Anais Da Biblioteca Nacional v. 129 2009

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Biblioteca NacionalVol. 129 2009

Anaisda

Rio de Janeiro 2011

Repblica Federativa do Brasil Presidenta da Repblica Dilma Rousseff Ministra da Cultura Ana de Hollanda Secretrio-Executivo Vitor Ortiz

Anais da Biblioteca Nacional, v. 127, 2010 Editor Marcus Venicio Toledo Ribeiro Conselho Editorial Carla Rossana C. Ramos, Eliane Perez, Irineu E. Jones Corra e Marcus Venicio T. Ribeiro Reviso Bruna Cezario, Mnica Auler e Rosanne Pousada Capa e Projeto Grfico Glenda Rubinstein Diagramao Conceito Comunicao Integrada Fotografia Cludio de Carvalho Xavier e Hlio Mesquita

Fundao Biblioteca Nacional Presidente Galeno Amorim Diretora-Executiva Loana Maia Diretora do Centro de Processamento Tcnico Liana Gomes Amadeo Diretora do Centro de Referncia e Difuso Mnica Rizzo Coordenadora Geral de Planejamento e Administrao Gabriella Ferraz Coordenador Geral de Pesquisa e Editorao Anbal Bragana Coordenadora Geral do Sistema Nacional de Bibliotecas Pblicas Elisa Machado

SumrioApresentao ............................................................................................5 Proler: um estudo sobre a sua implantao ..........................................9 Joo Batista Coelho As polticas para a biblioteca, o livro e a leitura nos governos fernando henrique cardoso e luiz incio lula da silva: breve estudo comparativo ........................57 Carla Rossana Chianello Ramos O livro de horas dito de d. fernando Maravilha para ver e rezar........................................................................... 83 Vnia Leite Fres O livro no ocidente medieval ............................................................137 Ana Lcia Merege O surgimento da encadernao e da dourao ................................151 Cida Mrsico A histria da escrita: uma introduo ..............................................167 Ana Lcia Merege Preciosidades do Acervo Hortus Nitidissimis..............................................................................177 Monica Carneiro e Luciana Muniz

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Biblioteca Nacional (Brasil) Anais da Biblioteca Nacional. Vol. 1 (1876). Rio de Janeiro : A Biblioteca, 1876v. : il. ; 17,5 x 26 cm. Continuao de: Anais da Biblioteca Nacional de Rio de Janeiro. Vols. 1-50 publicados com o ttulo: Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro. ISSN 0100-1922 1. Biblioteca Nacional (Brasil) Peridicos. 2. Brasil Histria Fontes. I. Ttulo. CDD- 027.581 22 ed.

ApresentaoAs bibliotecas existem desde que os homens comearam a colecionar textos, no importando o seu suporte material. J na Antiguidade elas se tornaram instrumentos de poder do Estado, mas se enobreceram com o tempo, ao ganharem o status de lugar de memria. Com a formao das sociedades de massas, criaram-se as primeiras bibliotecas pblicas, como tambm cresceram as bibliotecas particulares. So incontveis e inestimveis os servios por elas prestados cidadania, ainda mais agora na era digital, em que eles se diversificam e surpreendem. Foi no curso dos sculos XIX e XX, como um dos elementos constitutivos dos modernos Estados nacionais, que as bibliotecas nacionais se consolidaram no Ocidente como casa de memria. E em torno de uma trplice misso: colecionar e preservar o patrimnio bibliogrfico do pas, em especial os livros e peridicos; trat-los com os recursos da biblioteconomia e proporcionar o amplo acesso, sob diferentes meios, s informaes contidas nesses magnficos acervos. Criados em 1876, na memorvel gesto de Benjamim Franklin de Ramiz Galvo, os Anais, vale lembrar, so o mais antigo veculo de cumprimento pela Biblioteca Nacional desta terceira misso, alm de ser hoje um dos principais smbolos da Instituio. Nas ltimas dcadas do sculo passado, porm, a misso da Biblioteca Nacional foi ampliada devido incorporao, pela rea federal da cultura, de novas atribuies. Duas delas, que andavam um tanto esquecidas, dizem respeito ao cuidado com as bibliotecas pblicas e com a democratizao do livro; outra, indita no mbito federal, promover no pas a leitura, sem a qual, afinal, o livro no tem sentido. Como efeito do processo de democratizao do pas, os novos dirigentes nacionais da Cultura passaram a se inquietar com o fato de que boa parte da populao brasileira no lia ou no sabia ler. Em 1992, 22 anos depois de a UNESCO lanar a Carta do Livro (Todo ser humano tem direito leitura), 36,9% dos brasileiros, segundo registra o primeiro dos estudos publicados neste volume, eram analfabetos funcionais, ou seja, capazes de identificar signos e nmeros, mas no de compreender os textos e raciocnios formados a partir deles. E em 2010, segundo dados recentes do IBGE, 9% da populao acima de dez anos de idade ainda analfabeta, um dos fatores que levam o Brasil, sexta economia mundial, a ocupar a 84 posio no ndice de desenvolvimento humano (IDH). E isto no obstante o fato de que, em decorrncia de polticas econmicas e sociais adotadas nas duas ltimas dcadas, mais de 9 milhes de brasileiros tenham sido retirados da misria, 30 milhes da pobreza e 10 milhes do analfabetismo.

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A criao, em 1987, da Fundao Nacional Pro-Leitura, que passou a abranger, na Secretaria de Estado da Cultura, a Biblioteca Nacional e o Instituto Nacional do Livro (INL), foi o primeiro sinal dessa inflexo. Extinta poucos anos depois pelo Governo Collor, a Pro-Leitura cederia seu lugar, em 1990, Fundao Biblioteca Nacional (FBN), que absorveu o antigo INL, e o Sistema Nacional de Bibliotecas Pblicas e criou o Programa Nacional de Incentivo Leitura (Proler). O SNBP, que havia sido criado no Governo Geisel, passou coordenao central da Biblioteca Nacional, mantendo-se a coordenao regional das bibliotecas pblicas estaduais. Como cabeas do sistema, essas instituies teriam a incumbncia de modernizar as cerca de 4 mil bibliotecas municipais ento existentes no pas, cri-las onde no havia e integrar, de fato, a rede. J o Proler, idealizado por Eliana Yunez, mestre em Letras e com ps-doutorado em Leitura pela Universidade de Colnia, e pelo ento presidente da FBN, Affonso Romano de SantAnna, destinava-se a valorizar a leitura no pas. Inspirado em educadores como Paulo Freire, o programa deveria constituir uma rede nacional de unidades promotoras de prticas leitoras, na qual teriam papel-chave os mediadores de leitura. Proler e SNBP, bem como o Departamento Nacional do Livro, criado em substituio ao INL, integravam o projeto Biblioteca Ano 2000, lanado por Affonso, que firmava na FBN o trip biblioteca livro leitura. O Proler foi recebido, segundo Affonso, com indiferena pela grande maioria das prefeituras municipais e com estranheza por alguns editores, escritores e bibliotecrios, que no acreditavam em algo chamado formao do leitor. Outros achavam que no cabia Biblioteca Nacional assumir a nova atribuio. Em 2002, com o Proler j sob outra orientao, o Governo Fernando Henrique criava o projeto Uma Biblioteca em Cada Municpio, ao qual se seguiram, no Governo Lula, o programa Livro Aberto, que aumentou o nmero de bibliotecas no pas, e o Plano Nacional do Livro e da Leitura. Segundo Galeno Amorim, seu primeiro dirigente e atual presidente da Fundao Biblioteca Nacional, o PNLL materializa, desde sua primeira verso, todas as vises e estratgias que compem as Diretrizes Bsicas da Poltica Nacional do Livro, Leitura e bibliotecas 2005-2022, conduzindo hoje dezenas de programas e projetos nessas trs reas. Esse rico momento inicial da ao do Estado num segmento decisivo da cultura o objeto de dois estudos publicados neste volume: Proler: um estudo sobre a sua implantao, de Joo Batista Coelho, ps-graduado em Formao de Leitores, e realizado com bolsa do Plano Nacional de Apoio Pesquisa (PNAP), da FBN, e A poltica para a biblioteca, o livro e a leitura nos governos FHC e Luiz Incio Lula da Silva: breve estudo comparativo, de

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Carla Rossana Chianello Ramos, bibliotecria especializada em gesto pblica e hoje coordenadora de Publicaes Seriadas, na FBN. Tambm efetuado com recursos do PNAP o artigo O Livro de Horas dito de D. Fernando maravilha para ver e rezar, de Vnia Leite Fres, professora titular de Histria Medieval na Universidade Federal Fluminense e coordenadora do Scriptorium-Laboratrio de Estudos Medievais e Ibricos. H dois anos a FBN lanou, com a Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, belssima edio fac-similar desse livro, que pertenceu Real Biblioteca de Portugal. Agora publicamos este estudo que, a despeito de sua abrangncia e densidade, a autora ainda considera preliminar. Organizado em cinco partes, trata, sobretudo, das relaes do historiador com as imagens, do contedo e procedncia desse cdice, das polmicas em torno de sua identificao, datao e destinatrio, dos padres de visualidade do mundo cristo medieval e das relaes entre imagem e texto nos livros de horas. Compem ainda este volume dos Anais trs comunicaes apresentadas por tcnicos da Biblioteca Nacional na jornada O Livro: uma Trajetria, organizada por esta Casa em 2009. A conservadora e restauradora Cida Mrsico, mestre em Histria da Arte e especialista em Cincia da Conservao, Restaurao e Encadernao, apresenta, em O surgimento da encadernao, um panorama da histria desse ofcio artstico, alm de oferecer um glossrio e um roteiro para se identificar estilos de encadernaes; a bibliotecria Ana Lcia Merege, mestre em Cincia da Informao e tcnica em documentao na Diviso de Manuscritos, assina O livro no Ocidente Medieval e A histria da escrita: uma introduo, redigidas com rigor conceitual e didtico. Em Preciosidades do Acervo, a historiadora Luciana Muniz e a bibliotecria Monica Carneiro, da Diviso de Iconografia, revelam aos leitores uma das mais belas obras de botnica do sculo XVIII, Hortus Nitidissimis Omnem Per Annum Superbiens Floribus Sive Amoenissimorum. Florum Imagines, do artista Georg Dionysius Ehret e do horticulturista Christoph Jacob Trew. Em trs volumes (a Biblioteca Nacional s tem o primeiro e o terceiro) e com 188 pranchas gravadas e coloridas a mo por diversos artistas, pertenceu biblioteca do conde da Barca, que em 1818 foi arrematada em leilo pela ento Real Biblioteca. Marcus Venicio RibeiroEditor

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PROLER: um estudo sobre a sua implantaoJoo Batista CoelhoGraduado em Produo Cultural pela Universidade Federal Fluminense e ps-graduado (lato sensu) em Formao de Leitores pelas Faculdades Integradas de Jacarepagu. editor da Revista Biblios Informativo

Resumo Esta monografia um estudo de caso sobre a implantao do Proler Programa Nacional de Incentivo Leitura pela Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. O estudo registra os cinco primeiros anos de ao do Programa e lana um olhar sobre as implicaes polticas, o alcance e as contribuies do Proler para as reflexes pedaggicas, tendo por base, em especial, os depoimentos de pessoas que se envolveram diretamente na criao do Programa. Palavras-chave: leitura, livro; poltica pblica; Biblioteca Nacional do Brasil; Proler; Programa Nacional de Incentivo Leitura. Abstract This monograph is a case study about the implementation of Proler Reading Incentive National Program by the National Library of Brasil, in Rio de Janeiro. The study records the first five years of the Programs action, and briefly analyzes Prolers political implications, scope, and contributions to the pedagogical studies, based specially on the testimony of people who involved themselves directly in the Programs creation. Keywords: reading, book; public policy; National Library of Brazil; Proler; Reading Incentive National Program.

Esta monografia foi elaborada com recursos do Programa Nacional de Apoio Pesquisa da Fundao Biblioteca Nacional.

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Introduo* O objeto deste estudo a implantao do Proler (Programa Nacional de Incentivo Leitura), rgo gerido pela Fundao Biblioteca Nacional (FBN), implantado no primeiro semestre de 1991, durante a gesto na presidncia de Affonso Romano de SantAnna. Entre os diversos problemas que afetam a nossa nao, a ausncia do hbito de ler um dos mais graves. A leitura exerce uma funo essencial e decisiva para o salto civilizatrio de uma nao. No h pas plenamente desenvolvido sem populao leitora. Na sociedade contempornea, a leitura tornou-se necessidade bsica. Do simples operrio que precisa ler instrues e ordens de servio ao grande empresrio diante de um importante contrato; do eleitor na hora do voto ao presidente do pas que precisa ler seus discursos e estar atento a tudo o que outorga; dos pais ao acompanhar a educao dos filhos aos pensadores dos sistemas educacionais, todos em uma sociedade civilizada so obrigados a utilizar mltiplas formas de leitura e interpretao de textos (livros, jornais, revistas, computadores, relatrios, pareceres, documentos, tabelas, correspondncias, clculos e uma infinidade de formas escritas). Em meio necessidade de se promover a leitura a uma populao que pouco l, assistimos, desde o sculo passado, a um tmido crescimento das aes em prol da leitura. So projetos que, com frequncia, se repetem nos mtodos, mas, pela boa imagem que produzem, raramente so questionados quanto eficcia. Para se erradicar a ausncia do hbito de ler, no basta colocar o sujeito diante do livro. Essa mudana se processa de maneira muito mais complexa. Caminha por questes relacionadas tanto ao campo afetivo quanto s questes de ordem poltica. Transita pelo universo da interdisciplinaridade, indo da pedagogia sociologia, da lingustica psicologia, passando pelas letras, comunicao e diversas reas das cincias humanas. Atento a essas questes, o Proler foi pensado para ser um programa de estmulo leitura que no se limitasse criao de bibliotecas e distribuio* minha irm, Graa Coelho, in memoriam, e a meus filhos, Joo Alberto e Teresa Coelho Agradecimento Aos funcionrios da Coordenao de Pesquisa e Editorao da Fundao Biblioteca Nacional pela pacincia que tiveram comigo, diante de tantos percalos e atropelos; a todos os entrevistados, que gentilmente disponibilizaram parte de seu tempo, contribuindo, significativamente, para este estudo, e aos amigos Vera Machado e Francisco Tebaldi, que se envolveram intensamente no debate sobre os diversos aspectos da formao de leitores e na reviso dos originais desta monografia.

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de livros. Implantou uma nova viso sobre a leitura e voltou suas aes para a capacitao de recursos humanos, formando uma rede nacional de mediadores de leitura. Gerido pela Fundao Biblioteca Nacional, atuou mediante sistemas de parcerias e voluntariado. Sua coordenao nacional estabeleceu-se no bairro de Laranjeiras (Rio de Janeiro), na Casa da Leitura, inaugurada em agosto de 1993. Este estudo privilegiou os cinco primeiros anos de existncia do Proler (1991 a 1996), quando o programa esteve sob a gesto de seus criadores. Sabe-se que, para se formar pblico leitor no pas, necessrio combater problemas bsicos como o analfabetismo absoluto e o analfabetismo funcional, pois sem educao no se formam leitores. Mas, paralelamente, h que se pensar na formulao de polticas de estmulo leitura que sejam realmente eficazes e importante retirarmos da prpria vivncia histrica as solues para enfrentarmos o problema. Olhar para o passado, como aqui proposto, deve ser visto como um exerccio de reflexo crtica, que pode possibilitar redirecionamentos de condutas e, em consequncia, o desenvolvimento de aes mais eficazes no momento presente. Dessa forma, o presente trabalho de pesquisa, ao propor um registro do passado, tentou no se reduzir apenas a uma contribuio para a preservao da memria. Ao se debruar sobre um perodo recente, tendo como objeto de pesquisa um programa que foi implantado em meio falncia do Governo Collor, e que ainda assim logrou xito, constri a possibilidade de uma reflexo sobre o caminho que vem sendo percorrido no processo de formao de leitores em nosso pas. Metodologia A proposta desta pesquisa, ao ter como base um estudo de caso, foi construir um registro histrico. Caso todo e qualquer resultado de uma ao provocada pelos sujeitos a qualquer tempo, podendo se dar no campo do real ou do fictcio. Sua extenso permite-nos abordagens amplas ou pontuais na sucesso cronolgica em que se produz. Constri-se a partir de narrativas, que so a exposio do acontecimento, ou da srie de acontecimentos, utilizando a palavra, escrita ou falada, ou a imagem. Vem acompanhado de particularidades que nos permitem olhares diversos, que se estendem pelo campo da interdisciplinaridade. Marlene Grillo, professora titular do Departamento de Ps-Graduao em Educao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, ressalta que o estudo de caso, alm de possibilitar um amplo exame e intercmbio de experincias, resulta numa oportunidade de se obter mltiplas anlisesAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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a partir de conhecimentos, experincias, perspectivas particulares e muitas vezes originais, sem necessariamente se chegar a uma soluo nica e convergente. 1 Este estudo de caso concentrou-se na anlise de depoimentos orais e documentos escritos. Como se trata da construo de um registro sobre um Programa instaurado em perodo recente, tornou-se possvel a coleta de depoimentos mais precisos. As entrevistas foram gravadas. Foi organizado um roteiro que privilegiou abordagens de tpicos semelhantes para todos os entrevistados da equipe inicial do Proler, a fim de se perceber mais claramente as diferenas e semelhanas no pensamento de cada indivduo envolvido. No entanto, questionamentos sobre aspectos mais pontuais das aes individuais no foram esquecidos. O registro construdo a partir das fontes orais sempre suscitou discusses sobre sua confiabilidade. 2 Mas, como se trata de um estudo em que a maior parte dos envolvidos ainda est em plena atividade e foi possvel obter uma boa quantidade de registros em papel sobre o assunto, tornou-se possvel uma avaliao mais pormenorizada da fala dos envolvidos. A metodologia adotada, por se tratar de um estudo de caso e pelas especificidades que cada caso sempre carrega, afastou-nos da possibilidade de adotar mtodos prontos ou que resultassem em cpias fiis de modelos alheios. Estudos de caso sempre resultaram na construo de um caminho mais original para a pesquisa. Foi realizada tambm uma pesquisa bibliogrfica mais ampla com certo carter exploratrio, que identificou enfoques diversos na literatura sobre a formao de leitores. Alguns princpios tericos que inspiraram o Proler tiveram uma investigao mais apurada. Vale ressaltar ainda que as abordagens sobre as aes que visem ao estmulo leitura no devem prescindir de um olhar sobre o conjunto de fatores histricos. Assim, ao longo desta pesquisa, no se desprezaram os fatores externos que envolveram a conjuntura embrionria do Proler. Logo, fez parte das intenes deste trabalho desenvolver um relato sobre as aes governamentais que, porventura, tenham interferido de forma direta, de maneira positiva ou negativa, no desenvolvimento do hbito de ler no pas. I O incio de tudo 1. O pas do Proler O Proler um programa de abrangncia nacional, desenvolvido pela Biblioteca Nacional, que visa estimular o hbito de ler. Promoveu mltiplas

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aes em todo o territrio brasileiro, construindo, de fato, uma Poltica Nacional de Leitura. O Programa deu seus primeiros passos em 1991, num momento de grandes conturbaes na vida social da nao, quando a Presidncia da Repblica era ocupada por Fernando Collor de Mello (1990-1992). A crise nacional que se estabeleceu naquele momento ia alm das repercusses advindas com as medidas econmicas adotadas pelo Governo. Os desgastes moral e poltico do presidente tinham origens em decises desastrosas nos mais diversos campos. O setor cultural havia sido abruptamente atingido. Os principais rgos gestores de cultura, logo nos primeiros meses do Governo Collor, haviam sofrido modificaes radicais; alguns tinham sido reestruturados, outros, extintos. As reestruturaes mexeram em projetos de vital importncia, tornando-os, em muitos casos, inoperantes. A Fundao Nacional para Educao de Jovens e Adultos (Educar) um desses casos. Foi extinta e logo em seguida ressuscitada pelo Ministrio da Educao do mesmo governo, como o Programa Nacional de Alfabetizao e Cidadania (PNAC) criado com o objetivo de financiar iniciativas dos setores pblico e privado na rea de ensino escolar. As comisses formadas para a sua administrao no tiveram qualquer gerncia sobre os recursos que deveriam a ele ser destinados. Abandonado pelo governo, sem verba, no conseguiu sobreviver ao segundo ano de existncia. Fundaes nacionais como as de Artes (Funarte), de Artes Cnicas (Fundacen), do Cinema Brasileiro (FCB), a Pr-memria e a Pr-leitura tambm foram extintas. Em decorrncia dessas extines, o Instituto Nacional do Livro (INL), que integrou a Fundao Pr-memria de 1981 a 1984 e, dessa data em diante, em conjunto com a Biblioteca Nacional, passou a compor a Fundao Prleitura, tambm foi atingido. O Instituto havia sido criado em 1937 e, entre suas diversas funes, ao longo de 53 anos de existncia, teve a misso de implantar bibliotecas, propiciar meios para estimular a produo e a distribuio de livros em todo o territrio nacional e formar pblico leitor. A lei n 8.029, de 12 de abril de 1990, que extinguiu todas essas fundaes, determinou que as atribuies, o acervo, as receitas e as dotaes oramentrias da Fundao Pr-leitura fossem transferidos para a Biblioteca Nacional. Parte das funes e atribuies do INL tambm ficou ao seu encargo, entre tais a misso de promover a leitura no pas. Somente em 3 de setembro do mesmo ano, por meio do decreto n 99.492, a Biblioteca assumiu legalmente a natureza jurdica de fundao. Com destinao de recursos prevista no oramento anual da Fundao Biblioteca Nacional (FBN), mas necessitando de parcerias no mbito dos setores pblico (em nveis federal, estadual e municipal) e privado para expandir suas metas, o Proler, diante da conjuntura que se apresentava, correu srios riscosAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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de naufragar. Mas tal no se deu; o projeto consolidou-se como um exemplo de iniciativa em prol da construo de prticas leitoras pelo pas afora. 2. Novos rumos para a Biblioteca Nacional A gesto de Affonso Romano de SantAnna frente da Biblioteca Nacional pode ser considerada uma das mais singulares. No somente por ter conseguido, em meio a uma complexa conjuntura poltico-administrativa e econmica, sanar uma srie de graves problemas estruturais da Instituio que j vinham se arrastando por longas datas. Nem por ter conseguido colocar o precioso acervo no lugar onde sempre deveria ter estado, em nvel de importncia nacional e internacional. Mas por ter conseguido imprimir e expandir um olhar sobre a funo da Biblioteca Nacional que ia alm das vises hermticas sobre o seu acervo. A leitura tornou-se o smbolo da dinamizao do conhecimento acumulado naqueles milhes de livros. Affonso, que j havia sido cogitado para ocupar a Secretaria de Cultura do Governo Collor e recusado a proposta como noticiado no Informe do Jornal do Brasil de 6 de novembro de 1990 , aceitou o convite para ser presidente da Biblioteca Nacional. Nomeado em 23 de novembro daquele ano, assumiu uma instituio cujo quadro era de desmonte fsico, moral e institucional. 3 Cinco anos depois, e um ano antes de deixar a presidncia da FBN, teve a oportunidade de ler no mesmo Jornal do Brasil que a Biblioteca Nacional fora eleita uma das trs instituies que melhor funcionava no Rio de Janeiro. Quando Affonso, que viria a ser o primeiro presidente da Fundao Biblioteca Nacional, assume, Eliana Yunes, sabendo das suas intenes de fazer uma gesto em que a leitura ocupasse um lugar de destaque, lhe apresenta a proposta para a implantao de um conjunto de aes de estmulo leitura a ser desenvolvido em nvel nacional. Para o presidente da Biblioteca, que havia estipulado como pauta de trabalho o Projeto Biblioteca Ano 2000, o qual se sustentava no trip biblioteca-livroleitura, a professora Eliana Yunes tinha o perfil ideal para participar da nova empreitada, pois detinha grande bagagem prtica e terica sobre o assunto. 3. De onde veio a proposta do Proler Em meados de 1985, Eliana Yunes havia deixado o cargo de assessora na Funarte para, a convite de Laura Sandroni, assumir a direo da Fundao Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). A passagem pela referida instituio enriqueceu sua bagagem no tocante organizao de projetos da formao de parcerias e captao de recursos execuo. O projeto Recriana, por exemplo, realizado a partir de umAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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convnio entre a FNLIJ e o antigo Ministrio da Previdncia e Assistncia Social (MPAS), foi responsvel pela implantao de 250 bibliotecas comunitrias no Brasil. Uma pesquisa coordenada por Eliana j havia traado um panorama sobre a necessidade de se estabelecer uma poltica nacional de estmulo leitura em nosso pas. Com o financiamento da Finep, conseguido em 1986, a pesquisa Por uma Poltica Nacional de Leitura, que havia sido iniciada na PUC, dois anos antes, com o apoio do CNPq e a participao de seus alunos, pde ter continuidade. A investigao implicou um segmento que mapeava o engajamento do Estado em favor da leitura e do livro desde o sculo XVIII. O recorte de um sculo 1889 a 1989 , de um Brasil j inserido no modelo republicano, teve no acervo da Biblioteca Nacional a sua base de averiguao. A busca se concentrou na legislao do Estado brasileiro que, porventura, pudesse ter contribudo, de alguma forma, para a formao de polticas em prol da leitura. Ao final de 1989, quando terminava sua segunda gesto na FNLIJ, agora engajada no projeto do Centro de Documentao e Pesquisa que havia implantado na Fundao, Eliana decidiu comear a se afastar dessa instituio e convidou Elizabeth Serra para assumir a direo. Nesse momento, ela havia optado por ampliar o campo de investigao da pesquisa e centrou-se em uma busca documental sobre o que havia sido feito e ainda se fazia em prol da leitura, do ponto de vista estatal, ou institucional, fora do pas. A pesquisa bsica, que ela define como em estado bruto, havia sido concluda em 1989 e foi contemplada, pela sua relevncia, com uma distino da Finep (que, poca, tinha uma rea importante dedicada somente educao). Eliana resolveu ento apresentar os resultados da pesquisa pelo mundo. Do final de 1989 at 1991, passou por vrios pases: Mxico, Espanha (Galcia), Chile, Bogot etc. A boa repercusso, evidenciada pelo reavivamento das discusses sobre a importncia de se desenvolver polticas de estmulo leitura, deu a ela entusiasmo para continuar suas apuraes sobre o assunto. O tema era comumente discutido por um amplo vis interligando educao e cultura, biblioteca e sala de aula, especializao e interdisciplinaridade etc. Ao final de 1990, resolveu partir para a Alemanha, a fim de aprofundar sua pesquisa. Fez um curso de aperfeioamento em Recepo e Literatura Infantil, na Universidade de Frankfurt, tendo como orientador Richard Bamberger. Durante esse perodo, manteve-se em contato com o Centro de Pesquisa em Literatura Infantil de Frankfurt. Bamberger, que havia sido diretor do Centro logo aps a sua fundao no incio da dcada de 1970, foi o fundador da cadeira de Literatura Infantil da PUC-Rio, em 1974.An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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Em seguida, Eliana vai para a Johannes Gutenberg-Universitt, em Mainz, e dali para Colnia onde, por um ms, ministra um curso sobre literatura brasileira. Nessa viagem, ela coletou dados sobre quem eram os grandes pesquisadores de leitura, identificou especialistas em histria da leitura, em pedagogia da leitura, entre outros, e decidiu-se por um ps-doutorado na rea. Em maro de 1991, ainda na Alemanha, quando j estava com todo o material reunido e comeando a escrever seu projeto, recebeu o convite de Affonso Romano de SantAnna, que havia sido o seu orientador de tese no doutorado, para implantar o projeto nacional de fomento leitura. O convite foi aceito, mas, como ainda havia uma forte ligao entre Eliana e a FNLIJ, ela preferiu que o projeto fosse fruto de um convnio entre essa instituio e a Biblioteca Nacional. Destarte, ao voltar para o Brasil, redigiu a proposta da FNLIJ, que se chamou: Para uma poltica nacional de incentivo leitura. Em 26 de maro, foi publicada no Jornal do Brasil a criao de um programa de incentivo leitura na FBN. Tinha como objetivo a estruturao de um plano de aes para transformar a realidade de pouca leitura no pas. Como se tornou muito complexa a proposta de instaurao de uma poltica, logo aos primeiros meses de atuao junto Biblioteca Nacional, Eliana repensou o ttulo, que passou a ser conhecido como Programa Nacional de Incentivo Leitura Proler. O programa tinha como objetivo a criao de uma rede nacional de unidades promotoras das prticas leitoras. Propunha uma ao interministerial e interinstitucional envolvendo governos estaduais, municipais, organizaes no governamentais, instituies acadmicas, bibliotecas, associaes comunitrias, empresas privadas, entre outros a fim de se alcanar os recursos e a estrutura necessria. O cerne da proposta era o resgate da cidadania atravs do livro e da informao, ou seja, promover, atravs da leitura e do acesso aos bens culturais, a incluso social. Propunha aes bsicas como a capacitao permanente de recursos humanos; a ampliao e a dinamizao de acervos; a estruturao de uma rede de informao sobre a leitura etc. 4 Como Eliana ainda se encontrava vinculada Funarte, foi solicitada a sua transferncia para a Biblioteca Nacional. Em 1 de agosto de 1991, ela passa a integrar, oficialmente, o quadro funcional da FBN, ocupando o cargo de Tcnica em Promoo e Divulgao Cultural. Alm disso, para poder se dedicar integralmente ao Proler, nesse mesmo ms, ela foi oficialmente liberada de seus compromissos pedaggicos junto ao Departamento de Cincia da Literatura, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, tambm, em setembro desse ano, foi liberada do exerccio de docncia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Para que fosse efetivada a sua cesso da UERJ, foi estabelecido um acordo para implantao de um ncleo pedaggico do Proler na referida Universidade.An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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Para efeito de titulao na Biblioteca Nacional, Eliana Yunes passou a responder como assessora especial da Poltica Nacional de Leitura. Em maio de 1991, com a visita do presidente Fernando Collor Biblioteca, o projeto passa a ter a chancela da Presidncia da Repblica, marco importante para o incio da estruturao do Proler. 4. Os primeiros passos A princpio, somente uma funcionria do quadro, que j estava na FBN h oito anos e j havia chefiado diversos setores, se envolveu com o projeto: a bibliotecria Marilia Amaral. Eliana e Marlia, inicialmente, tiveram que compartilhar uma nica mesa nas dependncias da Presidncia. Com a chegada dos demais membros da equipe, o Proler, com as dificuldades de instalao de novos setores no edifcio sede da FBN, foi acomodado em uma pequena sala do primeiro andar. Administrativamente o Proler ficou vinculado ao Departamento Nacional do Livro (DNL), porm reportava-se diretamente Presidncia da Biblioteca. A equipe inicial, formada para dar incio ao Programa, tinha seis pessoas. A coordenao executiva da equipe ficou com Francisco Gregrio Filho, egresso da extinta Fundao Nacional de Artes Cnicas (Fundacen). A presena de Gregrio foi fundamental para o Proler. No somente por assumir com dedicao mpar as desafiadoras atribuies, que no eram poucas, do cargo que se delineava, a fim de que Eliana pudesse estar mais livre para divulgar o programa e viabilizar parcerias em nveis nacionais e internacionais, mas tambm pela significativa colaborao que deu na construo metodolgica do Programa, tendo em vista a vasta experincia que possua no territrio da dramaturgia. O primeiro passo foi contatar, via correspondncia, cerca de 100 pesquisadores de literatura infantil e profissionais da rea com o propsito de se instituir um conselho para desenhar uma poltica nacional de leitura. Muitos no se pronunciaram; outros fizeram crticas severas, ressaltando a importncia do projeto, mas duvidando de seus resultados, em virtude da associao com o Governo Collor, que j se encontrava profundamente desacreditado pela populao brasileira. No geral, a iniciativa no foi bem vista pela grande maioria dos indagados. Eliana lembra que:Pessoas prximas, que atuavam na rea, cujas cartas eu guardo, disseram que eu estava embarcando numa canoa furada. Eu resolvi, ento, mudar de estratgia e no buscar aliana com as autoridades da leitura e da literatura infantil, que nessa poca j eram muitas.

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Vale lembrar que, na dcada de 1970, a literatura infantil j comeava a criar lastro, alcanando na dcada seguinte repercusso internacional. 5 Atravs do Instituto Brasileiro de Administrao Municipal (IBAM), conseguiu-se o endereo de todas as prefeituras do Brasil a fim de se estabelecer contato em nvel nacional. Em junho de 1991, foram enviadas s prefeituras municipais e governos estaduais correspondncias apresentando o Programa. Era a primeira tentativa de se perceber como se poderia agir e com quem se poderia contar nos mais diversos pontos do pas. Anexo ao ofcio de apresentao, encontrava-se um formulrio para as secretarias de Educao e profissionais correlatos. O questionrio buscava informaes sobre tipos de trabalho de formao de leitores que, porventura, estivessem sendo desenvolvidos no estabelecimento/localidade; a existncia de alguma parceria estabelecida nesse sentido; o nvel de abrangncia; bem como o aparelhamento cultural envolvido (quantas bibliotecas, cinemas etc.). Do total de quase 4 mil municpios contatados, apenas 75 responderam. As respostas foram as mais variadas; muitos manifestaram descrdito quanto eficcia de uma poltica nacional de leitura. A partir da, novos contatos foram feitos com aqueles que responderam. Apenas 20 ratificaram o interesse em participar do Programa. Paralelamente, diversas universidades, em variados pontos do pas, foram contatadas a fim de dar suporte para a realizao dos primeiros encontros do Proler. As universidades funcionavam como um espao agregador. Por serem instituies de grande visibilidade e credibilidade, atraam representantes das municipalidades vizinhas. A Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), em Vitria da Conquista, por exemplo, que foi parceira no primeiro encontro que o Proler realizou em outro estado, reuniu 23 pequenos e mdios municpios de suas proximidades. Via de regra, estabeleceu-se o seguinte modelo de parcerias: ficavam ao encargo das universidades e prefeituras o espao fsico, o transporte local, a hospedagem e a alimentao; o Proler arcava com as passagens areas, com o pro labore dos especialistas convidados, alm de fornecer todo o material pedaggico e de divulgao. medida que o Programa cresceu, as equipes que viajavam deixaram de ser compostas apenas de pessoal do Rio de Janeiro. Formou-se uma Equipe Brasil, que inclua profissionais de diversos pontos do pas. Destarte, atividades realizadas no Rio Grande do Norte, por exemplo, contavam com profissionais do Rio Grande do Sul, aproximando, respectivamente, especialistas como Tnia Rsing (RS) e Marly Amarilha (RN). O Programa tinha como objetivo interligar pessoas de todos os cantos do Brasil, produzindo trocas de experincias. Focava a diversidade scio-cultural e, tambm, as peculiaridades locais para promover a leitura.An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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Para a expanso do Programa que no primeiro semestre de 1996, quando se encerrou a gesto de Eliana Yunes, contava com 40 comits interinstitucionais, distribudos por 18 estados contou-se basicamente com o boca a boca e o apoio da mdia local. No havia verba para publicidade, mesmo sendo uma reivindicao permanente. Sua difuso nos meios de comunicao sempre dependeu de mdia espontnea. Maria Helena Ribeiro, tcnica em projetos, que passou a integrar a equipe do Proler logo ao incio, relembra que os veculos locais, nos municpios onde o Programa atuava, sempre faziam uma excelente divulgao:Os mdulos sempre agradavam muito e a a notcia ia se espalhando pela regio e agregando municpios das cercanias. As rdios faziam programas dedicados ao Proler, os jornais noticiavam; sempre queriam entrevistar as pessoas da equipe (...)

II Contextos que antecedem implantao do Proler 1. Educao e leitura traduzidas em nmerosA leitura tem sido, historicamente, um privilgio das classes dominantes; sua apropriao pelas classes populares significa a conquista de um instrumento imprescindvel no s elaborao de sua prpria cultura, mas tambm transformao de suas condies sociais. 6

Em um breve panorama da nossa realidade, perto do incio do Proler, encontramos um Brasil que se debatia com um alto ndice de analfabetismo. No incio da dcada de 1990, registravam-se aproximadamente 20 milhes de analfabetos absolutos entre 10 e 69 anos de idade. Nessa mesma dcada, atendendo a uma recomendao da UNESCO, o IBGE passou a auferir tambm o ndice Nacional de Analfabetismo Funcional (INAF). Definindose como analfabetas funcionais as pessoas acima de 15 anos que possuam menos de quatro anos de escolaridade (mesmo no se apurando se quatro anos seriam suficientes para garantir a alfabetizao funcional), o IBGE registrou, em 1992, o quantitativo de 35,5 milhes de analfabetos funcionais, ou seja, 36,9% da populao brasileira. Esse ndice no levava em considerao critrios como a capacidade de localizar informaes em textos de variados tamanhos ou a capacidade de ler nmeros (naturais, decimais etc.), e de fazer operaes matemticas usuais mais tarde eles passariam a ser analisados tambm. Cinco anos depois, em 1997, havia 34,5 milhes de analfabetos funcionais, o que, poca, representava 32% da populao. Em 1972, Ano do Livro, a UNESCO havia publicado a Carta do Livro, decretando que todo ser humano deveria ter direito leitura, ou seja, ter aAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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possibilidade de fruir o prazer que ela proporciona. A carta expressava que o acesso leitura deveria ultrapassar os limites urbanos, alcanando o campo.(...) onde h falta de ofertas de livros, toda escola ou comunidade deve possuir uma biblioteca, com pessoal qualificado e com verba suficiente para sua manuteno. 7

Dados do IBGE, projetados em seus anurios estatsticos, no ano anterior publicao da Carta do Livro, mostravam que, no Brasil, havia 2.516 bibliotecas, no se levando em conta o tamanho do acervo. Incluam-se a todos os tipos de bibliotecas: as universitrias, as especializadas e as populares pblicas e particulares. Concentradas nas capitais dos estados, existiam 785. Tomando-se o contingente populacional do pas de 95 milhes de habitantes, tnhamos uma mdia de 2,7 bibliotecas para cada 100 mil habitantes. Considerando-se apenas o quantitativo de bibliotecas de acesso irrestrito, geridas pelo poder pblico, existia 1,2 biblioteca para cada 100 mil habitantes. Para o conjunto total de moradores das 27 capitais das unidades federativas, existentes poca, a relao subia para 3,9 bibliotecas para cada 100 mil habitantes, quando considerados todos os tipos de bibliotecas (com acessos livres e restritos). O censo no possibilitava uma percepo sobre a realidade do campo no Brasil. Mas, sabendo-se que existiam 3.952 municpios no pas (dados de 1970), e que o total de bibliotecas fora das capitais era de 1.731 unidades e, levando-se em considerao que grande parte dessas bibliotecas, apesar de no estarem nas capitais, se concentrava nas cidades mais desenvolvidas, conclui-se que o acesso biblioteca no campo refletia uma realidade bastante cruel. A dcada de 1980 e o incio da seguinte foram marcadas pela retomada do processo democrtico no Brasil. O pas cresceu, mas, mergulhado numa crise financeira, pouco se fez para modificar o quadro acima descrito. O anurio estatstico de 1989, do IBGE, apresentando dados relativos a 1985, mostra que existia, nas redes pblica e privada, um total de 12.914 bibliotecas escolares. O conjunto de estabelecimentos de ensino pblico e privado somava 190.983 unidades escolares em todo o Brasil. 8 Conclui-se que existia, aproximadamente, uma biblioteca para cada 15 estabelecimentos de ensino fundamental.9 Em 1984, o nmero de bibliotecas pblicas, com acesso livre para a populao brasileira, era de 4.175. Nesse mesmo ano, a populao estimada alcanava 133 milhes de habitantes e o nmero de municpios j se aproximava de 4,3 mil. Apesar dos censos no informarem a quantidade de municpios, poca, que no possuam bibliotecas pblicas, percebe-se que esse quantitativo ainda era muito elevado, visto que os municpios mais desenvolvidos e com maiores contingentes populacionais sempre concentraram maior quantidadeAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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de bibliotecas pblicas. Segundo consta em Leitura no Brasil, leitura do Brasil, de Helena Bomeny, em 2003, 21% dos municpios brasileiros ainda no tinham bibliotecas pblicas. 10 Os dados sobre a produo de livros no mundo, divulgados pela UNESCO, demonstram que, em 1995, quando o Brasil j possua 160 milhes de habitantes, foram publicados 25.540 ttulos no pas. A Espanha, com uma populao quatro vezes menor que a nossa, publicou 48.467 ttulos, quase o dobro da produo brasileira. 2. Conquistas no decorrer do processo poltico Na dcada de 1970, sob os auspcios do milagre brasileiro, o aporte de capital estrangeiro, a ttulo de emprstimos para promover o desenvolvimento tecnolgico e industrial do pas, gerou consequncias nefastas para a economia durante a dcada seguinte. Os altos juros cobrados sobre a dvida externa implicaram um elevado endividamento do pas. A dvida pblica alcanou propores assustadoras na dcada de 1980, e o Brasil entrou num processo de estagnao econmica que agravou o quadro de distribuio de renda e riqueza. Apesar da crise econmica que se abateu sobre a Nao, reduzindo em muito os investimentos pblicos, o processo de redemocratizao possibilitou um maior debate sobre a nossa realidade. Essa dcada foi marcada por fortes mobilizaes populares. No final de 1983, surge um dos maiores movimentos de massa do pas: a campanha pelas eleies diretas para a Presidncia da Repblica. Mesmo tendo sido derrotada no Congresso, a emenda Dante de Oliveira, que instituiria as eleies diretas, o pleito presidencial, que aconteceu em janeiro de 1985, foi marcado por forte participao popular a fim de pressionar os membros do Colgio Eleitoral a votarem na chapa de oposio formada por Tancredo Neves e Jos Sarney, que representaria a possibilidade de ampliao do processo democrtico. Em maio de 1985, as eleies diretas foram estabelecidas e, paralelamente, ocorreram outras conquistas, como o direito de voto para os analfabetos. Ainda naquele ano foi oficializada a criao de uma Assembleia Nacional Constituinte a ser formada no pleito que se sucederia em 1986. O voto do analfabeto suscitou polmicas. Se, por um lado, alegava-se que, por no saber ler e escrever, seria limitada sua capacidade para desenvolver raciocnio crtico sobre o funcionamento da estrutura poltico-administrativa, por outro, destacava-se o fato de que, por viver em sociedade, convivia permanentemente com normas e condutas sociais e, naturalmente, deveria ter discernimento quanto s decises poltico-administrativas que o afetavam. As mobilizaes em torno da Assembleia Nacional Constituinte e a participao popular na elaborao da nova Constituio foram um marco no processo de retomada da democracia em nosso pas. A redao da Carta MximaAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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trouxe tona as discusses sobre as grandes complexidades da sociedade brasileira. O grande diferencial dessa Constituio, em comparao com as anteriores, foi o destaque dado ordem social, mediante a criao de um ttulo especfico Ttulo VIII, Da Ordem Social , que dava, inclusive, nfase educao, englobando tambm a cultura e o desporto. Promulgada em 5 de outubro de 1988, a Constituio ressalta, em seus Princpios Fundamentais (artigo 3), que constituem objetivos fundamentais da Repblica (...) erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais. No Ttulo III, artigo 23, atribui competncia Unio, estados e municpios, no sentido de proporcionar os meios de acesso cultura, educao e cincia. As mazelas na administrao poltica da sociedade e os altos nveis de desigualdade e excluso social tornaram-se ainda mais visveis durante a dcada de 1980 e passaram a ser alvo de campanhas e aes no governamentais. O Instituto Brasileiro de Anlise Scio-Econmica IBASE desenvolveu, sob a coordenao de Betinho, duas campanhas de amplitude nacional: A tica na Poltica (1989) e a Ao da Cidadania contra a Fome, a Misria e pela Vida (1993). Esta ltima, alm de mobilizar todos os setores da sociedade e contar inclusive com o apoio do poder pblico, em diversos nveis, representou, acima de tudo, uma denncia da inoperncia do Estado no sentido de tomar iniciativas para desenvolver polticas sociais eficazes que combatessem as desigualdades sociais. Dessa forma, a poltica de formao de leitores, que implicou na estruturao do Proler, no deve ser vista como um fato isolado dentro da conjuntura histrica nacional, apesar de suas singularidades no campo de atuao. Urgia, naquele momento, que diversos esforos fossem empreendidos a fim de mudar o lastimvel quadro scio-cultural que se apresentava. Os altos ndices de analfabetismo absoluto e funcional s poderiam ser revertidos se houvesse esforos em nvel federal, estadual e municipal, como rezava a Constituio. Affonso Romano de SantAnna, que sempre se mobilizou, junto com a coordenao do Proler, pelos corredores do Planalto, a fim de reunir, em prol do Programa, o maior nmero de ministrios, ressalta:Mas, mais do que isto, esforamo-nos de maneira at ousada para fazer chegar aos diversos presidentes da Repblica com quem tivemos contato [Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique], que a questo da leitura tinha que ser algo ao nvel da segurana nacional. Ou seja, tinha que ser um projeto da Presidncia e uma ao interministerial. Essa questo, portanto, transcendia o Ministrio da Cultura e o Ministrio da Educao. 11

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3. O que se fez pela leitura no pas Antes da iniciativa do Proler, outras experincias foram desenvolvidas no bojo das polticas pblicas voltadas para o segmento da leitura e da formao de leitores. Assim se deu, por exemplo, em 1937, quando o Governo Federal criou o Instituto Nacional do Livro (INL). A deciso, que partiu de Gustavo Capanema, quando era ministro da Educao no governo ditatorial de Getlio Vargas, objetivava a publicao de obras de interesse para a cultura nacional. Dessa forma, estabeleceu-se como meta prioritria a organizao de um dicionrio e de uma enciclopdia que registrassem os valores nacionais. A elaborao e publicao da Enciclopdia Brasileira e do Dicionrio da Lngua Nacional ficaram sob a coordenao do escritor e pesquisador Mrio de Andrade. A poltica desenvolvida por Capanema centrava esforos tambm na criao de bibliotecas pblicas e dava especial ateno ao fortalecimento do mercado editorial, que era pouco desenvolvido quela poca. 12 As dificuldades de desenvolvimento do mercado editorial, que j eram uma constante na histria do pas, podem ser notadas nas palavras de Monteiro Lobato, dirigidas, em carta, ao recm-nomeado presidente da Repblica, Washington Lus (1926-1930), 11 anos antes das medidas de Capanema:Trata-se duma triste realidade que at hoje no mereceu o menor olhar de simpatia dos nossos homens de governo o livro. V. Exa. sabe que o Brasil vive atolado at as orelhas na ignorncia, como sabe que s um instrumento existe capaz de contrabater a ignorncia o livro. Mas o livro no Brasil vtima de uma verdadeira perseguio, dando at a entender que o Estado contrrio sua expanso e o considera perigoso. Hoje o livro s acessvel s classes ricas, e no andar em que vai, nem a elas, acabando por figurar nas vitrinas das casas de joias, como objeto de luxo. (...) Podemos sem receio de contestao afirmar que o Brasil a terra por excelncia do livro caro. Por qu? Primeiro, porque o imposto que grava o papel e mais matria-prima que entra na sua composio um imposto feroz, e alm de feroz, criminoso, porque recai sobre o desdobramento do custo da cartilha de maior voga entre ns; por esse clculo se v como a quota do papel onera uma cartilha. 13

No conjunto das iniciativas, Capanema objetivava o estmulo produo nacional de livros, melhorando sua qualidade e promovendo a queda nos custos, alm de facilitar a importao de livros. Desta forma, o Governo passou a comprar livros das editoras para do-los s bibliotecas pblicas. Paralelamente, passou a incumbir-se tambm da publicao de livros didticos, uma medida que culminou, inclusive, em 1938, na criao da Comisso Nacional do Livro Didtico. 14 As iniciativas governamentais que se sucederam duranteAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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a existncia do INL (de 1937 at sua extino, em 1990), como a Fundao Nacional de Material Escolar (Fename), em 1967, e o Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD), em 1985, todas voltavam suas aes principalmente para a criao de bibliotecas e distribuio de livros didticos. Fundamentais e de grande valia foram essas iniciativas para o estmulo leitura no Brasil. Mas poucas fugiram a esse modelo, no implementando prticas novas. Somente a partir da dcada de 1970 veremos aes mais diferenciadas, advindas principalmente de iniciativas no governamentais, como a Fundao Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Apesar de no se afastar da necessidade bsica de fomentar o processo de implantao de bibliotecas, nas diversas parcerias que estabeleceu, a FNLIJ buscou atingir pblicos antes esquecidos. Assim, criou minibibliotecas em favelas, hospitais, fbricas e outros locais; investiu na formao de professores e bibliotecrios; realizou oficinas, cursos, seminrios; promoveu programas de leitura destinados s crianas que no frequentavam a escola etc. A FNLIJ desenvolveu parcerias com diversas entidades pblicas e privadas, realizando projetos como A Ciranda de Livros, em pareceria com a Hoescht e a Fundao Roberto Marinho, que distribuiu livros e incentivou a literatura infantil e juvenil. Outras poucas iniciativas, buscando novas linhas de ao, aconteceram no pas. Vale aqui ainda destacar a Associao de Leitura do Brasil, criada em 1981, numa parceria com a Unicamp, aberta a quem estivesse interessado em estudar e discutir questes relativas leitura. Tal iniciativa vem reunindo pesquisadores, professores, estudantes, bibliotecrios, jornalistas, editores, livreiros, historiadores etc. Sua trajetria tem sido marcada pela realizao de cursos, ncleos de pesquisa que enfocam a leitura do ponto de vista de diferentes reas do conhecimento, congressos, seminrios e jornadas. Destaca-se em suas atividades a realizao do Congresso de Leitura do Brasil (COLE), que vem sendo realizado, bianualmente, desde 1980, na Unicamp. Implantado poucos meses aps o incio do Proler, em 1991, o projeto Leia Brasil, que at 2001 foi um programa exclusivo da Petrobras, tambm merece destaque. O projeto criou um sistema de bibliotecas volantes montadas em caminhes-ba. Os caminhes adaptados levavam um acervo de cerca de 20 mil livros para as escolas desprovidas de bibliotecas. Percorriam 32 municpios do Rio de Janeiro, So Paulo e Minas Gerais. Essas bibliotecas no atendiam somente s escolas de localidades mais carentes, mas tambm s grandes escolas dos centros urbanos mais desenvolvidos, que fossem desprovidas de programas de incentivo leitura. Alm do trabalho com as escolas, as bibliotecas volantes ocupavam as praas das cidades. O Leia Brasil se uniu ao Proler para que este desenvolvesse um trabalho de capacitao com os professores das escolas que receberiam os caminhes.An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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O objetivo era preparar esses professores para que, quando das visitas das bibliotecas volantes, o projeto produzisse melhores resultados. Tambm eram realizadas atividades de estmulo leitura, tais como contao de histrias, encontros com os autores, crculos de leitura, apresentao de teatro, msica e exposies. Observando-se as linhas de ao empregadas em prol da leitura que foram desenvolvidas no Brasil, vamos encontrar no Proler o projeto que mais se diferenciou em propostas e aes. O sentido e a aplicabilidade dados leitura no se restringiram ao universo das palavras. As prticas de leitura foram alm do texto, exploraram mltiplas linguagens: pintura, cinema, dana etc. Os espaos para promoo da leitura foram os mais variados: praas pblicas, estaes de transportes urbanos, hospitais, escolas, entre outros. O alcance do programa era amplo: ia das atividades desenvolvidas na favela do Pereiro no bairro de Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, nas proximidades da Casa da Leitura ; inclua a criao, em parceria com o Governo do Acre, de casas de cultura; envolvia consultorias para a rede municipal de bibliotecas do Rio de Janeiro ou atividades nas livrarias da cidade e chegava s prticas promotoras de leitura, desenvolvidas em pequenos municpios de regies longnquas do pas, que possuam tradies locais bem diferenciadas. Projetos foram desenvolvidos em parceria com a Rede Ferroviria Federal para a implantao do Trem da Leitura, onde aes foram desenvolvidas, tanto nas estaes ferrovirias urbanas como nos vages dos trens, em estados como o Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paran. Projetos em conjunto com o Ministrio da Marinha elaboraram a criao de bibliobarcos para o rio So Francisco e partes da Amaznia. No Ministrio da Justia e nas secretarias de segurana pblica estaduais desenvolveram-se aes nos presdios. Com a Secretaria de Meio Ambiente montou-se um projeto piloto no Jardim Botnico do Rio de Janeiro e projetos para serem realizados em parques ecolgicos. Com o Ministrio da Sade, elaboraram-se programas de leitura nos hospitais. At nos quartis o Proler entrou, realizando programas de leitura tanto para os soldados como para os oficiais. Os mapas ilustrativos das aes do Programa em todo o territrio nacional mostram que, em 1996, no momento em que a equipe criadora se desliga de sua coordenao, aproximadamente 30 mil colaboradores e cerca de 300 municpios j haviam sido mobilizados pelo Proler. Vale destacar, em relao a esses dados, que o primeiro nmero refere-se ao total estimado de agentes de leitura e que o segundo leva em considerao todos os municpios que foram envolvidos, no somente os municpios-sede. Normalmente as aes se irradiavam do municpio que sediava o ncleo pedaggico para outros nos arredores. Como existiam 96 municpios-sede j mobilizados poca, levou-se em considerao que o alcance do projeto seria,An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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no mnimo, trs vezes maior. Esse fator multiplicativo era, no entanto, bem reduzido, pois comumente o Programa chegava a se expandir para mais de cinco municpios das cercanias, chegando em alguns casos, como no ncleo de Vitria da Conquista, a mais de vinte. Orgulhoso dos resultados alcanados, Affonso Romano de SantAnna observa que o Programa foi de fato um marco na histria da formao de leitores no Brasil. Ele declara:No tenho dvida nem vaidade alguma ao afirmar que a histria da leitura no Brasil tem na criao do Proler o seu divisor de guas. Quase vinte anos depois de sua criao, cerca de quinze anos depois que deixei a FBN e que a equipe original do Proler de l saiu, em qualquer recanto do pas de Passo Fundo a Rondnia, de Uberlndia a Macei, de Cuiab a Fortaleza sempre se encontram pessoas que tiveram sua vida modificada pelo Proler e que continuaram a trabalhar apesar das distores impingidas pela administrao central. Verifica-se tambm que centenas de ncleos esparramados pelo territrio nacional prosseguiram por conta prpria seu trabalho, tentando superar a descontinuidade administrativa. 15

III Pedagogia em processo 1. No que se acreditava Pensar uma poltica de estmulo leitura para um pas que sempre amargou o baixo ndice de letramento de sua populao seria, sem dvida, um grande desafio. Ao ser convidada para implantar o Proler, Eliana redigiu um projeto que somava esforos mltiplos e que no era fechado em si mesmo. Ela no acreditava na eficcia de modelos prontos. Sabia que deveria evitar o velho estilo da poltica de gabinete, caso contrrio o projeto poderia estar fadado a no atingir seu potencial transformador. Props um trabalho de equipe do qual todos deveriam participar ativamente, inteirando-se e discutindo todo o processo. Sugeriu, inclusive, um modelo de administrao descentralizado para que fossem possveis sua expanso e autonomia em nvel nacional que, segundo a unanimidade dos depoentes, foi muito bem planejado e executado por Francisco Gregrio, o coordenador do Proler. A linha de ao do Programa no se centrou no trabalho de difuso da literatura infantil. Havia a preocupao de se realizar um trabalho que fosse mais transformador. Suas aes se voltaram para a formao de leitores e mediadores adultos: pais, professores, bibliotecrios, profissionais das mais diversas reas (cineastas, msicos, comerciantes etc). Havia o entendimento de que, para se formar novas geraes de leitores, no bastavam dar s crianas e aos jovens o acesso ao livro, mas, prioritariamente, inserir mudanas naAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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mentalidade das pessoas a quem cabia o papel de conduzir e transmitir os hbitos vigentes aos futuros adultos. A experincia de Yunes na FNLIJ a fez perceber mais claramente as complexidades do sistema educacional no tocante leitura. Por isso, uma das bandeiras do Proler era a desescolarizao da leitura. Ela destaca que:(...) lidar com criana e literatura algo muito fcil. Criana ama literatura, adora histrias, ama narrativas. uma relao quase que ontolgica, intrnseca, a relao do homem com a palavra narrada, com a narrao. No entanto, ao final das quatro primeiras sries de escola, as crianas comeam a se distanciar, perdem o gosto pelo livro, pela leitura. nesse momento que a leitura deixa de ser bota no colo e conta uma histria bonita, deixa de ser livro bonito, passa a ter prova, comea a ter professor perguntando sobre as figuras de linguagem existentes nos textos, falando sobre o uso dos qus, dos pronomes relativos ou substantivos etc.

Na conjuntura pedaggica do pas, muito pouco se fazia pela leitura, e o que se fazia e a maneira como se fazia no vinham contribuindo de forma eficaz para a formao de leitores. No entendimento geral da equipe do Proler, o modelo utilizado nas escolas para aproximar os alunos da leitura estava fadado ao fracasso. Alm de ser mal aproveitada como veculo de instruo, no resultava numa atividade prazerosa de construo do conhecimento.Era [a leitura] conduzida de maneira muito estreita, sendo confundida com ensino de gramtica, reduzida ao vis do certo e errado. 16 A leitura nas escolas no era vista como uma possibilidade de se explorar imaginrios, como algo capaz de despertar reaes subjetivas, mesmo quando carregada de objetividade em suas mensagens. 17 (...) isso eliminava toda a sua atratividade e, consequentemente, no fazia com que os estudantes se sentissem estimulados a lev-la para alm da vida acadmica. 18

O caminho escolhido para se desenvolver o Programa foi sair da escola. Evitar a linha de ao mais frequente de centrar seu foco unicamente na vida escolar, que vinha se repetindo ao longo das polticas de formao de leitores em nosso pas. Sair da escola no significava, porm, a anulao de sua importncia no processo de formao de leitores, mas, sim, romper com os mtodos usuais. Vale ressaltar que o Proler atuou em conjunto com a Secretaria Nacional de Ensino Bsico (Seneb) a fim de articular, compartilhar e desenvolver aes de promoo da leitura no mbito da educao bsica.

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Mas buscava-se, naquele primeiro momento da poltica que estava por ser construda, a descoberta, a partir de novas vivncias, de maneiras qualitativamente mais eficazes de se apresentar a leitura. Procurava-se estimular essas descobertas a partir de processos participativos com os mais diversos tipos de mediadores de leitura. Era preciso mudar a forma de se relacionar com a leitura, transformar metodologias que j estavam cristalizadas. Dessa forma, o objetivo do Programa, no primeiro momento, foi, sem desvalorizar o papel da escola na funo de promover leitores, apresentar uma leitura que no estivesse associada obrigao escolar. Desejava-se cativar o leitor em potencial, nos mais diversos segmentos sociais, para depois, ento, numa segunda etapa do Programa, se voltar para dentro da escola, mas a, j levando outras noes e fundamentaes sobre o ato de ler, a partir de reflexes elaboradas nos trabalhos desenvolvidos em cada ncleo pedaggico construdo. Eliana diz:No concentrar suas aes nas escolas, nesse primeiro momento, alm de ser uma atitude inovadora, era um ato estratgico, uma forma de se sensibilizar os profissionais de educao medida que o projeto amadurecia.

Apesar da enorme presena de professores nos encontros e mdulos organizados pelo Proler, isso no representava uma contradio no tocante aos princpios tericos do Programa que propunham a desescolarizao. Yunes lembra que a participao desses profissionais e de todos os que participavam dos encontros e seus desdobramentos sempre foi espontnea.A maior parte dos frequentadores eram professores sim e isto era algo excelente porque queramos envolv-los a partir de seus desejos e interesses e no por uma convocatria especfica. (...) A presena dos professores nos encontros era importante porque o intuito tambm era lhes mostrar que a escola poderia ter leitura com alegria, que instruir-se deveria ser algo feliz, no apenas uma obrigao.

Poderia suscitar dvidas tambm a participao do Proler no programa de implantao dos Centros Integrados de Atendimento Criana (CIACs), projeto do Governo Collor que criava espaos para a educao fundamental em tempo integral. Nessa parceria, o Proler chegou a atuar emitindo parecer tcnico que repensava as dimenses fsicas das bibliotecas dos centros, ampliando-as de 70 m2 para 400 m2. As demais atividades que seriam desenvolvidas pelo Proler nos CIACs seguiam as linhas similares de atuao do Programa, mas nem chegaram a se concretizar devido queda do Governo Collor. Eliana ratifica que o projeto pedaggico do Proler, em sua totalidade de aes, sempre foi de desescolarizao:An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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A escola entrou como uma instituio social idntica a um museu, hospital, associao comunitria; idem as bibliotecas. O que fizemos foi no pensar a leitura como prtica apenas escolar, instrumental. (Alfabetizao coisa bsica, mas de que serve se quem l nem entende o que l?). A leitura era apresentada como uma prtica de vida em linguagens e suportes diferentes.

No tocante atuao das bibliotecas escolares no processo de formao de leitores, o Proler ressaltava a necessidade de mobilizao e capacitao de recursos humanos a fim de que as bibliotecas escolares pudessem atuar de forma mais dinmica e, desde cedo, j ir desmitificando nos alunos a viso reinante de que as bibliotecas so espaos privilegiados para gente culta. O objetivo era apresentar a biblioteca para a comunidade escolar como um espao democrtico de troca de ideias e conhecimento, produzir um espao de prazer e assim fortalecer os hbitos de leitura junto aos estudantes. A biblioteca escolar no deveria ser vista pelos mediadores de leitura da escola (professores e bibliotecrios) apenas como um lugar que disponibilizava informao e conhecimento, mas, prioritariamente, atuar no sentido de formar gostos e produzir conscincia crtica. Alguns anos depois, o Manifesto da IFLA (Federao Internacional das Associaes e Instituies Bibliotecrias), em 1999, inspirando-se no manifesto que a UNESCO havia publicado em 1994, e com a chancela desta, veio a falar dessas questes. Isso mostra o carter precursor do Proler. O manifesto, direcionado s bibliotecas escolares, fala que seriam objetivos da biblioteca escolar, entre os diversos pontos abordados: oferecer oportunidades de vivncias destinadas produo e ao uso da informao voltadas ao conhecimento, compreenso, imaginao e ao entretenimento; proclamar o conceito de que a liberdade intelectual e o acesso informao so pontos fundamentais formao de cidadania responsvel e ao exerccio da democracia; (...) incentivar a cooperao entre professores, gestores experientes na rea escolar, administradores, pais, outros bibliotecrios e profissionais da informao e grupos interessados da comunidade. 19

O Proler no adotou a prtica de procedimentos verticalizados. Havia traado apenas as linhas gerais para o seu plano de ao, apesar de ter objetivos bem claros. As novas condutas deveriam surgir a partir do exerccio crtico de seus agentes. Esse procedimento que compunha os princpios pedaggicos doAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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Proler os quais aparecem descritos em Para entender a proposta do Programa Nacional de Incentivo Leitura intitulado de pedagogia em processo e ressalta a importncia da observao e da avaliao contnua dos resultados, a mdio e longo prazo, das prticas desenvolvidas. Para o Proler, as primeiras aes deveriam centrar-se na construo de um dilogo com os mediadores de leitura. Era preciso atuar junto aos formadores, em potencial, dos futuros leitores. Era preciso, tambm, fomentar as discusses sobre a maneira como as prticas leitoras vinham sendo conduzidas nas escolas. O debate deveria ser amplo e as aes no deveriam ficar restritas somente aos estabelecimentos de ensino; toda a sociedade deveria participar. O objetivo do Programa era alcanar os estratos mais diversificados da populao, desconstruindo a ideia da leitura como dever acadmico. Buscava-se fazer compreender que a leitura no se resumia ao ato em si da decodificao do que fora expresso por sinais grficos escritos, mas a uma percepo de mundo. Destarte, a leitura no Proler ia alm das palavras: lia-se a dana, a pintura, os filmes etc. O objetivo era fazer uma leitura de mundo, provocar uma ampliao da viso do sujeito, despertar o seu olhar. Esse era um ponto onde a concepo terica do Programa se aproximava das proposies pedaggicas de Paulo Freire, que propunha uma leitura que se distanciasse dos conceitos tradicionais. Para ele, a leitura do mundo deve preceder a leitura da palavra. 20 O Proler levava a leitura para todos os cantos. Contadores de histrias liam nas praas, hospitais, estaes de transporte etc. O contato com a leitura despertava o interesse de pessoas que nem sabiam ler, como rememora Eliana:(...) Pessoas sentiam o interesse em se alfabetizar a partir do contato com a leitura. Ns nos surpreendamos. A receptividade era imensa. Pessoas nos mais diversos pontos do pas discutiam a leitura, viam filmes, produziam interpretaes e questionamentos mpares sobre o que liam, viam e ouviam. Havia uma revoluo silenciosa sendo processada atravs do Programa. As pessoas que no eram alfabetizadas comearam a entender que leitura no era alfabetizao, era algo alm.

2. Desenvolvimento e desdobramentos do Programa Como o Proler no contava com verba para mdia paga e dava seus primeiros passos num momento em que o uso dos computadores nas reparties pblicas era incipiente, e ainda nem se falava de Internet, sua expanso aconteceu a partir do interesse pessoal de quem tomava conhecimento de sua existncia. Muitas vezes as informaes que lhes chegavam eram bem exguas. Normalmente, as pessoas que manifestavam interesse j trabalhavam com a leitura, ou j haviam desenvolvido alguma atividade similar na regio de domiclio.An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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Quando as pessoas faziam contato, manifestando o interesse de que o Proler realizasse trabalho em suas cidades, recebiam a solicitao de que mobilizassem alguma entidade local para dar o suporte inicial, como, por exemplo, o SESC ou uma associao de moradores. A partir desse momento, dava-se incio estruturao do Encontro Mobilizador, quando membros da equipe do Proler iam at o local expor a filosofia, os objetivos, as propostas polticas e metodolgicas do Programa. A expanso do Proler em nvel nacional teve como base os comits interinstitucionais. Estes eram formados a partir de uma iniciativa conjunta entre as entidades locais e o Proler. A linha de ao utilizada para consolidar essas bases locais do Programa foram os mdulos. O objetivo destes era a capacitao de recursos humanos para atuarem na formao de leitores. Aconteciam nos encontros intermunicipais promovidos a partir das parcerias estabelecidas. Na realidade, mdulos e encontros tornaram-se atividades sinnimas, pois estes aconteciam em funo da realizao daqueles. Organizavam-se em cinco etapas (do Mdulo Zero ao Mdulo IV) e se operacionalizavam atravs de mesas-redondas, palestras, oficinas e prticas leitoras, contao de histrias, crculos de leitura, encontros com autores e apresentaes culturais. Os encontros iniciavam com um momento de sensibilizao (Mdulo Zero) que vinha seguido de mais quatro mdulos, com a periodicidade entre eles girando em torno de seis meses. Na realizao dos mdulos, o programa contou com uma ajuda financeira do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao (FNDE), que supria as despesas com passagens, nos deslocamentos da equipe. Os mdulos foram sendo concebidos dentro do processo evolutivo da proposta pedaggica e foram trabalhados em cima de questes como leitura e memria, leitura e linguagem etc. Recorda Marlia Amaral que:A inteno dos mdulos consistia no fato de que, trabalhando segmentos importantes do ato de ler, se poderia chegar a uma produo, onde o mediador teria capacidade de atuar como produtor do seu prprio texto, ou seja, isso se traduzia no entendimento que ele construa sobre a leitura, sua viso, fosse ela potica ou crtica. Da, iria repass-la atravs de seu prprio texto, fosse atuando como poeta, contador de histrias, ou como crtico de sua prpria realidade (...) era a construo de textos vivos, digamos assim (...)

O objetivo era que o Proler, atravs dos mdulos, fosse mais atuante apenas nos primeiros anos de trabalho nos municpios-sede que abrigavam o Programa. Depois, o contedo depreendido dos encontros deveria ser levado adiante pelos prprios comits locais. Essa estratgia permitia que osAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

No documento acima, Eliana Yunes, idealizadora do Proler, ao lado de Affonso Romano de SantAnna e Francisco Gregrio Filho, apresenta os dez princpios pedaggicos do programa: O (...) prazer de ler se constitui desde a mais tenra idade, quando as crianas se familiarizam com narrativas orais. As estruturas narrativas (...) Movem as emoes, provocam imagens, suscitam a reflexo e promovem um trnsito permanente entre imaginrio e real, fico e histria. afirmava o primeiro desses princpios. Maio, 1992 Acervo FBN

Valorizar a oralidade e recuperar a cultura das minorias tnicas e sociais eram tambm objetivos do Proler, como neste programa da srie Contao de Histrias, transmitida semanalmente pela Rdio MEC, no Rio de Janeiro. Francisco Gregrio entrevista o ndio Siaw Kaxinawa, que conta histrias de seu povo. Rio de Janeiro, 1994 circa. Foto: autor desconhecido Acervo Ctedra Unesco de Leitura PUC - Rio.

Buscando uma nova relao amorosa com a leitura, o Proler optou pelos textos literrios, mais capazes de mobilizar a inteligncia e a afetividade. Grupo de contadores de histrias em ao na Casa da Leitura. 1993. Acervo Ctedra Unesco de Leitura PUC - Rio. Foto: Lcia Antabi

Alm de oficinas de leitura e contao de histrias, o Proler criou espaos tericos, como conferncias, seminrios, mesas e painis, com a participao de especialistas de diversas reas. Na foto, trupe do programa em Campo Grande (MS), integrada por bibliotecrias, professores, escritores e artistas. A partir da esq., Jlio Diniz, Gregrio Filho, Vera Varela, Nanci Nbrega, Amir Haddad, Joel Rufino, Marli Amarlia, Tania Rsing, Glria Kirineu e R Fernandes; agachadas, Marina Colassanti, Eliana Yunes, Maria Lcia Martins e Marlia Mendes. S.d. Acervo Ctedra Unesco de Leitura PUC - Rio. Foto: autor desconhecido

A formao de recursos humanos (...), processo continuado e sistemtico a se desdobrar em atualizao permanente e que carece de um impulso longo (...). Nanci Nbrega, Jlio Diniz, Francisco Gregrio e Eliane Yunes com Tania Rsing, coordenadora do Proler em Passo Fundo (RS) e da Jornada Nacional de Literatura, ainda hoje realizada anualmente naquela cidade, no lanamento do livro Leitura e animao: repensando a escola. 2002. Foto: autor desconhecido Acervo Ctedra Unesco de Leitura PUC - Rio

(...) sendo a leitura percebida como prtica de vida, ela no pode estar confinada s aulas de lngua e literatura e deve percorrer todo o espao da aprendizagem, da histria matemtica, da cincia filosofia. outro dos princpios pedaggicos traados para o Proler. Numa praa pblica de Campo Grande (MS), o msico e professor de Letras Slvio Carvalho, da Universidade Estadual da Bahia, coordena roda com mediadores de leitura. 1994. Foto: autor desconhecido Acervo Slvio Carvalho

[o leitor] se transformar em agente de promoo da leitura no seu espao de convivncia: escola, trabalho, famlia, comunidade. Para isto dada especial ateno ao processo que vai de sua sensibilizao sua capacitao como promotor de leitura e produtor de textos. Na Casa da Leitura, Mnica Coronel, assessora de imprensa e tambm mediadora de leitura, participa de oficina com crianas e professores de uma escola municipal do Rio de Janeiro. Foto: autor desconhecido Acervo FBN

(...) os encontros de capacitao tm por objetivo o exerccio de aprofundamento terico-prtico e a ampliao dos recursos para os agentes de leitura nas reas de abrangncia geogrfica do ncleo local formado em torno do PROLER. Reunio do Comit do Proler com mediadores de leitura em Curitiba. Foto: autor desconhecido Acervo Slvio Carvalho

A existncia em cada municpio de espaos adequados, ou mesmo exclusivos, para a leitura, com acervo especial, uma das propostas do Proler. Em agosto de 1993, o programa inaugurou sua sede, a Casa da Leitura, na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras no Rio de Janeiro. Foto: Osrio Mendes Acervo FBN

A experincia e sugestes de grandes escritores e especialistas balizaram a implantao do Proler. A foto registra o encontro, na Casa da Leitura, do escritor uruguaio Eduardo Galeano com os coordenadores nacionais do Proler. Foto: autor desconhecido Acervo Ctedra Unesco de Leitura PUC - Rio

Coleo Ler & pensar, um dos primeiros materiais pedaggicos e de reflexo sobre a leitura preparados pelo Proler. Nestes volumes, o tema Leitura e leitores e as resolues das Reunies internacionais de polticas nacionais de leitura. Acervo FBN

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mediadores envolvidos tivessem autonomia e assim irradiassem a proposta do Proler para outras localidades das imediaes. Isso permitiu que a pequena equipe do Proler pudesse ampliar seu raio de ao. Os encontros sempre eram organizados em conjunto com os mediadores das localidades e, alm dos profissionais que eram levados pelo Proler (palestrantes, oficineiros etc), contavam com a participao dos especialistas da regio. Marlia Amaral complementa que:Para a construo de uma rede nacional de estmulo leitura, era necessrio valorizar as iniciativas locais, pois estas seriam as responsveis pela expanso do Programa. A ideia era ir l, incentivar. Comeava com mediadores daqui e de l. Com o tempo ns iramos nos retirando do projeto e eles assumindo cada vez mais e dali irradiavam o programa para outros pontos do estado.

Os mdulos compunham-se de uma programao que durava cinco dias. Eram realizadas de 12 a 16 horas de oficinas, programadas para acontecerem aps as mesas redondas. Os profissionais locais que se destacavam eram convidados para integrarem os encontros que aconteceriam em outros pontos do pas. O contedo programtico dos mdulos, apesar de contar com o aporte pedaggico do Proler, era construdo em conjunto com as pessoas do lugar. Dessa forma, cada mdulo desenvolvido nos mais variados pontos do Brasil carregava suas peculiaridades, em decorrncia de sua interao com os profissionais locais. O mesmo se observava em relao linha de conduta dos comits, que, apesar de se orientarem pelas propostas pedaggicas do Proler, desenvolviam modos especficos para p-las em prtica. Cada comit tinha o seu perfil e, comumente, entre os comits que se localizavam dentro de um mesmo estado ou regio do Brasil, as diferenas j se faziam visveis. Valorizavam-se as tradies locais, as histrias de cada povoado, seus legados culturais. Tudo isso era absorvido como material de trabalho dentro de cada ncleo regional. No momento de sensibilizao, reuniam-se as pessoas e falava-se do conceito de leitura, bem como do tipo de leitura que seria utilizado. Explicava-se que ler para o Programa no era querer saber o que o autor quis dizer com a sua construo textual. Isso era uma anlise para ser desenvolvida no adiantado do ensino acadmico ou pelos pesquisadores da rea. Para o Proler, o que interessava era como o leitor participante se relacionava com o texto, o que ele via, o que ele sentia. Explicava-se tambm a proposta de se praticar a leitura para alm das palavras. Lia-se de tudo e estimulava-se o contato com as mais diversas linguagens da expresso artstica: dana, pintura, fotografia etc. A narrativa pessoal era bastante valorizada. Exploravam-se as memrias de infncia cantigas, histrias que eram contadas, histrias de famlia etc. EraAn. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 129

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uma maneira de se mostrar que na vida das pessoas que no tiveram, e ainda no tinham, acesso ao livro tambm existia acervo, que este no se reduzia apenas s obras impressas. Apesar de muitos habitarem longe dos grandes centros urbanos ou estarem submetidos a condies econmicas e scio-culturais restritivas, possuam um patrimnio imaterial que no deveria ser desprezado. Ali estava a chave da construo de uma identidade cultural forte. O movimento para se suprimir a incultura literria no deveria resultar na aculturao do sujeito, ou seja, tinha-se o cuidado para que no acontecesse uma sobreposio da cultura da cidade grande, de onde procedia a equipe gestora do Proler, cultura local. Nos encontros, havia sempre um momento em que se realizava a leitura de um conto. Entre a equipe era conhecido como oficina, mas, para o pblico, no era anunciado assim. Evitava-se essa nomenclatura para no criar expectativas ou receios antecipados no grupo. Marlia Amaral esclarece que o objetivo era deixar os participantes desarmados. Nesse momento, explorava-se a sensibilidade, a capacidade de reao diante do que ouviam:Sempre a gente trabalhava muito com a questo do afeto.

Um dos significados da palavra afeto, em sua origem no latim, affectus, disposio de alma. 21 Sem um aprofundamento maior nas questes conceituais, seja no campo da lingustica, psicopedagogia, filosofia etc., poderamos deduzir aqui, pela simples conceituao etimolgica, que trabalhar com o afeto implica um quadro onde ocorrem mudanas no estado de sensibilidade do sujeito. Nesse sentido a equipe sempre se surpreendia com as reaes dos participantes. O pblico alvo do Programa eram os mediadores no significando com isso que a equipe do Proler no tivesse contato com os receptores finais das aes propostas pelos mediadores. O nvel de participao nos mdulos, segundo consenso geral da equipe, era muito bom. Os relatos dos participantes, aps as oficinas, eram um indicativo do quanto elas eram eficazes, mexendo, positivamente, com o nimo de todos e repercutindo na conscincia geral do grupo.(...) aps o exerccio da leitura, fosse um conto, uma pintura, ou filmes sempre nos surpreendamos com a felicidade das pessoas por estarem debatendo assuntos que elas no paravam para discutir em seu dia a dia. 22 Lembro-me da satisfao dos participantes ao perceberem que conseguiam ler uma pintura, que projetvamos numa parede, ver um filme como Cortina de Fumaa, por exemplo, e entend-lo alm da simples narrativa, isso fazia com que se sentissem cada vez mais seguros, inteligentes, dava-lhes nimo. 23

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(...) nesses momentos o pblico manifestava seu encantamento, seduzidos pela leitura rompiam barreiras, emitiam depoimentos espontneos, emotivos, que despertavam reflexes profundas (...) 24

No resultado de um debate, aps uma leitura, uma sesso de contao de histrias ou aps o contato com uma outra linguagem artstica, os propsitos do Programa ficavam mais evidentes para todos. O exerccio de percepo sobre o que estava explcito ou implcito nas leituras apresentadas, sobre o nvel de mobilizao dos afetos, resultava no entendimento de que, no olhar sobre a narrativa, realizavam uma leitura de si e uma leitura de mundo. Efetuava-se atravs dos mdulos um caminho natural de desenvolvimento do pensamento crtico. Gregrio lembra que:(...) ali [nas oficinas] se percebia mais claramente o que era o exerccio de cidadania (...) na descoberta pessoal, no reconhecimento da possibilidade de atuarem como sujeitos pensantes.

Durante a gesto de Eliana, no foram produzidas pesquisas que analisassem os resultados obtidos com o Programa. Mas a equipe observava, permanentemente, os efeitos de suas aes atravs do dilogo com os mediadores. Como o Programa propunha um alcance nacional e a equipe sempre foi muito enxuta, atingindo o contingente funcional mximo, em meados de 1996, quando possua cerca de 70 pessoas, entre funcionrios e profissionais autnomos que se ligaram equipe, ficaria difcil fazer o acompanhamento direto com o pblico final. O Programa centrava sua ateno sobre a atuao dos mediadores, logo os resultados eram percebidos a partir do depoimento destes. Comumente eram realizadas reunies de avaliao com os comits. 3. Driblando as resistncias Fato relevante em todo esse processo que, pela primeira vez, uma instituio do Ministrio da Cultura, cuja nica misso, desde a sua fundao, vinha sendo a guarda e a construo de nosso maior acervo (bibliogrfico, documental, iconogrfico etc), tinha a incumbncia de promover uma poltica nacional de estmulo leitura. Esta sempre havia sido um privilgio das escolas, sempre esteve sob a alada do Ministrio da Educao. Logo, como era de se esperar, houve resistncias e estranhamentos. De acordo com Francisco Gregrio:Dentro do prprio quadro administrativo [da Biblioteca Nacional] havia muita reao ao Proler. O corpo de funcionrios era predominantemente de bibliote-

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crios, preocupados unicamente com o acervo (...) precisvamos [no Proler] de pessoas com uma outra viso do livro, pessoas formadas em Letras e Comunicao.

Affonso Romano de SantAnna tambm comenta essa resistncia:Devo revelar, por outro lado, que a criao do Proler encontrou resistncias, sobretudo onde deveria encontrar aliados, ou seja, entre editores, entre bibliotecrios, entre um ou outro escritor, dentro do prprio Departamento Nacional do Livro. Isto tem a ver com algo que chamei num artigo de discurso duplo, da prtica divorciada da teoria. Nunca lhes havia passado pela cabea que existe uma coisa chamada formao do leitor. Para eles a funo do estado era s alfabetizar e comprar livros. como se estivessem dizendo que o leitor uma consequncia. Bastaria editar e botar livros em livrarias e estantes e um milagre ocorreria. No se apercebiam que o processo complexo exigindo a interao do livro, da biblioteca e do leitor, nem se apercebiam de que o leitor pode ser despertado e formado em qualquer idade e no apenas na idade infantil, como tolamente alguns apregoavam. 25

Os estranhamentos ao Proler iam alm do quadro funcional da FBN e de algumas autoridades no assunto. O contato com instituies e profissionais que seriam importantes para que o projeto tivesse alcance nacional, desde o incio, revelou reaes adversas. Eliana lembra que, quando foram encaminhados os questionrios para se fazer um levantamento, em todo o pas, do nvel de interesse dos municpios para desenvolver um trabalho junto ao Proler, as respostas foram surpreendentes:(...) muitos formulrios que encaminhamos inicialmente foram respondidos por profissionais da educao que no entendiam porque uma biblioteca, no Rio de Janeiro, estava fazendo aquele levantamento (...) alguns sabiam de sua importncia, mas muitos nem sabiam o que era e como era a Biblioteca (...)

Francisco Gregrio comenta o mesmo assunto:Muita gente achava que a Biblioteca era muito Rio de Janeiro. Muitos a associavam Academia Brasileira de Letras (...) Quando no caam nesses olhares e sabiam o que era realmente a Biblioteca Nacional, questionavam por que ela estava saindo do cantinho dela, de guardar livros, para dialogar com populaes to distantes, com povos de outras regies [do pas]. Em minhas andanas para explicar o Proler, apesar de estar vinculado Biblioteca Nacional, sofri preconceitos (...) as pessoas entendiam que era importante promover leitura, mas no percebiam como e de onde deveriam partir as aes.

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As primeiras aes promotoras do hbito de ler, desenvolvidas pelo Proler, tiveram o intuito de sensibilizar os funcionrios da Biblioteca. Ao desenvolver um programa-piloto para dar incio s suas atividades, optou-se pelo comeo dentro de casa. Dar os primeiros passos dessa maneira, alm de representar uma atitude cautelosa, significava tambm a possibilidade de se quebrar a resistncia dos funcionrios em relao s ideias de valorizao da leitura que propunha a nova administrao. Era fato tambm que ali na Biblioteca, convivendo com o corpo de servidores, dos quais muitos eram letrados, existiam os empregados da empresa terceirizada, encarregada da limpeza, que, em sua quase totalidade, no possuam bom nvel de instruo, nem o hbito da leitura. Nada mais acertado para a nova filosofia que se implantava na Casa do que mobilizar esse contingente. O Programa-piloto se chamou Prazer de Ler e executou os seguintes projetos: Ouvindo Histrias, Conto a Conto e Hoje Dia de Histria. Affonso, ainda se referindo aos empregados da empresa terceirizada, cuja jornada de trabalho, pela natureza do servio, era sempre mais rigorosa, com uma carga horria maior que a dos servidores da FBN, lembra que:Para ns seria incongruente pregar a leitura para comunidades longnquas esquecendo os prprios trabalhadores. Operrios da BN tinham a hora da leitura dentro de seu parco tempo de almoo (...) 26

O projeto Ouvindo Histrias foi programado para acontecer durante todas as quartas-feiras de setembro de 1991, no saguo principal do prdio, e teve a participao do grupo Morandubet, narrando histrias aos ouvintes. O pblico-alvo eram os funcionrios, mas o projeto foi aberto tambm aos usurios, visitantes e a quaisquer pessoas que manifestassem interesse. Segundo o Relatrio Proler relativo ao exerccio de 1991, pela falta de apoio para a adequada divulgao interna do Projeto, s se alcanou um pblico satisfatrio nas duas ltimas semanas, cerca de 70 pessoas em cada sesso. Segundo o mesmo relatrio, o projeto Conto a Conto, nos mesmos moldes do Ouvindo Histrias, deu sequncia agenda das quartas-feiras, durante o perodo de outubro a dezembro de 1991. O projeto chegou ao terceiro ms tendo um pblico semanal de 18 funcionrios. Desse nmero, 80% eram de terceirizados e prestavam servios de manuteno e limpeza para a Biblioteca. A mdia de servidores por sesso era quatro. Marlia Amaral lembra que este projeto agradava bastante, mas entre os servidores da Casa no teve o alcance desejado. Segundo ela, poucos funcionrios compareciam:

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Essas atividades no chegaram a atingir o grupo [corpo de servidores] como um todo, porque, se tivessem conseguido uma grande repercusso, mais pessoas teriam ido trabalhar no Proler.

As sesses eram conduzidas pelos leitores-guia, que realizavam a leitura das histrias e provocavam as discusses. Apesar dos nmeros no muito animadores, o resultado do projeto, conforme mostra o relatrio, foi bastante positivo. Constatou-se que, no seu decorrer, a participao do grupo tornou-se unnime e que as pessoas se inseriam no bate-papo de uma maneira muito mais livre e participativa. Affonso Romano de SantAnna lembra que:(...) numa dessas sesses uma trabalhadora depois de ler um conto de Machado de Assis, exclamou: Mas esta estria foi escrita pra mim! 27

O projeto Hoje Dia de Histria foi pensado para extrapolar os limites da Instituio. Foi dividido em dois segmentos. Um dos segmentos buscava mobilizar os menores de rua das proximidades da Biblioteca. A estratgia foi atuar juntamente com os educadores que j trabalhavam com esse pblico e com a Associao So Martinho. Apesar da boa estratgia operacional, o projeto no deu certo e foi suspenso. O outro segmento aconteceu no ptio do Palcio Gustavo Capanema, no Centro do Rio de Janeiro. O projeto, que aconteceu de outubro a dezembro de 1991, teve como objetivo parar as pessoas na rua para ouvirem histrias. Apresentou bons resultados, mas no chegou a formar plateia em decorrncia do curto perodo em que se manteve em vigncia. Uma outra estratgia para minimizar as resistncias entre os funcionrios e aumentar a empatia pelo Programa foi possibilitar e estimular que os funcionrios acompanhassem a equipe do Proler em suas viagens aos municpios onde realizava aes. Assim, os funcionrios tinham a oportunidade de participar e perceber a importncia da iniciativa. A deciso revelava tambm o esprito democrtico que caracterizou o Proler durante a gesto de Affonso, pois possibilitava que todos pudessem se envolver com o Programa. Affonso, em sua entrevista para esta pesquisa, recorda:Foi uma luta to dura quanto estranha: tentar convencer bibliotecrios e escritores de coisas que eles deveriam saber, ma