby e Miguel Rettenmaier. O livro agrupa textos de especialistas e pesquisadores da leitura e da literatura infanto-juvenil, que contemplam e investigam os leitores, tanto pela interpretação do texto quanto discutindo o próprio gênero infanto-juvenil e seu público-leitor – uma compilação que resulta da necessidade de se pensar o fenômeno Pottermania, de se considerar uma escrita que promove a formação leitora de muitos jovens, e que já faz parte do acervo de leitura de muitos adultos. Estudar o livro escolhido permite elucidar a metodologia de leitura e recepção utilizada pelos acadêmicos brasileiros no presente, na qual a série Harry Potter é abordada e compreendida segundo as interpretações que o público-leitor desse momento foi capaz de fazer dessa obra, a fim de apontar até onde os métodos de leitura, pesquisa e análise da recepção da obra de Rowling se cruzam e se afastam. Palavras-chave: Pottermania; Recepção Crítica; Leitores; Harry Potter; J. K. Rowling
1. APRESENTAÇÃO
Configura-se a obra de J. K. Rowling no mundo como uma série de narrativas
fantásticas reunidas em sete volumes, com um sucesso de vendas ultrapassando
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pouco mais de 460 milhões de cópias, a qual, hoje, já representa um fenômeno
literário e cultural, quando adicionados livros spin-off, versões em audiobooks,
adaptações cinematográficas recordes de bilheteria, jogos, brinquedos, vestuário, um
parque temático, e até mesmo criação de um vocabulário particular. No entanto, não
se pode negar que o consumismo desempenhou um papel fundamental na
propagação de sua fama em todo o mundo, conhecida como Pottermania, uma
literatura de massa, a qual elevou Harry Potter à categoria de obra literária base para
o que vem a ser produzido posteriormente, “os novos Harry Potter”.
Em virtude do sucesso que a série de Rowling alcançou, de acordo com Eliane
Ferreira,
a maior parte das críticas à obra advém de características que a situam no contexto da produção literária pós-moderna, como, por exemplo, configurar-se como um romance híbrido, situado no mercado de bens simbólicos, sob a forma de best-seller, que estabelece dialogia com outras produções, por meio de sua narrativa intertextual. (FERREIRA, 2009, p. 27-28).
Desde a publicação do primeiro dos sete volumes da série, “Harry Potter e a
Pedra Filosofal” (1997), a obra de Joanne Kathleen Rowling já vendeu milhões de
cópias por todo o mundo, sendo reverenciada por uma multidão de leitores fiéis a
qualquer material cujo tema seja Harry Potter. A crítica literária já vem apreciando
textos como os de Rowling, do ponto de vista da produção do fenômeno literário-
cultural. De acordo com Patrícia Pitta, doutora em Letras pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS),
o estudo das obras da série Harry Potter tem sua justificativa no fato de que uma obra literária lida por milhões dificilmente “virará poeira”, pois seu registro no intelecto humano com certeza produzirá frutos, independente do julgamento estético que se faça da obra. (PITTA, 2006, p.12).
O consumo dos best-sellers fez surgir a ideia de uma reclassificação literária,
cujo nome provém de um dos seus objetivos: literatura de entretenimento. José Paulo
Paes faz a defesa de um desenvolvimento de uma tradição de uma literatura de
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entretenimento no Brasil, “estimuladora do gosto e do hábito da leitura, adquire o
sentido de degrau de acesso a um patamar mais alto onde o entretenimento não se
esgota em si, mas traz consigo um alargamento da percepção e um aprofundamento
da compreensão das coisas do mundo” (PAES, 1990, p. 28), e acusa a história da
literatura brasileira de não ter dado atenção a isso, pois há uma formulação do que é
dito como cânone a fim de forçar alguém a ler alguma coisa, o que é bastante
prejudicial quando se trata da formação de um público leitor, visto que “para ser
fruído, o livro, mesmo de entretenimento, exige o mínimo de esforço intelectual”
(PAES, 1990, p. 36).
A leitura de clássicos da literatura vem perdendo força; a Academia, bem
como a Escola, ainda assegura a leitura dos mesmos, temendo, quem sabe um dia,
que deixem de existir. Conforme Robert Darnton “vemos a literatura de cada século
como um conjunto de obras agrupadas em torno dos clássicos; e nossa ideia de
clássico provém de nossos professores, que por sua vez a receberam de seus mestres”
(DARNTON, 1998, p.9). Esses clássicos estão em desarmonia com a moda literária,
visto que esta, hoje, é caracterizada pela leitura de best-sellers, os quais configuram o
quadro de uma “nova” literatura: a de entretenimento.
O Grupo Silvestre4, por exemplo, manifesta-se a favor da volta à narrativa, ao
entretenimento e à popularização da literatura brasileira, uma reformulação e/ou
determinação das características dessa literatura contemporânea. Embora as
propostas do Grupo Silvestre sejam voltadas para a literatura brasileira, pelas
características apresentada – enfoque no gosto, no prazer e na recepção de um
público-leitor – abraçam uma gama de literaturas estrangeiras, as quais vêm sendo
publicadas e consumidas com bastante fervor pelos brasileiros, como uma publicada
em 1997, cuja tradução fora apresentada no Brasil em 2000, e que hoje se configura
como o maior fenômeno literário/cultural jamais visto pelo mundo outrora, de
desabafa Ana Maria Machado: “Nunca existiu um fenômeno tão forte como o de
Harry Potter” (MACHADO apud MIRANDA, 2011).
4 Grupo formado por Felipe Pena, André Vianco, Luis Eduardo Matta, Pedro Drummond e outros escritores e estudiosos da literatura; lançaram o Manifesto Silvestre contendo propostas para valoração da literatura brasileira contemporânea.
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A partir dessa afirmação de Ana Maria Machado, despertou-se o desejo de se
fazer um estudo da recepção crítica da série Harry Potter. Para tanto, foi escolhido o
livro Além da plataforma nove e meia: pensando o fenômeno Harry Potter, organizado por
Miguel Rettenmaier e Sissa Jacoby, o qual reúne dez artigos de pesquisadores
brasileiros do fenômeno Pottermania, para, através dele, observar como os estudiosos
da Literatura estão recepcionando as narrativas do menino bruxo, e propor possíveis
respostas para levantar definições do que seja um clássico literário ocidental, num
momento em que o processo canônico-literário tem se tornado dialético, frente ao
consumo ávido de literaturas de entretenimento, partindo de um estudo das funções
da Crítica Literária e dos critérios de valoração de uma obra.
2. A RECEPÇÃO CRÍTICA PENSANDO O FENÔMENO HARRY POTTER
Sissa Jacoby e Miguel Rettenmaier, Doutores pela PUC-RS, organizaram o
livro chamado Além da plataforma nove e meia: pensando o fenômeno Harry Potter, o qual
reúne dez artigos de estudiosos e pesquisadores da série Harry Potter, produzidos no
Brasil. A professora da Universidade de Passo Fundo, Tania Rösing, apresenta o livro
como resultado de “uma crítica sem interesses outros além de pensar honestamente
um texto de tal forma apreciado por crianças e adolescentes (para não referir os
adultos que eventualmente tenham gostado da série Harry Potter)” (RÖSING, 2005,
p. 6).
Famoso entre aqueles de 8 a 80 anos: acredita-se que uma pesquisa iria revelar
que mais de 75% da população brasileira já ouviu falar, em algum momento, de
Harry Potter. Por isso, é legítimo questionar o que se entende por essa paixão por
uma série de sete livros infantis e oito adaptações cinematográficas; merece reflexão.
Para Sissa Jacoby:
A propósito dessa extrapolação da faixa etária ao inverso, uma questão, entre tantas outras que o fenômeno suscita, se impõe: por que adultos estão lendo livros escritos para crianças, assistindo a filmes de animação destinados a crianças, nem sempre
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acompanhados por elas, mas por escolha própria? (JACOBY, 2005, p.117)
A questão é saber o porquê de tanto sucesso, já que não foi como uma onda
como maré, teve seu boom, mas não fora destruído rapidamente, não diminuíra. Para
os estudiosos mais conservadores, Harry Potter e todas as obras contemporâneas de
entretenimento não correspondem ao ideal literário, e combatem toda e qualquer
produção literária de mesmo estilo, alegando má qualidade estético-literário por
sempre seguirem uma mesma forma, por terem seus sucessos premeditados,
perdendo, assim, a beleza estética e o espírito artístico. Harold Bloom, reipeitado
crítico literário, questiona: se extistem “tão bons escritores para crianças com Lewis
Carrol e até mesmo Shakespeare, por que não reuni-los em um só volume,
oferecendo uma oportunidade para os pais oferecerem boa literatura para seus
filhos? (BLOOM, 2003b). Em contrapartida, a Professora Doutora Alice Áurea
Martha, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), diz que:
Apesar de críticas como a de Bloom e de muitas outras autoridades reconhecidas desde o primeiro volume, Harry Potter e a pedra filosofal, a série assumiu o topo do rol dos best-sellers, obrigando, inclusive, veículos da mídia, jornais e revistas a incluírem obras de literatura infantil em suas colunas semanais de livros mais vendidos. (MARTHA, 2005, p.121)
Para Alice Martha, Harry Potter é uma prova de que a juventude da era
internet realmente se interessa por literatura, já que considera a obra de Rowling
como literatura. Na visão de Martha:
A cada lançamento, a situação se repete, e crianças que jamais haviam lido um livro, entusiasmadas, enfrentam a maratona de leitura propiciadas pelos imensos volumes da série; adultos há muito distanciados da lides da leitura são vistos deliciando-se com as aventuras do pequeno feiticeiro, ou, pelo menos, procurando descobrir o que leva a garotada de volta aos meios impressos, que julgavam em situação de morte iminente. Assim, críticos e estudiosos de questões sobre a literatura infantil e juvenil e sobre hábitos de leitores têm buscado respostas para o impasse: seria tão-somente o resultado de força publicitária ou é possível encontrarmos no texto elementos catalisadores do interesse dos jovens leitores? (MARTHA, 2005, p.121).
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Ao que parece, a consideração quanto ao sucesso de Rowling, para muitos,
trata-se de um êxito merecido, tal como sugere o escritor Pedro Bandeira:
Muita gente há de atribuir o megassucesso de Harry Potter à moda do esoterismo e da magia que assola o mundo literário, mas o segredo desse gol de placa é o profundo conhecimento que a autora possui da psicologia das crianças a quem pretende agradar: a faixa entre os 9 e os 12 anos. [...] Joanne Rowling sabe o que pensam, imaginam e sonham esses pré-adolescentes e lhes oferece um prato cheio de modelos com os quais eles podem se identificar. [...] O livro merece o sucesso mundial que obteve. Não será diferente no Brasil. Nós, autores brasileiros de literatura para jovens, devemos dar a mão à palmatória: a senhora Rowling conhece o caminho das pedras. (BANDEIRA, 2000)
Muito se tem discutido sobre o fato de que, na era digital, o entretenimento
oriundo da internet e dos jogos eletrônicos afasta crianças e adolescentes do mundo
dos livros. J.K. Rowling recebeu diversos prêmios pelos seus livros, dentre os quais
destacam-se o Nestlé Smarties Book Prize Gold Medal – conquistado por três vezes
consecutivas, isto porque a autora desistiu de continuar a se candidatar – e o Prêmio
Príncipe de Astúria da Concórdia “por ter ajudado crianças de todas as raças e
culturas a descobrirem o prazer da leitura, [...] a encontrarem nas fascinantes
aventuras de Harry Potter um estímulo à imaginação e criatividade ”5.
O fato incontestável é que, de forma premeditada ou não, Harry Potter se
tornou um best-seller, um fenômeno de vendas, no Brasil e no mundo, tal como
sugere a crítica literária Nelly Novaes Coelho:
Do ponto de vista do mercado, a série Harry Potter – literatura destinada a crianças e adolescentes – tornou-se o primeiro produto editorial infantil/juvenil a se igualar aos grandes best-sellers “adultos”. Fenômeno resultante de uma gigantesca engrenagem editorial “globalizada”, [...] o sucesso da série tem início com a inteligente e complexa estrategia da tradução: cada volume é traduzido, com antecedência, em dezenas de idiomas, para ser lançado,
5 Tradução minha do recorte "for having helped children of all races and cultures to discover the joy of
reading, […]to find in Harry Potter's fascinating adventures a stimulus for imagination and creativity". Disponível em: <http://staugustine.com/stories/091103/com_1796005.shtml>. Acesso em 30 ago. 2011.
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simultaneamente, em centenas de países e em tiragens que chegam a milhões de exemplares. Os lançamentos são sempre precedidos de um formidável marketing: notícias invadem as colunas literárias da imprensa. [...] Fotografam-se filas de crianças à espera da compra, criam-se concursos que envolvem o livro, etc. (COELHO, 2005, p.55).
Por esta razão é que muitos ainda se perguntam se Harry Potter é, ou virá a
ser um dia, um clássico da literatura universal. De acordo com João Luís Ceccantini:
A intensa celeuma deflagrada por Harry Potter é emblemática da cisão que ainda hoje afeta o universo da cultura: cultura erudita / cultura de massa; alta cultura / baixa cultura; arte / indústria cultural, estas, entre outras tantas dicotomias que afloram no debate cultural relativo à série Harry Potter, mas também, no caso brasileiro, aos livros de Paulo Coelho, aos romances polciais, ao gênero infanto-juvenil, aos folhetins (de ontem e de hoje), para ficar em alguns poucos exemplos do meio literário. (CECCANTINI, 2005, p.23).
De acordo com Borges (1974), um livro se torna clássico quando é lido com
fervor e lealdade. Para Jauss ([1967]1994), o cânone literário se define de acordo com
os processos de leitura que o público-leitor daquela nação foi capaz de fazer. O
Wolfgang Iser, teórico do efeito, pensa “é que a leitura só se torna um prazer no
momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, qundo os textos nos
oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades” (ISER, 1999, p.10). A
experiência de pesquisa vivida pela Professora Doutora da PUC-RS Ana Cláudia
Pelisoli mostra que “a estética da recepção tem como um de seus princípios básicos o
potencial de efeito inerente à obra, o que permite uma análise baseada nos dois pólos
da leitura: a estrutura textual e sua implicação na concretização do leitor” (PELISOLI,
2005, p.144), ou seja, segundo os pressupostos de Jauss, Harry Potter também é um
clássico. A partir desse confronto de ideias de pesquisadores acadêmicos brasileiros,
Harry Potter se enquadra perfeitamente dentro dos preceitos canônicos, e pode,
certamente, ser considerado um clássico, para não dizer o maior clássico dos últimos
tempos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde a publicação do primeiro dos sete volumes da série, “Harry Potter e a
Pedra Filosofal” (1997), a obra de Joanne Kathleen Rowling já vendeu milhões de
cópias por todo o mundo, sendo ela reverenciada por uma multidão de leitores fiéis a
qualquer material cujo tema seja Harry Potter. A crítica literária já vem apreciando
textos como os de Rowling, do ponto de vista da produção do fenômeno literário,
baseado no objeto e não no assunto. Os livros foram escritos para crianças e
adolescentes, mas são apreciados, também, por um público adulto, porque são
escritos de uma forma que cativa o leitor, repletos de diversos recursos literários de
fantasia, gótico e de horror; outra razão pela qual os romances são tão populares e
cativantes, além de serem cheios de fantasia, magia e aventura, é que eles são muito
realistas, descrevem as vidas de jovens estudando diversas matérias e prestando
exames na escola, e relações humanas, tais como brigas familiares, amizade,
rivalidade, paixões, etc.
Despertou-se o interesse em verificar se o sucesso de vendas da obra de
Rowling se caracteriza como subliteratura ou se a mesma se insere dentro de um
possível período literário contemporâneo inovador, marcado pela produção de
literatura de entretenimento e popularização da arte literária.
Os clássicos literários existem e não podem ser deixados de lado; é papel do
professor, enquanto pesquisador e formador de opinião, apresentá-los aos jovens
leitores. Recomenda-se, no entanto, uma revisão da questão sobre o que é literário,
um reconhecimento de que a literatura de entretenimento tem seu valor, e que deve
ser estudada. Pesquisas no sentido de se apurar se há um novo momento artístico-
literário em formação, entretanto, não se mostram mais tão relevantes, uma vez que
isso já está claro a partir dos Estudos Culturais. Todavia, favorecer a discussão sobre
o “ideal” de clássico a partir do leitor, tendo em vista a grande recepção de
literaturas de entretenimento, como a série Harry Potter, que se configura como
fenômeno literário e cultural, reavaliar a recepção da série Harry Potter, num
momento em que o processo canônico-literário se torna dialético, frente ao consumo
ávido da literatura de entretenimento. Dentro de tal contexto, procurei avaliar as
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fronteiras estabelecidas entre o pop e o erudito pela Crítica Literária contemporânea,
buscando a repercussão da série Harry Potter no meio acadêmico e os modos de
recepção peculiar desta obra de entretenimento, por um novo tipo de leitor, com um
novo tipo de valor.
A partir de uma categoria de leitores da série Harry Potter - a do leitor
acadêmico -, adensou-se as reflexões acerca de como se deu a recepção de J. K.
Rowling dentro da Academia, onde estudiosos, ao invés de se preocuparem em
interpretar o texto e o meio em que esse texto foi produzido, passam a investigar os
modos como os leitores de várias épocas conseguiram ler determinadas obras. A
abordagem partiu do estudo do livro Além da plataforma nove e meia: pensando o
fenômeno Harry Potter, analisando a metodologia de leitura/recepção utilizada por
acadêmicos no presente, no qual um texto literário é abordado e interpretado
segundo as interpretações que o público-leitor desse momento é capaz de fazer dessa
obra, a fim de estabelecer uma análise de até onde os métodos de leitura, pesquisa e
análise da recepção da obra de Rowling se cruzam e se afastam.
Portanto, de modo geral, o estudo crítico da série Harry Potter, sob Estética da
Recepção, dentro da Academia, é um exemplo de que a teoria literária também pode
ser influenciada por elementos que lhe são exteriores, mas, de modo geral, ela tenta
estabelecer critérios mais ou menos permanentes para que se diga que uma obra é
boa ou não.
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RESSONÂNCIAS DO FANTÁSTICO NA AMÉRICA LATINA:
A construção da realidade meta-empírica no filme O Labirinto do Fauno
Calisto Ribeiro dos Santos UNIJORGE
[email protected] Resumo: A finalidade deste artigo é analisar a construção da realidade meta-empírica na obra cinematográfica O Labirinto do Fauno, dirigida pelo cineasta mexicano Guillermo del Toro, realidade esta possibilitada pelo diálogo com os postulados da Crítica Literária Estrutural introduzidos por Tzvetan Todorov acerca de elementos do discurso literário e pelo antropólogo estruturalista Joseph Campbell. Este ao abordar na Narratologia a tese do Monomito, propõe um modelo comum – em maior ou menor grau – a todas as narrativas pré-modernas. Paradigma também adotado pelo filme que, devido ao enfoque em fragmentos da Guerra civil espanhola, possibilita uma percepção estética da mesma, a partir do gênero fantástico ou meta-empírico cuja relevância nas últimas décadas do século XX fez desse gênero um tópico relevante na discussão dos novos rumos da literatura contemporânea, embora ainda seja comum, mas inaceitável, o descaso do gênero fantástico no panorama crítico literário nacional. Nos últimos cem anos 873 milhões de livros do gênero em foco foram vendidos, sendo 460 milhões esgotados nos últimos vinte anos devido ao fenômeno Pottermania. A recepção crítica sobre a estética literária de algumas dessas obras são consideradas de má qualidade, pois as produções contemporâneas quase sempre apresentam a mesma tendência narrativa, fugindo da originalidade. Porém, das vertentes do fantástico, a América Latina apresenta tanta singularidades que fragiliza as próprias delimitações do fantástico realizadas por Tzvetan Todorov, o que demonstra a carência de estudos críticos sobre a anatomia do fantástico e seus desdobramentos. Um exemplo dessa triste realidade foi o estudo realizado pela Fundação Agência Brasil pelo historiador, escritor e professor da PUC-RIO, João Alegria, cuja pesquisa aponta que os títulos de literatura fantástica não costumam ser incluídos nas listas dos cadernos literários, das análises e das leituras dos críticos nacionais, com efeito, a invisibilidade dos processos de formação dos sujeitos leitores e de suas preferências literárias aumenta assim como o abismo entre a academia e o gosto popular que merece, incisivamente, um estudo de caso. A obra de Del Toro, por fugir do pólo cultural do cinema americano e estar imbuída nas manifestações literárias efetivadas na contemporaneidade, resgata acervos documentais da guerra civil espanhola como plano de fundo ao fantástico dissolvido na trama narrativa. Por tanto, o diálogo entre a literatura hispano-americana e a necessidade de estudo sobre a formação da subjetividade do sujeito contemporâneo e seu reflexo nas escolhas literárias, tão ignoradas pela crítica literária especializada, impõe-se relevante ao valorizar as possíveis implicações entre literatura fantástica, mídia e práticas de recepção.
Palavras-chave: Análise fílmica; Narrativa; Tzvetan Todorov; Joseph Campbell; Realidade meta-empírica.
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1 APRESENTAÇÃO
A construção da realidade meta-empírica, a qual se designa à análise, é
formada a partir da desconstrução da realidade pragmática por meio da inserção de
elementos fantásticos no cotidiano. Na realidade ficcional de O Labirinto do Fauno,
devido ao seu caráter simbólico, o meta-empírico é possibilitado devido a influências
que vão desde arquétipos femininos do inconsciente, teoria de Carl Gustav Jung, até
a saga do heroi pré-moderno teorizado por Joseph Campbell. Tal saga é o elemento,
visto aqui como paradigmático, que corrobora para uma desautomatização do real na
película em pauta, como será evidenciado ao longo deste artigo.
É de bom alvitre salientar alguns aspectos relevantes e imbuídos sobre o tema
ao qual se designa à análise, tal como a formação subjetiva dos sujeitos na
modernidade e pós-modernidade, pois estes são os leitores/escritores que estão
mudando o rumo da literatura contemporânea; a literatura fantástica na América
Latina, conceito este imprescindível para melhor esclarecimento das temática que
serão abordadas, assim como os conceitos e paradigmas que subjazem na película
pós-moderna do cineasta mexicano Guillermo Del Toro.
É importante ressalvar que esta discussão se utiliza de um viés estruturalista.
Para melhor esclarecimento, a Crítica Estrutural foi uma tendência baseada nas
ciências naturais de racionalizar ou codificar os fenômenos típicos da natureza
humana em termos funcionais, daí o nascimento de fórmulas prescritivas para a
explicação da aquisição da linguagem e paradigmas narrativos, a fim de descrevê-los
e interpretá-los.
O mundo na ótica dos estruturalistas, que se propuseram a desvendar as
produções humanas por meio da identificação de paradigmas presentes na
“essência” de toda humanidade, é largamente desacreditado, principalmente após
conceitos como o de desconstrução, proposto por Jacques Derrida, e a “arqueologia”
de Michel Foucault. Ambos por serem contrários a ideia de essência são
considerados pós-estruturalistas.
Contudo, ainda é relevante a pesquisa daqueles que se dedicaram a analisar
em forma de estruturas toda a cultura humana. Por exemplo, a produção de roteiros
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para cinema, teatro e televisão obedece à mesma tendência seguida pelas ciências
naturais durante o século XX, a diferença é que a tendência da lógica matemática
antes utilizada por praticamente todas as ciências naturais, hoje se reduz a um plano
específico de uma das áreas do conhecimento humano, a Narratologia.
2 CONCEITOS, CONTEXTOS E CONSIDERAÇÕES:
Considerar a expansão marítima europeia iniciada pelos portugueses como o
marco das realizações modernas é uma verdade mais do que axiomática.
Logicamente, as mudanças do final da idade média para início da idade moderna foram
gradativas, mas num ritmo constante e irreversível. Eis por que mudanças
irremediáveis como o nascimento do Estado Moderno, viabilizado pela crescente
centralização do poder, implicaram em novas iniciativas econômicas a partir do
Mercantilismo.
No campo ideológico, surgiu o Antropocentrismo como resposta aos
questionamentos sobre o poderio hegemônico da Igreja Católica, que reconhecia
somente Deus como centro do universo. Logo, a valorização das artes, da
racionalidade, o acúmulo de riquezas, a crescente e constante modernização dos
centros urbanos, aliada às práticas mercantis possibilitou os recursos necessários
para a revolução da sociedade, cultura, e economia europeia.
Desde a antiguidade o mundo era explicado a partir de uma perspectiva mítica
onde o tempo era cíclico e sem fim, uma vez que Deus e as entidades do passado
Greco-romano eram inquestionáveis, o mundo ficara envolvido por uma zona de
conforto, logo, em uma plenitude; assim sendo, tudo tinha um valor absoluto e
absolutamente explicável pela fé e pelo mito.
2.1 QUANDO A LUZ É COMO A ÁGUA, É HORA DE TEORIA.
Com as diversas mudanças filosóficas, comportamentais, e econômicas de
toda uma conjuntura social, a humanidade entrara em um súbito pesadelo. A
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realidade tal como explicada pelos mitos e dogmas religiosos agora se demonstrava
insustentável e o mundo, nas palavras de Freud, passou por três feridas narcísicas.
A primeira foi a queda do Geocentrismo por Copérnico, ao postular que a terra
não é o centro do universo. A ferida seguinte ao ego humano foi Charles Darwin com
o livro A Origem das Espécies, que desfez qualquer menção sobre a nossa origem
divina (Criacionismo) e por fim, o próprio Freud ao defender que a racionalidade, até
então principal motivo de orgulho da espécie humana, é a menor parte de nossa vida
psíquica, pois não seríamos senhores nem de nós mesmos, devido à predominância
involuntária do inconsciente.
Como muito bem coloca Marshall Berman, ao citar a novela romântica A Nova
Heloísa (1761), de Jean-Jacques Rousseau: “tudo é absurdo, mas nada é chocante,
porque todos se acostumam a tudo” (Rousseau Apud BERMAN, 1984, p.256). Para
Berman, o forte apelo niilista, na qual nada neste mundo vale a pena, é o que bem
traduz o espírito do homem moderno que, depois de passar por várias feridas
narcísicas, desilusões e mudanças, percebe que está dentro de um tourbillon social
(BERMAN, 1982, p. 11).
Apesar dos inegáveis avanços tecnológicos decorrentes da primeira revolução
industrial iniciada pela Inglaterra no século XVIII, observa-se o nascimento de um
período de grandes contradições no século XIX, conforme afirmam as autoras
Aranha e Martins:
Nos grandes centros da Europa, apesar da difusão das ideias democráticas, permanecem sem solução questões econômicas e sociais que afligem a crescente massa de operários: pobreza, jornada de trabalho de quatorze horas, mão-de-obra mal paga de mulheres e crianças. (1993, p.231-2)
Se por um lado havia “ordem e progresso” nas ideias científico–filosóficas no
panorama cultural do século XIX, por outro, como já demonstraram as autoras
supracitadas, havia apenas injustiça social. Nascendo em direta crítica ao capitalismo
liberal e ao conservadorismo, surge o Socialismo e o Manifesto Comunista escrito em
1848.
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A palo seco, a modernidade é um fenômeno de ruptura com tudo aquilo
concernente à estabilidade, zona de conforto e plenitude. Como consequência, tem-se
o desconcerto do mundo e seu descompasso.
Embora, a ciência tenha se transformado no grande mito moderno, ainda há
indivíduos fieis aos dogmas religiosos ao ponto do fanatismo religioso, embora haja
liberalismo econômico e viva-se em uma majoritária democracia, ainda há países
com regimes fortemente opressores e totalitários. Ainda que se conviva em uma
sociedade, isso não implica dizer que a mesma seja homogênea, pois tudo converge a
uma fragmentação do sujeito na pós-modernidade na qual vivemos.
Mesmo não havendo um consenso entre os teóricos na conceituação de
modernidade e pós-modernidade, as características são indeléveis e explícitas, pois o
pré-moderno foi marcado pela mentalidade ainda mítica, com puro apelo à fé e ao
mito. Na modernidade, devido às feridas narcísicas da humanidade, a sociedade
entrou em uma profunda frustração, por decorrência, de não sermos mais o centro
do universo, não sermos filhos de um Deus e nem senhores de nós mesmos.
Portanto, a subjetividade na pós-modernidade é marcada pela angústia de não sofrer,
preservar aquilo que ainda se tem como uma proteção aos estímulos geradores de
trauma, que seria tudo aquilo que foge do esperado, do automatizado. Como reflexo
disso nas manifestações literárias, Bella Josef pontua que:
A literatura fantástica é aquela em que se marca a emergência da questão do inconsciente. A narrativa fantástica subverte toda a racionalidade, a linearidade da narrativa e a onisciência do narrador, utilizando-se de vários processos. Há, assim, a quebra da relação de causa e efeito. (JOSEF, 1986.p.223.)
2.2 VERTENTES DO FANTÁSTICO E A HERMENÉUTICA LATINA-
AMERICANA
Em resposta ao caos do mundo moderno – no caso da Espanha, o
autoritarismo fascista – a literatura passa a ocupar mais explicitamente o cargo de
crítica da sociedade, mas também espelho da mesma que a criou.
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Observa-se, então, que quando um texto literário é definido como simples
imitação do real, há um aumento da dependência entre a literatura e a realidade –
como observada por Aristóteles com sua noção de verossimilhança.
Segundo Freud, o pai da psicanálise, quando a realidade torna-se insuportável
de tão fria e cruel, é necessária uma válvula de escape, como uma forma natural do
indivíduo de proteger-se dos fatores que o levariam a uma frustração.
No campo da teoria literária, os formalistas russos definem a literatura como
um escape do automático, das situações rotineiras, uma segunda visão sobre uma
situação corriqueira, pois a arte literária é considerada o enriquecimento de pequenos
detalhes, o que há de especial dentro de um emaranhado de coisas.
Na perspectiva dos formalistas russos sobre a criação literária, nota-se que até
a obra mais realista, em seu sentido prosaico, não passa de uma possibilidade, de
uma versão sobre a nossa trivial realidade, que está tão longe quanto qualquer
realidade fantástica, pois ambas recriam para si versões e não fatos, sendo estas
trabalhadas na polissemia do discurso do autor, que a recria como bem entender.
Segundo Josef:
Desde Saussure, sabemos que a linguagem pertence à ordem do simbólico (isto é, mundo da cultura e da civilização) e dentro dela efetua-se um sistema que contraria as próprias regras do simbólico: a do imaginário. Na literatura fantástica não se trata de crer no real para reconhecer o imaginário, mas, tomar por imaginário o real que recusamos assumir. No fantástico o inconsciente vem à tona. (1986, p. 219)
A partir dessa constatação, observa-se que enquanto na linguística a
linguagem humana é definida como a capacidade de expressão por meio de línguas
convencionadas por signos linguísticos, na literatura fantástica ocorre algo
equivalente, pois a literatura passa a ser o próprio signo que segundo Saussure é de
natureza arbitrária. Com efeito, a arbitrariedade do discurso na literatura traz à tona
a insegurança, a imprecisão dos fatos e o relato do dúbio, pois se o signo linguístico é
relativo, a literatura desta vertente não foge à regra.
Na América Latina, em meado dos anos 30 ou 40, nasce uma tendência
literária, chamada Realismo mágico, nos moldes do Surrealismo (último movimento
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vanguardista europeu lançado por André Breton em 1924 com o manifeste Du
Surréalisme) que visa potencializar a desconstrução do real, pois o fantástico na
literatura possibilitou uma abertura para temas como homossexualidade,
sensualidade exarcebada, necrofilia, incesto, todos os temas possíveis de censura sem
ser vítima da mesma, pois tudo é delegado à figura do monstro, do demônio ou da
loucura.
Não se sabe se os acontecimentos sobrenaturais realmente acontecem ou são
produtos da imaginação da personagem, pois até mesmo o leitor compartilha desta
dúvida, devido ao emprego do dúbio e da incerteza como bem define o novelista,
diplomata e escritor guatemalteco Asturias:
Meu realismo é mágico porque revela um pouco de sonho, tal como o concebe os surrealistas. Tal como o concebe também os Maias em seus textos sagrados. Lendo estes últimos dei-me conta de que existe uma realidade palpável sobre a qual se enxerta outra realidade, criada pela imaginação, e que se envolve de tantos detalhes, que ela chega a ser tão “real” como a outra. Toda a minha obra se desenvolve entre essas duas realidades: uma social, política, popular, com personagens que falam como o povo guatemalteco, a outra imaginária, que os encerra em uma espécie de ambiente e de paisagem de sonho. (1986, p. 186)
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE CINEMA, LITERATURA E RECEPÇÃO
Ganhador de três prêmios do Oscar de direção de arte, de fotografia, de
maquiagem; premiado pelo Bafta Film Award de figurino, de melhor filme estrangeiro
e maquiagem, direção artística, roteiro e trilha sonora, no ano de 2007; O Labirinto do
Fauno torna ainda mais crível a Teoria da Montagem, que pregava a ideia de que a
narrativa deve seguir e favorecer a estrutura do pensamento. Logo, o cinema
perderia a sua função descritiva da realidade, deixando de reproduzi-la para
produzi-la conforme a intencionalidade da linguagem usada pelo diretor em seus
filmes. Isto se verifica, por exemplo, na vertente cinematográfica, dos anos 30,
conhecida como Expressionismo alemão, na qual a manipulação da imagem
maximizava o efeito estético do filme na plateia.
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É interessante evidenciar o impacto e a necessidade de sustentação da
impressão de realidade sobre o espectador, enfocada pela Teoria da Montagem, pois
estes aspectos são bastante trabalhados em O Labirinto do Fauno, pois se observa que
dos prêmios conquistados pelo filme, todos são relativos à produção técnica, com
efeito, dificilmente a película de del Toro ganharia o Oscar sem o investimento alto
nos mecanismos de manipulação da imagem, possibilitados pela avançada
tecnologia atualmente disponível e pelo alicerce teórico e pioneiro de Eisenstein e sua
Teoria da Montagem. Desnudando a preocupação dos cineastas com a famigerada
Impressão de Realidade trabalhada pelo cinema, partindo da concepção de quanto mais
próximo da realidade, mais crível e menos questionável passa a ser a veracidade dos
fatos veiculados pela narrativa. Revelando assim, a dinâmica relação entre autor,
obra e comunicação
4 O LABIRINTO DO FAUNO, UM ESPETÁCULO ATERRADOR DA MORTE Ao desvendar o pano de fundo da narrativa – ambientada no período pós-
guerra civil espanhola no ano de 1944 – o narrador desautomatiza as expectativas
sobre a história deste período ao contrapor um mundo cruel, de guerra e ranger de
dentes a uma realidade mágica onde não há mentiras ou dor. Ao desvendar o pano
de fundo da narrativa e a dualidade da mesma, torna-se evidente a existência de uma
realidade paralela a do período retratado no filme.
Moama, princesa do submundo, que era curiosa e apaixonada pelo mundo
dos humanos, transgredira os portões do mundo subterrâneo. Uma vez do lado de
fora, ela morrera cega, sem lembranças do seu passado e prisioneira daquela vil
realidade até o aguardo retorno ao seu reino perdido.
Em outro corpo, tempo e espaço, Moama, agora Ofélia, descobrirá em sua
jornada labiríntica uma realidade mágica tão aterradora quanto qualquer outra, mas
que para acessá-la por completo terá que passar por três provas antes da lua cheia a
fim de provar ao seu mentor que a humanidade não corrompera o seu espírito ainda
puro.
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O signo da mudança apresenta-se sob diferentes máscaras no decorrer da
narrativa e configura a primeira etapa do Monomito. Das máscaras a serem reveladas,
é a fuga do submundo em que vivia a personagem que primeiramente será
analisada.
4.1 MUNDO COMUM DA HEROÍNA ANTES DO INÍCIO DA NARRATIVA
Motivada por seu aguçado interesse sobre o mundo dos humanos, Moama
não se limitava as experiências normais permitidas aos membros comuns da
comunidade em que vivia, queria ir além da sua trivial realidade.
A sua curiosidade pode ser definida como uma incompletude da alma que por
um desejo irreprimível de conhecer os segredos pertinentes ao mundo dos humanos
atravessa os portões do submundo, e devido a sua transgressão à ordem natural,
logo morre em seu primeiro contato com o tão desejado mundo humano. E como
represália para todo aquele que ousa desobedecer às convenções sociais, ela é
permanentemente afastada de seus pais, seu povo.
A fuga da princesa pelas escadarias de seu mundo obscuro repleto de sombras
representa a ascensão do indivíduo na busca pelo conhecimento, uma retomada dos
valores platônicos sobre a alma, pois o plano terrestre seria dividido em duas partes:
o mundo da cópia e o mundo ideal, das ideias. Para tal tarefa, deve o indivíduo
pertencente à cópia abdicar-se dos prazeres do corpo, pois este é concebido como
percalço para uma plena ascensão ética ou moral, que devido a essa desmedida é
imediatamente punida.
Para voltar ao seu mundo comum deve provar sua redenção da transgressão
que realizara. O submundo e suas sombras representam a realidade da qual o
indivíduo (Moama) deve sair para vislumbrar, o que era para ela, o verdadeiro
mundo das realidades, correspondente em Platão ao mundo das ideias.
Os portões do submundo é o acesso às escadas que saem das sombras em
direção à luz, ou seja, os portões uma vez abertos configuram segundo Chevalier e
Gueerbrant:
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Um valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica uma passagem, mas
convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um além... A passagem à qual
ela convida é, na maioria das vezes, na acepção simbólica, do domínio profano ao
domínio sagrado. (2009, p. 735)
Essa concepção corrobora ainda mais a aproximação do percurso mítico da
personagem com a simbologia do indivíduo rumo ao conhecimento, cujo acesso
torna-se restrito em muitas culturas, sobretudo no mito cristão do paraíso perdido de
Adão e Eva.
É através desta porta, ponto de acesso entre os dois mundos, que se
desdobrará toda a narrativa.
4.2 CHOQUE DE REALIDADE: A ENTRADA DO PATRIARCADO
Diferente do projeto cultural para o corpo feminino (reprodução), o masculino
está condicionado o tempo inteiro a provar sua masculinidade por medo de uma
castração fálica simbólica por tornar-se menos homem, no sentido que, se não agir
conforme o molde para o seu corpo, i.e., caso não corresponda à altura das
expectativas sobre o seu comportamento, ele se tornará menos homem, pois ser
homem é um título de poder que se não for constantemente defendido ou exercido
acaba-se por perdê-lo, para outro homem ou para mulher.
Sob a perspectiva do gênero como construção, observa-se que o masculino
passa a ser definido como status a ser conquistado por àqueles predestinados a essa
classificação, pois se torna homem quem reprime a sua feminilidade latente a todo
custo, porque esta durante séculos tornou-se sinônimo de fraqueza, de subserviência.
O homem é criado desde criança e cobrado o tempo inteiro para ser o
dominador da espécie, se fracassa é renegado por outro, pois não é digno de ter o
título de poder: o poder do macho alfa, predominante, sendo este explicitado pela
figura do falo como componente simbólico da sexualidade e do poder masculino em
seu nível arquetípico, a fim de reforçar o mito do macho; para que o homem, em
forma de mito, exerça a sua peculiar autoridade na sociedade.
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Em O labirinto do fauno, capitão Vidal, por representar a força militar fascista, a
figura do macho demonstra-se ainda mais opressora devido aos horrores da guerra.
A dimensão simbólica do falo é representada pela figura do relógio que herdara de
seu pai, um grande oficial do exército, pelo qual nutre grande amor e admiração por
sua conduta honrosa de morrer em guerra.
O relógio compartilhado por ambos é símbolo representativo dos tempos
modernos iniciados pelo estopim da Revolução Industrial do século XVIII em que
traduz “a chamada morte de Deus”, termo popularizado a partir das ideias do
filósofo Friedrich Nietzsche, devido ao fim da noção do tempo como figura mítica e
cíclica, sem fim. Estes novos tempos são marcados pela ruína, velhice e por fim a
morte. Premissa essa representada na mitologia Greco-romana pelo poderoso e
tirano Zeus que devora seus filhos com receio de perder o seu imperioso poder.
Por ser poderosa e austera, a figura do homem é altamente coercitiva, em
especial, na relação entre mãe e filha. Vidal representa o chamado ao mundo exterior
dessa relação simbiótica, ele é o furor que seca o líquido amniótico que prende Ofélia
ao corpo da mãe.
A inimizade entre a garota e o capitão acaba por estragar a ideia de felicidade
absoluta para Ofélia que é estar a sós com a sua mãe Carmem. Esta por sua vez, não
aparece muito no desdobramento da história, mas é tão importante para a narrativa
quanto sua filha.
Carmem apresenta constantemente um medo tipicamente feminino, o medo
materno. Ela submete-se aos caprichos do marido a fim de agradá-lo e, com efeito,
garantir um futuro melhor para seus filhos, pois grávida e ao mesmo tempo doente,
ela é atormentada o tempo inteiro pela guerra, pela fome, pelos filhos, pela morte do
primeiro marido e a fraqueza causada pela doença.
Embora o heroi seja encarnado geralmente por uma figura masculina
Campbell ressalva que a mulher também pode ocupar esse lugar, por exemplo, na
civilização Asteca o paraíso destinado às mulheres mortas em parto era o mesmo dos
guerreiros mortos em combate. Neste caso, nas palavras de Jung:
A exacerbação do feminino significa uma intensificação de todos os instintos femininos, e em primeiro lugar do instinto materno. O
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aspecto negativo desta é representado por uma mulher cuja única meta é parir. O homem, para ela, é manifestamente algo secundário; é essencialmente o instrumento de procriação, classificado como um objeto a ser cuidado entre as crianças, parentes pobres, gatos, galinhas e móveis. A sua própria personalidade também é de importância secundária; frequentemente ela é mais ou menos inconsciente, pois a vida é vivida nos outros e através dos outros, na medida em que, devido à inconsciência da própria personalidade, ela se identifica com eles. (2000, p. 97)
Contudo o caráter heroico da personagem que sacrifica as suas vontades e o
seu próprio corpo a fim de garantir um futuro melhor para seus filhos é totalmente
ignorado pelos olhos do capitão Vidal, que pensa ser natural à mulher o
comportamento subserviente às vontades do homem, pois, mulheres não apresentam
nenhuma ameaça. Segundo uma análise Crítica do Discurso realizada pela mestra em
Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, Sabrina Uzêda:
Esse discurso como prática social se origina, na transmissão e na legitimação de ideologias sexistas e/ou racistas, valores e doutrinas que colaboram para a naturalização de discursos particulares como sendo universais, a respeito daquilo que é “normal” ou “essencial” no momento de definir um fruto social. Essa ideologia construída nos discursos é geralmente a do branco, masculino, ocidental, de classe média ou superior, e estão imbuídas posições que vêem raças, classes, grupos e sexos diferentes dos seus como secundários, inferiores e subservientes. (2007, p. 49)
É justamente o ponto de vista misógino do capitão que o leva à ruína, devido
ser a governanta (braço direito do capitão) uma rebelde ao governo totalitarista, que
apoiada pelo seu irmão, retira o poder das mãos de Vidal por meio de sua morte.
No ponto de vista simbólico, Chevalier e Gueerbrant em seu dicionário de
símbolos define a presença do pai como:
Símbolo da geração, da posse, da dominação, do valor. Nesse sentido, ele é uma figura inibidora; castradora, nos termos da psicanálise. Uma representação de toda forma de autoridade: chefe, patrão, professor, protetor, Deus. Ele representa a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente. (2009, p. 678)
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De acordo com os autores pode-se inferir que, apesar de Ofélia não ter pai,
Vidal exerce sobre ela a função do mesmo, ou seja, é a transcendência de uma
construção social que faz presente aquilo que já nem mais existe. Pois, não é pai no
sentido familiar, mas no sentido de instituição social, um lócus no qual o poder da
figura paterna pode ser imposto.
É justamente nesse contexto conturbado de forças opressoras que Ofélia é
atraída para o labirinto por meio de uma pequena fada à noite enquanto todos
dormiam e ela segue o chamado até a entrada do seu insólito destino cuja
representação espacial dá-se pela caverna presente no labirinto.
4.3 UM CHAMADO À AVENTURA: O DESPERTAR DO PARAÍSO
Os acontecimentos desenrolados no terceiro capítulo do filme correspondem ao
terceiro estágio da Saga do heroi ou Monomito. A passagem que faz referência a esse
tópico mostra a personagem descendo as escadas em espirais até o centro da caverna,
que no labirinto se configura como um antro – cova profunda e escura.
Segundo os autores Chevalier e Gueerbrant (2003) no tocante ao seu aspecto
positivo, a caverna representa o arquétipo do útero materno, figura nos mitos de
origem, de renascimento e de iniciação de numerosos povos, um retorno ao eu
primitivo. Considerada como antro a caverna representa, segundo, os autores
supracitados:
O outro aspecto simbólico da caverna, o mais trágico dos aspectos. O antro, cavidade sombria, região subterrânea de limites invisíveis, temível abismo, que habitam e de onde surgem os monstros, é o símbolo do inconsciente e de seus perigos, muitas vezes inesperados. (2009, p.213)
Assim sendo, o acesso ao antro presente no centro do labirinto metaforiza o
contato mais íntimo da personagem consigo mesma, pois a figura arquetípica do
labirinto configura-se como um sistema de defesa que anuncia a presença de algo
importante, valioso. Este por sinal apresenta-se de forma espiral assim como as
escadas que dão acesso ao antro do labirinto.
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As escadas em espirais são as mesmas que a princesa utilizou para escapar do
submundo, com efeito, apesar de serem as mesmas escadas, a direção e seu sentido
decorrente geram significados distintos. Enquanto que na fuga do submundo a
escada representou à ascensão do indivíduo que sai do mundo das sombras em
busca da luz (ética, moral), a descida representa a entrada ao mundo subterrâneo, a
psique inferior do indivíduo o seu âmago.
A caverna como símbolo materno gera uma nova realidade para a
personagem, que devido as espirais voltadas ao centro da terra, representa o regresso
do indivíduo as suas origens, ou seja, a realidade mágica antes abandonada pela
personagem. Porém, como é comum a natureza dos signos serem ambivalentes, nem
tudo pode ser tomado como verdade, pois todos os eventos são noturnos, fazendo
menção ao sono, a imaginação, o que possibilita a inserção do fantástico devido à
possibilidade de sonhos, ou delírio onírico da personagem, uma vez que ninguém
tem acesso a esta realidade noturna, além dela.
4.4 O ENCONTRO COM O MESTRE: AJUDA SOBRENATURAL
Portanto, o monstro é concebido nos mitos iniciáticos (Miller,1987) como o
portador dos tesouros e a figura responsável por reprimir o medo da personagem
diante das dificuldades, assim como o auxílio nas tarefas que serão designadas à
personagem a fim de que por meio destas se torne digna do tesouro a ser revelado
pelo mentor, Fauno.
Como de praxe a etapa do Monomito, Ofélia, apesar de não duvidar da
existência do Fauno e tampouco dos acontecimentos fantásticos desenvolvidos a
partir desse encontro, a personagem se recusa ao chamado à aventura. Tal
comportamento passa a ser mais bem justificado nas palavras de Vogler:
O problema do herói, agora, passa a ser como ele irá responder ao Chamado. Ponha-se na situação dele e verá que é um momento difícil. Estão lhe pedindo que responda "sim" a uma grande incógnita, a uma aventura que vai ser emocionante, mas também perigosa, e que pode ameaçar sua vida. De outra forma, não seria uma aventura de verdade. Você está diante de um limiar de medo, e uma reação compreensível é hesitar, ou mesmo recusar o Chamado. (1998, p.115)
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A hesitação ou a falta da mesma na personagem, ao se encontrar com o
monstro, é a linha tênue que diferencia o fantástico do realismo mágico. No fantástico a
explicação dos acontecimentos maravilhosos é consensual, enquanto que na realidade
mágica a justificativa para a ocorrência dos acontecimentos considerados estranhos
não é compartilhada por todas as personagens como assim sugere Todorov:
Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que raras vezes o encontramos. (1996, p.15)
No filme isso não ocorre devido à falta de consenso, pois o liame entre o
mundo mágico e o mundo familiar nunca é desfeito, pois não é passível de
explicação.
Com efeito, a ambiguidade dos acontecimentos persiste mesmo depois do fim
da narrativa. Até porque, somente a personagem principal entra em contato com o
mundo mágico, enquanto que para se tornar fantástico deveria haver um consenso
entre as personagens, para compactuar a mesma opinião sobre os acontecimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fato é que apesar do incomensurável lapso temporal que separa as
longínquas narrativas de no mínimo 2.000 mil anos das atuais, estão atualmente mais
próximas do que jamais estiveram graças aos estudos desenvolvidos por Campbell
acerca da mitologia que muito se assemelham ao do russo Vladimir Prop em sua
Morfologia dos contos de fadas, que divide as narrativas do gênero maravilhoso em
diferentes estágios.
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O paradigma narrativo proposto por Campbell que subjaz na película
mexicana de del Toro se torna possível devido à presença constante de arquétipos
relacionados ao sagrado feminino que trazem em sua leitura a noção da morte como
possibilidade de renascimento, de transcendência,– não há um término, mas um ciclo
sem fim. Pensamento este desenvolvido graças aos estudos da psicologia analítica de
Jung que serve de força propulsora ao fantástico no filme.
O Realismo mágico na obra audiovisual consiste na expectativa de saber se os
acontecimentos foram reais ou não, pois segundo Todorov quando os
acontecimentos por mais incríveis que sejam, ou quando pouco plausíveis de
esclarecimento, há sempre uma explicação racional para tudo e todos os personagens
da narrativa compartilham da mesma opinião (TODOROV, 1996), caracterizando
dessa forma o Estranho.
O Maravilhoso ao contrário, concebe os acontecimentos sobrenaturais como
parte do mundo corriqueiro, pois todos os personagens, assim como o leitor,
concordam que tudo é possível. Fato ocorrente em o Labirinto do Fauno, pois há um
flerte entre as duas realidades como se essas fossem possíveis ao mesmo tempo; não
há alternância e tampouco esclarecimento, ao contrário das demais apresentadas.
Assim sendo, o presente artigo buscou relacionar paradigmas
comportamentais, ideológicos e até mesmo sexistas à crítica literária e fílmica, em
uma narrativa deslocada do hegemônico polo cultural do cinema Hollywoodiano.
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Eixo III
Leitura, literatura, experiência e autobiografia
CONFLITOS FAMILIARES, TRANSGRESSÃO E REVOLTA: elementos de uma lavoura destruída.
Aline Nery dos Santos Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS
E-mail: [email protected]
Resumo: O romance Lavoura Arcaica de Raduan Nassar é uma narrativa que traz à tona as
relações familiares e os conflitos que inicialmente parecem comuns a qualquer família, mas que no decorrer da trama vai se intensificando até chegar ao limiar de uma tragédia. A família aparentemente vive em harmonia. O pai com sua figura austera simbolizando o conservadorismo ao contrário da mãe que representa à afetividade. Os filhos vivem a rotina dos afazeres da lavoura, sendo que cada um desempenha uma função, com exceção de André que tem um comportamento ocioso e apático. Com base nestes aspectos da narrativa, este trabalho objetiva-se a investigar as transgressões no romance Lavoura arcaica e como estas se relacionam com a postura do personagem André, abordando a relação familiar e seus conflitos, já que na obra é destacado um patriarcalismo exacerbado que gera toda revolta apresentada pelo protagonista caracterizando sua crise identitária e o seu desejo de mudança e desconstrução da família. A questão moral é analisada a partir da subversão dos valores de André diante incesto destacando a amplitude do discurso persuasivo do mesmo após a realização do ato com sua irmã Ana. Para a discussão teórica acerca dos aspectos citados, foram utilizados alguns autores como SANTIAGO (2002), COMPANGNON (2001), NIETZSCHE (2004), FOUCAULT (1996) E THOMPSON (2002), que trazem em seus conceitos algumas explicações para as questões investigadas na obra.
Palavras-chave: Incesto; Moral; Família. Transgressão.
1. INTRODUÇÃO
Entre a Literatura e a Filosofia há sempre possibilidades de diálogos, e no
romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, esta relação se coloca presente,
revelando a zona de intersecção que aproxima ambas as áreas.
O romance Lavoura arcaica traz uma série de inquietações e questionamentos
que aproximam o protagonista André do pensamento filosófico, sustentando sua
ávida busca pelo conhecimento e por novas experiências. A força filosófica, aliada ao
veículo literário, abre caminhos para múltiplas interpretações e leituras acerca dos
personagens do romance, das relações que guardam entre si, dos espaços que
preenchem e dos discursos que interiorizam, gerando inquietações, dúvidas e
fascínios.
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No presente trabalho busca-se analisar as transgressões no romance Lavoura
Arcaica, relacionando-as ao comportamento do personagem André, abordando
principalmente o seu discurso após cometer o incesto. A narrativa foi escrita no ano
de 1975 e nesse período o Brasil passava por transformações, entre as quais se
destacam: o aumento da industrialização e o êxodo rural, causando assim o aumento
da população metropolitana. Nesse contexto de vivências e experiências a família
também se renova e se transforma, principalmente com a postura da mulher, que
passa a participar ativamente da sociedade ocupando lugares de destaque que antes
eram ocupados por homens.
A temática abordada na obra revela a tensão existente em toda a narrativa,
envolvendo um misto de acontecimentos que vão ter ligação direta com a rigidez
moral e a ideologia arcaica que proporcionam os conflitos familiares, gerando
polêmica no ambiente pacato de uma fazenda.
O embate filosófico no romance é aguçado através do conflito de idéias no
qual vive o personagem André. Ele é um questionador que não se contenta com a
vida simplória em que vivem, com o ambiente de instabilidade familiar, e por isso
busca, através da transgressão aos valores defendidos pela família, derrubar o muro
de falsidade no qual vivem. É perceptível que o pensamento filosófico de André lhe
permite ver a situação de forma diferente e assim inferir, da sua maneira, de forma a
quebrar a pseudo-harmonia do lar.
2. A FAMÍLIA: UMA QUESTÃO DE (DES) UNIÃO
O conceito de família sobreviveu por séculos e séculos. A história relata que
desde tempos remotos há registros da relação familiar, ou seja, há presença de
pessoas de elos consangüíneos convivendo juntas. Por isso, é difícil encontrar alguém
que não tenha experiência para falar de família, como afirma Prado (1981):
[...] todos sabem o que é uma família, já que todos nós somos parte integrante de alguma família. É uma entidade, por assim dizer, óbvia para todos. No entanto, para qualquer pessoa é difícil definir esta
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palavra e mais exatamente o conceito que engloba, que vai além das definições livrescas. (PRADO, 1981, p. 08)
Mesmo sobrevivendo entre os tempos, a família foi evoluindo e ganhando
novas características e definições. Aquela família tradicional, centrada na figura do
patriarca como o chefe e da mulher como dona de casa e responsável pela educação
dos filhos foi mudando para novos perfis, em que se destaca primeiramente a
posição da mulher que exerce a função de chefe da família tanto na questão das
funções do lar, tanto no trabalho remunerado fora de casa. Outro ponto reside na
ausência da figura paterna, ficando a cargo da mulher conduzir e administrar a
instituição.
A família retratada por Raduan Nassar (1989) no romance Lavoura arcaica é
bastante tradicional e traz o homem-pai como o chefe da família. É ele quem exerce o
poder e quem toma todas as decisões referentes à sua família, enquanto a mulher-
mãe é a dona de casa atarefada com os afazeres domésticos e com o cuidado com as
crianças.
O autor aborda as questões vigentes às relações familiares de uma forma lírica
e ao mesmo tempo reflexiva. Através dessas questões pode-se evidenciar o
patriarcalismo, representado pelo pai de André, uma relação de afetividade muito
forte entre os membros da família simbolizando uma pseudo-união, e um incesto,
vivido por André e Ana. Tais questões refletem-se diretamente nas concepções do
personagem central da história, o qual oscila entre uma imagem moral de seus
familiares e um comportamento imoral. A imoralidade então passa a assumir um
papel de vilã na vida de André, que carrega consigo um sentimento de culpa e
autopunição.
As relações familiares são marcadas ora por afetividade, ora por
conservadorismo. A afetividade é representada pela figura da mãe, que, pela forma
carinhosa com que trata o filho André, enfatiza certa preferência por ele. O
conservadorismo é representado na obra pelo pai de André. Sobretudo nos sermões
proferidos à mesa, o patriarca da família manifestar a sua austeridade. No momento
das refeições, as palavras dele transmitem lições aos demais membros da família,
emitindo parábolas de alto teor moral, que ensinavam e mantinham a ordem na casa.
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“O tempo é o maior tesouro que um homem pode dispor; embora inconsumível, o
tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo
nosso bem de maior grandeza[...]” (NASSAR , 1989 p 53). Há ainda a representação
metafórica da mesa, indicando uma aproximação analógica com Jesus Cristo e seus
Discípulos, exaltando-se assim o poder da palavra paterna.
Numa família tradicional e patriarcal como a de Lavoura arcaica, a religião
possui grande influência, principalmente no que diz respeito ao estabelecimento de
regras e tradições passadas de geração a geração. São os ensinamentos religiosos que
definem as regras de bem viver em família e na obra esta função está bem definida
através do Pai, que insiste em manter a moral e os bons costumes através dos
ensinamentos bíblicos.
O ápice do conflito familiar é marcado pelo incesto. André nutre uma paixão
pela irmã Ana. Ele a observa em todos os momentos, e mesmo sob o teto familiar tão
carregado de moralidade, ele a deseja profundamente. Esse desejo aumenta a um
grau tão intenso, que o ato do incesto torna-se inevitável. Contudo, após o ocorrido,
Ana se isola e André, perdido em meio a sua paixão, foge na busca de conter uma
tragédia maior.
Todavia, a culpa que André sente não é por causa do envolvimento com a
irmã, mas pela não aceitação de Ana em viver uma relação de amor físico no seio da
família tradicional. Para André não haveria culpados. Ambos seriam inocentados
uma vez que o fato ocorrido tinha se concretizado devido a forças de ordem maior,
“maktub”, ou seja, já estava escrito. Esse amor seria para André uma recompensa,
algo a que tinha direito e o transformaria em um novo homem, capaz de se relacionar
com os outros irmãos, contribuir com as tarefas da lavoura e ainda manter a união e a
harmonia no lar, como ilustra Nassar na seguinte passagem do romance:
[...] quero uma recompensa para o meu trabalho, preciso estar certo de poder apaziguar a minha fome neste pasto exótico, preciso do teu amor, querida irmã, e sei que não exorbito, é justo o que te peço, é a parte que me compete, o quinhão que me cabe, a ração a que tenho direito (NASSAR, 1989 p. 125/6).
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A agonia do personagem André aumenta ainda mais em consequência de seu
envolvimento com a irmã Ana. Ele, que já se sentia um estranho, “um estrangeiro”,
após o episódio incestuoso se sente ainda mais deslocado e rejeitado. Ninguém da
família conseguirá perceber seu tormento e sua dor. Seus apelos só serão ouvidos
após ele abandonar a casa. A partir desse momento, todos à sua volta notam-lhe a
crise e a necessidade de ajuda. Dessa forma, o autor destaca a ausência da união que
inicialmente parecia tão sólida. Nesse contexto ainda ficam evidentes as aparências
que existem na família e que por trás da grande união existe um abismo imenso,
como desabafa André:
[...] pertenço como nunca desde agora a essa insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem sossego, dos intranqüilos, dos inquietos, dos que se contorcem, dos aleijões com cara de assassino que descendem do Caim [...] (IDEM, p. 139).
Com o peso de todos os acontecimentos, André decide abandonar a família e
esta fica abalada com sua fuga. A ausência se reflete “no rosto acabado da família”.
Com a sua partida, instala-se a desunião e a desestruturação da casa. O que faz com
que a mãe peça ao filho mais velho, Pedro, para trazer André de volta, já que a fuga
abriu lacunas e abalou o alicerce familiar. Pedro cumpre a sua missão. No retorno,
André percebe que muita coisa mudou, inclusive seu pai, que, ao rever o filho, deixa
transparecer sentimentos de alegria, carinho e afeição, uma atitude inesperada
devido à austeridade do patriarca.
[...] e eu ainda ouvia um silêncio carregado de vibrações e ressonância, quando a porta foi aberta [...] surgindo, em todo a sua majestade rústica, a figura de meu pai, caminhando, grave, na minha direção; já de pé, e olhando para o chão, e sofrendo a densidade da sua presença diante de mim, senti num momento suas mãos benignas sobre minha cabeça [...] e logo seus braços poderosos me apertavam o peito contra o seu peito, me tornando depois o rosto entre suas palmas para me beijar a testa [...] (IDEM, p. 151).
O retorno de André simboliza a parábola bíblica do retorno do Filho Pródigo,
porém, ao contrário da parábola, esse filho não traz alegria e felicidade. A fuga
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desperta nele a capacidade de enfrentar o pai, de questioná-lo, e de fazer a sua voz
ser ouvida. O diálogo quebra a obediência formal, que já prenuncia o fim da
harmonia no lar. Esse retorno também traz à tona conflitos passados, deixando as
feridas expostas e causando assim a tragédia final que abala todas as estruturas
familiares, fazendo desmoronar de vez as aparências que restavam.
3. ANDRÉ: O FRUTO TRANSGRESSOR
O personagem André, mesmo tendo sido criado nos ensinamentos religiosos e
sob sermões paternos, verifica-se não se deixar dominar pelos preceitos defendidos
pela religião. Ele observa o comportamento de seus irmãos, que cedem à vontade do
pai e seguem numa obediência cega e sem questionamentos, e se sente diferente, ou
seja, a ovelha negra da família, o doente que precisa se isolar para não contaminar os
outros, como ilustra o seguinte trecho:
[...] Nosso irmão é um epilético, um convulso, um possesso e conte também que escolhi um quarto de pensão pros meus acessos e diga sempre “nós convivemos com ele e não sabíamos, sequer suspeitamos alguma vez” e vocês podem gritar num tempo só “ele nos enganou”. (NASSAR, 1989 p. 40).
A culpa de André o faz punir-se. Sua fuga tem um caráter purificador, um
calvário que o expurgaria de seus pecados. A vida desregrada que mantinha longe
de casa traria para si o estereótipo de “mau rapaz”, que ele mesmo adota para
justificar seus atos. Sua consciência o faz refletir sobre suas atitudes, mas ele próprio
afasta todas as perspectivas possíveis de melhora para a sua personalidade. A
vergonha de assumir seus atos e dar vazão aos seus instintos o conduz a reflexões
condenáveis em que ele mesmo ora se julga culpado, ora se julga inocente, não
conseguindo reagir frente ao moralismo social que exige do homem uma vida
centrada em conceitos. Essa reação destaca um comportamento de transitoriedade
interior. Como explica Antonio Candido (1992, p. 45) esses tipos de personagem
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[...] Muitas vezes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam situações limites em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos. [...] (CÂNDIDO, 1992, p. 45)
Alguns aspectos estão em embate no interior do personagem que se apresenta
diferente dos demais integrantes da casa. Suas lembranças deixam explícitas o
repúdio ao poder exercido pelo pai e pelos conceitos que ele defendia. Ainda nesse
momento de exclusão total, André tentava entender o contexto familiar, mais suas
atitudes não eram entendidas e nem se buscava entendê-las dentro de sua casa.
Ao tempo em que André tenta resgatar-se no campo moral, ele volta a se
perder na imoralidade. O seu amor por Ana, sua irmã, fere intensamente a moral
criada pela religião cristã. O incesto é condenável do ponto de vista religioso e o
sujeito que o pratica está exposto a severos castigos impostos pelo Onipotente que
tudo vê, controla e pune, que é Deus. Esse sentimento de ser controlado por um olho
invisível gera a crise de consciência e a autopunição, como aborda Foucault, 1996,
p.218: “apenas um olhar. Um olhar que vigia e que cada um sentindo-o pesar sobre
si, acabará, por interiorizar a ponto de observar a si mesmo[...]”.
Esse sentimento de ser controlado faz com que André, com seus anseios, não
se sinta merecedor do amor de sua família. Sua presença macularia todo o ambiente
inocente e fraterno, mas ao mesmo tempo não consegue abrir mão da paixão
avassaladora que sente por Ana. O poderoso olhar divino poderia entender seus
motivos e necessidades e por isso ele estaria disposto a encarar todos os castigos e
punições.
O laço familiar intenso que marca a obra cria uma obsessão em André, que o
faz ver na irmã a possibilidade de manter essa harmonia e perpetuar a pureza da
família, ou seja, não seria necessário incorporar novas pessoas ao seio familiar, pois
sua relação com Ana seria suficiente para manter a união no lar. Para André, esse
amor o transformaria em um novo homem. Ao invés de se manter no ócio habitual,
ele se ergueria para contribuir nas atividades cotidianas da lavoura, daria mais
atenção aos seus pais e seria uma pessoa alegre e disposta. Como ilustra a seguinte
passagem do romance:
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[...] As coisas vão mudar daqui pra frente, vou madrugar como nossos irmãos, seguir o pai para o trabalho, arar a terra e semear, acompanhar a brotação e o crescimento, participar das apreensões, da nossa lavoura, vou pedir a chuva e o sol quando escassear á água ou a luz sobre as plantações, contemplar os cachos que amadurecem, estando presente com justiça na hora da colheita trazendo para casa os frutos, provando com tudo isso que eu também posso ser útil. (NASSAR, 1989, p.188-189)
Mas suas promessas batem de frente com a austeridade religiosa de Ana,
que não aceita as propostas do irmão e em meio às suas preces tenta redimir-se de
seus pecados. Esse sentimento em nenhum momento é questionado ou dialogado
entre os personagens. O vestígio do pecado evidencia a culpa que pesa ainda mais na
consciência de André, resultando na sua fuga. A autopunição de Ana é marcada pela
transformação de sua personalidade: ela passa a ser uma moça fechada e
introspectiva.
Nassar cria um personagem que transcende seu ambiente habitual. André
revela uma crise identitária na sua constituição, tentando adequar o ambiente, as
coisas e as pessoas à sua vontade. Ao perceber que sua ideologia não era apreciada
por ninguém, ele passa a lutar contra tudo e todos, criando um universo regido por
ele mesmo, onde somente suas regras eram plausíveis, e dessa maneira poderia tudo
dominar à sua vontade, satisfazendo necessidades próprias.
Dessa maneira é que se justifica também o amor incestuoso por sua irmã e seu
discurso mantém essa intenção, ao distorcer a concepção de família harmônica com o
ato de unir-se à própria irmã. Esse comportamento demonstra um deslocamento
diante das coisas, criando contrastes de desejos sobre a família que por alguns
momentos preferia distância, mas por outros não desejava afastar-se dela.
Ainda sobre a identidade de André, percebe-se uma presença dionisíaca. O
vinho é um símbolo que marca os momentos revolucionários e de conflito, como se o
desequilíbrio estivesse atrelado a uma força maior. Através da bebida e da
embriaguez, o personagem dá vazão as suas idéias e alimenta seus desejos.
Conforme Nietzsche a arte dionisíaca: “[...] repousa no jogo com a embriaguez, a
pulsão da primavera e a bebida narcótica [...]”( NIETZSCHE, 2005, p.08). Para
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transgredir era necessário sair de si e penetrar um novo universo, ser conduzido por
outro elemento.
No penúltimo capítulo, a celebração feita para marcar o retorno de André
também ilustra cenas de rituais ao Deus Baco, que no romance desenha da seguinte
forma:
[...] Já transportavam contentes garrafões de vinho, correndo sucessivas vezes todos os copos, despejando risonhas o sangue decantado e generoso em todos os corpos, recebido sempre com saudações efusivas que eram o prenúncio de uma gorda alegria. [...] Logo meu velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância, puxou do bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos pesadas, e se pôs então a soprar nela como um pássaro, suas bochechas se inflando como bochechas de uma criança, e elas inflavam tanto, tanto, e ele sanguíneo dava a impressão de que faria jorrar pelas orelhas, feito torneiras, todo o seu vinho, e ao som da flauta a roda começou [...] ( NASSAR, 2004, p. 184-5)
Ainda para Nietzsche,
As festas de Dioniso não firmam apenas a ligação entre os homens, elas também reconciliam homem e natureza. Voluntariamente a terra traz seus dons, as bestas mais selvagens aproximam-se pacificamente: coroado de flores, o carro de Dioniso é puxado por panteras e tigres. Todas as delimitações e separações de casta. Que a necessidade e o arbítrio estabeleceram entre os homens, desaparecem: o escravo é homem livre, o nobre e o de baixa extração unem-se no mesmo coro báquico [...]. ( NIETZSCHE, 2005, p.8-9)
A comparação da festa como culto a Dioniso é para marcar o momento de
entrega total, de esquecimento dos valores e a busca pelo prazer imediato. Ao
retratar as festas dionisíacas, percebe-se, que o autor exalta a liberdade e o poder de
se tornar uno. Dessa forma, André não seria tão diferente, tão estranho. Ele estaria
ligado, ainda que por pouco tempo a sua família, que embriagada o ampara sem
distinções.
Por vários momentos André se intitula como insano, um demente, e por
outros momentos consegue exaltar sua astúcia e inteligência. O próprio personagem
em suas inquietações se mostra perdido diante dos seus atos, mais “[...] o servidor de
Dioniso precisa estar embriagado e ao mesmo tempo ficar a espreita de si. O caráter
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artístico dionisíaco não se mostra na alternância de lucidez e embriaguez, mas sim
em sua conjugação.” (NIETZSCHE, 2005, p.10). O personagem tenta abrir as portas
para entender suas fraquezas, mas ao mesmo tempo se protege para não ser
acometido por intromissões e julgamentos. Ele observa e define a forma na qual
poderia quebrar com o manto instável que cobre a hipocrisia da família. Afinal, o que
André deseja é a mudança e, principalmente, que ela aconteça à sua maneira, de
acordo com a sua vontade.
Descontrolado diante das descobertas e perdido em meio aos seus desejos,
André segue como um “Bacante”, que impulsionado pela vontade de ser diferente,
de transgredir a ordem vigente, abriu uma fenda no seio familiar que jamais seria
fechada. Sua atitude era o meio de sanar o erro e ocultar a sua culpa em não se
enquadrar ao modelo de filho “perfeito” criado por seu pai.
4. ANDRÉ E O DISCURSO PERSUASIVO DO INCESTO
Após o ato do incesto, André ainda sob o impacto dos acontecimentos, tenta
convencer a irmã de que o que ambos fizeram foi algo glorioso, como registra a
citação:
[...] foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o mesmo tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma deslealdade, e a certeza supérflua e tão fundamental de um contar sempre com o outro no instante de alegria e nas horas de adversidade; foi um milagre, querida irmã, descobrirmos que somos tão conformes em nossos corpos, e que vamos com nossa união continuar a infância comum, sem mágoa para nossos brinquedos, sem corte em nossas memórias, sem trauma para a nossa história; foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites da nossa própria casa, confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser encontrada no seio da família [...] (NASSAR, 1989, p. 118)
O discurso revela que o incesto seria divino e milagroso, teria o poder de unir
os laços da família. Ao fazer esta indagação, André apela para dois pontos fracos de
Ana: a religião e a família. Os argumentos tentam convencê-la e persuadi-la a
sucumbir aos seus objetivos. O amor pela família justificaria o ato e também poderia
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salvá-lo da autodestruição, já que ele sempre era “o filho torto, a ovelha negra que
ninguém confessa, o vagabundo irremediável da família [...]” ( NASSAR, 1989, p.
118). É a partir dessa união que nasceria um novo homem, capaz de “Madrugar com
nossos irmãos, seguir o pai para o trabalho, arar a terra e semear, acompanhar a
brotação e o crescimento, participar das apreensões da nossa lavoura[...]” (NASSAR,
1989, p. 119). É nas mãos de Ana que André deposita a responsabilidade de
promover a felicidade da família e a sua salvação, a decisão dela é o ápice para as
decisões e diante da recusa tem-se o desfecho da fuga do personagem.
Foucault (1999), caracteriza que o discurso é usado pela sociedade de forma
controlada, ou seja, não se pode falar tudo abertamente, por que é preciso filtrar o
que se diz para não causar desavenças e manter a harmonia entre os indivíduos.
Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que tem como função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. ( FOUCAULT, 1999, p. 09)
Na narrativa, André inverte essa ordem e não priva seu discurso, não contem
suas palavras e desabafa de forma sincera sem se preocupar no momento com o
resultado que elas possam causar.
Foucault (1999) ainda relaciona o discurso às relações de poder, revelando que
o mesmo sempre é válido mediante a posição de quem o profere. O discurso passa a
ter mais valia de acordo com o poder de quem discursa, principalmente quando o
cargo que este ocupa é alto. Como é visível no romance em relação hierarquia
paterna ao emitir seus sermões moralistas com a intenção de consolidar valores
morais à família. No entanto, André rebate fortemente as palavras do pai e utiliza do
seu próprio sermão "confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser
encontrada no seio da família” (NASSAR, 1989, p. 118), para transgredir a ordem e
subverter o poder, o atraindo para suas mãos e mostrar suas próprias razões e
vontade.
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Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele podia odiar o mundo [...](NASSAR, 1989, p. 159).
André mantém o discurso forte e coeso. Demonstra a carga de amor que ele
carrega pela família, e que as atitudes têm como finalidade retornar ao seio da
família, voltar a ser um filho “normal”, vivendo sob a égide paterna e comungando
dos afazeres da fazenda com os demais irmãos. Porém para isso ele testa a união da
família, deturpando o discurso paterno e vivendo amorosamente com a irmã. Esse
amor nascido dentro do lar seria para ele um prêmio a que tinha direito.
[...] farei tudo com alegria, mas para isso devo ter um bom motivo, quero uma recompensa para o meu trabalho, preciso estar certo de poder apaziguar a minha fome neste pasto exótico, preciso do teu amor, querida irmã, e sei que não exorbito, é justo o que te peço, é a parte que me compete, o quinhão que me cabe, a ração que tenho direito. (NASSAR, p. 124)
Sua mudança não seria gratuita, tem um preço alto a pagar pelos desejos. E
mais uma vez Andre deixa transparecer em seu discurso que seus objetivos estão
acima de tudo e de todos. Para conseguir o que quer, ele passaria por cima de todo
tipos de regras e convenções e seu troféu estaria pronto para ser exibido
simbolizando a vitória.
Mesmo buscando a vitória André revela através de suas palavras, que já
esperava pelo desfecho negativo: “[...] porque então esses caprichos, tantas cenas,
empanturrar-mos de expectativas, se já estava decidida minha sina?” (NASSAR,
1989, p.117). Mas isso não o impediu de partir com força total na enxurrada de
enunciados a fim de convencer a irmã a comungar com seus desejos. André optou
pela ousadia em mudar o destino e como resposta trouxe a destruição do lar que
tanto amava.
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Considerações finais
No presente trabalho buscou-se mostrar as transgressões na narrativa Lavoura
arcaica e os frutos criados por elas. É perceptível que a revolta começa na família e
que o maior problema é gerado pelo pai e por seu modelo de educação, mal sucedido
e ditador, que priorizava apenas sua vontade e opinião, a fim de manter a família
moralmente amestrada e harmonizada, dentro dos padrões exigidos por ele e
transformando todos em suas propriedades. André é o fruto da desordem, o mesmo
não preenchia os requisitos determinados pelo pai, que queria acima tudo, filhos que
reproduzissem suas atitudes. O que para André era inaceitável, porque ele queria
mais, queria romper com essa tradição hierarquizante e partir para uma vida que
tivesse a liberdade como lema.
Essa busca pela libertação, pela mutação é que faz com que André cresça e
ganhe forças para mudar o rumo da família. A coragem, o rompimento religioso e o
caráter questionador é a válvula propulsora para que desperte o novo homem capaz
de transcender os limites e contaminar a família por completo, ou seja, estabelecer
uma nova realidade para o seu meio familiar.
O pensamento filosófico na obra em estudo faz com que o autor, Raduan
Nassar, crie uma narrativa envolvente prendendo o leitor desde o primeiro até o
último capítulo. A presença filosófica é um instrumento que torna a narrativa ainda
mais densa e permite os personagens fazerem questionamentos instigantes
conduzindo a outros questionamentos, deixando a incompletude falar por si. A crise
e a revolta também são caracterizadas e ganham espaço no personagem André, que
desemboca toda sua ira em atos que fogem das circunstancias normais para o padrão
da sociedade, produzindo uma transfiguração de todos os valores prezados e
emergindo valores ocultos e subversivos.
Mas o romance não finaliza com a tragédia familiar, essa incógnita continua,
pois não se pode determinar o limite do certo e errado nem do bom e mau. O
discernimento acerca dos valores dialoga diretamente com o leitor e nas mãos dele é
que fica a chave para desvendar todo mistério. Mistério esse que a boa e velha
literatura ainda é capaz de proporcionar.
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Referências CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. (Vol. 1)
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria e senso comum. Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1996.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciado em 2 de dezembro de 1970. 15. ed. São Paulo, SP: Loyola, 1999.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
NIETZSCHE, Friedrich W. Alem do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução Paulo César de Souza. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo, e outros textos de juventude. Tradução Marcos Sinézio, Maria Cristina dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PRADO, Danda. O que é família. 3. ed São Paulo: Brasiliense, 1981.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
THOMSON, Oliver. A assustadora história da maldade. Tradução Mauro Silva. 3. ed. São Paulo: Ediouro, 2002.
DAS EXPERIÊNCIAS LEITORAS DE PROFESSORES À ALFABETIZAÇÃO ATRAVÉS DAS ESCRITAS DE SI.
Sara Menezes Reis-UNEB [email protected]
Fulvia de Aquino Rocha-UNEB
Resumo: Nossas trajetórias e itinerâncias formativas são repletas de sentidos, pessoas, saberes e experiências que se entrecruzam com outras tantas ao nosso redor. Quando dialogamos sobre a docência, não podemos deixar de contemplar aspectos que marcaram nossas vidas pessoais e profissionais. Há uma indissociabilidade entre essas dimensões, como nos lembra Nóvoa (1992; 2000), pois o que mobiliza a vida do professor, pode repercutir diretamente em sua prática docente. É a história de leitura de uma professora que atua em uma escola pública de Salvador, que influencia a realização de um trabalho diferenciado na Educação de Jovens e Adultos: ela lança o olhar sobre a construção do saber e a valorização do conhecimento de mundo dos educandos, estimulando-os a estabelecerem uma relação diferente com a leitura. O que permite que professora e educandos vivam um processo de formação e autoformação. Discutimos assim, uma perspectiva de alfabetização como ato político, capaz de possibilitar aos sujeitos a construção de sua cidadania e permitir sua participação crítica/ativa na sociedade, rumo a sua emancipação e transformação da realidade. A experiência da professora com a utilização das escritas de si, nos leva a embasá-la a partir de nossa implicação com a abordagem (auto)biográfica, por compreendermos que esta permite emergir no percurso formativo dos sujeitos, a consciência dos vários registros de expressão e de representação de si, refletindo/orientando sua formação, perspectiva fundamental quando se trata da formação docente e da EJA. Encontramos acolhimento teórico nos trabalhos de Josso (2002), Nóvoa (2010), Souza (2006), dentre outros. A importância das práticas de leitura encontradas/perpetuadas na vida da docente se torna elemento fundamental na inspiração do processo formativo e na alfabetização dos sujeitos, bem como os mobiliza a escreverem os textos de suas próprias histórias. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; experiências leitoras; escritas de si.
CONHECER NOSSOS PRÓPRIOS PERCURSOS FORMATIVOS: EIS A QUESTÃO!
A busca contínua de articular a reflexão, a pesquisa, a crítica e as experiências
pessoais e profissionais aos movimentos formativos dos quais vivenciamos, nos
conduz a ratificar as elaborações de Nóvoa (2010) e a articulá-las com as construções
de Larrosa (2002), quando este nos propõe que pensemos a Educação a partir da
articulação entre experiência/sentido.
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O autor nos diz que a experiência é algo raro de se viver, pois, mesmo que
vivamos muitos acontecimentos em nossa trajetória de vida, poucas coisas nos tocam
significativamente. E o fato de não nos tocarem é reflexo de nossa imersão num
movimento de constante busca por informações; por estarmos encharcados de
saberes advindos da facilidade de acesso às informações; porque nos excedemos no
trabalho, numa rotina atribulada de compromissos que nos impedem de parar,
silenciar e rememorar.
É experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar, nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação. Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão. [...] O sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. [...] O sujeito da experiência é, sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos. [...] tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião (LARROSA, 2002, p. 24 - 25).
Assim sendo, compreendemos que, mesmo imersos em um movimento que
nos impede de viver a experiência nesta dimensão complexa, é imperativo que
vivamos em nosso percurso, outro movimento. Um movimento que seja de
resistência e que nos permita, na dimensão formativa, viver a experiência em sua
plenitude, a partir do momento em que possibilita que paremos, silenciemos,
lembremos e narremos nossa história.
Um movimento que nos permita sermos capazes de nos modificar e
transformar as outras dimensões de nossas vidas. “Este é o saber da experiência: o
que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo
ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos
acontece” (Idem, p. 27).
Em busca da potência em torno desse conhecimento outro, é que pensamos na
necessidade de que a formação de professores se constitua enquanto “um processo
de conhecimento que se constrói ao longo da vida e que se materializa nas
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experiências e aprendizagens constitutivas de identidades e subjetividades”
(SOUZA, 2008, p. 88), tendo na escrita de si e/ou nas narrativas autobiográficas a
potencialização para a reflexão e a construção de sentido das experiências vividas.
O lastro epistemológico-metodológico possibilitado pela abordagem
(auto)biográfica, nos permite adentrar o espaço das discussões sobre formação, com
olhares lançados sob outras perspectivas para além dos modelos de formação
encapsulados em disciplinas, que transcendam os espaços tradicionais de formação,
rumo a processos que valorizam o conhecimento de si. Insere-se no movimento que
traz o debate epistemológico sobre “o papel da subjetividade na elaboração do
conhecimento”, aspecto de difícil aceitação aos modelos empírico-analíticos
(DOMINICÉ, 2010, p.145).
Essa perspectiva de trabalho configura-se como investigação porque se vincula a produção de conhecimentos às relações do sujeito com a experiência: ter experiência, fazer experiência e pensar a experiência. Ela é formação, porque parte do principio de que o sujeito toma consciência de si e de suas aprendizagens experienciais quando vive, simultaneamente, os papéis de ator e investigador de sua própria história (JOSSO, 2010, p.13).
É nesse sentido que o trabalho focado nas Histórias de Vida de professores, a
partir de suas narrativas de vida e profissão, possibilita que o movimento de pensar-
se/narrar-se traga contribuições e possam ressignificarem seus processos formativos.
Emerge dessa reflexão, o desafio de (re)pensar o processo de formação de
professores, em que a superação dos limites impostos nas práticas pedagógicas,
ajude-os a pensar sobre o trabalho que desenvolvem e a encontrar soluções para seus
desafios cotidianos no seio do seu fazer docente, pois dele emerge o conhecimento da
experiência que precisa ser valorizado e que dá sentido ao próprio fazer.
O processo de formação pelas histórias de vida apresenta-se enquanto
movimento de reivindicação, reconhecendo os saberes subjetivos, não formais, e
adquiridos nas experiências e nas relações sociais. Assim, em suas reflexões
Dominicé (2010), afirma que:
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[...] a história de vida é outra maneira de considerar a educação. Já não se trata de aproximar a educação da vida, como nas perspectivas da educação nova ou da pedagogia ativa, mas de considerar a vida como o espaço de formação. A história de vida passa pela família. É marcada pela escola. Orienta-se para uma formação profissional, e em consequência beneficia de tempos de formação contínua. A educação é assim feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida (p. 199).
É neste âmbito que o trabalho com as narrativas aponta um caminho que
comporta a complexidade de uma Vida, e promove a compreensão das dimensões
formativas subjacentes a ela.
A abordagem experiencial, conforme Josso (2008) institui inelutavelmente um
movimento de investigação-formação ao longo da vida, na formação de adultos e na
formação inicial e continuada de professores, o que permite a esses profissionais
saírem do isolamento, viverem as experiências que lhes passa, que lhes toca, “a partir
do momento que fazemos certo trabalho reflexivo sobre o que se passou e sobre o
que foi observado, refletido e sentido” (Idem, p. 48).
O que está em jogo na formação, sob a perspectiva das histórias de vida, é que
seja percebido pelos formandos que suas narrativas carregam em si o conhecimento
de uma existencialidade singular, que tem sentido e se insere numa existencialidade
plural, e que os institui como sujeitos e dá acesso aos seus projetos/processos
formativos.
A compreensão de como cada um de nós nos tornamos o que somos é
imprescindível. “A formação de um adulto não pertence a ninguém, se não a ele
próprio”, ressalta Nóvoa (2010, p. 1999). Portanto, uma formação continuada entre a
pessoa-professor e a organização-escola são eixos estratégicos de uma formação que
pode contribuir para a mudança desejada e redefinição da profissão docente.
Deste modo, apreendemos que um processo formativo necessita desenvolver o
pensamento crítico, promover o conhecimento de si e vivências tão significativas de
exercício da autonomia, de práticas emancipadoras, que coloque os professores no
lugar que lhes pertence de intelectuais transformadores. E mais, que ao se
transformarem, possam transformar também seus espaços, suas relações e sejam
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instigados à necessidade de que essas experiências de si norteiem também a
formação que venham a promover aos seus educandos.
É o que propomos a seguir, a partir da discussão da alfabetização, enquanto
processo de muitas facetas, complexidade e multidimensionalidade (PÉREZ, 2008)
concepção que pode estar articulada diretamente a um posicionamento político
inerente ao pensar/fazer a Educação de Jovens e Adultos.
NO CONTEXTO DA EJA: ALFABETIZAÇÃO PARA A EMANCIPAÇÃO
O (re)pensar da educação necessita conduzir ao esclarecimento da necessidade
de se oferecer para diferentes pessoas, em diferentes realidades, oportunidades
também diversas de desenvolvimento de suas potencialidades, evocando a história
de cada um enquanto elemento potencializador.
Premente é o despertar da consciência desse direito em cada sujeito, uma vez
que não somos “formados” com vistas à emancipação – liberdade de estar à frente do
próprio processo com autonomia e criticidade. De fato, “a única concretização efetiva
da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nessa direção
orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a
contradição e para a resistência” (ADORNO, 1995, p.183), exigindo-se mais de uma
formação que a mera instrumentalização. Entretanto, o currículo, o projeto político-
pedagógico, a prática pedagógica e, especialmente, a formação dos profissionais de
educação, não passaram pelas transformações necessárias, ou estas ainda são
insuficientes, para responder aos desafios propostos à escola: conhecer o contexto
para melhor intervir; repensar a forma de conceber o conhecimento; a possibilidade
do livre exercício da criatividade; a compreensão da condição humana (MORIN,
2001); a inclusão, a diversidade e pluralidade cultural dos sujeitos que a compõe.
A existência de discursos e práticas que dissociam as práticas de alfabetização
e letramento torna necessária a continuidade da discussão acerca de seus
entendimentos. Soares (2004) destaca ser “metodologicamente e até politicamente
conveniente” a distinção, propondo assim a “reinvenção da alfabetização”.
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É preciso reconhecer a possibilidade e necessidade de promover a conciliação entre essas duas dimensões da aprendizagem da língua escrita, integrando alfabetização e letramento, sem perder, porém, a especificidade de cada um desses processos, o que implica reconhecer as muitas facetas de um e outro e, consequentemente, a diversidade de métodos e procedimentos para ensino de um e de outro, uma vez que, no quadro desta concepção, não há um método para a aprendizagem inicial da língua escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina certos procedimentos de ensino, além de as características de cada grupo de crianças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas de ação pedagógica (SOARES, 2004, p. 15).
Temos Pérez (2008) que, embora defenda que a teorização existente em torno
da perspectiva do letramento, “reduz e simplifica o processo de alfabetização”,
contribui com seu conceito de alfabetização como um conceito “plural, complexo,
multidimensional (envolve dimensões políticas, sociais, culturais, econômicas,
epistemológicas, pedagógicas etc.) e dialógico”.
Ao se articular à perspectiva propagada por Freire, da alfabetização como ato
político, capaz de possibilitar aos sujeitos a construção de sua cidadania e permitir
sua participação crítica/ativa na sociedade, rumo a sua emancipação e transformação
da realidade, avalia que neste cenário ganha sentido conceber este processo como
alfabetizações, o que “implica um enfoque integrado e flexível, articulado a todos os
aspectos da vida cotidiana e que, para além da comunicação oral ou escrita, traduz
uma concepção complexa de linguagem” (Idem, p. 199).
Por certo que, no contexto da EJA pensar a alfabetização como ato político
imprime no professor também a responsabilidade de pensar a sua prática distante da
neutralidade.
Assim, Giroux (1997) embasado na teoria educacional crítica e nas ideias
emancipadoras de Freire, propõe desvelar as maneiras como a dominação e a
opressão são produzidas nos mecanismos escolares; revelar como as escolas
reproduzem a lógica do capital e problematizar acerca destas serem espaços de
democracia e mobilidade social. “Reconceber as escolas como esferas públicas
democráticas nas quais professores e alunos trabalhem juntos para tecer uma nova
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visão emancipadora da comunidade e da sociedade” (Idem, 1997, p.31), implica que
os professores sejam concebidos como intelectuais transformadores.
Trata-se de uma concepção que não se pauta na diferenciação entre os que
pensam, e por isso estariam autorizados a ser chamados de intelectuais, e os que
executam. A categoria de intelectual mobiliza o educador a compreender que a
autonomia e a emancipação acontecem com base no compromisso ético e
humanitário, e na trajetória formativa do educando contribui no sentido de
assegurar-lhe a conquista da emancipação efetiva.
Tais questões são tramadas quando pensamos em uma alfabetização de jovens
e adultos que possa valorizar seus sujeitos, validar seus saberes extraescolares,
advindos de suas relações cotidianas e promover rupturas com as concepções mais
tradicionais de alfabetização, voltadas para a decodificação. Para isso, faz-se
necessário aliar essa perspectiva a um movimento de formação docente que seja
sensível a essas questões, e propicie ao sujeito-professor a construção de uma prática
pedagógica que leve em conta essas dimensões outras da alfabetização de jovens e
adultos, por meio da reflexão de sua práxis.
As práticas sociais relativas à leitura e a escrita transcendem os limites da
escola. São diversas, múltiplas, plurais, e precisam ser consideradas em seus
contextos e complexidades. A leitura é aqui compreendida enquanto ato de produção
de sentidos (BELTRÃO, 2005).
Devido ao arcabouço de experiências que os adultos acumulam ao longo de
suas vidas, suas aprendizagens se dão significativamente quando os objetos de
ensino se aliam às suas atividades profissionais e contribuem para a solução de
problemas reais. São necessários, para a eficácia do trabalho com jovens e adultos,
pressupostos tais como a auto-gestão, aprendizagem focada na necessidade do
educando e valorização das experiências, corroborando com os princípios de Freire
(2007), que estimulava a educação como elemento libertador e construtor da
autonomia.
A experiência vivida em um estágio curricular socializada a seguir demonstra
como uma professora alfabetizadora desafiava os paradigmas tradicionais de
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alfabetização em uma escola pública municipal de Salvador, com uma prática que se
alia a perspectiva que defendemos, ainda que ela não tivesse essa consciência.
AMPLIAÇÃO DE PERSPECTIVAS A PARTIR DA EXPERIÊNCIA LEITORA DE
UMA PROFESSORA
Ao adentrarmos o espaço de uma classe de EJA, o simples cumprimento de
um estágio curricular ao final de um curso de especialização, se tornou uma
experiência singular de crescimento e aprofundamento teórico quanto às histórias de
vida e de leitura, e formação de leitores. O que nos esperava, ao longo de
aproximadamente 10 dias (40 horas de estágio) era incerto, até conhecermos a
história da professora Maria Emília6 que possuía mais de vinte e cinco anos
dedicados à alfabetização, dez deles com o trabalho de alfabetização de jovens e
adultos.
Fomos instigadas pelas práticas dessa professora que desafiava os paradigmas
tradicionais de alfabetização e buscava por meio de contações de histórias, leituras de
jornais e revistas, cordéis e outros gêneros textuais, proporcionar a seus alunos um
processo de alfabetização e letramento realmente significativo. Ela instigava e
provocava seus alunos a serem leitores curiosos e questionadores.
É importante ressaltar que a história de leitura de um indivíduo comporta não
apenas os gestos e vozes de leitores considerados e prestigiados socialmente. São
levadas em conta, principalmente, as outras trajetórias e práticas de leitura de
sujeitos outrora “comuns” (MORAES, 2011). O objetivo é reconhecer a dimensão
plural da leitura, na qual também são dignos de atenção os leitores não convocados,
os sentidos inimagináveis, as leituras imprevistas e, em muitos casos, clandestinas ou
desprestigiadas.
Conhecer a história de leitura da professora Maria Emilia foi fundamental
para compreender a natureza de suas práticas pedagógicas. Leitora tardia (como a
6 Respeitando os princípios preconizados pela resolução 196/96 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa- CONEP, utilizamos aqui um pseudônimo para preservar a real identidade da professora que colaborou com esta pesquisa.
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mesma se caracterizava), com poucas oportunidades, muitas limitações financeiras e
acesso restrito a livros, a docente descreveu-se como “apaixonada e implicada com a
leitura desde muito jovem”. Com dificuldades cursou o magistério, sendo aprovada
em concurso público alguns anos depois. Seu acesso restrito aos livros e a outros
materiais de leitura, não a impediu de ler “como pudesse”. E essa história de
insistência em busca da leitura, é o que buscava comunicar aos alunos.
Relacionamos a história de vida/leitura da professora Maria Emilia, à
narrativa do escritor Miguel Sanches Neto. Em seu livro Herdando uma Biblioteca
(2004), ele que se tornou crítico e professor universitário, confessa a diversa rede de
acontecimentos que possibilitou a ele, garoto marcado por uma infância pobre, ter os
livros que sua família não tinha condições de possuir. Sua trajetória de formação e
constituição leitora se confunde com sua própria história de vida, como também
percebemos e sentimos acontecer com a história da professora Maria Emília.
Depois das conversas que revelaram sua trajetória leitora, a professora
permitiu que adentrássemos o espaço da sua sala de aula. Nos primeiros dias foram
feitas apenas observações a fim de compreendermos como funcionava a dinâmica de
trabalho com a leitura e a escrita em sala. Após esse momento, ela mesma solicitou
algumas sugestões de intervenção em relação a leitura com os alunos.
Apesar de termos desenvolvido outras atividades que envolviam a leitura de
histórias e contos durante o estágio, foi com o livro de Davide Cali, “Fico à Espera”,
que obtivemos uma das mais significativas experiências neste processo formativo.
O livro escrito pelo autor suíço radicado na Itália, publicado na França em
2005 e no Brasil em 2007, é uma obra que abarca diversas situações que compõem a
trajetória de vida e os percursos formativos de um homem - desde a infância
recheada com bolos e biscoitos cuidadosamente feitos pela mãe, até a morte da
esposa, já na velhice - e as repercussões de cada um desses momentos em sua
história.
A interação com os alunos foi surpreendente, compartilhamos as poucas frases
(por meio da leitura em voz alta) e mostramos, simultaneamente, as imagens que
compõem a obra. Antes da contação propriamente dita, todos compartilharam o que
se recordavam a respeito das suas trajetórias de vida e momentos mais marcantes.
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A partir do debate sobre a vida do personagem, foram feitas relações com
temas atuais, tais como: abandono de menores, as diferentes constituições de família,
amor, nascimento de filhos, perda de entes queridos. Após a leitura, propusemos a
escrita de trechos marcantes da vida dos alunos, que de certa forma, se identificavam
com a personagem da obra lida.
Todos participaram e escreveram no quadro de acordo com suas hipóteses de
escrita, validando a contribuição que nos traz Ferreiro (2008) em suas pesquisas (pré-
silábicos, silábicos e alfabéticos). A mediação e a atividade proposta foram feitas
através de uma escuta cuidadosa, cooperativa e sensível.
Sobre a escuta sensível, é importante ressaltar que a leitura prévia dos escritos
de Barbier (2002) embasou significativamente o trabalho das pesquisadoras. A
dimensão sensível da escuta de que nos fala o autor, foi fundante, pois é uma postura
que abre espaço para possíveis transformações em diversas dimensões (pessoal,
profissional, emocional). Para o autor, a escuta sensível não faz juízos de valor, mas
aceita, através da empatia, a existência dos outros enquanto sujeitos. Na socialização
das experiências (e dos escritos) não há espaço para julgamentos ou a pretensão de
comparar o que é compartilhado. Os estudantes se posicionam como sujeitos que
escutam e se colocam no lugar do outro:
A escuta sensível reconhece a aceitação incondicional de outrem. O ouvinte sensível não julga, não mede, não compara. Entretanto, ele compreende, sem aderir ou se identificar às opiniões dos outros, ou ao que é dito ou feito. A escuta sensível pressupõe uma inversão de atenção. Antes de situar uma pessoa em seu lugar começa-se por reconhecê-la em seu ser (BARBIER, 2002, p.1).
Percebemos a importância da validação do outro no processo de construção da
formação, quer no âmbito profissional ou social, sendo a escuta aqui percebida como
uma qualidade do ofício da professora alfabetizadora em questão.
O que mais impressionou foi o fato de que escrever sobre si, para a maioria
dos alunos, era uma novidade. Até o momento, os alunos não haviam tido
oportunidade de escrever e contar sobre si mesmos, suas trajetórias e histórias de
vida e de leitura, ainda que se tratasse de uma classe de EJA. Frases como “eu não
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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consigo, professora” ou “minha história não é importante, pois ainda não sei ler
como você” eram comuns. Desconstruir essas certezas cristalizadas ao longo dos
anos, não é tarefa fácil, mas conseguimos iniciar esse movimento.
Desafiar a escrita dos educandos em sala, sejam eles adultos ou crianças em
formação, é complexo, porém desafios e ousadia necessitam fazer parte da prática
docente. São oportunas as palavras de Cordeiro (2006) quando discorre que esse
acaba por ser um processo de:
[...] tomada de consciência de cada sujeito que, ao construir seu relato, redimensiona a importância desse percurso para si próprio e vê com mais clareza seu lugar na sociedade e a força de sua capacidade de autotransformação e de interferência na vida coletiva (CORDEIRO, 2006, p.318).
Atrelar registros de formação, vida e aprendizagens, permite aos
estudantes se descobrir em suas diversas instâncias. É oportuna a contribuição que a
abordagem (auto)biográfica nos traz nesse processo. Foi possível perceber como, na
prática, a trajetória e implicação da docente pôde influenciar e encorajar os
educandos a comprometerem-se com uma alfabetização e formação leitora para além
da decodificação.
PARA/POR UMA CONSTITUIÇÃO LEITORA...
É preciso considerar os educandos, sejam eles crianças ou adultos, como seres
que constroem suas aprendizagens, estabelecem significados e alimentam a
subjetividade, estabelecendo relações com as realidades das quais participam. O que
esperamos conquistar é a colaboração para a construção de uma Educação pública de
qualidade, que garanta a formação integral dos sujeitos nela envolvidos e sua efetiva
participação social, e que valorize as histórias de vida e de leitura enquanto
elementos potenciais à produção de conhecimentos.
Fica evidente, seja na história da professora alfabetizadora aqui narrada, seja
em nossas próprias histórias, como as histórias de leitura estão implicadas nas
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histórias de vida, e como a narração da própria vida expressa a interioridade e
afirmação de si mesmo.
Evidenciamos, portanto, que um leitor se constitui pelas diversas experiências
que constituem suas histórias de vida, e pelos processos singulares de formação e
autoformação pelos quais passa. A leitura, sendo plural em práticas e sentidos,
propicia representações concretas e simbólicas diferentes nos leitores.
Construir essa consciência nos professores contribui para potencializar os
processos de alfabetização, compreendida em suas dimensões políticas, sociais,
culturais, econômicas, epistemológicas, pedagógicas, dialógica, como vimos
afirmando aqui apoiadas em Pérez.
Analisar as temáticas da leitura e formação de leitores possibilita o
mapeamento de diversas histórias de leitura, cujas fronteiras não fragmentaram
preferências, mas permitem atrelar diferentes olhares sobre o ato de ler. Assim, o
professor, o estudante, o leitor delimita e cria novos espaços de leitura, para narrar
outras histórias.
Sendo complexo o trabalho com jovens e adultos, que necessitam superar
desafios de instâncias diferentes e voltar a acreditar que são capazes de aprender,
bem como se sintam tão responsáveis pelas decisões sociais como qualquer outro
leitor fluente, mais complexo se torna quando suas vozes, que falam de suas próprias
experiências não são consideradas.
Que possamos nós, servir de pares para que outros possam experienciar o
prazer da leitura, para longe de modelos de “verdadeiros leitores”, mas como prática
liberada e emancipada, contribuindo para que cada sujeito escreva e se dê conta de
sua própria história de leitura em diferentes lugares, tempos e épocas de sua vida; e
assim sejam capazes de ter suas vidas transformadas.
Afinal de contas, como compartilha conosco Sanches Neto, nos constituímos
leitores: no seio de uma família culta ou humilde; na busca solitária por uma cultura
letrada; na troca, no empréstimo, nas visitas às bibliotecas, também herdadas ou
formadas pela compra de livros. Mas acima de tudo, pelo desejo de ler despertado e
cultivado em algum momento de nossa existência.
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NOTA
O resumo deste trabalho foi apresentado no IV Elluneb. Verificamos que em lugar da Palavra-Chave “diário de bordo” é necessário que seja lido “escritas de si”. Na comunicação oral, essa foi a expressão utilizada para a socialização da experiência. O resumo que segue apresenta algumas alterações em relação ao que foi publicado no caderno de resumos do evento, sem, entretanto, trazer modificações significativas em seu conteúdo, especialmente no que se refere às discussões e aportes teóricos.
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ENTRE MEMÓRIAS, HISTÓRIAS, SABORES E SABERES LITERÁRIOS:
a trajetória de vida de uma formadora de leitores
Nanci Rodrigues Orrico7
Resumo: Esse texto, de cunho autobiográfico, busca trilhar pela minha história de vida como professora/leitora, apontando memórias, histórias e experiências literárias ao longo de uma trajetória pessoal e profissional voltada para a leitura e para a formação de leitores. A opção pela autobiografia teve como base teórica os trabalhos de Nóvoa (1992, 1998, 2003), Josso (2004), Lacerda (2003), Souza (2004, 2006) e Catani (1998), entendendo, assim como estes autores, o quanto as histórias de vida são fundamentais para se discutir o processo de formação de professores e leitores, já que o ser humano ao narrar suas histórias, narra-se e ressignifica suas experiências, vivências e aprendizagens, possibilitando a si e a outros um importante instrumento de investigação e formação. O objetivo desse texto é o de socializar com os leitores interessados na temática da formação literária de alunos e professores uma experiência rica iniciada ainda na graduação em Pedagogia na Uneb- Campus I, quando fui monitora do Projeto Pró-Leitura na Formação do Professor e comecei minhas andanças e leituras sobre o tema em questão. Os primeiros contatos com os estudos de Lajolo (1999), Kato (1986), Freire (1999), Kleimann (1989) só reafirmaram a vontade de me debruçar sobre as discussões e pesquisas que apontam a importância da formação do leitor literário e, ao longo da vivência profissional, esse desejo foi crescendo e levou-me ao contato com os livros e textos de autores como Colomer (2002, 2007), Koch (2006), Paulino (2001, 2007, 2012) e Cordeiro (2004). Em meio às leituras, ressalto minha participação na elaboração e concretização de oficinas, encontros e projetos literários significativos, tais como Lendo para outros, Leitura compartilhada, Vamos todos cirandar nossos livros? e Café literário, todos eles voltados ao estímulo da leitura e vivenciados no período de minha atuação como professora e coordenadora na Educação Básica. Como especialista em Educação Inclusiva, desenvolvi, nas escolas do campo no município de Amargosa, estudo intitulado: “Entrelaçando o sabor da literatura ao saber da cultura”, no qual tenciono uma reflexão sobre a forma como a cultura afro-brasileira vem sendo abordada em muitos livros de literatura ainda hoje, após 10 anos da implementação da lei 10.639/03, que alterou o texto da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e instituiu o ensino obrigatório sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e História Brasileira. Atualmente, como professora do Ensino Superior no curso de Pedagogia, minhas inquietações voltam-se para a necessidade de uma discussão mais efetiva entre os professores universitários sobre a formação leitora literária dos seus alunos. A intenção é desenvolver novos estudos e projetos que possam reafirmar a importância de se pensar em uma universidade que forme profissionais também na perspectiva da literatura, já que a formação literária dos seus alunos será a eles atribuída. Em outras palavras, caberá aos aprendizes de professores de hoje o futuro dos leitores do amanhã. Palavras-chave: formação de leitores; formação de professores; autobiografia.
7 Professora Substituta da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano)- Campus CFP (Centro de Formação de Professores), pedagoga pela UNEB (Universidade do Estado da Bahia)- Campus I e especialista em Educação Inclusiva pela FSC (Faculdade Santa Cruz), e-mail: [email protected].
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1. APRESENTAÇÃO: O CONTEXTO DESSE TEXTO
Falar da nossa história de vida é lidar com memórias, sensações e situações
carregadas de um significado muito especial, é nos permitir olhar para nossa própria
trajetória com “lentes” diferenciadas, enxergando-nos com olhos de outrem, mas, ao
mesmo tempo, mantendo nossa essência nesse processo.
É lembrando o que vivemos que reconhecemos quem somos e para onde
caminhamos, pois como disse David Lowenthal (1998, p. 83): “Relembrar o passado é
crucial para nosso sentido de identidade: saber o que fomos confirma o que somos”.
A ideia de narrar minha própria história profissional e os inúmeros percursos
percorridos nas pontes por mim construídas em prol da formação de leitores surge,
então, da constatação de que ressignificar experiências profissionais vividas amplia o
nosso potencial (auto) formativo, além de oferecer instrumentos de formação e
investigação profissional a outros.
Ao relembrar a vida profissional, por consequência, relembramos a pessoal, já
que estas dimensões entrelaçam-se na constituição do ser humano. Evocando
lembranças, histórias e memórias da nossa carreira, estamos ressignificando, dando
um novo sentido ao nosso saber experiencial, entendendo, como disse Larrosa, que a
experiência "[...] é aquilo que nos passa, ou que nos toca ou que nos acontece, e ao
passar-nos nos forma e transforma”. (LARROSA, 2001, p.21). Esse saber advindo das
nossas próprias vivências permite que repensemos a educação sobre outro viés, ”[...] a
partir do par experiência/sentido.” (LARROSA, 2001, p. 19).
Daí a importância de refletirmos sobre nossa trajetória profissional, pois nessa
construção subjetiva, carregada das relações com nossos saberes, com outros atores e
com o mundo, somos levados a pensar e a repensar a nossa formação e atuação
profissional, inclusive nossas contribuições e possibilidades enquanto docentes. É
através de situações em que somos levados a nos deparar com as memórias da nossa
trajetória de vida que surgem ricas possibilidades de reflexão sobre nossas práticas
pedagógicas e, a partir daí, a possibilidade também de novas construções,
significados e identidade acerca da nossa história e do nosso potencial formativo.
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Ao optar por um texto de cunho autobiográfico para relembrar meu percurso
como leitora e formadora de leitores, escolho uma nova forma de se pensar a
formação dos leitores na contemporaneidade, pautada no reconhecimento de que há
um espaço que vem se constituindo cada vez mais fortemente: o das autobiografias,
memórias, diários, testemunhos e histórias de vida. Esse universo profícuo pode
oferecer respostas satisfatórias na busca de caminhos novos e redefinidores para a
promoção de uma maior e mais prazerosa relação entre alunos e livros.
Estudos de autores como Sousa (2006) valorizam a pesquisa a partir das
histórias de vidas dos professores e concebem essa abordagem como importante
instrumento formativo e autoformativo. Um novo sentido é dado através da
valorização das experiências dos atores/professores, como sustenta Nóvoa (1995,
p.25) quando aponta que:
“[...] urge por isso (re) encontrar espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida”. (NÓVOA, 1995, p.2 5)
A abordagem autobiográfica vem se apresentando atualmente como uma
alternativa de mobilização no professor do emergir dos seus conhecimentos,
principalmente o conhecimento de si, na medida em que promove nele um
distanciamento do vivido e consequente deslocamento para uma posição analítica
sobre as suas experiências profissionais. Também propõe um pensar a partir de
instrumentos e processos formativos que fogem dos estudos centrados no
racionalismo científico e no automatismo das ações.
É nesse contexto que surge esse texto, como uma tentativa de repensar as
práticas educativas e ressignificar minhas experiências profissionais, principalmente
aquelas relacionadas à formação de leitores, oferecendo aos interessados nessa
temática um instrumento de reflexão sobre as inúmeras possibilidades de leitura
literária na escola.
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Fernando Pessoa diz que: “Em tudo que passei, fiquei em parte.” Sendo assim,
esse texto é uma parte do que vivi, dos lugares por onde passei e mostra, não só uma
parte, mas muito de mim, de quem sou e acredito.
2. MINHA TRAJETÓRIA: UMA VIDA NA E PELA LEITURA
Entendendo que para desenvolver esse trabalho autobiográfico seria preciso
reviver memórias e histórias, mas também buscar documentos e materiais pessoais,
como enfatiza Sousa (2006), debrucei-me sob uma variedade de fontes, tais como
livros e fotografias e ainda busquei pessoas que fizeram parte da minha trajetória
pessoal e profissional para entrevistá-las. As primeiras lembranças sobre a leitura que
surgem são muito agradáveis e estão relacionadas com o fato de que aprendi a ler
lendo livros literários, sozinha, com cinco anos de idade, durante o período de férias,
já iniciada em processos de contatos com as letras na escola. Essa minha relação com o
livro literário, que sempre foi intensa, começou então de forma prazerosa e se
intensificou rapidamente.
Passei a ler muito e os livros da escola, de casa e os que meus pais comprovam
eram rapidamente “devorados”. Nesse momento, ocorre um fato importante na
minha infância: a descoberta da farta biblioteca da casa de minha tia Angelina. Posso
dizer que uma “janela” se abriu na minha vida, tal qual a de Cecília Meireles em A
arte de ser feliz: “Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que
parecia ser feita de giz.” Só que a minha ‘janela’ se abriu sobre um mundo de livros.
Minha tia, irmã do meu pai, além de gostar muito de ler, tinha um casal de filhos
adolescentes e guardava todos os livros e coleções deles desde que eles eram crianças.
E assim, passei a infância lendo os livros desta biblioteca, além dos da minha casa.
Logo, a criança leitora virou uma adolescente leitora, incentivada pela família e
pelas escolas por onde passei, pois sempre me deparei com professores que me
incentivaram, ainda que as práticas escolares vivenciadas não fossem as ideais para
formação de leitores.
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A aprovação na UNEB - Universidade do Estado da Bahia no curso de
Pedagogia aconteceu no ano de 1995 e, logo em 1996, candidatei-me e fui aprovada
como monitora em um projeto da universidade chamado Pró-Leitura na Formação do
Professor. Ser bolsista desse projeto foi uma experiência valiosíssima e fundamental
para a minha formação profissional. Entre inúmeras leituras e cursos que fui
participando nessa área, iniciava uma preparação para realizar capacitações com
professoras das escolas estaduais e municipais. Nesse trabalho, além das capacitações,
realizávamos oficinas literárias em escolas da prefeitura e foi aí que começou a se
definir uma das minhas marcas profissionais: o de formadora de leitores.
O contato com as professoras da UNEB Maria Antônia Coutinho, Verbena
Cordeiro e Naddija Nunes foram fundamentais na minha vida, deixando marcas
preciosas na minha formação e despertando em mim o desejo pela temática
envolvendo a leitura e a mediação do professor nesse processo.
Em 1999, graduei-me em Pedagogia na UNEB, já tendo despertado uma
grande preocupação com a qualidade do ensino na Educação Básica e com a formação
de leitores na Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Isso me
levou, durante muitos anos, a atuação como docente em turmas de crianças e depois
como coordenadora pedagógica. Influenciada pelas leituras que marcaram minha
passagem na universidade, tais como as de Marisa Lajolo, Mary Kato, Ângela
Kleimann passei a desenvolver uma característica muito pessoal no meu trabalho, a
minha marca profissional passou a ser de leitora e formadora de leitores.
Na escola da rede privada que trabalhei durante muitos anos percebi a
preocupação com a formação continuada dos profissionais no que diz respeito à
formação de leitores. Nessa escola, situada em bairro nobre de Salvador, existia um
grande cuidado com a formação de leitores, tanto de textos informativos como de
textos literários, e desenvolvia-se um intenso trabalho de formação continuada em
parceria com uma escola de São Paulo. Lá participei, durante todo o tempo que
trabalhei neste local, de inúmeros cursos, eventos e elaboração de projetos sobre uma
temática que sempre me interessou muito: a formação do leitor literário. Foi aí que
tive contato com os livros e textos de autores como Ingedore Koch, Teresa Colomer,
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Isabel Solé, Graça Paulino e voltei por diversas vezes a ler os escritos de Verbena
Cordeiro. Em meio às leituras, participei de muitas oficinas e projetos literários
significativos, dentre eles destaco Lendo para outros, Leitura Compartilhada e Vamos
todos cirandar nossos livros?
Lendo para Outros era um projeto de leitura no qual alunos das séries iniciais
do ensino fundamental escolhiam livros e liam para alunos da educação infantil.
Nesse processo, além de refletirem sobre suas escolhas, tinham que pensar no
público leitor e garantir, com uma entonação e ritmos adequados, que o sentido do
texto fosse alcançado a partir da sua leitura. Isso demanda importantes estudos e
aprendizagens para o aluno leitor.
Leitura Compartilhada é um projeto de leitura permanente, do qual toda a
escola faz parte, somente os livros que eram lidos modificam-se, adequando-os à
turma. Esse é um bom exemplo do tratamento adequado que se pode dar aos livros
de literatura que a escola solicita que os pais comprem para seus filhos naquela
famosa lista de livros entregue aos pais no início de cada ano letivo. Os livros de
leitura compartilhada são lidos pela professora e acompanhados pelos alunos. Esse
momento é o propício para que as crianças tenham o professor como modelo de
leitor, aquele que saberá fazer as pausas necessárias, usar o tom, o ritmo ideal para
garantir o interesse na leitura e criar, dentre os alunos, a expectativa pelo que virá na
próxima página.
Vamos cirandar os nossos livros? é uma ideia minha, surgida em um momento
que a biblioteca da escola estava em reforma e os alunos ficaram sem ter como levar
para casa os livros, como era de costume fazer toda semana. Propus que cada um
trouxesse um livro seu querido para realizarmos uma troca por uma semana. Isso
cresceu tanto que passou para outras salas e passou para outros níveis de ensino. As
professoras começaram a fazer, a pedidos dos alunos, com eles a ciranda quando
estes iam para os anos finais do ensino fundamental e eu faço até hoje na faculdade.
Como sou docente universitária atualmente, tento desenvolver nos estudantes de
Pedagogia uma consciência da importância de se conhecer livros literários de
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qualidade, já que os professores em formação serão os responsáveis pela formação
leitora dos seus alunos.
Ao chegar à cidade de Amargosa, local que resido hoje, vendo que essas
mesmas práticas não eram adotadas e o tratamento dedicado aos livros didáticos era
descontextualizado, fragmentado e desmotivador, optei pela realização de oficinas
literárias e capacitação com as professoras da escola no sentido de que estas
repensassem e ampliassem a sua formação leitora literária. Também sugeri e efetivei
um Café literário, evento que passou a ser anual voltado para o estímulo da leitura, no
qual acontecia feira de livros, apresentação de peças teatrais adaptadas de livros e
encontros com escritores dentre outras atividades.
A busca pela temática da leitura literária e a formação do professor nessa
perspectiva persiste. Recentemente, desenvolvi, nas escolas do campo no município
de Amargosa, estudo intitulado: “Entrelaçando o sabor da literatura ao saber da cultura”,
no qual tenciono uma reflexão sobre a necessidade da formação literária do professor
para que este possa realizar as tessituras necessárias ente literatura e cultura
africana/afro brasileira, já que com a implementação da lei 10.639/03, que alterou o
texto da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), houve a instituição do ensino obrigatório da
História e Cultura Afro Brasileira nas escolas, em especial nas áreas de Educação
Artística, de Literatura e História Brasileira.
Hoje, como professora no Ensino Superior, no curso de Pedagogia da
Universidade Federal do Recôncavo Baiano, minhas inquietações voltam-se para a
necessidade de uma discussão mais efetiva entre os professores universitários sobre a
formação leitora literária dos seus alunos. A minha intenção agora é realizar novos
estudos e pesquisas que possam se reverter em propostas e projetos pedagógicos que
apontem novos caminhos e, assim, reafirmar a importância de se pensar em uma
universidade que forme profissionais também na perspectiva da literatura, já que a
formação literária dos seus futuros alunos será a eles atribuída.
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3. A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA: REPENSAR É PRECISO
Nas últimas décadas, as produções acadêmicas sobre a formação do leitor têm
aumentado de forma significativa. Isso se deve ao fortalecimento dos programas de
pós-graduação no país e também à inquestionável relevância da temática para a
melhoria da qualidade da educação brasileira. O leitor e sua interação com o texto
têm sido extremamente analisados pelos “olhares” de professores, psicólogos,
psicolinguistas, bibliotecários e uma infinidade de pesquisadores. Entretanto, a
despeito do aumento do número de estudos, o leitor que se pretende formar, aquele
que consegue interagir com o texto, dialogando com ele, continua sendo um desafio.
É inegável que a leitura é essencial ao desenvolvimento pleno do indivíduo,
possibilitando-lhe crescimento pessoal e profissional. Entretanto, mesmo as
instituições de ensino reconhecendo a importância da leitura, atribuindo-lhe,
inclusive, centralidade na formação de cidadãos mais críticos e conscientes do seu
papel na sociedade, não vêm conseguindo formar leitores competentes, que
reconhecem os diferentes usos e modos de leitura, como sinaliza Soares (2004), ao
problematizar sobre o verbo ler: “Ler, verbo transitivo, é um processo complexo e
multifacetado: depende da natureza, do tipo, do gênero daquilo que se lê, e depende
do objetivo que se tem ao ler”.
Uma análise sobre as práticas leitoras nas escolas principalmente as da rede
pública, onde estudam a maioria dos alunos, mostra a necessidade de se repensar a
formação de leitores. É preciso desenvolver um trabalho que possibilite aos
estudantes um “mergulhar” no texto, confundindo-se e entrelaçando-se com ele,
tecendo diálogos com o lido em busca de sentido, tal qual uma aranha, como aponta
Barthes (1977):
Texto quer dizer tecido; apesar de até agora ter sido tomado como um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido, [...] o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido- nessa textura- o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. Barthes (1977, p.82-83)
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Urge que a leitura literária na escola propicie uma relação de interação entre
texto e leitor, levando os alunos a estabelecer uma relação dialógica com o texto nessa
busca de produção de sentido. Segundo Kleiman (2002):
[...] o contexto escolar não favorece a delineação de objetivos específicos em relação a essa atividade. Nele a atividade de leitura é difusa e confusa, muitas vezes se constituindo apenas em um pretexto para cópias, resumos, análise sintática, e outras tarefas do ensino da língua. Kleiman (2002, p.30)
Para reverter este quadro, sabe-se que os caminhos que se apresentam estão
intimamente relacionados com a formação e atuação do professor. Entretanto, o
professor, aquele que é o mediador da leitura e da relação entre aluno e texto,
vivenciou uma trajetória na qual a sua própria formação não privilegiou a promoção
da relação dele com a literatura; muito pelo contrário, o texto literário que se conhece
nas escolas é tão fragmentado, limitado e escolarizado que o aluno já o lê achando
que terá que “prestar contas” do que leu. Paulino (2008) atenta para o fato de que nas
escolas os textos literários têm sido “(...) lidos e tratados como as notícias do
maremoto: quantas foram as vítimas, como sucedeu o evento, que países atingiu, por
que não houve dele previsão?”
Acreditando que a literatura não pode se prestar a esse papel, e que “a obra
literária é um objeto social” como afirma Lajolo (1986), objeto que nasce da relação
entre autor e leitor, novas pesquisas sobre a temática são fundamentais, já que
Paulino (2011), ao desenvolver estudos sobre a formação leitora literária dos
professores das séries iniciais do ensino fundamental, alerta que estes profissionais
quando começam a trabalhar nas escolas:
“(...) não têm facilidade de se apresentarem como modelos de leitores para seus alunos, o que constitui um dos agravantes do baixo nível de motivação para a inserção desses alunos no mundo da escrita, seja ela literária ou não”. (Paulino, 2011, p.2)
Diante do exposto, observa-se a necessidade da busca de caminhos que levem
a um novo pensar sobre a formação e atuação dos professores no sentido de formar
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alunos leitores nas escolas de Educação Básica. Sendo assim, a socialização de
experiências bem sucedidas, como a autobiografia aqui apresentada, pode ser uma
das alternativas necessárias na busca das muitas perguntas sobre essa temática que
permanecem sem respostas.
Considerações
Há uma grande preocupação envolvendo a formação de leitores na
contemporaneidade. Essa temática, que urge por novos estudos e socialização de
experiências, sabe-se que tem estreita relação com a formação literária dos
professores.
A maioria dos professores que está nas escolas desenvolvendo práticas leitoras
literárias com os estudantes não vivenciou, ao longo da sua formação, experiências
que os levassem a construir uma relação prazerosa com o texto literário. Inclusive nas
universidades, observa-se que a leitura literária não tem tido prestígio e é vista
muitas vezes como uma fuga aos textos acadêmicos, como se a literatura se situasse
no campo oposto ao do saber.
É preciso que o profissional que trabalha com crianças seja formado para ser
mediador da leitura e passe a ter uma atuação que leve seus alunos a se permitirem
uma relação com o texto no sentido de apreensão do seu sentido e não de mera
decifração de signos linguísticos sem a devida compreensão do significado. Mas,
para que isso aconteça, vale a pena ressaltar mais uma vez, será necessário repensar a
formação (inicial e continuada) dos professores na perspectiva da literatura,
pensando que assim novas propostas leitoras, como as apresentadas por mim nesse
texto, podem ser desenvolvidas nas escolas.
Referências
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HISTÓRIAS DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS: práticas de leitura na escola
Natalina Assis de Carvalho UNEB/PPGEduC/GRAFHO/FAPESB
Resumo: O presente trabalho tem a intenção de socializar um recorte da pesquisa intitulada “Histórias de professoras alfabetizadoras: práticas de leitura na escola”, de abordagem qualitativa, ancorada no método (auto)biográfico e que versa sobre as histórias de leitura de quatro professoras alfabetizadoras que desenvolvem a docência em uma escola pública no município de Catu, situado no Território de Identidade Litoral Norte e Agreste Baiano. Trata-se de uma atividade realizada no âmbito da disciplina “Abordagem (Auto)biográfica, Formação de Professores e de Leitores”, no contexto do Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC/UNEB. A intenção da pesquisa foi conhecer as histórias de leituras das referidas professoras, no intuito de entender como as mesmas se constituíram leitoras e professoras alfabetizadoras e como desenvolvem práticas de leitura na sala de aula, tendo em vista a formação de pequenos leitores. A entrevista narrativa foi o procedimento metodológico utilizado para a recolha das fontes, as quais retratam diferentes histórias de vida e de formação das colaboradoras da referida pesquisa. As narrativas contemplam histórias sobre as memórias de escola, os professores marcantes e a influência de familiares no processo de constituição de leitoras. As narrativas evidenciam práticas pedagógicas adjetivadas de tradicionais, as quais são sustentadas pelas orientações, atividades e textos contidos nos livros didáticos, concebidos com o principal recurso didático-pedagógico utilizado pelas professoras. Para todas as professoras, o “Cantinho de Leitura” constitui o único lugar destinado à leitura das crianças. Segundo as professoras, uma vez por semana, cada criança levava um livro emprestado para casa. Entretanto, não havia um retorno sobre a leitura realizada em casa. Assim, fica evidente, que o espaço reservado para o acesso aos livros de literatura infantil não era explorado cotidianamente pelas professoras, o que denota a falta de uma proposta de formação voltada para a prática de leitura na referida escola. Além disso, emergiram nas narrativas, elementos que sinalizam a necessidade de promover formação continuada de professores alfabetizadores, com intuito de discutir o processo de alfabetização e a formação da criança leitora. Deste modo, a pesquisa com as histórias de vida fez com que as professoras refletissem no que mais marcou, no seu processo de vida e formação, retomando as experiências a partir do que foram mais significativos. Foi com o olhar voltado para o professor leitor e sua inserção nas memórias que foram tecidas as construções com base no entendimento das subjetividades e experiências, pensando no processo de formação leitora. A pesquisa deu visibilidade as histórias de leitura e de professoras alfabetizadoras que cotidianamente enfrentam diversos desafios no devir da docência. Palavras-chave: História de vida; Profissão docente; Formação do professor leitor.
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APRESENTAÇÃO
O presente trabalho nasce no âmbito da disciplina “Abordagem
(Auto)biográfica, Formação de Professores e de Leitores”, no contexto do Programa
de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC/UNEB. Cujo
objetivo da pesquisa foi conhecer as histórias de leituras das referidas professoras, no
intuito de entender como as mesmas se constituíram leitoras e professoras
alfabetizadoras e como desenvolvem práticas de leitura na sala de aula, tendo em
vista a formação de pequenos leitores. O trabalho ganha força metodológica por se
tratar de um método de investigação-formação, mediante as narrativas das
professoras alfabetizadoras.
Considerando que a ação educativa deve ser um processo dinâmico em
contextos de relevância social, entendemos que os sujeitos envolvidos no processo de
alfabetização buscam desenvolver uma compreensão sobre a importância de ensinar,
aprender, ler, escrever e conhecer em situações que envolvem o uso da linguagem.
Desta forma, a educação tem como objetivo central possibilitar aos indivíduos seu
preparo para o exercício da cidadania, promovendo, assim, seu progresso pessoal e
social por meio de atividades individuais e coletivas. Manifestar-se por meio da
linguagem, atividade inerente ao ser humano, representa, primeiramente, sua
necessidade de projetar-se no mundo, de expressar suas capacidades e de
desenvolver-se socialmente, possibilitando também a outras oportunidades de ação.
Entretanto, diferentes relatórios brasileiros mencionam a intenção manifestada
pelos governos tanto federal como estadual melhorar a educação básica em nosso
país, e isso se dá através de muita dedicação. O atual fenômeno de alfabetização nos
países subdesenvolvidos, numa perspectiva mais ampla que explica boa parte dos
fracassos dos processos de ensino de alfabetização. Os alunos que não sabem ler nem
escrever, isto é que carecem dos conhecimentos necessários para ler e escrever ainda
é muito grande.
Entretanto, no mundo contemporâneo em que o uso do escrito do próprio
idioma e a sua leitura é considerado um direito básico do ser humano, muitos
governos realizam grandes esforços para erradicar o analfabetismo no Brasil. Não
sabendo que, este, se dá pelo fracasso escolar no ensino fundamental. O fracasso
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escolar pode ser um processo das pessoas que não tem o domínio do alfabeto ou de
algum outro sistema de leitura e formas para entender o que lêem. Diversos docentes
do ensino de Língua Portuguesa têm procurado contribuir, de forma intensa e
decisiva, na formulação de novas teorias que garantam práticas pedagógicas mais
eficazes e voltadas para uma maior integração entre a escola, os docentes, os
discentes e a sociedade como um todo. É preciso dá mais importância ao ensino de
português, pois, através da aprendizagem da leitura no ensino fundamental e de seu
entendimento, que se permitem muitos outros conhecimentos fluirem.
Este trabalho pretende abordar as narrativas de professoras alfabetizadoras
sobre seus processos dentro da docência. Sabemos que para lhe dar com a
alfabetização é preciso de professores capacitados, assim perece-se a necessidade de
uma formação continuada do professor.
No Brasil muitas escolas do ensino fundamental possuem baixos índices de
aprendizagem no ensino de português. Em que a leitura e a interpretação do que está
sendo lido é uma dificuldade para as crianças. Segundo Cagliari (2003) a leitura é a
extensão da escola na vida das pessoas. É uma herança maior do que qualquer
diploma. Muitos acham que lê e compreender um texto é um problema que o
professor de português deve resolver na educação das crianças, mas não é
necessariamente assim, cabem professores de outras matérias fazer essa interpretação
ensinando os alunos.
A educação é fundamental em todos os níveis, sabendo que muita das vezes se
há pouca importância na fase em que esta estar sendo alfabetizada. Embora, é na fase
de aquisição de escrita e leitura que se deve uma atenção maior do docente. A
resolução desse problema despertou-me curiosidade, pois um bom processo de
alfabetização pode ser um grande avanço na educação do nosso país.
HISTÓRIA DE VIDA
No presente texto trago a autobiografia como potencial de formação e método
de conhecimento, que busca no território da formação de professores, encontrar
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recursos que possam subsidiar o trabalho desenvolvido por estes professores, em
especial as alfabetizadoras. A abordagem autobiográfica é uma forma de
investigação e procura na formação de professores localizar elementos significativos
para os sujeitos seja ele pessoal ou profissional.
A autobiografia tem sido utilizada como metodologia de pesquisa e de
formação para professores e pesquisadores, como instrumento de produção e de
autoconhecimento. Emprega conceitos em diversos campos do conhecimento, seja a
história de vida, a narrativa de formação ou outros. No momento da atuação
acadêmica destes profissionais, estes encontram na prática autobiográfica a
probabilidade de reflexão sobre sua trajetória de vida (SILVA; COSTA, 2008). Assim,
analisar as narrativas é um processo de construção de conhecimento para a formação
dos professores.
As narrativas são muito importantes para o pesquisador pois, podem
propiciar uma melhor compreensão do professor e constituem um momento em que
se rememora o vivido, seja ele na experiência pessoal ou profissional. A escrita das
narrativas exige um esforço do sujeito na construção de suas escritas, resultando em
lembranças organizadas linearmente ou não.
No que diz respeito, as narrativas estas permitem que o sujeito passe por um
processo de busca das experiências no seu interior para chegar aos acontecimentos.
Além do mais, fornece estado de espírito, sensibilidade, pensamentos a propósito de
emoções, sentimentos, assim como, atribuições de valores (JOSSO, 2004). A partir do
momento em que se busca esses sentimentos durante as narrativas, entra-se no
processo de conhecimento para a própria formação.
Assim sendo, a narrativa autobiográfica conduz o sujeito à uma compreensão
sobre o passado, o presente e as questões experienciais. Entender as narrativas
autobiográficas e o processo de formação é fundamental para a aprendizagem do
professor. A partir da sua história, do percurso percorrido durante a profissão, o
conhecer e aprender com as experiências adquiridas ao longo da vida, revelam-se
processos de constantes formações, assim, as implicações sobre influências familiares
e a profissão são elementos para os sujeitos compreenderem o seu processo nas
experiências.
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A pesquisa com quatro professoras alfabetizadoras no município de Catu
Bahia, foi realizada com intuito de entender como eram desenvolvidas as como as
mesmas se constituíram leitoras e professoras alfabetizadoras e como desenvolvem
práticas de leitura na sala de aula, tendo em vista a formação de pequenos leitores. A
realização da pesquisa foi com quatro professoras alfabetizadoras de uma escola
pública municipal. No primeiro contato com as quatro professoras alfabetizadoras,
informou-se como seria realizada a pesquisa e o objetivo da pesquisa. Esclareceu-se
todo processo de trabalho com as entrevistas narrativas, elucidando que essa
metodologia de trabalho seria não só um método de investigação, mas de formação.
Com as histórias das professoras temos a narrativa de Maria que tem sob sua
orientação, um grupo de quinze alunos da alfabetização, com idade entre seis e sete
anos.
[...] Sou professora desde 24 anos, mas comecei a trabalhar com alfabetização tem dois anos. Meu interesse com a leitura sempre foi muito pouco, porque não tinha pais para incentivar o tempo todo, o livro era sempre um cansaço. Hoje vejo a importância de ler, trabalhar com alfabetização abriu meus horizontes. Meus alunos sempre foram bastante interessados, mas na verdade muitos têm muita dificuldade, e compreendi que é por conta das leituras não realizadas em casa. Sempre incentivo meus alunos, além das leituras exercícios, tenho o cantinho da leitura, onde levam sempre um livro a cada dia para casa. (Alfabetizadora Maria)
A professora mostra a sua experiência na docência, mas afirma que trabalha
com a alfabetização a pouco tempo. A fala é marcada pelo pouco interesse a leitura,
por conta do não incentivo dos pais. Trás a alfabetização como um processo que
resgata o interesse no processo leitor. A docente Maria consta a importância da
família no processo de leitura. E na sua fala, aponta o cantinho de leitura como um
fator importante para incentivo, mas parece que não há um retorno com os livros que
são lidos pelos alunos.
Na presente pesquisa, as quatro professoras que corroboraram não quiseram
se identificar nos seus nomes, assim foram usados nomes fictícios para substituir o
nome de cada professora. As narrativas, das professoras apontam:
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[...] A minha vida sempre muito difícil, mas de muitas vitórias. Ser professora era sempre uma vontade minha. E conseguir realizar, comecei a alfabetizar desde muito cedo. É muito lindo ensinar a ler e escrever. Complica tudo isso, porque os subsídios são poucos. Não temos muitos textos diferentes para a idade deles. E aí é uma confusão, porque tenho que me virar para fazer o trabalho que esta bastante precarizado. Não sei, mas é pouca atenção a nos professores alfabetizadores. O cantinho de leitura nem um projeto[...]. (Alfabetizadora Bete) A profissão coloca qualquer pessoa a repensar o ser e estar na sala de aula. E estar no curso de pedagogia me fez amar o estágio com alfabetização. Depois, nossa fiquei apreensiva para trabalhar com a alfabetização, como moro em Catu, tive essa oportunidade de trabalhar aqui na prefeitura. É difícil as vezes, porque não há uma formação continuada voltada a alfabetização, e assim fica complicado as vezes. Temos o cantinho de leitura, mas fica faltando algo. A formação é importante para trabalharmos, e as dúvidas sempre surgem. (alfabetizadora Carla)
Com o pincelar das vozes, a alfabetizadora Bete, demonstra as dificuldades no
decorrer de suas vidas. Com efeito as lutas concede que todo este esforço valeu em
vitórias. O processo de formação acontece quando o sujeito tem a oportunidade de
conhecer as suas interações e subjetividades. A reflexão da vida pessoal, profissional
e social remete o sujeito a questionar suas aprendizagens e compreender sua
trajetória autoformativa. A docente Bete coloca emoção quando vai falar do ensino
referente a leitura e escrita. Assim, expõe dificuldades na sala de aula, e mais um
trabalho com o cantinho de leitura com poucas inferências.
A profissão coloca qualquer pessoa a repensar o ser e estar na sala de aula. E estar no curso de pedagogia me fez amar o estágio com alfabetização. Depois, nossa fiquei apreensiva para trabalhar com a alfabetização, como moro em Catu, tive essa oportunidade de trabalhar aqui na prefeitura. É difícil as vezes, porque não há uma formação continuada voltada a alfabetização, e assim fica complicado as vezes. Temos o cantinho de leitura, mas fica faltando algo. A formação é importante para trabalharmos, e as dúvidas sempre surgem. (alfabetizadora Carla)
Na narrativa da alfabetizadora Carla, a professora passa por um momento de
rememoração da profissão docente. Segundo Josso (2004), a formação como
aprendente é um agente para se pensar nos processos de temporalidade, experiência,
aprendizagem, saber-fazer, subjetividade e identidade. A narrativa de Carla fala do
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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seu processo de constituição de ser professora alfabetizadora. Além disso, emergiram
nas narrativas, elementos que sinalizam a necessidade de promover formação
continuada de professores alfabetizadores. Ainda Carla diz,
Desde pequena, via a minha mãe indo pra escola da aula. Decidi ser professora. Certamente, foi uma decisão certa do que queria, porque gostava muito da ideia de ser professora. (alfabetizadora Carla)
Ainda assim, percebemos a influência familiar na escolha da profissão. E toma
a escolha enquanto uma decisão correta e certa de ser professora.
Segundo Souza (2006), adota-se o método autobiográfico e as narrativas de formação
como movimento de investigação-formação, seja na formação inicial ou continuada
de professores. A abordagem autobiográfica externaliza a escrita da vida e os faz
entender a experiência adquirida ao longo desta. A abordagem (auto)biográfica pode
ser entendida como uma forma de mediar estratégias que permitam ao professor
tomar consciência de suas responsabilidades pelo processo de sua formação, através
da apropriação retrospectiva do seu percurso de vida. E, nesse sentido, quando eles
tentam justificar a opção pela profissão, retomam elementos que nos parecem
essenciais à construção transacional da identidade docente. (PASSEGI, 2006, p.262)
O processo de lembranças propicia ao professor analisar a sua prática na
profissão docente, a responsabilidade que exerce perante a sua profissão. A
abordagem autobiográfica auxilia o docente a criar formas de entender o seu
percurso e, é na profissão docente, que se descobrem enquanto profissionais. A
memória é constituída pelas experiências passadas e com planos do futuro, desta
forma, no ato de narrar volta-se ao passado de uma história até questionar o
presente. Os questionamentos do sujeito decorrem das aprendizagens passadas e, a
partir destas, buscam resposta para o futuro, estão sempre em busca de algo e se
questionando.
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PROFISSÃO DOCENTE
A profissão docente no bojo de alguns problemas atuais deve ser discutida,
para tentar entender o trabalho que os professores alfabetizadores vêm
desenvolvendo no seu dia-a-dia. O professor alfabetizador lida com muitas questões
na sua profissão, e devem ser percebida para futuras respostas. Segundo Veiga “A
profissão é uma palavra de construção social. É uma realidade dinâmica e
contingente calcada em ações coletivas. É produzida pelas ações dos atores principais
no caso, os docentes.” (2008, p.14). Entendendo o que é a docência, este é o trabalho
realizado pelos professores na sala de aula. Estes acabam realizando o ensino que
ultrapassa muitas outras funções. A docência envolve uma construção do lugar, das
pessoas e das ações. Além do mais, a realização desse trabalho pode ser individual
ou coletiva.
Segundo Nóvoa (1999, p, 15) “a função docente desenvolveu-se de forma
subsidiária não especializada, constituindo uma ocupação secundária de religiosos
ou leigos das mais diversas origens”. Ainda, segundo o autor durante anos imputou-
se a profissão docente a ação dos sistemas estatais do ensino. Nesse caso, a
intervenção do Estado vai provocar uma homogeneização bem como uma
hierarquização à escala nacional, de todos estes grupos: é o enquadramento estatal
que institui os professores como corpo profissional, e não uma concepção corporativa
do ofício. Devido a estas questões, Nóvoa diz que:
a partir do final do século XVIII, não é permitido ensinar sem uma licença ou autorização do Estado, a qual é concedida na sequência de um exame que pode ser requerido pelos indivíduos que preencham um certo número de condições (habilitações, idade, comportamento moral. (1999, p, 17)
Com efeito, podemos perceber um avanço na regularização da profissão
docente, onde existem condições para ser professor. Para Nóvoa (1999) a criação
desta autorização é levada a profissionalização do trabalho docente, além do mais
facilita a definição de um perfil de competências técnicas, que servirá para delinear a
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carreira docente. O percurso profissional de professores é traçado por diversas
formas, Nóvoa afirma que,
As dinâmicas de afirmação e de reconhecimento social dos professores apóiam-se fortemente na consistência deste título, que ilustra o apoio do Estado ao desenvolvimento da profissão docente (e vice-versa). Os professores são funcionários, mas de um tipo particular. (NÓVOA, 1999, p, 17)
Fica marcado e estabelecido eu o Estado mantém um papel importante no
desenvolvimento da profissão docente. Estes possuem uma carreira, onde é
construída e marcada pela regularização. Para Nóvoa (1999, p, 16) “o trabalho
docente diferencia-se como “conjunto de práticas tornando-se assunto de
especialistas, que são chamadas a consagrar-lhe mais tempo e energia”.
É possível entrever um certo desconforto, quando se trata da profissão docente
na sociedade capitalista. Existem algumas questões que são desafios no trabalho do
professor. Tem um ponto que é a ressignificação da profissão docente, onde caberia a
formação de professores da conta destas questões atuais. O homem através de sua
práxis compreende as relações existentes no processo criativo do trabalho. Ou seja, o
modo tecnicista do trabalho não dá mais conta, de dizer que a práxis humana, recai
com uma ação apenas técnica, mas sim cheia de subjetividades. O trabalho é manual,
mas perpassa pelas subjetividades do indivíduo. Por isso, a profissão docente no
contexto capitalista, sofre com elementos que advém de questões postas dentro da
realidade.
O que esta instituído pela escola, é algo que o professor dá conta de maneira
mais passiva. No entanto, no atual contexto o instituinte sempre se coloca dentro da
profissão docente. Assim, o professor deverá ter conhecimentos para manuseios das
questões que irão aparecer no contexto escolar. Nesse sentido, em se tratando do
contexto da sala de aula este também é atingido pelo capitalismo e tecnologias, por
isso o instituinte adentrado nos espaços, mesmo com dificuldades, devem ser
manuseados e com atenção. A formação de professores ainda é trabalhada de forma
muito tradicional e precisa de suporte, por isso,
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...a formação de professores, as instituições educacionais, não representam o único espaço de saber, uma vez que co-existem, múltiplos espaços como a mídia, as empresas, os movimentos sociais, as Organizações Não Governamentais (ONGs), os sindicatos, as comunidades virtuais, os blogs, o grupo de amigos, as associações entre outros espaços geradores de experiência e saberes. (Hetkoswski, 2009, p, 245)
O contexto contemporâneo demonstra a necessidade de processos formativos
reflexivos e em vários espaços. Os espaços formativos muitas vezes são medidos por
serem instituições escolares ou de universidades. Mas, se partimos do ponto de vista
da experiência, constatamos que toda experiência é formativa, seja essa no trabalho,
nas ONGs, nas comunidades, na rua e nos mais diversos lugares. O saber adquirido
em outros espaços não acadêmicos são lugares de formação. Chamo a atenção, com
relação aos percursos formativos, que vamos tendo dentro da nossa vida pessoal e
profissional.
FORMAÇÃO DO PROFESSOR LEITOR
Para Veiga (2008) a formação de professores é o ato de formar, educar o
profissional. Esta vem ao longo do tempo, se desenvolve em momentos individuais
ou coletivos, no sentido de construir saberes adquiridos pela experiência ou pelas
aprendizagens acontece de forma gradativa, na qual muitos elementos podem estar
envolvidos.
A formação pode ajudar o docente a encontrar respostas às dificuldades
encontradas do dia-a-dia e é um processo inicial e contínuo. Para Mizukami,
[...] a formação inicial sozinha não dá conta de toda a tarefa de formar
professores, como querem os adeptos da racionalidade técnica,
também é verdade que ocupa um lugar muito importante no
conjunto do processo total dessa formação, se encarada na direção da
racionalidade prática. (2002, p.23).
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Nota-se assim que a formação inicial é um ponto de partida para o professor e
esta não será suficiente para resolver todos os assuntos que enfrentará no decorrer de
sua atuação, por isso, a formação continuada é o que dará suporte ao professor.
Ao longo dos anos, vem se questionando os cursos de formação continuada
fragmentados e de pouca duração, como um meio efetivo para alteração da prática
pedagógica, Mizukami (2002, p.71) diz a esse respeito: “Esses cursos, quando muito,
fornecem informações que, algumas vezes, alteram apenas o discurso dos professores
e pouco contribuem para uma mudança efetiva”. Essa é uma perspectiva clássica da
formação continuada de professores, que é vista como um processo de reciclagem,
uma atualização. Segundo Candau (1996) há uma reciclagem dos professores quando
recebem cursos de aperfeiçoamento oferecidos pelas universidades ou pela secretaria
de educação e/ou quando participam de simpósios, congressos e encontros.
Contrária a essa visão clássica, pesquisas sobre uma nova concepção de
formação continuada foram desenvolvidas. Para Candau (1996) todo processo de
formação continuada deve ter como fundamental a valorização do saber docente e a
experiência que este possui na escola. Sendo assim, o professor deve apropriar-se de
seu processo de formação e fazer um processo de reflexão sobre a sua história de
vida seja numa dimensão pessoal ou profissional. Candau afirma ainda
A formação continuada não pode ser como um processo de
acumulação (de cursos, palestras, seminários etc., de
conhecimentos ou de técnicas), mas sim como um trabalho de
reflexividade crítica sobre as práticas de (re)construção
permanente de uma identidade pessoal e profissional, em
interação mútua. E é nessa perspectiva que a renovação da
formação continuada vem procurando caminhos novos de
desenvolvimento. (ibidem, p. 150)
A reflexão sobre saberes que estão se configurando na docência é importante
para uma construção da identidade profissional do professor. Segundo Mizukami
(2002) com o novo perfil do professor, o conceito de formação docente é relacionado
ao de aprendizagem permanente, onde se consideram os saberes, as competências
docentes, como decorrência da formação profissional, das aprendizagens ao longo da
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vida. O processo de construção do professor se desenvolve a partir da prática
pedagógica, pelo compromisso com o seu trabalho, através de uma formação
contínua e mediadora de conhecimentos. O que acrescenta, também, nesse processo
de construção de identidade são as experiências vividas, as relações dos professores
entre si e com outras pessoas.
Considerações
O estudo realizado a partir das Histórias de professoras alfabetizadoras: práticas de
leitura na escola, comprovou, dentre outras coisas, que o modo como estava sendo
alfabetizado os alunos, caia em moldes tradicionais. A falta de retorno do cantinho
de leitura, como apenas, mas um elemento a ser posto na sala de aula.
Ainda que ao professor, a leitura se apresente como uma forma de ser que se
enraíza e se fortalece ao longo da sua história profissional, podemos perceber, pelos
dados da narrativa aqui apresentada, que existem vários condicionantes agindo
negativamente na constituição de leitor. O retrato do professor alfabetizador é, sem
dúvida, de muitas dificuldades por conta de uma formação continuada,
considerando a necessidade de projetar aos estudantes o entusiasmo pela escrita e
leitura.
Não podemos suceder no engodo determinista, achando que o professor não
tem saída para o dilema acima exposto. Entretanto, considerando a aprendizagem
constante do mundo, existe sempre uma porta aberta de que o professor desenvolva
competências de leitura, mesmo aquela que já deveria ter dominado em etapas
anteriores de sua vida. Dessa forma, seja pelo esforço pessoal, seja pela implantação
de políticas de formação continuada, voltadas ao incremento do repertório cultural
dos agentes da educação formal, o professor pode e deve caminhar no sentido de se
tornar um leitor capaz de entender os seus alunos.
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INFLUÊNCIAS, REFERÊNCIAS E INTERTEXTOS POÉTICOS:
aparições de Elizabeth Bishop em Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas
Raquel Machado Galvão8 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana;
e-mail: [email protected]
Resumo: Este ensaio propõe uma abordagem acerca das influências, referências e relações intertextuais da poeta americana Elizabeth Bishop presentes nas poesias de Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas. A história de cada uma das escritoras aparece enlaçada nas suas construções poéticas, assim como a presença direta e indireta de diversos escritores em um texto poético. Seja por incorporação, admiração ou simples influência, um poeta traz no seu labor de construção e pulsão lírica, palavras, expressões, citações e informações que remetem direta ou indiretamente a outros escritores. Essas referências podem se apresentar em diversos formatos. Às vezes, como uma homenagem assumida, outras como cópia indireta. Mas em todas elas presente o que nos estudos literários se chama de intertexto. Entre percursos, leituras, referências e influências – alusões e citações - e diante do texto e do contexto do ensaio três poetas (por ironia e coincidência, mulheres): Elizabeth Bishop, Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas. Cada uma delas poetizando seu tempo e a sua geração, sem perder o elo com o seus lócus vivendi e com os seus percussores de escrita. Também apresentaram, nos seus poemas, os limites de produção característicos da vida moderna – labirintos, incertezas, perdas e fragmentos. O auge produtivo das três poetas encontram-se em épocas diferentes. A primeira, Elizabeth Bishop, produziu de forma constante entre as décadas de 40 e 70 do século XX. Ana Cristina Cesar, por sua vez, teve o seu auge literário no final da década de 70 e início da década de 80, um pouco antes do salto inesperado que a levou ao suicídio em 1983. Angélica Freitas já é uma poeta do século XXI: publicou o seu primeiro livro de poesias no ano de 2007. A partir da produção de Elizabeth Bishop é possível perceber como ela influenciou, foi referenciada e “apareceu” nos textos das duas outras autoras que sucederam a sua obra. O que torna-se impossível é uma dissociação da história de vida com a história literária de cada uma delas, para assim, linkar as suas vivências sociais e suas influências com os indícios de experiência que aparecem nas suas poesias. As ideias apresentadas consideram estudos e pesquisas realizados por Julia Kristeva, T.S. Eliot, Roland Barthes, Leonor Arfuch, Carlos Alberto Messeder Pereira, Maria Lucia de Barros Camargo, entre outros. A interpretação aqui exposta desemboca em uma discussão sobre a importância de Elizabeth Bishop para os escritores a seguiram, com uma referência de escrita e de trabalho árduo com a linguagem. Em comum, as três trouxeram
8 Mestranda do programa de Pós-graduação em Estudos Literários (PROGEL) da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS). Especialista em Gestão Pública pela Universidade do Estado da
Bahia (UNEB). Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES).
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fragmentos e temáticas características de seus tempos. Romperam e impregnaram a sua escrita com o suor do outro, de forma intertextual.
Palavras-chave: Ana Cristina Cesar; Angélica Freitas; Elizabeth Bishop; Intertexto; Poesia.
Cada texto poético está entremeado com outros textos poéticos. Ele não está sozinho. É uma rede sem fim. É o que a gente chama de intertextualidade. (CESAR, 1999, p. 267)
1. Introdução
Seja por incorporação, admiração ou simples influência, um poeta traz no seu
labor de construção e pulsão lírica, palavras, expressões, citações e informações que
remetem direta ou indiretamente a outros escritores.
Essas referências podem se apresentar em diversos formatos. Às vezes, como
uma homenagem assumida, outras como cópia indireta. Mas em todas elas está
presente o que nos estudos literários se chama de intertexto.
Julia Kristeva, uma das estudiosas que propôs a noção de intertextualidade
para os estudos literários, influenciada por Mikhail Bakhtin, trouxe o pensamento
que a escrita literária traz textos anteriores ao seu, implícita ou explicitamente. Para
ela, “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto”. (KRISTEVA, 1979, p. 68)
Para T.S. Eliot, o poeta utiliza emoções e influências para trabalhá-las em um
nível poético elevado:
A mente do poeta é de fato um receptáculo destinado a capturar e armazenar um sem-número de sentimentos, frases, imagens, que ali permanecem até que todas as partículas capazes de se unir para formar um novo composto estejam presentes juntas. (ELIOT, 1989, p. 44)
Entre percursos, leituras, referências e influências – alusões e citações - e
diante do texto e do contexto do ensaio três poetas (por ironia e coincidência,
mulheres): Elizabeth Bishop, Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas. Cada uma delas
poetizando seu tempo e a sua geração, sem perder o elo com o seus locus vivendi e
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com os seus percussores de escrita. Também apresentaram, nos seus poemas, os
limites de produção característicos da vida moderna – labirintos, incertezas, perdas e
fragmentos.
O auge produtivo das três poetas encontra-se em épocas diferentes. A
primeira, Elizabeth Bishop, produziu de forma constante entre as décadas de 40 e 70
do século XX. Ana Cristina Cesar, por sua vez, teve o seu auge literário no final da
década de 70 e início da década de 80, um pouco antes do salto inesperado que a
levou ao suicídio em 1983. Angélica Freitas já é uma poeta do século XXI: publicou o
seu primeiro livro de poesias no ano de 2007.
A partir da produção de Elizabeth Bishop é possível perceber como ela
influenciou, foi referenciada e “apareceu” nos textos das duas outras autoras que
sucederam a sua obra. Fenômeno que Roland Barthes indica e descreve em O Rumor
da Língua:
A leitura é condutora do Desejo de escrever (estamos certos agora de que há um gozo da escritura, se bem que ainda nos seja muito enigmático). Não é que desejemos escrever como o autor cuja leitura nos agrada; o que desejamos é apenas o desejo que o escritor teve de escrever, ou ainda: desejamos o desejo que o autor teve do leitor enquanto escrevia, desejamos o ame-me que está em toda escritura. (BARTHES, 2004, p. 39)
O que torna-se impossível é uma dissociação da história de vida com a
história literária de cada uma delas, para assim, linkar as suas vivências sociais e suas
influências com os indícios de experiência que aparecem nas suas poesias. Como
Leonor Arfuch traz nas suas reflexões sobre o espaço biográfico na literatura:
Não há texto possível fora de um contexto, inclusive, é esse último que permite e autoriza a legibilidade, no sentido que refere Derrida; e também não há um contexto possível que sature o texto e clausure a sua potencialidade de deslizamento para outras instâncias da significação. (ARFUCH, 2010, p. 132)
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2. Indícios de Bishop em Bishop
Elizabeth Bishop (1911-1979) foi uma escritora americana que nasceu em
Worcester-EUA. Estudou literatura inglesa em Vassar e viajou por vários países
como Canadá, França, Inglaterra, Marrocos e Espanha. Recebeu diversos prêmios por
sua produção poética, entre eles, o Poet Laureate of the United States (1949-1950), o
Pulitzer (1956), o National Book (1970) e o Neustadt International Prize for Literature
(1976). Lecionou em várias universidades americanas, como a Universidade de
Washington, em Harvard, na Universidade de Nova York e no Instituto de
Tecnologia de Massachussetts.
Em 1951, empreendeu uma viagem pela América do Sul, com uma parada no
Brasil, onde, por ironia do destino, permaneceu até 1966 (por conta de uma alergia a
Cajus perdeu o embarque no navio em Santos). Passou a viver na Fazenda
Samambaia, perto de Petrópolis, propriedade da arquiteta Lota de Macedo Soares,
com quem foi casada durante o tempo que permaneceu no país. Nesse período, teve
passagens esporádicas pelo Rio de Janeiro e Ouro Preto, e excursionou por outras
regiões, tendo passado pela Amazônia e navegado o São Francisco. Tanto o Brasil,
quanto a sua relação com Lota, estão presentes na sua vasta produção poética. É o
que verifica Paulo Henriques Britto, principal tradutor de Bishop para o português e
organizador do livro Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop:
O que Bishop deixa claro, tanto nos poemas de amor como nas cartas escritas nos anos 1950, é que sua paixão pelo Brasil é sempre mediada pela paixão por Lota. Ou seja, é só na medida em que lhe é possível identificar a terra com a mulher amada que Bishop pode amar o Brasil. (BISHOP, 2012, p. 37)
Suas principais referências literárias foram Marianne Moore - com quem se
correspondia com frequência e que a ajudou a publicar seu primeiro livro, T. S. Eliot,
Ezra Pound e Wallace Stevens. Foi também influenciada por poetas da América do
Sul e Central, como o mexicano Octávio Paz, e os brasileiros João Cabral de Melo
Neto e Carlos Drummond de Andrade, os quais traduziu para o inglês.
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Na sua produção poética destacam-se as seguintes publicações: North & South
(1946), A Cold Spring (1955), Questions of Travel (1965), Uncollected Work (1969) e
Geography III (1976)9. Nesse último, está presente um dos mais celebrados poemas de
Bishop, One Art ou A Arte de Perder (tradução). O texto traz algumas referências
autobiográficas e reflete sobre o sentido da arte, da vida e das perdas:
A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. Depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subsequente da viagem não feita. Nada disso é sério. Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério. Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios, e mais um continente. tenho saudade deles. Mas não é nada sério. — Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. (BISHOP, 2012, p. 363)
Ao tratar com leveza as problemáticas encontradas nos interstícios da vida, e
já dotada de uma maturidade de escrita e de reflexão, a poeta remete ao “continente”
que perdeu, a América do Sul, aos “dois rios”, que remete ao Amazonas e ao São
Francisco, pelos quais ela passou nos anos de Brasil, as “duas cidades lindas”, o Rio
de Janeiro e Ouro Preto, e as “três casas excelentes” nas quais se dividia no Brasil
(Rio de Janeiro, Ouro Preto e Petrópolis).
9 Norte & Sul (1946), Uma Primavera Fria (1955), Questões de Viagem (1965), Obras Dispersas (1969) e
Geografia III (1979)
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3. Ana Cristina Cesar e Bishop em Ana Cristina Cesar
Ana Cristina Cesar (1953-1983) foi uma escritora nascida no Rio de Janeiro em
uma família de classe média alta e envolvida com a área de literatura. Demonstrou,
desde muito nova, habilidade com as palavras. Em depoimento para Carlos Alberto
Messeder Pereira, em Retrato de Época: poesia marginal anos 70, lançado pela Funarte
em 1981, ela fala um pouco desse background familiar:
“eu fui uma ‘menina prodígio’. Esse gênero, assim, aos seis anos de idade faz um poema e papai e mamãe acham ótimo... na escola, as professoras achavam um sucesso. Então literatura assim pra mim começou... mamãe era professora de literatura, aqui (em casa) era sempre (local de) encontro de intelectuais, papai transava na Civilização Brasileira, não sei o que. Então tem esse lance assim de família de intelectual que você... estimulava e publicava nas revistinhas de igreja, ou alguém conhecia alguém na Tribuna da Imprensa... botava no mural da escola... Aí quando eu cresci, essa coisa me incomodou muito...” (PEREIRA, 1981, p.190-191)
Quando cresceu, foi literalmente e na área literária. A menina que ditava
poemas para a mãe, se transformou em uma jovem com agitada vida acadêmica,
cursou Letras na PUC-RJ (1971-1975), obteve o título de mestre em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o estudo da representação da literatura
no cinema - “Literatura não é documento” (1978-1979), financiado pela Funarte, e em
Master of Arts pela Universidade de Essex (1979-1981), com uma tradução comentada
do conto Bliss, de Katherine Mansfield. No que tange a produção literária, esteve
fortemente envolvida na produção literária dos anos 70.
Publicou três livros de forma alternativa: Cenas de Abril (1979), Correspondência
Completa (1979) e Luvas de Pelica (1980). Eles, contudo, se diferenciavam um pouco do
restante da produção marginal por alguns sinais de requinte e capricho, típicos da
escritora, assim como pelos recursos de construção poética utilizados. Participou,
ainda na década de 70, da coletânea 26 Poetas Hoje (1976) organizada por Heloísa
Buarque de Holanda. Em 1982, publicou por uma editora comercial, a Brasiliense, o
livro A teus pés, que incluiu os três livros anteriores, além do inédito A teus pés. A
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partir daí, apenas livros póstumos, a maioria organizados pela família Cesar e pelo
escritor Armando Freitas Filho, a quem Ana Cristina deixou a responsabilidade de
cuidar do seu material pós morte: Inéditos e Dispersos (1985), Escritos na Inglaterra
(1988), Escritos no Rio (1993) e Correspondência Incompleta (1999). Pelo Instituto
Moreira Sales, Antigos e Soltos (2008), organizado por uma das principais
pesquisadoras de Ana Cristina Cesar do Brasil, Viviana Bosi.
Essa sobrevida da obra de Ana Cristina Cesar deve-se a inúmeros fatores,
principalmente à originalidade, ao que ela traz de novo. Da mesma forma que
produziu uma literatura de compreensão menos direta, e, consequentemente, mais
difícil, ela traz textos com montagens de coisas reais, cotidianas, brinca com
correspondências, biografias, diários e documentos. É uma literatura também
marcada pela influência de outros autores. Somado ao trabalho de tradução de
poetas como Sylvia Plath, Mariane Moore, Anthony Barnet, Emily Dickinson e
William Carlos Williams, ela apresenta na sua produção poética um estilo que é
próprio, mas também dos outros.
No livro A teus pés apresenta, ao final, um Índice Onomástico, no qual traz 23
nomes, entre escritores consagrados ou amigos, que estão diretamente ligados à sua
produção ou influenciaram a sua escrita10. Elizabeth Bishop está incluída entre esses
nomes citados. Em uma das poesias presentes no livro aparece uma alusão e
referencia direta a Bishop, no poema Travelling:
Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar. Guardo os papéis todos que sobraram. Confirmo para mim a solidez dos cadeados. Nunca mais te disse uma palavra. Do alto da serra de Petrópolis, com um chapéu de ponta e um regador, Elizabeth reconfirma, “Perder
10 Índice Onomástico de A teus pés: Francisco Alvim, Eudoro Augusto, Manuel Bandeira, Elizabeth
Bishop, Heloísa Buarque, Angela Carneiro, Emily Dickinson, Grazyna Drabik, Carlos Drummond,
Armando Freitas, Billie Holliday, James Joyce, Mary Kleinman, Katherine Mansfield, Cecília Meireles,
Angela Melim, Murilo Mendes, Katia Muricy, Octávio Paz, Vera Pedrosa, Jean Rhys, Gertrude Stein,
Walt Whitman.
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É mais fácil que se pensa”. Rasgo os papéis todos que sobraram. [...] (CESAR, 1993, p 44)
Imerso no próprio limite de armadilhas intertextuais que Ana Cristina propõe,
a poesia começa em um tom confessional, que se encontra a uma referência direta à
vida de Elizabeth Bishop em Petrópolis, algo bem biográfico no trecho: “Do alto da
serra de Petrópolis, com um chapéu de ponta e um regador, Elizabeth reconfirmava”. Em
seguida, uma referência direta ao poema One Art, com o trecho “Perder é mais fácil que
se pensa”, de encontro à tradução “A arte de perder não é nenhum mistério”.
Maria Lúcia de Barros Camargo, na tese de doutorado sobre Ana Cristina
Cesar, publicada no livro Atrás dos Olhos Pardos: Uma Leitura da Poesia de Ana Cristina
Cesar, diz que:
É evidente que toda obra literária tem relação com a tradição que a antecede, seja por influências, seja por adesão, por mimese, por negação, por resistência, por releitura ou recuperação [...] Mas em Ana Cristina a relação com a tradição literária não vai se limitar a influências, nem será apenas prática epigonal da modernidade. É processo construtivo da obra, conscientemente planejado e elaborado: paródias, pastiches, apropriação de versos, alusões e referências diretas a autores amados, a amigos e outras artes. (CAMARGO, 2003, p. 119)
Ana Cesar aprimorava, assim, seu método poético com a aproximação a
outros autores, observando traços, esquemas da escrita e imagens presentes nos
textos.
4. Angélica Freitas, liz e lota
Angélica Freitas (1973-) é uma escritora em atividade que exerce o papel de
poeta e tradutora, semelhante ao das já citadas autoras. Nasceu em Pelotas-RS, tendo
cursado Comunicação Social da UFRGS e atuado como repórter dos jornais O Estado
de São Paulo e Revista Informática Hoje. Já morou em países como Holanda, Bolívia e
Argentina.
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Em 2007, publicou seu primeiro livro, Rilke Shake, já traduzido para inglês,
francês, espanhol e alemão. Fez parte de outras coletâneas nacionais e internacionais,
até lançar o seu segundo livro em 2012, chamado O Útero é do Tamanho de um Punho.
A escritora participa de uma geração que ainda não foi batizada pela crítica
literária. Contudo, assim como Ana Cristina Cesar, mistura referências pop com
nome de escritores consagrados. Em Rilke Shake referencia Gertrude Stein, Djuna
Barnes, Mariane Moore, Ezra Pound, Rilke, Mallarmé, Shakespeare, John Keats, entre
outros.
Elizabeth Bishop aparece em Angélica Freitas no poema liz e lota, também
presente em Rilke Shake:
liz e lota imagino a bishop entre cajus toda inchada e jururu da janela o rio a seu lado a lota, com um conta-gotas. ‘but you must stay. forget that ship’, she said. ao que bishop riu, olho esquerdo sumiu, afundou na pálpebra. a americana dormiu em alfa. e no seu sono, tão geográfica sonhou com a carioca rica e com a vastidão da américa. (FREITAS, 2007, p.29)
Angélica Freitas traz referências à vida pessoal de Elizabeth Bishop, fazendo
alusão a uma forte alergia que a manteve no Brasil e possibilitou a sua aproximação
com Lota Macedo. Trata com humor a situação de liz e lota, o início da paixão e o
sonho da escritora – uma tranquilidade financeira para escrever. Quando diz “em seu
sonho tão geográfica”, Freitas remete ao livro Geografic III, e ao poema One Art, ao falar
do continente no trecho “e com a vastidão da américa”.
Segundo Hilary Kaplan, tradutora de Rilke Shake para o inglês, a poesia de
Angélica Freitas: “apresenta um shake de linguagens e palavras com a tradição
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canônica e um toque de prazer, batidas no liquidificador irônico da pós-
modernidade”11.
Lota Macedo, volta a aparecer de forma en passant, em outra poesia de
Angélica Freitas presente em Rilke Shake. Um pequeno trecho traz informações
indiretas sobre o fato da frequente conduta da arquiteta de andar armada.
[...] olhei praquele espelho o suficiente pra sem relógio caro fazer pose de lota e sem pistola automática pose do anjo do charlie então eu disse: “é, gata” rápida peguei as chaves saí num pulo, só fui rir no elevador.” (FREITAS, 2007, p. 58)
Embora Angélica Freitas não cite Ana Cristina Cesar diretamente, ela também
tem nessa poeta uma inspiração para a sua escrita, como colocou em uma recente
entrevista concedida para a jornalista Raquel Cozer da Folha de São Paulo:
“Esse estilo inspirou mais de uma geração de poetas. Um dos nomes mais conhecidos no gênero hoje, a gaúcha Angélica Freitas, 40, credita a leitura de Ana C. seu interesse por escrever poesia: ‘eu a li aos 15 anos. Até então, tinha escrito uns versinhos. Os poemas me causaram grande estranhamento. Muita coisa ali era um mistério. Mas um mistério que mostrou que poesia também pode ser investigação, ela diz.” (COSER, 2013, online)
5. Considerações Finais: Aparições do outro no outro
Mais que influência, Elizabeth Bishop foi, para as duas poetas que a
sucederam, uma referência de escrita e de trabalho árduo com a linguagem. Em
11 Tradução da autora: “poetry approached as a shake of languages, words, canonical tradition and a
measure of delight, whirred in postmodernity’s ironic blender.” (KAPLAN, Hilary. Translating
Poems. Em: <
http://www.digitalartifactmagazine.com/issue2/Translating_Poems_from_Angelica_Freitas_
Rilke_shake>. Acesso em 22 de agosto de 2013)
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comum, as três trouxeram fragmentos e temáticas características de seus tempos.
Romperam e impregnaram a sua escrita com o suor do outro, onde encontram
Barthes:
“A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos, na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo”. (BARTHES, 1981, p. 64)
O que também aparece de similaridade entre as poetas é o desprendimento ao
trazer temáticas como a sexualidade, tratando as relações humanas com
naturalidade. Destemidas, mesclam vida e obra com o trabalho literário árduo e
constante. Independente de serem mulheres, figuram – de forma consagrada ou não
– entre os grandes escritores. Reconhecidas, reconhecem o poder e a delicadeza do
poeta diante do desafio de tratar sobre temáticas universais. Poeta esse que estuda,
cria, recria, se espelha e “não vê mistério na arte de perder”. Afinal de contas, “nada é
sério”.
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LEITURAS E LEITORES: o papel do Núcleo de Leitura Multimeios da UEFS na formação
de leitores
Sônia Moreira Coutinho Professora Assistente do DLA - UEFS [email protected]
Rita de Cassia Brêda M. Lima
Professora Assistente do DEDU - UEFS [email protected]
Maria Helena da Rocha Besnosik Professora Titular do DEDU - UEFS [email protected]
Resumo: Acreditar no poder transformador da leitura, de uma leitura que se quer ampla, espontânea, prazerosa e multimodal é exatamente o propósito que o Núcleo de Leitura Multimeios da Universidade Estadual de Feira de Santana vem trilhando desde a sua fundação à aproximadamente três décadas. Na última década, o Núcleo de Leitura Multimeios vem desenvolvendo projetos de pesquisa e de extensão, tanto no âmbito interno como em convênios com outras instituições, voltados para o aprofundamento e ressignificação da concepção e práticas de leitura. Atualmente estão vinculados ao Núcleo o Projeto de Extensão Leitura Itinerante – uma alternativa de mobilização de leitores (desenvolvido em escolas públicas de Feira de Santana e em espaços não-formais) e o Projeto de Articulação Pesquisa e Extensão Círculos de Leitura: uma tecnologia social para além do espaço escolar (realizado com mulheres rurais do município de Antonio Cardoso-BA). Nestes projetos graduandos de diversas licenciaturas como História, Letras, Pedagogia estão vinculados como bolsistas e ou como voluntários tanto de iniciação à extensão quanto de iniciação científica. A metodologia basilar que envolve as práticas de leitura do Núcleo tem sido os Círculos de Leitura (vivências compartilhadas com textos literários, nas quais a leitura em voz alta é feita por um leitor guia e, posteriormente, as discussões são oportunizadas) e as Oficinas de Contação de Histórias, envolvendo alunos e professores das diversas áreas do conhecimento, com destaque aos dos cursos de Letras e Pedagogia, bem como professores das escolas públicas do município e da região circunvizinha. No presente trabalho buscamos socializar os resultados oriundos de uma pesquisa realizada sobre os impactos e contribuições que o Núcleo de Leitura Multimeios tem proporcionado aos graduandos envolvidos para sua constituição/formação leitora. Utilizamos como instrumentos de coleta de dados os relatórios parciais e finais entregues à Pró-Reitoria de Extensão e de Pesquisa da UEFS, além de questionários e entrevistas. Para corpus de pesquisa foram selecionados graduandos em efetiva atividade no Núcleo e nos Projetos, e alguns ex-bolsistas que atualmente já estão em efetivo exercício da profissão docente. Sendo um espaço privilegiado de estudos, debates, aprofundamentos e produções na área da História da Leitura e das Práticas Culturais de Leitura a relevância de um estudo dessa natureza se dá pela necessidade que o próprio Núcleo tem em analisar e ressignificar suas práticas, bem como de conhecer as representações sobre sua contribuição na formação do sujeito leitor, em foco neste trabalho, o olhar e os sítios de significâncias dos graduandos e ex-graduandos da UEFS. Palavras-chave: Formação leitora; Círculos de leitura; Leitura literária
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1. FORMAÇÃO DO LEITOR
O cenário contemporâneo tem sido fértil tanto na produção quanto na análise
sobre as práticas e políticas públicas de formação de leitores. Muitos estudiosos e
pesquisadores vêm se debruçando sobre essa temática por considerar que mesmo
com todo o acúmulo já existente sobre o assunto, ainda há muito o que se investigar,
principalmente nos espaços considerados como lócus privilegiados de formação do
leitor.
Pensar o espaço de formação do leitor é uma necessidade crescente posto que,
em muito já se superou a velha ideia de que a escola é a única responsável por esta
formação. Nos dias atuais compreendemos que além da escola, lugar do espaço da
biblioteca escolar, muitos outros vêm se revelando como locais propícios para
propagação da leitura e sedução dos leitores. Estamos falando dos espaços como
praças, bibliotecas, livrarias e eventos como festivais literários, feiras, saraus,
banquete literários, entre outros.
Os estudos e as práticas cotidianas já revelaram que não basta ter o livro, faz-
se necessário investimento em estratégias de aproximação e encontro do leitor com o
livro e ou outros suportes de leitura. Pesquisadoras como Silva, Ferreira e Scorsi
(2009, p.52) afirmam que “ter acesso aos livros ou tempo para ler não é suficiente,
nem simplesmente deixar ler. Para que o interesse pela leitura ocorra, faz-se
necessário apresentar os livros aos leitores em formação. Há que se investir na
mediação da leitura”. Portanto, “mais do que um modo de leitura peculiar, parece
que o engajamento afetivo é de fato componente essencial da leitura em geral” como
preconiza Jouve (2002, p. 21).
Tomando como referência a definição de Araújo (2006, p. 20) sobre o que é ler
“... é atribuir sentido às coisas do mundo, interagir com elas, interpretá-las, pensar
dialeticamente, estabelecer alteridades de vozes, intercambiar experiências, transitar
para a cidadania plena”. Faz-nos cada vez mais pensar sobre a importância e a
necessidade de assegurar que todos tenham direito ao exercício pleno da leitura e,
portanto, desse modo não pode ser considerando uma bandeira ultrapassada, posto
que ainda nos dias de hoje, muitos são aqueles distantes do usufruto desse direito.
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Ainda hoje permanecem os dilemas sobre se o Brasil é um país de leitores ou
não. Estes dilemas se avolumam em virtude das várias concepções de leitor que é
possível encontrar na literatura. Neste trabalho, defendemos a concepção de leitor
como o sujeito que estabelece com o texto uma relação de interlocução, de diálogo, de
coautoria, logo que atribui sentido e significado ao que ler.
Ezequiel Theodoro da Silva ao discutir sobre as competências da leitura
crítica, na sua obra Criticidade e Leitura, afirma que estas competências precisam ser
ensinadas, visto que elas não acontecem automaticamente. Segundo o autor, na
sociedade atual os usos da leitura são múltiplos e diversificados, portanto cabe à
escola desde os anos iniciais do ensino fundamental investir em atividades que
promovam atitudes reflexivas, questionadoras perante o material disponibilizado
para a leitura.
O estímulo à leitura exige esforços de todas as instâncias sociais (família,
escola, biblioteca, editoras, instituições governamentais e não-governamentais), visto
que o leitor se constitui a partir de múltiplas referências, múltiplas experiências. Para
Paulino (2001, p.22), “ao ler, um indivíduo ativa seu lugar social, suas vivências, sua
biblioteca interna, suas relações com o outro, os valores de sua comunidade”.
Defendemos a leitura para além do texto escrito, a leitura como construção de
sentidos, e que inexiste sem a atuação efetiva do leitor. Assim, ler é um processo de
interação entre o texto e o leitor, em consonância com o que postula Kleiman:
O mero passar de olhos pela linha não é leitura, pois leitura implica uma atividade de procura por parte do leitor, no seu passado de lembranças e conhecimentos, daqueles que são relevantes para a compreensão de um texto que fornece pistas e sugere caminhos, mas que certamente não explicita tudo o que seria possível explicitar. (KLEIMAN, 1989, p.27)
Desse modo, cabe à Universidade, como instituição mediadora de saberes e
práticas, desenvolver programas e projetos de difusão da leitura, como garantia de
vivência da cidadania. Concordamos com Araújo (2006, p. 17) quando afirma que “a
dignidade e a capacidade no ato de ler e escrever não são privilégios de classes ou
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grupos, mas antes se inscrevem como exercício de direito e justiça, necessidade
básica e inalienável de cada indivíduo”.
Reconhecendo a importância de investimentos na perspectiva de formar
leitores é salutar focar o olhar nas instâncias reconhecidamente responsáveis por esta
função. Neste sentido, nos propomos analisar o papel que o Núcleo de Leitura
Multimeios da Universidade Estadual de Feira de Santana vem desempenhando ao
longo da sua trajetória enquanto um espaço de formação docente e de leitores.
2. TRAÇANDO A HISTÓRIA DO NÚCLEO
O Núcleo de Leitura Multimeios teve a sua origem durante a realização do
Programa Nacional de Incentivo à Leitura - PROLER, no ano de 1992, da Fundação
Biblioteca Nacional, cujo objetivo era assessorar e articular, nas várias regiões do
país, ações que visassem à formação de recursos humanos para o desenvolvimento
de atividades de leitura em diversos espaços.
Num primeiro momento, atuávamos como um Comitê de Leitura, agregando
professores da Universidade (UEFS) e das redes públicas de ensino estadual e
municipal, bem como estudantes interessados em discutir sobre a formação de
leitores. Depois o Comitê se transformou institucionalmente no Núcleo de Leitura,
vinculado ao Departamento de Letras e Artes e, a partir de 1999, o Núcleo de Leitura
agrega o termo Multimeios por entender que as práticas culturais de leitura
envolvem outros suportes para além do impresso.
Desde a sua criação, o Núcleo vem desenvolvendo, por meio de servidores
docentes, servidores técnico administrativos, bolsistas de iniciação à pesquisa e à
extensão, além de estudantes voluntários e colaboradores externos, projetos de
pesquisa e de extensão no campo da História da Leitura, Formação do Leitor,
Leitura, Letramento e Práticas de Leitura numa perspectiva social e cultural.
O Núcleo vem assumindo, no espaço da universidade, um importante papel
de formação e sensibilização para a formação do leitor. Ao longo da sua existência já
foram organizados oito edições de Encontros de Leitura em caráter nacional;
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oferecidas inúmeras oficinas; minicursos; conversa com escritores, leituras públicas,
além de ter assento na comissão de elaboração do Plano Estadual do livro e da leitura
no estado da Bahia e na comissão organizadora do Festival Literário e Cultural de
Feira de Santana/Feira do Livro que já se encontra na sexta edição.
É possível afirmar que o Núcleo de Leitura Multimeios desempenha um papel
preponderante na formação do leitor, pois vem oportunizando aos seus membros
(acadêmicos e comunidade externa), momentos significativos de leituras, debates e
aprofundamentos acerca da história da leitura e de suas práticas culturais. Em
entrevista realizada com bolsistas e ex-bolsistas do Núcleo acerca do papel deste na
sua formação, muitos depoimentos ratificam tais entendimentos como:
Participando do Núcleo pude perceber a existência de outras práticas de leitura das quais mantinha distanciamento por prioridades outras e mesmo por desconhecimento de outras possibilidades. Além disso, foi fundamental descobrir a historicidade da leitura. E, consequentemente, tão importantes e desafiadoras, as descobertas de que o leitor, tão almejado, não é um ente abstrato; que as pessoas leem de formas diferentes, de lugares sociais desiguais; que ler um romance não é o mesmo que ler um artigo científico ou um manual de instruções; que a leitura ou as leituras nem sempre são desejadas, afinal, não por acaso, livros e leitores foram queimados por representarem risco a determinadas configurações sociais. Dessa forma, a leitura perdeu para mim sua suposta neutralidade e caráter universal. Com estes saberes e experiências promovidos, a minha participação no núcleo direcionou a minha formação, pois dei prosseguimento aos estudos sobre formação de leitores e leituras literárias na especialização e no mestrado. (Ex-bolsista 1) As leituras teóricas realizadas no Núcleo contribuíram no maior embasamento na prática da escrita, sendo que as discussões de textos literários, o compartilhamento das experiências de leitura como também das atividades de pesquisa/extensão influenciaram na ampliação do meu encantamento pela leitura. (Ex-bolsista 2)
Um olhar mais crítico com todas as formas de texto e um olhar para a
literatura infantil com mais credibilidade como leitora e formadora de
cidadãos. (Ex-bolsista 3)
Através dos encontros semanais pude ter um contato maior com
outros autores que ainda não conhecia, bem como, me senti mais
atraída em aumentar as minhas leituras sobre temáticas
diversificadas. (Bolsista 4)
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O papel exercido pelo Núcleo de Leitura Multimeios no fortalecimento dos
estudos literários, da história da leitura, formação de leitores e pelas práticas
culturais de leitura pode ser ainda referendado pelas escolhas, de alguns de seus
membros, em seus objetos de pesquisa ao longo da sua trajetória formativa.
São exemplos de profissionais que ampliaram seus estudos nas temáticas
discutidas no Núcleo;
Uma bolsista concluinte do curso de Graduação em Pedagogia escreveu seu
trabalho monográfico, a partir das experiências desenvolvidas junto ao
Núcleo, mais precisamente, no Projeto de Extensão Leitura Itinerante: uma
alternativa de mobilização de leitura, TCC intitulado: A Literatura Infantil em
sala de aula: uma prática extensionista para formação de leitores.
Uma ex-bolsista (Pedagoga do IFBaiano) fez como trabalho de conclusão do
curso de especialização: Concepções de leitura: entre ditos e não ditos e no
Programa de Mestrado em Linguística defendeu a dissertação denominada:
Leituras literárias: representações de professores de Língua Portuguesa do
Ensino Médio;
Outra ex-bolsista (Doutoranda do Programa de Educação e
Contemporaneidade – UNEB) também defendeu sua dissertação sobre -
Saberes Literários e Docência: (re)constituindo caminhos na (auto)formação
de professores leitores e atualmente estuda Relicário da memória: as
práticas da leitura presentes na trajetória sem estilo de uma educadora
Santamarense;
Esta é uma pequena amostra de trabalhos de pesquisa realizados na
graduação, na especialização, em programa de mestrado e em doutorado, que se
originaram a partir da inserção no Núcleo de Leitura. Estes estudos fortalecem uma
importante linha de estudos que tem na formação do leitor e nas práticas culturais de
leitura um olhar e um propósito claro.
A concepção de leitura que norteia as práticas de leitura do Núcleo está
ancorada na ideia de que ler é um processo complexo e multirreferencial de
atribuição de sentidos, estabelecimento de relações, diálogos e construções de novos
sentidos e significados. É nesta perspectiva que na última década, o Núcleo de
Leitura Multimeios vem desenvolvendo projetos de pesquisa e de extensão, além de
outras atividades, tanto no âmbito da academia como em convênios com outras
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instituições, sempre voltados para o aprofundamento das concepções e práticas
culturais de leitura.
Apresentaremos de forma sucinta apenas os projetos que se encontram em
fase de execução.
2.2 PROJETO DE EXTENSÃO LEITURA ITINERANTE: UMA ALTERNATIVA DE
MOBILIZAÇÃO DE LEITORES
O Projeto pauta-se em concepções teóricas de leitura que enfocam a Sociologia
da Leitura e a História da Leitura na perspectiva da História Cultural, embasado nos
autores: Abreu (1995), Aguiar (2001), Chartier(1996/1998) Hébrard (1996), Jouve
(2005), Lajolo (2004), Larrosa ( 2001), Leenhardt (2006), Manguel (1997), Neves (et.al.,
2004), Proust (1991), Silva (1998), Yunes (2002), Zilberman 1991), entre outros. Estes
teóricos, no panorama da sociedade letrada, apresentam variados tipos de leitores,
desde os que se enquadram nos moldes canônicos, até os que estão fora do padrão
estabelecido, a exemplo de leitores autodidatas. São, portanto, estudiosos que
registram a importância da leitura, ao longo da história e na contemporaneidade,
mostrando uma história a contrapelo, apresentando leitores que se encontravam
escondidos pela história oficial. Tomar como referência esses pesquisadores para um
projeto de extensão sobre o ato de ler, em que os participantes são professores e
alunos de escolas públicas, nos fortalece para a compreensão da nossa contribuição
para a formação de leitores críticos, emancipados. A relevância social deste projeto
evidencia-se pela possibilidade de formar cidadãos críticos numa sociedade desigual,
a partir da leitura em sua diversidade de linguagens.
O projeto acontece em espaços escolares e em espaços não-formais. A
metodologia está pautada na realização dos Círculos de Leitura e nas práticas de
contação e leitura de histórias.
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2.3 PROJETO DE PESQUISA E DE EXTENSÃO: CÍRCULOS DE LEITURA- UMA
TECNOLOGIA PARA ALÉM DO ESPAÇO ESCOLAR
Este projeto surge com o lançamento pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado da Bahia – FAPESB, de um Edital pioneiro de articulação Pesquisa e Extensão.
A equipe de pesquisadores e extensionistas do Núcleo de Leitura Multimeios,
submeteu o Projeto Círculos de Leitura: uma tecnologia social para além do espaço
escolar, para atuar junto a mulheres rurais do município de Antonio Cardoso,
beneficiadas pelo Programa do Leite e do Programa Bolsa Família do Governo
Federal.
Objetiva implantar, como tecnologia social, os círculos de leitura, na
perspectiva de possibilitar aos sujeitos envolvidos, compreenderem seu modo de
vida, bem como suas práticas de leitura presentes no cotidiano rural, na perspectiva
do efetivo exercício da cidadania e na construção coletiva de estratégias de
enfrentamento das demandas educacionais e sociais. Dentre os objetivos específicos
propomos reaplicar os círculos de leitura como tecnologia social em outros espaços e
momentos; investigar as percepções que as mulheres envolvidas no projeto têm sobre
o benefício recebido como forma de leitura e compreensão de mundo; ressignificar a
prática de narrativas orais na zona rural do município de Antonio Cardoso, por meio
dos Círculos de Leitura; partilhar histórias e práticas de leitura cotidianas; discutir
temas sociais relevantes para a comunidade, além de propor estratégias de
enfrentamento às demandas sociais.
Neste projeto estão envolvidas quatro comunidades rurais (Caboronga,
Gavião, Tocos e Santo Estevão velho) e a sede do município de Antonio Cardoso.
A metodologia utilizada tem sido a vivência dos Círculos de Leitura. Os Círculos de
Leitura constituem-se em vivências compartilhadas com textos literários, nas quais a
leitura em voz alta é a prática inicial, oportunizando discussões posteriores. É uma
metodologia simples e precisa apenas de um leitor que seja o guia. Esse leitor-guia
responsabiliza-se por apresentar e compartilhar com os demais participantes o texto
previamente selecionado pelo nosso grupo de pesquisa/extensão com base nos
interesses da pesquisa e da comunidade. Segundo o Almanaque do Agente de
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Leitura (p.120), “um leitor-guia deve, antes de mais nada, ser um bom ouvinte”.
Salienta, ainda, que para “realizar um bom círculo de leitura é preciso se preparar
para ele”. Estas orientações são importantes para entender que as práticas de leitura
em espaços não formais carecem tanto de planejamento quanto das propostas que
ocorrem nos espaços institucionais.
Este movimento do Núcleo se constitui na ampliação de ações a partir do
contato com as tecnologias, já que sua prioridade é abrir-se à leitura de mundo,
portanto, à leitura de todos os suportes e linguagens. O investimento do grupo
centra-se no poder transformador da leitura, na incorporação de profissionais
comprometidos com a formação de leitores proficientes, gerenciando instrumentos
tecnológicos, com vistas a viabilizar profícuas experiências leitoras. É relevante
considerar que a leitura do livro terá seu destaque como garantia de momentos de
reflexão, somando-se aos diversos suportes textuais disponíveis aos leitores, na
atualidade, pois há o entendimento de que ser leitor requer a capacidade de reflexão,
interferência e transformação da realidade, a partir de uma leitura crítica dos meios a
que se tem acesso.
3. LEITURA, LEITORES E FORMAÇÃO DO LEITOR
Para início de conversa sobre esta importante tríade leitura, leitores e
formação do leitor recorreremos a Geraldi quando afirma:
[...] ninguém aprende a ler sem debruçar-se sobre textos. E este debruçar-se pode ser individual ou coletivo. Não é o professor que ensina, é o aluno que aprende ao descobrir por si a magia e o encanto da literatura. Mediar este processo de descobertas é o papel do professor, que só pode fazê-lo também ele como leitor. (GERALDI, 2013, p.25)
Reafirma, assim, a premissa básica defendida por muitos estudiosos que só
despertaremos no outro o gosto e o encanto pela leitura se nós também formos
leitores seduzidos e encantados pela prática da leitura.
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Nesta perspectiva é que o Núcleo de Leitura vem investindo em uma
metodologia de trabalho formativa, ou seja, estabelecemos internamente uma rotina
de trabalho. Nesta rotina elegemos o momento do aprofundamento teórico;
momento da socialização das ações desenvolvidas; momento do planejamento e do
replanejamento das ações e o momento dos Círculos de Leitura. Os Círculos de
Leitura vem sendo a estratégia basilar que perpassa todas as ações tanto de pesquisa
quanto de extensão.
O momento do aprofundamento teórico e posterior debate vêm sendo a
oportunidade de traçar um paralelo entre o que dizem os teóricos e o que
vivenciamos nos cotidianos escolares. A riqueza das relações tecidas com os textos
ratifica a concepção de leitura defendida por Cosson (2012, p.27) “Ler implica troca
de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde
ambos estão localizados, pois os sentidos são resultado de compartilhamentos de
visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço”. E na intensa vivência dos
debates, dos círculos de leitura e atos de planejamento os colaboradores da pesquisa
admitem ser esta a grande contribuição do Núcleo no seu processo formativo como
afirmou uma das bolsistas: “Além de possibilitar trocas de conhecimentos e
experiências, o Núcleo contribui na formação dos discentes preparando para
exercer a docência”.
4. O PAPEL DO NÚCLEO DE LEITURA MULTIMEIOS DA UEFS SOB O
OLHAR DOS BOLSISTAS E EX-BOLSISTAS
Depois de uma trajetória de mais de duas décadas de existência, sentimos a
necessidade de conhecer as percepções dos bolsistas sobre o papel que o Núcleo de
Leitura Multimeios da UEFS exerce ou exerceu em sua formação acadêmica e leitora.
Ao longo da sua história, muitos bolsistas tanto de iniciação à pesquisa quanto de
iniciação à extensão, além de voluntários, deixaram suas marcas. A fim de realizar
esta pesquisa, buscamos reestabelecer o contato com alguns deles para realização de
entrevista na tentativa de conhecer suas percepções sobre o papel do Núcleo em sua
trajetória.
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Foram enviados 16 (dezesseis) convites on-line12 para participação na pesquisa.
Destes, obtivemos retorno de 13 (treze) e 03 (três) não responderam. Dos 13 (treze)
que sinalizaram o recebimento do convite, apenas 10 (dez) efetivamente
participaram.
As colaboradoras da pesquisa são todas do sexo feminino, com idade entre 22
(vinte e dois) e 30 (trinta) anos. Das 10 entrevistadas, 05 ainda possuem vínculos com
o Núcleo por meio de bolsas13; e as demais: 01 é bolsista do Programa Institucional
de Bolsas a Iniciação à Docência - PIBID; 01 é bolsista de programa de estágio
vinculado à Secretaria de Educação do Município de Feira de Santana e 03 já
concluíram suas graduações e exercem a profissão em outros espaços. Das que já não
tem mais vínculo com a UEFS, uma é pedagoga/orientadora educacional no Instituto
Federal da Bahia - IFBA – Campus Santo Amaro - BA e já concluiu o mestrado em
Estudos Linguísticos, outra é professora de Instituição Superior Privada e atualmente
faz o doutorado em Educação na Universidade do Estado da Bahia - UNEB e a
terceira encontra-se sem vínculo empregatício.
4.1 TECENDO ANÁLISES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA VIVIDA
A escrita da história do Núcleo só é possível se as pessoas que fizeram e fazem
parte dessa construção, puderem rememorar suas influências, acontecimentos,
marcas deixadas e/ou impressas ao longo desse processo. A tessitura dos fios de
uma história traz muito além de fatos, datas e pessoas, eles imprimes som, saber,
sabor e vida.
E foi na busca desse emaranhado de sentimentos e aprendizagens que
procuramos aguçar a escuta sobre o que significou a experiência vivenciada no
Núcleo de Leitura.
12 Três bolsistas são vinculadas ao Programa Interno de Bolsas de Extensão – PIBEX/UEFS e as outras
duas são do Programa de Bolsas de Iniciação Científica da UEFS.
13 Os convites foram enviados a partir do endereço eletrônico encontrados nas fichas de quando eram
bolsistas ou voluntários. Talvez, por isso, alguns convites não tenham sido respondidos.
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Esta questão foi comum a todas as entrevistas e selecionamos apenas algumas
para socializar:
A partir do Núcleo de Leitura pude trilhar caminhos imprevistos e dar passos importantes em minha vida acadêmica, profissional e pessoal. A minha vivência no núcleo significa um marco na minha vivência acadêmica e na construção da minha personalidade. A reaproximação com a literatura promovida pelas atividades do núcleo para mim tem a ver com descobrir quem sou, descobrir o outro, buscar outras linguagens e direcionar a minha formação acadêmica e profissional dentro de uma linha de interesse: formação de leitores. Isto, no entanto, não me afastou de outras discussões, até porque a formação de leitores abrange um leque amplo de conhecimentos e promove a aproximação a uma diversidade de linguagens e perspectivas (Ex-bolsista) Fazer parte desse núcleo viabilizou a ampliação do meu conhecimento acadêmico como também pessoal. Aprofundei meu conhecimento teórico sobre a história da leitura e história da leitura das mulheres, além disso, realizar atividade de Iniciação Cientifica e Extensão possibilitou experiências enriquecedoras tanto em escola como em espaço não institucionalizados. Poder contribuir na formação de leitores foi uma experiência muito significativa (Bolsista) . Extremamente relevante visto que as discussões provocadas pelas professoras do Núcleo nos permitem conhecer a realidade da educação mais de perto, acreditar na nossa função como mediadoras do conhecimento bem como nos compreender como profissionais capazes de, em conjunto com pais, alunos e sociedade transformar a realidade da educação brasileira com os pés no chão, conhecendo nossa possibilidade e impossibilidade sem fantasias (Bolsista).
Experiência inenarrável. Nele me constituí socialmente, politicamente e profissionalmente (Ex-bolsista)
Os depoimentos revelam que as experiências oportunizadas pelo Núcleo vão
além da formação acadêmica, pois como afirma Gregório Filho (2002, p. 136) “Somos
aquilo que vamos adquirindo ao longo da vida”. Assim, nas construções e relações
tecidas ao longo dos estudos e debates os sujeitos vão se constituindo como sujeitos
históricos e como profissionais mais atentos, mais sensíveis, mais críticos.
Quando indagados sobre até que ponto a participação no Núcleo de Leitura
influencia na atuação docente, as colaboradoras assim admitiram:
Aprendi a trabalhar a contação de histórias como ponto de partida para as aulas, independente do conteúdo trabalhado, além de lidar
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com mais segurança com as diferenças encontradas em classe a partir o momento que estou sempre refletindo e reciclando o meu olhar acerca da importância da leitura na vida de cada sujeito aprendiz (Bolsista). Atualmente não atuo diretamente como docente, mas carrego marcas do Núcleo na minha atuação profissional desenvolvendo projetos de formação de leitores, retomando os círculos de leitura, desenvolvendo projetos relacionados ao cinema e através de um olhar “estético”, por assim dizer, a temática da formação de professores. Nesse sentido, acredito que uma representação positiva sobre literatura e experiência de intimidade com a mesma constitui diferencial no trabalho docente que envolve a leitura de modo geral, a leitura literária e a formação do leitor. Nesses aspectos, o que construi até então, devo em grande parte ao Núcleo de Leitura. (Ex-bolsista). Quando fui incorporada ao grupo, eu não passava de uma criança que estava aprendendo a caminhar sozinha e balbuciar as primeiras palavras incompreensíveis. Hoje, estou concluindo o curso de Letras com a minha linha de atuação já estabelecida, graças a convivência enriquecedora com as mais cativantes, belas e inteligentes profissionais que já tive o prazer de conhecer. (Ex-bolsista)
As falas das colaboradoras reafirmam que a participação na dinâmica e nos
projetos do Núcleo de Leitura tem fortalecido a formação acadêmica, pessoal e
amadurecido a compreensão sobre o papel social e político da docência. Como
afirma Freire (1996, p.25) “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. Assim sendo, cabe aos
graduandos e ou aos profissionais a busca diuturna por uma prática educativa
coerente, séria, comprometida e entusiasmada. Pensando desse modo, o
envolvimento na rotina do Núcleo, uma rotina que envolve leituras, estudos,
vivências dos círculos de leitura, debates, intercâmbio de saberes e práticas corrobora
para o processo reflexivo inerente a profissão docente, visto que o Núcleo é mais um
espaço formativo no ínterim da própria academia.
A formação acadêmica prevê a interlocução entre o ensino, a pesquisa e a
extensão, mas, infelizmente, muitos são os graduandos que passam quatro ou cinco
anos dentro da academia e, efetivamente, desconhecem esse tripé formativo.
Portanto, para nós do Núcleo, é importante saber na visão das colaboradoras da
pesquisa, qual a importância da existência do Núcleo de Leitura para a comunidade
acadêmica da UEFS.
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Ele ajuda a ampliar o conhecimento dos alunos e possibilita uma interação com o meio acadêmico e com a comunidade fora da universidade. (Bolsista) Muito grande, uma vez que o mesmo está sempre aberto aos
estudantes, tanto da própria universidade quanto de outras escolas e,
até mesmo, outras comunidades, a partir dos projetos que
desenvolve. (Bolsista)
A existência do Núcleo de Leitura no Campus é muito relevante para
a caminhada acadêmica, pois representa mais um espaço de
discussões e reflexão da prática docente para a atuação profissional.
Os alunos que têm a oportunidade de adentrar o espaço do Núcleo
certamente saem contemplados e enriquecidos de conhecimento. Isso
não quer dizer que eles não enfrentarão dificuldades na profissão,
mas saberão resolvê-las com os pés no chão e poderão contar com a
bagagem de conhecimento e experiência que as discussões
provocadas no espaço do Núcleo de Leitura Multimeios lhes
possibilitaram. (Bolsista)
O Núcleo é um grande suporte para os estudantes que acreditam no poder transformador da leitura, além de oferecer, aos participantes, um grande embasamento teórico no tocante à formação do professor-leitor. (Bolsista) A importância do Núcleo na UEFS é fundamental devido à
contribuição indizível que tem ofertado a estudantes de diferentes
cursos da instituição, aos projetos de pesquisa e extensão que tem
desenvolvido sobre práticas de leitura e formação de leitores e, nesta
perspectiva, ao diálogo que abre com a sociedade (escola, professores,
secretaria de educação, estudantes etc). (Ex-bolsista)
Fundamental. Um ambiente propício à pesquisa, aprendizagem (coletiva e individual), estreitamento dos laços amistosos, e vivência de leituras. (Ex-bolsista) O estudante que participa do Núcleo tem um conhecimento
acadêmico mais amplo e uma visão de mundo mais crítica. (Bolsista)
Além de possibilitar trocas de conhecimentos e experiências, o Núcleo contribui na formação dos discentes preparando para exercer a docência, como também proporciona aos estudantes o desenvolvimento de atividades de iniciação científica e extensão, contribuindo no fomento a prática de leitura na sociedade e no fortalecimento de estudos no campo da leitura. (Bolsista)
Reafirmado em todas as falas, sobre o papel e a relevância do trabalho
desenvolvido pelo Núcleo de Leitura Multimeios, ao longo da sua existência, na
formação acadêmica e profissional das colaboradoras da pesquisa, então cabe a nós,
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um desafio ainda maior que é investir cada vez mais em oportunidades de
aproximação, sensibilização e formação de leitores.
Considerações
É possível afirmar que o Núcleo de Leitura Multimeios desempenha um papel
preponderante na formação do leitor, pois vem oportunizando aos seus membros
momentos significativos de leituras, debates e aprofundamentos acerca da história e
das práticas culturais de leitura. Considerando assim, a pesquisa e a extensão
enquanto práticas que propiciam processos de aprendizagens significativas dos
sujeitos envolvidos em seus projetos, com destaque, aqui, para os discentes que
tiveram a oportunidade de ampliarem as suas competências leitoras enquanto
participantes ativos destas ações.
Referências
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COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2, Ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2012.
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NUNCA É TARDE PARA FORMAR-SE LEITOR A contribuição das cartas com indicações literárias circunscritas
em Projetos Institucionais
Aline Carvalho Nascimento Instituto Chapada de Educação e Pesquisa [email protected]
Resumo: O presente trabalho circunscreve-se no âmbito da formação continuada, que assume a prática profissional como eixo central da formação das equipes técnicas e pedagógicas atuantes nas redes municipais de ensino de Itaetê e Marcionílio Souza, na Chapada Diamantina, que integram o Instituto Chapada de Educação e Pesquisa. Parte da premissa de que nunca é tarde para formar-se leitor, e que tal investimento tem impacto direto na escola e na comunidade, situando a escola como uma comunidade de leitores. Nesse sentido, vale ressaltar que é possível formar-se leitor na profissão, e para tanto é importante entender o significado que a leitura literária exerce na vida dos profissionais da educação, e partindo das suas histórias de vida com a literatura seguir numa aproximação constante de variados autores, leituras, livros. Os projetos institucionais de leitura e escrita são importantes dispositivos de (auto)formação tendo em vista a mobilização de uma rede leitora, que sustenta-se com a formação de todos os envolvidos no processo educativo, secretários de educação, equipes técnicas, diretores escolares, coordenadores pedagógicos, professores, estudantes. E é nesse contexto que tais projetos possibilitam que os educadores assumam um lugar de quem pode compartilhar experiências, histórias de vida e falar sobre as suas preferências leitoras, frente a uma variedade de obras literárias, trilha interessante para aportar a condição humana de se emocionar com os livros e estreitar os laços afetivos e profissionais. Tudo isso contribui para que os estudantes desfrutem de ambientes alfabetizadores e possam ir tecendo relações cada vez mais afetuosas com a leitura literária. Uma experiência ainda mais encantadora quando se une tudo isso ao fato de que os educadores são convidados a escrever cartas com indicações literárias no marco da publicação do livro “Histórias de carta em carta”, e com isso tirarem proveito das crônicas, romances, novelas, gêneros diversos, mas também das suas próprias vidas, o que no ir e vir das histórias de vida, das leituras, dos livros possibilita ir encurtando a distância entre dois municípios vizinhos e alimentando/retroalimentando o exercício de leitura daqueles que participaram do projeto. E nesse movimento de leituras, escrita, envio de cartas, a querência pela resposta à carta, há um duplo prazer: comunicar-se com um colega até então pouco conhecido ou desconhecido e receber o livro naquele mesmo envelope, sentimentos que se somam e vão contribuindo para que todos percorram um caminho sem volta, que é gosto por ler e contribuir para que outros também tenham a mesma vontade de fazê-lo. E assim, nas histórias de carta em carta, nesse território oceânico onde vivemos, cada cidade é como se fosse uma ilha solitária, mas os habitantes/educadores desses lugares, quase sempre distantes entre si, começaram a se encontrar graças ao ideal comum da educação.
Palavras-chave: formação continuada; cartas; indicações literárias; municípios; formação leitora
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1 APRESENTAÇÃO Quem de nós nunca ouviu ou proferiu a seguinte máxima: “O educador para
formar leitores é preciso antes de tudo ser um bom leitor”? Isso sempre me instigou a
pensar sobre como nos constituímos leitores. Seria algo de berço, um exercício que se
aprende a fazer com a prática? Comecei, então, a reportar meus pensamentos para a
minha história de vida, minha infância, meu processo de alfabetização... Foi, assim,
que “percebi” que não tinha recordações sobre rodas de leitura na infância,
professores lendo em voz alta livros literários, leitura em casa antes de dormir,
leitura por prazer.
Decorridos o ensino fundamental e médio li vários livros literários, mas muito
mais com o caráter obrigatório, que era característico da escola tradicional. A leitura
não era motivada pelo prazer, e assim era sem curiosidade e interesse; lia para
responder uma ficha de leitura que já vinha nos livros, fazer uma prova, uma
encenação da história lida que serviria como avaliação... Na universidade várias
leituras foram feitas, principalmente de livros técnicos, ainda mais quando do
período da elaboração da monografia.
Mas foi enquanto profissional da educação participando do processo de
formação continuada no Projeto Chapada que eu senti “necessidade/vontade” de ler
por prazer, de compor o meu acervo pessoal de livros. Foi vendo os meus
formadores, a cada formação, lendo com tanto entusiasmo e compartilhando seus
livros literários que percorri um caminho sem volta: a trilha pelo mundo da
literatura.
Não estou querendo dizer com esse breve relato que a família não deve
contribuir com a formação leitora, que nascer num ambiente rodeado pelos livros
não faz diferença na vida do indivíduo, muito pelo contrário, considero
extremamente relevante que tenhamos acesso às leituras desde o ventre materno, e
essa diferença proporcionada pelo contato desde a mais tenra idade com os livros
pode ser essencial, como revela o depoimento de Lígia Bojunga:
Pra mim, o livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram casa e comida. Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo;
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Em pé, fazia parede; deitado fazia degrau da escada; Inclinado, encostava num outro e fazia telhado. E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro. De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar para as paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras. Fui crescendo; e derrubei o telhado com a minha cabeça. Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntima a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas. Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação. Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga assim toda cheia, me levava pra morar no mundo do inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era só escolher e pronto, o livro me dava. Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que – no meu jeito de ver as coisas - é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava. Mas como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia de alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra - em algum lugar- uma criança juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar.
Mas também posso afirmar que “nunca é tarde para formar-se leitor”14. É o
que este artigo destina-se a discutir, a partir do viés de uma experiência na formação
continuada de educadores, dialogar acerca da importância dos projetos institucionais
de leitura como experiência na formação leitora. Para tanto, este texto está
organizado de forma a discorrer sobre uma abordagem teórica do que é ler, uma
visão burguesa da leitura e a necessidade de superá-la, apresentar os Projetos
Institucionais de leitura como uma experiência de formação continuada de
educadores leitores, que vão se formando na profissão. Assim, o contato com os
livros e a leitura transcende as barreiras das escolas, das salas de aula, dos
14 Abordo uma experiência no campo da formação continuada de educadores, e vale reportar a uma experiência que revela a importância da formação leitora também na formação inicial realizada pela professora Verbena Cordeiro, UNEB, no trecho do seu artigo: “De caso com a literatura demonstra o quanto razão e sensibilidade se entrelaçam na prática iniciada em sala de aula, e como o professor é o agente estimulador e orientador para o despertar ou o redespertar da literatura como uma experiência global de vida, ultrapassando os limites da escola. Também apreendi que, arriscando práticas de
leitura fora do “script” escolar e me abrindo à escuta sensível das diferentes histórias de leituras desses muitos alunos, consegui resultados surpreendentes e senti-me plenamente útil na tarefa que tinha pela frente.”
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municípios, e torna-se um exercício de leitura/interlocução que é construído quando
do contato com outros leitores, outros livros.
2 O QUE É LER
Comecemos refletindo acerca de duas questões precípuas considerando a
leitura literária: O que é ler? E... Por que ler?
Quanto à primeira questão consideramos que [...] Ler é dar liberdade aos
sentidos e escutar suas interpretações, reconhecendo que, antes de qualquer tipo de
socialização, há um percurso que emociona só depois ele reflete, organiza o
pensamento, racionaliza e divulga, [...] (LOIS, 2012. p. 48). Isso já responde/remete à
segunda questão, já que primeiro há um momento solitário da leitura literária, que
pode cumprir um duplo objetivo: emocionar-se, para depois socializar e tentar
conquistar o outro para fazer aquela leitura.
Porém, para indicar livros aos colegas é preciso conhecê-los. E nesse
movimento, as rodas de leituras e indicações literárias nas formações são
imprescindíveis. Assim como na apresentação de um amigo que gostamos a outro
acontece com os livros, para que convençamos a alguém que vale a pena lê-lo é
preciso que gostemos muito do livro, para que possamos envolver o outro a também
querer ler.
Quando queremos que alguém goste de um amigo nosso, precisamos falar bem de nosso amigo, precisamos convencer, seduzir, instigar e valorizar as qualidades de nosso amigo, precisamos provar por A mais B que a pessoa só tem a ganhar com a nossa amizade. (Jonas Ribeiro, 2002. p.13).
Nesse sentido, contribuir com a formação de comportamentos leitores é
importante, pois
É indiscutível que os leitores não se formam com leituras escolares de materiais escritos elaborados expressamente para a escola com a finalidade de cumprir as exigências de um programa. Os leitores se formam com a leitura de diferentes obras que contêm uma diversidade de textos que servem, como ocorre nos contextos extra-
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escolares, para uma multiplicidade de propósitos [...]. (KAUFMAN, 1995. p.45).
Porém, ainda precisamos refletir sobre quais os critérios usar para escolher um
livro literário para ler ou indicar um livro lido. Nesse enquadre, importa insistir na
visão de que existem leitores e leituras, quando se faz necessário superar a visão
burguesa do que é ser leitor de literatura.
Em entrevista a uma revista, o polêmico crítico literário americano Harold
Bloom rejeita listas que rotulam os melhores livros, mas ao mesmo tempo tece
comentários carregados de juízo de valor sobre obras que considera “boas” e “ruins”
na literatura universal, o que, de certa forma, contribui também para os rótulos. Mas
Bloom, na mesma entrevista, aborda de forma valiosa sobre por que ler.
A informação está cada vez mais ao nosso alcance. Mas a sabedoria, que é o tipo mais precioso de conhecimento, essa só pode ser encontrada nos grandes autores da literatura. Esse é o primeiro motivo por que devemos ler. O segundo motivo é que todo bom pensamento, como já diziam os filósofos e os psicólogos, depende da memória. Não é possível pensar sem lembrar – e são os livros que ainda preservam a maior parte de nossa herança cultural. Finalmente, e este motivo está relacionado ao anterior, eu diria que uma democracia depende de pessoas capazes de pensar por si próprias. E ninguém faz isso sem ler. (Bloom, 2001).
É fundamental deixar de lado o rigor colocado sobre os “grandes autores da
literatura” como um critério para a leitura nas rodas literárias no processo de
formação continuada, consideramos boas aquelas obras que emocionam, e emoção
tem a ver com a subjetividade de cada um.
É importante uma aproximação dos educadores àqueles livros considerados os
clássicos da literatura universal, mas isso não pode se constituir como uma barreira
para o contato com outras obras “desprestigiadas” pela crítica. Afinal, passa por
quem o crivo de definir as obras como de qualidade ou ruins? Tudo isso tem a ver
com uma visão burguesa acerca da literatura, que sempre se institui historicamente.
Tudo isso tem a ver com o fato da tão propagada ideia de que os brasileiros
não leem ou leem muito pouco. Mas como coloca Marisa Lajolo15 há pesquisas
15 Publicação no texto “Leitura: você faz a diferença.” Marisa Lajolo. RevRed(UEFS)2011.
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recentes16 que sugerem que no Brasil se lê, sim. Só que não os autores e os livros que
os especialistas acham que deveriam ser os mais lidos e os mais apreciados.
Devido a essa visão burguesa há, entre os educadores, um “medo” em
externalizar as leituras feitas e indicar obras porque não são bem avaliadas pela
crítica, mas há que se considerar que
A avaliação estética e o gosto literário variam conforme a época, o grupo social, a formação cultural, fazendo que diferentes pessoas apreciem de modo distinto os romances, as poesias, as peças teatrais, os filmes. Muitos, entretanto, tomam algumas produções e algumas formas de lidar com elas como as únicas válidas. E aí reclamam porque o brasileiro não lê e não tem interesse pela cultura. (ABREU, 2006. p. 59).
Essa perspectiva em torno dos critérios usados para escolha dos livros, bem
posta por Márcia Abreu em toda a sua obra intitulada “Cultura letrada – literatura e
leitura” – dialoga com o que pensamos sobre o assunto no sentido de que não há
universalidade na apreciação estética, e que esse quesito instala-se no campo da
subjetividade, que deve ser considerada, isso bem nos ensina Roger Chartier quanto
ele nos provoca enfatizando que a leitura é uma prática social móvel em sua forma e
sentidos.
Liberados das amarras da ditadura do “bom livro”, o acesso aos livros
literários acompanhado de uma resenha daquele que leu e gostou pode contribuir
para o que Lena Lois (2012) coloca como a perspectiva estética da recepção, se abrir
para a polissemia do texto literário, experimentar, estranhar, gostar ou não gostar,
pois como coloca a autora o texto literário é arte e dialoga com a subjetividade de
cada um.
Para tanto é imprescindível a recuperação da história de vida do leitor17, tão
bem colocado por Lajolo, o que é um ponto essencial para que, a partir da escuta
16 A autora Marisa Lajolo sugere consultar o site da Universidade de Campinas
www.unicamp.br/iel/memoria
17 “O que você realmente gosta de ler em suas horas vagas? Como começou a apreciar esse tipo de literatura? Qual o primeiro livro lido por você? Lembra-se de como esse exemplar chegou a suas
mãos? As primeiras leituras foram experiências agradáveis ou dolorosas? Na sua trajetória individual você encontrará pontos em comum com a de outras pessoas, a de seus colegas e mesmo a de alguns pais de seus alunos. Seria ótimo se todos – escola e comunidade – pudessem compartilhar essas
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atenta à história de vida/leitura de cada um, possa estabelecer elos e fios invisíveis
entre educadores que se unem rumo a qualificação de suas práticas leitoras.
3 PROJETOS INSTITUCIONAIS DE LEITURA: Uma experiência na formação continuada de educadores
Precisamos acreditar que é possível formar leitores na experiência da
formação continuada de educadores. E para tanto, os projetos institucionais são
extremamente importantes. Vejamos algumas das relevantes etapas nesse percurso.
Etapa I – Concepção do projeto – escrita e apresentação
O Projeto Institucional de Leitura de Cartas com Indicações Literárias surgiu
da necessidade de seguir qualificando a formação leitora de equipes técnicas,
diretores escolares, coordenadores pedagógicos, consequentemente, de professores
dos municípios de Marcionílio Souza e Itaetê. Assim, o propósito comunicativo foi
promover a troca de correspondências, experiências e histórias de vida, estreitar
laços entre esses profissionais de municípios tão próximos por meio da tessitura das
leituras.
Mas poderíamos nos perguntar “Por que socialização por meio de Cartas na
era da tecnologia quando o mais apropriado são correios eletrônicos?”. É certo que
todos têm acesso à internet, mas nem todos o fazem com frequência e habilidade.
Outro motivo, e o mais importante, é que gostaríamos de resgatar por meio desse
meio de comunicação – as cartas – a emoção sentida quando do seu recebimento,
ainda mais que junto com o envelope da carta seguiria, ainda, algo valiosíssimo: o
livro, que foi de remetente para destinatário numa ciranda literária. Em tempos de
grandes aparatos tecnológicos as cartas serviram como meios para concatenar
pessoas e fomentar a leitura, formar leitores.
No fomento a práticas de leitura o Instituto Chapada de Educação e Pesquisa
tem um papel fundamental, haja vista que tem como meta do seu trabalho, junto aos
municípios parceiros, a erradicação do analfabetismo na região em que atua,
vivências, pois a história de leitura de cada um de nós pode coincidir em muitos pontos com a história da leitura no Brasil” - texto “Leitura: você faz a diferença.” Marisa Lajolo. RevRed(UEFS)2011
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entendendo por alfabetização o processo amplo de atribuição de sentidos à leitura e à
escrita de textos diversos que circulam socialmente. Nesse sentido, a formação de
leitores e escritores autônomos inclui-se como meta prioritária.
A literatura, naturalmente, é uma das possibilidades de exploração e utilização da língua, das palavras, para uma diversidade de fins, de propósitos os quais as teorias literárias e as teorias linguísticas, bem como outras vertentes dos estudos das línguas e das literaturas, têm contribuído decisivamente para caracterizar, pontuando as mudanças de acordo com diferentes momentos históricos, com os diferentes povos, com as diferentes línguas, mas sempre, apesar de todas as diferenças de gêneros e conteúdos, apontando para essa marca da natureza humana que é o fazer literário, o fazer poético, fazer em que a língua, em sua modalidade escrita ou oral, é utilizada para expressar e justificar a existência humana. (BRAIT, 2003. p. 19-20).
Dessa forma, é fundamental cuidar da formação daqueles que estão
diretamente ligados aos estudantes – coordenadores pedagógicos, diretores escolares
e professores – já que eles têm papel fundamental na alfabetização plena das crianças
e jovens. Assim, é preciso cuidar de cada um deles, qualificando sua formação
leitora.
E assim fomos escrevendo a várias mãos o nosso projeto institucional de
leitura e todos foram se corresponsabilizando com suas ações. O projeto contribuiu
com as ações de formação continuada implementadas nos municípios, articulando às
demais práticas, bem como fortalecendo a formação nas escolas. Todas as etapas do
trabalho foram pensadas considerando os leitores, os propósitos sociais que guiavam
as produções, com a incumbência de que muitas pessoas que tenham acesso ao livro
de cartas possam desfrutar de leituras de livros que marcaram tanto a vida desses
autores das indicações, bem como conhecer um pouco sobre a história de vida dos
remetentes/destinatários das cartas (por isso há a articulação dos gêneros carta e
resenha literária).
Etapa II - Rodas de leitura de resenhas e livros, momentos de empréstimos
Um propósito que consideramos durante todo o percurso do projeto
institucional referiu-se ao “ler por prazer”. Nesse sentido os momentos de formação
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leitora na formação continuada contribuíram como espaço de fomento à leitura,
momentos muito agradáveis, em que todos se sentiram à vontade para compartilhar
histórias lidas, emocionarem-se com elas, trouxeram questões parecidas que
aconteceram em suas vidas, enfim, momentos de pura fruição. Isso tudo porque,
como afirma Lajolo (2002) “A literatura constitui modalidade privilegiada de leitura,
em que a liberdade e o prazer são virtualmente ilimitados”.
A cada formação líamos resenhas que motivavam a leitura dos livros, os
interessados se inscreviam para ler em voz alta trechos de livros que gostavam, e
assim, ao final de cada oficina de formação montávamos uma banca com os livros
que cada um disponibilizava para empréstimo.
Saíamos das formações preenchidos pelas leituras em voz alta feitas pelos
colegas e com o livro que cada um se interessara por ler.
Etapa III – Intercâmbio entre remetente/destinatário. Publicação do livro
Paulo Freire nos traz que “ensinar exige alegria e esperança”, dialogando com
ele Rubem Alves fala do ato de ensinar, de que o mestre precisa ensinar felicidade
em suas aulas. Aproprio-me do olhar desses dois autores para fazer uma relação com
a literatura, com a formação do leitor que forma outros leitores.
Pois o que vocês ensinam não e um deleite para a alma? Se não fosse, vocês não deveriam ensinar. E se é, então é preciso que aqueles que recebem, os seus alunos, sintam prazer igual ao que vocês sentem. Se isso não acontecer, vocês terão fracassado na sua missão, como a cozinheira que queria oferecer prazer, mas a comida saiu salgada e queimada... (ALVES, 1994. p.9).
E foi com esse prazer que cada um ia fazendo suas leituras, escrevendo suas
cartas, ansiando pela resposta... E junto com a carta seguiam os livros, um duplo
prazer: comunicar-se com um colega até então pouco conhecido ou desconhecido e
receber o livro naquele mesmo envelope, como é possível observar em uma
carta/resposta enviada por uma coordenadora pedagógica:
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Fiquei muito feliz em receber sua carta compartilhando comigo suas experiências pessoais e profissionais. Amei os livros que me indicou. Já li “Em busca de mim” e fiquei encantada com a história escrita por Izabel Vieira, parece que me deparei com um fato da vida real. Estou lendo “Cartas entre amigos” e como você diz “é uma verdadeira pérola”. Em uma de minhas formações comentei sobre o trabalho que está sendo desenvolvido entre os profissionais de educação de Marcionílio Souza e o nosso município, com o Projeto Institucional de Leitura – “Histórias de carta em carta” para indicação literária, no qual falei de você, inclusive fiz indicação dos livros que você me enviou. Estou com uma lista de espera, pois uma professora está lendo “Em busca de mim” e outras aguardando. Bem legal esse movimento.
Nesse percurso havia carta que apresentava ao destinatário como era bom
mergulhar num livro de poesias, por exemplo, e a remetente pôde contemplar como
sua indicação fez florescer novas perspectivas naquele leitor/destinatário, como
podemos notar no trecho de uma carta de uma diretora escolar:
Com relação ao livro confesso que logo quando eu o vi fiquei receosa porque não costumo ler poemas, na realidade nunca li um livro de poemas, foi a primeira vez. Estou passando por um momento muito difícil, o qual meu marido está trabalhando em outro estado, mas precisamente no Amapá. Pense aí? Quando li o livro me senti muito bem, principalmente com o poema 62, também fiz a leitura dele para alguns dos meus colegas.
Tiraram proveito das crônicas, romances, novelas... E o ir e vir das histórias de
vida, das leituras, dos livros foi encurtando a distância entre dois municípios
vizinhos e alimentando/retroalimentando o exercício de leitura daqueles que
participaram do projeto.
Numa dessas cartas um depoimento de uma diretora escolar muito
interessante aparecia: “Já estamos quase íntimas! Preciso lhe confessar uma coisa - o
despertar para minha formação leitora começou com a chegada do ICEP (Instituto
Chapada de Educação e Pesquisa) - desde então já li mais do que em toda minha
vida”.
Assim, nas histórias de carta em carta, alteramos os espaços geográficos e os
estabelecimentos comerciais. Posto de gasolina, farmácia, lanchonete ou secretaria de
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educação transformaram-se em “agências dos correios” – pontos estratégicos de
envio e coleta de cartas. Como coloca Cybele Amado, diretora presidente do ICEP,
no prefácio ao livro – produto desse projeto - “Nesse território oceânico onde
vivemos, cada cidade é como se fosse uma ilha solitária, mas os
habitantes/educadores desses lugares, quase sempre distantes entre si, começaram a
se encontrar graças ao ideal comum da educação”.
Certamente essa experiência que contribuiu para seguir qualificando a
formação leitora de profissionais da educação terá um impacto direto sobre a
formação dos professores e, consequentemente, dos alunos, que é o que desejamos
para constituição de redes leitoras. Isso tudo tem um impacto direto nas instituições
escolares em que os profissionais participantes do projeto atuam, já que, como
aborda Lerner (2002, p.99) “Um dos méritos fundamentais dos projetos institucionais
é o de proporcionar um quadro no qual a leitura ganha sentido não só para os alunos
como também para os professores”.
A culminância do Projeto Institucional de Leitura foi o lançamento do livro
“Histórias de carta em carta”, produto desse projeto, lançado numa confraternização
em que os remetentes/destinatários dos dois municípios se encontraram e puderam
conhecer uns aos outros que se corresponderam durante o ano de 2011. O passo
seguinte ao lançamento do livro foi sua distribuição nas escolas, secretaria de
educação, biblioteca municipal, enfim, espaços em que todos tenham acesso. Assim,
favoreceremos um belo intercâmbio entre os livros e histórias de vida que marcaram
pessoas de Marcionílio Souza e Itaetê e que oferecem um para o outro como presente
um passeio literário, que como coloca uma supervisora técnica participante “Foi uma
experiência muito bonita, muito feliz, pois muito mais do que escrever resenhas, nós
partilhamos histórias de vida nessas cartas que iam e vinham nos coloridos
envelopes, chegando às nossas mãos da forma mais inusitada possível. As indicações
literárias fizeram brotar novas amizades, novos leitores e muita gente mais feliz”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
É notório que a leitura é imprescindível na vida de qualquer pessoa, que um
ambiente leitor desfrutado desce cedo favorece a construção da proficiência leitora.
Mas vale ressaltar que é possível formar-se leitor na profissão, é possível que
educadores qualifiquem suas práticas leitoras e se constituam efetivamente como
leitores cada vez mais obstinados pelo ato de ler.
Nesse ínterim é importante entender o significado que a leitura literária exerce
na vida dos profissionais da educação, e partindo das suas histórias de vida com a
literatura seguir numa aproximação constante de variados autores, leituras, livros.
Os projetos institucionais de leitura são importantes dispositivos de
(auto)formação tendo em vista a mobilização de uma rede leitora, que não fixa-se
apenas no professor, mas que sustenta-se com a formação de todos os envolvidos no
processo educativo, desde secretários de educação, equipes técnicas, diretores
escolares, coordenadores pedagógicos, professores, alunos.
E é nesse contexto que tais projetos possibilitam que os educadores assumam
um lugar de quem pode compartilhar experiências, histórias de vida, e falar sobre as
suas preferências leitoras, frente a uma variedade de obras literárias, trilha
interessante para aportar a condição humana de se emocionar com os livros e
estreitar os laços afetivos e profissionais. Tudo isso na eminência de superação de
uma visão burguesa da literatura que “dita” os melhores livros que devem ser lidos e
recomendados.
Nesse enquadre a formação de uma rede de educadores leitores contribui para
que os estudantes desfrutem de ambientes alfabetizadores e possam ir tecendo
relações cada vez mais afetuosas com a leitura literária.
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O CANTO DA LEMBRANÇA: A memória nas canções de Caetano Veloso
Juan Müller Fernandez (UFBA) Aluno do curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Literários
Resumo: Neste estudo se propõe uma reflexão sobre a memória nas canções que integram o
elepê intitulado "Domingo" (1967), compostas por Caetano Veloso. A análise empreendida foi impulsionada pela voga atual do retorno ao sujeito, ao autor, do memorialismo e do resgate das histórias de vida. Compreende-se que escrever, pintar, cantar e fotografar, na contemporaneidade, tornam-se sinônimos de (auto)biografar-se, de lembrar, de exclusão do mundo em detrimento do Eu. É nesse espaço de criação (auto)biográfica que se insere o cancioneiro plural, que fala da Bahia e problematiza a sociedade brasileira, mas também autocentrado de Caetano Veloso. Apesar de os textos do cantor baiano possibilitarem análises diversas, é inegável que estratégias de autorreferência e deslocamento temporal são marcas recorrentes. Assim, desde o primeiro disco, são notáveis a preocupação com o Eu, com a própria existência; a constituição de uma identidade autor-sujeito lírico e o sentimento de melancolia em torno à própria terra natal, traduzido na vontade de regressar a Santo Amaro do passado. "Domingo" é o primeiro elepê do cantor e, para muitos, inclusive o autor, foi lançado tardiamente, quando o santo-amarense já estava filiado aos ideais tropicalistas, daí a pouca visibilidade. Na obra, a memória é revestida de disfarces diversos: ora assume a vertente ensimesmada e introspectiva, caracterizada pelo desprezo de referencialidades e, por outro lado, pela concentração no estado psicológico do eu-autor, ora se manifesta por fluxo temporal intenso, constituído de incursões no passado subjetivo de Caetano. Observou-se que o canto memorialístico é motivado pelo deslocamento da terra natal, o que gera a sensação de melancolia e saudade dum tempo e dum lugar perdidos. Predomina, no elepê, assim como na literatura brasileira da época (1964), a ficcionalização da própria experiência do ser. Procurou-se resgatar tais textos a fim de se observar como o tema da memória atravessa sua poética, apresentando-se desde o início da carreira. Ademais, as canções selecionadas ("Coração Vagabundo", "Onde eu nasci passa um rio" e "Quem me dera") foram analisadas no intuito de se investigar o papel da memória na criação de estratégias de subjetivação e introspecção e sobre o eu lírico construído por Caetano Veloso, frequentemente autocentrado, a investigar o próprio passado e os vestígios do “homenino” de outrora. Para tanto, buscou-se apoio em textos confessionais do autor e em bibliografia que trata dos ditames da memória (Bergson, Santo Agostinho), dos dilemas da subjetividade (Arfuch, Sarlo, Süssekind) e de pensadores que questionam a produção de Caetano (Franchetti e Pécora; Lucchesi e Dieguez).
Palavras-chave: Literatura brasileira. Teoria da Lírica. Caetano Veloso. Memória.
Autobiografia.
A mera vocalização não é capaz de abarcar a paleta sensorial do fenômeno da
memória, nem segue o compasso do ato poético, bem mostra a tradição literária
ocidental. Desde a Antiguidade, o canto, aqui entendido como interface entre música
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e literatura, se apresenta enredado pela memória. Rapsodos e aedos, ambos
possuídos pela Mnemósine18, possuíam o dom da lembrança e do canto, o que lhes
permitia recuperar longos textos e o passado heroico, superando o potencial dos
demais mortais.
Nesse momento, a atuação destes não estava vinculada à subjetividade, de
modo que a reminiscência exercia papel mais social que individual. Ocorre que,
quando representada, Mnemósine aparece em atitude contemplativa e ensimesmada,
com a mão apoiando o queixo (PUGLIESI, 2003), na posição de quem busca, nos
recônditos da mente e da própria alma, aquilo que o tempo transformou em imagem,
em pura memória, citando “Trem das Cores”, canção de Caetano. Assim, ainda que
timidamente, o Eu já passa a ser reconhecido como mais uma categoria vinculada à
capacidade de lembrar, fazendo par com a categoria de Tempo.
O elemento da subjetividade é aceito após as contribuições de Santo
Agostinho (1996) e Bergson (2011) que inovaram ao considerar, respectivamente, a
memória como lugar de encontro consigo mesmo e resultado de um estado
psicológico de atenção à própria vida. Essas concepções ressoam ainda hoje,
sobretudo, em razão da voga do retorno ao sujeito, ao autor, do memorialismo e do
resgate das histórias de vida. Escrever, pintar, cantar e fotografar, na
contemporaneidade, torna-se sinônimo de lembrar, de exclusão do mundo em
detrimento do Eu. É nesse espaço de criação (auto)biográfica que se insere o
cancioneiro plural, que fala da Bahia e problematiza a sociedade brasileira, mas
também autocentrado de Caetano Veloso.
Ao analisar a produção literária brasileira, a partir de 1964, que se nota, senão,
o predomínio da escritura memorialística? Como negar que o ex-doce bárbaro
persegue as próprias recordações? Dos baiunos, Caetano Veloso é o único em que a
atividade de pensar na Bahia, num passado vivido às margens do Subaé e à beira das
águas da Baía de Todos os Santos, se faz presente em momentos diversos da carreira.
18 A personificação da memória, Mnemósine, uma das filhas de Geia e Urano, pertenceu à primeira geração divina, integrando o grupo de deusas chamado Titânidas. Possuía função de lembrar aos homens os grandes feitos dos heróis. Ela presidia a poesia lírica, e as nove filhas − Musas − inspiram o poeta épico. As Musas (Clio, Euterpe, Tália, Melpômene, Terpsícore, Érato, Polímnia, Urânia e
Calíope) representam todas as formas do pensamento – eloquência, persuasão, sabedoria, história, matemática e astronomia –, além disso, simbolizam as artes liberais (BRANDÃO, 1993; GUIMARÃES, 1972).
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Em comparação com os outros doces bárbaros se nota que Gilberto Gil sempre teve o
interesse pelo aspecto conceitual, pela brincadeira com a linguagem da canção-
poema, para Gal, voz e interpretação, já em Maria Bethânia, destacam-se a
capacidade de dramatização, representação e elaboração de jogos cênicos. Isso sugere
que a produção de Caetano Veloso, por apresentar pontes com a história pessoal do
compositor, ocupa o espaço da diferença entre os companheiros de palco e de vida.
Apesar de Franchetti e Pécora (1988) notarem a “existência indescartável de
um eu que percebe e exibe a sua própria individualidade” nas obras do baiano, tal
obstinação não se restringe à autoexibição esvaziada, antes, reflete o desejo de um
sujeito que deseja se afirmar e se diferenciar dos demais através da trajetória de vida,
como em “Onde eu nasci passa um rio”, “Trilhos Urbanos”, “O Leãozinho”. Além
disso, a autorreferencialidade torna-se uma estratégia que enseja o autoconhecimento
e o avivamento das recordações.
“Domingo” (1967), primeiro long-play do cantor, gravado em parceira no
vocal com Gal Costa, inaugura sucessos como “Coração Vagabundo”, “Um dia” e
“Avarandado”. O elepê é composto de 12 canções que reconstituem a Bahia de
Caetano, isto é, de um sujeito distante da terra-mãe, Santo Amaro da Purificação, já
acostumado às viagens ao Rio de Janeiro e a São Paulo para participar de programas
televisivos e divulgar sua imagem. No disco, a vida calma de Santo Amaro se traduz
no ritmo lento e apaziguador dos acordes, a tradição do samba de roda se apresenta
de modo explícito em “Remelexo”, a religiosidade aparece simbolicamente
representada pela “procissão de velas brancas” de “Candeia”, assim como pela
própria capa do elepê. Não se pode deixar de mencionar a herança de João Gilberto
no timbre intimista dos cantores e, sobretudo, a predominância do tom melancólico,
característico de quem partiu e que deseja o regresso, que contamina as canções. Na
tentativa de compensar a frustração, a estratégia da memória entra cena, liberando
do palácio imagens poéticas de uma vida.
Apesar de, no livro de memórias, intitulado “Verdade Tropical”, o santo-
amarense deixar dúvidas quanto à espontaneidade da representação do espaço
baiano nesse disco, ao revelar que a gravadora tinha a intenção de forjar uma Bahia,
ao menos na capa (ANEXO A), e que Dorival Caymmi – artíficie da saudade baiana –
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também assinava a produção do elepê, contribuindo nos arranjos musicais, é forçoso
contestar a força estranha que Santo Amaro – e as experiências vividas lá – exerce(m)
sobre suas composições. A partir daí o que se pode cogitar, sem inocência, é que a
estética da nostalgia e da memória foi utilizada como meio de divulgação da imagem
do cantor e desse long-play. No livro, Caetano Veloso confessa:
A gravadora encarregou-se da programação visual. Gal e eu fomos levados para o Outeiro da Glória, perto do centro do Rio, para sermos fotografados em frente à igrejinha antiga, para que parecesse que estávamos na Bahia. Eram fotos em preto e branco, e a que foi escolhida é simpaticamente inconclusiva e despretensiosa. [...] O texto que eu escrevi para a contracapa era bom. Sincero e claro, ele rendia homenagens íntimas, trazia muito de Santo Amaro e de Salvador em duas ou três linhas [...]. (VELOSO, 2008, p.151-152).
Uma das hipóteses de Flora Süssekind (2004) é que a dominância dos
discursos memorialista e testemunhal na literatura brasileira, após 1964, deve-se às
estratégias adotadas pelos governos militares, tais como: “[...] limites mais ou menos
estreitos para o trabalho intelectual; censura ou cooptação; prisões, expurgos ou
tapinhas nas costas [...] (SÜSSEKIND, 2004, p. 65). Ademais, deve-se observar esse
fenômeno em termos genéricos: em momentos de grandes tensões sociais, como uma
mudança de organização política, a tendência ao alheamento, em suas diversas
nuanças, se faz imperativa. Com isso, não se justifica a estética do cancioneiro do
santo-amarense pela situação de produção, antes, se realça aqui que este é também
um fator a ser considerado para alguns textos, afinal, Caetano viveu as
transformações políticas do Brasil e sofreu na pele as consequências das imposições
militares. Canções como “Terra”, “London, London” e “Maria Bethânia”, por
exemplo, ilustram as dores e angústias da expatriação forçada, decorrente daquele
Golpe. Em “Domingo” (1967), não se nota influência direta do contexto político da
década de 1960, visto o desligamento espacial da terra natal, isto é, o deslocamento
do eixo Santo Amaro-Salvador para as grandes capitais provocar a experiência do
sonho e da vontade de regresso, possível apenas na memória.
Em “Coração Vagabundo”, canção de abertura do elepê, o discurso subjetivo
fica evidente tanto na superfície do texto, quanto no plano das imagens. Termos
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como “Meu”, “ser” e “quer” representam sua aura ensimesmada, uma vez que
conjugam as categorias de individualidade, ou pessoalidade intransferível – contida
no pronome – e existencialismo, nos verbos “ser” e “quer”. Dessa forma, sujeito,
vontade e memória são palavras-chave da canção: ressalte-se a ausência do
determinante antes do pronome, o que indica a essência narcísica, e o desejo mordaz
de abarcar o mundo em si. “Mundo” aí faz alusão às imagens das coisas vistas e
experimentadas que o sujeito tem medo de se perderem com o passar do tempo, bem
como ao deslocamento espacial iminente, por conta da carreira musical. Destaque-se
ainda que o encontro entre o eu textual e o eu autoral é representado simbolicamente
pelas iniciais do título da canção: exatamente CV, como o nome do autor, Caetano
Veloso (com grifos nas maiúsculas), constituindo, de certo modo, um pacto
autobiográfico19.
Meu coração não se cansa De ter esperança De um dia ser tudo o que quer [...] Meu coração vagabundo Quer guardar o mundo Em mim (GAL; VELLOSO, 1967).
Desde aí, se assiste a uma ligação íntima entre os sujeitos, reforçada cada vez
mais nas outras canções, de modo que se torna árdua a dissociação entre eles.
Lucchesi e Dieguez (1993, p. 22) também observam nesse poema interferências da
vida pessoal do autor, de toda transformação que ocorre após o início na cena
artística, como se vê:
“Coração Vagabundo” se transforma, assim, na criação poético-musical que encarna o esgotamento de uma fase de preparação para algo cujas faces ainda não se revelaram. É a constatação simbólica da existência de uma porta à espera de ser aberta, o que agencia a insegurança somada à determinação.
19 O conceito de “pacto autobiográfico” foi desenvolvido por Philippe Lejeune (2008) para designar a
relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem.
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A segunda canção, “Onde eu nasci passa um rio”, possui essência
autobiográfica e mescla o ufanismo da terra à tensão do deslocamento. Esse tema,
prenunciado em “Coração Vagabundo”, se desenvolve no canto de um “eu” que,
diante duma situação presente, plena de novidades desestabilizadoras, evoca o
passado, a terra onírica, para se (a)firmar como sujeito.
Onde eu nasci passa um rio Que passa num igual sem fim Igual, sem fim, minha terra Passava dentro de mim (GAL; VELLOSO, 1967).
Já na primeira estrofe, é possível observar a tentativa de priorizar categorias
de subjetivação, como espaço, tempo e self. O “onde”, pronome específico para a
marcação de lugar abre a canção, de forma a inserir, num plano superior, a ideia da
terra, enquanto o self, expresso no pronome “eu”, se impõe sobre a desinência do
verbo e aparece após o relativo, sugerindo que o indivíduo não nega “contar-se”,
ainda que o canto seja dedicado a tratar do local de nascimento. O ato de nascer, das
primeiras vivências, indica a ligação afetiva e umbilical do “eu” para com o lugar,
impossibilitando seu esquecimento. Nascer, sem dúvidas, remonta ao contato íntimo,
entrecortado de carícias e afagos, à relação mãe-filho, a qual, por sua vez, encontra
amparo nas simbologias da terra, a mãe Geia. Dessa forma, lugar e sujeito, “onde” e
“eu”, se conjugam, sem qualquer possibilidade de se desvencilharem, pois um abriga
o outro.
Quem espera dos poemas de Caetano Veloso a mesma estratégia de
autoficção, acaba deixando passar despercebidos jogos linguísticos e
correspondências entre palavra e mundo. Nesse poema, “rio” não é um mero
elemento referencial, antes está correlacionado à natureza do espaço habitado, ao rio
Subaé, e se constitui um recurso para falar de si, sem a insistência do uso
pronominal, bem como falar de Santo Amaro, sem referência direta. A memória das
experiências vividas no Recôncavo vem à tona, sobretudo, quando o sujeito
estabelece um diálogo entre os termos “rio” e “terra”, de modo a construir uma
relação de equivalência entre estes, rio = terra (leia-se “rio” passa a sinônimo de
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“terra”). Conforme mostra o relato de Caetano, o Subaé é um elemento importante
para se pensar a feição e a estrutura da cidade, de maneira que sem ele, talvez, esta se
descaracterizasse para os habitantes mais inteirados:
Santo Amaro da Purificação é quase na foz do rio Subaé, tanto que lá é comum que se diga “lá em cima, lá embaixo”, ou “fulano mora lá em cima, mora lá embaixo”, embora a região seja plana, pois a referência mais importante é o rio, de modo que as coisas ficam rio acima ou rio abaixo. (VELOSO apud FERRAZ, 2003, p. 64-65).
Nessa mesma quadra, deve-se também destacar o vaivém temporal que marca
a estética da “escrita de si” ou do “espaço biográfico”, nos termos de Leonor Arfuch
(2010). Para a autora (2010), os textos de nuança autobiográfica adquirem relevância
filosófica, no sentido de reorganizarem a vida, ao postularem possíveis relações
entre os tempos do mundo da vida, do relato e da leitura. Do início ao fim, os quatro
versos da estrofe dão mostras, concomitantemente, da passagem temporal, que parte
do tempo vivido (“nasci”), tangencia o tempo do relato e da leitura (“passa”) e do
processo de reinterpretação da vida, uma vez que, ao se distanciar da terra, o sujeito
percebe quanto o rio é representativo de seu afeto pela cidade natal. A memória, em
termos bergsonianos, poderia ser identificada aí, nesse contato entre passado e
presente, na imposição de um tempo “não atuante” sobre o “atuante”. Esclarece
Bergson (2011) que,
A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela. (BERGSON, 2011, p.77).
A canção “Quem me dera” reforça o binômio deslocamento/ memória,
retratando-a como elemento transformador da subjetividade, de modo que a certeza
do não esquecimento se traduz em gozo para aquele que precisa lembrar para se
sustentar existencialmente. O texto apresenta, de início, um eu lírico a despedir-se da
terra natal melancolicamente. Esse tom grave é gerado ainda nos versos iniciais,
sendo reforçado pela alternância entre vogais abertas e médias, predominando uma
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assonância fechada. Além disso, o elemento melódico colabora para constituir tal
efeito, uma vez que a voz grave e lenta se sobrepõe aos instrumentos:
Adeus, meu bem Eu não vou mais voltar Se Deus quiser, vou mandar te buscar De madrugada, quando o sol cair dend’água Vou mandar te buscar (GAL; VELLOSO, 1967).
Em seguida, ao dar-se conta da possibilidade de recuperar o locus querido por
vias oníricas, sonho e memória (“De madrugada, quando o sol cair dend’água/ Vou
mandar te buscar”), o canto se transforma, dando lugar ao contentamento. Esse
momento adquire feições de euforia, constatadas pela aceleração rítmica e
instrumental e, sobretudo, pela estridência tônica do i, em termos como “dia”,
“alegria” e “Bahia”:
Ai, quem me dera Voltar, quem me dera um dia Meu Deus, não tenho alegria Bahia no coração Ai, quem me dera voltar Quem me dera o dia De ter de novo a Bahia Todinha no coração (GAL; VELLOSO, 1967).
Se por um lado a poética ensimesmada se abranda aí, a verve memorialística
se amplia, pois, além da vontade das lembranças existenciais e da terra, observa-se
ainda uma memória discursiva em relação às canções aqui analisadas. Sustentando
tal afirmação, Lucchesi e Dieguez salientaram, em estudos diversos (1993; 2010), que
a poética de Caetano Veloso possui a característica de retomar de termos e estruturas,
daí a sugestão de imaginar a espiral como símbolo de sua produção. Nessa canção,
são revisitadas a angústia de reter as memórias, interiorizando-as no coração, tal qual
em “Coração Vagabundo”; de “Onde nasci passa um rio” são recuperadas a
morfologia de Santo Amaro, representada pelas águas, o sentimento de lugar
diferente ou incomparável, (Ai, água clara que não tem fim/Não há outra canção em
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mim/ Que saudade”). De ambos os textos, recupera-se a eleição do órgão de
subjetivação, o coração, como espaço das lembranças e o gesto narcísico de
introjeção, de modo que tudo parte do eu e para o próprio deve voltar (“Meu coração
vagabundo/ Quer guardar o mundo/ Em mim; “Igual sem fim minha terra/Passava
dentro de mim”; “Não há outra canção em mim”).
A análise dessa pequena mostra de canções indica que a luta de Caetano
Veloso é simbolicamente travada contra o tempo e o esquecimento, daí o encargo de
citar nomes dos conhecidos (“Gente”), recompor paisagens (“Trem das cores”),
escrever um livro de memórias (“Verdade Tropical”). Obrigação tamanha que fica
explícita em “Trilhos urbanos” (“Bonde da Trilhos Urbanos vão passando os anos/
E eu não te perdi, meu trabalho é te traduzir”) e que revela o compromisso do sujeito
autor com a memória e com a recuperação do passado. Assim, pela lembrança não só
são revistos rostos e espaços, mas também se revive.
Na obra do cantor, a memória utiliza disfarces diversos: ora assume a vertente
ensimesmada e introspectiva, na qual eu lírico e eu autoral se correspondem, ora se
manifesta por fluxo temporal intenso e é motivada por estímulos também variados.
Em “Domingo” (1967) observou-se que o canto memorialístico é motivado pelo
deslocamento da terra natal, gerando a sensação de melancolia e saudade dum
tempo e dum lugar perdidos. Predomina, nesse elepê, assim como na literatura
brasileira dessa época, a ficcionalização da própria experiência do ser, de modo que
“[...] não é a referência o mais importante nessa comunicação poética, mas sim a
expressão de uma subjetividade tão onipotente que se permite afirmar que ‘vai vir o
dia/ quando tudo que eu diga/ seja poesia’, como no poema de Leminski”
(SUSSEKIND, 2004, p.118).
Referências ARFUCH, Leonor. A vida como narração. In: O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, p. 111-150. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 4.ed. Tradução Paulo Neves. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
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BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e da religião romana. Petrópolis: Vozes, 1993. FERRAZ, Eucanaã (Org.). Sobre as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. GAL; VELLOSO, Caetano. Domingo. 1967. LP: Philips. GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, [1972]. FRANCHETTI, Paulo; PÉCORA, Alcyr. Literatura comentada: Caetano Veloso. 2.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau a internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008. LUCCHESI, Ivo; DIEGUEZ, Gilda Korff. Caetano, o pensamento e a espiral. In: SCHAEFER, Sergio; SILVEIRA, Ronie Alexsandro Teles da. (Orgs.). Caetano e a Filosofia. Santa Cruz do Sul: EDUNISC; Salvador: EDUFBA, 2010. p.9-34. LUCCHESI, Ivo; DIEGUEZ, Gilda Korff. Caetano. Por que não?: uma viagem entre a aurora e a sombra. Rio de Janeiro: Leviatã, 1993. PUGLIESI, Márcio. Mitologia greco-romana: arquétipos dos deuses e dos heróis. São Paulo: Madras, 2003. SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J.. São Paulo: Nova Cultural, 1996. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. 2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2004. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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ANEXO A - Capa do Elepê “Domingo” (1967)
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O PAPEL DAS EXPERIÊNCIAS LEITORAS NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES PARA AS
SÉRIES INICIAIS: CONTRIBUIÇÕES DO PIBID
Maria do Socorro da Costa e Almeida Professora Assistente da UNEB; DEDC-I
Doutoranda do PPGEduC – GRAFHO / UNEB [email protected]
Resumo: O presente trabalho aborda a influência da promoção de experiências leitoras na formação inicial de professores como uma oportunidade multilateral de apropriação sociocultural e acadêmica dos ritos da profissão e dos aportes teoricometodológicos para a promoção de situações didáticas, especialmente sobre leitura, na educação fundamental. O estudo se dá em um subprojeto do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) que integra bolsistas, licenciandos em Pedagogia, em um Departamento, da Universidade do Estado da Bahia. Seu desenvolvimento ocorre por meio da operacionalização de um ciclo formativo. Sua programação é constituída de seminários internos de apropriação conceitual, como atividades de culminância dos encontros semanais de leituras, discussões e produção de materiais. Durante cada momento da agenda semanal, a leitura de textos impressos: científicos, informativos, didáticos, literários, etc., além de textos imagéticos: filmes, vídeos com aulas filmadas no contexto da escola pública, fotos, rótulos, cartazes, folders, dentre outras possibilidades, compõem situações formativas intencionais de leitura e pela leitura. Os pressupostos que orientam a condução da proposta apoiam-se em subsídios do campo da formação de professores, nos referencias socioteracionistas sobre aprendizagem e nos aportes teóricos contemporâneos sobre a leitura. A construção de rituais de leitura e formação tem gerado a ampliação de repertórios conceituais e interpretativos na atuação didática dos participantes do PIBID. A intensificação do gosto pela leitura, a intencionalidade na construção de acervos, a dinamização de práticas leitoras nas aulas das séries iniciais, a compreensão acerca das dimensões social e emancipatória do 'ato de ler' e o contato sistemático com as relações que permitem novas construções de sentidos são evidenciadas nas injunções do processo formativo e podem ser consideradas como resultados parciais da experiência, além, do desvelamento de concepções emergentes sobre as práticas pedagógicas que subsidiam o trabalho docente na escola pública, promovendo melhores situações de aprendizagens para os educandos, no ensino fundamental. Palavras-chave: Formação Inicial de Professores; PIBID; Leitura.
1. INTRODUÇÃO
Trata-se de uma abordagem sobre formação do educador alicerçada em
pressupostos contemporâneos que envolvem o debate sobre educação e sociedade
(IMBERNÓN, 2005). A formação do educador, considerando os subsídios dos
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debates emergentes está inscrita nas relações que caracterizam a sociedade do
conhecimento, sua fluidez, simultaneidade, contradição, historicidade e polifonia
(FREIRE, 1999), (CATANI, 2001), (WEISZ e SANCHES, 2006). O sujeito participa
como agente da realidade. Age e interpreta. Propõe, constrói e transforma. Opera em
instituições, recria possibilidades e amplia sua compreensão, ativando seus
dispositivos de subjetividade (CORDEIRO e SOUZA, 2010).
Nesse contexto, a formação inicial do educador encontra-se marcada por
traços inerentes à sua iniciação escolar, ao seu percurso como estudante, à escolha da
profissão, além de todas as experiências vividas por meio das relações propiciadas
pelos componentes curriculares e pelas situações transversais ao curso de
licenciatura (CATANI, 2001), que extrapolam as propostas do currículo oficial. Elas
estão caracterizadas pelas oportunidades de imersão em outras ordens de
experienciação: sociais, filosóficas, culturais, estéticas, linguísticas, dentre outras,
atravessadas pelos sujeitos.
O presente texto aborda, nessa perspectiva, as contribuições das experiências
leitoras para os licenciandos, participantes de um subprojeto do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência – Pibid (BRASIL, 2013), em andamento
na Universidade do Estado da Bahia. São debatidas as relações que esses estudantes,
do Curso de Licenciatura em Pedagogia, estabelecem com a leitura e como essas se
articulam com as injunções da formação docente, que podem se tornar subsídios para
a futura atuação como profissionais.
Ao considerar esses aspectos, a discussão proposta neste texto aborda a
complexidade do conjunto de relações que integram as aproximações entre leitura,
formação, formação inicial (CATANI, 2001) e experiências leitoras (LAJOLO, 1999).
E, ao tratar dessas experiências no percurso de formação, no momento que o sujeito
vivencia dois papéis, escolhidos por intencionalidade: licenciando e bolsista, muitos
elementos emergem no debate: a história de formação vivida por cada um, suas
memórias de leitor (CORDEIRO e SOUZA, 2010), as relações entre ‘ser leitor’ e
preparar-se para atuar como formador de novas gerações de leitores na escola básica
(YUNES, 2009), os impactos das experiências leitoras no Pibid, dentre outros aspectos
e dimensões.
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2. PERCURSOS DE LEITURA E INICIAÇÃO À DOCÊNCIA
Construir percursos de leitura (CORDEIRO e SOUZA, 2010) envolve vivenciar
experiências. A concepção de experiência integra as dimensões do ‘sentir’, do
‘pensar’ e do ‘agir’ (VAN MANEM, 2003) Ela possibilita o conhecimento de si
(CORDEIRO e SOUZA, 2010), por um aprofundamento da autopercepção,
suscitando mudanças na forma de perceber-se e ao entorno. As experiências leitoras
constituem-se em encontros profícuos entre o leitor e as diversas possibilidades
textuais. Nesses encontros, eles se desafiam, reelaboram seus ruídos e
estranhamentos, constróem alianças interpretativas sobre os distintos gêneros
textuais, se desvelam e, sobretudo, operam pactos de deleite ao saborear as leituras.
Para Freire (1999) e Kleiman (1999), ler consiste em uma experiência social
ampliada que dialoga com múltiplas facetas da apropriação do sujeito sobre o
mundo. Ultrapassa os exercícios de decodificação e assoletramento de palavras.
Todavia,
a capacidade de leitura existente anterior à escrita, leitura de mundo, “dos sinais dos tempos”, dos acontecimentos, traduzidas em formas orais, ainda que consolidadas pelos costumes, perderam a sua força. A imagem teve sua expressão narrativa reduzida a uma cena – ver nos museus o apogeu da pintura nos séculos pós-renascentistas e somente com a emergência de novos suportes, a criação de novas linguagens – cinema, TV, outras mídias no século passado, - atentou-se para a necessidade de formar leitores para estes modos de narratividade que já estivera presente na oralidade dos povos ágrafos. [...] (YUNES, 2008, p.1)
Assim, no âmbito das trocas simbólicas contemporâneas, a leitura apoia-se nas
aventuras de construção de sentidos, transversaliza o particular e o público, relaciona
o individual e o coletivo. O ato de ler modifica o leitor e, também, a realidade lida,
pois, relaciona múltiplos atravessamentos de percepção e de autopercepção. A leitura
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supõe a existência de uma intencionalidade: na escolha do que ler, nos modos de ler
e até nas tramas de apropriação (LAJOLO, 1999).
O leitor é convidado a ser mediador entre vários mundos (FREIRE, 1999),
relacionando-os aos seus sistemas de significações e com as emergências do
intangível. Como mediador opera sempre na interface dessas múltiplas realidades.
Debruça-se sobre a estética, sobre o indizível, aguça paladares, modifica papéis, gera
novas indagações, recusa-se às respostas fáceis. Faz das situações leitoras, momentos
de encontros e de desconstruções de suas razões e percepções. Aposta na amplitude e
no ‘frio na barriga’; no encontro com a próxima página, com o próximo texto e,
especialmente, com os sentimentos desconhecidos. A leitura possui dimensões social
e estética,
aprender a ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diferentes esferas sociais (jornalística, artística, judiciária, científica, didático-pedagógica, cotidiana, midiática, literária, publicitária, entre outras) para desenvolver uma atitude crítica, quer dizer, de discernimento, que leve a pessoa a perceber as vozes presentes nos textos e perceber-se capaz de tomar a palavra diante deles (YUNES, 2009, p . 9).
A leitura pode ativar redes de sentidos e memórias, construídas nas interações
entre sujeitos e fenômenos. Seu desenvolvimento depende do aparecimento e da
qualidade das experiências leitoras. Sua qualidade se expressa, levando em conta as
condições em que ocorrem, tais como: local, clima, possibilidade de escolhas de
temas e suportes, estratégias, iluminação, tipos de mediação, etc.
As experiências leitoras podem se constituir como elementos estruturantes da
formação inicial de professores. Os percursos de ‘sujeito leitor’, realizados pelos
licenciandos, podem ser ativados quando são desafiados a construir sentidos a partir
de suas leituras cotidianas e dos rituais de leituras que as iniciativas curriculares
acadêmicas lhes oportunizam.
Parte-se do pressuposto que as experiências leitoras, especialmente, na
formação profissional, compõem um rico mosaico de oportunidades de tematizações
e contextualizações que “integram muitas vozes” no processo de interpretação da
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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realidade da formação e das dinâmicas encontradas na escola da educação básica,
‘lócus’ de atuação do futuro egresso da licenciatura.
2.1 O PIBID COMO ESPAÇO SOCIAL DE LEITURA: VIVENCIANDO AGENDAS
FORMATIVAS
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – Pibid - faz parte
de uma política nacional, vigente, de formação de professores com vistas a ampliar
os investimentos na elevação da qualidade da educação no Brasil. No referido
Programa (BRASIL, 2013), licenciandos, selecionados, recebem bolsas mensais –
aportes financeiros, para se dedicarem à aprendizagem da docência, na etapa inicial
da formação, em subprojetos, vinculados a Universidades e realizados em escolas
públicas de educação básica. Sua atuação é acompanhada por um coordenador de
subprojeto, um professor universitário e por um supervisor, professor da educação
básica. Ambos são bolsistas, selecionados por meio de avaliação prevista em edital
próprio.
No subprojeto do Pibid do Curso de Pedagogia, da Universidade do Estado da
Bahia, foco da atenção deste estudo, o eixo norteador consiste na relação entre a
universidade e a escola, considerando as contribuições do uso do Ambiente Virtual
de Aprendizagem – AVA - na formação de professores.
Foram acompanhados quatro semestres de trabalho docente, no referido
subprojeto, no período de 2011 a 2012. Nesse intervalo de tempo, os participantes
cumpriram um cronograma constituído por três ciclos formativos, com encontros
semanais, integrando horizontalmente: estudantes, coordenadora, supervisora e
pesquisadores. Sua programação foi constituída por leituras, discussões e seminários
internos de apropriação conceitual, organizados para celebrar a culminância de cada
ciclo de formação.
A disposição semestral dos referidos ciclos formativos, os caminhos da
mediação, as categorias norteadoras (Ver Quadro 1., p. 6) e, sobretudo, os referenciais
sociointeracionistas de aprendizagem (WEISZ e SANCHES, 2006) adotados,
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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possibilitaram a transformação dos encontros do Pibid e da sua agenda, em espaço
social de leitura (CHARTIER, 1996), discussão e colaboração.
2.2 SOBRE AS EXPERIÊNCIAS LEITORAS NO ÂMBITO DO PIBID
As experiências leitoras foram desenvolvidas a partir da concepção e da
operacionalização de agendas com itinerários de leituras e de produções, nos ciclos
formativos do subprojeto do Pibid acompanhado neste estudo, conforme ilustra o
recorte a seguir:
Quadro 1. Exemplo de um Ciclo Formativo
1ª Agenda Formativa (seis semanas)
Ações Desenvolvidas Resultados Evidenciados
- Construção do itinerário de leituras,
considerando as categorias de
investigação previstas no subprojeto, a
saber: práxis, aprendizagem colaborativa
e mediação;
- Levantamento coletivo de textos, fontes
e experiências que se constituam em
aporte para leitura;
- Partilha no AVA da agenda de leituras;
- Encontros formativos para socialização e
discussão sobre as leituras realizadas;
- Ampliação e cruzamentos dos conceitos
e impressões emergentes;
- Produção escrita e partilha no AVA das
aprendizagens construídas;
- Elaboração de propostas de aulas para
- Apropriação de rituais de leitura,
discussão e sistematização de
aprendizagens sobre docência,
aprendizagem, práxis, colaboração e
mediação;
- Horizontalização das experiências
leitoras, integrando coordenadora,
docentes e discentes no contexto das
produções;
- Elaboração e apresentação em
congressos científicos de sistematizações
das experiências desenvolvidas na
interface universidade e escola básica.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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educação básica, considerando os
pressupostos estudados e valorizando as
práticas leitoras nos encontros didáticos
com as crianças.
Fonte: Acervo da autora. (ALMEIDA, 2013)
Nas observações realizadas, nos encontros semanais do Pibid, há evidências
de que as experiências leitoras estão inscritas nas relações de aprendizagem sobre a
profissão. A leitura abarca, nessa esfera, processos individuais e coletivos. Possibilita
reflexões acerca dos saberes necessários para a docência nos anos inicias da educação
básica e, especialmente, sobre o lugar da prática no desenvolvimento profissional do
educador.
As experiências leitoras promovidas nos encontros formativos do Pibid
geraram implicações muito favoráveis na constituição da identidade docente e da
trajetória profissional de professores (GATTI e BARRETO, 2009). Embora, se esboce
em meio de muitas tensões e contradições, pois, cada participante é dotado de uma
determinada memória de práticas sociais de leitura, constituindo repertórios
distintos. No entanto, muitas vezes, revelam a superação das vivências fragmentadas
de leitura e de uma ligação meramente protocolar com as práticas de leituras no
contexto da formação.
Para isso, o papel do mediador nas experiências leitoras é estratégico. Esse
mediador precisa ser um leitor e, sobretudo, um ‘educador-leitor’. Pois, sua atuação
precisa contribuir para a ressignificação da concepção de docência e de leitura, para
que o bolsista de iniciação à docência – licenciando - vivencie novas aproximações e
relações teoricometodológicas, qualificando o embasamento de sua formação inicial.
A professora que participa do subprojeto como supervisora bolsista, tem
contribuído no processo de mediação, demonstrado muita responsabilidade e
entusiasmo na promoção de condições para a vitalização das experiências leitoras
entre os participantes, como evidencia a atitude de enviar um e-mail, socializando a
promoção: “Leia para Uma Criança”, realizada pela Fundação Itaú Social, através de
distribuição de livros, selecionados da literatura mundial, possibilitando aos adultos
os lerem para crianças, em seus lares ou em instituições. A seguir o texto do e-mail:
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Meninas, Olha que maravilha!!! Não deixem passar e façam logo seus pedidos. http://ww2.itau.com.br/itaucrianca/index.htm Abcs, C. (Supervisora bolsista do Pibid) Enviada: Segunda-feira, 21 de Outubro de 2013 23:42
Os mediadores de experiências leitoras precisam torná-las significativas e
instigantes, por isso, envolvem os estudantes nas escolhas de repertórios, dinâmicas e
fontes de leitura. Além, de incluí-los na organização dos seminários internos de
apropriação conceitual, nos encontros semanais de leitura e de produção de materiais
para as aulas que serão mediadas pelos próprios bolsistas de ID. Durante cada
momento da agenda semanal, são promovidos modos diferentes de leituras de textos
impressos: científicos, informativos, didáticos, literários, etc., além de textos
imagéticos: filmes, vídeos com aulas filmadas no contexto da referida escola, fotos,
cartazes, folders, dentre outras possibilidades, compondo situações formativas
intencionais de leitura, para a leitura e pela leitura.
Ao apreciar essa diversidade de práticas, se percebe que muitos aspectos
positivos resultam das experiências leitoras no Pibid, dentre eles a articulação entre
processos individuais e institucionais que enriquecem a percepção sobre o trabalho
docente. E, rompe uma cultura individual de formação, contribuindo para o
desenvolvimento pessoal e profissional dos docentes e pesquisadores envolvidos, a
partir da vivência de uma perspectiva de interformação, com redes de
aprendizagem, possibilitadas pelas trocas colaborativas entre os integrantes e os
parceiros do subprojeto.
A discussão que aqui se apresenta, portanto, sinaliza para evidências muito
favoráveis acerca das experiências leitoras no contexto da formação inicial (CATANI,
2001). Pode-se considerar que elas contribuem para o fortalecimento das
oportunidades de desenvolvimento profissional (GATTI e BARRETO, 2009) dos
licenciandos, assim como, para o delineamento de uma identidade de ‘educador
leitor’, pois, eles articulam as construções de sentidos a partir de suas histórias
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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individuais e de leitores, relacionando-as com as vivências partilhadas nos encontros
formativos do subprojeto onde são bolsistas.
Nesse sentido, vale destacar, também, as evidências de motivação,
amadurecimento e de organização do pensamento reflexivo nesses bolsistas de
Iniciação à Docência – ID. Eles passam a vivenciar a autonomia e a exercer, também,
a mediação, como fruto da aprendizagem em rede e de seus processos colaborativos.
Superam a hegemonia das verticalizações e modelos cartesianos de aprendizagem,
predominantes ainda nas propostas acadêmicas, nos quais, os universitários
aguardam passivamente as instruções externas para a promoção de uma
heteroformação. Eis um exemplo que contraria esse modelo: uma das citadas bolsista
do Pibid ficou tão mobilizada com os desdobramentos filosóficos e pedagógicos dos
Ciclos Formativos em sua trajetória em formação e com a retomada de seu prazer
pela leitura, durante a iniciação à docência, que encaminhou um e-mail para os
demais participantes deste subprojeto, socializando uma descoberta:
dica de site http://www.skoob.com.br/, você pode adicionar livros que já leu, criando sua própria biblioteca, livos que quer ler, livros que está lendo, entre outros recursos. (Vi, bolsista de Iniciação à Docência do Pibid/UNEB, 2013.2)
Dessa forma, o amadurecimento das percepções acerca de si mesmo, da escola,
dos alunos, da aprendizagem e de sua própria formação vai aparecendo em atitudes
que revelam mais iniciativa e capacidade criativa de propor soluções. O Pibid pode
se consolidar, desse modo, como um espaço profícuo de formação desse ‘educador
leitor’, tendo em vista que as experiências leitoras suscitam a elaboração de
‘narrativas de si’ (CORDEIRO e SOUZA, 2010) que esboçam o que é ser docente em
formação e como a leitura pode contribuir para pensar sua atuação na escola,
sobretudo, neste momento de iniciação.
A promoção de experiências leitoras, nessa etapa da formação, portanto,
apresenta um potencial singular quando de se trata de refinar percepções, ampliar
repertórios e dinamizar acervos, contribuindo, para a construção uma possível
cultura leitora, que articule sujeitos, tempos, preferências e estratégias para
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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responder às demandas criadas pelas novas gerações de leitores, da Universidade à
Escola, em caminhadas transversais, cruzadas e muitas vezes, contraditórias, porém,
sempre desafiadoras, tendo como pressuposto que não há transformação
humanizadora, sem sensibilidade, enfrentamento e criatividade.
Considerações Críticas
O acompanhamento propiciado pela investigação, realizada até o momento,
revela que as experiências leitoras vivenciadas pelos bolsistas de ID, do Pibid,
propiciam construções multilaterais de sentidos, especialmente em duas direções:
dos licenciandos para a realidade da formação e das necessidades da escola dos anos
iniciais para as propostas acadêmicas do curso de Pedagogia. Esse fenômeno de mão-
dupla interpretativa possibilita a criação de práticas pedagógicas (WEISZ e
SANCHES, 2006) mais contextualizadas e significativas para todos os integrantes do
processo, enriquecendo os percursos de quem se qualifica para trabalhar na
preparação de novas gerações de leitores (LAJOLO, 1999), especialmente na
educação básica.
Nos ciclos formativos, por exemplo, surgem nos bolsistas de ID, a saudável
preocupação de se levar em conta “o que a criança já sabe” e a “história de vida
construída na comunidade”, assim como, valorizar suas linguagens e características
culturais nas propostas de mediação e de construção de situações leitoras. Os
bolsistas de ID tendem a enriquecer as discussões, a partir das leituras realizadas,
com sugestão de temáticas para aprofundamento dos estudos e de critérios de
organização das sequências didáticas que serão desenvolvidas na escola, com o
acompanhamento da supervisora bolsista. Ficam, ainda, os desafios de construção de
sentidos por meio do delineamento de uma cultura leitora que aproxime seus
agentes das dimensões: social, estética, sensorial e científica, em contínua formação.
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Assim, as experiências leitoras durante a iniciação à docência, revelam o
potencial emancipatório do ‘ato de ler’ (FREIRE, 1999), (LAJOLO, 1999), (CHARTIER,
1996), possibilitando apropriações socioculturais e acadêmicas acerca das
características do trabalho docente, integrando o ‘pensar’, o ‘sentir’ e o ‘fazer’ da e na
profissão, traduzindo o gosto pela leitura em oportunidades concretas de operar com
teias de subjetividades para a construção de sujeitos melhores e de uma sociedade
mais justa, flúida e humana, unindo, sujeitos, palavras, gestos e intuição.
Referências
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Docência, 2013. Disponível em: http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid Acesso em: 10 maio 2013. CORDEIRO, Verbena Maria Rocha e SOUZA, Elizeu Clementino. Rascunhos de Mim: escritas de si, (auto) biografia, temporalidades, formação de professores e de leitores. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. (Auto)biografia e Formação
Humana; Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus; Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010, 217-223.
CATANI, Denice. B. A didática como iniciação: uma alternativa no processo de formação de professores. In: CASTRO, A. D.; Ana Maria Pessoa CARVALHO. (Org.). Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira, 2001, p. 53-72.
CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
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GATTI, Bernadete. A. e BARRETO, Elba.S.S. Professores: aspectos de sua
profissionalização, formação e valorização social. Brasília, DF: UNESCO, 2009. (Relatório de pesquisa). Disponível em: http://www.conexaoprofessor.rj.gov.br/educacao-entrevista-00.asp?Edite CodigoDaPagina=3099 Acesso em: 02 abril 2013
IMBERNÓN, Francisco. A Educação no Século XXI: os Desafios do Futuro Imediato. Porto Alegre: Artmed, 2005.
KLEIMAN, Ângela. Leitura: ensino e pesquisa. 3. ed. Campinas-SP: Pontes, 2008.
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LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1999.
YUNES, Eliana, Livro, leitura, literatura... - Entrevista realizada com Eliana Yunes. Revista do SESC-Rio, ano 1, n° 5, novembro de 2008, p.1. Disponível em: http://picpedagogia.blogspot.com.br/2009/03/entrevista-com-eliana-yunes-conversando.html Acesso em: 02 nov. 2013.
YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009 apud http://www.catedra.puc-rio.br/portal/catedra/a_catedra/o_que_e_leitura/ Acesso: 01 nov. 2013.
VAN MANEM, Max. Investigación Educativa y experiencia vivida. Ciencia humana para una pedagogía de la acción y la sensibilidad. Barcelona: Idea Books, 2003. pp. 219.
WEISZ, Telma. SANCHES, Ana. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ed Ática, 2006.
O POETA E A POESIA EM TEMPOS DE CANTAR O FEIO
Vanusa da Mota Santana Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS
Resumo: As mudanças na esfera social relacionadas ao crescimento da civilização e da produção de mercado reduzi o homem à condição de coisa e, cada vez mais, as relações humanas são atropeladas pela avalanche da busca exacerbada pelo lucro. É sobre esta matéria que o poeta, pesquisador e professor Jorge de Souza Araujo faz surgir a outra voz, possibilitada pela poesia, que resgata a sensibilidade humana, quase perdida. No livro de poemas Os becos do homem (2006), este autor põe em xeque os conflitos existenciais humanos, perdidos nos próprios becos da solidão emergidos da convivência conturbada na sociedade moderna. Nessa perspectiva, propõe-se a discussão sobre o lugar da poesia e o papel do poeta em uma sociedade cada vez mais tecnicista, que robotiza o homem transformando-o em máquina de produção e consumo, a partir da análise das poesias Tempo de cantar o feio e Declaração de poesia II, publicadas em Os becos do homem. Jorge de Souza Araujo é natural de Baixa Grande, Bahia. Licenciado em Letras pela Faculdade de Filosofia de Itabuna, mestre e doutor pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Poeta, pesquisador, professor universitário, ministra cursos, oficinas, seminários e congresso por todo o país. Militou em rádio, teatro e jornalismo impresso. Tem publicações na área de poesia, prosa, teatro, literatura infanto-juvenil e crítica literária. O livro Os becos do homem está organizado em seis blocos: As falas, Os enigmas, Os seres, Mortos & Sobreviventes, Munição & víveres, princípios – como proposta de “debater sobre a poesia em si mesma e seu papel ante a ameaça de mecanização do homem, hoje submetido aos rigores de um capitalismo desastroso, que promove a miséria da violência e a violência da miséria” (ARAUJO, 2006, p. 151). Em Os becos do homem a miséria, o tédio, a solidão, a violência, a intolerância, a insensibilidade, a morte, enfim, as mazelas da sociedade capitalista e excludente estão intercruzadas nos labirintos, nos becos do homem. E nessa conjectura, a outra voz que habita o poeta registra a marca, ainda que suja, da vida humana. Portanto, a poesia é a outra voz que habita o individuo e possibilita ao mesmo versar sobre as coisas do mundo e sobre questões intrínsecas ao homem, suscitando discussões que vão além do tempo e do próprio ser humano. As análises empreendidas fundamentam-se em discussões propostas por Fonseca (2006 e 2013), Gullar (1989), Paz (1993), e Pereira (2000).
Palavras-chave: Poeta; Poesia; Solidão; Modernidade; Jorge de Souza Araujo;
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As mudanças na esfera social relacionadas ao crescimento da civilização e da
produção de mercado traz a necessidade de (re)pensar a poesia no mundo
conturbado e demoníaco, oposto à virtude cristã. Essas mudanças proporcionadas
pelo crescimento das cidades mudam a dinâmica das relações humanas e
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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representações artísticas. Neste contexto, a poesia refletirá a nova condição de vida
gerada pela sociedade moderna: a exacerbada busca pelo lucro no mundo regido
pela produção de mercado. O mundo moderno é dessacralizado e a poesia moderna
parte para um processo de ressacralização, a recuperação de uma origem perdida.
Tendo em vista as discussões de Pereira (2000), a ressacralização a partir da
poesia não se refere à conciliação com o mundo religioso mesmo porque em relação
com o cristianismo a poesia estabelece uma ruptura, como na voz dos poetas
malditos, que trazem imagens e vozes diabólicas de um mundo deplorado. A
ressacralização, então, é entendida como o resgate das diferenças entre a relação do
homem com o mundo. Diferenças que aparecem e dialogam no processo criador
artístico. O poeta converte o mundo simbólico de deuses e demônios e temas opostos
são colocados à baila, muitas vezes, em um único poema. Não se trata, portanto, de
separar o religioso e o profano, mas colocá-los em confronto no mesmo patamar. É a
partir do processo de fragmentação e da descentralização da abordagem de opostos
no mesmo espaço – a lírica – que a poesia restabelece a autonomia.
Esse mundo deplorado é versado em os Becos do homem (1982) do poeta Jorge
de Souza Araujo. É da secreção oriunda da inflamação da modernidade que este
poeta retira a matéria do labor artístico, que não é mais um poema romântico e
contemplativo, é um poema sujo porque saiu da sujeira, das mazelas de uma
sociedade que mecaniza o homem na busca desenfreada pelo capital, que invade as
ruas e o próprio ser humano, alienando-o.
Jorge de Souza Araujo é natural de Baixa Grande, Bahia. Licenciado em Letras
pela Faculdade de Filosofia de Itabuna, mestre e doutor pela Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Poeta, pesquisador, professor universitário,
ministra cursos, oficinas, seminários e congressos por todo o país. Militou em rádio,
teatro e jornalismo impresso. Tem publicações na área de poesia, prosa, teatro,
literatura infanto-juvenil e crítica literária.
O livro Becos do homem foi publicado em 1982 pela editora Antares, e 2ª edição,
em 2006, pela editora Via Litterarum. Este livro está organizado em seis blocos: As
falas, Os enigmas, Os seres, Mortos & Sobreviventes, Munição & víveres e princípios –
como proposta de “debater sobre a poesia em si mesma e seu papel ante a ameaça de
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mecanização do homem, hoje submetido aos rigores de um capitalismo desastroso,
que promove a miséria da violência e a violência da miséria” (ARAUJO, 2006, p. 151)
2. O POETA PASSEIA NO MEIO DA MULTIDÃO
No mundo antigo, o poeta tinha o estatuto de Deus, um ser privilegiado que
beirava a perfeição, e a poesia coincidia com a palavra sagrada. No mundo moderno,
em que o sentimento de caos e crise circunda a vida moderna, à medida que robotiza
os seres humanos no ritmo veloz da produção de mercado, o poeta perde o seu locus
original de divindade e a poesia deixa de lado a busca da transcendência para relatar
o cotidiano.
Aleílton Fonseca (2000) no texto O poeta na metrópole expulsão e deslocamento
propõe a discussão sobre a sensação de pertença e não pertença do poeta em uma
sociedade onde já não há um lugar definido para o poeta. No mundo das ações
práticas, o poeta recebe uma valoração ambígua - pode ser visto como elo que revive
a cultura uma vez que possibilita ver o mundo além da razão, ou como elemento à
margem da estrutura produtiva. Esta segunda caracterização de pertença ou não
pertença do poeta à engrenagem central da sociedade está vinculada a relação da
poesia como não geradora de lucro comercial, à visão deste ofício como fora dos
propósitos da sociedade da produção de mercado.
Sendo assim, já não há a crença na inspiração celestial para a criação da poesia.
O poeta desce do pedestal de ser privilegiado, guiado pelas musas inspiradoras, para
caminhar no chão quente de asfalto no meio da multidão das cidades, respirar os
gases poluentes das grandes indústrias, passear entre os dejetos da sociedade
industrial.
Neste contexto, a cidade se impõe como lugar fundamental e adverso do poeta
e da poesia. A rua em seu movimento e organização é o lugar que deve ser
frequentado, pois o poeta moderno sai à procura da matéria da poesia nas situações
corriqueiras da vida. E a poesia nasce da inquietude do poeta frente às questões por
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ele vivenciadas, nasce como desejo de reflexão e mudança de uma realidade
problemática.
Segundo Gullar (1989), no século XIX se incorpora o satanismo na poesia, a
rebelião do poeta, que nega a visão teológica sem se libertar dela. O divino e o
demoníaco estão em conflito permanente na natureza humana. A contraposição do
divino com o satânico será inscrita pelos poetas malditos, a exemplo de Baudelaire. O
satanismo aparece em oposição ao poeta bem comportado, que idealiza a realidade, a
fim de negar a exacerbada virtude propagada pela moral católica e adotada pela
burguesia, constituindo-se, desta forma, como negação ao mundo burguês.
Para Baudelaire, como discute Berman (1986), o artista deve trazer para a
produção artística as forças explosivas da modernidade, respirando no coração da
multidão para de lá retirar a matéria de poesia, porque o poeta é um solitário em
meio à multidão de muitos outros homens solitários. O poeta é um homem comum
que convive com os problemas, anseios, experiências, partilhadas pelo grupo ao qual
está inserido. Sendo assim, Baudelaire demonstra, em suas produções, que a poesia
moderna exige uma nova linguagem sem ritmo e sem verso, uma linguagem
prosaica que nasce da observação da vida acontecendo na cidade.
É justamente da matéria do cotidiano, da exposição da opressão do sistema
capitalista sobre o homem, e como as forças da modernidade pervertem a
sensibilidade humana, que emerge a poesia de Jorge de Souza Araújo. Uma poesia
que mergulha nos becos do homem e de lá extrai a substancia perdida de indivíduos
perdidos e solitários em meio à multidão de milhares de outros solitários.
3. TEMPO DE CANTAR O FEIO
Esse é o tempo de cantar o feio, reflete Jorge de Souza Araujo. A vida não é
bela, por trás das fachadas luminosas que enfeitam as grandes e pequenas cidades, se
escondem as sujeiras, as emendas, os fios decapados da modernidade. O mundo
atual é prosaico, conturbado, problemático e a poesia deve acompanhar essa
mudança. Novos temas, abordagens, nova estrutura. A poesia, nesta instancia, exibe
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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o caráter limitado e ilimitado da linguagem, nela há o não dito, expresso em lacunas
a partir da construção da linguagem. Rompe-se com o elo constitutivo do discurso
objetivo. O poeta, neste sentido, trabalha com a palavra transformando-a sem
obedecer a uma sequência de regras, pois já não há espaço para versos líricos, o
mundo moderno é prosaico e problemático; e a poesia hoje se tece da matéria
tragicômica que se chama morte, avesso da vida, declara o eu lírico em Tempo de
cantar o feio:
Já não há tempo nem espaço para cantar inútil canto Tempo de napalam e de funerais esses não permitem versos líricos nem comportamentos arrebóis ou arroubos ou alumbramentos
A poesia hoje se tece dessa matéria tragicômica que se chama morte - avesso da vida
(ARAUJO, 2006, p. 64)
A última estrofe de Tempo de cantar o feio, expõe que o poeta sai a rua e de lá
retira a substancia de seu poema. Traz para a produção artística as forças explosivas
da modernidade. A organização da linguagem, a escolha lexical, a estruturação
sintática reflete a vivencia da conturbada vida moderna, nela a palavra aparece como
pus, secreção de uma inflamação que corrói a humanidade: o esvaziamento do eu na
massificação da sociedade de consumo:
Por isso nos perdemos na rua assim débeis e bestas soltos na voz do mundo que nos cobra a crua palavra feita pus dessa alegria adiada uma vez mais
(ARAUJO, 2006, p. 64)
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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Na corrida da vida moderna e de toda a aspereza advinda com esse processo,
não há espaço para feitos heroicos porque a vida humana é conturbada. Não temos
heróis de comportamentos arrebóis. Temos heróis de sobrevivência no tempo
fúnebre, que cada dia deixa na nossa carne os germes da nossa morte: sobrevivência
da violência, da exclusão social, de ditames políticos e administrativos, da alienação
do homem na corrida pelo capital, como podemos observar na poesia As pessoas da
urbe:
Essas pessoas apressadas que vedes passar não tem pressa tem medo. São solitárias e sólidas em seu conformismo Tem medo de barata e ratos-de-esgoto medo de si mesmas e seus fantasmas medo de suas sobras na parede medo de pensamento palavras e obras [...] essas pessoas apressadas da urbe morrem um dia uma após uma vede! (ARAUJO, 2006, p. 44)
Nessa poesia o tédio, a solidão, a multidão, a alienação, a explosão
demográfica são temas evocados como componentes da subjetividade do homem
moderno, que tem medo de seus próprios medos.
No mais, as cidades das últimas décadas se organizam como um imenso
turbilhão, redemoinho de novidades, ornamentada pela incerteza, medo, sentimento
de insegurança e instabilidade, pois a modernidade traz consigo a outra face do
desenvolvimento: a violência, a marginalização, o vazio existencial. Nesse cenário, as
pessoas tendem a se isolar cada vez mais em ambientes fechados, aludidos pela
hipótese de um dentro fechado e seguro, criando um habitat de afastamento e
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proteção, isolando-se em seu “mundo” das consequências catastróficas da
modernização, como podemos observar na poesia Apartartamental:
Uma noite dessas O senhor do 302 jogou um cinzeiro na cabeça do filho E a cabeça do menino abriu-se vermelho O senhor do 302 desceu aflito as escadas com o filho no colo O olhar dele (do senhor do 302) Era medo maior que o mundo E tudo se passou nas quatro paredes do 302 Eu nem pude ir lá perguntar como vai a cabeça Do menino Estou esperando reunião de condomínio para fazer isto. (ARAUJO, 2006, 54)
Em Apartamental podemos perceber como as relações de vizinhança são
alteradas na nova dinâmica de vida na urbe. No poema, o homem é identificado a
partir da numeração do apartamento. Um morador observa uma cena atípica e
catastrófica na moradia ao lado, mas não passa de mero espectador; está preocupado
com os afazeres pessoais e profissionais e dentro desse universo de ocupações não há
espaço para uma atenção afetiva em demonstrar preocupação com o problema do
outro geograficamente próximo a ele. A demonstração de preocupação pode esperar
para um momento em que outras atividades serão resolvidas, no caso específico,
uma reunião de condomínio, sem data precisa, mas componente de um calendário de
afazeres previamente estabelecido na agenda de muitos outros compromissos desse
homem urbano.
Em Declaração de poesia II, o eu lírico declara: queremos uma poesia que
assuma o tecido miserável, que se nutre das mazelas da modernidade para, assim,
denunciá-las. Porque ao fazer isso lembra certas realidades camufladas para sugerir,
inspirar e insinuar mudanças de paradigmas:
Quero agora uma poesia patifa que se exponha e denuncie
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e assuma o seu tecido miserável uma poesia que tresande dissolva o amargo desamparo da natureza pobre da linguagem poesia que nada represente senão seu estado mineral e gato solicitante e enferma namorada Quero uma poesia nojenta que diga assim lugar comum lugarcomum lugarcomumlugarcomum e que coisa alguma seja símbolo imagem ou alegoria e seja só náusea e vômito enjoo maior do inútil e vazio definitiva outorga do nihil dixit [...]
(ARAUJO, 2006, p. 76)
A poesia moderna, assim como exige uma nova estruturação de linguagem e
temas, também exige uma nova postura do leitor. Um leitor que seja co-criador de
significados, que preencha, com o seu próprio arsenal de significação, as lacunas da
linguagem traçadas pelo poeta, pois esta é a estratégia do poeta moderno: conferir ao
leitor o papel de co-criador, não mais uma postura meramente contemplativa e
passiva.
Depois de criar o poema, o poeta já não o tem como seu, nem pode se
reconhecer nele porque o poema passa à nova significação, se torna a “imagem-
matriz que cada leitor utiliza para a sua ressignificação, recriação em contato com ela,
cada leitor se defronta com a possibilidade de fazer despertar seu próprio arsenal de
imagens.” (PEREIRA, 2000, p. 36). A poesia moderna não é para ser contemplada
porque o funesto, a impureza, o obscuro, impera:
[...] sim quero neste instante uma poesia sórdida que nenhum poeta nela se reconheça ou asile e nenhum irmão bêbado e solitário a venha declamar
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poesia azeda metáfora do nada-tenho-a-declarar poesia dos covardes dos incômodos dos supersórdidos que renegue a si mesma filha neta e mãe do inconformismo porque quero a poesia impoética a poesia asséptica a poesia improfética que se avexe da epístola dessa fala inexpressiva essa coisa discursiva e letal que é a palavra natimorfa.
(ARAUJO, 2006, p. 76)
O poeta relê o mundo e as coisas a sua volta. Lança-se aos abismos da
existência para de lá revigorar uma sensibilidade humana quase perdida. Lança-se
aos abismos materiais, sociais e políticos de uma sociedade que cada vez mais
valoriza o ter em detrimento do ser. Questiona, problematiza e sentencia porque uma
das formas de resistência e revolução humana está na poesia:
O poeta é um ser muito justamente pueril sentenciou o ministro da Agricultura à beira do abismo: e lançou-se (ARAUJO, 2006, p. 106)
O poeta lança-se ao abismo para fecundar a esperança e a fé nos homens. Há
sujeira e podridão no mundo, mas essa podridão pode ser o húmus para fertilizar os
abismos humanos de esperança e fé em novos tempos. Não é, com isso, negar a
modernidade, mas refletir sobre a proposta de ser moderno. E nessas condições se
encontra o poeta: passeando no podre para cultivar a esperança, que move a
humanidade, que move o mundo.
CONSIDERAÇÕES
Neste mundo fragmentado, no tumultuar das transformações em todos os
setores da humanidade, já não cabe a mitologia nem a divindade do poeta. O poema
reflete as inquietudes do sujeito inserido num contexto de transformações
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tecnológica, social e humana. O mundo moderno torna-se prosaico e a poesia
confunde-se com a prosa. Assim, o abandono das formas clássicas da poesia é uma
exigência da vida contemporânea. O poeta é o homem comum, não mais deseja, nem
pode, a condição de eleito dos deuses.
É de posse dessas discussões que nos confrontamos ao ter contato com a
poesia de Jorge de Souza Araujo. Uma poesia que lateja na mente do leitor e, como
ebulição, promove um arsenal de imagens sobre o ser humano no vazio existencial,
perdidos nos desafios advindos com a modernidade que sobreleva a máquina à
sensibilidade humana.
Em Becos do homem a miséria, o tédio, a solidão, a violência, a intolerância, a
insensibilidade, a morte, enfim, as mazelas da sociedade capitalista e excludente
estão intercruzadas nos labirintos, nos becos do homem. E nessa conjectura, a outra
voz que habita o poeta registra a marca, ainda que suja, da vida moderna.
Portanto, a poesia é a outra voz que habita o indivíduo e possibilita ao mesmo
versar sobre as coisas do mundo e sobre questões intrínsecas ao homem, suscitando
discussões que vão além do tempo e do próprio ser humano. O homem não pode se
esquecer da poesia porque a poesia o habita é a voz que clama de suas entranhas e se
materializa em forma de palavras. “Se o homem se esquecer da poesia, se esquecerá
de si próprio.” (PAZ, 1993, p.).
Referências
ARAUJO, Jorge de Souza. Os becos do homem. Itabuna: Via Litterarum, 2006.
BERMAN, Marshall. Baudelaire: o modernismo nas ruas. In: Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Loriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 129-165.
FONSECA, Aleilton. O poeta na metrópole: “expulsão” e deslocamento. In: FONSECA, Aleilton & PEREIRA, Rubens Alves (Orgs.). Rotas e imagens: literatura e outras viagens. UEFS: Feira de Santana, 2000. p. 43-55.
__________________Por uma abordagem sensível do poema. In.: FILHO, Miguel Attie; ett all. Revista Poesia Sempre. Número 24. Ano 13, 2006.
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GULLAR, Ferreira. Poesia e realidade contemporânea. In: Indagações de Hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 8-15.
PAZ, Octávio. A outra voz. Tradução de Waldir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 133-148.
PEREIRA, Roberval Alves. Unidade primordial da lírica moderna: o tumultuado aflorar de uma linguagem esquecida. In: FONSECA, Aleilton & PEREIRA, Rubens Alves (Orgs.). Rotas e imagens: literatura e outras viagens. UEFS: Feira de Santana, 2000. p. 29-41.
SEVCENKO, Nicolau. Metrópole: matriz da lírica moderna. In: PECHMAN, Robert Moises. Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. p. 61-70.
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Eixo IV
Oralidades no trânsito das culturas contemporâneas
NARRADORES DE JAVÉ: história e discurso.
Jorge Augusto de Jesus Silva20 Célia Ribeiro21
Resumo: O presente artigo busca discutir através do aporte teórico da Análise do Discurso o filme “Narradores de Javé”, utilizando as categorias de interdiscurso, intradiscurso e formação imaginária. Nosso objetivo é identificar as relações de poder que envolvem a escrita da história do vilarejo. A partir da necessidade de registrar a história do povoado de Javé os discursos presentes na obra irão expor a tentativa de objetivar a narrativa histórica como também, irão evidenciar que a busca pelo enredo da comunidade é inseparável da construção da própria identidade. Assim, por meio dos dispositivos da AD, buscaremos analisar os efeitos de sentidos presente na obra em questão.
Palavras-chave: Discurso, História, Interdiscurso, Identidade.
Introdução
O auge da teoria estruturalista ocorreu entre as décadas de sessenta e oitenta
do século XX, e como nos diz Gregolin (2006), houve um “esfacelamento” da
lingüística acadêmica pós-saussureana nesse período, mas marcadamente desde o
início da década de 60, sob o efeito da teoria da Gramática Gerativa, e a (re)leitura de
Marx, Freud e Saussure, por Levi-Strauss, Lacan, Althusser e Derrida. “A análise do
Discurso francesa surgiu nesse contexto como disciplina transversal fortemente
marcada por essa conjuntura epistemológica”. (Gregolin, Idem, p. 32). A autora
afirma ainda que houve, no período de 1960 à 1975, uma reestruturação disciplinar
em torno da lingüística.
Muitas disciplinas que hoje povoam os currículos dos cursos universitários na
área de linguagem marcaram nesse escopo temporal ao menos o seu inicio, ou daí
declinaram graças aos estudos de Bevenistes, Percheux, Greimas, e outros. Podemos
citar várias disciplinas que hoje envolvem a pesquisa em Letras: enunciação,
20 Jorge Augusto - Mestre em Estudos de Linguagem – UNEB. Autor.
21 Célia Ribeiro - Especialista em Análise do Discurso, co-autora.
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Linguística Textual, Argumentação, retórica, semântica, a clássica filologia, algumas
delas ou tiveram suas estrutura modificada ou nasceram no próprio cerne dessas
discussões de meados do século XX na França, como foi o caso da Análise do
Discurso de Linha Francesa (doravante denominada AD). Disciplina a qual a partir
de agora, centraremos nossas discussões.
A AD, surge, portanto dessa releitura empreendida por teóricos franceses
sobre teorias nucleares do pensamento ocidental moderno, Marx, Freud e Saussure, e
marcando um corte, uma fissura com a lingüística puramente estrutural e a-histórica.
Após a fase inicial, onde AD se concentra mais na análise de textos políticos, graças a
conjuntura social da frança e a vinculação política de seus intelectuais com o Partido
Comunista Frances, o objeto de estudo da disciplina passa a vincular-se também a
semiótica junto com a lingüística pois, no sentido de que, mesmo tendo ainda que
vincular o seu objeto de pesquisa à uma materialidade lingüística a AD não se
restringe a análise de objetos verbais, pois, trabalhando com a idéia de análise de
discurso e não da estrutura da língua, qualquer materialidade lingüística torna-se
portadora de sentido sendo ela verbal ou não-verbal.
O rompimento entre lingüística e AD como disciplinas distintas marca-se
definitivamente quando a AD em detrimento da análise estrutural da língua, insere a
história como constituinte do sentido do texto. Surgia então uma teoria do discurso
que considerava a história como elemento central da constituição do sentido,
portanto, a AD, em recusa ao fechamento estrutural da lingüística sincrônica traça
uma teia densa de interdisciplinaridade que irá marcar de forma decisiva a história
da disciplina gravitando em seu entorno, o Marxismo, a Lingüística e a Psicanálise,
dialogando com essas três disciplinas a AD se volta para o externo à língua,
buscando entender como os sentidos são construções discursivas. A respeito dessa
interdisciplinaridade nos diz Orlandi,
a AD é herdeira das três regiões do conhecimento: Psicanálise, Linguística e Marxismo - não o é de modo servio - (...) Interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o materialismo perguntando pelo simbólico, e se demarca da psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele. (ORLANDI, 2003 p. 20).
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È a partir da importância da história na constituição do sentido que
empreenderemos nossa análise do Filme, “Narradores de Javé”, apoiados no aporte
teórico da AD, buscando identificar as formações ideológicas que cercam as noções
de história postas em jogo no cenário teórico desenhado. Para tanto, passemos à uma
leitura parafrástica do intradiscurso da narrativa, buscando pontuar aspectos centrais
no enredo, para posteriormente buscar analisar a formação ideológica de seus
discursos.
O Filme
O filme “Narradores de Javé”, 2003, dirigido por Eliane Caffé, em 1h e 40 min,
relata por meio do gênero drama a história de um vilarejo chamado “Javé” e de seus
habitantes. O elenco do filme é composto por importantes nomes do cinema Nacional
como: José Dumont, Mateus Nachtergaele, Nelson Xavier e Nelson Dantas.
“Narradores de “Javé”” foi indicado como o melhor filme do Festival do Rio,
segundo os júris, popular e oficial, melhor filme e melhor roteiro no 3º Festival
Internacional do Filme Independente de Bruxelas.
“Javé” é um vilarejo fictício que está prestes a ser inundado para a construção
de uma hidrelétrica e como meio para tentar salvar “Javé” a população resolve se
unir para escrever a história local, na tentativa de transformá-lo em patrimônio
cultural a ser preservado. A partir daí uma trama irá se formar trazendo a tona
histórias particulares/peculiares para compor a história do povoado. O filme
Narradores de “Javé”, lança num primeiro momento, por meio da necessidade da
“contação das estórias” de seus moradores, a relevância dos fatos históricos,
preservados através da oralidade, para a construção simbólica, cultural de um povo.
Contudo, surge um novo problema e uma nova necessidade, “Javé” é um
vilarejo pequeno e constituído, em sua maioria, por analfabetos, o único escriba
capacitado para a tarefa parece ser Antonio Biá. Este por sua vez, já fôra expulso da
localidade por inventar estórias a respeito dos moradores a fim de movimentar a
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agência dos correios onde trabalhava e evitar assim o fechamento do mesmo, e a
perda de seu emprego. Antonio Biá é conhecido por “florear” as noticias e
acontecimentos a respeito dos moradores. O papel do historiador pode ser
comparado ao que Biá assume dentro da narrativa quando ao reunir os fatos e relatos
acaba interferindo na história. Nesse sentido, podemos perceber a existência de uma
relação de poder que permeia a coleta dos “fatos “Javélicos”. Aquele que é
alfabetizado, apesar de em outra situação já ter sido expulso de “Javé” agora é
chamado a regressar ao vilarejo por ser o único morador capaz de registrar as
memórias de “Javé”.
No tecer da trama iremos perceber que a história ganha cores e sabores a
partir de quem as conta. Os sujeitos retratam os fatos partindo de sua históricidade e
sua formação discursiva. Em “Javé”, os narradores são múltiplos e múltiplas serão
suas versões. A seguir nos deteremos mais em algumas questões levantadas até
aqui e levantaremos outras que se façam necessárias ou proveitosas para a
compreensão da obra.
Intradiscursos
O relato de uma comunidade que é levada a pensar sua existência, a partir de
um hipotético marco zero, nos impõe uma série de abordagens, quase todas
perpassando a questão da história, ou melhor, do estatuto de ficção ou realidade, que
compreende o fazer historiográfico. A narrativa aciona, da memória discursiva, uma
teia densa de interdiscursos, que remontam desde a montagem do Evangelho através
de vários apóstolos contando a mesma estória, passando por Hômero, que catalogou
na Ilíada e na Odisséia, grande parte das rapsódias, estórias orais, da Grécia antiga,
até os novos pressupostos teóricos da Nova-História, que considera diferentes vozes
na construção do discurso histórico.
Na tentativa de “imaginar a comunidade” (Andersen, 2008) e fundar o senso
de pertencimento coletivo, (Hall, 2001), os “narradores” se empenham em privilegiar,
nos relatos orais a busca do mito de origem, onde é evidente a representação dos
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heróis e do mítico, elementos comuns nas “literaturas de origem” ou nacionalistas,
característica do romantismo literário. Na obra, esses personagens são encarnados
pelas figuras de “Mariadina” heróina e feiticeira, ou “Indalécio” herói.
Como já foi dito, o que a comunidade vislumbrava era “escrever a grande
história do “Vale do “Javé”, para através de seu valor simbólico, impugnar a
construção da represa que os desalojaria. Só que essa história se embasaria em
métodos ciêntíficos para que pudesse ser aceita pelo Estado. Essa condição de
ciêntificidade veio a originar um dos principais dilemas expressos no filme: a relação
dicotômica entre saber ciêntifico x saber popular, que no filme é, mais
especificamente, encarnada pela relação tensa entre oralidade e escritura.
Porque a escritura é o lugar do estanque, da institucionalização, e da verdade.
Enquanto a oralidade é o espaço do dinâmico, do popular, e da diversidade. Ambas
encarnam cada uma a seu modo a tensão inerente a linguagem quando buscamos
adentrar seu campo discursivo, tensão que segundo Orlandi (2003), estrutura-se em,
paráfrase e polissemia.
Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre, algo que se mantém, isso é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim, o retorno aos mesmo espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase esta do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ele joga com equívoco. (ORLANDI, 2003, p 36)
Assim a escritura, ou seja, a institucionalização de um discurso significa a
tomada do poder, através da linguagem, e a sua manutenção através da paráfrase,
por um determinado grupo social, o que opera a “interdição de discursos” através do
“Direito exclusivo, ou privilégio do sujeito que fala” (FOUCAULT, 1970). Essa
tentativa de tomada de poder através da palavra é representada várias vezes ao
longo da narrativa, todas as vezes que alguém quer impor seu relato como verdade,
em detrimento de todos os outros relatos.
A solução sugerida pelo autor do filme, a certa altura da narrativa, é não
escrever nenhuma estória, pois como diz o personagem Biá: “não há mão que dê
razão” aquelas histórias. E aqui voltamos à questão da escritura como verdade;
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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escrever é dar razão. E quem se insurge contra a razão? Ou melhor, quem se insurge
contra a verdade? Está aí delineada grande parte do questionamento da narrativa, a
saber: História ou estória, onde ficção, onde realidade? È um questionamento,
também, sobre a isenção do pesquisador frente ao objeto de pesquisa em história.
Mas a tensão entre realidade e ficção certa hora extrapola a disciplina historiográfica
e estabelece outra dicotomia, entre Literatura e História, a primeira encarnando o
“floreio do fato através da escrita” como queria Biá, e a segunda o relato do fato,
como exigia a ciência.
A narrativa caminha nos apontando a impossibilidade da cientificidade do
relato histórico, o que fica impresso na impotência de Biá em escrever a narrativa
fundacional da comunidade de “Javé”. Fato que ele se propôs a fazer apenas, na
ultima cena do filme, quando o povoado já havia sido destruído. Porém, aponta que
o faz dando espaço a polifonia e a polissemia construindo uma narrativa permeada
pelas várias vozes, longe da cientificidade exigida pelo livro que seria entregue ao
governo para embargar a construção da hidrelétrica.
As relações de poder também aparecem no decorrer da narrativa em diversas
formas e encarnada por relações que sempre impunha como uma das partes o
narrador da “grande estória de “Javé””, Biá. Pois, sendo ele, autoridade que julgaria
o que era, enfim, a História oficial daquele povoado, passou a gozar de repentino
prestígio entre seus habitantes, já que foi a ele delegado escrever o discurso que
interditaría todos os outros.
É importante salientar que, os termos: “Javé”, “livro da salvação” e grande
parte dos nomes próprios no filme, remetem à narrativa bíblica, o que nos possibilita
uma leitura do filme que busca através de um diálogo interdiscursivo com o “livro
Sagrado” questioná-lo enquanto relato verídico, e situá-lo enquanto uma narrativa
estórica e fundacional como todas as outras, relativizando seu status de verdade e
seu poder de interdição. Esse gesto de interpretação é possibilitado quando
atentamos para o fato de o povoado se chamar: narradores de Deus, (que é a
tradução de “Javé”), ou seja, em um trocadilho nada ingênuo, quem narra a história
da comunidade, narra a história de Deus e está por sua vez, está na bíblia. Assim,
para concluir o seu projeto de questionar a autoridade e veracidade das narrativas
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fundacionais, o autor, questiona a narrativa paradigma, buscando apontar o caráter
político e ideológico presente em qualquer narrativa histórica.
Portanto a narrativa é a forma de resistência simbólica encontrada pela
comunidade para não desaparecer, ou seja, reencarna-se a milenar tática oriental das
“mil e uma noites” de Sherazade “narrar para não morrer”. Assim, o povoado,
através da narrativa, opera uma série de procedimentos que lhes permitirá eternizar-
se: a invenção da tradição, o mito fundacional, a figura do herói, e o passado
histórico aonde se constroem a identidade local. Identidade essa que permeia entre
silenciosa e silenciada toda narrativa.
Zygmunt Bauman (2004), discorrendo sobre o tema da idêntidade, nos aponta
dois tipos de comunidade: as de vida e de destino. Primeiro “os membros vivem
juntos ´numa relação absoluta´ ”, segundo as que “ são fundidas unicamente por
idéias ou uma série de princípios”. O autor sustenta que as idêntidades só são
questionadas, ou pensadas quando são deslocadas: “a questão da idêntidade só surge
com a exposição a comunidades de ´segunda categoria’ ”. Ou seja, dialogamos com as
idéias de Bauman para dizer: quando o indivíduo é levado a pensar sobre a
identidade, é porque está se encontra ameaçada, suprimida, negligenciada, ou
preterida dentro das relações de poder que o cercam.
É exatamente assim, que ocorre em “Narradores de Javé” quando a busca
pela narrativa da comunidade é inseparável da busca pela própria identidade. È a
identidade local a única que nos é dada, adquirida de nascença, mas, nem essa
possibilidade tinham os moradores de “Javé”, pois a própria comunidade não tinha
identidade para lhes fornecer, daí a necessidade urgente de se pensar “o local”, não
apenas, como sugere superficialmente o filme, para embargar as obras da represa,
mas sim, para cada morador saber e compreender quem seriam fora da localidade.
Sobre a questão da narrativa e da identidade é importante ratificar que, o
enredo do filme inclui um homem que conta a história de “Javé”, estando em outra
comunidade, após a destruição do povoado. Isso aponta para o sucesso do
empreendimento dos narradores que perpetuaram a comunidade, pois alí está ela,
simultâneamente na mesa de um bar, num livro e num filme, eternizada e, de certo,
plural, como aponta as ultimas falas do filme, “cada um que escreva a sua”. O
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questionamento da narrativa enquanto história oficial se deu em uma narrativa
ficcional, e dentro desta uma narrativa conta a outra, em uma teia metalinguística
que parece nos querer apontar para o dever de auto-questionamento que deve
permear o fazer histórico, ou qualquer outra forma de narrativa ou pretensão de
verdade absoluta.
Como uma súmula, do exposto até aqui gostariamos de pontuar dois
momentos chave no filme “Narradores de Javé”: Em sua primeira entrevista Biá,
personagem central (não principal) na narrativa, explica, ao morador que irá relatar
seus “causos”, o porquê de usar lápis e não caneta na escrita das estórias. O que nos
aponta, sem dúvida, para a possibilidade de re-escritura eterna da história, já que
esta não passa de uma estória elevada ao status de verdade por relações de poder
que permeiam discurso e sujeitos na sociedade. A outra cena ocorre já perto do fim
da narrativa, quase à quisa de conclusão, quando Biá, admite que não escreveu
história nenhuma e argumenta que esta não seria suficiente para salvar o povoado e
um outro personagem lhe diz: “se Biá já não valia nada, sem “Javé”, vale menos
ainda”, essa fala nos parece uma síntese da breve discussão feita acima, sobre o
sujeito e sua identificação com o local, o indivíduo e sua identidade. Pois, se o sujeito
pós-moderno é descentrado e fragmentado, é justamente no território aonde se
busca, muitas vezes, a utopia de um resquício de unidade. Cremos que nessas duas
metáforas: a história escrita a lápis e o homem valendo menos sem o território, são
nortes imprescindíveis para que possamos verticalizar a análise desse filme e
compreendê-lo na sua diversidade de abordagens. Acrescentando, é claro, a narração
enquanto ferramenta pela qual, esses processos discursivos se tornam possíveis. Pois,
recorrendo de novo a Sherazade, temos que salientar que: se a narrativa garante a
vida, perpetua junto com ela, o ato de narrar, a invenção, novas estórias, e permite
assim o movimento polissêmico da identidade e da história.
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O interdiscurso: memória discursiva e a construção da memória.
Como discutimos na introdução, é a relação entre linguagem e história que
estabelece os sentidos de um enunciado, de um signo. A historicidade do sujeito e do
enunciado é parte constituinte do sentido. Para AD não há sentido apenas na
linguagem em si. È na relação com a história e graças a ela que o sentido se instaura e
se multiplica em várias direções. O que determina também o aspecto múltiplo e
instável do objeto estudado na AD, em nosso caso, não é a materialidade do filme
propriamente dita que guarda todos os efeitos de sentido e discursos que o
significam, mas sim a teia densa de interrelações entre discursos, as diferentes
maneiras de acionarmos e significarmos o interdiscurso, como nos aponta Brandão,
Sobre a relação interdiscursiva, Maingueneau (1984) adota uma oposição mais radical ainda ao proclamar o primado do interdiscurso sobre o discurso. E isso o leva a afirmar que ‘a unidade de análise pertinente não é o discurso mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos (BRANDÃO, 2004, p. 89)
Essa característica da AD delega à interdiscursividade, ou memória discursiva,
papel central, dessa forma, como nos aponta Brandão (2007) a análise de um discurso
é construída estabelecendo sua relação com outros discursos. Assim, estabelece-se
que não há discurso original, nem originário, há a relação entre historicidades
contextos e linguagem, na formação do sentido. Portanto, buscaremos através do
interdiscurso do filme “Narradores de Javé” acionar sua memória discursiva e
atravessar a opacidade de seu discurso.
Portanto, é com base na noção de interdiscurso, que estamos buscando a
análise discursiva de “Narradores de Javé”. Utilizamos aqui o conceito de
interdiscurso conforme trabalhado por Orlandi,
o conjunto, o todo, a dominante, das formações discursivas. O interdiscurso é o conjunto do dizível, histórica e linguisticamente definido. Pelo conceito de interdiscurso, Pêcheux nos indica que sempre já há discurso, ou seja, que o enunciável, (o dizível) já está aí e é exterior ao sujeito enunciador. (Orlandi, 2007, p. 87)
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De posse do conceito, veremos como as discussões empreendidas pelo filme
nos lançam a alguns eixos centrais de problematização, todos presentes no
interdiscurso. O mais nuclear deles é a “impossibilidade histórica”, por essa
expressão entendamos a impossibilidade de compreender a história como uma
narrativa generalizante e homogênea, portadora da verdade. A Filosofia da história
desde Nietzsche e antes dele, tem se preocupado com o papel da história na
sociedade. As propostas do filósofo alemão para a história eram as de questionar a
validade da história que usava o passado como objeto de culto e veneração, sem
extrair apenas o que nele era grande. Para o filósofo, apenas o passado que servisse
para melhorar o presente era digno de ser lembrado.
Algumas das mais fundamentais concepções de Nietzsche foram retomadas
por Foucault, na França da década de 60, e discutidas em suas obras As Palavras e as
Coisas e principalmente Arqueologia do Saber, o que essas idéias foucaltianas
sugeriam é que a concepção de uma história linear e evolutiva fosse substituída pela
noção de descontinuidade e ruptura. Em suma, para Foucault (2005) em Arqueologia
do Saber, os novos estudos em história deveriam privilegiar a descontinuidade em
detrimento da linearidade, e a história e o documento deveriam ser desligados do
papel de memória, passando estes a serem estudados através da organização, recorte
e estabelecimento de séries, fundando-se com esses pressupostos a História
arqueológica. Da qual o autor cita como algumas de suas conseqüências: a
multiplicação das rupturas na história das idéias; a noção de descontinuidade toma
lugar importante nas disciplinas históricas; começa a se apagar, o tema e a
possibilidade de uma história global. O que se desenha nesse período com esses
estudos de Foucault, e antes na Revista Analles na França dos anos 20, e tem sua
origem como dissemos em Nietzsche é uma ruptura com a idéia tradicional de
história. Ou seja, a concepção de história como fato, verdade é relativizada na pós-
modernidade. A história passa a ser compreendida como uma construção discursiva,
sendo assim, entendida como discurso imerso nas relações de poder que configuram
o tecido social. A partir de então, eram necessárias algumas perguntas, como: quem
escreve a história? E de onde fala quem a escreve?
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Essas mudanças teóricas na concepção de história causaram grande impacto
em algumas áreas das ciências humanas, como filosofia e literatura. Em filosofia
contribuindo para a transformação e questionamento do conceito de História, e em
Literatura, imbricando de vez o fazer histórico e o literário como demonstra em seus
estudos a autora, Linda Hutcheon, para quem a presença da história na poética pós-
moderna ocorre de forma paradoxal, pois, a história é resgatada, mas para ser
ironizada, problematizada, como em “Memorial do Convento” de José Saramago, ou
“Viva o povo Brasileiro” de João Ubaldo Ribeiro. Não há, em relação à história, uma
postura de crença e obediência como se costumava ter antes das transformações
teóricas empreendidas no campo da história pelos estudos da “arqueologia” de
Foucault, e dos teóricos da Nova-história, Burk, Le Goff, Certeau, entre outros.
Com base nesse resgate histórico para problematizar a própria história que é
resgatada, a autora desenvolve o conceito de metaficção historiográfica que:
Refuta os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção[literatura]. Ela recusa a visão de que apenas a história tem pretensão à verdade, por meio do questionamento da base dessa pretensão na historiografia e por meio da afirmação de que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua pretensão à verdade. (HUTCHEON, 1991)
Ou seja, a discussão, empreendida no filme, em que, como citamos a
cientificidade e a verdade da História é contraposta à característica ficcional da
literatura tem sua memória discursiva imersa nas discussões teóricas sobre nova-
história e literatura moderna, e mais, nas teorias do discurso, já que ambas, literatura
e história, passam a ser entendidas e estudadas como discursos ideologicamente
marcados. Assim, quando a personagem de Antônio Biá, diz que vai florear as
histórias que lhe são contadas e o líder da comunidade se opõe instaura-se o embate
entre a cientificidade e a cultura popular, ou entre as concepções de História
Tradicional e História Nova.
Outra abordagem que nos permitirá acionar o interdiscurso em torno do filme
é a idéia de progresso como pilar das políticas de desenvolvimento nacional. Embora
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distinta do primeiro aspecto trabalhado como interdiscurso constituinte do sentido
em “Narradores”, a saber, a história, este, o progresso, guarda com o primeiro,
interseções que se tornarão mais clara, no desenrolar da análise.
As primeiras aparições acerca da concepção de evolução, desenvolvimento e
progresso, surgiram no pensamento nacional, justamente quando a nação se
emancipava enquanto tal, quando as nações européias, desenvolvidas e civilizadas
serviam como modelo a ser seguido. Dessa forma, desenvolver-se, tinha modelo e
nome: Europa. Após a independência a idéia de progresso deu-se paralela a de
modernização, desenvolver-se é modernizar-se. A partir de então foi grande a
aplicação do lema positivista impresso em nossa bandeira, nas várias frentes da vida
nacional. Para iniciar em 1922 a semana de arte moderna de São Paulo, marca de
forma decisiva a vontade de modernidade que deveria emergir na sociedade
nacional, depois, com o “Plano de Metas” de Juscelino Kubitschek, vimos a previsão
de desenvolver a indústria e o mercado nacional à proporção de 50 anos em apenas
5, adicionado a isso, a Brasília de Lúcio Costa e Niemayer, não apenas como uma
cidade, mas um signo de modernidade e desenvolvimento. Poderiamos descrever e
discorrer inumeráveis aparições do projeto progressista na política e nas letras da
nação, mas nosso intuito aqui é outro, é apenas pontuar a existência desse discurso
de progresso e mostrar como ele significa no filme Narradores de Javé.
Na obra em questão é justamente “progresso” a palavra mais silenciada na
narrativa. Como expresso no filme, a idéia de destruir uma comunidade inteira em
detrimento da vontade de progresso, reencena inúmeros fatos antigos e recentes,
como o genocídio indígena pelos colonizadores para tomada de terras, e atualmente
a instalação da Hidrelétrica de Belo Monte, projeto do Governo Federal que levará ao
desalojamento de reservas indígenas no Amazonas.
O que nos interessa entender é que a noção de progresso tal como ela foi
encenada na política nacional desde que a nação era colonizada é uma idéia que
custou muito caro: primeiro, se desenvolver-se era ser igual ao europeu, não
poderíamos ser negros, e aí excluí-se o negro do projeto de formação da nação, antes
disso, precisamos nos livrar dos índios para usar a terra de forma a desenvolver a
economia e os matamos, por último no afã de modernizarmos construímos
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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metrópoles com problemas básicos de saneamento e esgoto. Terminamos
construindo uma modernização para ver, processo que a muito custo está se
adequando a realidade nacional através de políticas recentes de inclusão e reparação
para as classes populares.
Essa realidade nos leva obviamente a pensar a quem serve esse projeto de
progresso que permeou a história nacional, de forma tão desorganizada e aleatória,
com projetos visionários e cidades futuristas em meio a problemas elementares de
saúde, emprego e educação. Quem geria e gerava esse projeto de progresso nacional,
as custas da própria nação? De certo, essa questão nos indicará a formação ideológica
dos discursos que formulam as concepções de história e progresso em Narradores de
Javé.
O interdiscurso que concretiza os sentidos na materialidade lingüística
estudada é por tanto, um apanhado das discussões sobre a história nas ciências
humanas, aonde na verdade o autor do filme, busca contrapor duas noções de
história, a hegeliana, a história tradicional e a nietziniana ou foucaltiana, que deram
origem a nova-história. E a noção de progresso que permeia a formação política do
estado brasileiro. Esses dois eixos centrais, constituem as relações de força e sentido
que habitam através do interdiscurso as formações ideológicas no discurso do filme.
Formação Ideológica
A ideologia encontra como uma de suas formas de materialização o discurso, é
nele que a superrestrutura e a linguagem estabelecem relações significantes,
“constituindo-se o discurso como um dos aspectos materiais da ideologia pode-se
afirmar que o discurso é uma espécie de pertencente ao gênero ideológico” (Brandão,
2007. Pg 47). Ainda segundo a autora, ao analisarmos a relação da ideologia com o
discurso, dois conceitos chaves despontam como centrais, o de Formação Discursiva
(FD) e o de Formação Ideológica (FI).
As FD inscrevem-se nas FI como espaços de dizeres que institucionalizam “o
que pode e o que deve ser dito” (Courtine, 1981), dessa forma as FD são dizeres
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instituídos e legalizados para reafirmar a ideologia a que pertencem, estabelecem-se
a partir de um vasto campo parafrásico de afirmação do mesmo, ou seja, da mesma
ideologia. É dessa forma que a interpretação se transforma em uma maneira de
reafirmar os poderes que a materialidade lingüística expões ou institui, contra a
evidência da interpretação é que se posiciona a AD, pois, toda interpretação é já data,
como ideologicamente marcada pela FD, de onde o enunciador se posiciona. È o que
Orlandi (2000) nos alerta com o nome de transparência da linguagem. A linguagem
não é transparente por isso a AD busca atravessar sua opacidade estabelecendo a
relação da língua com a história e o sujeito, através dos feixes que ligam o discurso e
a ideologia que os profere, estando essa, em última instância, sempre relacionada as
estruturas econômicas da realidade social,
o funcionamento da instância ideológica deve ser concebido como ‘determinado em última instância’ pela instância econômica na medida em que ele aparece como uma das condições (não-econômicas) da reprodução da base econômica, mais especificamente das relações de produção inerentes a esta base econômica. (BRANDÃO, 2007, p. 46)
Portanto, não há discurso descaracterizado ideologicamente, neutro diante as
tensões e polaridades da sociedade na qual se inscreve, pois se o signo enquanto
linguagem é neutro, ou melhor, arbitrário, tanto em Saussure quanto em Pierce, isso
quer dizer que o signo não tem significado em si, ele é dado em relação a outros
significados e no caso da AD, em relação ao exterior e a história. Dessa maneira é a
relação do enunciado com seu contexto e sua história que o significam, “essa
inscrição dos efeitos linguísticos na história é que é a discursividade” (Orlandi,2000.
Pg 47), daí a impossibilidade da neutralidade, já que cada contexto enunciador
significará conforme seu próprio interesse. Porém a questão é que essa significação
não se dá na superfície do enunciado, mas sim, sob a poeira de sua opacidade, ou
seja, não se dá, na língua, nem na linguagem, mas no discurso. E muitas vezes a
revelia de quem a enuncia. Pois a FI não pertence ao sujeito, mas a posição sujeito
que ele ocupa quando enuncia, como nos diz Orlandi:
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devemos ainda lembrar que o sujeito discursivo é pensado como ‘posição’ entre outras. Não é forma de subjetividade mas um ‘lugar’ que ocupa para ser sujeito do que diz, (M.Foucault, 1969), é a posição que pode e deve ocupar todo sujeito para ser sujeito do que diz. O modo como o sujeito ocupa seu lugar enquanto posição, não lhe é acessível, ele não tem acesso direto a exterioridade (interdiscurso) que o constitui. (ORLANDI, 2000, p. 49)
Então buscando atravessar a opacidade da linguagem em Narradores de Javé,
o que nos interessa é, a partir do interdiscurso já aqui discutido, delimitar a FI do
filme. Há uma ironia que atravessa toda a narrativa, que é o fato da comunidade
chamar-se Narradores de Javé, de fato há nessa denominação a intenção de nos
remeter a busca de uma origem, um começo. Essa origem é o que marca a identidade,
Zygmund Bauman, em Identidade (2000), discute a busca da identificação como uma
condição que somente perturba aquele a quem sua identidade tida como natural foi
deslocada, ou questionada. È justamente o que aparece no Filme em questão, mas aí
estamos diante da grande ironia da obra, que é a seguinte: A história da civilização
ocidental moderna é em grande parte um diálogo ininterrupto com o paradigma da
narrativa bíblica, no sentido de estabelecer o mito de origem. As nações fundaram
seus nacionalismos no mesmo modelo bíblico de forjar uma origem e uma tradição
para o povo.
A partir, do momento em que o autor explicita a impossibilidade de escrever a
história dos “Narradores de Javé”, com base nos pressupostos positivistas da história
tradicional pautada no fato e no documento, como é exigido pelo líder comunitário
no filme, “a história tem que ter base científica”, ele está relativizando a própria
narrativa bíblica e, por conseguinte, toda a narrativa histórica do mundo ocidental. A
questão que discretamente o autor nos impões é: Se é impossível escrever a história
com base num pressuposto único de verdade do fato, que história é essa que
conhecemos como nossa? Quem a escreveu? E aqui pela primeira vez encontramos a
FI do filme, pois, através desses questionamentos o autor expõe o caráter arbitrário e
social da história. Quando Robsbawn (1999) disse que “o Nacionalismo é um
fenômeno visto do alto” ele disse justamente que a História é escrita do alto, ou seja,
pelas camadas dominantes socioeconomicamente, como também nos aponta Certeau,
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A história era, antes de tudo, obra de justificação dos progressos da Fé ou da Razão, do poder monárquico, ou do poder burguês. Por isso, durante muito tempo ela se escreveu a partir do “centro”. Os papéis representados pelas elites do poder, da fortuna, ou da cultura pareciam ser os únicos que contavam. A história dos povos se diluía na história dinástica, e a história religiosa na da igreja e dos clérigos. Fora dos grandes autores e das letras eruditas não havia literatura. A partir do centro irradiava-se a verdade, à qual eram comparados todos os erros, desvios ou simples diferenças – por isso, o historiador podia legitimamente situar no centro sua ambição de escrever uma história “autêntica” e “total”. O que escapava ao seu olhar era apenas “resto” supérfluo, “sobrevivência” anacrônia, “silêncio” cuidadosamente entendido ou simples “ruído” sobre o qual se evita falar. (Certeau, apud. Le Goff, 2005).
Nesse ponto chegamos ao que Brandão (2007) denominou como a relação da
materialidade lingüística sempre em última instância com a superrestrutura,
definindo a FI.
Se a história é escrita do alto justifica-se o fato de Antônio Biá não ter
conseguido escrever uma história que se oficializasse para representar a comunidade
e impedir o seu apagamento geográfico. Pois, as camadas populares têm o direito à
escrita da história interditado. Por isso, a história dos Narradores de Javé, escrita,
pelos populares, como sinalizada no final do filme, é destituída das bases de
cientificidade, objetividade, e verdade exigidas para a transformação da comunidade
em Patrimônio Cultural, o que sinaliza a existência de outra história silenciada e
marginalizada nos porões do esquecimento da história oficial. Dessa forma, nos diz o
autor que a história ocidental serve ao poder, a camada economicamente dominante
da sociedade.
Outro recorte do interdiscurso que nos permite sinalizar a FI do filme é a idéia
de progresso, que sinalizamos acima. A noção de desenvolvimento e progresso tão
caros à política nacional de início dos anos trinta estendida durante parte do regime
militar e incorporada a vontade de formação do Brasil como grande nação, é de certo
um projeto Burguês. O filme mostra a destruição da comunidade para construção de
uma represa, sem em momento algum demonstrar preocupação estatal com o
destino das pessoas da comunidade do Vale do Javé. O silêncio sobre a questão na
verdade expõe o discurso da justificação do progresso, ou seja, não há nada nem uma
comunidade sua herança e sua cultura, ou um grupo de pessoas nem de interesses
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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comunitários, nada pode atrapalhar o desenvolvimento e o progresso da nação. De
certa forma, o autor do filme satiriza, ou melhor, ironiza o projeto de
desenvolvimento nacional, apontando que a medida que este processo predatório de
desenvolvimento se desenrola a nação vai devastando sua memória e sua gente.
A FI expressa no filme é, portanto, contrária a noção homogeneizante de
história, e a noção capitalista de progresso, por julgar que ambas servem ao poder
instituído e reafirmam através de suas produções simbólicas, sociais e econômicas as
desigualdades presentes na sociedade. Em Narradores do Javé, há a vontade de uma
escrita histórica que ouça as vozes sociais de forma democrática, como também, a
ambição de propor um novo modelo de desenvolvimento socioeconômico, mais
inclusivo e mais humano, onde a construção do progresso tecnocientífico não
signifique negação da identidade e das histórias da nação.
Referências
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Risério, Antônio. A Nova História Oficial do Brasil. in: A utopia Brasileira e os Movimentos Negros. 1 ed. São Paulo. Editora 34, 2007.
ORALIDADE, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÕES: Quem somos e qual é a nossa voz?
Tatiane Malheiros Alves IFBaiano / Uesb-PPGCEL
Rita de Cássia Mendes Pereira Uesb-PPGCEL
Resumo: As práticas sociais de uso da língua circundam por sistemas complexos e que transitam do aspecto teórico-científico ao aspecto pragmático. Nesse viés, as atividades humanas estão vinculadas a formas diferenciadas de comunicação e interação que exigem dos seus falantes competências e habilidades para se expressar com eficácia. A pluralidade na qual se inscrevem essas possibilidades de interagir tem modificado o cenário das pesquisas linguísticas no Brasil direcionando-as a ressignificar os problemas que permeiam o ensino de uma língua materna viva e mutável. Torna-se, pois, inevitável inserir as manifestações linguísticas orais como objeto de estudo em várias áreas do conhecimento. No entanto, o que se observa é que, durante muito tempo, a fala foi considerada espontânea e, pois, relegada no contexto da educação básica. Com a nova roupagem que a escola assume diante do processo de democratização do ensino, os gêneros discursivos orais exigem atenção e análise por parte dos pesquisadores, a fim de aproximar os currículos escolares da realidade dos grupos estigmatizados e silenciados pelo poder que exerce a norma padrão nos contextos de interação verbal. Essas constatações foram motivadoras para a investigação acerca dos perfis identitários e fixação de estereótipos diante dos falares marcados pelas variações linguísticas que se erguem nas interações entre alunos e professores. As observações iniciais e incitantes dessa pesquisa demonstram que a oralidade ainda é negligenciada nas práticas de ensino; como resultado, a fala do aluno e, também, de professores é conduzida ao submundo do erro gramatical ou, no extremo, à intimidação e ao silenciamento dos próprios sujeitos. As manifestações discursivas desses alunos comportam traços identitários e representações estereotípicas que interferem no comportamento e no desempenho escolar dos discentes e são frequentemente apontadas como entraves ao ensino de língua materna, além de se mostrarem associadas a “meios sociais e culturais inferiores”. Os dados foram coletados mediante observações diretas e cotejados com os discursos enunciados após formação de grupo focal com os alunos matriculados no 1º Ano da Educação Profissional Técnica Integrada ao Ensino Médio, ofertado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, no campus de Guanambi-Ba, além de entrevistas estruturadas com professores de diversas áreas. Os resultados demonstram que a responsabilidade com os discursos orais faz-se urgente no contexto das políticas linguísticas e culturais cujas metas devem estar aliadas à educação da língua não pautada na tolerância da diversidade, mas alicerçada na alteridade e no diálogo das diferentes identidades. Os dados cotejados percorrem na contramão dessa perspectiva, pois as variações linguísticas desprestigiadas além de evidenciar contornos identitários fixos e inegociáveis, provocam preconceitos, estigmas e o assujeitamento dos falantes que deveriam encontrar, neste espaço de educação formal, conhecimentos para desenvolver as competências de comunicação. Palavras-chave: Oralidade; Identidade; Estereotipia; Preconceito.
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4 APRESENTAÇÃO
Língua e identidade estão dialeticamente relacionadas e não podem ser
pensadas fora do contexto das relações sociais, do espaço no qual os discursos se
concretizam com flexibilidade e naturalidade. Os discursos entrelaçados manifestam
ideologias e sustentam uma hierarquia linguística, que estão em estreita correlação
com as relações de poder. Língua e linguagem devem ser consideradas, pois, como
um elemento crucial na análise das relações entre os sujeitos.
As interações entre língua, indivíduo e sociedade ocorrem por meio do
discurso e sobre elas se estruturam as identidades sociais, profissionais e pessoais
dos interlocutores. Entretanto, ancoradas na contingência e na indeterminação, as
identidades são sempre transitórias. Em um contexto de globalização e de constante
transformação, os processos identitários são fundamentais ao autorreconhecimento
dos sujeitos, mediante a individualização do seu outro e à construção de leituras
específicas do mundo. É também por meio do discurso que são fixados estereótipos,
replicados, mais ou menos conscientemente, pelos atores sociais.
A presente pesquisa está ancorada em uma experiência pedagógica
desenvolvida em um ambiente escolar marcado por atos de constrangimento e
imposição ao silêncio: as salas de aula do 1º ano dos cursos de Agropecuária e
Agroindústria, na modalidade da Educação Profissional Técnica Integrada ao Ensino
Médio, ofertados pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, no
campus de Guanambi-Ba, nos anos de 2012 e 2013. Pretende-se, pois, suscitar as
discussões à luz das bases teóricas da Linguística Aplicada e dos Estudos Culturais.
As abordagens recentes da Linguística Aplicada têm repercutido no campo
educacional e aportado importantes questionamentos sobre os diferentes usos da
língua materna, postos em evidência com o processo de universalização do acesso à
escola, especialmente a partir da segunda metade do século XX. A chegada à escola
de novos atores, com demandas políticas e sociais específicas, e, nomeadamente,
advindos de contextos linguísticos diferenciados, reclama dos professores uma
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reconfiguração do trato com os problemas com a língua materna, agora não mais
concebida como fixa e imutável, como propõe a gramática normativa.
5 Quem somos e por que falamos assim?
Os conflitos sociais e de origem potencializam-se no ambiente escolar em
razão do processo de ampliação do acesso à escola que, no Brasil, se desenvolve a
partir da década de 1970. Desde então, e especialmente desde o início do século XXI,
com a difusão de políticas de inclusão e reparação, amalgamam-se, nas instituições
de ensino, os saberes e os modos peculiares de expressão de indivíduos provenientes
das várias esferas sociais. A quebra de unicidade e homogeneidade decorrente da
chegada de novos sujeitos provoca uma crise das velhas identidades e a instabilidade
dos grupos que, outrora, ocupavam, em privilégio, os espaços das salas de aula:
Velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (Hall, 2005, p. 7).
Mais que isso, as identidades reveladas nesse novo contexto – sob a marca da
descentralização, da fragmentação e da transitoriedade – demandam uma revisão
dos sistemas conceituais. Para Bauman (2005, p. 18), “em nossa época líquido-
moderna, o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados,
enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios
fragilmente conectados”.
Os novos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNs),
elaborados no final da década de 1990, representaram, na opinião de Bagno (2007) e
Rojo (2000), um avanço considerável no atendimento às demandas da Educação
Básica em todo o território nacional. Os PCNs do Ensino Fundamental elencam as
competências e habilidades que os alunos devem adquirir e estão direcionados para
Anais do Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, vol. 4, único, 2014
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uma perspectiva sociopolítica que propõe o respeito aos registros linguísticos,
considerados inerentes às identidades sociais dos sujeitos.22
Os resguardos designados em prol de uma educação linguística ali propostos
são resultantes de uma série de manifestações político-pedagógicas propositivas de
uma “democracia linguística”, que desaprovam a concepção de erros na fala dos
sujeitos e deságuam em propostas educacionais antenadas com os processos
identitários dos alunos. No entanto, passados 15 anos desde a sua implantação,
professores e alunos ainda compartilham a perspectiva de que a língua materna é um
organismo fixo e imutável, além de tentar, inocuamente, engessar as identidades dos
falantes em um processo de gramaticalização que dissocia as práticas linguísticas dos
contextos nos quais elas se realizam.
Entender as identidades como fixas é assumir uma posição essencialista diante
de um elemento tão maleável, vivo e cambiante que é a identidade. “Comunidades
guarda-roupa” é a expressão utilizada por Bauman (2005, p. 37) para exemplificar a
situação em que os atributos se revelam e são construídos. Os sujeitos são impelidos
a assumir determinadas identidades e a anulá-las, quando necessário. Lopes (2006, p.
139) conclui: “dependendo das relações de poder existentes exercidas em práticas
sociais particulares, o mesmo indivíduo pode estar posicionado em identidades
sociais contraditórias”.
A presente pesquisa toma como objeto de investigação os alunos
primeiranistas dos Cursos Técnicos Integrados em Agroindústria e Agropecuária que
ingressaram na Instituição no primeiro semestre de 2012. Recém-chegados, tais
estudantes exibem comportamentos idiossincráticos e, ao longo do primeiro ano de
escola, a percepção das diferenças toma contornos de conflitos e resistências ou
provoca mudanças no modo de agir e se expressar.
A investigação sobre estereótipos e processos identitários entre esses
sujeitos foi realizada com o contributo dos próprios alunos que se prontificaram a
responder e participar das discussões.
22 Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental – Língua
Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
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Como procedimento inicial da pesquisa, dedicamo-nos a analisar as imagens e
discursos dos alunos primeiranistas convidados participar de um grupo focal cujo
momento foi marcado pela espontaneidade nos relatos sobre as identidades e as
representações.
Esse método objetiva obter dados qualitativos a partir das percepções dos
envolvidos sobre em tema em epígrafe. Com formações reduzidas, os sujeitos-
pesquisados sentem-se a cômodo para expor as situações conflituosas à qual estão
expostos diariamente, neste caso, às situações de comunicação engendradas naquele
ambiente de educação formal.
Os cursos técnicos em Agropecuária e Agroindústria somavam, no ano de
2012, 125 alunos de primeiro ano. Os ingressantes do curso de Agroindústria são
alocados em uma única turma, com 40 alunos, enquanto o curso de Agropecuária
abriga, anualmente, 85 alunos, divididos em três turmas.
O curso de Agroindústria agrega 67,5% de alunos oriundos da sede de
Guanambi. 17,5% dos alunos desse curso são egressos de escolas da rede particular
de ensino e 27,5% declararam receber rendimentos do Programa Bolsa Família. Dos
alunos do curso de Agropecuária, 40% são oriundos da própria zona urbana de
Guanambi e apenas 6% são egressos de escolas particulares.
Quanto ao perfil socioeconômico, a renda mensal familiar informada pelos
alunos dos dois cursos varia entre meio e cinco salários mínimos. A maioria se
enquadra na faixa de um a três salários mínimos. Para alunos enquadrados neste
perfil e oriundos, em sua maioria de cidades pequenas, carentes de infraestrutura e
de investimentos na educação pública, compor o quadro discente de um Instituto
Federal se constitui em um privilégio só acessível a poucos, tanto mais porque,
segundo dados divulgados pelo Ministério da Educação, durante os últimos quatro
anos, os alunos do IFBaiano Guanambi vêm ocupando a primeira posição em
desempenho no Enem, entre as escolas públicas do município.
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6 Estereótipos, Preconceito e Invisibilidade
A oralidade é um importante recurso comunicativo que motivada por atos
individuais voluntários faz parte das práticas sociais e contribui para sustentar o
poder de determinados grupos.
Os indivíduos são (in)conscientemente impelidos a relacionar, analisar ou
avaliar a oralidade do outro ou o grupo ao qual o outro pertence. Empreita complexa
e que pode recorrer em injustiça e em falso juízo decorrentes de uma desigualdade
linguística e cultural. Valendo-se de uma investigação histórica e literária, torna-se
legítimo afirmar que ajuizar e classificar simploriamente e com impropriedade
determinadas manifestações orais da língua ou mesmo os grupos aos quais essas
variações estão vinculadas é uma praxe humana.
Paralelamente, os falantes da língua, por meio dos registros linguísticos orais
que lhes concedem ou não o prestígio social, são alvo de processos estereotípicos ao
tempo em que, por tautocronismo, a própria língua contribui para sustentar o poder
de determinados grupos sociais, ou seja, a língua assume ativa ou passivamente o
papel na construção dos estereótipos e do preconceito.
Para explicar as bases causais do preconceito, Pereira (2002) adita fatores como
a dominação social, a integração das ameaças e a hierarquização. As ideologias de
dominação utilizam de diversos recursos para legitimar e convencer a sua
superioridade diante dos outros grupos. Essa atitude percorre duas vertentes: de um
lado, os grupos inferiorizados pelas massas aceitam a condição ínfera a que são
submetidos como se essas diferenças tivessem origem sobre-humana, admitem-se,
pois, a opressão e o fomento às políticas públicas de hierarquização social; de outro,
os grupos que, filiados ao lema dos revolucionários franceses, promovem conflitos a
fim de levar a cabo os muros que cerceiam o contato entre os sujeitos.
A teoria da integração das ameaças reconhece e isola os fatores que
desencadeiam o preconceito. Esses fatores podem ser visíveis, ou seja, reais ou,
simplesmente, simbólicos. E, à medida que as atitudes preconceituosas se dissipam,
os fatores são ocultados e retirados da sociedade, no entanto, há casos em que os
fatores reais não podem ser dissimulados, como por exemplo, um falante da língua
que não domina a variante urbana de prestígio não pode ser privado de pronunciar e
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comunicar utilizando a fala, dessa forma o sujeito não se esquiva de atitudes
preconceituosas, pois as razoes que incitam o preconceito estão explícitas. Somado
aos fatores reais e simbólicos, tem-se o afetivo. Nessa situação, os sentimentos de
incomodidade, hesitação e dúvidas são expressos formalmente pelos membros do in
group23 que veem sua fala como superior e conduzem a uma defesa ou proteção de
contato com os membros do out group. (PEREIRA, 2002).
A fixação de estereótipos linguísticos conduz à discriminação que é
corporificada, conforme Pereira (2002, p. 88), por meio da rejeição verbal e da
evitação. Comentários corrosivos e chistosos enunciados no encalço das variações
linguísticas conduzem o sujeito-discriminado à invisibilidade social, ao
silenciamento e, no extremo, a agressões violentas.
7 A nossa fala nos representa?
Há tratamento diferenciado não só da zona urbana para a rural, como também de uma cidade para outra: Quando eu morei em São Paulo, lá tinha um preconceito muito grande quando chegava pessoa daqui lá, daqui da região, do Ceará... nordestino. Preconceito pelo que ela fala, e dizem assim: “Ahh, não come nada, só farinha mesmo tá bom”. Uma vez eu briguei na escola porque vi uma menina fazendo, e pensei que não podia deixar, pois minha mãe também é baiana. Mas quando chegou aqui, o caso mudou de lado. As pessoas têm preconceito com a pessoa, simplesmente porque a pessoa é de outro lugar. Como o “r”, por exemplo, você não vê muito aqui agora, mas quando eu fico brava, vou puxar o “r” pra tudo que é lado. Mas, quando eu cheguei aqui, o “porta” [referência ao R retroflexo alveolar vozeado], era mais aguçado ainda. Então as pessoas tinham normalmente muito preconceito, ficava zuando, enchendo o saco, justamente por causa disso (Mônica, 16 anos)
Esse relato é de uma aluna que, durante as observações realizadas, sempre se
posicionou à margem da interação que existe entre os adolescentes dessa turma.
Visivelmente, Mônica não compartilha da mesma naturalidade nem dos mesmos
assuntos e da mesma maneira de pensar e se comportar de um grupo de
23 In group” e “out group” são termos utilizados por Corona e Nagel (1978) para indicar os membros do
próprio grupo respectiva e antagonicamente àqueles que se encontram, no imaginário popular e por
razões diversas, excluídos do círculo de referências.
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adolescentes, composto por seis meninas, que provoca e desrespeita alguns colegas
na sala de aula.
Mônica sente-se lisonjeada por poder falar e ser ouvida acerca de um tema tão
nevrálgico que exala naquele ambiente: o preconceito. Para tanto, a aluna recorre à
narrativa da própria experiência pessoal e argumenta que a diferença e o preconceito
existem também quando se trata de pessoas advindas de cidades e regiões diferentes.
A reação dos ouvintes ao som retroflexo alveolar vozeado que marca o dialeto
paulista da estudante indica a inexistência de marcas linguísticas intransponíveis:
Na verdade, estabelecem-se limites de acordo com determinadas conveniências. É o que nos mostram os estudos de Atlas Dialetais em que não se encontram linhas precisas de demarcação de dialetos, mas apenas certas áreas de maior concentração de um determinado conjunto de características. Assim, é difícil dizer onde acaba o dialeto nordestino e começa o caipira, ou o carioca, e a distinção do falar gaúcho (TRAVAGLIA, 2008, p. 43).
O confronto entre identidades linguísticas de base regional deve-se à
ignorância sobre as inúmeras variações dialetais na imensa dimensão territorial do
Brasil. E ele é potencializado pela obstinação, sustentada pelo sistema escolar, de se
trabalhar somente a norma culta da língua, desvendando todos os seus meandros e
conceitos, em prejuízo de outras formas de expressão, desprestigiadas no ambiente
escolar, mas perfeitamente adequadas a determinadas situações. Como resultado, os
alunos mostram-se alheios à pluralidade regional, social e cultural que a língua
comporta e utiliza das especificidades linguísticas para imputar sobre seus falantes
estereótipos jocosos que hostilizam as identidades de origem do sujeito.
No cenário escolar, os atores sociais são instados a avaliar constantemente os
outros e a si mesmos. As interações discursivas levam os sujeitos a pensar de que
maneira estão sendo vistos e, principalmente, ouvidos. Silva (2012, p. 91) esclarece:
“É aqui que a representação se liga à diferença. A identidade e a diferença são
estreitamente dependentes da representação”.
O diálogo torna-se, pois, ponto de conflito por ser a mola mestra na formação
da consciência e dos respectivos construtos identitários. A identidade do sujeito,
segundo Brait (2006, p. 123), “se processa por meio da linguagem, na relação com a
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alteridade”. Bauman (2005, p. 19) adverte, entretanto, sobre a constante edificação
maleável das identidades – identidades que “flutuam no ar, algumas de nossa
própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta” - e
alerta para a necessidade de defesa das “primeiras em relação às últimas”.
As identidades são assumidas e ressignificadas diante da necessidade que têm
os falantes de se apropriar de padrões, que se impõem na constituição complexa e
heterogênea das identidades. No conjunto discursivo que se organiza no espaço
escolar, as interações entre interlocutores de identidades dessemelhantes levam à
construção do si e do outro. Destarte, as interações discursivas não podem ser
isoladas das relações sociais e ideológicas que se encontram no âmago das palavras.
Valendo da assertiva bakhtiniana que atribui à palavra uma carga ideológica, a
representatividade lexical já seria razão suficiente para concebê-la na essência das
construções ideológicas subjacentes ao signo linguístico, que reclama uma
abordagem dos vínculos que existem entre linguagem e sociedade. Isso significa que
os textos percorrem uma “via de mão dupla”. Eles constroem e transformam a
estrutura da língua, ao tempo em que se transformam como parte do enredo social.
Em outra turma, as observações restringiram-se a dois meses apenas,
período de substituição da professora regente que se encontrava em gozo de licença
maternidade. Dessa forma, os dados coletados não sofreram incursões de teorias
sobre as variações linguísticas, pois os alunos ainda não tinham assistido às aulas que
tratariam das concepções e da pluralidade da língua.
Assim como nas demais turmas dos cursos Técnico em Agropecuária, o
número de alunos não ultrapassa trinta e a maioria é egressa de escola da rede
pública de ensino. Dos 29 discentes devidamente matriculados nesta turma,
denominada aqui de Gama, apenas 3 são egressos de instituições particulares e
somente 11 são naturais de Guanambi. 10 alunos têm contato direto com atividades
agrícolas, pois seus pais são lavradores, logo, parte da renda adquirida por essas
famílias é proveniente de atividades rurais. No entanto, os registros assinalam que
outros pais desempenham profissões mais urbanas, como motoristas, comerciantes e
agentes comunitários.
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Nessa turma, os questionários socioeconômicos indicam que o endereço
residencial de 7 alunos é distribuído entre fazendas, comunidades e sítios, isso
confirma que o contingente de pessoas provenientes da zona rural é grande.
O fato de pertencerem a grupos sociais menores, sejam rurais ou urbanos, faz
desses sujeitos alvo de avaliações e julgamentos que hostilizam suas identidades e
atribuem-lhes estereótipos que expressam desaprovação.
Induzido, no debate, a falar, sobre “erros de português”, o aluno Hermes
declara que eles são frequentes entre as pessoas “do campo” e exemplifica,
apontando para a colega Hera que utiliza o lexema “frores” ao invés da variante
culta “flores”. Sem detença, Hera ao ser “incriminada” toma o turno e confirma o que
já se observara durante as aulas: “É por isso que fico calada, fico com medo de falar e
todo mundo começar a rir; igual quando eu falo pren-drive”.
A discente assume que acumula o peso da condição de negra, filha de pai
lavrador e mãe doméstica, com renda familiar de meio salário mínimo, egressa de
escola pública e residente e domiciliada no Sítio Curral Novo, o papel do outro a
elege fazer-se inaudível diante dos “eus” que, no discurso e na prática, recusam-se a
ser como ela.
As identidades não são intrínsecas ao indivíduo. Segundo Lopes (2006, p.37),
elas são “construídas no discurso” e “emergem na interação [...] agindo em práticas
discursivas particulares”. Assim, o sujeito-aluno, ao apontar a colega como
transgressora de regras gramaticais, impõe o seu poder sobre os outros, define um
conjunto de caracteres concebidos como ideal para a turma e considera como
agressão exterior tudo que excede a esse modelo:
Ao dizer algo sobre certas características identitárias de algum grupo cultural, achamos que estamos simplesmente descrevendo uma situação existente, um “fato” do mundo social. O que esquecemos é que aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos linguísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que supostamente apenas estamos descrevendo (Silva, 2012, p. 93).
A queda da autoestima e o consequente silenciamento da adolescente que
“fala errado” resultam de um comportamento coletivo que naturaliza a crença na
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homogeneidade da língua em um contexto escolar marcado pela presença de
múltiplas identidades.
Na sequência, a aluna Héstia pontua sua percepção sobre as diferenças entre
os sujeitos rurais e urbanos e afirma que “há diferenças entre o povo da roça e da
cidade, quando eles vão ao banco, a gente percebe isso”.
Héstia, neste momento, refere-se, de maneira generalizada, ao comportamento
das pessoas que não têm afinidade e não são conhecedoras das novas Tecnologias da
Informação e Comunicação, em especial, aquelas que saem da zona rural e se
dirigem ao perímetro urbano, mas não conseguem acompanhar a dinamicidade dos
movimentos que concernem os centros comerciais.
Observa-se, pois, que Héstia tem em seu imaginário uma representação fixa e
estereotipada dos sujeitos rurais, isso fica mais evidente quando a aluna acrescenta
que: “aqui na escola, quando a gente fala errado ou faz alguma coisa errada, a gente
ouve logo: ‘só podia ser mesmo da roça’”.
As pessoas refletem diferentes concepções estereotípicas. Héstia, ao ser
provocada sobre a representação que faz das identidades de origem rural, remete-se
instantaneamente à ideia do homem do campo inserido em um ambiente
eminentemente urbano e tecnológico – o banco.
Além disso, o termo “roça” que, objetivamente, significa uma propriedade
agrícola no português brasileiro, assume, no discurso de Héstia, uma categorização
depreciativa, i.e., o sujeito que pratica alguma atividade vexatória é automaticamente
julgado e caracterizado como provindo do meio rural.
Essa forma de avaliar e fixar estereótipos é particular de cada sujeito e dos
fatores que o levaram a criar uma ideia pré-concebida do indivíduo que pertence ao
out group. Esse conceito de atribuir o comportamento do sujeito ao ambiente agrícola
ou campestre é formado, segundo Pereira (2002, p. 155), “a partir de contatos e
experiências pessoais entre o percebedor e alguns membros do grupo objeto da
estereotipização” ou ainda “a partir do contato com outros agentes de socialização
[...] mesmo sem que o percebedor tenha encontrado a oportunidade de estabelecer
contatos com qualquer membro do grupo alvo de estereotipização”.
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Serpa utiliza-se da metáfora dos “muros internalizados” para tratar da
marginalização daqueles que se encontram prejulgados e sentenciados ao submundo
da invisibilidade e da exclusão, como a rotulação imposta por Héstia ao homem do
campo.
Vinte anos se passaram desde a queda do Muro de Berlim. [...] tenho ouvido a afirmação recorrente de que o muro persiste enquanto paisagem interiorizada pelos habitantes da cidade. [...] Onde buscar esse muro internalizado? [...] Tudo isso faz pensar nas cidades brasileiras, onde os muros tomam conta da paisagem [...]. Berlim nos ensina que o muro é forma-conteúdo, é produto e também processo, reflete e condiciona o modo como uma sociedade lida com a diferença. O muro também produz a diferença e radicaliza a ocultação do “outro”, transforma diferença em segregação e desigualdade. (Serpa, 2009, p. A3).
O limite imaterial consolidado no imaginário do aluno é uma forma de
discriminação. O preconceito existe quando o indivíduo pensa o in group como um
arquétipo das suas referências e, ao mesmo tempo, identifica e repele o out group.
(PEREIRA, 2002, p. 77).
Aquele que julga, unifica e restringe a identidade do sujeito examinado ao
subtrair-lhe qualquer possibilidade de ser mais alguém além daquilo que se vê.
Trata-se de um reducionismo identitário, contra o qual Lopes (2006, p. 16) propõe o
conceito de “identidades fragmentadas, já que se entendem as identidades sociais
como envolvendo a classe social, o gênero, a sexualidade, a raça, a nacionalidade, a
idade etc. Todas coexistindo, ao mesmo tempo, na mesma pessoa”.
Héstia não deixa claro se a forma como concebe o homem do campo é baseada
em abstrações ou em exemplares. Por se tratar de uma adolescente que reside na
zona urbana e apresenta no seu convívio social contato com pessoas citadinas, a
concepção de sujeito rural expressa pela discente é genérica e abrange um todo não
específico. Segundo Pereira (2002) essa é a tendência das pessoas que avaliam o outro
pelas abstrações, pelo que ouve falar e, dessa forma, tende-se a ser mais extremista
em suas categorizações.
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Considerações finais
Os esforços empreendidos na busca por um ensino que valorize o indivíduo,
sua cultura e sua identidade são muitos. O ensino de língua materna destina-se a
preparar o aluno para se comunicar, para entender e fazer-se entender nas mais
diversas situações.
Dominar a própria língua é um recurso incontestável ao acesso às demais
áreas do saber. Logo, o ensino de Língua Portuguesa não deve furtar-se à tarefa de
possibilitar ao aluno o desenvolvimento de habilidades e das competências
linguísticas, ponto de partida para a comunicabilidade e acesso às demais áreas do
conhecimento. Todavia, os indivíduos são ainda classificados de acordo com a
facilidade ou dificuldade de expressar na norma culta. Aqueles que, por essa
classificação, ocupam a condição de inferioridade manifestam, frequentemente,
desinteresse pelos conteúdos programáticos e pela própria escola e, o que é mais
preocupante, tende a calar-se com receio das censuras e dos comentários jocosos.
A teia comunicativa engloba o ato de fala, a enunciação, segundo Bakhtin
(2006, p. 113) “tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira
no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de
algum código de signos exteriores”.
Desconsiderar o que foi dito pelo aluno é coibir as suas formas de expressão,
invalidar os elementos constitutivos de sua própria história, como seus pais, o lugar
de onde veio, as pessoas com as quais convive. Enfim, contribui para segregar ainda
mais um indivíduo já tão marcado pelos estigmas sociais. Ser professor não é ser um
déspota que assume uma postura inquisitorial ao privar seus alunos de se
expressarem. Antunes (2003, p.45) argumenta que, para um aluno ser um bom
escritor, faz-se necessária uma atividade interativa de expressão, de manifestação
verbal das ideias, informações, intenções, crenças ou dos sentimentos que queremos
partilhar com alguém, para, de algum modo, interagir com ele. Ter o que dizer é,
portanto, uma condição prévia para o êxito da atividade de escrever. Não há
conhecimento linguístico (lexical ou gramatical) que supra a deficiência do “não ter o
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que dizer”. As palavras são apenas a mediação, ou o material com que se faz a ponte
entre quem fala e quem escuta, entre quem escreve e quem lê.
Referências
ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola, 2003. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2007. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BRAIT, Beth. Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. CORONA, Lúcia C. Guimarães. NAGEL, Lízia Helena. Preconceitos e estereótipos
em professores e alunos. Petrópolis: Vozes, 1978. HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. LOPES, Luiz Paulo da Moita. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2006. PEREIRA, Marcos Emanoel. Psicologia Social dos Estereótipos. São Paulo: E.P.U., 2002. ROJO, Roxane (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: Educ; Campinas: Mercado de Letras, 2000. SERPA, Ângelo. Muros internalizados. A Tarde, Salvador, Primeiro Caderno, p. A3, 1 ago. 2009. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 73 a 102. TRAVAGLIA, Luís Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. São Paulo: Cortez. 2008.
Eixo V
Literatura, alteridade e políticas afirmativas
“GRITARAM-ME NEGRA” Sou negra sim! E daí?
Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro Faculdade D. Pedro II
Resumo: O presente trabalho se propõe a apresentar um poema ritmado de Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra, compositora e coreógrafa afroperuana intitulado de “Gritaram-me negra” sendo este fruto de uma vivência da autora, ainda na infância, e que narra episódios racistas. Deseja-se, com tal comunicação, provocar reflexões a partir da análise desse corpus sobre processos de constituir-se como negra, processos de construção identitária e pertencimento de ordem etnicorracial que envolvem e implicam necessária e inevitavelmente em processos de autoconhecimento, autoconcepção, autoentendimento, autocompreensão, autoconceito, autoaceitação, autoconsciência e autodefinição que poderão desaguar em construções identitárias positivas e “sadias” (FANON, 1979) para uma parcela significativa da população que historicamente tem sido estigmatizada e estereotipada e que por isso mesmo acaba por sofrer psiquicamente, no mais das vezes, com distorções de autoimagem que podem culminar em autorrejeição e não aceitação do que se é! Tais processos não costumam acontecer em “águas tranquilas”. Estas são, no mais das vezes, revoltas e, portanto, essencialmente instáveis. Mas, ainda que assim aconteça, o que se pode notar com as letras negras de Victoria, a serem compartilhadas nesse artigo, é que a possibilidade de resistir e não sucumbir além de possível e viável, é sempre alternativa para manter a dignidade, a beleza e a humanidade do povo negro. E assim sendo, o gostar do que vê refletido no espelho, o real e belo fenótipo negro-africano apresenta-se como inadiável e imprescindível, rebatendo, dessa forma, a crença e a internalização do racismo que tentaram impor sobre o corpo e valores negros. (Des) colonizar corpos e mentes e propor novas referências, as que são ancestrais, para pensar em concretizar o que Pinho (2004) apresenta que é a possibilidade de: “Nascer preto, tornar-se negro e conceber-se humano”, humanidade essa por tanto tempo negada e interditada para tais povos são desejos, também, desse artigo. Processos que possam alcançar a (auto) aceitação, a (auto) realização e a emancipação. Assim sendo, objetiva-se, ainda, destacar o caminho percorrido pela poeta em seus processos de tornar-se o que se é, mulher negra, fortemente imbricados com a história do movimento literário iniciado nas Antilhas na década de 40 e denominado de Negritude (CÉSAIRE, 1935). Memórias, experiências e literatura se mesclam para compor a trama ora tecida com o intuito de apresentar possibilidades outras de ser e estar no mundo, diferentes sim, mas nem por isso inferiores. Experiências de processos de tornar-se negra (SOUZA, 1979). Compartilhar histórias afrodiaspóricas que mesmo marcadas por agruras, apontam, também, para superações das mesmas, via a afirmação do que se é! Esses são os desejos e pretensões a que esse artigo se propõe a alcançar. Para tanto, elegeu-se a Análise de conteúdo (BARDIN, 1977) como método. Palavras-chave: negritude; literatura afroperuana; identidade
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1. APRESENTAÇÃO
Em nosso mundo fluido, comprometer-se com uma única identidade para toda a vida, ou até menos do que a vida toda, mas por um longo tempo à frente, é um negócio arriscado. (BAUMAN, 2005. p. 96).
A comunicação ora apresentada se inicia com uma afirmação de Bauman
(2004) que aqui passa a se configurar como uma provocação. Em tempos que se
pretendem e se denominam, pelo menos para alguns, de líquidos, de fluídos,
conforme o próprio autor aponta GRITAR uma identidade será mesmo “um negócio
arriscado”? E para aqueles que nem ousam balbuciar a sua condição por que tem
quem o faça primeiro do que ele mesmo e sempre de forma ofensiva e pejorativa? E
os outros tantos que não tem a opção de fazê-lo porque a alteridade já sentenciou o
que ele é?
O poema a ser compartilhado nesta comunicação, de autoria de Victoria
Eugenia Santa Cruz Gamarra, compositora e coreógrafa afroperuana, intitulado de
“Gritaram-me negra” revela um episódio de racismo sofrido pela mesma na infância
e que acaba por apontar para a necessidade de se aceitar e se assumir como se é até
mesmo para que tal postura possa se configurar como forma contestação desse mal
que tem acompanhado a história da humanidade e tanta dor tem causado, sobretudo
nas vítimas e nos alvos preferenciais com o passar dos séculos, sobretudo do período
da escravização para frente que são os negros.
Sofrimentos de ordem principalmente psíquica tem sido publicizados e
denunciados das mais diferentes formas ao longo da história e encontra-se imbricado
nas memórias afrodiaspóricas e ainda que o ato de racismo tenha se tornado, pelo
menos no Brasil, um crime imprescritível e inafiançável, ainda assim, inúmeras são
as denúncias que explicitam a existência do mesmo.
A construção, fabricação e divulgação de um padrão de beleza e humanidade
acabam por intensificar os fenômenos e processos até então narrados, criando
modelos a serem seguidos, sob pena de não serem aceitos. Paralelo a imposição desse
padrão, há, também, a construção da suposta feiura, daquele que não se adéqua a
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tais padrões. Cria-se então, o que Mauss (1974) chamou de “imitação prestigiosa”
concebida como:
Existência de uma construção cultural do corpo e nessa construção há a valorização de certos atributos e comportamentos em detrimento de outros, “fabricando”, assim, (ou pelo menos se tenta, quase sempre eficazmente) um corpo típico para cada sociedade. Vale lembrar, contudo, que tais construções e modelos a serem alcançados, variam, sempre, de acordo com o contexto histórico e cultural. (MAUSS, 1974).
Muitos negros passam, assim, a procurar “perseguir um ideal de ego branco”
(SOUZA, 1983) e “feridas narcísicas” (SOUZA, 1983) surgem, acompanhadas de
identidades que Nogueira (1998) chama de “fantasmáticas”.
É a autoridade da estética branca quem define o bel e sua contraparte, o feio, nesta sociedade classista, onde os lugares de poder e tomada de decisões são ocupados hegemonicamente por brancos. Ela é quem afirma: o negro é o outro do belo”. É esta a mesma autoridade quem conquista, de negros e brancos, o consenso legitimador dos padrões ideológicos que discriminam um em detrimento do outro. (SOUZA, 1983. p. 29).
O presente artigo objetiva, a partir do exposto, apresentar a poeta, autora do
corpus escolhido para essa comunicação, em seguida falar, ainda que brevemente, do
movimento literário chamado Negritude, por perceber que a produção a ser
analisada encontra-se fortemente impregnada e influenciada por tal Movimento e
segue aprofundando um pouco mais a discussão em torno de processos de
constituir-se como negra, processos de construção identitária e pertencimento de
ordem etnicorracial que envolvem e implicam necessária e inevitavelmente em
processos de autoconhecimento, autoconcepção, autoentendimento,
autocompreensão (ou não), autoconceito (positivo ou negativo), autoaceitação ou
autorejeição, autoconsciência e autodefinição.
Ao final deseja-se, ainda, explicitar a construção da beleza e da feiura, os
reflexos da imposição desses padrões nos processos de construção de ordem
identitária e como o autoconhecimento e o compartilhar de memórias afrodiaspóricas
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podem auxiliar, sobremaneira, no apaziguamento com a imagem que se vê refletida
no espelho, aprendendo a se gostar e a parar de zanzar na encruzilhada identitária,
sem saber por qual caminho seguir.
(Des) colonizar corpos e mentes e propor novas referências, as que são
ancestrais, para pensar em concretizar o que Pinho (2004) apresenta que é a
possibilidade de: “Nascer preto, tornar-se negro e conceber-se humano”,
humanidade essa por tanto tempo negada e interditada para tais povos são desejos,
também, desse artigo. Processos que possam alcançar a autoaceitação, a auto
realização e a emancipação.
2. NOTAS SOBRE A POETA: VICTORIA EUGENIA SANTA CRUZ GAMARRA
Victoria Eugenia é a autora do poema que constitui o corpus do artigo ora
apresentado e a mesma declara que se tratou de um episódio verídico de racismo em
sua tenra infância e que posteriormente, já adulta ela decide por compartilhar com o
mundo como forma de protesto e denúncia.
Nesse poema, Gritaram-me negra, pode-se perceber o caminho percorrido por
muitos negros que quase sempre sai de problemas de autoaceitação da autoimagem e
a depender da condução dada ao processo poderá culminar, ou não, conforme já
sinalizado anteriormente, ainda que de forma breve, em construções identitárias
“sadias” (FANON, 1979).
O interessante no corpus ora em estudo é que a autora acaba por “encontrar a
chave” para reverter o processo negativo de autorrejeição que se encontrava pela
forma como a palavra negra foi dita e com a ajuda de outras memórias dos seus,
memórias que aqui chamaremos de afrodiaspóricas, sobretudo as pertencentes ao
Movimento Literário que se iniciou em Paris por volta de meados da década de 30 e
depois se propagou mundo afora e especialmente nas Antilhas, denominado de
Negritude, ela encontra meios de tornar o que era até então e historicamente
negativo em positivo, “devolvendo a pedra que lhe atiraram” como sentencia Sartre
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(apud SANTOS. 1987): “Preto é uma pedra que lhe atiraram; se você atira de volta,
será um negro”.
Devido à enorme repercussão e por ilustrar com fidedignidade episódios que
muitos dos nossos passam durante toda a sua existência e pelo seu caráter quase
didático pedagógico de encontrar formas de sair do negativo, torna-se um exemplo
bem sucedido de como inverter a ordem e a lógica racista de tentar nos inferiorizar e
que muitos dos nossos acabam por internalizar e se transformar no que as palavras
sugerem e muitas vezes determinam quem somos ou que devemos ser.
Na página do Instituto Geledes encontra-se as seguintes informações sobre a
mesma:
Estudou em Paris, na Universidade do Teatro das Nações (1961) e na Escola Superior de Estudos Coreográficos. Ao voltar a Lima fundou a companhia Teatro e Danças Negras do Peru, que se apresentou em inúmeros teatros e na televisão. Este grupo representou o Peru nas comemorações dos Jogos Olímpicos do México (1968), sendo premiada por seu trabalho. Em 1969 realizou turnês pelos EUA; quando voltou a Lima, foi nomeada diretora do Centro de Arte Folclórica, hoje Escola de Folclore. No primeiro Festival e Seminário Latino-americano de Televisão, organizado pela Universidade Católica do Chile em 1970, venceu como a melhor folclorista. Foi diretora do Instituto Nacional de Cultura (1973 a 1982).(GELEDES, s/d).
3. APRESENTANDO O CORPUS
O poema musicado e performaticamente apresentado pela Companhia Teatro
de Danças Negras do Peru é o abaixo reproduzido:
Tinha sete anos apenas,/ apenas sete anos,/ Que sete anos!/ Não chegava nem a cinco!/ De repente umas vozes na rua/ me gritaram Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!/ "Por acaso sou negra?" – me disse/ SIM!/ "Que coisa é ser negra?"/ Negra!/ E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia./ Negra!/ E me senti negra,/ Negra!/ Como eles diziam/ Negra!/ E retrocedi/ Negra!/ Como eles queriam/ Negra!/ E odiei meus cabelos e meus lábios grossos/ e mirei apenada minha carne tostada/ E retrocedi/ Negra!/ E retrocedi .../ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra!
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Neeegra!/ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra! Negra!/ Negra!/ E passava o tempo,/ e sempre amargurada/ Continuava levando nas minhas costas/ minha pesada carga/ E como pesava!.../ Alisei o cabelo,/ Passei pó na cara,/ e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra/ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra! Neeegra!/ Até que um dia que retrocedia, retrocedia e que ia cair/ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra! Negra!/ E daí?/ E daí?/ Negra!/ Sim/ Negra!/ Sou/ Negra!/ Negra/ Negra!/ Negra sou/ Negra!/ Sim/ / Negra!/ Sou/ Negra!/ Negra/ Negra!/ Negra sou/ De hoje em diante não quero/ alisar meu cabelo/ Não quero/ E vou rir daqueles,/ que por evitar – segundo eles –/ que por evitar-nos algum disabor/ Chamam aos negros de gente de cor/ E de que cor!/ NEGRA/ E como soa lindo!/ NEGRO/ E que ritmo tem!/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO NEGRO/ Afinal/ Afinal compreendi/ /AFINAL/ Já não retrocedo/ AFINAL/ E avanço segura/ AFINAL/ Avanço e espero/ AFINAL/ E bendigo aos céus porque quis Deus/ que negro azeviche fosse minha cor/ E já compreendi/ AFINAL/ Já tenho a chave!/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO/ Negra sou! (GUAMARRA, s/d).
Conheçamos agora, ainda que de forma breve o Movimento Literário que
parece respaldar a escrita denúncia da poeta, O movimento literário da Negritude e
em seguida, faz-se um esforço de analisar o corpus a luz da Análise de Conteúdo
(BARDIN, 1977).
4. BREVE HISTÓRICO SOBRE UM MOVIMENTO LITERÁRIO CHAMADO NEGRITUDE Duas obras foram essenciais e de grande valia na difícil tarefa de resumir em
poucas linhas esse Movimento Literário ocorrido a princípio em Paris quando do
momento de alguns estudantes negros para lá terem ido cursar a Universidade, por
volta de meados da década de 30 e posteriormente se propaga pelo mundo e se
destaca nas Antilhas e que tanto auxiliou a muitos dos nossos em seus processos de
autoconhecimento, autoconcepção, autoentendimento, autocompreensão,
autoconceito, autoaceitação, autoconsciência e autodefinição. Foram elas: Negritude:
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usos e sentidos de autoria de Kabengele Munanga, publicado pela Autêntica em 2009
e outra publicação de autoria de Zilá Bernd intitulada de “O que é negritude”,
pertencente à coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense em 1984. E é com base
nessas publicações que ouso sintetizar esse Movimento de tanta importância na luta
de combate ao racismo e de valorização do processo de tornar-se negro.
O Movimento foi definido pelo poeta antilhano Aimé Césaire como: “uma
revolução ma linguagem e na literatura que permitiria reverter o sentido pejorativo
da palavra negro para dele extrair um sentido positivo” mas que só será denominado
de Negritude em 1939 em um trecho de uma publicação sua, de nome: Capier dún
retour ou pays natal” - “Caderno de um regresso ao país natal” (CÉSAIRE apud
BERND ,1988). Relata ele sobre o começo do Movimento:
Por que eu disse “negritude”? Não é de maneira alguma porque acredito na cor. Não é de maneira alguma isso. É preciso sempre re-situar as coisas no tempo, na História, nas circunstâncias. Não se esqueça de que, quando a negritude nasceu, na véspera da Segunda Guerra mundial, a crença geral, no liceu, na rua, era uma espécie de racismo subjacente. Há a selvageria e a civilização. De boa fé, todo o mundo estava convencido de só havia uma civilização, a dos europeus - todos os outros eram selvagens.” “Lembro-me ainda que, um dia em que eu estava perto da biblioteca Sainte-Geneviève, um grande tipo vem em direção a mim, um homem de cor. Ele me diz: “Césaire, gosto muito de você, mas há uma coisa que reprovo em você. Por que você fala assim da África? É um bando de selvagens. Não temos mais nada a ver com eles.” Eis o que ele me disse. É terrível! Até mesmo os negros estavam convencidos disso. Eles estavam penetrados de valores falsos. É contra isso que se tratava, e que se trata, ainda, de reagir. “E depois, um belo dia, Léopold Sédar Senghor disse: “Estamos pouco nos lixando! Negro? Mas sim, sou um negro! E daí?!” E eis aqui como nasceu a negritude: de um movimento de humor. Dito de outra maneira, o que era proferido e lançado na cara como um insulto trazia a resposta: “Mas sim, sou negro, e daí?!” (CESAIRE).
Vêem-se, com as declarações de Cesaire que se trata de reverter o processo
histórico de negativação de tudo que diz respeito ao processo de tornar-se negro e
ainda com o intenso intento de pensar os negros espalhados pela forçada diáspora
provocada pela escravização como irmãos, como uma grande família advinda do
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continente africano. Sua proposta e ideia original de Grande família e de irmandade
permanece ecoando, ainda nos dias de hoje, na tentativa de povos negros de todo o
mundo unirem-se e solidarizar-se.
5. APONTAMENTOS SOBRE PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DA MULHER NEGRA
As elaborações e padrões de beleza tem sido construídos e fortemente
influenciados a partir de ideais helênicos, considerados, historicamente como
princípios universais de classificação e julgamento de beleza, tão distantes dos belos
e diversos fenótipos negro-africanos. Nesse contexto, nessa tentativa, quase sempre
bem sucedida (pelo menos no que diz respeito a seguidores do mesmo) de imposição
desse modelo quase nórdico como única possibilidade de beleza e humanidade, ao
mesmo tempo em que atraia sobremaneira, fazendo com que muitos realizem até
mesmo mutilações que não começam, nem se esgotam no plano físico, é, certamente,
no plano psíquico que se encontram as maiores mazelas e, talvez, as mais difíceis de
serem “trabalhadas” (re) feitas e (re) elaboradas.
Faz-se necessário, então, pensar a beleza como uma construção social, e,
assim sendo, análises que passem por tais questões precisam, necessariamente, ser
sempre historicamente contextualizadas. O que pode ser notado é o fato de que ao
longo do tempo, a noção de beleza vem sofrendo adaptações as diferentes, mas
dentre as características que sempre estiveram presentes tem-se a harmonia nas
proporções, daí os eternos modelos serem a Vênus de Milo e o homem vitruviano
(DA VINCI).
O que há, incontestavelmente, é uma busca por modelos, padronizações e
mesmo que esse processo sofra alguns reajustes e alterações (e sempre sofre), ao
longo do tempo, o que parece não mudar nesse desejo de encontrar um ideal de
beleza que “trancafie” toda a diversidade existente é justamente a harmonia nas
formas e o cuidado com o equilíbrio geral das proporções para alcançar a perfeição,
sendo o modelo eleito como mais próximo da perfeição e o ideal a ser perseguido, o
grego.
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O que se precisa é avançar na direção da descolonização das mentes e corpos,
enfim, para que se possa realizar a construção do que cada um é, a partir de
referências muito mais próximas do real fenótipo de cada um, não mais buscando,
muitas vezes, insanamente, perseguir um ideal de ego branco, conforme sinaliza
Souza (1983), irrealizável para o povo negro.
O item a seguir busca refazer o caminho percorrido pela poeta e como o
conhecer da história do seu povo e mais especificamente de um período da história
dos seus, o movimento político-literário chamado Negritude a auxiliou no descobrir
a “chave” para desmontar todo o artefato que vinha sendo construído, sem trégua e
que tanto atrapalhava os processos de tornar-se o que se é, dos seus.
Conhecer a sua história é se conhecer e se assim é, compartilhar histórias e
memórias, mais especificamente aqui nessa comunicação, as afrodiaspóricas, auxilia,
sobremaneira em tais processos de tornar-se mulher negra que segundo Souza
(1983):
A descoberta de ser negra é mais que a constatação do óbvio [...] Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetidas a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades (SOUZA, 1983. p. 17).
Nos permitamos, então, conhecer o entrelaçar de histórias e memórias
aparentemente individuais, mas que são, necessariamente, também , coletivas,
pertencentes sobretudo, a todos aqueles que nos antecederam e deixaram rastros
mais do que fortes e nítidos dos caminhos trilhados.
12.1 QUANDOS OS FIOS HISTÓRICOS E COLETIVOS SE EMBARAÇAM COM AS
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS QUE PARECEM INDIVIDUAIS
O corpus ora em estudo apresenta episódios traumáticos racistas sofridos pela
poeta desde a infância quando ainda tinha a idade de 5 anos apenas.
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Vale comentar que o racismo será concebido aqui como “um mal estar
psíquico” (GUIMARÃES; PODKAMENL. 2012. p. 211) que acomete todas as vítimas
do mesmo e deixa seqüelas as mais diversas, dificultando os processos de construção
identitária e que costuma deixar reverberações, ecos a partir do silenciar de suas
vítimas que acabam por calar e não compartilhar tais vivências do racismo visto que
impregnadas de dor, muitas das quais não cicatrizadas, uma vez que não tratadas.
Trata-se de memórias que sã, nos mais das vezes, interditadas pelo fato de seus alvos
acreditarem que não falar sobre o assunto e sobre os episódios poderá bloquear,
também, as dores advindas do trauma. Uma vez interditadas, muitas vezes
intensificaram as dores, as feridas e que não possibilita que essa memória se torne
apaziguada, uma vez trabalhada ou quiçá que possa novamente encontrar o estado
sadio trazido por Fanon (1979).
O que pode ser notado no processo compartilhado por Guamarra é o fato de
que a alteridade rejeita e sinaliza para uma diferença que na sua perspectiva é
sinônimo de inferioridade e que deseja convencer o outro disso – marcar a diferença
para inferiorizar, subjugar, provocando em seu alvo a internalização do julgamento
expresso. A vítima passa a crer que as palavras proferidas em alto e bom som para
ofender, discriminar e humilhar e acaba, quase sempre, acreditando que se resume as
expressões pejorativas proferidas como sentenças definitivas sobre a sua condição.
Quase nunca ocorre a denúncia, o protesto, sobretudo em forma de arte e de
grande alcance como foi o caso do poema “Gritaram-me negra” de Guamarra. Essa
escrita negra feminina acaba por rasurar, por borrar os estereótipos e suas
deformadas representações sobre o povo negro e aqui mais especificamente sobre a
mulher negra. A medida de decide por publicizar o mal existente no outro, defende-
se da possibilidade de passar a crer e internalizar o negativo jogado em seu rosto, na
sua pele e que tende a embaraçar-se nos seus cabelos e cabeças. Termina por
construir, também, um forte e poderoso aparato de além da denúncia, do não
silenciar tais atrocidades, auxilia, sobremaneira na reversa do processo de
negativização/internalização, proporcionando, quase sempre, a construção positiva
do que se é. Essa arte-denúncia/protesto, essa “palavra-lâmina” (MARTINS. 1996)
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corta, minimiza a imagem deformada, deturpada, caricaturizada feita das mulheres
negras, sobretudo pelos não negros.
Guamarra revela, ainda, em sua poética que aprendeu no susto, de supetão,
pois desconhecia que era negra e muito cedo que há, pelo menos para a alteridade,
alguma coisa errada e extremamente negativa com sua existência a partir do seu
fenótipo como revela a passagem: “[...] E eu não sabia a triste verdade que aquilo
escondia./ Negra!/ E me senti negra,/ Negra!/ Como eles diziam/ Negra!/ [...]”.
Parecia desconhecer a sua condição negra visto que foi apresentada muito cedo a
uma situação vexatória, do que se era de fato, negra.
Buscando refletir sobre o fato de que a construção de identidade é processo de
uma vida inteira e que a procura por pertencimento se inicia com os primeiros
grupos de socialização a exemplo da família, comunidade e escola, quando estes
revelaram para ela de maneira abrupta e extremamente negativa o que de fato era,
foi, também, no susto que esta reagiu quando sentiu gritada a sua condição de negra
e a reação imediata foi a de retroceder, na intenção de minimiza o impacto da rejeição
da não aceitação da sua condição: “[...] E eu não sabia a triste verdade que aquilo
escondia./ Negra!/ E me senti negra,/ Negra!/ Como eles diziam/ Negra!/ E
retrocedi/ Negra!/ Como eles queriam/ Negra!/ [...]”(grifo nosso), ficando a mercê
da vontade alheia sobre a sua corporalidade, sobre seu fenótipo, sobre, enfim, sua
condição no mundo. Presa aos ditames de um padrão que não aceita a bela e rica
diversidade existente na humanidade. Um padrão que elegeu, desde muito tempo o
branco europeu como uma possibilidade de humanidade e beleza e que condena
todos os que não se aproximam de tal modelo. Estes outros são feios e não humanos
e, portanto, precisam se submeter ao que for possível objetivando aproximar-se do
normativo e aceito.
A alteridade empreende os mais diferentes esforços em seu poder de
persuasão e de convencimento e assim sendo as ofensas, os estereótipos criados e
difundidos ao longo da história vão sendo creditados e internalizados, desaguando,
no mais das vezes em processos de autorrejeição como os descritos pela poeta:
“[...] odiei meus cabelos e meus lábios grossos/ e mirei apenada minha carne
tostada/ E retrocedi/ Negra!/ E retrocedi .../ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra!
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Negra! Neeegra!/ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra! Negra!/ Negra!
[...]”.
Nota-se nas passagens acima reproduzidas e nos trechos negritados a
amargura, o peso de ser o que se é, negra, concebida nesse caso como carga difícil de
suportar, pois nada do que sua corporalidade apresenta é concebido como aceitável,
como belo pelo restante da sociedade, sobretudo por aquelas parcelas que tendem ao
racismo e ao subjugo a partir de diferenças encontradas em outros grupos humanos
quase não considerados como tal.
O processo descrito por Valente (1994) e sintetizado no esquema: “Ser (negra)
sem querer ser X Desejar ser (branco) sem conseguir ser” parece ilustrar bem esse
trecho do poema e do processo vivenciado por Guamarra. Ser o que não se deseja
ou o que a alteridade ensinou como negativo e repulsivo, gerando rejeição e não
aceitação. É isso que o trecho a seguir vai revelar processos de autorrejeição, de não
aceitação do que se é: “[...] E passava o tempo,/ e sempre amargurada/ Continuava
levando nas minhas costas/ minha pesada carga/ E como pesava!.../ [...].
O que acaba por ocorrer é quase sempre a rendição a violência da alteridade
que prega, sem trégua, e propaga uma mesmidade. A vítima acaba por se convencer
de que é imprescindível e inevitável acatar o determinado por ela como belo e
humano e submete-se aos ditames impostos pelo outro, descendente do coloniza-dor.
É o que se pode notar nas linhas a seguir e que dão continuidade ao relato do
episódio de racismo sofrido pela poeta em sua infância: “[...] Alisei o cabelo,/ Passei
pó na cara,/ e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra/ Negra!
Negra! Negra! Negra!/ [...]”.
Percebe-se que a diferença e marcada e sinalizada a partir dos traços
fenotípicos, principalmente cabelo e cor da pele, considerados por Gomes (2004)
como: “uma dupla inseparável”.
Não cessava de ouvir o veredicto sobre sua condição no mundo e retrocedia,
se submetia as mais diferentes e nefastas tentativas de se aproximar do padrão
branco, até se aproximar da queda quando se torna muito mais difícil a possibilidade
de se reerguer e reagir, a possibilidade de resistir ou até mesmo de rebelar-se contra a
imposição da violência perpetrada pela alteridade. É isso que nos conta e nos chama
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atenção Guamarra no trecho: “[...] Até que um dia que retrocedia, retrocedia e que ia
cair [...]”.
Mas, antes que chegar ao fundo do poço, ela evita a queda e passa a
compreender o engodo e a armadilha sofisticada e ininterruptamente elaborada e
propagada pelo outro que “acha feio o que não é espelho”, tal qual o mito de Narciso
e por ter a possibilidade de compreender o processo vivenciado e arquitetado pelo
branco opressor, não mais retrocede e “devolve a pedra que lhe atiraram”, como nos
ensina Sartre (apud Santos. 1987): “[...] Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra!
Negra! Negra!/ Negra! Negra! Negra! Negra!/ Negra! Negra! Negra!/ E daí?/ E
daí?/ Negra!/ Sim/ Negra!/ Sou/ Negra!/ Negra/ Negra!/ Negra sou/ Negra!/
Sim/ / Negra!/ Sou/ Negra!/ Negra/ Negra!/ Negra sou/ [...]”.
Igualmente a Cesaire em sua obra e relato sobre o início do Movimento político
literário de negritude indaga: “E daí?”. Assume-se negra com todos os significados e
sentidos que esta condição apresenta ao longo da história. Que se conta com
momentos de forte e ininterrupta rejeição, apresenta, também, reações contrárias a
essa negativização e transforma o vocábulo e a condição negra no mundo como
extremamente positiva e condição sine qua non para se alcançar a autoaceitação e
quiçá, em muitos casos a autorrealização. E segue a poeta ao encontro do
apaziguamento consigo e com os seus traços fenotípicos, não mais os rejeitando
como desejava a alteridade que por força e pela persuasão já tinha convencido a ela e
outros tantos negros que se fazia imprescindível e inadiável a tentativa de imitá-los
para que humano e belo se tornasse, sem ao menos garantir que isso de fato
acontecesse.
Chega um momento que até mesmo por conto do processo iniciado de
conscientização do que se é, a aceitação dos seus traços torna-se inevitável e urgente.
É o que nos revela Guamarra nos trechos a seguir, decidida a não mais tentar imitar o
que não se é e não se render a imposição e enquadramento num modelo tão distante
do seu real e belo fenótipo: “[...] De hoje em diante não quero/ alisar meu cabelo/
Não quero/ E vou rir daqueles,/ que por evitar – segundo eles –/ que por evitar-nos
algum disabor/ Chamam aos negros de gente de cor/ E de que cor!/ NEGRA/ E
como soa lindo!/ NEGRO/ E que ritmo tem!/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/
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NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO
NEGRO NEGRO/ Afinal/ Afinal compreendi/ /AFINAL/ Já não retrocedo/
AFINAL/ E avanço segura/ AFINAL/ Avanço e espero/ AFINAL/ E bendigo aos
céus porque quis Deus/ que negro azeviche fosse minha cor/ E já compreendi/
AFINAL/ Já tenho a chave!/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO/ NEGRO NEGRO/ Negra
sou!”
O aceitar-se e mais do que isso o assumir-se, fazendo as pazes com a imagem
que ver refletida no espelho traz paz, segurança, apaziguamento, um gostar-se até
então não experimentado e o termo que outrora feria e a fazia retroceder, hoje de
posse da “chave”, da descoberta da possibilidade de reverter o sinistro e perigoso
jogo de tentar agradar a alteridade que sedenta da vontade de exclusividade a todos
exclui vem seguido do termo que anteriormente feria e não cicatrizava, agora
grafado em letras maiúsculas – “NEGRO” - sinalizando para a possibilidade de
gritos mas que não mais machucam ou ferem. Afinal é o que ela é mesmo e em
definitivo, concretizando processos de autoconhecimento, autoconcepção,
autoentendimento, autocompreensão, autoconceito, autoaceitação, autoconsciência e
autodefinição que nesse caso especificamente desagua em construção identitária
positiva e “sadia” (FANON, 1979) e que pela repercussão que teve a obra, poderá
ainda servir de modelo para uma parcela significativa da população que
historicamente tem sido estigmatizada e estereotipada e que por isso mesmo acaba
por sofrer psiquicamente, no mais das vezes, com distorções de autoimagem que
podem culminar em autorrejeição e não aceitação do que se é!
Processos de ordem identitária não costumam acontecer em “águas
tranquilas”. Estas são, no mais das vezes, revoltas e, portanto, essencialmente
instáveis. Mas, ainda que assim aconteça, o que se pode notar com as letras negras de
Victoria, compartilhadas nesse artigo, é que a possibilidade de resistir e não
sucumbir além de possível e viável, é sempre alternativa para manter a dignidade, a
beleza e a humanidade do povo negro. E assim sendo, o gostar do que vê refletido no
espelho, o real e belo fenótipo negro-africano apresenta-se como inadiável e
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imprescindível, rebatendo, dessa forma, a crença e a internalização do racismo que
tentaram impor sobre o corpo e valores negros.
Alguns autores se apresentam aqui como de grande valia no que diz respeito a
possibilidade de reverter processos de negação e rejeição causados sobretudo pelo
racismo, discriminação e preconceito e se configuram como possíveis saídas do
labirinto identitário que tanto nos faz zanzar, quase sempre perdidos nas
encruzilhadas pela decisão do que se é de fato e sem conseguir decidir por quais
caminhos devemos optar e trilhar. São eles com as suas respectivas ideias: Gostar da
imagem refletida no espelho (hooks, 2000); Filosofia do Colibri: “Ver a si mesmo como
valioso” (OLIVEIRA, 2007); “A gente só pode ser aquilo que é” (SOBRAL, 2011, p. 25)
e “Só aquilo que somos tem o poder de curar-nos” (JUNG, 2000). Enfim, são pistas
que esses teóricos nos oferecem e que auxiliam sobremaneira nos processos de
tornar-se o que se é e que Jung (2000) chamará de individuação.
Assim sendo, objetivou-se, com a presente comunicação, destacar o caminho
percorrido pela poeta em seus processos de tornar-se o que se é, mulher negra,
fortemente imbricados com a história do movimento literário iniciado nas Antilhas
por volta da década de 40 e denominado de Negritude. Memórias, experiências e
literatura se mesclam para compor a trama ora tecida com o intuito de apresentar
possibilidades outras de ser e estar no mundo, diferentes sim, mas nem por isso
inferiores. Experiências de processos de tornar-se negra (SOUZA, 1983).
Compartilhar histórias afrodiaspóricas que mesmo marcadas por agruras, apontam,
também, para superações das mesmas, via a afirmação do que se é! Esses foram os
desejos e pretensões a que esse artigo se propôs a alcançar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se nessa comunicação acompanhar e socializar o caminho percorrido
pela poeta e como o conhecer da história do seu povo e mais especificamente de um
período da história dos seus, o movimento político-literário chamado Negritude a
auxiliou no descobrir a “chave” para desmontar todo o artefato que vinha sendo
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construído, sem trégua e que tanto atrapalhava os processos de tornar-se o que se é e
dos seus também.
Conhecer a sua história é se conhecer e se assim é, compartilhar histórias e
memórias, mais especificamente aqui nessa comunicação, as afrodiaspóricas, auxilia,
sobremaneira em tais processos de tornar-se mulher negra,
A ideia era a de conhecer o entrelaçar de histórias e memórias aparentemente
individuais, mas que são, necessariamente, também, coletivas, pertencentes
sobretudo, a todos aqueles que nos antecederam e deixaram rastros mais do que
fortes e nítidos dos caminhos trilhados e possíveis saídas do complexo labirinto
identitário que tantas vezes nos faz zanzar perdidos sem saber que direção tomar.
Referências
BARDIN, Lawrence. Análise do conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 2005.
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IDENTIDADE NEGRA NA CENA LITERÁRIA BRASILEIRA
Autora: Rosilda da Silva (UNEB/PPGEL). E-mail: [email protected]
Resumo: Este artigo apresenta uma discussão sobre o processo de construção de identidades negras mediante a produção literária de escritores e escritoras que fazem parte do coletivo literário Cadernos Negros. Para tanto, busca-se refletir sobre a identidade inventada pela elite dominante brasileira para o negro e as estratégias utilizadas pelos escritores dos Cadernos com vistas à reversão de tal identidade e assim fomentar nos leitores afro-brasileiros representações positivas de si, de sua cultura e motivá-lo a insurgir-se frente às situações de preconceito e discriminação racial. Essa discussão tem como norte os estudos de: Alves (2010) Antonio (2008), Bernd (1988), Castells (2009), Costa (2008), Cuti (2002, 2010a e b), Dalcastagné (2012), Hall (2010), Martins (1995) e Souza (2006). Palavras-chave: Identidade; literatura negra; Cadernos Negros.
O uso literário das palavras para representar os recônditos das subjetividades
do sujeito, das mazelas sociais ou de qualquer outra dimensão imaginada pela mente
humana, tem historicamente agregado valor simbólico. Com isso, a literatura
permanece como uma prática cultural de prestígio junto às demais que compõem
determinadas sociedades, mantendo o seu status sacralizado.
Não podemos perder de vista, que a literatura é uma construção social e com
tal está envolta em jogos de poder, sendo assim, passível de manipulação. O fazer
literário é “atribuído” àqueles que fazem parte da elite cultural que, em geral, é
também a elite econômica. Tal elite cria os mecanismos e os critérios de valoração e
legitimação das obras. Desse modo, consegue manter um certo controle sob o
discurso literário que faz circular, tendo em vista que as obras legitimadas tem
trânsito garantido em todos os espaços sociais. Olhando por esse ângulo, fica fácil
perceber porque os grupos socialmente marginalizados têm dificuldade de adentrar
o campo literário como produtores.
Se por um lado, como diz o teórico Roland Barthes (1992, p. 19), “A escritura
faz do saber uma festa”, por outro nem todos estão convidados a festejar. Os grupos
dominantes impõem as regras para o trânsito na festa do fazer literário, que vão
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desde a quem deve produzir, que obras têm valor simbólico e quem é o público leitor
preferencial.
No tradicional salão de festas das letras brasileiras, comandado por uma elite
que se pretende branca, a entrada do negro enquanto escritor sempre foi dificultada.
Como leitor não era cogitado e na condição de personagem, ou estava ausente ou era
representado pejorativamente. Entretanto, à medida que os negros no Brasil
“tornam-se negros”, no sentido enunciado por Neusa Souza em sua obra Tornar-se
negro24, urge a necessidade de requerer representações positivas de si e o direito de
expressar literariamente as suas experiências. Por conseguinte, leitores/escritores
negros25 atentos aos modos de exclusão ou inclusão segregada nos textos da
literatura brasileira instituída, forjam o seu espaço de enunciação. Rejeitam o lugar
de objeto que lhes foi atribuído e assumem o protagonismo do discurso.
Regina Dalcastagné (2012), em sua pesquisa sobre o universo da literatura
contemporânea brasileira que abrange os anos 1990 a 2004, apresenta o perfil dos
escritores que ainda são publicados pelas grandes editoras: homens, brancos, de
classe média, moradores do Rio de Janeiro e São Paulo e que exercem profissões
privilegiadas na produção de discurso.
Em função disso, de acordo com a autora, acontece um estranhamento
quando escritores e escritoras que destoam desse perfil conquistam espaços nesse
campo que se pretende restrito. Isto incomoda principalmente àqueles que querem
manter seu espaço descontaminado. Dalcastagné (2012, p. 12) acrescenta “A
definição dominante de literatura circunscreve um espaço privilegiado de expressão,
que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros, o que
significa que determinadas produções estão excluídas de antemão.”
A escritora Miriam Alves (2002), em seu ensaio Cadernos Negros (número 1):
estado de alerta em fogo cruzado, diz que a vertente negra da literatura brasileira
caracteriza-se principalmente por “atitudes literárias de organizar a fala através do
24 Para a autora “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelidas a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades”. (SOUZA, 1983, p. 18) 25 Ao citar o escritor negro, estamos nos referindo àquele que, sendo negro, escreve sem renegar sua experiência subjetiva-racial e elege o leitor negro em seu ato de criação, conforme definição de Cuti (2009).
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coletivo, promovendo mudanças culturais”. Tal vertente é composta de escritores
que além da produção literária comprometem-se com a publicação de livros, teses e
promoção de eventos. (ALVES, 2010, p. 224). Assim, além de forjar espaços de
enunciação, produz-se uma rede de legitimação do fazer literário desse grupo que
não pretende fazer a sua escrita comungar da literatura dominante.
Os Cadernos Negros são um desses espaços construídos e mantidos a partir do
trabalho coletivo de produção e divulgação do discurso literário do negro.
Intelectuais negros se unem e se reúnem para que as gerações atuais e as próximas
tenham possibilidades de representações literárias plurais dos segmentos sociais que
compõem a sociedade brasileira.
Miriam Alves, em análise do texto-documento publicado no Cadernos Negros 1,
relata quais foram as motivações para o surgimento do primeiro volume:
[...] rebelava-se contra a perpetuação do negro como segmento mais atingido nas formas de exploração social. Naquele momento a África servia de parâmetro para as duas categorias: a de exploração e a de rebelião. Inspirados nesse devir, os autores diziam fazer da negritude, exposta em poesia, instrumento de luta contra a exploração social. Recusavam-se, então, a inscrever-se na literatura dominante, a qual tem como inspiração um modelo idealizado de “branquitude”. (ALVES, 2002, p. 227)
A antologia literária Cadernos Negros foi idealizada pelos militantes/escritores
Cuti, pseudônimo de Luís Silva, e Hugo Ferreira. O lançamento do primeiro volume
(uma edição de bolso mimeografada que contava com oito poetas26) aconteceu em
1978, em São Paulo.
A invenção do nome do periódico, Cadernos Negros27, é creditada a Hugo
Ferreira. O escritor relata que a escolha foi uma homenagem à escritora Carolina
Maria de Jesus falecida em 1977, que escrevia em cadernos, assim como o grupo de
poetas negros formado nessa década, que viria a produzir no periódico criado. (Apud
COSTA, 2008, p. 25).
26Cuti, Hugo Ferreira, Oswaldo Camargo, Henrique Cunha Jr, Ângela Lopes Galvão, Célia Aparecida
Ferreira, Eduardo de Oliveira e Jamu Minka, conforme pesquisa de Fausto (2005, p.32). Em sua tese Fausto Antonio cita os escritores que compõem os Cadernos Negros, dos volumes 01 ao 27. 27 Doravante tratados também com a sigla CN
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Negra, pobre, com pouca escolaridade formal, para Carolina Maria de Jesus,
escrever em cadernos, que por sua vez eram encontrados no lixo, era a única opção
que tinha. Como catadora de lixo, além de conseguir o seu sustento físico, a escritora
alimentava o seu o repertório intelectual através dos livros que encontrava.
Não somente o fato de utilizarem o mesmo suporte para a produção literária
ligam os escritores dos CN à Carolina Maria de Jesus. As funções que as elites
dirigentes atribuíam ao o negro e à negra na sociedade brasileira nunca estiveram
relacionadas com o labor intelectual. Em função disso e dos demais critérios já
citados, estabelecer-se como escritor ou escritora negra sempre foi uma tarefa árdua.
No caso de Carolina Maria de Jesus, soma-se ao preconceito de cor, o de gênero, o de
classe e ainda o fato de a escritora ter tido pouco acesso à escolaridade formal.
A presença de vozes não “autorizadas” pelo discurso dominante, ao
apresentar as suas experiências individuais e coletivas, as mazelas sociais sob pontos
de vistas diferenciados provoca deslocamentos nas representações literárias que já
estavam acomodadas na cena literária brasileira. Isso contraria as expectativas dos
grupos dominantes.
Conscientes das barreiras materiais e simbólicas que dificultam a entrada de
escritores e escritoras negras no campo da literatura, desde a publicação do primeiro
volume dos CN, os organizadores já anunciavam o segundo e assim sucessivamente.
Essa foi uma das estratégias utilizadas para que o periódico se perpetuasse e
atravessasse décadas, conforme relata Cuti, na introdução dos CN, Os melhores contos
(1998, p.17). Dessa forma, mantinha-se o grupo empenhado na continuidade do
trabalho.
Os CN são publicados anualmente, nos anos pares são coletâneas de poesias e
nos ímpares contos. Até o presente momento (2013) contam com 35 volumes. A
antologia é mantida por um sistema de cooperação, em que os escritores, após terem
seus textos aceitos (mediante seleção,28 na qual assinam com pseudônimos),
responsabilizam-se com parte dos custos e das vendas. Essas estratégias para a
28 Nos primeiros volumes dos Cadernos não havia seleção. Os textos enviados eram automaticamente
publicados, ou selecionados pelos próprios escritores que faziam parte do grupo. A seleção começou a ser feita de forma mais rigorosa a partir do número 16. (COSTA, 2007, p. 35). Possivelmente, esse rigor foi necessário devido o aumento do número de autores solicitantes.
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manutenção da antologia estão pautadas em laços de solidariedade e no
compromisso de reinvenção de uma identidade que de fato favoreça a raça negra.
Nos primeiros anos (1978 a 1982), os CN ficaram sob responsabilidade de Cuti
e o objetivo inicial era:
[...] publicar textos de autores negros, pois animava-nos a consideração de que literatura é, também, ideologia. E, em assim sendo, precisávamos, enquanto escritores e militantes do Movimento Negro, mostrar textualmente as vivências da nossa gente, nossa subjetividade individual e coletiva, através da publicação de poemas e contos, e arregimentar escritores de todo o Brasil. (CUTI, 2010a, p. 293).
A partir do número 06 (1983), os CN passaram a ser publicados com o selo do
grupo Quilombhoje Literatura29, uma entidade sem fins lucrativos que, desde então,
responsabiliza-se pela organização, edição, lançamento e divulgação da série. Tal
grupo, criado em 1980, tinha por objetivos iniciais discutir e estudar literatura negra
nacional e internacional, além de divulgar e declamar as próprias produções,
segundo Cuti (2010a).
Em 1983, dos primeiros participantes que fizeram parte do Quilombhoje,
apenas Cuti permaneceu e outros escritores ingressaram: Esmeralda Ribeiro, Jamu
Minka, José Alberto, Márcio Barbosa, Miriam Alves, Oubi Inaê Kibuko, Sônia Fátima
da Conceição e Vera Lúcia Alves. Em 1984, o escritor Abílio Ferreira passou a fazer
parte do grupo. Já, em 1995, a maioria dos participantes se afastou e ficaram apenas
três: Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa e Sônia Fátima da Conceição. E, desde 1999,
o periódico é coordenado por Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro.
Márcio Barbosa, na introdução do CN 17, resume o que seria a essência do
grupo Quilombhoje:
[...] o desejo de que a solidariedade venha permear a vida cotidiana não só daqueles que escrevem, mas de todo o nosso povo sofrido, o qual tem sido levado – devido à negação oficiosa de seus valores e à carência de referências fortes e verdadeiras – a um permanente estado de
29 Segundo Esmeralda Ribeiro, fazia parte da formação inicial do grupo: Abelardo Rodrigues, Cuti, Mário Jorge Lescano, Paulo Colina e Oswald de Camargo. (Texto de apresentação do CN, Os melhores contos, 2008. p. 10)
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desunião e uma constante necessidade de melhora na auto-estima. (CN 17, p. 14, grifos nossos)
O permanente estado de desunião ao qual o negro foi submetido, citado por
Márcio Barbosa nos remete ao longo período de escravidão no Brasil e os seus
legados. Antes de ser “inserido” na sociedade escravista brasileira, o negro já era
vitimado por um aparato ideológico engenhosamente articulado para promover a
sua dessocialização e coisificação. De início, a desarticulação familiar, a destituição
da condição social que ocupava em sua nação, depois a imposição de outros
costumes e tentativa de destruição ou desqualificação das suas referências
simbólicas.
Dificultar a construção de laços de amizade e de solidariedade entre negros
escravizados era mais uma das táticas de dominação utilizadas pelos senhores de
escravos. Para tanto, compravam negros de grupos étnicos diferentes e por vezes até
incitavam a rivalidade entre eles, conforme os estudos da historiadora Kátia Mattoso
(2003). Língua, cultura e religião diferentes constituíam-se obstáculos para que os
negros escravizados se reorganizassem. No entanto, a condição de oprimido, os
infortúnios vividos e o desejo latente por liberdade forjaram novas conexões que
resultaram em insurreições, fugas e formação de quilombos.
No período pós-colonial, quando a questão da identidade nacional tornou-se
prioridade para consolidar o processo de formação da nação brasileira, a literatura
foi um dos instrumentos usados para disseminar as características do que seria a
comunidade imaginada: Brasil. Nessa construção identitária iniciada no século XIX, o
negro e tudo que estava relacionado a ele foi excluído ou representado
pejorativamente.
Em função disso, as gerações pós-escravistas, pós-coloniais, conviveram com
produções que, de modo sutil ou declarado, atribuíam tudo que fosse negativo e
lascivo ao negro30. Isto contribuiu para incutir no imaginário da nação brasileira uma
obsessão pelo branqueamento e pela necessidade de imitação das imaginadas
culturas europeias.
30 Sobre a representação estereotipada do negro na literatura, ver BASTIDE, Roger. Estereótipos de negro através da literatura brasileira. In: Estudos afro-brasileiros. 1993.
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Inseridos nesse contexto, no entanto, atentos às consequências negativas dos
discursos inferiorizantes que ainda circulam sobre o negro, os autores dos CN têm,
através de contradiscursos, trabalhado na construção de outra possibilidade de
identidade, a identidade negra. Para tanto, os autores rejeitam qualquer necessidade
de embranquecimento e buscam no repertório da cultura negra mecanismos de
positivação dessa identidade.
De acordo com a percepção do sociólogo Manuel Castells (1999), a identidade
é um processo que está relacionado com a construção de significados, com base em
atributos culturais inter-relacionados que sempre ocorre em contextos marcados por
relações de poder.
Castells (1999) distingue três formas de construção social da identidade:
legitimadora, resistência e projeto. A primeira é introduzida pelas classes dirigentes
com o intuito de expandir e racionalizar a dominação. Com tendência
homogeneizante, essa identidade é reproduzida por um conjunto de instituições
(escolas, igrejas, entidades cívicas, partidos e etc.) que fazem parte da sociedade civil
a fim de assegurar a sua validade e continuidade. A identidade de resistência é
criada por grupos que se encontram em condições desvalorizados pela lógica da
dominação e que por isso reforçam os seus princípios divergentes dos princípios que
permeiam as instituições sociais, com o objetivo de refugiarem-se neles e garantir a
sobrevivência. E a identidade projeto, a que mais nos interessa nesta pesquisa, ocorre
do seguinte modo:
[...] quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscar a transformação de toda a estrutura social. (CATELLS, 2009, p. 24, grifos nossos)
No Brasil, a construção de identidades negras está na contracorrente da
identidade introduzida pelas instituições dirigentes da sociedade. Os movimentos
negros brasileiros contemporâneos trabalham na tessitura de identidades negras que
contribuam com a elevação da autoestima, produzam marcas positivas na
autoimagem, fortaleçam os laços de solidariedade do grupo, e por consequência, o
sentimento de pertença.
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Positivar a identidade coletiva é uma das formas de fortalecer os grupos
minoritários em suas lutas por melhores posições no tecido social. A literatura dos
CN, gestada no seio da militância e por escritores/militantes, assume, no campo
literário, a função de afirmar a identidade negra.
Em seu quadro conceitual, Manuel Castells chama a atenção para a
mobilidade das identidades, que podem começar como resistência, resultar em
projeto e até mesmo tornarem-se legitimadora. Com esse deslocamento de posições,
as forças que atuam na manutenção da estrutura social seriam redimensionadas.
Para a realização de suas produções, os escritores dos CN investem no resgate
e na valorização de elementos relacionados ao segmento social negro, os quais foram
ignorados pelo projeto de identidade forjada pelo Estado-nação: história, memória
coletiva, heróis, cor, lendas. Trata-se de um patrimônio simbólico que posiciona a
cultura negra não apenas como mera contribuinte para a formação da cultura
brasileira, mas como partícipe basilar.
Porém, o reconhecimento quanto à ocupação da centralidade da cultura negra
junto às demais no discurso da identidade nacional é uma questão lateral frente aos
outros objetivos pretendidos pelos CN. A partir da bibliografia pesquisada, é
possível inferir que uma das causas defendidas pelo periódico, e quiçá a principal, é
a mudança de posição do segmento negro no contexto brasileiro, aproximando-se da
ideia de “identidade projeto” definida por Castells. Ainda com relação à identidade
projeto, o sociólogo acrescenta: “consiste em um projeto de uma vida diferente,
talvez com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido de
transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de identidade”.
(CASTELLS, 1999, p. 26)
Segundo o pesquisador Fausto Antonio (2008), a problematização da
identidade é o centro pelo qual circulam as poesias, os contos e os textos teóricos que
compõem os CN. O pesquisador afirma que, para os periódicos, a identidade racial
significa “empreender movimento para a superação das desigualdades raciais, a que
estão submetidos os negros” (ANTONIO, 2008, p. 81).
Uma das justificativas para a insurgência do discurso literário do negro está
explícita neste relato de Cuti, citado por Costa (2008, p. 25) “Nosso pais não podia
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mais viver sem a nossa experiência de vida colocada em forma de literatura por duas
razões: nós negros precisávamos estar representados e também o branco precisava
ser visto de outra maneira.”
Em Literatura negro-brasileira (2010b), Cuti discorre sobre as forças político-
ideológicas que atuam no campo da literatura, e afirma que a questão racial, outrora
silenciada, tem sido enunciada por vozes negras insurgentes. No entanto, esta tarefa
em curso encontra resistência, pois, a fibra com a qual foi tecida a literatura brasileira
“ainda entoa loas às ilusões de hierarquias congênitas para continuar alimentando
com seu veneno o imaginário coletivo de todos os que dela se alimentam direta ou
indiretamente.” (CUTI, 2010b, p. 13).
Cuti (2010b, p.13) acrescenta que a literatura brasileira precisa “de forte
antídoto contra o racismo nela entranhado.” A produção literária dos CN vem há
mais de três décadas contribuindo com a reconstrução do imaginário coletivo, de
modo a atenuar os prejuízos psicológicos que foram causados ao leitor negro.
Seguindo a própria nomenclatura dos CN, que, a partir do volume 18,
publicado em 1995, passou a adotar como subtítulo a expressão afro-brasileiro, o
termo literatura negra é entendido aqui, como sinônimo de literatura afro-brasileira.
O enunciador de tal produção literária sabe ou sentiu as agruras de ser negro em um
país cujas culturas prestigiadas têm como modelo a europeia e as vozes ouvidas
durante séculos foram a do branco ou a do mestiço que assume somente uma parte
da sua mestiçagem: a branca.
Vale ressaltar que um dos fundadores e escritor que publica na maioria das
edições dos CN, Cuti, rejeita a nomenclatura afro-brasileira para nomear a literatura
negra, e afirma que o termo apropriado é literatura negro-brasileira31. Para além da
atual polêmica acerca desse termo – que gira em torno das seguintes classificações:
literatura afro-brasileira, afrodescendente e negra –, teóricos, escritores,
31 “Denominar de afro a produção literária negro-brasileira [...] é projetá-la à origem continental de
seus autores, deixando-a a margem da literatura brasileira, atribuindo-lhe, principalmente uma desqualificação com base no viés da hierarquização das culturas, noção bastante disseminada na concepção de Brasil por seus intelectuais”. (CUTI, 2010, p. 35-36)
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pesquisadores e leitores tem à sua disposição uma vasta produção literária que
aborda questões relevantes sobre as relações etnorraciais no Brasil32.
Zilá Bernd (1988) destaca esse papel do escritor negro em romper com uma
tradição literária brasileira que, salvo algumas exceções, trazia-o apenas como tema
ou como objeto, um negro sem voz, “o outro” de quem se falava, constituindo uma
literatura sobre o negro. Nesse sentido, a literatura produzida pelo negro é marcada
pela presença de um enunciador que se quer negro, imbuído de uma subjetividade
intransferível. Trata-se de uma produção literária que surge a partir de uma tomada
de consciência da questão negra, com o intuito de desvelar as nuances que
desprestigiam o ser negro e positivar valores culturais que foram propositalmente
esquecidos ou escamoteados.
Estabelece-se um discurso literário assumido por escritores que se
autonomeiam negros e inserem a sua escrita no campo da literatura negra. Tal escrita
traz a luz outros modos de expressão literária e provocam uma ruptura no círculo de
discursos que representam a sociedade a partir da miopia conveniente das classes
dominantes.
Para Miriam Alves (2010), a presença de escritores e escritoras negros motiva
um mal-estar em alguns segmentos da sociedade brasileira, por estarem
acostumados a ignorar as vivências do sujeito negro. A escritora acredita que existe
uma potencialidade de transformação nesse assumir a subjetividade negra. Ressalta
ainda a importância de se reverter a carga semântica negativa do signo “negro”, pois
desse modo opera-se a inversão do olhar sobre o brasileiro negro, “tirando-lhe a
máscara da invisibilidade e dando existência ao que se considera massa amorfa, sem
rosto, sem sentimento, interioridade e humanidade”. (ALVES, 2010, p.234)
Para analisarmos o processo de produção de contradiscursos realizado pelos
escritores dos CN, comecemos pelos estudos realizados por Florentina Souza (2006),
em Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Nessa obra, a pesquisadora
analisa o processo de invenção de um discurso de representação e de produção de
identidades afro-brasileiras, proposto pelos periódicos citados no título da obra e
32 Sobre essa polêmica em torno do termo, ver estudos de Eduardo Assis Duarte (2007), Maria Nazareth Soares Fonseca (2006), dentre outros.
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afirma que ambos “viabilizam a criação de um espaço público para a expressão de
um grupo excluído, silenciado e tornado invisível nos setores privilegiados da
sociedade brasileira”. (SOUZA, 2006, p. 13).
De início, os autores desses periódicos tiveram que se confrontar com as já
citadas imagens negativas que lhes foram introjetadas ao longo da sua formação
cultural. Conforme nos explica Souza:
Obrigados a conviver desde a infância com os sentidos negativos atribuídos as expressões pertencentes ao campo semântico negro, também utilizadas para nos definir e caracterizar étnico-racialmente, somos colocados diante do dilema: como nos amarmos se o preto é feio, o
perverso, o mal, o pecado? (SOUZA, 2006, p. 135, grifos nossos)
Livrar-se das imagens depreciativas que circundam a mente de cada escritor
negro, a partir dos vários discursos ainda vigentes, foi o primeiro passo para o início
de reversão da carga semântica negativa da palavra negro. A partir de então, o
escritor começa a trabalhar na produção de um discurso literário do negro, tendo
como ponto de partida as suas subjetividades.
Contudo, forjar identidades negras, em um contexto que se quer branco, no
qual as elites dirigentes se esforçaram exaustivamente na tentativa de apagamento
das culturas negras, seja por meio de perseguições seculares, por discursos
inferiorizantes ou pela tentativa de invisibilização, é um desafio árduo para o escritor
negro.
Sobre a (in) visibilidade social do negro, Florentina Souza (2006) afirma que o
negro torna-se invisível socialmente quando ocupa os lugares desprestigiados no
tecido social, uma vez que esta ocupação é vista como natural. Em contrapartida,
quando conquista lugares de prestígio sua visibilidade é excessiva, haja vista a
dificuldade que a sociedade tem em aceitar que os afro-brasileiros ocupem lugares
que não lhes forem previamente destinados. Outra forma de tornar o negro invisível
em determinadas situações é “Apagar os vínculos étnicos e os traços físicos, apagar a
‘a cor’”, (SOUZA, p. 36). Com essa estratégia de apagamento, a atuação desse
segmento nos vários setores da sociedade brasileira, torna-se imperceptível.
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Ainda de acordo com Souza (2006, p. 37), a invisibilidade imposta aos afro-
brasileiros, “estende-se ao campo das letras, e à produção textual canônica, na
maioria dos casos, continua a reproduzir os estereótipos negativos e a omitir o
registro e a aparição da produção textual autodenominada negra ou afro-brasileira.”
Esta é mais uma das estratégias utilizadas pela elite dominante para a manutenção
do seu status, haja vista que, se o sujeito negro não tem referências positivas do seu
grupo étnico, isto pode levá-lo à descrença quanto as suas chances em angariar
conquistas.
Com relação ao racismo à brasileira, cujos modos de atuação são denunciados
pelos textos que compõem os CN, Leda Maria Martins, em A cena em Sombras (1995),
explica que este se exercita por meio de uma “linguagem violenta”, que circula nas
falas do cotidiano. Nesses discursos, o signo negro aparece quase sempre
negativado. Desse modo, os lugares atribuídos ao negro via produção discursiva,
identificam “um sujeito negro enunciado na própria margem do discurso, destaca-o
como um outro não apenas diferente, mas indesejável, ou desejável em lugares
previamente determinados”. (MARTINS, 1995, p. 36).
Regina Dalcastagné (2012) também chama atenção para os processos de
invisibilização e silenciamento de grupos sociais inteiros no campo literário brasileiro
instituído. Essa é mais uma indicação do caráter excludente de nossa sociedade, de
acordo com a autora, que sugere uma mudança de posicionalmente frente às obras
literárias: de reverência à crítica.
Stuart Hall percebe que as classes menos favorecidas têm conquistado alguns
espaços no âmbito cultural, mas adverte que tais espaços são “policiados, regulados”
e que no lugar da invisibilidade o que existe é “uma espécie de visibilidade
cuidadosamente regulada e segregada”. Ampliando a discussão acerca desses
embates, o teórico diz que algumas estratégias podem “efetuar diferenças” e
promover o descolamento “das disposições de poder”. E afirma que o único jogo
que vale a pena é o da “guerra de posições culturais”. (HALL, 2011, p. 321)
Hall (2011) enfatiza a ambiguidade que paira sobre esses espaços, pois, ao
mesmo tempo em que o momento atual representa uma abertura para as margens,
para o diferente, as classes dominantes desenvolvem políticas culturais para tentar
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homogeneizar a identidade, a partir do resgate das grandes narrativas da história, da
língua e da literatura.
À medida que vários grupos não se sentem contemplados na concepção de
identidade construída pelas classes hegemônicas, eles vão reivindicando novas
identidades e forçam a redefinição das que estão legitimadas. E é nessa simbiose,
imposta pelas relações de forças simbólicas que vai se reconfigurando as disposições
do poder na estrutura social.
Essas reflexões de Hall (2011) nos remetem à luta travada no campo da
literatura pelos escritores dos CN, que insistem e persistem, a partir das suas
próprias experiências, em expressar “contranarrativas” que valorizam a cultura
negra e atuem na redefinição de suas próprias identidades. Nessa guerra posicional,
em que a página literária tornou-se o campo de luta, os autores dos CN redefinem as
suas posições frente aos discursos produzidos pelas classes dominantes.
Florentina Souza (2006) sintetiza o amplo universo abordado e o modo de
atuação do escritor negro que,
[...] seleciona e reelabora os dados culturais de que necessita para construir um desenho identitário positivo para si e para o seu grupo; tentará, por conseguinte, desvelar o apagamento e o desprestígio constituídos pela ocidentalização. Deste modo, assenhorando-se da cosmologia de origem africana dos mitos, rituais e símbolos, proporá práticas eficazes para repensá-los e reconstruí-los dentro de uma perspectiva que instala a discussão sobre a ambivalência da sua relação com o universo cultural do Ocidente. (SOUZA, 2006, p. 62, grifos nossos).
Os CN investem na construção da identidade negra a partir dos contos e
poesias que destacam a apresentação das situações de discriminação racial. Os
processos de invisibilização corroboraram para dificultar a assunção de uma
identidade negra nos discursos literários. Os textos dos CN mais do que rejeitam a
assimilação de uma identidade negra atribuída pelo branco. Apresentam identidades
negras construídas e reconstruídas pelas óticas de escritores e escritoras, fundadas na
consciência da ancestralidade africana e afro-brasileira.
Em síntese, a identidade proposta pelos CN tem bases na ancestralidade, nas
culturas e religiões forjadas no encontro dos vários grupos étnicos durante a diáspora
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negra no Brasil com as tradições do ocidente. Tal identidade é reatualizada
continuadamente, numa relação dialógica com as necessidades, conflitos e conquistas
do sujeito negro contemporâneo, seguindo as reflexões de Florentina Souza (2006).
Referências
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IDENTIDADES DESTERRITORIALIZADAS: o entre-lugar dos personagens híbridos de Milton Hatoum
Sandra Lúcia Sant’Ana dos Santos Pimentel33 Universidade Estadual de Feira de Santana
Resumo: A identidade do sujeito migrante torna-se tema exaustivamente discutido no cenário atual global, tendo-se em vista a quantidade de migração que tem ocorrido ultimamente. Diante deste gozo do ir e vir, ou da acentuada necessidade de deslocamento, verifica-se a “troca” cultural entre diferentes povos. Pois, se por um lado o sujeito do deslocamento faz transitar as suas experiências culturais, por outro assimila (claro, não de forma passiva) os bens culturais “do outro”, dando espaço ao que Bhabha (1998) chama de tradução cultural. A literatura, como forma de expressão e representação cultural de um povo, não poderia deixar de representar este deslocamento dos sujeitos e este trânsito cultural. Neste contexto literário, o autor manauara contemporâneo, Milton Hatoum figura como nome importante, pois busca dá voz a sujeitos imigrantes, que carregam ao mesmo tempo em sua vivência a tradição e a tradução cultural, buscando (con) viver com as diferenças culturais. Os livros do autor percorrem esta linha temática e trazem como forma narrativa recortes de memórias. Neste trabalho, buscando uma reflexão mais acentuada sobre estas questões, foi que se pensou em analisar o romance de Milton Hatoum, Dois Irmãos, sob a perspectiva das construções identitárias dos seus personagens e dos “lugares” ocupados por estes, em situação de migração, neste caso Brasil – Líbano e Líbano – Brasil. Entre estes personagens destacamos Yaqub, por experienciar a emigração, tornando-se um sujeito “estrangeiro” em seu próprio país; Omar, o personagem que sempre retorna a seu lugar de origem; Nael, o narrador, personagem nativo, mas claramente influenciado pelo ir e vir dos outros personagens; Galib, personagem que mantém forte vínculo com sua terra natal; e Halim, que traduziu-se completamente em seu novo país, o Brasil. Estes personagens vão compor esta análise. A proposta é perceber as caracterizações destes personagens, suas (trans)formações identitárias e suas subjetividades frente a desterritorialização/ reterritorialização, assim como as identidade dos sujeitos nativos. Pretende-se, também lançar um olhar analítico sobre como se dá a ocupação do entre-lugar, do sujeito da diáspora, o qual dissolve as fronteiras entre a terra natal e a nova nação ocupada. Para a realização deste trabalho fez-se uma análise do referido romance e de teorias que subsidiassem a vertente crítica-teórica. Dentre os teóricos estudados destacam-se, por contribuírem de forma direta com a temática, Hall (2003)-(2005), Homi Bhabha (1998), Bernd (2011), Cury (2011) e Bauman (2004). Busca-se, baseado nestas vertentes críticas teóricas, um olhar sobre as fragmentações e a reconstruções dos sujeitos diaspóricos e suas reconstituições enquanto indivíduos reterritorializados.
Palavras-chave: Identidade, Personagens, Deslocamento, Hibridismo cultural.
33 Mestranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários (PROGEL), da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O sujeito pós-moderno vive uma crise de identificação tão acentuada, que há
recentes relativizações do que se compreendia como identidade. Este conceito
fragmentou-se junto com o indivíduo. De acordo com Hall (2005) as velhas
identidades não atendem mais aos anseios desses novos sujeitos, marcados pelo
trânsito cultural. Percebe-se assim que as identidades dos cidadãos pós-modernos
estão em processo constante, não há como pensar na sua fixidez nesses tempos
globalizantes.
A arte constitui-se como uma forma de representação do homem, exprimindo
suas angústias ou alegrias. Ela exprime, também, as situações vivenciadas por eles na
pós-modernidade, dentre estas, os deslocamentos espaciais e culturais. A literatura,
mais especificamente o romance, como uma dessas formas de representar o homem,
cria enredos no qual personagens vivenciam trânsitos culturais diversos e se (trans)
formam a partir destes trânsitos.
A estes sujeitos, com identidades em construção e em deslocamentos, que
Milton Hatoum busca dar voz. Na narrativa desse autor ressoa o universo dos que
vivenciam a experiência do deslocamento e dos questionamentos de pertencimento a
um determinado lugar. Instaura-se assim, a fragmentação da identidade, pois o
sujeito marcado pelo trânsito cultural vivencia a duplicidade de pertencer, ao mesmo
tempo, a dois lugares, o de nascimento e o da construção das experiências.
No romance Dois Irmãos do autor, há personagens híbridos, fragmentados e
em busca de suas identidades. Esta narrativa rememora a vivência de uma família de
origem libanesa, que passou grande parte de sua vida em Manaus, onde construiu
lar. Em sua complexa existência a família passou por profundos conflitos,
desencadeados, principalmente, pelos dois irmãos Yaqub e Omar. O primeiro, sujeito
errante, sai de sua terra, ora obrigado pelo pai (Halim) para o Sul do Líbano, ora para
construir carreira em São Paulo. Já Omar sente-se enraizado à terra manauara, tanto
pelo excessivo zelo materno, quanto pelo forte pertencimento ao seu espaço.
O hibridismo cultural, então “corre na veia” destes personagens, assim como
de outros, que mesmo não experimentando diretamente o deslocamento, convivem
com seres em migração. Assim há nas construções desses personagens centrais da
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narrativa, como nos demais a multiplicidade de identidades que nos traz Hall (2003),
quando expressa que “na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas”.
(p. 27).
A fragmentação e a relativização das identidades, enquanto processo em
construção, é a temática que interessa este artigo. Objetiva-se um olhar analítico
sobre as construções das personagens hatoumianas, suas identidades em estado
líquido, partindo de seus deslocamentos espaciais.
2. IDENTIDADE E DESLOCAMENTO: PERSPECTIVAS TEÓRICAS
Fernando Pessoa, em seus heterônimos, conseguiu se multiplicar em vários
eus, todos preservando suas particularidades. A multiplicidade de Pessoa representa
para o homem dos séculos XX e XXI os seus fragmentos, as suas diversas pessoas
fluindo para uma única. Assim se constitui a identidade, ou como mais recentemente
nos trazem os teóricos Hall e Bauman, as identidades dos sujeitos pós-modernos.
Os mesmos autores enfatizam a não fixidez da identidade, pois esta
permanece em constante negociação com o mundo exterior do sujeito. De acordo
com Hall (2005, p. 38) a identidade não pode ser algo inato ao ser humano, como por
muito tempo se acreditou, ela está em constante processo, é algo inacabado.
Ao se pensar na identidade em formação, ou em seu estado líquido
(BAUMAN, 2004), requer-se uma atenção ao fenômeno da globalização. Esta além de
tentar, sem êxito total, homogeneizar as culturas mundiais, facilitou o trânsito entre
os espaços mais distantes. Houve, através da globalização, uma aproximação cultural
e espacial entre as diversas comunidades.
Este trânsito propiciou ao homem vivenciar o que Hall (2005) e Bhabha (1998)
denominam de tradução cultural. Na concepção dos autores pós-coloniais, a
tradução cultural relaciona o que o sujeito guarda de suas tradições, com as novas
aquisições culturais, geradas pelo deslocamento espacial. De acordo com Hall (2005),
as pessoas
são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder
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completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. (p.88-89).
Ao experienciar a migração e misturar-se a outros ‘universos’, às vezes tão
distantes dos seus, os homens vivenciam a fragmentação de suas identidades (Hall,
2005). Segundo Hall (2005), neste mundo “de fronteiras dissolvidas e de
continuidades rompidas [...] há uma crise na identidade do sujeito” (p.84), o qual
busca nas negociações culturais um equilíbrio para a sua crise.
As negociações culturais são também chamadas de hibridismo cultural. Para
Bernd (2011):
Culturas híbridas são [...] aquelas em que a tensão entre elementos díspares gera novos objetos culturais que correspondem a tentativas de tradução ou de inscrição subversiva da cultura de origem em uma outra cultura. Não se trata, portanto, de assimilações forçadas ou de fusões, nem tão pouco de mestiçagens com tendências à homogeneização, mas de modos culturais que, oriundos de um determinado contexto de origem, se recombinam com outros de origem diversa, configurando novas práticas. (p. 75).
Contribuindo com a ideia de hibridismo cultural, Oliveira (2012) argumenta
que “o hibridismo é realmente o termo que indica a lógica cultural da tradução [...]”.
Assim, verifica-se que o hibridismo é a terminologia que melhor traduz nossa pós-
modernidade, marcada por constantes deslocamentos de indivíduos em busca do
novo.
A identidade destes seres deslocados é permeada pela posição intersticial, pois
estes ocupam o entre-lugar. De um lado as tradições da terra natal permanecem e de
outro há aquisições culturais da nova ocupação. A vivência dessas pessoas
imigrantes figura entre o preservar suas memórias e o adquirir outros
conhecimentos.
Homi Bhabha (1998) afirma que “a globalização cultural é figurada nos entre-
lugares de enquadramentos duplos [...]” (p. 297, grifos do autor) e que se interessa em
“negociar narrativas em que se vivem vidas duplas no mundo pós-colonial, com suas
jornadas de migração e seus viveres diaspóricos”. (idem, p. 294). Diante desta
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concepção de vida dupla a partir do deslocamento, percebe-se que as pessoas
migrantes estão fragmentadas ocupando o entre-lugar.
Ao migrar os indivíduos convivem com dois mundos culturais que se
entrecruzam e dão espaço para a criação de outro ‘mundo’: o do sujeito da diáspora.
Mundo este marcado pelo diálogo constante entre os outros dois e, ao mesmo tempo,
um mundo próprio, com marcas de estar entre, e não pertencer unicamente a
nenhum dos outros dois.
O sujeito da diáspora ocupa o entre-lugar, o qual consiste em um espaço entre
as duas culturas: a de origem e a do novo espaço. Lugar este que demarca uma nova
identidade - não de pura assimilação, mas de identificação - para os sujeitos do
deslocamento.
As sociedades contemporâneas estão marcadas pela já referida hibridização, o
que acentua o entre-lugar ocupado pelos seus sujeitos. Segundo Bhabha (1998):
[...] na cidade pós-moderna [...] tanto a ‘comunidade conhecível’ de Raymond Willian como a ‘comunidade imaginada’ de Benedict Anderson têm sido alteradas pela migração e povoação em massa. As comunidades migrantes são representativas de uma tendência muito mais ampla em direção à minorização das sociedades nacionais. (p. 304).
O que se verifica como consequência desse processo globalizante é uma
sociedade diversificada, pluricultural. Sociedade que dissolve as fronteiras entre um
eu, essencialmente puro e um outro. Neste ambiente pluralizado, os sujeitos se
reafirmam como possuidores de algumas tradições, mas também negociam com a
nova cultura a que são expostos.
3. O DESLOCAMENTO ENTRE LÍBANO E BRASIL NO ROMANCE HATOUMIANO
O romance Dois Irmãos de Milton Hatoum traz uma diversidade de
personagens em crise existencialista, que fomentaria um denso trabalho sobre
identidade em fragmentos. Mas o que se pretende é um olhar sobre as construções
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identitárias dos personagens migrantes e ‘os lugares’, no novo espaço, ocupado por
estes personagens.
No romance, há personagens como Galib e Halim – respectivamente avô, e pai
dos protagonistas da narrativa, Yaqub e Omar – que saíram do Líbano e foram
buscar uma nova vida no Brasil. Mas também há Yaqub, que não escolheu sair de sua
terra, mas foi mandado para o sul do Líbano. Personagens que experimentam a
migração e com ela vivenciam a reterritorialização, ou simplesmente sentem-se
desenraizados, tentando conviver com as diferenças.
Neste processo de reterritorializar-se, os personagens de Hatoum constroem
suas identidades, mediadas pelo trânsito cultural. Galib, o pai de Zana com marcas
tradicionais libaneses, busca uma forma de vivenciar suas tradições aqui no Brasil.
Sua identidade é permeada pela aproximação entre as duas culturas, mas sua ligação
com a terra natal ainda era muito forte: “Zana sugeriu ao pai que viajasse para o
Líbano, revisse os parentes, a terra, tudo. Era o que Galib queria ouvir” (HATOUM,
2000, p. 55).
Por força do destino de “um homem que retorna à pátria” (ibidem), Galib
morre em sua terra natal. Configura-se, na terra natal, um entrecruzamento do início
e do fim da vida, para Galib. Halim, talvez, vivenciando mais a tradução que a
tradição cultural, rememora a morte de Galib: “voltar para a terra e morrer, suspirou
Halim. Melhor permanecer, ficar quieto no canto que escolhemos viver” (idem p. 56).
O posicionamento de Halim espelha sua negociação com seu ‘novo lar’. Neste
espaço, convive desde criança e oscila entre uma infância no Líbano e longos anos
vividos no Brasil: “Vim para o Brasil com um tio, o Fadel. Eu tinha uns doze anos [...]
Ele foi embora, desapareceu, me deixou sozinho num quarto da Pensão do Oriente”
(idem, p.180). Assim, Halim constrói muitas de suas experiências em espaço distante
de sua terra de origem.
Os traços identitários deste personagem são construídos a partir de sua
relação familiar. Como é comum na maioria das narrativas orientais, a família é um
microcosmo. Neste vínculo familiar, Halim deixa-se transparecer fraco e suas
reminiscências trazem a história de um homem dominado pelo amor de Zana e entre
os conflitos de seus dois filhos.
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O personagem constrói lar no Brasil, e mesmo estabelecendo um vínculo de
afetividade com o país escolhido, o Brasil, não consegue apagar os traços orientais
que herdou da terra que nasceu. Quando Yaqub retorna do Líbano, Halim dá quatro
beijos em seu rosto e o cumprimenta em árabe, ratificando a força cultural da língua
de uma nação.
A língua traía a aparente sintonia que Halim mantinha com seu novo país: “Às
vezes ele se distraía e falava em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de
incompreensão: ‘É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo’” (HATOUM,
2000, p. 51). Esta “imposição” da língua evidenciava que o personagem ainda
possuía forte ligação com a terra natal.
Outro personagem migrante, um dos protagonistas do romance, Yaqub
emigra para o Líbano e lá experimenta um trânsito cultural, não por opção, mas
porque seus pais mandam-no para essa experiência diaspórica. Yaqub, nessa
migração forçada, vivencia o duplo deslocamento descrito por Hall (2005), o qual
acentua que a crise do sujeito está atrelada à “descentração dos indivíduos tanto de
seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos” (p. 09).
O personagem Yaqub vivencia essa crise identitária multiplicando-se em
várias identidades, às vezes, não resolvidas (HALL, 2005, p. 12), pois vivenciou
amargamente a experiência da diáspora. Arrancado de seu lugar, ele expressa seu
sentimento de tristeza e de revolta:
Não morei no Líbano seu Talib [...] Me mandaram para uma aldeia no sul do Líbano, e o tempo que passei lá, esqueci. É isso mesmo, já esqueci tudo: a aldeia, as pessoas, o nome da aldeia e o nome dos parentes. Só não esqueci a língua... (HATOUM, 2000, p. 118-119).
O universo ficcional de Hatoum não é figurado apenas por sujeitos errantes,
há também os que não se deslocam de seus lugares, ou quando saem retornam
brevemente aos seus espaços. São exemplos respectivos Nael, o narrador do romance
e Omar, um dos protagonistas. Ambos os personagens, mesmo com ausências ou
com poucos deslocamentos espaciais, tornam-se híbridos pelo contato com os
personagens em trânsito.
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Através destes personagens se constrói o universo narrativo de Milton
Hatoum. A narrativa deste autor aproxima ‘universos’ culturais tão díspares, quanto
o brasileiro e o libanês. Ao serem traduzidos culturalmente, os personagens
imigrantes, não são conduzidos à homogeneização, anulando a memória cultural do
povo libanês. Na verdade, o que se verifica é um hibridismo cultural.
3.1 OS ENTRE-LUGARES DOS SUJEITOS MIGRANTES EM DOIS IRMÃOS
Pensar na subjetividade dos sujeitos da imigração é pensar no que restou de
seu eu, e no que se adquiriu do outro diante da experiência da diáspora. Entre este
lado mais subjetivo e os contatos com a identidade do outro é que se forma um
sujeito fragmentado. Os sujeitos em trânsito experimentam esta fragmentação, esta
duplicidade, o que pode levá-los à alteração de sua identidade.
No romance hatoumiano é perceptível este jogo dual das identidades.
Personagens como Halim, Galib e Yaqub exprimem suas identidades num processo
dialógico entre culturas diferentes.
Halim revive a infância na terra natal através da experiência do filho. Ao
mandar Yaqub para o sul do Líbano, Halim busca conciliar os distantes espaços e
culturas, que permearam a sua vida. Para o personagem, tal deslocamento irá aflorar
no filho um sentimento próximo ao seu, no referente ao espaço libanês.
Galib possui um sentimento mais forte quanto a sua terra natal. O personagem
cria formas de reviver no atual território, Manaus, um pouco do Líbano, através da
culinária. Este ligamento com o Líbano se solidifica quando a morte se concretiza na
terra natal. Morrer no lugar que nasceu, no seu lugar, talvez fosse esse o grande
desejo de Galib, que no Líbano, se unissem as duas pontas de sua vida.
Um terceiro personagem Yaqub, tem a experiência de emigração marcada pela
recusa e o desprezo de quem teve algo interrompido antes do tempo: a infância.
“Quando Yaqub chegou do Líbano, o pai foi buscá-lo no Rio de Janeiro [...] Não era
mais o menino, mas o rapaz que passara cinco de seus dezoito anos no sul do
Líbano.” (HATOUM, 2000, p. 13).
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Ao retornar ao Brasil, Yaqub, por ter sido retirado do seio familiar e entregue a
uma cultura que não era a sua, guarda profundos ressentimentos. As reminiscências
vão tomando conta deste personagem e suas dores vão-se acentuando.
No caminho do aeroporto para casa, Yaqub reconheceu um pedaço da infância vivida em Manaus, se emocionou com a visão dos barcos coloridos, atracados às margens dos igarapés poronde ele, o irmão e o pai haviam navegado numa canoa coberta de palha. (idem, p. 16).
O novo homem, que retorna a Manaus, traz na bagagem uma mágoa imensa e
pronuncia que quer esquecer tudo o que viveu no sul do Líbano. Aliás, precisa
esquecer, pois fica subentendido no texto que Yaqub tem péssimas experiências de
emigração. Mas a língua com sua força cultural se impõe a esta tentativa de
esquecimento.
Ao voltar para casa, Yaqub sente-se “[...] como se os elos naturais e
espontâneos que antes possuíam tivessem sido interrompidos por suas experiências
diaspóricas. Sente-se feliz por estar em casa. Mas a história, de alguma forma,
interveio irrevogavelmente.” (HALL, 2003, p. 27).
Este personagem faz do silêncio sua armadura e nunca pronunciou o que lhe
aconteceu de tão grave no Líbano, “calava quando podia, e, às vezes, quando não
devia.” (HATOUM, 2000, p. 16). O silêncio e a seriedade levavam o narrador a
refletir sobre o porquê de tanto vazio na vida de Yaqub:
Eu via, em relances, o rosto sério de Yaqub, e imaginei o que teria lhe acontecido durante o tempo em que viveu numa aldeia do sul do Líbano. Talvez nada, talvez nenhuma torpeza ou agressão tivesse sido tão violenta quanto a brusca separação de Yaqub de seu mundo. (idem, p. 116).
O personagem Yaqub representa as angústias dos seres humanos que são
desterritorializados. Ele se enclausurou no mais absoluto silêncio e não expôs nada
de sua subjetividade. Isto o torna uma incógnita para os que com ele convivem, os
quais pensam na oscilação de um Yaqub sério e equilibrado ou um indivíduo sôfrego
e marcado pelo abandono de sua terra: “[...] Ele me deixou uma impressão ambígua,
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de alguém duro, resoluto e altivo, mas ao mesmo tempo marcado por uma
sofreguidão que se assemelha a uma forma de afeto.” (idem, p. 114).
Entre o silêncio e as reminiscências, percebe-se o entre-lugar ocupado por
Yaqub. Este personagem carrega na bagagem as experiências de sua origem e é
obrigado a viver a emigração. Entre o seu mundo e o mundo obrigado a ocupar, o
personagem cria uma resistência incorporada no seu silêncio.
Assim como Yaqub, os personagens Halim e Galib vivenciam nos entre-
lugares. Halim consegue negociar com sua nova terra e a partir dessa negociação
percebe-se a predominância dos aspectos culturais brasileiros se sobrepondo aos
libaneses, mas não aniquilando-os. Já Galib traz para o Brasil suas experiências
libanesas, tentando fazer de seu novo lar um reflexo de sua terra natal.
3.2 RELAÇÕES HÍBRIDAS E A IDENTIDADE DO NATIVO
As construções identitárias na obra hatoumiana são mediadas pelo trânsito
cultural e pelas relações estabelecidas através deste trânsito. Logo, o processo de
hibridismo é verificado tanto no sujeito que chega de outro espaço, quanto no que se
relaciona com este. Culturas híbridas, então, são globais. Dessa forma, imaginar
lugares fechados de culturas puras é algo ilusório frente ao processo migratório
acentuado pela globalização.
Alguns personagens na obra literária hatoumiana vivenciam a experiência de
relacionar-se com o outro culturalmente sem rompimento com o seu espaço. Esta
relação se dá tanto através de saídas com rápidos retornos, neste caso tem-se como
exemplo o personagem Omar. Quanto através do contato com personagens em
deslocamento, que é o caso do narrador Nael.
Omar é um personagem que mantém fortes ligações com o local de infância.
Mesmo afastando-se algumas vezes do lar materno, o personagem sempre retorna.
Quando há na narrativa a impressão de que Omar “soltara-se de vez” (HATOUM,
2000, p.145), o personagem está ali, bem perto, entrincheirado à trezentos metros da
casa dos pais.
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Tanto estes breves deslocamentos, quanto as relações estabelecidas no seio
familiar conduzem Omar à fragmentação identitária. Talvez este seja permeado por
todas as crises configuradas no romance: a crise familiar, a social, a identitária. Nele,
percebe-se uma dependência quase vital da mãe, uma relação de competitividade
com o irmão e um forte conflito com o pai. Estes fatores aliados à identificação com
as farras de Manaus serão as causas da referida crise, pois fazem dele um sujeito
deslocado na própria família.
Omar não vivencia nada seu, suas experiências estão à sombra e sobre o
controle da mãe, Zana. Sua identidade é marcada pelo ‘não-ser’, por refletir as
preferências de uma mãe controladora e por viver desejando/odiando a vida do
irmão. Neste paradoxo de sentimentos, o ódio superou e o Caçula (apesar de ser
gêmeos Omar nasceu primeiro que Yaqub), quando não ignorava completamente a
presença do irmão – mesmo a presença na ausência cultuada por Rânia e Zana,
através de cartas e fotos – provocava e incitava a rivalidade.
O Caçula experimenta o desconforto de não poder fazer suas próprias
escolhas, de não ter suas próprias e independentes experiências. Ele vivencia o que
Sousa (2012) pontua como desconforto e precariedade do homem moderno, os quais,
de acordo com a estudiosa, estão “vinculados à questão identitária, à necessidade de
perceber o desvirtuamento dos valores e da convivência do eu com o seu ‘estranho’
outro”. (p. 136).
A identidade de Omar está entrelaçada às outras identidades de seus
familiares, pois o indivíduo é permeado pela formação identitária coletiva. Seus
significados culturais são construídos a partir dessa relação com o outro. É necessário
destacar o fato deste outro ser o sujeito migrante. Logo, os deslocamentos e as redes
culturais que englobam ‘o outro’, na situação de deslocamento, também vão refletir-
se na vida de Omar.
Há na narrativa outro personagem marcado pelas influências do ‘outro’, Nael
o narrador do romance. Este de forma mais significativa que Omar, pois não se
desloca em momento nenhum da cidade manauara. Este personagem é caracterizado
pelo não-deslocamento, aliás, é através do olhar dele - um sujeito subalterno, pois
filho bastardo da empregada da casa – que vemos as experiências de migração dos
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outros personagens. Nael experimenta, mais acentuadamente que Omar, os reflexos
dos deslocamentos dos outros.
O narrador constrói sua identidade entre as observações que realiza da
vivência da família árabe e as histórias desta mesma família contadas por Halim.
Seus traços pessoais e seus legados culturais trazem a marca de diversas influências,
inclusive a indígena, considerando que Domingas, sua mãe, é uma índia. Estes traços
identitários não ganham relevo na narrativa, pois o narrador é o filho bastardo de
Omar ou Yaqub – fato que não fica claro no enredo. Seu papel não ultrapassa os
limites de quem ouve as lembranças de Halim e o de quem, vivendo nos fundos da
casa e trabalhando também como empregado, observa o drama familiar.
A identidade de Nael é uma busca constante, através das junções dos retalhos
da memória. O narrador se pergunta sobre sua origem e tenta descobrir da mãe
quem é seu verdadeiro pai. Às vezes, pensa que é fruto de um abuso sexual de Omar,
num momento de bebedeira, mas não descarta a possibilidade de seu pai ser o outro
gêmeo: “Hoje, penso: sou e não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilhado
comigo esta dúvida” (HATOUM, 2000, p. 264).
Nesta crise de ‘quem sou eu?’, ‘quais são minhas bases?’, Nael vai
reconstruindo a sua história através de suas memórias, mas percebe que seu papel na
vida familiar é marcado pela subalternidade, pois mesmo sendo da família, não é
tratado como tal, pela maioria. Pelo contrário, as humilhações persistem em
acompanhar o narrador. Omar se destaca nestes atos de humilhação:
A algazarra de um grupo de homens me despertou. Quando se aproximaram do caramanchão, um deles apontou para mim e gritou: É o filho da minha empregada’. Todos riram e continuaram a andar. Nunca esqueci. Tive vontade de arrastar o Caçula até o igarapé mais fétido e jogá-lo no lodo, na podridão dessa cidade. (HATOUM, 2000, p. 179).
Nael tinha a percepção do quanto os membros da família libanesa sufocavam
a sua identidade. Ele vivenciava a anulação de seu eu e percebia a sua não-
identidade, reafirmada por sua própria família: “ [eles] deveriam rir de mim. Filho de
ninguém!” (p. 251). A construção identitária, a partir das relações de poder expressas
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por Foucault (1968), citado por Hall (2005), descreve bem a situação do personagem
Nael. Além dessa relação de poder, tal identidade se define nos encontros culturais.
O personagem, assim como Omar vivencia uma constante crise de identidade,
pois suas referências de origem tornam-se um enigma. Na narrativa, Nael rememora
os acontecimentos em busca dessa enigmática origem. Através dessa rememoração
há uma tentativa do narrador de reconstruir-se, enquanto sujeito integrado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao ler a obra hatoumiana, visualiza-se que o narrador reconstrói, através de
retalhos de memória, as vivências de imigrantes libaneses no Brasil. Esta
rememoração abrange uma família dentre muitos imigrantes e traz o conflito e a
decadência desta família. Ao mesmo tempo em que a narrativa foca o ‘seio familiar’,
não deixa de expressar as mudanças que acontecem em Manaus, em seu período de
modernização.
Dois Irmãos é uma obra para inserção em ‘universos’ culturais diferentes, ao
mesmo tempo entrelaçados. Ler esta obra é um diálogo constante com esta
negociação cultural, fazendo-nos refletir sobre nossas experiências diaspóricas (às
vezes, não fisicamente), mas, principalmente, leva-nos a refletir sobre nossas
identidades fragmentadas pelo mundo pós-moderno.
Diante de uma narrativa plural e instigante, como a hatoumiana, percebem-se
temas como hibridismo cultural, negociação cultural, alteridades, crises dos sujeitos,
enfim há uma diversidade investigativa na obra do autor manauara.
Os personagens Galib e Halim mantêm fortes ligações com sua terra de
origem, mas vivem bem no país que escolheram viver. Preservam-se traços da
tradição, mas adquirem-se muitos novos traços do novo lar. Já o personagem Yaqub,
como foi arrancado de seu lar e experimentou a diáspora, prefere esquecer que foi
para o Líbano. Através do silêncio, ele se tranca em seu mundo, repelindo qualquer
tentativa de inserção neste mundo.
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Já os personagens Omar e Nael, por experimentarem mais sutilmente o
deslocamento, são arraigados ao seu lugar de nascimento. Ambos são influenciados
pelos legados culturais do sujeito em deslocamento.
A identidade do migrante, portanto, não é algo sólido e enclausurado em
tradições perfeitas e impenetráveis, assim também não o é a identidade do sujeito
nativo. Contrariamente a esta ideia, a identidade do sujeito pós-moderno pode
adquirir múltiplas facetas, ser dupla, diversa. Pode-se utilizar cada uma de suas
múltiplas identidades em situações diferentes. É a ideia do ser múltiplo em um.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2005. BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 3. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011. BHABHA, Homi. Como o novo entra no mundo: o espaço pós-moderno, os tempos pós-coloniais e as provações da tradução cultural. In:______ O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 292-325. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós Modernidade. Rios de Janeiro: DP& Editora. 2005. HALL, Stuart. Pensando a Diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. In:______Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003a. p. 25-50. HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Campanhia das Letras, 2000. OLIVEIRA, Romilton B. Uma abordagem pós-moderna da obra literária o vendedor de passados, de José e Agualusa: identidade, desterritorialidade, hibridismo e cultura. In:______ Literatura, Identidade e memória. 2. Ed. Rio de Janeiro: CBJE (Câmara Brasileira de Jovens Escritores). 2012, p. 121-137. SOUZA, Eneida Maria. Tempos de pós-crítica: ensaios. 2. ed. Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2012.
LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRO-BRASILEIRA NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE SALVADOR:
analisando o livro EPÊ LAIYÊ
Valdecir de Lima Santos (PPGEL/UNEB)34 Analia Santana (PPGEduc/UNEB)35
Resumo: Neste trabalho, tecemos reflexões sobre a importância da literatura negro-brasileira infantil ou afro-brasileira como uma prática pedagógica concreta de ação contra o racismo, a discriminação e o preconceito, além da contribuição individual do ser humano para o equilíbrio do planeta na contemporaneidade. Abordar essa temática, especificamente nas turmas do Ensino Fundamental, do primeiro ao nono ano, é imprescindível para romper os limites e as fronteiras instituídas pela ideologia eurocêntrica, que negligenciou durante séculos os conhecimentos e os saberes de tradição africana. Sabemos que esses valores culturais, filosóficos, religiosos, históricos, linguísticos etc., foram reelaborados pela comunidade negra e ajudaram na construção da sociedade brasileira. Um dos pilares da epistemologia africana é o cuidado e a preservação do meio ambiente, pois é por meio dos seus elementos – água, fogo, terra e ar – que o/a homem/mulher conecta o aiyê (mundo visível) ao orum (mundo invisível). A Lei 10.639 de 2003 instituindo o ensino da História e Cultura Africana e Afrobrasileira nas instituições escolares de todo o país, contribui positivamente, para a inserção e reelaboração desses conceitos. Assim, no presente artigo, visamos analisar a obra literária Epé Laiyé: terra viva, de Maria Stella de Azevedo Santos, trabalhada pedagogicamente nas rodas de leitura das Escolas Marechal Rondon e Novo Marotinho da Rede Municipal de Ensino de Salvador. Ao incentivar a reflexão de temáticas que afirmem a alteridade, estamos, de algum modo, incentivando os nossos alunos a perceberem que “o conhecimento deve constituir-se numa ferramenta essencial para intervir no mundo” (GADOTTI, 1998, p.30). A obra analisada faz-nos pensar em caminhos alternativos para minimizar os problemas do mundo, cuja interação ocorre, principalmente, pelo processo imaginativo e do sonho que a literatura proporciona. A eleição de Mãe Stella para a Academia de Letras da Bahia viabilizou o alargamento de discussões e questionamentos sobre a possibilidade de uma produção literária negra que corrobora para uma práxis que privilegie a abordagem transversal e interdisciplinar. Observamos que o processo ensino-aprendizagem, com o uso dessa temática, tornou-se mais significativo para a maioria dos alunos, entretanto, impôs desafios diante da resistência dos pertencentes a religiões de matriz judaico-cristã. Como agentes sociais, os educandos podem começar plantando uma árvore real e também literária, como propõe a obra, mas também plantar sonhos, por exemplo, formando redes de colaboradores, para reconstruir o mundo, tornando-o mais harmonioso, apto a romper com conceitos tradicionais de verdade e poder, que possibilitam apreender o real e intervir diretamente sobre ele. Palavras-chave: Literatura Afro-brasileira; Prática Pedagógica; Alteridade.
34 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia (PPGEL/UNEB) [email protected] 35 Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduc/UNEB) [email protected]
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1. APRESENTAÇÃO
Nesta última década observamos uma redefinição nas pautas reivindicatórias
dos descendentes de africanos ou negros do Brasil. Através de lutas diversas, de
resistência histórica, do movimento negro e outras organizações sociais em diferentes
épocas; têm conquistado importantes direitos, e, também, questionado os lugares de
poder na sociedade brasileira. Contudo, os modos de apropriação desses espaços
sociais, políticos, culturais, literários estão se constituindo de forma lenta, a partir do
reconhecimento e valorização da cultura de matriz africana e afro-brasileira, que,
paulatinamente, evidencia que, para além da cultura eurocêntrica, colonialista,
racista e sexista; existem outras maneiras de conceber o mundo.
A eleição de Mãe Stella para a Academia de Letras da Bahia viabilizou o
alargamento de discussões e questionamentos sobre a possibilidade de uma
produção literária negra que corrobore para uma práxis que privilegie a abordagem
transversal e interdisciplinar. Vale ressaltar, também, que a eminência deste novo
espaço, repercutido no âmbito literário brasileiro, se materializa através da
perspectiva de escritores que assumem para si e para seus escritos uma identidade
negra e/ou afro-brasileira. Isto em decorrência do desejo de produzir um discurso
identitário que expresse a trajetória histórica e cotidiana do povo negro no Brasil.
Essa arte literária, forjada a partir dos diversos saberes cumpre o papel de valorizar e
representar de forma propositiva a comunidade negra.
No entanto, observamos, que estas manifestações no espaço educacional
brasileiro, embora venham a cada dia se ressignificando, principalmente após a
implementação da Lei 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino
a temática História da África e da Cultura Afro-brasileira como obrigatório, ainda
tem muito que se desenvolver. Isto em decorrência das relações de poder
estabelecidas que privilegiam um conhecimento de negação da alteridade, da “[.]
convivência com processos de civilização e cultura diversos” (Luz, 2000, p.30).
Na contramão deste processo, tentando fazer valer os direitos de equidade da
comunidade negra, diferentes grupos se organizam, negros e não-negros, para
pensar em rotas alternativas. Entre eles, podemos destacar as Escolas Municipais
Marechal Rondon e Novo Marotinho, localizadas em bairros periféricos da cidade de
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Salvador, no estado da Bahia, compostas na sua maioria por alunos negros ou
afrodescendentes. Ainda que sejam ações pontuais, estas veem corroborando para a
discussão e inclusão das temáticas da diversidade étnica, alteridade e pluralidade
cultural garantidas por lei.
Estas escolas buscam assegurar, através de projetos político-pedagógicos, um
ensino de qualidade de cunho multicultural e plurétnico, que oportunize aos
educandos aprendizagens significativas. Para tanto, as práticas pedagógicas
referendam-se nas experiências, nas necessidades e na diversidade de conhecimentos
que cada educando traz consigo, a fim de que experenciem o exercício consciente da
cidadania ao mesmo tempo em que reconstroem a sua identidade negra de forma
proativa e propositiva.
Motivados por estas reflexões é que esse artigo se fundamenta, buscando
apresentar o trabalho literário desenvolvido em sala de aula nas respectivas escolas
supracitadas, a partir da obra literária Epé Laiyê: terra viva, de Maria Stella de
Azevedo Santos (2009). Essa ação constitui- se eficaz no combate ao racismo, à
discriminação e ao preconceito, além de contribuir com mudança de atitudes que
minimizem os impactos negativos sobre o meio ambiente, através da tríade relacional
eu-outro-sociedade.
Um dos pilares da epistemologia africana é o cuidado e a preservação do meio
ambiente, pois é por meio dos seus elementos – água, fogo, terra e ar – que o/a
homem/mulher conecta o aiyê (mundo visível) ao orum (mundo invisível). A Lei
10.639 de 2003 instituindo o ensino da História e Cultura Africana e Afrobrasileira
nas instituições escolares de todo o país, contribui positivamente, para a inserção e
reelaboração desses conceitos. A obra analisada faz-nos pensar em caminhos
alternativos para minimizar os problemas do mundo, cuja interação ocorre,
principalmente, pelo processo imaginativo e do sonho que a literatura proporciona.
2. TRILHANDO OS CAMINHOS DE EPÊ LAIYÊ
O livro Epé Laiyê: terra viva assinala mais uma vez, pela temática abordada e
pela autenticidade da narrativa, a tradição da cultura africana e de seus descendentes
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na literatura afrobrasileira. Em outros tempos, Maria Stella de Azevedo Santos só nos
poderia apresentar esta história, plenas de valores sociais, religiosos, filosóficos,
éticos de tradição nagô, através da literatura oral.
Com as lutas dos povos negros em busca de sua efetiva integração na
sociedade brasileira, narrativas como estas, que se propõem a desconstruir os ditos e
os interditos sobre os povos de santos, vêm se constituindo. Elas “[...] se
caracterizam como um aspecto da pedagogia iniciática, servindo como ilustração
dessa prática pedagógica para as pessoas desvinculadas dela” (LUZ, 2011, p. 92).
Neste sentido, entender a complexidade que circunscreve esta produção
literária afrobrasileira voltada para o público infanto-juvenil negra, é um fator de
suma importância, pois esta corrobora para fazer valer os procedimentos
democráticos determinantes para o exercício da cidadania. Além do que, neste
contexto, o povo negro e a produção literária negra deslocam-se da margem e passa a
ocupar lugar de centralidade na ordem do discurso, desmistificando os estereótipos
construídos em seu entorno.
Como forma de contextualizar na prática este cenário literário, levamos para a
sala de aula a magia do livro Epé Laiyê: terra viva. Brincando com as palavras fomos
transpondo as fronteiras da realidade com o vôo da fantasia, e adentramos ao espaço
educacional, buscando consolidar e contribuir na construção de políticas estratégicas
educacionais de aprendizagens através da leitura e da literatura. Afinal,
(...) uma história é uma história, e você pode contá-la como sua imaginação, sua essência e seu ambiente determinarem; e se sua História criar asas e passar a pertencer a outras pessoas, talvez você não consiga trazê-la de volta. Um dia ela retornará a você, enriquecida por novos detalhes e com uma nova voz (MANDELA, 2009, p. 9).
Desse modo, vale salientar que tais medidas para se efetivarem em sala
exigem uma ampla mobilização individual, social, formativa e informativa do
educador/a pesquisador/a, pois este/a, enquanto mediador/a do conhecimento
necessita suscitar nos educandos diferentes habilidades e competências
mobilizadoras para que o mundo real seja redimensionado e operacionalizado no
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sentido da resolução dos conflitos (MOORE, 2010). O fazer pedagógico exige um
posicionamento político de discussão, de denúncia, de investigação e de
desconstrução dos saberes historicamente instituídos (FREIRE, 1987).
Neste contexto, a literatura é uma maneira significativa de se estudar as
diferentes temáticas em sala de aula, propiciando a ampliação da visão de mundo e,
consequentemente, a construção do conhecimento das diversidades étnicas, sociais e
culturais de forma plástica, crítica e prazerosa. E se constitui forma de resistência,
meios de assegurar, valorizar e difundir o legado cultural, filosófico e religioso do
povo negro, tão presentes nas comunalidades e na forma de pensar e organizar a
vida da sociedade brasileira. De acordo com (MACHADO, & et al., 2012, p. 29)
A sutileza da literatura se dá na formação humanística da criança e do jovem proporcionadas pela leitura. Ao tomar contato com um mundo imaginário, inventado, diferente do nosso, realizamos um caminho de subjetivação, nos apropriamos da liberdade, da autonomia do nosso mundo de sentimentos.
Instigadas por muitas dessas reflexões e inquietações, nos lançamos a
experimentar nas rodas de leitura corporificadas em algumas classes dessas duas
escolas municipais a Obra Literária Epê Laiyê Terra Viva como profícuas e prazerosas
atividades. A literatura pode ser vivenciada pelas crianças e pré-adolescentes porque
as mesmas dispõem de número razoável de livros (em média quarenta exemplares).
Assim, foi possível que cada aluno acompanhasse a narrativa, lesse e manuseasse o
seu próprio livro, rico pela narrativa que aborda e também pelas imagens coloridas e
instigantes que apresentam.
Observamos ao analisar a obra que Nando, um menino de 10 anos, vivia
inquieto, com suas ponderações sobre o que fazer para ajudar a diminuir os
problemas do mundo. Ao escutar o pulsar do seu coração, o menino decidiu plantar
uma árvore, dando-lhe o nome de Epé Laiyê, palavra de origem Yorubá36 que significa
terra viva.
36 Yorubá: Língua Africana falada no sudoeste da Nigéria e em parte do Benin, aqui no Brasil
sobrevive alguns substratos linguisticos na religião de matriz africana do Candomblé. A expressão usada para designar os povos africanos (Yorubanos, Nagôs, Jejes e Fons) enviados para o Brasil pelo processo escravocrata n reinos da Costa Africana também chamada Costa dos Escravos.
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A árvore era uma grande sonhadora, chegara ao mundo impregnada das
ideologias do seu criador que se pautava numa cosmogonia africana, cuja filosofia
encontra-se sempre calcada no saber cuidar, seja a si mesmo, ao outro ou a natureza.
Mas, como se encontrava fixa ao solo, não podia andar para colocar em prática seus
anseios de construir um mundo melhor e mais harmonioso.
Conhecedor dos pensamentos de Epé Laiyê, Osanyin37, o orixá responsável
pelas plantas curativas, realizou o seu desejo de andar. Agora liberta das amarras
impostas pelas raízes, que lhe fixavam ao solo e a um único lugar, saiu em luta. No
entanto, ao longo do caminho encontrou inúmeras barreiras, principalmente a falta
de apoio dos seus pares, “[...] mas a ousada esperança, de quem marcha cordilheiras”
(EVARISTO, 2008, p.15), não a fez estancar seus sonhos. Ao longo do caminho,
começando a ficar desanimada, apareceu-lhe em socorro o senhor do movimento e
da ação, Exu. Este a aconselhou a conectar o mundo visível, o aiyê, ao mundo
invisível, o orum. E assim ela o fez.
À margem de uma cachoeira invocou Oxum, mas sua voz não encontrava ecos
de ressonância, pois as águas encontravam-se fracas, sujas, poluídas. Tal descaso com
a natureza enfraquecia a orixá, e só após muitos chamados é que a mesma apareceu,
chorando, entristecida e indignada com a forma como o homem estava destruindo os
recursos naturais, todos imprescindíveis à vida. E assim, as lágrimas de Oxum
misturaram-se as lágrimas de Epé Laiyê em face da destruição.
Para fortalecê-la, á árvore mais uma vez contou com os encaminhamentos
dados por Exu. Este lhe instrui a realizar uma oferenda. E assim ele o fez. Após tal
feito, seguiu a sua trajetória e encontrou Yansã, também muito zangada, pois suas
águas, as do mar, encontravam-se cheias de lixo, Para acalmá-la, retirou todo o lixo e
ela voltou a sorrir
Após ajudar Yansã, seguiu caminho e encontrou Ogum e Oko conversando de
forma exaltada. Percebendo-lhes o descontentamento em face das queimadas e do
desmatamento, teve receio e não os interrompeu decidindo voltar para casa. Já em
37 Nesta obra a autora usa os nomes dos orixás de forma tranquila no texto, por ser uma autoridade no
assunto em termos religiosos e filosóficos e literários não cabe a nós trazermos mais explicações visto que, na obra por si só, ela esclarece a função de cada um dos orixás na natureza numa linguagem envolvente.
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casa, pensando em desistir dos seus propósitos, recebeu uma visita surpreendente,
Nando, o menino que lhe plantara, também viera a seu socorro, a sua frente vinha
Oxossi, o protetor dos animais e das florestas, para ajudá-la a reestabelecer o
equilíbrio, guiando outros orixás. E assim, cada um assumiu para si uma função.
Só neste momento, diante de tal rede de solidariedade é que Epé Laiyê
compreendeu que nas suas incursões, nunca estivera só. Sua peregrinação fora
indispensável para alicerçar a sua crença em si mesmo e na força transformadora que
é/está no/com o outro.
Após a leitura, as salas vivenciaram momentos de festividades, as crianças não
cessavam de ver o livro, de mostrar o que mais lhes chamara a atenção. As
professoras, como mediadoras do conhecimento, levantaram aspectos textuais,
temáticos e interpretativos para fins de análise da obra. Questionamentos foram
levantados, vocábulos desconhecidos elucidados, compreensão e apreensão crítica da
temática foram realizadas com efetividade. Dessa forma, a literatura
africano/brasileira deu acesso a novos “mundos, socioculturais com valores distintos
e comportamentos próprios àqueles valores” (LUZ, 2007, p. 83) inculcados com a
ideologia embranquecida, eurocêntrica que recalca a afirmação existencial e
impedem o acesso à outras leituras de mundo.
Neste processo interativo, a reinvenção, a fantasia e a reapropriação do
conhecimento que proporciona a aprendizagem ocorreu de forma significativa
porque:
O conhecimento é um bem imprescindível à produção de nossa existência. Por isso, ele não pode ser objeto de compra e venda cuja posse fique restrita a poucos. Paulo Freire tinha verdadeiro amor pelo conhecimento e pelo estudo. ”[...] O conhecimento deve constituir-se numa ferramenta essencial para intervir no mundo” (GADOTTI, 1998, p.30).
3. VOZES NÃO SILENCIADAS: ELAS ECOAM NO PULSAR DO CORAÇÃO
E assim, Entre os prós e os contras, ou entre os ditos e os interditos, vozes que
em outros contextos são silenciadas, nestas salas de aula se fizeram ecoar,
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expressando contentamentos, dúvidas, questionamentos, concordâncias,
discordâncias, estereótipos e até alguns medos, suscitados pela obra. Os meninos e
meninas expressaram, nas rodas de leitura, suas impressões sobre a obra. Obra esta
que pouquíssimos educadores se dispõem a levar para a sala de aula, mesmo que
esta esteja há quase dois anos disponível na maioria das escolas municipais de
Salvador.
As falas que seguem foram colhidas nos momentos das rodas de leitura nas
duas escolas em que o projeto foi realizado. As educadoras questionaram quais
foram as impressões que as crianças e jovens tiveram da obra. Algumas das
respostas:
- “Ele cuidava da natureza, boa a história, ajudava as árvores e o meio
ambiente com a ajuda dos deuses” (U. F., 11anos);
- “Achei boa a história porque ele quis mudar o mundo, ele teve uma ideia
ótima e contou com Yemanjá. Ajudou Oxum a ficar forte” (E. V., 10 anos);
- “Achei legal porque falava sobre a natureza. Exu, Epê Laiyé falou que a água
estava fina porque estava muito suja e a deusa das águas estava fraca” (N. V., 11
anos);
- “Fala sobre a natureza e tem palavras ni Yorubá falava sobre Oxum, Oxumaré,
Yemanjá [...]” (E. V., 9 anos);
- “Gostei porque ele quer mudar, como mudar o planeta!” (M.S. 10 anos);
- “Nando teve uma boa ideia e plantou uma árvore mágica” (L. F., 09 anos);
- “Em toda página, tinha figura diferente, bonita sobre as plantas. (C. J, 09
anos);
- “Lá na casa da minha vó tem um bucado dessas plantas!” (R. P., 11anos);
- "Eu gostei de umas partes: natureza, árvores, Epê Laiyè. Não da parte que
falava de Exu porque eu sou da igreja (E. G., 09 anos);
- “Pró ela falou que fala de diabo, que é macumba!” (M, 10 anos); E você sabe
o que significa macumba?(Professora). É feitiço! O que chamamos feitiço é oferenda,
macumba é um instrumento musical. A religião se chama Candomblé (no Rio de
Janeiro e Minas a expressão macumba não é ofensa à religião é o nome popular aqui
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na Bahia geralmente se usa para ofender as pessoas). Esta religião foi criada pelos
negros aqui no Brasil para preservar sua fé trazida da África. É uma religião diferente
não tem nada a ver com diabo. São forças da natureza com nomes diferentes em
outras línguas diferentes da nossa.
- “Eu só não gostei da parte que fala de Yemanjá e do Exu, porque eu sou por
caso que tem vez que vou pra a igreja. Mas é linda a história, o Pastor falou que é
ruim essas coisas!” (J.M., 8 anos);
- “É pró nem fiquei com medo dos orixás!” (P. A., 10 anos).
-“E quem disse que orixá faz medo?” (Professora).
-“Muita gente fala!” (P.A., 10 anos).
-“Eles não fazem medo. Eles são energias e forças positivas da natureza”
(Professora).
- “A senhora acredita?” (P.A., 10 anos).
- “Eu acredito!” (Professora).
Nessa perspectiva, as rodas de leitura com a obra de Mãe Stella constituiu-se
como uma importante ferramenta para nossa prática pedagógica, uma aliada para
tratar de forma leve, prazerosa, envolvente e questionadora, uma temática tão
imprescindível na atualidade que é a preservação ambiental inter-relacionada pela
ação dos elementos religiosos de matriz africana, neste caso os orixás. Observamos
que o processo ensino-aprendizagem, com o uso dessa obra literária, tornou-se mais
significativo para a maioria dos alunos, entretanto, impôs desafios diante da
resistência dos pertencentes à religiões de matriz judaico-cristã.
O projeto literário desenvolveu-se durante duas semanas, e nessa prática
pedagógica os educandos foram estimulados a incorporar os seus saberes aos saberes
de ordem político, econômico e étnico-cultural e de preservação do planeta como
agentes ativos que interagem em suas várias dimensões, compreendidos dentro de
uma ótica própria e externados a partir da reelaboração de sua própria lógica interna.
A execução das atividades propostas foi marcada por um misto de magia,
encantamento, e até tensão por parte dos educandos, pois os mesmos tinham
dúvidas quanto às suas potencialidades, e o novo sempre ocasiona um efeito de
estranhamento. Principalmente porque a obra traz a atuação e a ação dos orixás
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como elementos dinâmicos da natureza, o que se distancia da realidade de vários
alunos, cuja prática religiosa é de fundamento judaico-cristão, e não têm essas
discussões em pauta, nem mesmo na escola. Marco Aurélio Luz colabora com esta
reflexão ressaltando que “a compreensão da diversidade humana, cultural e
civilizatória aceitando a variedade das identidades e acolhendo a diversidade das
alteridades” (LUZ, 2007, p. 166), torna-se imprescindível.
Este trabalho foi imprescindível para abrir um diálogo sobre a religião de
matriz africana, como maneira de preservação das fontes naturais de riqueza que na
contemporaneidade encontra-se em processo de degradação ambiental. Na medida
em que foram se auto-descobrindo capazes e aptos a produzir conhecimentos,
engajaram-se ao máximo na execução do trabalho, superando as expectativas. Os
discursos foram gradativamente sendo transformados e as atividades se
apresentaram como ricas oportunidades de desconstruir os construídos, tornando o
indizível dizível.
Foi possível perceber que rearticulando, reorganizando e levando em
consideração as demandas do grupo, seu imaginário e suas representações podemos
sim articular diálogos literários que questionem tramas conceituais que possibilitem
ao outro, novas percepções de mundo. Para tanto, é necessário literal e literariamente
construir possibilidades de circulação das informações que lhes são apresentadas.
Um desafio que foi validado na medida em que resultou no avanço argumentativo e
reflexivo dos educandos. Portanto, a escola não pode se furtar a atividades
pedagógicas que contemplem a História e Cultura Africana e Afro-brasileira para a
desconstrução dos estereótipos, dos conceitos tradicionais de verdade e poder, e
devem sim fornecer mecanismos que tornem possível apreender o real, o imaginário
e o investigativo e intervir diretamente sobre ele.
Torna-se necessário assegurar aos alunos a sua inserção, permanência e
desenvolvimento no contexto escolar para que se potencialize diferentes saberes,
habilidades e competências estimulando sua criticidade e autonomia. Tarefa das
mais difíceis que requer “de um lado, um sólido projeto de desenvolvimento
econômico e, de outro, uma política de emancipação cultural” (KRAMER, 2010, p.14).
No entanto, possível, na medida em que a escola, junto a outros segmentos sociais,
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engaja-se nas lutas e mobilizações em torno de uma educação de qualidade,
antirracista e de igualdade de oportunidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi de importante relevância a experiência que nos propomos a discutir neste
texto, assim, reafirmamos e recomendamos o uso da Obra Epê Laiyê: Terra Viva como
referência para trabalhar nas séries iniciais do ensino fundamental porque a mesma
aborda de forma leve e clara questões ambientais, históricas, culturais, de cidadania e
dentre outras numa forma interativa, mágica, com enredo e diálogo envolvente com
os personagens. Quando Nando diz: “Você pode! Você pode muito! Um muito que
pode parecer pouco, mas é um pouco que é muito” (SANTOS, 2009, p.11). chama-nos
a agir e interagir de diferentes formas para deixar o mundo mais harmonioso e
possível para a vivência das interrrelações humanas com ênfase na alteridade.
Numa dimensão política pedagógica e relacional continuaremos a contar
“outras/novas” histórias, aquelas que não se encontram nos livros didáticos, que são
pouco divulgadas pela mídia, corroborando para estilhaçar a lógica narcísica de
colocar à margem o que não é espelho. Finda-se essa prática educacional, mas o
momento é de continuidade, pois cada uma das experiências vivenciadas tornou-se
base para novas reflexões e respostas para as muitas indagações que rondam o
desafiante processo ensino/aprendizagem.
Portanto, como agentes sociais, os educandos e também nos educadores
podem começar plantando uma árvore real ou literária, como propõe a obra, mas
também plantar sonhos. Por exemplo, formando redes de colaboradores, para
reconstruir o mundo, tornando-o mais harmonioso, apto a romper com conceitos
tradicionais de verdade e poder, que possibilitam apreender o real e intervir
diretamente sobre ele.
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Referências
CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010. JOVINO, Ione da Silva. Literatura infanto-juvenil com personagens negros no Brasil. In. SOUZA, Florentina e LIMA, Maria Nazaré (Org.). Literatura Afro-Brasileira. Centro de Estudos Afro-Orientais, Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. KRAMER, Sonia. Alfabetização, leitura e escrita: formação de professores em curso. São Paulo: Ática, 2010. LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2000. LUZ, Marco Aurélio. Cultura negra e ideologia do recalque. 3. Ed., Salvador: EDUFBA; rio de Janeiro: Pallas, 2011. MACHADO, Emília [et al]. Da África e sobre a África: textos de lá e de cá. Colaboração de Beatriz Moura, Tatiana Kauss. 1ª Ed. São Paulo: Cortez, 2012. MCLAREN, Peter; LEONARD, Peter; GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: poder, desejo e memórias da libertação. Trad. Márcia Moraes. Porto Alegre: ArtMed, 1998. SANTOS, M. Deoscoredes, LUZ, Marco Aurélio de Oliveira. O rei nasce aqui – Oba Biyi , a Educação pluricultural africano-brasileira. Salvador: Fala Nagô, 2007. SANTOS, Stella de Azevedo Santos. Epé Laiyè: terra viva. Salvador: Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, 2009. Souza, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do
MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
MULHER NEGRA: representações de gênero e raça em A Menor Mulher do Mundo,
de Clarice Lispector
Autora: Malane Apolonio da Silva (9º semestre/UNEB Campus XVI [email protected])
Coautora: Profª Ms. Cristian Souza de Sales ([email protected]/ CAMPUS
XVI)
Resumo: O presente artigo objetiva analisa as questões de gênero e raça imbricadas no conto A menor mulher do mundo, da escritora Clarice Lispector, publicado em 1960, na coletânea de contos Laços de Família A proposta pretende analisar como a mulher afrodescendente é representada pelo discurso narrativo, sob uma visão estereotipada e preconceituosa: “uma mulher, madura, negra, calada... escura como um macaco”. Por meio de inferências do narrador, procuramos desvendar processos de coerção que consolidam a dominação de gênero e raça, e as relações de poder nele entrelaçadas.
Palavras - chave: Mulher; Gênero; Raça; Representação;
1. INTRODUÇÃO
Este artigo pretende dialogar sobre os aspectos de gênero e raça presentes no
conto A Menor Mulher do Mundo, da escritora brasileira Clarice Lispector que após
consagrar-se na escrita de quatro romances, publica em 1960 sua primeira obra
dedicada ao gênero literário conto, intitulada Laços de Família. Neste trabalho a autora
propõe treze contos com indagações relacionadas aos laços maternais, matrimoniais
ou sociais que, por vezes, tornam-se um nó nas trajetórias através dos personagens,
contidos nas narrativas. O conto A Menor Mulher do Mundo tece a imagem social da
mulher negra, na personagem “Pequena Flor”, permeada por estereótipos, e aqui
analisada através do olhar do explorador Marcel Pretre, que se faz presente na voz
do narrador.
Pensando nas representações do discurso colonial a partir de suas
ramificações (estereótipos e alteridade) definido por Homi K. Bhabha (1998), em O
Local da Cultura, como trajetória de discriminação e hierarquias raciais e culturais,
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relacionado as reflexões propostas por Sueli Carneiro em Enegrecer o Feminismo: a
situação da mulher negra na America Latina a partir de uma perspectiva de gênero, no que
concerne à representação racial e primitiva, do corpo das mulheres africanas, pela
hegemonia masculina e branca, e diversas outras leituras aos estudiosos de gênero e
raça e críticos as obras de Lispector, irei tecer minha discussão construindo um olhar
analítico para Pequena Flor, personagem preponderante no decorrer da narrativa.
Ao contemplar uma literatura de autoria feminina, é notória a preocupação da
autora Clarice Lispector com os laços que, no decorrer dos contos, transformam-se
em enlaces sociais, sob base insegura, ou em um nó irreversível, e, se desfeitos,
trazem o trivial clariceano: da epifania enquanto travessia e redenção para uma nova
sensação de desconforto e passividade rejeitada após os olhos feridos.
Os aspectos norteadores desse artigo demonstraram o lugar social da mulher e
sua representação histórica, assim como afirma Raimunda Bedasse (1999, p.17) em
Violência e Ideologia Feminista na Obra de Clarice Lispector: “[...] é uma violência
subterrânea e acha-se implícita no texto. Assim sendo, a caracterização das
personagens femininas faz-se em relação íntima com essa violência.”
Com cita Bedesse, nas entrelinhas da linguagem típica clariceana, há uma
violência clandestina, e em A menor mulher do mundo, essa violência recorre ao
artifício da mudez, como fuga para uma expressão de si. Desaguando em uma
coletividade feminina com maneiras e reflexos de ser mulher no decorre do conto:
mulher negra, oprimida pelo olhar do outro, representada literáriamente sob os
aspectos hegemônicos burgueses e idealizadores do racismo, por meio do discurso
colonial.
2. METODOLOGIA
O procedimento metodológico escolhido se constitui de leituras, fichamentos
e análises a diversas obras e teóricos da autora Clarice Lispector, respectivamente, as
referências de gênero e raça que discutem o processo de autoria feminina na
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literatura contemporânea e a luta contra a revalidação dos estereótipos e discursos
discriminatórios sobre a mulher negra.
3. DESENVOLVIMENTO:
3.1. Fragilidades utópicas
Ironicamente, o conto clariceano inicia sua narrativa com a presença de um
personagem masculino, Marcel Pretre, descrito como “caçador e homem do mundo”
(LISPECTOR, 1995, p.87). Com o curso da narrativa, em mais uma viagem o caçador
é informado da presença de uma tribo de pigmeus, considerados como menores
povos do mundo, e entre catalogações e dados, encontra uma mulher, ao que seria
para o ele semelhante a um macaco. Sob um olhar depreciativo e estereotipado, na
busca por categorizar e estudá-la da forma mais conveniente, dando ao conto os
primeiros aspectos da forma repressora de juízo de valores pautada em modelos
idealizados, quanto à caracterização da personagem clariceana apresentada ao leitor,
como podemos perceber em fragmento:
Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. Escura como um macaco, informaria ele a imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu pequeno concubino. (LISPECTOR, 1995, p. 87)
A autora Clarice Lispector questiona e apresenta em seu conto, Pequena Flor
ao olhar desqualificador e utópico de uma sociedade em pleno século XX, ainda
pautada nas urgências idealizadoras do patriarcalismo e racismo, em que, o perfil
social imposto a mulher negra, dialogando com os princípios do matrimônio, ainda é
direcionada ao concubinato, fêmea reprodutora, desqualificada ao cerimonial do
casamento e fisicamente animalizada. Ideário que revalida a fixidez presente na
permanência dos estereótipos no decorrer da história, sendo eles repetidos e
massificados como reflete Bhabha:
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[...] o estereótipo é um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção que é afirmativo, exigindo não apenas que ampliemos nossos objetivos críticos e políticos mas que mudemos o próprio objetivo da análise. (BHABHA, 1998, p. 110)
Toda a narrativa clariceana propõe as principais marcas de estereótipos
historicamente perpetuados na trajetória da mulher negra cultuada como selvagem,
com dotes culinários, serviçal e objeto de erotismo exacerbado. Para tanto, Bhabha ao
priorizar a renovação do caráter analítico agência a postura contemporânea que será
permeia uma nova forma interpretativa, imersa a noções de fixidez do discurso
colonial, como rito de ampliação e fixação dos estereótipos de caráter racial e
cultural.
Exemplos basilares que nos remota ao período colonial em que a mulher
negra, foi posta à contemplação animalesca. Neste sentido, é possível relacionar o
conto A Menor Mulher do Mundo, de Lispector às reflexões propostas por Sueli
Carneiro:
Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida. [...] Sentindo a necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe. Apelidou-a de pequena flor. (LISPECTOR, 1995 p.87). Quando falamos que mulher é subproduto do homem, posto que foi feito da costela de Adão, de que mulher estamos falando? Originárias de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva, coisa do diabo, esse também um alienígena para nossa cultura. (CARNEIRO 2003. p.2)
A folclorização explorada por Carneiro reflete sobre a mulher enquanto ser
inferior e frágil, ponte para compreensão da descrita clariceana de sua personagem
central, como uma flor, coisificada quando posta ao olhar de dominação e poder
incutido como meta ao discurso colonial, que busca inserí-la no patamar das
realidades conhecíveis, ou melhor, “subproduto”, o que leva ao leitor atento a
interpretar o caráter de aculturação incutida no discurso de Marcel Pretre.
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A atitude inicial de categorizar, dar nomes, uma raça, sobressalta o leitor que
se vê em meio a um constante discurso patriarcal, que elege perfis a serem seguidos,
socialmente plausíveis. Os estudos de Bhabha denotam ao discurso colonial
características que ele define como:
O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. (BHABHA, 1995, p. 111)
Ser pequena, negra e africana, dá a personagem uma atmosfera entre
colonizador versus colonizado, em que a mesma é assujeitada aos mais diversos
estímulos humanos para definir e empoderar o explorador Pretre, diante do
diferente, ao referir-se a cultura privilegiada.
Em sua maioria, a força histórica da mulher, origem do contraponto que
enfatiza a fragilidade pretensiosa e ilusória na narrativa clariceana, presente também
nos discursos sexistas sobre a dimensão biológica historicamente categorizante,
dispondo ao homem o perfil de força, bravura e poder, e que Lispector exprime de
forma enfática desde o nome Pequena Flor, a caracterização do corpo da
personagem. Sueli Carneiro irá defender em fragmento a seguir a fragilidade
feminina sob a ótica de sua construção mítica:
[...] Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalham durante séculos como escravas na lavoura ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. (CARNEIRO, 2003, p.1)
A personagem clariceana remonta uma irônica imagem coletiva da mulher
africana e sua trajetória de escravidão, lutas e perseguição entre ideologias coloniais,
compõe o entre-lugar favorecido pela repetição dos estereótipos de liberdade sexual
e selvageria. Dessa forma, compreende-se na fala de Carneiro, o possível diálogo com
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a literatura de Clarice Lispector, quanto às divergências míticas da fragilidade da
mulher negra.
Unida a violenta descrição elegida como corpo erótico, presente no decorrer
da narrativa, trechos da obra enfatizam ao olhar inquiridor de Pequena Flor frente ao
homem branco Marcel Pretre, que presenciou: “[...] nesse instante Pequena Flor
coçar-se onde uma pessoa não se coça.” (LISPECTOR, 1995 p.89). Causando tamanha
vergonha no explorar, diante de mais uma caracterização nativa, entretanto, presente
em discursos hegemônicos masculinos sobre os dotes da mulher africana quanto à
ferocidade do sexo e diferenciação dos órgãos genitais e moral duvidosa.
A pesquisadora Mayara Santos Febres escreve em artigo Mais Mulher que Todas
(2010) sobre a dimensão desse corpo africano descrito na narrativa clariceana, e uma
construção social, ao dizer:
[...] as mulheres e o corpo sempre tiveram uma relação problemática. Ás vezes vivemos fechadas em seus limites, sem poder sair do corpo. Em outros momentos, vemo-nos como oferta para a demanda de homens, tanto que queremos nos converter em donzelas puras, honradas, bonitas, amadissímas. Ou nas sedutoras famintas. Posto que, admitamos quem não desejou secretamente ser completamente possuída? (FEBRES, 2010 p. 82) [...] Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflamaria de vaidade. Vaidade que diminuirá quando ela acrescentasse que amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador. (LISPECTOR, 1995 p.94).
Assim, como o corpo descrito por Febres, em que a mulher é vista através de
sensações íntimas, na narrativa clariceana, inclui as permissões para o ato de desejar,
sob novos paradigmas da evolução dos discursos pautados na urgência pós-
moderna, ficcionalizada por Lispector. O tom de fragilidade, ser primitivo, ao olhar
do personagem Pretre, o deixa desconcertado e surpreso, para que a narrativa supere
o discurso colonial rígido e enverede nas contemplações do sujeito enquanto
diferente.
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3.2 Reflexos de uma mulher negra no conto clariceano
Evidências angustiantes são narradas quando a foto de Pequena flor é
divulgada na mídia, estando ela disposta aos mais diversos olhares, em famílias
ocidentais regidas pela necessidade de possuir e dominar. Em primeiro momento,
uma mulher teve aflição da foto, em outra casa, uma senhora encheu-se de ternura,
uma menina de cinco anos em outro apartamento teve medo da desgraça, para outra
poderia ser um boneco de assustar, também fez surgir sentimentos perversos de uma
infância em uma mulher que no passado escondeu um cadáver de criança para
brincar de boneca.
Retomando ao que diz Bedasse, referindo-se ao:
[...] No referido conto, as mulheres tem uma reação de rejeição ou de bizarra ternura por Pequena Flor, a menor mulher do mundo. Uma delas não quer olhar sua foto no jornal de domingo “onde coube em tamanho natural” e parecia um cachorro com o nariz chato, a cara preta e os olhos fundos, porque a visão lhe dava aflição. Outra mulher sente por pequena flor uma perversa ternura. De qualquer maneira, qualquer que seja a reação, o que se verifica é o quanto as mulheres se desconhecem e se rejeitam entre si. Ou seja, a mulher moderna desconhece a sua ancestralidade que é representada pela mulher africana, esta menos construída socialmente por ser menos civilizada, e dentro do conceito clariceano, mais humana. (BEDASSE, 1999 p.70)
O paradoxo contemporâneo entre mulheres nos remete a constatar, como as
relações de poder estão ligadas aos preceitos do ato de coisificar o outro que,
destituído da fala no decorrer do conto, está lançada ao olhar e direcionamento do
cruel narrador, ideologicamente preparado para estabelecer paradoxos entre os
perfis das mulheres em suas mais diversas posições sociais, porém, distanciando-as
do passado que para muitas por vergonha ou indiferença escondem, e compõem
uma dependência histórica norteadora das relações sociais.
O leitor presencia todo o ritual sob o olhar estereotipado do explorador e das
mulheres da sociedade vigente. Assim também define a escritora e pesquisadora de
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Clarice Lispector, Nádia Battella Gotlib (2009), em Uma vida que si conta, sobre o perfil
do narrador no conto:
[...] e a intensa crueldade da narradora, ela que também leu a notícia no jornal e que reage com esse modo de narrar, acrescentando pitadas sadicamente irônicas ao liricamente sublime, que é ao mesmo tempo grotesco quase patético. (GOTLIB, 2009, p.406)
A voz do narrador é preponderante mesmo que sádica no desenrolar do conto
que tem em seu ponto central, no sorriso irônico de Pequena flor, pois ela ria da vida
e estava feliz, conforme é possível ler no fragmento a seguir: “era um riso como
somente quem não fala ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu
classificar”. (LISPECTOR, 1995, p.94). Atribuições que desconcertaram Marcel Pretre,
por acreditar na ingênua inocência daquela mulher que para ele seria joia rara em
suas pesquisas.
Pequena Flor é uma representação do outro que a observa de um local de fala
repressor, para inferiorizar e qualificá-la como inofensiva diante das demais
caracterizações, ligando-as aos perfis dos animais. Porém, a pigmeia encontrada não
se trata de um macaco, e, sim, de A menor mulher do mundo, que no conto clariceano
enxergamos através dos espelhos, casas, jornais, em sua mais doída constituição.
Para tanto, Febres descreve sobre o corpo da personagem clariceana:
[...] nesse corpo negro e escuro, como o de um animal, fica o limite da ética. È o corpo que pode esconder-se nos laboratórios, em campos de concentração ou guetos, nos fundos e em quartos de empregada das grandes casas nos arrabaldes da pobreza. (FEBRES, 2010 p. 82)
Em uma luta contra toda a animalidade e repressão do corpo posto aos
estereótipos da mulher negra, encontramos no conto clariceano o poder de sua
condição. Mesmo estando à inércia do explorador e submetida aos mais
repreensivos discursos, sentimentos de posse, medo, horror ou piedade, Pequena
Flor meche com o que a de mais primitivo em Pretre, as relações matrimoniais e
sociais. Por esta razão, ela o deixava submerso, fora do recorte de mundo em que tem
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como real, assim como as mulheres Pretre compreende dentro de si a humanidade
despojada, da mulher que consegue não ser apenas objeto, comida ou animal.
CONSIDERAÇÕES
Pequena Flor ou A Menor Mulher do Mundo
No decorrer do conto de Lispector, ao analisar as características adotadas pelo
narrador para a personagem Pequena Flor, é possível identificar a exaltação ao
discurso estereotipado, defendido pela hegemonia masculina, atuando como uma
forma de repetição e identificação da diferença. Uma forma de dizer a mulher negra
que ainda está cristalizada no imaginário coletivo, especialmente no que diz respeito
à sexualidade exacerbada, revelando nuances do racismo e do sexismo que ainda
imperam em nossa sociedade.
A partir da apresentação e constituição clandestina de uma mulher desejante,
representação de um povo, os personagens são direcionados às reflexões do eu
primitivo, postura contemporânea que, no conto, ligam-se as lembranças de atos e
povos repugnantes, que deveriam ser esquecidos, postos da distancia e
menosprezados.
As mulheres das casas por onde perpassa a notícia de Pequena Flor, assim
como Marcel Prete, apresentados no curso da narrativa, não se colocam enquanto
coparticipes do percurso de esteriotipação, desconhecem a revalidação do discurso
hegemônico masculino cristalizado do colonizador, sendo superiores a Pequena Flor.
Mesmo postos as armadilhas do narrador, os personagens entrelaçam conceituações
de cunho racista e sexista, sobretudo, no que diz respeito à existência da mulher
negra, e a sua coletividade.
A Menor Mulher do Mundo ou Pequena Flor compõe um paradoxo, que o
estudo apresentado por Mayra Santos Febres, propõe ao inserir a discussão do
reflexo da mulher negra, seja no contexto social ou na trajetória literária, da mulher
dizimada enquanto imaginário masculino dentro das representações discursivas de
poder. Como é possível ler em no trecho a seguir:
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[...] Se a linguagem é um espelho, como se reflete a mulher nele? Em virtude do falocentrismo que pulsa no centro do sistema de signos Irigaray (1974) diz que da mesma maneira que uma mulher se relaciona com um espetáculo, algo que lhe abre o corpo em dois, não permitindo se ver, mais sim que a vejam, a mulher, dessa forma, permanece sendo vista como um objeto de estudo, “escura como um macaco”. (FEBRES, 2010, p.3, grifos da autora)
Assim, Clarice Lispector ficcionaliza um perfil de mulher negra que abraça a
liberdade, expondo à repressora voz masculina à necessária reflexão dos pontos que
embasam o lar, profanando após o retornar a uma viagem mental, a um passado
opressor, em que a fala ou presença feminina negra inclui moldes de existir em
mudez, a sombra do olhar do outro que a perscruta, identifica.
Porém, os personagens perdem-se na armadilha clariceana, do corpo
minúsculo sob formas humanas, que sentem e acreditam no valor da existência em
meio ao natural, encontrando força vital em si, fotossíntese de vida. Contudo, apesar
de os discursos sexistas e racistas ainda persistirem na contemporaneidade, as
mulheres negras, em toda trajetória social, marcada pela luta e pela sobrevivência,
têm buscado construir outras representações de si, rechaçando olhares como os de
Lispector, pois elas já não admitem mais ser confundidas com a personagem
Pequena Flor.
Referências
BHABHA, Homi K.O Local da Cultura. Minas Gerais: editora da UFMG, 1998.
LISPECTOR, Clarice. A Menor Mulher do Mundo. In: Laços de Família. Ed. 28. Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1995.
FEBRES, Mayra Santos. Mais Mulher que Todos. In: Sobre Piel y Papel. V.1 n.1. San Juan: Ediciones Callejon, 2005.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma Perspectiva de Gênero. In: Racismos Contemporâneos. Rio de Janeiro: Takomo Editores, 2003.
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BEDASSE, Raimunda. Violência e Ideologia Feminista na Obra de Clarice Lispector. Salvador: Edufba, 1999.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: Uma vida que se conta. 6. Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
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O DESENCLAUSURAMENTO DO SILÊNCIO DE STELA DO PATROCÍNIO EM REINO DOS BICHOS E DOS
ANIMAIS É O MEU NOME
Inaê Silva Pereira Sodré - Mestranda do PPGEL UNEB. Bolsista Fapesb. [email protected]
Resumo: A loucura sempre existiu na história das sociedades ocidentais, assim como houve os métodos de cura ou de exclusão dos loucos e, igualmente, a perversidade humana manifestada para com o diferente. Neste trabalho, sob a perspectiva dos Estudos Culturais, objetiva-se provocar uma discussão acerca das representações identitárias de Stela do Patrocínio em Reino dos bichos e dos animais é o meu nome – cuja obra foi produzida oralmente dentro de um hospital psiquiátrico – bem como a sua configuração estético-subjetiva. Busca-se pensar em que medida os métodos de exclusão e punição recebidos pelo intitulados loucos estão histórica e culturalmente determinados. Na obra estudada, pretende-se apresentar a voz de uma mulher negra, poeta e interna do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira - Rio de Janeiro, que passou trinta, dos seus cinquenta e dois anos, internada num manicômio, tendo uma identificação imposta a ela pela sociedade: a de louca. Stela do Patrocínio denuncia, em linguagem poética e filosófica, as atrocidades que aconteciam dentro do espaço manicomial, onde os objetivos consistiam em silenciar e mortificar o sujeito, à custa de violência, em nome da razão e sob a conivência da sociedade. Segundo Michel Foucault, a cisão da linguagem, por René Descartes, século XVII, coloca a razão como soberana e a loucura como subalterna dentro de uma cultura, esta que isola os “doentes mentais” para marcar os “normais”, enquanto tais, por estarem fora dos muros excludentes do manicômio. Stela foi uma das sobreviventes do processo de mortificação que foi o sistema asilar, e também uma das internas que vivenciou os primeiros momentos da Reforma Psiquiátrica no Brasil, na década de 1980. Depois dessa reforma, Stela do Patrocínio foi “descoberta” – em meio a tantas outras internas, por sua palavra, ou seja, por seu “falatório – num ateliê lítero-artístico produzido por psicólogas e artistas plásticas”. Suas falas foram gravadas durante dois anos, de 1986 a 1988, transcritas e organizadas por Viviane Mosé. Um dos intuitos, neste estudo, é mostrar como ocorreu – e como repercutiu – esse encontro o qual resultou na quebra de um silêncio secular imposto aos “loucos”. Essas criações de Stela (o “falatório”) podem ser entendidas como gênero híbrido, centrado na voz do autor e reinventado na palavra escrita, como fonte de visibilidade de um corpo exemplar de novas identidades sociais. A obra é analisada a partir das postulações teóricas do filósofo e teórico francês Michel Foucault, inscrito nos seus trabalhos História da Loucura na Idade Clássica, Vigiar e Punir: nascimento das prisões, Doença mental e psicologia e A ordem do discurso; da filósofa, psicóloga, psicanalista e poeta Viviane Mosé em O homem que sabe; e do olhar das investigações da jornalista brasileira Daniela Arbex em Holocausto brasileiro.
Palavras-chave: razão; loucura; literatura; representações identitárias.
No início de tudo era a Palavra, que se tornou Fala. E que tomou Corpo. E,
que, por sua vez, se encorpou Linguagem. As palavras nomeiam as coisas, traduzem
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os sentimentos, delimitam um pedaço da intensidade da vida, representam o mundo.
Mas as palavras utilizadas para compreender e interpretar o nosso mundo, de
verdades palpáveis e prováveis, podem diminuir as possibilidades de sentido que a
palavra pode nos dar. A linguagem, como um rio no tempo, num dado momento, se
parte e segue por duas vias na história do pensamento. Uma parte desemboca no
dicionário e a outra parte desemboca na poesia. Será que as palavras exatas do
vocabulário da razão são suficientes para compreender e interpretar o nosso mundo?
Segundo Viviane Mosé, a razão se caracteriza pela capacidade que todo o ser
humano tem de criar e articular palavras e pensamentos, quer dizer, pensar por
causa e efeito, por identidade, de forma organizada, esclarecida, contida, sem
contradições, sem excessos, sem emoções (MOSÉ, 2012, p. 112). Na modernidade, ou
idade clássica, como diz Foucault, século XVII, o matemático e filósofo francês René
Descartes inaugura a Razão como modelo de pensamento filosófico fundamentado
na exatidão matemática. “Penso, logo sou” é a máxima célebre do pensamento
cartesiano encontrada em sua obra Discurso sobre o método para bem conduzir a razão na
busca da verdade dentro da ciência, na qual a dúvida é eleita como ferramenta para
investigar e compreender o mundo. Isso porque, para ele, ainda que se duvide ao
máximo, não se pode duvidar daquele que duvida, porque a dúvida é um ato do
pensamento, de modo que esse pensamento não pode acontecer sem sujeito.
Percebi que, quando pensava que tudo era falso, necessário se tornava que eu - eu que pensava- era uma cousa e, notando que esta verdade - penso logo sou - era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não era capaz de abalar, julguei que podia aceitá-la, como escrúpulo como primeiro princípio da filosofia que procurava (DESCARTES, 2011, p. 50)
O que a razão quer é, desde o seu nascimento platônico, rejeitar uma parte da
vida, a que muda, a que delira, a que morre. O que a razão quer é produzir um
mundo de identidades e verdades, um mundo previsível e claro (MOSÉ, 2001. p. 22).
Michel Foucault acusa René Descartes em dividir a linguagem em duas partes: Razão
e Desrazão. De um lado, a Razão como verdade, consciência, claridade, normalidade,
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lucidez e, do outro, a Desrazão como erro, obscuridade, desordem (FOUCAULT,
1997. p. 45).
A principal preocupação de Descartes, diante de uma tradição escolástica em que as espécies eram concebidas como entidades semimateriais, semi-espirituais, é separar com exatidão mecanismo e pensamento, o corporal sendo inteiramente reduzido ao mecânico (SARTRE, 2008, p. 13).
Segundo Viviane Mosé (2012), Descartes reduz a existência ao pensamento,
valoriza o mundo das ideias, busca a verdade e exclui o corpo como possibilidade de
interpretação de mundo. Desse modo, excluindo da vida as intensidades, a
linguagem artística. E pensar cartesianamente é pensar por causa e efeito, por
identidade, por não contradição. Para que o pensamento racional tenha sentido, as
coisas precisam se opor, fixamente, uma à outra: o belo oposto ao feio, o certo ao
errado, o claro ao escuro, o normal ao anormal, a razão à loucura. Ele acredita que o
corpo, as sensações e as emoções são as fontes dos erros e da desordem (MOSÉ, 2012,
p. 130). Posto isso, o homem precisa se opor às sensibilidades e percepções e buscar a
verdade como essência das coisas que vêm com o pensamento e ideias. Portanto, a
razão não é natural, ela foi inventada num determinado tempo de nossa história,
quer dizer, foi construída pela cultura e é um produto da nossa civilização.
A razão, como tradição inventada, foi fundamentada por um conjunto de
práticas reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas. Essas práticas, de
natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamentos por meio da repetição do discurso (HOBSBAWM, 2012, p. 12). A
gramática normativa serve de exemplo de como o discurso da razão perdurou no
tempo. Pois a gramática normativa se sustenta na ideia de sujeito e predicado, em
regras, normas, na não contradição, na “lógica da exclusão”. Para Viviane Mosé,
Este absoluto, centrado na noção de Ser, fundamenta a crença na identidade, razão de ser de toda a gramática, fazendo com que se instaure em todo o texto uma lógica da identidade que sempre exclui as diferenças e que encontra suporte na posição de um sujeito estável, único, sem afetos e sem corpo (MOSÉ, 2012, p. 53).
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Para que o pensamento racional pudesse se manter como modelo de discurso
verdadeiro, além de repetir o discurso “verdadeiro” do “falar certo” e “falar errado”,
procurou-se internar os que se lhe opõem, quer dizer, todos os que fossem de
encontro a ele: os que deliram, os que se excedem, os que se desequilibram, os que
ultrapassam as normas estabelecidas. Como diz Foucault, “a dúvida de Descartes
desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens dos sonhos, sempre guiada
pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que
duvida, e que não pode desatinar mais do que não pode pensar ou ser”
(FOUCAULT, 2012, p. 47).
Michel Foucault, em seu livro A ordem do discurso, defende que a cisão da
linguagem está no domínio do discurso. É por intermédio das palavras que se
reconhece a loucura do louco. Afirma que desde os arcanos da Idade Média que o
louco é aquele cujo discurso não pode transmitir-se como o dos outros: ou a sua
palavra nada vale e não existe, não possuindo nem verdade, nem importância, não
podendo testemunhar em matéria de justiça, não podendo autenticar um ato ou um
contrato, não podendo sequer, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e
fazer do pão um corpo; ou, como reverso de tudo isso, e por oposição a outra palavra
qualquer, são-lhe atribuídos estranhos poderes: o de dizer uma verdade oculta, o de
anunciar o futuro, o de ver, com toda a credulidade, aquilo que a sagacidade dos
outros não consegue atingir (FOUCAULT, 1970; p. 10). Segundo Roland Barthes, em
seu livro Aula, a linguagem é o objeto em que se inscreve o poder (BARTHES, 1980,
p. 11). E a razão impõe, julga, controla, adoece, silencia, isola, exclui, tortura e mata.
Entre as mais antigas experiências de internação, temos a construção dos
leprosários. Estes foram construídos no século IV d.C. e mantidos como lugar de
exclusão até o desaparecimento da lepra no século XV, no fim da Idade Média. Tais
espaços acolhiam não somente os leprosos, mas igualmente demais tipos indesejados
da sociedade: mendigos, pobres, homossexuais, prostitutas, aleijados, entre outros
(FOUCAULT, 2012, p.4). Depois que a lepra desapareceu, a sociedade precisava
preencher aquele espaço vazio de exclusão. O manicômio foi o espaço escolhido para
excluir os loucos, e todos os tipos diferentes ou estranhos representados na figura do
louco.
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Quem adentrava o manicômio entrava para o vale da morte. As pessoas
morriam de frio, porque dormiam no chão, sem roupas e sem cobertas, ou eram
jogadas ao relento. Morriam de fome, de eletrochoque, de infecção por beber água
podre ou por comer fezes e ratos. Muitos morriam de pneumonia e outros muitos
morriam em cima da mesa cirúrgica, em decorrência de lobotomia. Stela do
Patrocínio foi testemunha do que acontecia na parte interna do espaço manicômio e
denunciou, poeticamente, os “cuidados” médicos e as formas mais violentas como
método de “cura" de quem ousou a desestruturar a Norma. Ou desordenar a Ordem.
Ou escapar do Padrão. Stela pôde, por meio de sua fala, dar testemunho de suas
vivências, na condição de vítima de um sistema ultrapassado de tratamento
manicomial que, segundo palavras de Michel Foucault “usava as formas mais
bizarras de violência e tortura para método de controle dos corpos” (FOUCAULT,
1997 p. 141). Segundo Daniele Arbex (2013),
(...) durante décadas, as pessoas eram enfiadas – em geral compulsoriamente – dentro de um vagão de trem que as descarregava na Colônia. Lá, suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apagados. Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até mesmo crianças viravam "Ignorados de Tal”. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns deles eram apenas tímidos. Cerca de 30 eram crianças (ARBEX, 2013, p.14).
Por causa do pensamento excludente da razão, habita em cada um de nós um
leprosário vazio. Mas por que a nossa cultura exclui? Por que certos sentimentos são
considerados patologia? E o normal, o que seria?
Segundo George Canguilhem (2012), em seu livro O Normal e o Patológico, na
perspectiva objetiva se alcança a ideia de normal com base na regularidade
estatística. Ou seja, a partir da medida de comportamento e experiência de uma
determinada população se tem um parâmetro de normalidade. E os que desviam
desse padrão são considerados fora do Normal. Por outro lado, de uma perspectiva
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subjetiva, já é sabido que todos os seres humanos são dotados de uma mente, quer
dizer, de uma vida subjetiva, que regula a sua relação com os outros e com o meio
ambiente, de modo que essa relação com os outros implica prazer e desprazer,
frustrações e sofrimento. Sofrer, assim como alegrar-se e entristecer-se, é inerente à
condição humana. Para Canguilhem, se relacionar normalmente com alguém implica
um indivíduo tratar o outro como sujeito ético, ou seja, como um sujeito igual a si. E
quando, de alguma maneira, ele destitui aquela pessoa da condição de sujeito,
passando a tratá-la como instrumento do seu prazer, estará, dessa forma,
ultrapassando o limite e desembocando para o campo da patologia. E, portanto,
qualquer julgamento que aproprie ou qualifique um fato em relação a uma norma,
essa forma de julgamento está subordinada àquele que institui as normas
(CANGUILHEM, 2012, p. 80). Nesse sentido, é dubitável se a normalidade está fora
ou dentro dos muros excludentes dos manicômios.
Com o livro Reino dos Bichos e dos animais é o meu nome, de Stela do Patrocínio
(1941-1992), apresenta-se a voz e a palavra de uma mulher negra, poeta e interna do
Juliano Moreira, hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, que passou trinta, dos seus
cinquenta e dois anos, internada num manicômio, vítima da exclusão imposta pelo
pensamento racional, pela ciência e pela conivência da sociedade. Ela também foi
uma das internas que viveu antes e depois da Reforma Psiquiátrica, no Brasil, na
década de 1980. Por meio da linguagem poética, a fala de Stela do Patrocínio foi
ouvida, gravada e transcrita para o papel. Esse livro nos mostra a quebra de um
silêncio secular imposto aos “loucos” pelo poder de um tempo e de uma cultura. A
sua produção se deu em um contexto sui generis de oralidade e posterior transcrição
dos poemas e textos. E consciente do seu tempo, do seu espaço e de sua condição,
Stela falava e falava e falava:
Dias semanas meses o ano inteiro/ minuto segundo toda hora dia tarde a noite inteira querem me matar/ Só querem me matar/ Porque dizem que eu tenho vida fácil/ Tenho vida difícil/ Então porque eu tenho vida fácil/ Tenho vida difícil/ Eles querem saber como é que eu posso ficar nascendo sem facilidade e com dificuldade/ Por isso é que eles querem me matar (PATROCÌNIO, 2001, p.64).
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O que se sabe de Stela do Patrocínio é que ela nasceu em 9 de janeiro de 1941,
filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio. Solteira, de instrução
secundária, trabalhava na função de empregada doméstica. Morava na Rua Maria
Eugenia, número 50, apto 501, Botafogo no Rio de Janeiro. E se prostituía para poder
se alimentar. “Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum”
(PATROCÍNIO, 2001, p. 126). Stela se enquadrava perfeitamente fora dos padrões
sociais normativos estabelecidos: mulher, negra e pobre. Posto isso, será que Stela do
Patrocínio, na condição de subalternizada, dentro da nossa cultura, patriarcal,
escravocrata, embranquecida e capitalista, foi mesmo louca, ou foi enlouquecida?
Depois de uma queda, na Rua Voluntários da Pátria, colocaram Stela dentro
do Posto do Pronto Socorro. Aplicaram-lhe uma injeção. Deram um remédio. Deram
eletrochoque. Mandaram tomar um banho de chuveiro. Mandaram procurar mesa,
cadeira, cadeira, mesa. Deram-lhe uma bandeja com arroz, chuchu, carne, feijão, e aí
chamaram uma ambulância, assistência e disseram: “Carreguem ela!”
(PATROCÍNIO, 2001, p. 49). “Eu estou num asilo de velhos/ Num hospital de tudo
quanto é doença/ Num hospício/ lugar de maluco/ louco/ doido” (PATROCÍNIO,
2011, p. 47).
Stela foi internada em 1962, aos 21 anos, permanecendo quatro anos no
primeiro manicômio da América Latina, no Rio de Janeiro: o Hospital Pedro II.
Depois foi transferida para o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, onde
permaneceu até morrer, vítima de uma infecção generalizada em 1992. Essa
personalidade singular é descrita nas palavras de Viviane Mosé, filósofa, poeta,
psicóloga e psicanalista, mestra e doutora em filosofia, pelo Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora de seis livros de
filosofia e sete livros de poesia:
Stela foi uma sobrevivente do processo de mortificação característico das estruturas psiquiátricas arcaicas e tradicionais, os asilos. Nestes, há o apagamentos das individualidades, da subjetividade, do desejo e da singularidade. As pessoas ficam reduzidas a um amontoado, sem formas e sem rosto. O uniforme é apenas símbolo da real uniformização. O tempo é o tempo da morte. O tratamento, dito cientifico, se reduz ao controle dos corpos, pela violência daqueles que ousam desafiar a ordem (MOSÉ, 2001, p.13).
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Em Reino dos bichos e dos animais é meu nome, nota-se, desde o título, o olhar
lançado para sua condição no hospital psiquiátrico: “Primeiro veio o mundo dos
vivos/ Depois veio a vida e a morte/ Depois dos mortos/ Depois dos bichos e dos
animais/ Depois do entre a vida e a morte/ Depois dos mortos/ Depois dos bichos e
dos animais/ Só fica a vontade/ Como bicho e como animal”. (PATROCÍNIO, 2001,
p. 116). Ou então os “cuidados” dos médicos psiquiátricos: “O remédio que eu tomo
me faz muito mal/ E eu não gosto de tomar remédio pra ficar passando mal/ Eu
ando um pouco e cambaleio/ fico cambaleando quase levo um tombo e se eu levo
um tombo eu levanto/ Ando mais um pouquinho/ torno a cair”. (PATROCÍNIO,
2001, p. 54). Num dos poemas, é como se ela descrevesse os passos de uma
lobotomia:
Eu já fui operada várias vezes/ Fiz várias operações/ sou toda operada/ Operei o cérebro, principalmente/ Eu pensei que ia acusar/ Se eu tenho alguma coisa no cérebro/ Não, acusou que eu tenho cérebro/ Um aparelho que pensa bem pensado/ Que pensa positivo/ E que é ligado a outro que não pensa/ Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar/ Eles arrancaram o que está pensando/ E o que está sem pensar/ E foram examinar este aparelho de pensar e não pensar/ Ligadas um a outro na minha cabeça, no meu cérebro/ Funcionar em cima da mesa/ Eles estudando fora da minha cabeça/ Eu já estou nesse ponto de estudo/ de categoria (PATROCÍNIO, 2001 p. 69).
Em 1989, o deputado Paulo Delgado deu entrada no projeto que extinguiria,
progressivamente, os manicômios e regulamentaria os direitos dos doentes mentais,
mas só em 2001 a lei da Reforma Psiquiátrica foi sancionada: a Lei nº 10.216 de 6 de
abril de 2001, que também é conhecida como Lei Paulo Delgado (FERREIRA, 2006, p.
77-85). O Hospital Psiquiátrico se extinguiu para dar lugar a um novo modelo de
tratamento. A criação do Centro de Atenção Psicossocial- C.A.P.S.- que tem como
objetivo evitar que o doente fique enclausurado e esquecido em confinamento, ao
mesmo tempo objetiva colocar o doente em contato direto com a família e com a
sociedade, como uma forma de ajuste social. Nesses centros, o doente tem um
acompanhamento, psicológico e farmacológico, além de uma integração dentro da
unidade com pessoas do bairro ou da cidade.
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Conforme relatam Gonçalves & Sena (2001); Ferreira (2006), a Reforma
Psiquiátrica, no Brasil, ocorreu na década de 1980, na ocasião da implementação do
Sistema Único de Saúde (SUS). Stela se beneficiou do momento, pois os portões, que
ficaram fechados durante séculos, se abriram. Trata-se de um tempo, não tão distante
de nós, em que os doentes mentais eram tratados como animais irracionais e, que por
isso mesmo, foram isolados, enjaulados, acorrentados, punidos. E, como animais,
foram cobaias para o progresso da ciência. Depois da Reforma Psiquiátrica,
inaugura-se um novo tempo. O tempo do dessilenciamento dos silenciados. Stela
falava e falava e falava...
As frases de Stela do Patrocínio escapam da construção sintática esperada para
entrar num outro ritmo. O ritmo dos olhos esgazeados. Palavras enfileiradas
arrumadas sem respirar. E, para essa falta de respiração, a organizadora achou por
bem economizar nas vírgulas para dar um ritmo de rio em sua fala. É nesse desaguar
no mundo da dita desrazão - dos símbolos, do sonho, da poesia, da arte enfim - que
Stela estrutura o seu pensamento. O seu discurso se organiza na tensão entre ordem e
desordem. “Stela falou com seu falatório e falando se desdobrava em seu falar. Stela
falava de sua fala. E falava de uma forma muito própria. Suas palavras
extremamente bem pronunciadas eram sempre carregadas de muita emoção”.
(MOSÉ, 2001, p. 28). Ciente do seu Ser e do seu Estar-no-mundo, Stela afirma sua
identidade confirmada na perspectiva do outro:
Eu sou Stela do Patrocínio bem patrocinada/ Estou sentada numa cadeira pregada numa mesa/ Nega preta e crioula/ Eu sou uma negra preta e crioula/ Que a Ana me disse/ Nasci louca/ Meus pais queriam que eu fosse louca/ Os normais tinham inveja de mim que era louca (PATROCÍNIO, 2011, p. 66).
O livro não foi escrito por Stela, apesar de sabido que ela escrevia em papelão.
Os textos foram falados e gravados durante dois anos, de 1986 a 1988, pela artista
plástica Neli Gutmacher e Carla Guagliardi. Depois foram transcritos pela psicóloga
Mônica Ribeiro e organizado por Viviane Mosé. A organizadora, em um dos seus
depoimentos, no livro, diz que “este livro resulta de um processo coletivo,
construído, em muitos momentos, no anonimato e nutrido do sentimento de
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solidariedade com os que não possuem amanhã nem ontem” (MOSÉ, 2001, p. 15).
Segundo Viviane Mosé, Stela foi diagnosticada como portadora de uma
“personalidade psicopática mais esquizofrênica hebefrênica, evoluindo para ações
psicóticas”. E da sua existência, Stela fala:
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo/ Eu era ar, espaço vazio, tempo /E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó/ Eu não tinha formação/ Não tinha formatura/ Não tinha onde fazer cabeça/ Fazer braço, fazer corpo/ Fazer orelha, fazer nariz/ Fazer céu da boca, fazer/ falatório/ Fazer músculo, fazer dente/ Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas/ Fazer cabeça, pensar em alguma coisa/ Ser útil, inteligente, ser raciocínio/ Não tinha onde tirar nada disso/ Eu era espaço vazio puro (PATROCÍNIO, 2001, p. 21).
O livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome foi lançando em 2001 pela
editora Azougue Editorial, intitulado de “poesia brasileira”. A orelha foi assinada
por Sérgio Cohn, coordenador da Azougue Editorial. Teve a organização e
apresentação de Viviane Mosé. O livro é composto por “agradecimento”; “Epígrafe”;
“Sumário”; “Estrela”, “apresentação: Stela do Patrócínio - Uma trajetória poética em
uma instituição psiquiátrica”, “parte I- Um homem chamado cavalo é o meu nome”,
“Parte II- Eu sou Stela do Patrocínio, bem patrocinada”, “Parte III- Nos gazes eu me
formei, eu tomei cor”, “Parte IV- Eu enxergo o mundo”, “Parte V- A parede ainda
não era pintada de tinta azul” e “parte VI- Reino dos bichos e dos animais é o meu
nome”; “Stela por Stela- Entrevista” e “Cronologia”. Na entrevista feita por Neli
Gutmacher e Carla Guagliardi a Stela do Patrocínio, destacam-se alguns trechos que
nos dá uma ideia do que foi a sua experiência no manicômio:
Como é o seu dia aqui na Colônia?
Segunda terça quarta quinta sexta sábado domingo janeiro fevereiro
março abril maio junho julho agosto setembro outubro novembro
dezembro dia tarde noite eu fico pastando à vontade Fico pastando
no pastando à vontade que nem cavalo
Ele já disse um homem chamado cavalo é o meu nome.
Você passa muito mal aqui?
Passo mal porque eu tomo constantemente injeções.
Injeções para o homem e o líquido desce.
Quem te dá essas injeções?
O invisível polícia secreta o sem cor
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E para que serve essas injeções?
Para forçar a ser doente mental.
No dia que você parar de tomar injeções você fica curada?
Fico completamente curada se eu não tomar remédio
Não tomar eletrochoque
Eu não fico carregada de veneno envenenada.
Você estudou Stela?
Estudei em livro
Linguagens
Comment allez vous?
Como você está? Thank you very much
O tanque da vera está cheia de mate
Ça va bien, a senhora vai bem?
Você é professora?
Não sou professora, mas tive trabalho de estudar letra por letra frase
por frase folha por folha
Seu nome é Stela, você sabe o que quer dizer, Stela?
Estrela
Estrela do mar
Fala uma poesia pra gente?
Não.
Não tenho mais lembrança de poesia mais nenhuma
Tudo o que você fala é poesia Stela.
É só história que eu estou contando, anedota (PATROCÍNIO, 2001,
p.153).
Stela e seus relatos tiveram uma significativa repercussão: O livro Reino dos
bichos e dos animais é o meu nome, organizado por Viviane Mosé, tornou- se finalista do
Prêmio Jabuti em 2002 e 2005. Seus textos foram usados em shows musicais, pelo
músico e artista plástico Cabelo. Foram adaptadas para o teatro, no monólogo Stela
do Patrocínio óculos, vestido azul, sapato preto, bolsa branca e...doida, interpretado por
Clarisse Baptista e dirigido por Nena Mubárac. Stela foi para o cinema, em Stela do
Patrocínio – a mulher que falava coisas (Documentário, 14 min., DV, RJ, 2006), realizado
por Márcio de Andrade. E transformada em ópera pelo compositor Lincoln Antônio.
Do título do livro, segue o poema:
Meu nome verdadeiro é caixão/ Enterro/ Cemitério defunto cadáver/ esqueleto humano/ Asilo de velho/ hospital de tudo quanto é doença/ Hospício/ Mundo dos bichos e dos animais/ Os animais: dinossauro camelo onça tigre leão macaco dinossauro girafa
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tartaruga/ Reino dos bichos e dos animais é o meu nome/ Jardim zoológico/ Quinta da Boa Vista (PATROCINIO, 2001, p.118).
Para Viviane Mosé, o texto de Stela do Patrocínio nasce como um marco na
literatura brasileira, revestindo-se da maior importância e significado. Ele se junta a
tantos outros livros de depoimentos de escritores que relataram suas experiências em
asilos. E chega com vigor e densidade, fazendo-se história. Neste capítulo, intitulado
ESTRELA, a organizadora começa, e eu termino, com uma epígrafe do cantor cubano,
Paulo Milanez, apontando para a Estrela Stela: “O que brilha com luz própria
ninguém pode apagar” (MOSÉ, 2001, p. 13).
Referências
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DESCARTES, René. Discurso do método. Brasília: UnB, 1985.
FERREIRA, Gina. A Reforma Psiquiátrica no Brasil: Uma análise sociopolítica. Psicanálise e Barroco – Revista de Psicanálise, v.4, n.1, p. 77-85, 2006.
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_______. Vigiar e Punir: nascimento das prisões. Petrópolis: Vozes, 1997.
_______. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2012.
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______. A Ordem do discurso. 7ª. ed. São Paulo: Loyola, 1996.
GONÇALVES, Alda Martins; SENA, Roseli Rosângela. A reforma psiquiátrica no Brasil: contextualização e reflexos sobre o cuidado com o doente mental na família. Revista Latino Americana de Enfermagem, v.9, n.2. p. 48-55, 2001.
HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (Org.). A Invenção das Tradições. [edição especial]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
MOSÉ, Viviane. O homem que sabe. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
PAES, Victor. Stela do Patrocínio - O Tempo é o gás, o ar, o espaço vazio. Em: Confraria – Revista de Literatura e Arte, n°11, 2006. Disponível em: <http://www.confrariadovento.com/revista/numero11/phantascopia.htm>. Acesso em: 02/07/2010. Stela do Patrocínio. Disponível em: <www.steladopatrocinio.blogspot.com/>. Acesso em: 21/08/2010.
PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome - Stela do Patrocínio, Viviane Mosé (Org.). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.
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“QUEM ODEIA LER AGORA”? Os Saraus como mola propulsora do incentivo a leitura nas
margens
Jacqueline Nogueira Cerqueira, Graduada (2013) em Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas, pela Universidade do Estado da Bahia, UNEB – Campus V.
Email: [email protected]
Resumo: O presente trabalho busca estudar a importância dos Saraus e da Literatura Marginal/ Periférica (SP) como nova possibilidade de intervenção e incentivo a leitura nas periferias e em escolas públicas paulistanas. Um cenário de leitura, produção, e socialização textuais se forma na periferia, alguns dos responsáveis por tais acontecimentos desde o início desse século, na transformação de imagem da periferia são eles, os escritores e ativistas periféricos: Ferréz, Alessando Buzo, Sérgio Vaz, dentre outros. Os saraus movimentaram a cena literária da periferia, e as atividades que a priori eram apenas para a periferia, já ultrapassa aos limites do asfalto. Com os saraus modernos, formou-se o novo quilombo cultural, a nova imagem da periferia após uma década de iniciativas culturais, a leitura presente na vida das pessoas, fotografia pouco circulada na sociedade, as quais raramente têm um espaço de divulgação na mídia.A importância dessa literatura se dá além da voz de representantes da periferia, pois se configura como uma produção não isolada que possui meios diretos de ligação com seu povo através dos saraus e sua responsabilidade de incentivo a leitura.Além da importância cultural, da desmistificação da literatura, da aproximação da arte para povo, algo que sempre lhe foi negado ou inacessível, os poetas e autores desses espaços oferecem não só a esses locais, mas à vários outros a necessidade dessas iniciativas, uma possível transformação de vida, através da criação da própria cultura e acesso ao conhecimento. O que acontece hoje na Zona Sul Paulistana e em outras partes do Brasil, por meio da Literatura Marginal Contemporânea, Literatura Divergente ou de Lite-rua, “não, não é Alice no país das maravilhas, mas também não é o inferno de Dante. É só o milagre da poesia. Quem odeia ler agora?” (Sérgio Vaz). Palavras-chave: Leitura; Saraus; Literatura Marginal Contemporânea; Periferia;
1. A INVASÃO LITERÁRIA A PERIFERIA
Por acepção da palavra Sarau entende-se como reunião festiva, à noite, para
dançar, ouvir música ou conversar, encontro de amigos com música, reunião com
finalidade literária. Os saraus chegaram ao Brasil no século XIX com a vinda a
Família Real, esteticamente um evento da alta sociedade que configurava-se na
diversão de intelectuais reunindo poetas e músicos cariocas, logo serviu de modelo
para outras partes do país.
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No século XX os saraus despontaram na sociedade através das iniciativas de
estudantes, artistas professores e ativistas culturais, tendo um caráter menos
sofisticado em relação ao do século anterior, mas ainda caracterizado como uma
atividade da elite.
Já no início do século XXI os saraus através de ativistas e poetas periféricos se
transformaram na efervescência cultural da periferia em bairros da zona sul paulista.
Surpreendendo a todos por se caracterizar não em apenas um acontecimento
eventual, pois sua existência é responsável por uma nova realidade e imagem que a
periferia paulistana vivencia há mais de uma década, a formação de uma
comunidade leitora.
A periferia nunca esteve tão violenta, pelas manhãs é comum ver, nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até quatrocentas páginas. Jovens traficando contos; adultos, romances. Os mais desesperados cheirando crônicas sem parar. Outro dia um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha. Dei-lhe um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada por uma semana. (VAZ, 2008, COOPERIFA, p.117)
Esteticamente modernos os saraus passaram acontecer nos bares, ruas, galpões
e assim formou-se o novo quilombo cultural, espaço que ajudou a construir a nova
imagem da periferia após uma década de iniciativas culturais que tornaram a leitura
presente na vida dos moradores locais, fotografia pouco circulada na sociedade, as
quais raramente têm um espaço de divulgação na mídia. Acontece atualmente
inúmeros saraus na cidade de São Paulo, tendo concentração maior na zona sul
paulistana, alguns dos mais conhecidos são o Sarau Cooperifa, Sarau do Binho, Sarau
Suburbano Convicto, 1° da Sul , Elo da Corrente, Sarau dos Mesqueteiros e outros.
É importante salientar que os saraus se constituem não só como espaços de
socialização textual e divulgação dos artistas periféricos, mas sim enquanto espaço
político onde o periférico atua como sujeito da história, ao assumir a sua voz na
sociedade enquanto representação social de si e do seu povo.
A periferia que historicamente foi descrita apenas como lugar de exclusão,
pobreza, miséria, analfabetismo, não produção de conhecimento e pensamento, hoje
propaga um acontecimento histórico no país e na periferia, a criação de um cenário
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literário para as massas, que surgiu através de alguns poetas e ativistas periféricos e
foram se disseminando a partir dos modelos dos saraus percussores um dos mais
importantes é o Sarau da Cooperifa, idealizado por Sérgio Vaz e Marcos Pezão.
Assim é de suma importância, estudar o que vem ocorrendo na Zona Sul
Paulistana para compreender como as iniciativas literárias nesses locais
possibilitaram a produção e divulgação da arte periférica, mas sobretudo de que
forma contribuíram para a construção da cultura e representação social da periferia.
Por isso essa pesquisa propõe-se em estudar a importância dos Saraus e da Literatura
Marginal/ Periférica (SP) como nova possibilidade de intervenção e incentivo a
leitura nas periferias e em escolas públicas paulistanas.
A periferia sempre foi vista como um lugar restrito ao analfabetismo e a
criminalidade, pensar em um acontecimento literário neste local até o final século
passado era algo inimaginável. Razões que levam muitos a se assustarem com a nova
realidade da periferia, sendo os saraus grandes responsáveis por essa nova imagem.
De que forma os saraus periféricos atuam como incentivadores da leitura nos espaços
em que acontecem?
Para responder a tal questionamento a pesquisa fundamenta-se a partir do
recentes estudos da literatura marginal no Brasil como da antropóloga Érica Peçanha
do Nascimento que produziu sua tese de mestrado a inserção dessa literatura na
sociedade e tese de doutorado sobre a existência e atividades do sarau da cooperifa
na zona sul paulistana.
Bem como nas discussões e trabalhos da pesquisadora, crítica literária,
ensaísta e escritora, Heloísa Buarque de Hollanda, que detêm um acompanhamento
das gerações da literatura marginal no brasil e da criação dos saraus em SP e RJ
sendo até curadora de alguns eventos. Nas discussões teóricas de Alfredo Bosi, sobre
a “ Escrita e os Excluídos” enquanto identificação da obra literária por parte do
periféricos e do poder de voz da periferia como sujeito da história e construção
identitária.
Com essa pesquisa documental e bibliográfica constituída através da análise
em sites, blog, revistas, vídeos, teses, artigos, monografias e entrevistas, referentes
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aos acontecimentos de saraus e da literatura marginal/periférica na zona sul
paulistana e abordagens de poetas e seus idealizadores.
2. AGORA EU SOU VERSO INVÉS DO INVERSO MIDIÁTICO: A PERIFERIA É POESIA
2.1. O olhar do outro diante da margem X Eu faço literatura
A realidade de favelas brasileiras, ou de espaços cuja área fica a margem do
centro comporta os mais variados tipos de problemas sociais, sendo as condições de
vida em grande parcela inumanas, pela falta de acesso aos meios necessários de
sobrevivência e dos seus direitos de cidadão, negado pelo próprio sistema social que
envolve governo e habitações irregulares no Brasil.
O preconceito quanto a origem geográfica de lugar é justamente aquele marca alguém pelo simples fato de pertencer ou advir de um território, de um espaço, de um lugar, de uma vila, de uma cidade, de uma província, de um estado, de uma região, de uma nação, de um país, de um continente considerado por outro ou outra, quase sempre mais poderoso ou poderosa como sendo inferior, rústico, bárbaro, selvagem, atrasado, subdesenvolvido, menor, menos civilizado, inóspito, habitado por um povo cruel, feio, ignorante, racialmente ou culturalmente inferior. (JUNIOR,2007. p.11)
Apontados constantemente na mídia, nos livros e jornais e pela própria
sociedade, apenas pelos seus aspectos negativos, reduzido ao ambiente de violência,
e quando retratam a produção cultural desses espaços, esta é sempre vista como
inferior.
A ideia de falar sobre a cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. ( HOLLANDA, 2010)
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Descrito sempre pelo outro, através de estereótipos que circundam a história
do Brasil, contexto o qual revela a falsa democracia racial do país, presentes em
discursos camuflados quando oportunos e brutalmente julgadores nas formas de
representar o outro dentro de narrativas.
O discurso da estereotipia é um discurso assertivo, imperativo, repetitivo, caricatural. É uma fala arrogante, de quem se considera superior ou esta em posição de hegemonia, uma voz segura e auto-suficiente que se arroga no direito de dizer o que o outro é em poucas palavras. (JUNIOR,2007. p. 13)
Há séculos o excluído social/ periférico/subalterno/favelado foi apresentado
a sociedade através da literatura e grande mídia por aspectos não representativos da
identidade cultural do seu povo.
Alavancados por uma imagem negativa e ofensiva culturalmente viram por
séculos contarem aquilo que caracterizaram como história da margem, um discurso a
visão do elitizado que pouco vivenciou ou pretendeu retratar o dia-a-dia de uma
favela/periferia, sem contar e exaltar os reais protagonistas destes espaços, os quais a
séculos leram /ouviram uma história não representativa da sua história,do seu povo,
do seu lugar , uma espetacularização essencialmente da violência e da pobreza,
propagação que agora é rasgada e reconstruída pela própria periferia.
Bosi (2002) menciona em, “A escrita e os excluídos”, a relação que há entre a
escrita e o excluído social, sob dois pontos de vista, o primeiro sob a abordagem do
excluído social ou marginalizado como “objeto da escrita” e a segunda do excluído
social enquanto sujeito do processo simbólico, posição a qual este assume ao ganhar
voz com o papel de protagonista ao narrar a própria história.
O excluído social saiu da posição de objeto o qual era caracterizado diante de
narrativas e temáticas como subalterno, inferior, ocupando sempre situações dentro
da narrativa que julga a margem sobre estereótipos criados juntamente com a visão
eurocêntrica. E passa a contar a sua versão da própria história, como protagonista ou
a história real do seu povo. Ou seja, o individuo passa a desmitificar o ideal de
"coisificação" socialmente destinado a ele e passa a se inserir como sujeito ativo e
construtor de sua própria história.
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Uma das primeiras vozes a ecoar pelo Brasil, advinda da favela foi a de
Carolina Maria de Jesus nos anos 60 com a obra, Quarto do Despejo, a autora serve
não só como influencia para a literatura periférica, pois é uma das primeiras
protagonista da inversão de lugar que agora ocupa um destaque maior dentro do
cenário brasileiro com a literatura representativa do periférico.
Outro exemplo notável , e já plenamente urbano, de culturas de fronteiras é o de uma favelada, apenas alfabetizada, que registrou o seu cotidiano em um diário pungente, publicado em 1960 com o titulo de Quarto de despejo. Falo de Carolina de Jesus, cuja obra foi traduzida para as principais línguas do mundo, reproduziu-se amplamente e atingiu um milhão de exemplares. O romancista Alberto Moravia prefaciou a edição italiana. Sem dúvida, um tento difícil de repetir-se. ( BOSI, 2002, p 261)
Dentro dessa perspectiva onde o excluído assume o papel de “Sujeito da
História”, Bosi (2002) acredita que, através da representatividade e inscrição, “é
possível identificar , na dinâmica dos valores vividos em contextos de pobreza, certas
motivações que levam à atividade social da leitura e da escrita”(BOSI, 2002, p. 261) .
Esse pensamento traduz parte do ideal defendido pelos escritores atuais da periferia,
ao dessacralizar a literatura tida especialmente ainda sob um ponto de vista antigo
para os cultos.
A literatura nos dias atuais circula à margem do centro, tendo como
prioridade a palavra (a qual antes praticamente eles não tinham acesso), seja ela
escrita por quem for, cânone, periférico, literatura negra ou afro-brasileira, literatura
brasileira ou estrangeira e outras, bebe-se de todas as fontes, o cenário é aberto para a
cultura, a arte, a expressão, mas sobretudo ao conhecimento e à voz da própria
periferia perante o que escreve e lê.
Diante dessa inversão de posição da representatividade do periférico na
literatura como sujeito protagonista do seu discurso literário, passou-se a notar a
importância que essas produções exercem no cenário brasileiro; percebe-se que ainda
a mídia e até a academia resumem a temática dessas produções a um foco limitado, a
violência presente nesses espaços, associando-a exaustivamente a uma realidade
restrita, que não é a sua única face. Novas produções periféricas demonstram de
forma mais abrangente um novo ângulo de pensar esses discursos literários.
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3. O PODER DE VOZ, UM GRITO A LITERATURA E A RESPOSTA A LETRA DE FORMA
(...)Enquanto discutíamos sobre o assunto surgiu a palavra sarau,e ninguém sabe por que, até porque a palavra era estranha a todos nós. Acho que todos já tinham ouvido esta palavra, mas conhecer o significado a fundo, acho que ninguém conhecia. (VAZ,2006. Cooperifa.p. 88)
A palavra que causou estranheza ao ser pronunciada em uma reunião sobre a
idealização de montar um espaço para encontros poéticos na periferia ainda em sua
fase inicial hoje se caracteriza como uma das palavras de grande referência cultural
deste espaço. O início dessa articulação literária para as margens demonstra através
dos relatos e discursos que contam a implantação dessa proposta o quanto os
idealizadores romperam como ao paradigmas sociais, desde a visão da favela como
lugar de não produção intelectual , quem dirá apresentar a sociedade e expandir a
própria cultura.
Esses eventos eram chamados de “salões” – muito provavelmente pelo ambiente que ocupavam. Chegaram como tradição importada da Família Real, em 1808, e imediatamente ganharam terreno no Rio de Janeiro. Era o local onde se reunia a Corte, e onde também deveriam acontecer os encontros para regar o cérebro da aristocracia e dos nativos que sonhavam ganhar um certo ar europeu.São Paulo só entrou no circuito mais tarde, quando perdeu os bares provincianos e seus ricos fazendeiros de café começaram a fazer de tudo para afrancesarem-se. Outros salões menos ricos (ou esnobes), mas sempre elitistas, também apareceram na cidade naquele período.A partir dos anos 1940, a dinâmica da “elite culta” mudou e os ricos saraus foram escasseando. A organização desse tipo de evento mudou de mãos e coube aos intelectuais universitários realizá-los – em bares, porões, praças, teatros, geralmente espaços underground esfumaçados e com convidados com o copo cheio de bebida. As drogas também aumentavam a viagem literária.Sem saber de nada disso, eu e o Pezão, numa fria noite de outubro de 2001, criamos na senzala moderna chamada periferia o Sarau da Cooperifa, movimento que anos mais tarde iria se tornar um dos maiores e mais respeitados quilombos culturais deste país. (VAZ, 2006. Cooperifa Antropofagia Periférica, p. 89)
Com essa cena literária a periferia paulistana vive um advento da literatura
por meio dos mais diversos saraus e projetos culturais desenvolvidos na periferia,
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saraus que se inspiraram na ação de Sérgio Vaz, que no início do século XXI deu
origem ao Sarau Cooperifa. Atualmente é desafiador expressar em números reais
quanto saraus acontecem na cidade de São Paulo, principalmente na zona sul, dados
que demonstram uma relação intensa e propagadora da literatura com as margens.
Literatura esta responsável por esse vírus literário que contaminou as
periferias paulistanas. Quando fez parte da imaginação da sociedade a periferia
devorando crônicas, poesias e livros? A dessacralização da literatura foi um
importante passo para a expansão da literatura periférica/marginal e da circulação
da literatura nacional e estrangeira nos encontros literários, pois a comunidade
passou a ver a literatura como algo acessível com a utilização da linguagem coloquial
bem próxima do real idealização pretendida pelos modernistas de 22, que se
consagra com a literatura marginal.
No dia 17 de Setembro de 2011, o jornal Folha de São Paulo, com reportagem
de Fábio Victor, exibia no impresso a chamada “Cooperifa mistura todos os versos e
leva até estrangeiro a periferia”, a reportagem faz um recorte do sarau da cooperifa
como espaço literário e a relação com os freqüentadores e visitantes, dois deles
escritores periféricos, o Ademiro Alves (Sacolinha) e o Binho, ambos idealizadores de
outros saraus em suas periferias. A reportagem apesar de notória e relevante
restringiu-se em maior parte a um único sarau, além de anunciar tardiamente o que
outro sites ligados ao movimento da própria periferia já exaltam a alguns anos, a
exemplo do site Periferia e Movimento que faz uma crítica a esta matéria:
O jornal lido basicamente pela elite paulistana Folha de S. Paulo deste sábado, 17, deu um espaço especial à Cooperifa e a outros saraus que rolam na periferia de São Paulo. É fato: esse reconhecimento mostra que estamos vivenciando a maior revolução cultural das últimas décadas no Brasil. Aqui no blog, já mostramos isso há bastante tempo. (2011.09.19.Periferia e Movimento)
Em sequência a esta crítica o Blog periferia e movimento faz um panorama de
alguns saraus que vem ocorrendo na região metropolitana, mapa que traz
informações e acesso a esses espaços como pode ser visualizado abaixo:
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(imagem retirada do site Periferia e Movimento, Disponível em:
http://periferiaemmovimento.wordpress.com/2011/09/19/na-folha-cooperifa-e-literatura-periferica-
sao-destaques-no-jornal/)
A leitura incentivada por esses lugares, em grande parcela por meio da
oralidade, nos saraus, rompe as barreiras do livro, com as poesias que encantam ou
com as palavras que indignam, levando pessoas a se tornarem leitores, de todos os
tipos de livros, sem se importar com o nome do autor, mas sim com o que o conteúdo
pode proporcionar.
A Literatura Marginal juntamente com seus escritores propicia a periferia, o
contato com a cultura, criando e registrando a sua própria cultura. A expressão
literária que ganhou uma nova roupagem com as produções periféricas ecoa a voz
dos excluídos não só do mercado editorial, mas da própria sociedade.
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A periferia/favela deixa de ser vista só como um lugar de violência para um
lugar também de produção cultural, seja pelos diversos tipos de artes, que ainda não
tem o respeito e o seu espaço na sociedade, mas aos poucos esta conquistando o que
lhe é de direito. Exemplo dessa notoriedade são os escritores/poetas periféricos, o
hip – hop, o rap, os grafiteiros e as outras artes em geral ganhando destaque
nacional.
Sérgio Vaz é um dos maiores responsáveis por esse acontecimento, que
juntamente com seu amor a leitura e arte cidadã, propaga por onde passa a
desmistificação do livro como algo sagrado e distantes das pessoas, ao acreditar
nesta como poder de transformação social, este é um dos fatores que contribui para o
motivo para ele ser considerado um dos nomes mais importantes na cultura e na
literatura periférica na cidade de São Paulo.
A literatura que ganhou destaque na periferia através da circulação dos livros
nesses projetos sociais, hoje ganha grande sustentação da própria escrita advinda da
periferia nos saraus literários, através deles que os textos chegam ao conhecimento
da comunidade, como também por intermédio destes que muitos talentos são
revelados, nos concursos literários, ou nas antologias que são lançadas durante o ano.
Essa literatura abre portas, não só para a literatura de forma geral, mas
principalmente para leitura, a periferia que antes era vista como um lugar de não
produção cultural, hoje após uma década ganha notoriedade nos principais jornais
da cidade e serve de estudos devido o advento de transformação social por meio do
espaço literário.
3.1. Os Saraus como mola propulsora do incentivo à leitura nas margens
Um cenário de leitura, produção, e socialização textuais se forma na periferia,
alguns dos responsáveis por tais acontecimentos desde o início desse século, na
transformação de imagem da periferia são eles, os escritores e ativistas periféricos:
Ferréz, Alessando Buzo, Sérgio Vaz, Sacolinha, Marcelino Freire, Allan da Rosa,
Rodrigo Círiaco, Binho, os rap‟s Gog e Dexter, e outros juntamente com as
colaborações das jornalistas, Jessica Balbino e Eliane Brun, a antropóloga oriunda da
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periferia, Érica Peçanha do Nascimento e a crítica, Heloísa Buarque de Hollanda.
“Agora, todas as quartas-feiras, guerreiros e guerreiras de todos os lados e de todas
as quebradas vêm comungar o pão da sabedoria que é repartido em partes iguais,
entre velhos e novos poetas sob a bênção da comunidade” (Vaz, 2008).
Os saraus movimentaram a cena literária da periferia, e as atividades que a
priori eram apenas para a periferia, já ultrapassa aos limites do asfalto. Com os
saraus modernos, o novo quilombo cultural, a literatura “freqüenta os casarões,
bibliotecas inacessíveis a olho nu, e prateleiras de livrarias que crianças não alcançam
com os pés descalços” (VAZ, 2008).
A nova imagem da periferia após uma década de iniciativas culturais, a leitura
presente na vida das pessoas, fotografia pouco circulada na sociedade, as quais
raramente têm um espaço de divulgação na mídia. Na mesma semana 01 a 09
novembro de 2012 em que a periferia paulistana foi noticiada sobre os atentados
violentos entre policias e traficantes, e a morte de dezenas de inocentes, acontecia a
5ª Amostra Cultural da Cooperifa , em comemoração aos 11 anos de atividades
culturais.
A amostra que iniciou com a Semana de Arte Moderna da periferia chega ao
5º ano, com nove dias de socialização artística, Mia Couto foi um dos convidados, ao
fim de sua participação deu a seguinte declaração, "Estou saindo do Sarau da
Cooperifa, sem sair. É impossível sair desse lugar".
A receptividade de várias pessoas para participar em uma laje do bate-papo
com o autor, já havia surpreendido o escritor Moçambicano, pelas perguntas e
interação ao falar sobre seus livros, sua vida enquanto biólogo e jornalista e no
combate da liga libertação nacional. Mas ao chegar ao Sarau Cooperifa, deparou-se
com uma escrita simples e direta e viveu um dos momentos mágicos que os
freqüentadores do sarau costumam rotular: “ninguém entra no boteco do Zé Batidão
impunemente. Sai de lá transtornado pelo que viveu – ou melhor, sai transformado.
O que acontece no boteco do Zé Batidão toda quarta-feira muda cada um de nós e
muda o Brasil”, afirma a Jornalista Eliane Brum (2008), o encontro histórico na
periferia com Mia Couto foi descrito por Vaz como um encontro muito além da
literatura.
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Na segunda-feira, 12 de Novembro de 2012, o escritor Moçambicano Mia
Couto, em São Paulo na entrevista ao site africa21digital,disse:“Acredita-se que a
periferia pode dar futebolista, cantor, dançarino. Mas, poeta? No sentido que o poeta
não produz só uma arte, mas pensamento.” Até uma década atrás era uma piada
falar em escritor da periferia, pois se pensava a partir de estereótipos disseminados
socialmente que na periferia não existia seres “pensantes”, é tanto que muitos ainda
nos dias atuais demonstram em sua face o estranhamento ao ouvirem falar em
leitores e escritores na periferia. Como demonstra a citação o autor questiona
justamente essa não aceitação da produção periférica e acusa no decorrer da sua fala
essa exclusão social como uma prática racista.
A nova face de representação cuja literatura está ajudando a construir
modifica a vergonha que muitos moradores tinham de dizer “sou da periferia
paulistana”, por sofrer discriminação e muitas vezes perder oportunidades de
trabalhar ao revelar o endereço de residência, comenta o poeta Vaz em suas
entrevistas, agora tudo mudou. Assim todas as quartas-feiras: “professores,
metalúrgicos, donas de casa, taxistas, vigilantes, desempregados, mecânicos,
estudantes, jornalistas, advogados, entre outros, exercem a sua cidadania através da
poesia”. Os saraus recebem nos dias atuais gente de todos os lugares, é um ambiente
que não se restringe a periferia, e rompe o impasse entre centro e periferia.
Através da criação da sua própria cultura a literatura marginal contemporânea
ajuda gente que nunca havia lido um livro, escrito um poema, assistido a uma peça
de teatro se interessar por arte e cultura. Assim o incentivo a leitura vai se
perpetuando dentro e fora da comunidade, Toninho que é poeta, leva seu sobrinho
Luís Miguel, de 11 anos para os Sarau Cooperifa toda quarta-feira, influenciado pelo
gosto da literatura de cordel, Miguel já possui 8 poesias de sua autoria, o menino é
admirado pela confiança ao se apresentar e pelas rimas que faz.
Quem surpreende também ao público a todas as quartas-feiras, no Sarau da
Cooperifa, é dona Edtih, há alguns anos deficiente visual, começou a recitar pela
primeira vez na periferia ao 63 anos, ao entrevista-la em 2010 o site Vivafavela
afirma: “Dona Edith é amante de poesias e literatura desde criança, na cidade de
Pirapora, no Estado de Minas Gerais, onde nasceu, era fascinada pelos livros. Como
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não podia comprá-los, pedia emprestado ou pegava na biblioteca da cidade”. Essa
senhora que hoje está na casa dos 70 anos, mesmo apaixonada por poesia desde a
infância ganhou a oportunidade de ser ouvida por meio do sarau e atualmente é uma
das mais belas figuras reais que descreve esse ambiente mágico na periferia.
“Não existe arte pela arte, é preciso ser um artista cidadão. Você não pode ir ao teatro e depois não comentar sobre o que viu. A arte tem que causar reflexão”, argumenta Vaz. “O artista tem um compromisso com a verdade. Por que o que ele é? É um fotógrafo do cotidiano. Eu quero ser isso, eu quero ser um representante do meu cotidiano e quero ser lembrado por isso”, completa. (INZINNA, 2011, p. 9)
Os encontros literários idealizados por esses poetas periféricos se estendem
aos mais diversos ambientes e configura-se na sociedade como uma nova atividade
artística e literária para o povo.
Candido, ao argumentar sobre a relação que há entre autor, obra e público
indica os efeitos de um sobre o outro:
A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é um produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo. (CANDIDO, 2006, p.84)
O crítico enfatiza o poder de transformador da leitura e respectivamente da
literatura no ser humano, demonstrando que a mesma não passa sem agir em que à
lê.
A Literatura Periférica é um conteúdo coletivo, a qual possibilita através dos
seus escritores que essa ganhe uma proporção maior, a qual não se restringe
unicamente a leitura destes conteúdos, mas se amplia para formação crítica dessas
pessoas, diante do seu direito a arte e cultura de uma forma geral. É o que afirma
Araújo, em, Manifesto pelos direito de ler:
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A dignidade e a capacitação no ato de ler e escrever não são privilégios de classe ou grupos, mas antes se inscrevem como exercício de direito e justiça, necessidade básica e inalienável de cada indivíduo. (ARAUJO 2006, p.17)
Richard Bamberger 2006, argumentar que, “A leitura é dos meios mais
eficazes de desenvolvimento sistemático da linguagem e da personalidade”.
Acredita-se que mesmo com a literatura produzida na periferia possuindo uma
grande influência da oralidade e do hip-hop, ela pode atuar no desenvolvimento da
linguagem da comunidade, assim como incentivo educacional no âmbito escolar,
fazendo com que uns voltem a estudar e outros não desistam da formação escolar,
fator que ocorre já há algum tempo nessas comunidades.
O prazer pela leitura chegou à periferia, e este contribui atualmente para o
nascimento de escritores, poetas, cidadãos que se expressam pro mundo ao narrarem
sua própria história. Bamberger pontua que:
Os livros, portanto, não tem importância menor hoje do tiveram no passado, mas ao contrário. São o que têm sido há séculos: portadores de conhecimento de uma geração para outra ( e dificilmente poderão ser ultrapassados por qualquer outro meio de transmissão das descobertas intelectuais), pedras angulares da vida intelectual e emocional. Para os jovens leitores, os bons livros correspondem às suas necessidades internas de modelos e ideais, de amor, segurança e convicção. Ajudam a dominar problemas éticos, morais e sociopolíticos da vida, proporcionando –lhes casos exemplares, auxiliando na formulação de perguntas e respostas correspondentes ( e a pergunta é, por is mesma, uma formação básica de confrontação intelectual). (BAMBERGER 2006, P. 11)
A literatura marginal, ao propagar a idéia do artista-cidadão, proporciona a
periferia uma nova perspectiva de vida e uma chance de contar a sua história, de não
terem vergonha da onde moram, de se orgulharem de quem são no escrito ou não.
A poesia, gênero textual que sempre enalteceu os ambientes e floresceu as
almas, dar agora voz a comunidade, pessoas que eram silenciadas pela literatura,
pelos jornais, pela elite que os descrevia como bem entendia, pessoas que se
mantinham em seus lugares e as vozes que tentavam falar, não conseguiam espaço,
esse era/é o interesse da classe dominante, a periferia sem voz.
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Porém a face mudou, e mesmo assim muitos ainda discriminam esse tipo de
arte, acreditam no discurso ainda antigo, o qual no livro, O que faz o Brasil, Brasil? ,
afirma Roberto da Matta, “Numa sociedade onde na há igualdade entre as pessoas, o
preconceito velado é forma muito mais eficiente de discriminar as pessoas de cor,
desde de que elas fiquem no seu lugar e “saibam” qual ele é.
A periferia mudou a face, ao ter outras alternativas de vida, oportunidades,
que sempre lhe foi negada. E estas acontecem através da literatura e da cultura de
forma geral, principalmente através da poesia contemporânea que atinge os mais
diversos ambientes como na década de 60/70, quando a Literatura Marginal, que
deslanchou com a classe média frente a ditadura e ganhou destaque nacional.
A presença de uma linguagem informal, à primeira vista fácil, leve engraçada e que fala da experiência vivida contribui ainda para encurtar a distância que separa o poeta e o leitor. Este, por sua vez, não se sente mais oprimido pela obrigação de ser um entendido para se aproximar da poesia. (HOLLANDA, 2007, P.9)
Essa argumentação é um retrato do que acontece na periferia paulistana , ao
romper a distância que havia do seu povo com o livro ao não tê-lo como algo
sagrado, fazendo com que a poesia e a literatura, seja um elemento crucial para a
vida das pessoas por intermédio da leitura, “ há uma poesia que desce agora da torre
de prestígio literário e aparece com uma atuação que, restabelecendo o elo entre
poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e público” (HOLLANDA, 2007. P. 10)
A literatura marginal é mais do que uma narrativa sobre essas pessoas é a
identificação coletiva diante do que ler, seja pela forte retratação do cotidiano, ou
pelos flashes da realidade social, fatos do dia-a-dia que inspiram textos, ou pela
linguagem informal que caracteriza a linguagem utilizada pela comunidade,
possibilitando uma aproximação, maior com as cenas vivenciadas no ambiente em
que vivem.
Candido diz que, a “Literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer
uma certa comunhão de meio expressivos (a palavra, a imagem, e mobiliza
afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de momento, para
chegar a uma comunicação.” (p. 147).
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Comunicação que hoje divulga através das obras de ficção e de não ficção um
novo lado da periferia, a real vida de um povo, ou a imagem que queriam que fosse,
seja nos jornais, na televisão, nos livros, falem ou não, a periferia junto com a
literatura vive outro momento.
4. Considerações Finais
A importância dessa nova face para a periferia contribuiu nos mais diversos
aspectos sociais, devido a atuante ação, nas escolas públicas de São Paulo, que
comunga também desse acontecimento da periferia, ao levar essa literatura para o
ambiente escolar.
Ao pesquisar sobre a leitura de textos da Literatura Marginal na escola, a
mestranda em Letras, Mei Hua Soares, diz que a leitura de textos em sala de aula
trouxe um dado importante:
Tanto os textos de literatura marginal-periférica como os demais gêneros narrados nas experiências (reportagem, obras de relato e testemunhais) apresentam uma característica comum já apontada antes: todas são muito próximas do real. O que pôde ser percebido ao longo das leituras é que existe no jovem aluno uma necessidade de verdade em relação ao texto literário. (SOARES, 2008, P.111)
A autora argumenta que na própria experiência de sala de aula, pode ser
comprovado em turmas de idades diferentes, através de reportagens ou obra de
relatos testemunhais como as obras de não-ficção, há uma nítida confirmação do
valor da obra e consequentemente validação da experiência literária.
As leituras dos textos marginal-periféricos em sala de aula propiciaram um conjunto de apontamentos, reflexões, debates e embates, enfim, uma ação crítica durante e após a leitura literária. Pôde-se verificar que determinadas obras despertam em grande parte dos alunos uma projeção – ou identificação. O ato individual de fruição torna-se uma experiência coletiva com a formação de uma “comunidade leitora” (ou “comunidade interpretativa”, como vimos em Fish) que se identifica com determinados textos. (SOARES, 2008, P. 114)
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Para Soares essa identificação através desses processos de leitura se dá porque
as obras marginal-periféricas, apesar de não serem registros da realidade, eles
apresentarem fatos efetivamente ocorridos, retratam uma forte relação com o real,
um real periférico, trazendo para a literatura e para o texto fatos fictício, mas
verdadeiros, um novo realismo.
Bosi, menciona em, “A escrita e os excluídos” sobre a relação que há entre
ambos, a primeira sob a abordagem do excluído social ou marginalizado como objeto
da escrita e a segunda do excluído enquanto sujeito do processo simbólico.
É possível identificar, na dinâmica dos valores vividos em contextos de pobreza, certas motivações que levem à atividade social da leitura e da escrita. Trata-se de descobrir o leitor-escritor potencial. O que me move pensar o excluído como agente virtual da escrita, quer literária, quer não literária. Como o excluído entra no circuito de uma cultura cuja forma privilegiada é a letra de forma? Rastreando os passos do itinerário ( isto é, de um de um desses itinerários), consigo ver melhor a zona de intersecção que se entende entre a situação de classe e a escrita. Nesse horizonte, atos de ler e de escrever podem converter-se em exercícios de educação para a cidadania. (BOSI, 2002, P.261)
Esses fatores afirma o que acontece na periferia Paulistana e a função social
que vem sendo exercida através dessa literatura, mesmo diante da relação que se
evidencia para a sociedade, classe x escrita, lugar x pessoa. A literatura permite o
acesso ao conhecimento, a cultura e até ao resgate da própria dignidade enquanto ser
humano visto pelo social.
Essa função social ganha espaço nesta pesquisa através do poeta / cronista
Sérgio Vaz e do Sarau Cooperifa, levando a refletir a importância e a disseminação da
literatura nesse espaço e do próprio poeta como porta voz dessa comunidade.
Naquela casota de periferia tomei consciência de que os excluídos do “milagre econômico (negros e mestiços de subúrbio, filhos de migrantes com baixa escolaridade, condenados a marcar passo na sua condição de pobreza) ansiavam, em primeiro lugar, pelo acesso ao conhecimento). E mediante o conhecimento, ter vez e voz em um mundo que se fecha para os que conseguiam transpor o limiar da escrita. (BOSI 2002, P. 263)
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A ideia que nasceu como levar o conhecimento para as pessoas se concretizou,
mas ao atingir o lugar de destaque social, o qual é crescente, a sede de conhecimento,
de oportunidade vivido não só pelo Jardim Guarujá , mas pela periferia de São
Paulo, mais especificamente na Zona Sul, demonstra o que a poesia e a literatura
pode fazer na vida das pessoas, é o afirma Grossmann, “ A função da literatura não
resulta num mero pôr a dormir, mas num despertar” (p.13), e a literatura despertou a
periferia para si mesma diante do mundo.
Além da importância cultural, da desmistificação da literatura, da
aproximação da arte para povo, algo que sempre lhe foi negado ou inacessível, os
poetas e autores desses espaços oferecem não só a esses locais, mas à vários outros a
necessidade dessas iniciativas, uma possível transformação de vida, através da
criação da própria cultura e acesso ao conhecimento. O que acontece hoje na Zona
Sul Paulistana e em outras partes do Brasil, por meio da Literatura Marginal
Contemporânea, Literatura Divergente ou de Lite-rua, “não, não é Alice no país das
maravilhas, mas também não é o inferno de Dante. É só o milagre da poesia. Quem
odeia ler agora?” (Sérgio Vaz).
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