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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos Universidade Federal do Pará Belém, 15 a 18 de junho de 2015 A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732 Volume 7 Território & migração PPHIST/Universidade Federal do Pará PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão PPGH/Universidade Federal do Amazonas ISBN 978-85-61586-90-4

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

Universidade Federal do Pará

Belém, 15 a 18 de junho de 2015

A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732

Volume 7

Território & migração

PPHIST/Universidade Federal do Pará

PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão

PPGH/Universidade Federal do Amazonas

ISBN 978-85-61586-90-4

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Ficha Catalográfica

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos / Território e migração. Rafael Chambouleyron (Org.). Belém: Editora Açaí, volume 7, 2015.

127 p.

ISBN: 978-85-61586-90-4

1. História – Território - Ocupação. 2. Representação – Sociabilidade - Migração. 3. História - Amazônia – Migração. 4. História.

CDD. 23. Ed. 348.9979

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Apresentação

Apresentamos os Anais do II Seminário de

História em Estudos Amazônicos, realizado

em Belém, de 15 a 18 de junho de 2015. O

primeiro Seminário foi realizado em São Luís,

em 2013, fruto do esforço conjunto dos

programas de pós-graduação em História da

Universidade Federal do Maranhão e da

Universidade Federal do Pará, aos quais se

junta agora o da Universidade Federal do

Amazonas. Neste ano, o SHEA congregou

docentes e discentes das três instituições,

resultando na apresentação de mais de cem

trabalhos, aqui publicados, organizados em

sete volumes, cada um referente a um

Simpósio Temático. O objetivo é reforçar os

laços entre as pós-graduações de instituições

amazônicas, que historicamente,

compartilham trajetórias comuns.

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Sumário

INVENTÁRIOS POST MORTEM E SUAS POSSIBILIDADES: O CASO DA IMIGRAÇÃO PORTUGUESA. BELÉM, 1840-1930 Anndrea Caroliny da Costa Tavares ............................................................................ 3 AS RELAÇÕES AFRO INDÍGENAS NO SISTEMA AGRÁRIO DO SÉCULO XVIII Carlos Eduardo Costa Barbosa .................................................................................. 13 O CAPITAL, O TRABALHO E A MIGRAÇÃO NA AMAZÔNIA: CONDIÇÕES DE VIDA E TRABALHO NOS SETORES DE PECUÁRIA, MINERAÇÃO, ENERGIA E REFLORESTAMENTO (1964-2014) Carlos Eduardo Santos ................................................................................................ 21 A FORMAÇÃO DAS REDES SOCIAIS ENTRE ESCRAVOS NO SERTÃO DO PIAUÍ (SÃO RAIMUNDO NONATO-PI, 1871-1879 Déborah Gonsalves Silva ............................................................................................ 31 “ORDENS SÃO ORDENS, CUMPRA-SE”: A LEGISLAÇÃO REPUBLICANA NO PARÁ EM TORNO DO PROGRAMA DE COLONIZAÇÃO (1900-1910) Francisnaldo Sousa dos Santos .................................................................................. 41 TERRAS DE MANDO, DOMÍNIO DO PATRONATO NO PARÁ: A GRANDE PROPRIEDADE E O NÚCLEO SINDICAL DA REGIÃO DO TOCANTINS Luís Ribeiro da Rocha Francivaldo Alves Nunes ............................................................................................ 52 ALDEAMENTOS INDÍGENAS DA PROVÍNCIA DO PARÁ: ALGUNS ASPECTOS QUE ENVOLVERAM ESSA QUESTÃO (1840-1860) Marcimiana de Oliveira Silva Farias Francivaldo Alves Nunes ............................................................................................ 62

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MIGRAÇÃO RURAL NA AMAZÔNIA: POBRES RETIRANTES, SEM TERRA OU EXPROPRIADOS DA TERRA? Maria José dos Santos .................................................................................................. 73 COLONIZAÇÃO E MIGRAÇÃO NA CAPITANIA DO PARÁ: O CASO DE MOJU (SÉCULO XVIII) Regina Célia Corrêa Batista ........................................................................................ 84 FLAGELADOS OU CANDUNGA? INDECISÃO E MIGRAÇÃO NO ROMANCE CANDUNGA DE BRUNO DE MENEZES Renan Brigido Nascimento Felix ............................................................................... 94 LAVRANDO EM TERRAS ALHEYAS PELLAS NÃO TER PRÓPRIAS: IGNACIO JOSÉ PINHEIRO E A OCUPAÇÃO DO PERIASSÚ DE SÃO BENTO Samir Roland ............................................................................................................... 104 AS TRAJETÓRIAS MAZAGANISTAS Yure Lee Almeida Martins ........................................................................................ 115

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INVENTÁRIOS POST MORTEM E SUAS POSSIBILIDADES: O CASO DA IMIGRAÇÃO PORTUGUESA. BELÉM, 1840-1930

Anndrea Caroliny da Costa Tavares1

Resumo O presente trabalho busca contribuir com as discussões acerca do uso de fontes judiciais para a construção do conhecimento histórico, neste caso os inventários post mortem e o estudo da imigração portuguesa para a cidade de Belém nos anos de 1840 a 1930. O estudo esteia-se na análise serial de inventários e insere-se num período marcado por um crescimento demográfico acentuado, pela reorganização do espaço urbano de Belém e pelo recrudescimento econômico do mesmo espaço em virtude da consolidação e declínio da economia extrativa do látex. Nestas condições, analisa-se a composição das fortunas dos portugueses, entendendo esta como uma estratégia de inserção e projeção social em meio a dinâmica e crescente Belém, apoiada no extrativismo da hevea brasilienses.. Palavras Chave: Imigração; Portugueses; Inventários; Belém.

Assim completos e minudenciosos os inventários constituem depoimentos incomparáveis do teor da vida e da feição das almas na sociedade[...].As paredes se enfeitam de espelhos, armas e painéis[...] É o sítio da roça, que aparece, com o casarão solarengo[...]. Rebanhos trágicos de negros da terra ou da Guiné[...]. Viver alguns instantes com os mortos de que vimos, entre as cousas que os cercavam, é a volúpia a que nos convidam essas folhas rebarbativas, desmanchadas em poeira ou mosqueadas de bolor. (ALCÂNTARA MACHADO, 1965, p. 29).2

Diversos são os trabalhos que tem se voltado ao uso dos inventários post

mortem para o estudo das sociedades e dos indivíduos em diversas temporalidades3. As informações que estas fontes trazem dão suporte

1 Mestranda em História Social da Amazônia no Programa de Pós Graduação em História Social da Amazônia, Universidade Federal do Pará (PPHIST/UFPA. Bolsista CAPES. 2 ALCÂNTARA MACHADO, José de. Vida e Morte do Bandeirante. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1965, p. 29. 3 Cf. FURTADO, Júnia Ferreira. “Testamento e inventários: A morte como testemunho da vida”. In: PINSKY, Carla Bassanezi & De Luca, Tânia Regina. (org.).

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suficiente para os estudos na Demografia, Economia, Sociologia e História, e como proposto neste trabalho, no estudo do movimento migratório de portugueses, quanto a composição e alocação de suas fortunas em um cenário diverso e movimentado na Belém em meados do século XIX.

Provenientes de distintas localidades do território português, o que por si já confere pluralidade aos sujeitos, estes imigrantes viam no Brasil, e na cidade de Belém, uma nova possibilidade de estabelecimento, onde suas ações estariam norteadas pela perspetiva de realizar seus sonhos, criar fortuna ou, como ocorreu com uma parcela considerável, apenas sobreviver e esperar por uma brecha de retorno à terrinha. Neste cenário os moldes e costumes diversos interagiram no cotidiano, forjando a dinâmica e diversa sociedade de Belém no limiar do XIX.

Marcado pelo intenso e sempre contínuo fluxo migratório portugues, o final do século XIX e início do XX, também foi caracterizado pela consolidação, expansão e decadência da economia extrativa do látex, a borracha, considerada, se não a principal, força motriz para a vinda dos portugueses, que além de manterem ligações ainda que diretas com a antiga colônia, viam no trabalho com a borracha a possibilidade de alcançarem a sonhada fortuna.

Entre idas e vindas da capital para os municípios do interior e demais estados da região, um grande numero de migrantes permanecia em Belém, a principal cidade amazônica, à época. O português, seguido do espanhol, formaram os grupos étnicos mais presentes no cenário da capital4. Juntamente com diversos outros grupos, os portugueses experimentaram na cidade de Belém a modernização da fase final do século XIX e inicio do XX, conhecida como uma das cidades-boom brasileiras.5

Envolvidos nessa trama, os lusitanos desempenharam diversos papeis na cotidianidade da cidade, especialmente os ligados ao comércio de gêneros

O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. LOPES, Luciana Suarez. Sob os olhos de São Sebastião. A cafeicultura e as mutações da riqueza em Ribeirão Preto, 1849-1900 (Tese) Departamento de História. Programa de História Econômica. São Paulo: USP, 2005. SAMARA, Eni de Mesquita. (org.). Testamentos e Inventários: Fontes Documentais para a História Social e Econômica de São Paulo séculos XVIII-XIX. São Paulo: CEDHAL, 2000. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998 4 CANCELA, Cristina Donza. Casamento e família em uma capital amazônica: (Belém 1870- 1920). Belém: Ed. Açaí, 2011. 5 SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a Belle Époque. Belém: Pakatatu, 2002, p. 28.

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diversos inclusive dos provenientes da exploração da borracha. Por assim estarem inseridos, e por conviverem com o dinâmico processo de crescimento econômico da região amazônica, os portugueses, gradativamente, foram investindo nas formas mais passiveis de lucro, como a aquisição de vários imóveis voltados para o aluguel, bem como de terrenos, além do investimento em ações e apólices, considerando que este período fora marcado pelo surgimento das grandes casas bancárias da província.

Fazendo parte de um contexto, muitas vezes, alheio ao que vivenciava em sua terra natal, os portugueses em muito colaboraram para o crescimento da então Província do Pará, principalmente de sua capital, Belém, onde boa parte fixou residência.

Com o intuito de dar voz a esses agentes, além de estudar suas fortunas como uma forma de inserção e participação da dinâmica econômica e social na cidade, optou-se pelos inventários post-mortem. De cunho quantitativo, esta fonte ajudou ao estabelecimento de uma ligeira igualdade entre os sujeitos, haja vista que tanto inventariavam grandes nomes da elite como o popular, que vivenciavam de forma díspare aquilo que a cidade e seus lucros poderiam oferecer. Sobre as fontes

Embora seja um rico testemunho, não da morte, mas da vida em suas

dimensões material e espiritual6, os inventários possuem suas limitações, uma vez que não era interpretado como uma obrigatoriedade por parte dos que estavam sendo inventariados, embora judicialmente este fosse obrigatório segundo uma série de condições estabelecidas. Em maior numero eram feitos quando o que falecia deixava bens suficientes7 e, tendo ou não, herdeiros

6 FURTADO, Júnia Ferreira. “Testamento e inventários: A morte como testemunho da vida”. In: PINSKY, Carla Bassanezi & De Luca, Tânia Regina. (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 93 7 A existência de “bens suficientes” foi variante na amostra que consideramos para este estudo. Encontramos grandes fortunas que foram partilhadas entre inúmeros herdeiros, no entanto também encontramos inventários que nem sequer citavam a existência de bens, ou mesmo citavam pequenas quantias em dinheiro, uma irrisória caderneta de poupança, ou algum móvel, joias, e outros. Há também os casos sem herdeiros, em que o/a inventariante era o/a cônjuge e durante o processo não citava nenhum bem, como se tal documento fosse apenas uma convenção social.

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menores de 25 anos8. Desse modo muitos dos nossos portugueses ficaram mascarados, desconhecidos.

Ressalta-se também o cuidado e atenção para com os valores atribuídos aos bens descritos. É de conhecimento que muitos bens deixavam de ser descritos ou mesmo poderiam ser valorizados demais ou de menos pelos avaliadores, conforme os interesses de cada família. Além disso, enfrentamos os limites dos processos incompletos, com um “troca troca” de inventariantes, os que duraram anos e anos e não tiveram fim, entre outros conflitos. No entanto, tais limitações não comprometem a qualidade de análise das informações. Sobre a metodologia

Para o estudo da fortuna dos portugueses considerou-se os valores

apresentados no auto de partilha, o montante liquido, com exceção dos documentos sem pauta de partilha que traziam o valor do montante em um local diferente da pauta. Para a analise na composição das fortunas foi considerado a descrição dos bens feita no inicio do processo e também na pauta de partilha. No entanto, todas as informações possíveis de serem tiradas dos inventários foram dispostas em uma base de dados no software access, composta por tabelas e formulários que melhor ajudam na disposição do trabalho.

Nesta base trazemos informações a respeito da composição familiar, origem, ocupação, estado civil, entre outras observações que servem de suporte para demais estudos futuros. A tabela principal denominada de inventariado possue em sua função outras tabelas de dados com informações sobre herdeiros, quinhão, bens e outros pagamentos, que completam, quase que totalitariamente, as informações dispostas em cada inventário. Sobre a periodização escolhida

A economia da borracha, a partir de seu efetivo estabelecimento na cidade

de Belém no decorrer da década de 60 do século XIX, acentuou o processo de mudanças nas diversas esferas da sociedade paraense que já vinham ocorrendo desde a década de 50 do mesmo século. Mudanças que orquestraram novos signos de riqueza, pautados agora nos investimentos da cidade, em detrimento dos negócios da terra, principalmente, a criação de gado, a posse de engenhos, plantações e ainda a discreta atividade comercial.

8 Ibidem, p. 103.

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É fundamental pensar que todas essas mudanças, e esse fluxo migratório, acabou por estabelecer novos modos de se interpretar a sociedade, interpretar suas relações e assim abstrair desta aquilo que ela mesma mantém como algo de valor, digo, abstrair os novos signos de riqueza, as novas formas de pensá-la, de pensar o que realmente era tido como de valor em uma sociedade que se manteve durante todo o século XIX9 e XX em um constante processo de mudança.

Para tanto, dividimos nosso estudo em três períodos em acordo com a historiografia sobre a economia da borracha, que é o contexto econômico no qual estamos inserindo as análises. O primeiro período 1840-1869 em que consideramos uma temporalidade um pouco antes do surgimento da borracha nas pautas de exportação e depois seu aparecimento definitivo com uma participação mais estável nas relações comerciais da cidade. O segundo período corresponde a consolidação e expansão dessa economia gomífera entre os anos de 1870-1909, considerado o período de maior surto econômico já verificado na região, tendo-se como principal indicador o crescente aumento da produção da borracha, criando-se até a expressão rubber reclaiming industry10. E finalmente os anos de 1910-1930 com a crise e o pós crise da economia a fim de observarmos como as fortunas se comportaram diante da crise pela qual passava a praça do comércio do Pará. Alocação da riqueza no período de surgimento e difusão da borracha nas pautas de exportação, 1840-1869

Na década de 1850, quando pela primeira vez a borracha firmou sua

supremacia no comércio regional, apenas um pequeno setor da classe dos

9 A segunda metade do século XIX assinala o momento de maior transformação econômica na história brasileira. É certo que se trata de um prolongamento da fase anterior, e resulta em ultima análise da emancipação do país da tutela política e econômica da metrópole portuguesa. Mas a primeira metade do século é de transição, fase de ajustamento à nova situação criada pela independência e autonomia nacional; a crise econômica, financeira, política e social que se desencadeia sobre o Brasil desde o momento da transferência da corte portuguesa em 1808, e, sobretudo da emancipação política de 1822, prolongam-se até meados do século; e se é verdade que já antes deste momento se elaboram os fatores de transformação, é somente depois dele que amadurecem e produzem todos os frutos que modificariam tão profundamente as condições do país. Expandem-se então largamente as forças produtivas brasileiras, dilatando-se o seu horizonte; e remodela-se a vida material do Brasil. PRADO JUNIO, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1970, p. 192. 10 SARGES. Op. Cit. p. 94.

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proprietários, no estado, tinha como base econômica o extrativismo, haja vista que o maior grupo dentro desse setor era a comunidade mercantil de maioria portuguesa. No Pará, como no Brasil em geral, a base econômica da classe superior tradicional era a terra, ficando para os estrangeiros a maior parcela das atividades comerciais.11 A crescente economia extrativa do látex disputava espaço com a economia ainda tradicional da província, pautada na posse de terras, criação de animais, engenhos de açúcar e arroz12.

Neste período inicial no qual a borracha vai assumindo supremacia na economia da região, conseguimos identificar apenas 17 inventários de portugueses declarados. O número reduzido se deve as dificuldades de identificação dos sujeitos, sobretudo pelo avançado estado de decomposição dos processos, o que dificultava bastante seu manuseio, fato que forçou a deixarmos de analisar vários documentos. Outra dificuldade encontrada foi quanto a confirmação da nacionalidade, enquanto em alguns encontramos testamentos, certidão de óbito, contrato ante nupcial, em outros não tínhamos nenhum outro que pudesse nos confirmar a nacionalidade do sujeito, embora a suspeita fosse de que consistia em um português.

Considerando os bens móveis13, os mais representativos na amostra são as dívidas ativas (22,2%, 4 indivíduos), junto com os móveis domésticos (16,7%, 3 indivíduos), joias (11,1%, 2 indivíduos) e dinheiro (16,7%, 3 indivíduos).

Entre os bens semoventes14 destacamos a posse de cativos. O numero de inventariados donos de escravos girava em torno de 9 proprietários, que possuíam, ao todo, 378 cativos, a posse média estava em 42 sujeitos. Nessa amostra três sujeitos se destacam aos demais, por possuírem um plantel acima dos 50 cativos, juntos eles detinham 87% dos escravos encontrados.

Quanto aos investimentos em bens imóveis, percebemos uma tímida, porém crescente iniciativa de investimentos em casas e terrenos na cidade de Belém. Também contamos com os engenhos, um total de 3 unidades. A falta de capital, a dificuldade de importar maquinaria, a precariedade do sistema de

11 WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: HUCITEC/EDUSP, [1983] 1993, p. 56 12 SARGES, Op. Cit. 13 São móveis os bens passíveis de remoção sem dano, seja por força própria ou por força alheia. Ou seja, objetos concretos, palpáveis, físicos, que não são fixos ao solo. Ex.: dinheiro, veículos, móveis, utensílios, máquinas, etc. 14 São bens móveis que possuem movimento próprio, tal como animais selvagens, domésticos ou domesticados. In: http://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/792/Bens-semoventes. Acessado em 27/04/2015, as 21:21h.

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frete para levar o produto para o porto e, finalmente, a alta tributação que incidia sobre o açúcar eram, na opinião de Ciro Flamarion Cardoso, os motivos da pouca produção de açúcar na capitania do Grão Pará, fazendo com que houvesse muito mais engenhocas produtoras de agua ardente, que exigia menor custo e possuía grande demanda15. Patrimônio durante a consolidação e expansão da borracha, 1870 – 1909

Durante estes 39 anos de desenvolvimento da economia extrativa do látex

levantamos um total de 328 inventários, a maior amostra da pesquisa. Com o passar dos anos as estruturas da maioria dos inventários foi ficando mais completa, principalmente por meio da inclusão da transcrição do testamento, registros de óbito, contratos ante nupciais, e outros que nos permitiram identificar um maior numero de imigrantes portugueses. Também consideramos o melhor estado da documentação, quanto mais próxima do século XX mais estava conservada. Numericamente em alguns cartórios encontramos números bem menores de portugueses, seja pela ausência de documentos que nos comprovassem a nacionalidade seja pela condição física do documento.

As casas, que incluem sobrados, prédios térreos, quarto de casas, representam 54,7 %, total de 151 imigrantes, dos imóveis descritos. Para além das casas, a posse de terrenos também era significativa em meio aos portugueses, sejam eles terrenos ainda vazios ou com alguma benfeitoria. Um total de 103 indivíduos, que representam 37,3% de nossa amostra. As quintas/sítios neste período sofrem um aumento considerável em relação ao período anterior, saltando de 1 para 11 propriedades descritas. Os engenhos representam 1% da amostra, total de 3 unidades, a mesma quantidade do período anterior.

Nesse período as novidades serão as estradas de seringa, que aparecem em 6 processos. Embora pareça um numero muito pequeno em relação a amostra, são importantes por nos apontarem além do investimento direto na borracha, mas também a posse de terras em áreas rurais, concentradas em mãos de nacionais, principalmente na região do Marajó com uma concentração de sesmarias, herança de gerações, dificultando a posse por estrangeiros, além de os portugueses serem mais frequentes no setor terciário

15 CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas. Guiana Francesa e Pará (1750-1817). In: CANCELA, Cristina Donza. Casamento e família em uma capital amazônica: (Belém 1870- 1920). Belém: Ed. Açaí, 2011.

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ligado a borracha com casas de aviamento, consignações e comissões que na extração do produto em si.

Entre os bens semoventes, escravos e animais, o numero de proprietários sofre um aumento se comparado aos anos anteriores, mas o numero de cativos cai bruscamente. Nesta segunda amostra encontramos 13 proprietários de escravos que juntos possuíam um plantel com 42 indivíduos. Os animais, em posse de 6 proprietários, se distribuem entre as fazendas e as quintas/sítios encontrados. São sobretudo gado vacum, garrotes e cavalares.

Percebemos um considerável aumento nos investimentos financeiros em comparação com a primeira amostra, sobretudo quanto a presença do dinheiro (39,2 % da amostra, correspondente a 135 portugueses) circulante e das ações comerciais (22,7%, 78 investidores), seguida das letras (27 investidores, 7,8% da amostra), dividas ativas (7,3% da amostra, correspondendo a 25 investidores) e apólices diversas (3,8%, 13 portugueses). Patrimônio durante a decadência e pós-decadência da borracha, 1910 – 1930

Em maio de 1910, afirma Weinstein, a febre pela borracha estancou, o que

parecia ser algo temporário foi se estendendo por meses, alcançando o menor valor já visto em novembro do mesmo ano, um dólar e vinte centavos.16

Em meio a falências e leilões, a amostra desse período, com um total de 216 inventários, manteve consideráveis números quanto aos investimentos na cidade, especialmente em casas e terrenos, 65,7% (109 portugueses) e 29,5% (49 portugueses), respectivamente, mantendo um perfil semelhante ao período anterior, demonstrando que os investimentos em imóveis ainda eram tidos como fontes seguras de renda, sobretudo os que se localizavam na área comercial.

O único engenho encontrado pertence a Manuel Pereira Duarte, natural do distrito de Viseu, localizado a Estrada de Ferro de Bragança onde se fabricava aguardente, farinha e ainda havia uma estrutura de serraria, propriedade conhecida por “Santa Joana”.17 As fazendas, um total de quatro ocorrências, apenas em duas é citada a localização: uma na região da Ilha do Marajó e outra na comunidade de São Domingos da Boa Vista, comarca de Belém.

Em meio a decadência da borracha, ainda encontramos muitos investimentos em ações e apólices, demonstrando a parcial estabilidade que se

16 WEINSTEIN, Op. Cit. p. 241 17 Inventário post mortem de Manuel Pereira Duarte. Centro de Memória da Amazônia. 1º Vara Cível, Cartório Santiago, 1912.

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sentia na praça do comércio de Belém, devido a estruturas que conseguiram se manter firmes mesmo em meio as falências e redução de capitais. O fato foi que a queda da economia extrativa da borracha silvestre afetou, em grande medida, as estruturas sócio econômicas de Pará e de outros estados que também usufruíam de seus lucros, como o Amazonas, justamente por ser o principal produto de exportação e o qual recebia maiores investimentos por parte de nacionais e estrangeiros, no entanto as estruturas que vieram junto ao apogeu da borracha consolidaram suas bases de modo que não sofreram tanto com a queda da economia como outros comerciantes, sobretudo os que viviam restritamente com a produção do látex.

De modo que, bancos, companhias de serviços urbanos, de seguros e de entretenimento continuaram com suas atividades ativas, sofrendo apenas um decréscimo em seus rendimentos, e em alguns casos alcançando a falência, em si.

As ações bancárias, depois do dinheiro ainda circulante na praça, assumiram supremacia nos investimentos financeiros dos portugueses de nossa pesquisa durante o período de crise, semelhante ao período anterior de apogeu da borracha.

O fim da posse de escravos, aumento dos imóveis e o aparecimento destas novas formas de riqueza, ações, contas e letras bancárias, a diminuição dos animais e o constante aparecimento de dividas ativas nos legados, constituem indicadores de transformações processadas na sociedade de Belém durante toda a segunda metade do século XIX, ligada ao desenvolvimento da cidade. A mudança nos ativos reflete os próprios movimentos da sociedade no qual os portugueses estão inseridos, que também permite visualizar os possíveis meios de enriquecimento na mesma sociedade.

Não limitando seus investimentos em ações bancárias, os portugueses também aproveitaram a remodelação da cidade, principalmente por meio do serviço de viação urbana de Belém por bondes elétricos, visto como um dos grandes exemplos de transformação na dinâmica urbana. O português Joaquim da Costa Oliveira adquiriu 330 ações da Pará Eletric, descritas em seu inventário aberto em 1913. Além das ações da empresa de iluminação e viação, o português natural de Braga, com profissão capitalista, ainda deixa de herança apólices federais, mais de cem ações do Banco do Pará e dinheiro.18

É fundamental pensar, mais uma vez, que todas essas mudanças, junto ao fluxo migratório de portugueses, acabou por estabelecer novos modos de se interpretar a sociedade, interpretar suas relações e assim abstrair desta aquilo

18 Inventário post mortem de Manuel Pereira Duarte. Centro de Memória da Amazônia, 11ª Vara Cível, Cartório Fabiliano Lobato, 1913.

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que ela mesma mantém como algo de valor, digo, abstrair os novos signos de riqueza, as novas formas de pensá-la, em uma sociedade que se manteve durante as décadas finais do século XIX e inicio do XX em um constante processo de mudança. Considerações Finais

Buscamos apresentar, de maneira bem sucinta, o trabalho que esta sendo

desenvolvido junto ao PPHIST/UFPA, e que se insere em uma rede de pesquisas/pesquisadores voltados para a ampliação e diversificação das investigações sobre a população portuguesa no Pará, em nosso caso na cidade de Belém, buscando novos temas e esclarecimentos para uma história que ainda esta sendo contada e remodelada a cada estudo.

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AS RELAÇÕES AFRO INDÍGENAS NO SISTEMA AGRÁRIO DO SÉCULO XVIII

Carlos Eduardo Costa Barbosa1

Resumo A segunda metade do século XVIII foi marcada pela implantação da Lei da Liberdade dos Índios, que tentou organizar a exploração do trabalho do nativo em outros moldes mais concernentes com o projeto de desenvolvimento agrário pensado pela Metrópole. No entanto, ao contrário do que se esperava, foi observado no período um esvaziamento das antigas povoações, em razão das fugas, e um retraimento na produção agrícola. A necessidade por mão de obra escrava fez com que fosse criada a Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão com a responsabilidade de introduzir africanos na região e não era raro encontramos negros ao lado de indígenas na produção de cana de açúcar e cacau, bem como em outras atividades que demandavam a mão de obra escrava. A busca da liberdade consistiu na fuga para os matos, onde os negros e índios se reuniam, solidários entre si, e formavam os quilombos, fato que representou o surgimento de inúmeras pequenas e médias comunidades rurais que se integravam à economia local. O presente trabalho procura discutir as relações estabelecidas entre as unidades agroprodutoras com essas comunidades marginais que compunham o sistema agrário. Palavras Chaves: Sistema Agrário, Escravidão, Quilombos, Afro Indígenas.

O século XVIII foi marcado pela economia extrativista das Drogas do

Sertão ao lado das iniciativas da grande propriedade monocultora voltada para atender as necessidades do mercado metropolitano. As ocupações na região do Vale Tocantino restringiram-se a poucas vilas e alguns lugares de índios, os quais poderiam ser divididos em dois tipos de unidades produtivas: as integradas, com a sua produção de cana de açúcar e cacau, e/ou as não tão integradas completamente ao mercado, em particular os lugares de índios. Entretanto, fato importante é a constância de reclamações que chegavam a Belém contra os mais diversos grupos que causavam “desordens”, indígenas e negros, como os residentes no mocambo de D. Maria Felipa, mas ao mesmo

1 Mestrando do Programa de Pós Graduação em História Social da Amazônia.

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tempo em que estes saqueavam e “andando as canoas della feitas piratas no mar”, prestavam serviços e comercializavam com as circunvizinhanças. O presente trabalho procura enfatizar as múltiplas relações que o elemento afro indígena desenvolvia no/com sistema agrário tocantino, em suas resistências e interações nesse sistema de unidades produtivas mais ou menos orientadas pelo projeto agrário de Pombal.

Na região tocantina encontramos dois tipos de unidades produtivas as integradas ou não ao mercado. As vilas de Cametá, Moju, Acará, Igarapé-Miri e Abaetetuba representavam as unidades integradas ao mercado, tendo sua produção de cana de açúcar e cacau. Os lugares de índios de Barcarena, Conde, Beja e Baião, as menos integradas (agricultura da mandioca, arroz, feijão, entre outros insumos agrícolas), mas que sofriam tendências à dominação do mercado2. Somado a estas encontramos os quilombos e/ou mocambos, os quais se incorporavam a economia local por meio de relações marginais de comércio, amizade, trabalho e até de parentesco. Este “campo negro”3., definido assim por Flavio Gomes, é um espaço geográfico, social e econômico que incluía senzalas, tabernas, roças, plantações, caminhos fluviais, alcançando vilas, fazendas, lugarejos e cidades a exemplo do que ocorria nos grandes centros do nordeste e sudeste em meados do século XIX.

Importante ressaltar que a maioria das pesquisas já realizadas sobre a presença do negro se concentra na região Guajarina e da foz do rio Tocantins, as quais merecem destaque as localidades de Abaetetuba, Acará, Bujaru e Cametá. Região que despertava certa sedução, principalmente as cercanias de Cametá, pois, segundo Benedita Pinto, lá ventilavam-se algumas movimentações contra o regime escravista após a adesão do Pará à Independência. Percebe-se também uma profícua pesquisa sobre a presença negra nas proximidades de Belém. No entanto, na medida em que se afasta da capital, os estudos ficam cada vez mais escassos. Poucos trabalhos fazem referência à presença do negro em localidades como Baião e Tucuruí (antiga Alcobaça).

Na região tocantina, mais especificamente na foz, onde havia uma frente agrícola caracterizada pela grande propriedade que somada à atividade extrativista ocasionou a desestabilização dos ecossistemas no Vale do Tocantins4. A degradação do meio ambiente ocorreu, em termos físicos e

2 Angelo-Menezes. Maria. Aspectos Conceituais do Sistema Agrário do Vale do Tocantins Colonial. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, Jan/Abr 2000. 3 REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 4 ANGELO-MENEZES, Maria de Nazaré. História Social dos Sistemas Agrários

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sociais, em razão das mudanças radicais dos estilos de vida que, de alguma maneira, expressavam um equilíbrio ancestral entre as pessoas e seu meio. Essa orientação do sistema agrário5 acabaria por comprometer o desenvolvimento das culturas alimentares forçando com isso uma aproximação entre as comunidades residentes numa trama de relações complexas.

A formação de agrupamentos de escravos fugitivos se deu em todo local onde predominou a escravidão, essas comunidades foram designadas mocambos ou quilombos6. As fugas para estes redutos era a melhor forma de resistir ao tolhimento da liberdade, sendo no começo, solução bastante difícil e arriscada. Estas comunidades ao contrário do que se imaginava não existiam isoladas, não objetivavam acabar com a escravidão, nem recriar a África nos Sertões.

A formação de quilombos ou mocambos representou o surgimento de inúmeras pequenas e médias comunidades rurais que se integravam à economia local. Estas microssociedades camponesas mantinham redes de apoio e de interesses que envolviam escravos, libertos, indígenas e brancos, com quem trabalhavam, negociavam suas roças e criações, armas e outros produtos. Nesta espécie de campesinato negro, sempre houve articulação com os setores sociais circunvizinhos.

Em função do não isolamento e, ao mesmo tempo, da estratégia de migração, muitos quilombos ou mocambos sequer foram identificados e reprimidos por fazendeiros e autoridades locais, alguns foram reconhecidos como vilas de roceiros negros, contribuindo para a economia local. Muitos casos de comunidades afro indígenas se mantiveram distantes da sociedade

do Vale do Tocantins-Pará-Brasil (1669 - 1800) -rupturas e estabilidades. Tese de Doutoramento apresentada a École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 1994. _________. O sistema agrário do Vale do Tocantins Colonial: agricultura para consumo e para exportação. Revista Projeto Historia: Espaço e Cultura, São Paulo, n.18, 1999. 5 O termo sistema agrário é empregado para caracterizar, dentro de um espaço determinado, a associação das produções e das técnicas praticadas por uma sociedade em via de satisfazer suas necessidades. Ele exprime, particularmente, a interação entre um sistema biológico representado pelo meio natural, e um sistema sociocultural, por meio das práticas saídas notadamente do conhecimento técnico (ANGELO-MENEZES, 1999, p. 239). 6 Vicente Salles faz uma distinção entre estes termos, em sua obra , mocambo significa uma comunidade fixa, enquanto que o termo quilombo é atribuído a comunidades provisórias.

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senhorial, sendo encontradas por expedições, como foi o caso do mocambo de Alcobaça. Estas comunidades compartilhavam a identidade étnica e as noções de território na sua base econômica agrária.

O modelo produtivo organizado pelo Diretório, que se apoiava nas bases materiais do trabalho dos antigos aldeamentos dos missionários, sofreu sérias retrações no que se refere à produtividade, devido ao novo tipo de dominação exercida sobre os índios7. Nesse período, observou-se grande escassez de alimentos em alguns lugares como no caso do lugar de Baião. Coincidem com esse período, as constantes reivindicações dos colonos junto à Coroa portuguesa por mão de obra negra. Entre as crises de abastecimento e a demanda por mão de obra, intensificou-se o comércio de africanos para a região.

No século XVIII a definição de quilombo se referia ao agrupamento de cinco ou mais negros foragidos para local incerto, tal definição fez com que os números de comunidades afro indígenas fossem inflacionados na documentação oficial. Flavio Gomes ao abordar os contatos interétnicos na formação de comunidades quilombolas afirma que na Amazônia Colonial, os contatos entre índios e negros tiveram motivações diversas. Em muitas áreas produtivas, nas feitorias e construções de fortificações, escravos, negros e índios trabalhavam juntos em vários engenhos e engenhocas de capitanias. Isto também foi recorrente até os primeiros anos do século XIX. Ali, no final do Setecentos, numa grande extensão territorial, com uma população relativamente dispersa, em qualquer lugar – guardadas as especificidades sócio demográficas de algumas áreas – tinha sempre um pouco de índio e um pouco de africano e seus descendentes. Houve permanentes fugas, formação de mocambos, conflitos e alianças. Tais contatos possibilitaram também uniões consensuais e mesmo casamentos entre índios e negros.

A proliferação de comunidades marginais veio a ser considerada pela administração da Província um problema a ser combatido, pois com a redução da mão de obra nas atividades produtivas acabavam por atrapalhar o crescimento da região. Vicente Salles, em seu “O Negro no Pará, sob o regime da escravidão” nos traz um panorama significativo desse processo de luta e resistência. O autor informa que desde o início do século XVIII há registros de quilombos e de consequentes medidas governamentais para destruí-los. Mesmo com todo o aparato estatal empenhado para desarticular os quilombos

7 Souza Junior. José Alves de. Negros da terra e/ou negros da Guiné: trabalho, resistência e repressão no Grão- Pará no período do Diretório. Afro- Ásia (UFBA. Impresso), v.48, p. 173-211, 2013.

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e mocambos, o século XVIII foi marcado pelo registro do crescente número dessas unidades de organização e luta:

A partir do governo de Mendonça Furtado as informações sôbre mocambos paraenses são mais precisas e numerosas, bem como das providências tomadas para destruí-los. Numa representação que a câmara de Belém endereçou ao governador Martinho de Sousa Albuquerque a 27 de setembro de 1788, menciona-se a força e número dos mocambos existentes em tôrno de Belém e pede-se tropas para os desbaratar (SALLES, 1971, p. 205).

Dentre os diversos mocambos relatados por Vicente Salles, um em

particular despertou o nosso interesse, pela sua localização e peculiaridade. A maioria dos mocambos se situava nas proximidades da cidade de Belém, obviamente pelo fato da região concentrar um maior número do contingente populacional dos negros. Já o mocambo de Alcobaça fugia a essas características, o mesmo se situava a cera de 300 Km de Belém, subindo o rio Tocantins acima do município de Baião e abaixo da Tapaiunacoara a primeira cachoeira do rio Tocantins:

Alguns mocambos se formaram nas proximidades da região da lavoura canavieira, bacias do Capim, Moju, Igarapé-Miri e Tocantins. Foram batidos fàcilmente alguns, outros nem chegaram a ser incomodados. A proximidade com o centro da maior concentração de escravos e da capital paraense, favorecia a rápida nucleação dos escravos e o trabalho organizado da fuga para os mocambos. Um desses situou-se nas cabeceiras do rio Itapicuru, que nasce nos campos da margem esquerda do rio Tocantins, depois engrossa suas águas com os vazadouros de igapós e igarapés, desembocando no Tocantins acima da povoação do Juaba (município de Cametá). Êsse mocambo já era conhecido no século XVIII e foi localizado quando as autoridades coloniais tentaram construir, na região de Alcobaça, um fortim (SALLES, 2013, p. 230).

Pouco se sabe sobre o mocambo de Alcobaça, um dado que se repete nas

informações de alguns pesquisadores é o fato do mesmo ter sido liderado por uma mulher, que se mantinha à frente de um significativo contingente de negros:

Contava então com mais de 300 indivíduos e era dirigido por uma mulher: Felipa Maria Aranha. Em 1895 ainda havia restos dele e Ignácio Moura informa que os negros viveram ali por largos anos “em verdadeira comuna republicana e com jurisdição policial por êles investida (SALLES, 2013, p. 230).

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No Códice das Correspondências dos Diversos com o Governo do Arquivo Público do Estado do Pará encontram-se referências à prática de pirataria nas águas do rio Tocantins, pelo “bando” da Dona Maria Felipa:

O lugar das Pederneiras nunca foi nem vai ao fundo, hê huma boa parede, e a D. Maria Felippa tem feito mtas desordens q todos se queichão dos furtos que lhe fazem e ella dis q só a cabeça vira. Continua a fazerem casas sem as acabar e (...) rossas, andando as canoas della feitas piratas no mar. DE V Exª Alcobaça 12 de julho de 17818

O lugar das Pederneiras ficava próximo a Alcobaça, e segundo relatos das

correspondências das autoridades locais com o governo da Capital, eram constantes os saques praticados pelo grupo de D. Maria Fellipa. No mesmo códice, há relatos de práticas de trocas de mercadorias entre o Mocambo e as localidades vizinhas. Se de um lado o “bando” de D. Maria Fellipa era considerado subversivo e desordeiro, por outro, estava integrado à economia de alguma maneira, o que caracteriza certo grau de ambiguidade sobre as práticas e as relações do Mocambo de Alcobaça com as localidades circunvizinhas.

O comércio clandestino e o contato de escravos fugidos, regatões, indígenas eram de conhecimento das autoridades, visível nos relatórios destas, demonstrando essa teia de relações e os laços de solidariedade entre os agentes históricos. A partir das descrições feitas pelas autoridades, no seu olhar sobre os demais sujeitos tidos por subversivos e sobre as relações clandestinas que tentavam brecar podemos observar que as relações se desenvolviam em dois sentidos quando o sertão amazônico era um labirinto verde e pouco explorado. Num primeiro sentido temos as ações dos quilombos e outros sujeitos sociais subvertendo a ordem que o sistema impunha e em um segundo momento as ações administrativas para coibir as práticas clandestinas.

Por muito tempo predominou a crença de que no espaço amazônico o grupo afro não teve presença expressiva e que a mão de obra predominante havia sido a do indígena, entretanto essa acertiva vem se alterando com os trabalhos recentes que buscam desenvolver suas analises a partir da organização do comércio de africanos para o Grão Pará dos Setecentos. Notadamente, buscando o africano na sociedade amazônica utilizando-se de critérios econômicos visto que o comércio negreiro fora montado a partir de

8 APP- CDG (Alcobaça): códice 349 – Correspondência do Comandante Diogo Rebelo de Barros para o Governador José de Nápoles Tello de Meneses.

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critérios de um politica mercantilista do estado português. Estes homens e mulheres trazidos da África acabaram sendo direcionados para as regiões próximas a Belém onde predominaram os ensaios de uma indústria agrícola.

Ao passo que se aumentava a população escrava no Grão Pará, isso é visível na documentação da companhia facilitando uma abordagem quantitativa, as fugas e a formação de quilombos e mocambos se proliferavam, fato que também é possível observar na documentação quando aborda as desordens que estes elementos causavam. É possível a partir da documentação do período traçar um quadro geral entre a entrada de elementos negros, as fugas e a formação de comunidades, bem como perceber por meio desta as interações entre as múltiplas unidades produtivas.

A documentação compilada por Anaiza Vergolino no Livro A presença Africana na Amazônia Colonial: uma noticia histórica, documentação variada, são correspondências dos moradores com o governador, correspondências do governador com os moradores, correspondências da Metrópole com os moradores e vice-versa, nesta vasta documentação as informações coletadas são diversas, onde se pode observar toda ordem de questões envolvendo o negro no período colonial, como notícias de fugas, formação de mocambos, atividades desenvolvidas pelos negros, festas, pedidos por trabalhadores pelos moradores, além de outras questões relacionadas9.

O caráter fragmentário das fontes é uma dificuldade para uma analise quantitativa mais abrangente, entretanto trabalhamos com um conjunto de fontes que possuem um caráter complementar, por outro lado existem fontes as quais não poderemos ter acesso no seu conjunto como as do Arquivo Publico do Pará. O levantamento de documentos da época em questão é de fundamental importância para elucidar as questões propostas, pois, a partir deles podemos obter informações sobre o desenvolvimento do sistema agrário que se fez na região do Baixo Tocantins, a relação entre os mocambos e as povoações que compunham esse sistema.

A leitura de autores como Benedita Celeste Pinto, Flavio Gomes, Angelo-Meneses, José Alves Junior, Jose Bezerra Maia, Mary del Pryori, em sua Historia Agraria nos fornece os conceitos a serem trabalhados dentro deste recorte temporal a fim de realizar um estudo sistemático sobre a participação do negro no sistema agrário do Vale do Tocantins do século XVIII mantendo uma visão multidisciplinar. Por conta disso, há que se buscarem elementos metodológicos da sociologia, da antropologia, da economia e da própria

9 VERGOLINO-HENRY, Anaiza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia Colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990.

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história, evidentemente. Propõe-se então uma perspectiva de uma história-problema. Basicamente, o que se propõe com essa abordagem é o reconhecimento do negro como um ser social, e que antes de ser um mero objeto de estudo é na verdade sujeito do seu próprio processo histórico, dentro de um sistema de produção/reprodução da realidade concreta.

Pretende-se ainda admitindo que o processo de escravidão do negro se dá sob a égide do sistema mercantilista/capitalista, que traz consigo todas as contradições e limitações impostas a um determinado grupo étnico no espaço e no tempo. No caso em questão, o espaço amazônico do período colonial, em que o negro foi transformado em mera mercadoria, coisificado, expropriado de sua humanidade e de sua capacidade ontológica de ser mais.

Com o trabalho, pretende-se contribuir para contar a “história dos vencidos”, dos excluídos da terra e as suas diversas formas de organização da resistência no Vale do Tocantins. Os mocambos, a exemplo de Alcobaça, ao mesmo tempo em que se configuravam como focos de resistência à escravidão, também compunham o sistema agrário nascente no Vale, o que se assemelha na atualidade ao lema do MST: “ocupar, resistir e produzir”.

Desta forma como foi apontado por Pinto (2001)10 as comunidades afro indígenas procuravam se estabelecer em locais que possibilitassem uma proteção, garantindo sua sobrevivência, à margem do escravismo, mas ao mesmo tempo buscavam desenvolver vínculos econômicos numa complexa rede de relações para além das fronteiras do “campo negro”, que exerciam um papel fundamental na sustentação econômica da região. O estudo destas relações vêm contribuindo para a construção de uma maior percepção do cenário da escravidão na Amazônia, dando a floresta cada vez mais conotações enegrecidas no que Vergolino chamou de “africanidade amazônica”, fornecendo-nos outras perspectivas sobre a atuação deste grupo no espaço amazônico.

10 PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Escravidão, Fuga e a Memória de Quilombos na Região do Tocantins. Projeto História, São Paulo, nº22, 2001.

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O CAPITAL, O TRABALHO E A MIGRAÇÃO NA AMAZÔNIA: CONDIÇÕES DE VIDA E TRABALHO NOS SETORES DE

PECUÁRIA, MINERAÇÃO, ENERGIA E REFLORESTAMENTO (1964-2014)

Carlos Eduardo Santos

Resumo A implantação do Regime Civil-Militar no Brasil implicou uma modificação significativa nas estruturas socioeconômicas da região. Esta alterou de forma inconteste as relações estabelecidas na sociedade amazônica. O capital, o trabalho e a migração na Amazônia interferiram diretamente nas condições de vida, territorialidade e nos setores da pecuária, energia, reflorestamento e mineração; claro que não de forma homogênea e progressiva. Opta-se por explanar esses cinquenta anos de inter-relações diversas em três momentos distintos, nos quais cada uma delas se detém a um período aproximado de vinte anos para uma melhor ação didático-expositiva, porém alguns assuntos não se restringem necessariamente a esses limites temporais. Palavras-chave: Amazônia, Capital, Trabalho, Migração, Sociedade.

Introdução Compreende-se que o Regime Militar no Brasil é um acontecimento

relativamente recente, assim como suas implicações, posto que neste século XXI contamos com uma produção historiográfica que se volta a esse período, em especial à Amazônia que tivera grandes mudanças, transformações e certas permanências com o advento do Regime Civil-Militar. Esta reestruturou a organização da vida, seja em suas esferas políticas, econômicas e sociais, chegando (numa visão generalizante) a pobres e ricos; homens e mulheres; jovens, adultos e idosos; estudantes, trabalhadores (urbanos e rurais), políticos, militantes partidários, civis; Igreja Católica e outros segmentos da sociedade.

Na perspectiva de Sônia R. Mendonça e Virgínia M. Fontes, o Regime Civil-Militar apresentava as seguintes características: 1) Participação do Estado na economia em especial à gestão e produção do sistema financeiro: torna-se o grande gerador e direcionador de grande parte das ações político-econômicas do país, limitando cada vez mais a participação dos grupos locais e/ou regionais aumentando o caráter centralizador do Governo Federal; 2)

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Extensão das atribuições do executivo: o poder executivo passa a concentrar e desempenhar funções que ora estavam a cargo de outras instâncias ou instituições; 3) Aparato repressivo: desenvolve-se nesta ocasião atos e órgãos governamentais com a justificativa de zelar pela segurança e manter a ordem combatendo, portanto, grupos que poderiam destruir as bases e toda a estrutura constituinte da sociedade; 4) Várias tentativas de legislação: como a ascensão política administrativa do governo deu-se através de um golpe, foram feitos vários atos e campanhas a fim de propiciar a sua legitimidade perante a sociedade e à comunidade internacional com mudanças realizadas em seus órgãos gestores e deliberativos, além dos atos institucionais que regulamentavam uma nova forma de atuação do poder executivo.1

Achar que o Regime Militar foi o mesmo desde o seu início é um erro histórico grave, posto que, segundo Daniel Aarão Reis2 afirma a ocorrência de súbitas mudanças e transformações no seio da sociedade brasileira de caráter particular ao contexto. Nos 21 anos em que os militares estiveram no poder, sofreram reveses – políticos, ideológicos, sociais e econômicos - que tanto modificaram o regime político como, de certa forma, a fizeram perdurar por mais de duas décadas.3

Além desse período ditatorial, temos o retorno da Democracia e uma série de novas medidas que também influenciaram a dinâmica amazônica, dentre elas a Nova Constituição Federal (1988), os novos parâmetros políticos e econômicos existentes nos estados, nos quais os grupos políticos locais ascenderam e galgaram mais poder de decisão nos planos pensados pera a Amazônia ou para o estado em específico. Nota-se, entretanto, que embora tivéssemos mudanças, elas não foram inteiramente drásticas. Pere Petit assim analisou o processo eleitoral do Pará do ano de 1994:

(...) A base de sustentação partidária do governo tucano constitui, guardando-se diferenças decorrentes do momentos histórico, uma reprodução da Aliança Democrática que elegeu Tancredo e sustentou Sarney nos seus primeiros anos de mandato – ainda ampliada, pela direita, com a participação das ex-lideranças do PDS (...)4

1 MENDONÇA, Sônia Regina de. & FONTES, Virgínia Maria. História do Brasil Recente: 1964-1992. 4ª Edição. São Paulo: Ática, 1996, p. 05-06. (Coleção Princípios). 2 REIS, Daniel Aarão. “Ditadura e Sociedade”. In: REIS, Daniel Aarão. & RIDENTI, Marcelo. & MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Golpe e a Ditadura Militar: Quarenta Anos Depois (1964-2004). Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004. 3 Idem, p. 41. 4 PETIT, Pere. A Esperança Equilibrista: A Trajetória do PT no Pará. São Paulo: Boitempo; Belém: NAEA, 1996, p. 244.

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E continua: A predominância de políticos conservadores na Assembleia Legislativa paraense e, inclusive, o ingresso de proeminentes figuras do empresariado local no ‘novo’ partido no poder (PSDB) fazem termer que tampouco o governo de Almir Gabriel atacará os problemas de moradia, saúde ou educação, ou tocará nos interesses dos grandes proprietários de terra. Assim, apesar de previsíveis mudanças na gestão da ‘coisa pública’, não deverão surgir mudanças substanciais nas condições de vida da maioria da população paraense nesse governo.5

Primeiros momentos: décadas de 1960-1970

A partir da década de 1960, a Amazônia passaria por um processo de

intensa transformação em sua economia e sociedade. Tal mudança, segundo o historiador Pere Petit em “Chão de Promessas”,6 sustentou-se principalmente pelos processos de migração e o incremento de grandiosos projetos de exploração desenvolvidos pelos governos militares.

O capital, o trabalho e a migração foram intensificados a partir de uma política nacional-desenvolvimentista que pregava a defesa daquilo que pertenceria ao Brasil, assim como o desenvolvimento das regiões brasileiras, incluso a Amazônia num desejo de integração nacional. Isto ocorreu a partir das ações das Forças Armadas e pelos tecnocratas das diferentes instituições da Administração Federal que instauraram novas tecnologias e novas formas organizacionais de estruturação sociopolítica Amazônica.7

A região amazônica “(...) apresentou ritmos acelerados de crescimento, decorrentes de grandes fluxos migratórios oriundos das regiões Sul, Sudeste e ainda Nordeste (...)”.8 Esta ocupação foi possibilitada com a expulsão de agricultores; construções de vias de acesso no Centro-Sul e Nordeste, além de certa urbanização da região. Gilberto Rocha afirma que as formas de ocupação alicerçaram-se numa política de desenvolvimento, pois

5 Idem, ibidem. 6 PETIT, Pere. Chão de Promessas: elites políticas e transformações econômicas no estado do Pará pós-1964. Belém, 2003. 7 Idem, p. 24. 8 BUARQUE, Sérgio C. & LOPES, Antero Duarte. & ROSA, Teresa Cativo. “Integração Fragmentada e Crescimento da Fronteira Norte”. In: AFFONSO, Rui de Britto Álvares. & SILVA, Pedro Luiz Barros. (Organizadores). Desigualdades Regionais e Desenvolvimento. São Paulo: FUNDAP; Editora UNESP, 1995, p. 99. (Federalismo no Brasil).

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(...) a forma de urbanização se implantou, também, de maneira diferente; ora foi induzida pelo processo de colonização (...) ou pela mineração e por obras de infra-estrutura energética e transporte (...); ora surgiu pelo planejamento da implantação das grandes rodovias (...).9

Isso levou a consideráveis disparidades na ocupação, planejamento e

efetivação de um processo nacional que gerou distintas consequências e demandas sociais no qual estavam inseridos agricultores, pequenos empresários, trabalhadores e grandes conglomerados nacionais e internacionais. Essas políticas públicas de integração, desenvolvimento e aumento demográfico advindas com a migração intensa acarretaram que em 1960 a população do Norte10 totalizava um pouco mais de 2,5 milhões de habitantes. Na década de 2000 esse número chegou a mais de 12 milhões de habitantes conforme a tabela abaixo.11

População do Estado do Pará; Região Norte e Brasil (1950-2010).

Ano Pará Região Norte Brasil

1950 1.123.273 1.844.655 51.944.397

1960 1.529.293 2.561.782 70.070.457

1970 2.167.018 3.603.860 93.139.037

1980 3.411.868 5.893.136 119.070.865

1991 5.181.570 10.257.266 146.825.475

2000 6.188.685 12.897.082 169.779.170 Tabela 1: População do Estado do Pará; Região Norte e Brasil (1950-2010). Fonte: IBGE: Anuário Estatístico do Brasil-1981; Censo de 1991; e Sinopse Censo 2000. Apud. PETIT, Pere. “Políticas Públicas, Élites Económicas y Discursos Regionalistas en el Estado de Pará em Tiempos de la Ditacdura y la Nova Republica”. In: PÉREZ, José Manuel Santos. PETIT, Pere. La Amazonia Brasileña en Perspectiva Histórica. Salamanca-Espanha: Aquilafuente; Ediciones Universidad Salamanca, 2006, p. 137.

9 ROCHA, Gilberto de Miranda. Todos Convergem para o Lago! Hidrelétrica Tucuruí. Municípios e Territórios na Amazônia. Belém: NUMA-UFPA, 2008, p. 25. 10 Adota-se o termo “Norte” porque os dados do censo do IBGE consideram a divisão político-administrativa por regiões denominadas Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A Amazônia Legal, no caso, engloba a região Norte, parte norte da região Centro-Oeste e parte do estado do Maranhão pertencente à região Nordeste. 11 PETIT, Pere. “Políticas Públicas, Élites Económicas y Discursos Regionalistas en el Estado de Pará em Tiempos de la Ditacdura y la Nova Republica”. In: PÉREZ, José Manuel Santos. PETIT, Pere. La Amazonia Brasileña en Perspectiva Histórica. Salamanca-Espanha: Aquilafuente; Ediciones Universidad Salamanca, 2006, p. 137.

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No período de 1970 a 1980, a Região Norte teve sua mais alta taxa média de crescimento anual em número de habitantes (5,02%) enquanto que a do Brasil foi de 2,48%. Observa-se que esse aceleramento da integração à economia nacional e internacional é reflexo também das preocupações geopolíticas da cúpula militar quanto ao controle dos espaços fronteiriços.12 Segundo dados do Censo do IBGE de 2010, a população do Estado do Pará, da Região Norte e do Brasil são respectivamente 7.581.051, 14.511.009 e 190.755.79913. Ainda há um fluxo de migração para o norte, porém reduzido quando comparados à décadas de 1970-1980; e este dá-se também de forma intreregional.

Cabe ressaltar que o processo de migração não se iniciou nesse momento. Pere Petit ao expor as matrizes de análise da Amazônia adverte que a mesma foi compreendida a partir de ciclo econômica, no qual se destacam a Época da Borracha (1870-1920) e dos Grandes Projetos (1970-1980), que impulsionaram tal movimento migratório. Além disso, as migrações no período pós-1964 apresentam uma característica peculiar, sendo formada por contingente nacional oriundos do Nordeste e Centro-Sul do país em direção ao interior da Amazônia, mais precisamente nas áreas de atuação do governo federal.

Thomas Skidmore e Edgar Luís de Barros atestam que o desenvolvimento da Amazônia, segundo a ótica do governo militar, teve como base o investimento de capital estrangeiro aliado a políticas nacionalistas, no qual possibilitaram um maciço investimento em diversos setores da região, destacando-se o da mineração e energia, como o Programa Grande Carajás, construção da Hidrelétrica de Tucuruí e as diversas ramificações do PIN (Programa de Integração Nacional).

Segundo Thomas Skidmore, os militares acreditavam que a Amazônia propiciaria o desenvolvimento da nação e sanaria os problemas de conflito agrário em outras regiões tendo como marca principal o slogam “Terra sem Homens para Homens sem Terra” lançado pelo Governo Federal na década de 1970. Os migrantes se tornavam um importante elemento do novo sistema de trabalho da região que alijara a exploração de produtos como a castanha, a borracha; dando força à produção agrícola e pecuarista.

Otávio Ianni e Sérgio Buarque usaram a categoria “Fronteira Norte” para expressar a visão de lugar a ser povoado e dominado pela nação. Otávio Ianni afere o governo na década de 1960-1970 da agricultura um meio para dominação e manutenção do território amazônico.

12 PETIT, Pere. Op. Cit, p. 35. 13 IBGE: Censo Demográfico 2010: Migração.

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Segundo Momento: décadas de 1970-1980 Thomas Skidmore e Élio Gaspari afirmam que nas décadas de 1970-1980 a

população residente na Amazônia deparou-se com diversos movimentos sociais, com grande destaque ao campo que se viu às voltas com a Guerrilhas do Araguaia, conflitos agrários, aumento demográfico resultante dos projetos agropecuários pensados para a região.

Em estudo anterior à “Chão de Promessas”, Pere Petit investigou a formação do Partido dos Trabalhadores no Pará, que pode ser observado em “A Esperança Equilibrista”. Nessa pesquisa, autor também aborda como se desenvolveu os conflitos agrários na Amazônia, principalmente no Pará (algo que se repetiria na mídia nacional no transcorrer dos anos). Pere Petit enfatiza que os conflitos agrários já existiam pré-1964, porém em decorrência do processo migratório, do capital e dos projetos de desenvolvimento empreendidos na região, as condições de vida e trabalho em parte significativa da sociedade que atua na pecuária, mineração e energia se agravaram.

O alto número de trabalhadores desempregados ou sem qualificação; e a concentração de terra na região implicou em reiteradas exigências de cada um dos setores envolvidos por seus direitos, no qual muito delas terminaram em confronto direto entre os mesmos. Assim, vê-se o erigir e/ou fortalecimento de movimentos sociais que reúnem sindicatos, trabalhadores rurais, posseiros, membros da Igreja Católica – destaca-se aí a Comissão Pastoral da Terra – que com diversos interesses e objetivos ora apoiam-se, ora entram em desacordo.

Gilberto Rocha em estudo intitulado “Todos Convergem para o Lago! A Usina Hidrelétrica de Tucuruí” apresenta como as redes de relações daquela população foram brutalmente alteradas. As relações econômicas de então deram lugar àquelas propiciadas pala hidrelétrica, pelo alagamento da região, o remanejamento dos moradores, os migrantes que agora residem lá, o que implicou numa reordenação das condições de vida, no qual tudo passa a depender da hidrelétrica. Um exemplo disso é o surgimento dos MABs (Movimento dos Atingidos pela Barragem), que exigem indenização e reparos pelas diversas perdas que sofreram com a construção de Tucuruí.

Em vez da tão propugnada irradiação do desenvolvimento econômico, efeito dissolventes, de reprodução do subdesenvolvimento, de pauperização social e de degradação ambiental refletem a intensidade da drenagem energética e material instaurada. Nesse sentido, tem se estabelecido na área de Tucuruí uma dinâmica

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extratora que se verifica tanto na geração de energia quanto na produção de recursos de exploração.14

Em mesma premissa, Edna Castro organiza um estudo sobre a estada

Santarém-Cuiabá, a BR-163 e seus desdobramentos. Nesse estudo, Edna Castro, Gilberto Rocha e outros autores analisam as condições da população próxima da BR em questão e os impactos sociais e ambientais resultantes de sua construção. Sobre o primeiro, observa-se a reordenação das condições de vida da população, no qual passa a depender da BR-163 para sobrevivência desenvolvendo atividades tais como venda de produtos ao longo da estrada; cobranças ilegais de pedágios, limpeza dos pontos danificados (buracos principalmente) mediante pagamento. Outro ponto é o seu uso por parte dos grandes proprietários para a escoação de seus produtos e pouca assistência dos governos aos pequenos produtores, que enfrentam uma disputa desfavorável contra o grande capital (externo e interno), além do conflito de terras, principalmente daquelas próximas à BR-163.

A intervenção militar na Amazônia teve grande influência no processo de povoamento, integração econômica e as novas sociabilidades na região. Setores agrícolas tiveram uma expansão aumentando as disputas por terras no estado, acarretando num acirramento político entre sindicatos, órgão de defesa dos direitos humanos (nacionais e internacionais), trabalhistas. Movimentos sociais reivindicaram de forma mais veemente demandas antigas como a regularização de moradia observada na criação, por exemplo, de comissões de bairros. Luta estudantil com a carteira de meia passagem e reforma do ensino. Lutas essas que não estavam dissociadas das demais reivindicações nacionais.15 Somam-se a essa disputa também grupos indígenas, madeireiros, empresas, garimpeiros, hidrelétricas.16

Terceiro momento: décadas de 1980-2014

Daniel Aarão Reis ao fazer um balanço sobre o fim da Ditadura no Brasil, afirma que tanto a sociedade como os governos seguintes procuraram distanciar sua imagem da ditadura e tudo ligado a ela.17 Assim, alguns projetos abandonados no decorrer dos anos ganharam novos impulsos, a fim de solucionar os problemas da região. Pere Petit ao explanar sobre os governos

14 ROCHA, Gilberto de Miranda. Op. Cit., p. 163. 15 PETIT, Op. Cit., p. 30. 16 PETIT, Pere. Op. Cit., p. 138-139. 17 REIS, Daniel. Op. Cit.

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da Redemocratização no Pará atesta que os mesmos implantaram novos meios de subsistência da população local, assim como incentivaram determinadas produções locais.

Nos últimos vinte anos observamos o incentivo e aumento considerável dos setores de pecuária, energia, mineração e reflorestamento. A pecuária e energia ampliaram seus domínios a partir do investimento do governo estadual e da política de privatizações, em especial do setor energético. Este último viu a ampliação das redes de energia, a partir dos convênios entre a União e o Estado. Áreas como o Marajó, Sul e Oeste do Pará têm uma rede elétrica significativa, o que acarretou num aumento nos setores de comércio e empregos.

Essas dinâmicas econômicas e populacionais resultaram em uma alteração na estrutura produtiva, percebida na industrialização da região; uma participação maior na economia nacional, na qual se atenta para o setor industrial e agropecuário, mais especificamente, do rebanho bovino; participação nas exportações brasileiras, além de uma mudança na estrutura da mesma, primando por produtos semimanufaturados, mas ressaltando que os produtos básicos ainda constituem o principal item de exportação da região Norte.

Ressalta-se, entretanto, que elas provocaram “(...) uma deterioração do meio ambiente, especialmente a redução da cobertura da floresta e a destruição de parcela da floresta tropical (...)”.18Violeta Loureiro, adverte que nos últimos anos, a massa florestal vem sendo queimada indiscriminadamente. Em trinta anos (1970-2000) 14% foi perdida. Taxa essa extremamente superior quando comparada a outros períodos.19 A discussão acerca do reflorestamento também se sustenta no que tanque ao extrativismo vegetal, no qual possibilitaria o sustento de grupos populacionais reduzidos e de grandes corporações com a produção de medicamentos, inseticidas orgânicos, cosméticos, perfumes, novos alimentos, novas frutas; muito deles industrializados.20

18 BUARQUE, Sérgio C. & LOPES, Antero Duarte. & ROSA, Teresa Cativo. Op. Cit., p.102. 19 LOUREIRO, Violeta. “Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a (re)construir”. In: Estudos Avançados. 16 (45). São Paulo, 2002, p. 113. 20 Idem, p. 116.

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Imagem 7: Desmatamento da Amazônia: Área Mantida. Área com

consideráveis índices de desmatamento. Área com graves índices de desmatamento. Disponível em: http://www.imazon.org.br/mapas/desmatamento/desmatamento-na-amazonia/image Apud. PETIT, Pere. “Políticas Públicas, Élites Económicas y Discursos Regionalistas en el Estado de Pará em Tiempos de la Ditacdura y la Nova Republica”. In: PÉREZ, José Manuel Santos. PETIT, Pere. La Amazonia Brasileña en Perspectiva Histórica. Salamanca-Espanha: Aquilafuente; Ediciones Universidad Salamanca, 2006, p. 141.

Já a área social continua com índices baixíssimos, mantendo um quadro de

pobreza, desigualdades sociais latentes, concentração de renda, tendo uma relativa melhora, por exemplo, com a taxa mortalidade infantil menor, as de alfabetização e fornecimento de energia elétrica e água, maiores.

A mineração, pecuária e energia, segundo Marlene Silva aponta uma valorização nas áreas de reflorestamento, no qual os três setores citados a pouco atuam, porém de forma ínfima.21 Além disso, institutos e órgãos como o NAEA (Núcleo de Altos Estudos da Amazônia) e NUMA (Núcleo de Meio Ambiente da Amazônia) apresentam diversos estudos que valorizam a política de reflorestamento. Essa pauta passou a ser frequente nos atuais debates sobre a Amazônia, no que concerne ao uso de seus recursos e sociedade presente nela.

21 SILVA, Marlene de Deus Tavares da. Estudos Amazônicos: o Pará em Questão. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2003.

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Considerações Finais

A Amazônia e sua diversidade não podem ser totalmente esquadrinhas em um texto sintético como este, mas na medida do possível traçamos algumas linhas de análise sobre as interferências dos governos militares e da redemocratização nas condições de vida e trabalho nos setores de pecuária, mineração, energia e reflorestamento, tendo como norte o capital, trabalho e migração.

A dinâmica do capital internacional alicerçada nas empresas e com apoio do governo estimularam um reordenamento da ralação de trabalho e de trabalhadores, no qual atividades locais (muito delas seculares, como o extrativismo) perderam importância diante das extremas exigências do mercado e circulação do capital, vislumbrada nos Grandes Projetos e nas empresas ligadas direta e/ou indiretamente a eles.

Um dado que ganhou grande notoriedade são os complexos e tensos conflitos agrários, no qual o estado do Pará tem graves índices de assassinatos do campo, sejam dos anos 1970 ou mesmo nos anos mais recentes, haja vista que o homicídio da Irmã Dorothy Stang completa uma década no ano de 2015 e outros ainda ocorrem atualmente. Aliado a isso, o grupo de trabalhadores e os seus respectivos trabalhos encontram-se em inúmeras disparidades que perpassam por localidade, função, quantidade, entre outros. Exemplo disso é o número de empregos propiciados pela hidrelétrica de Tucuruí pós-inauguração, no qual o efetivo caiu drasticamente, posto que só há cargos para operação e manutenção da mesma.

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A FORMAÇÃO DAS REDES SOCIAIS ENTRE ESCRAVOS NO SERTÃO DO PIAUÍ (SÃO RAIMUNDO NONATO-PI, 1871-1879

Déborah Gonsalves Silva1

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar as relações de compadrio estabelecidas entre livres e escravos em São Raimundo Nonato entre 1871 e 1879, atentando especialmente para a possibilidade de mobilidade espacial entre os cativos envolvidos no ritual de batismo. Utilizaremos os registos de batismo de filhos de cativas que estão sob a guarda do Arquivo da Cúria Diocesana da Paróquia de São Raimundo Nonato. Desse modo, procuraremos compreender que aspectos influenciaram nas escolhas dos padrinhos e madrinhas e quais as estratégias tecidas por escravos, livres e libertos através do parentesco ritual.

Palavras-chave: Escravidão. Família. Compadrio. Sertão do Piauí.

A Vila de São Raimundo Nonato, Piauí Tomamos, como contexto espacial, a Vila de São Raimundo Nonato, hoje

atual Município homônimo, localizado no Sudeste do Estado do Piauí. Região de caatinga, situada na fronteira geológica entre a planície da Depressão Periférica do São Francisco e a Bacia Sedimentar Piauí-Maranhão, de rica biodiversidade e às margens do Rio Piauí, ocupada, inicialmente, por povos nativos e, em seguida, pelos desbravadores do sertão do Piauí.

Durante o século XIX, a região em estudo caracterizou-se por uma produção voltada, principalmente, para o mercado interno, através da agricultura de subsistência e da pecuária. Além disso, é necessário salientar que essas características tornaram o modelo de produção peculiar em relação às regiões de grandes plantéis voltadas essencialmente para o mercado externo, e refletiram diretamente no regime escravista local, marcada por uma estrutura de posse escrava com pequeno número de cativos por propriedade.

O recorte temporal compreende os anos de 1871 a 1888, período marcado por fatores que, no contexto nacional (como a Lei do Ventre Livre, a intensificação do tráfico interprovincial) e regional (como as fortes secas que

1 Doutoranda em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará –

UFPA.

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atingiram a região no início da década de 70), foram responsáveis por provocar algumas transformações na vida social e material desses indivíduos e que, hoje, possibilitam a análise das implicações causadas pela conjuntura da época para a vida da população dessa região.

A partir da análise de um conjunto de fontes, identificamos que a reprodução natural entre a população escrava de São Raimundo Nonato pode ter sido utilizada como um mecanismo para a manutenção da posse escrava, visto que a partir da proibição do tráfico atlântico ocorreu a intensificação do tráfico interprovincial e, consequentemente, o aumento da venda de escravos das regiões de economia de subsistência para áreas voltadas para a agricultura exportadora2.

Relações familiares e de compadrio

Sabemos que o compadrio não se constituía como única possibilidade de

ampliação das redes de parentesco e, portanto, existiam outras relações que eram estabelecidas pelos cativos e que demonstram as estratégias dos mesmos no tocante às alianças de parentesco e à convivência entre estes e os senhores. Neste sentido, a família escrava pode dizer muito a respeito das redes de sociabilidade que envolviam escravos, libertos e livres no contexto escravista.

Ao tratar do trabalho escravo e dos sacramentos batismais e matrimoniais na Província do Piauí, Miridan Falci3 (1995) observou a formação de três tipos de família escrava: nuclear, matrifocal e solitária4 entre os escravos do sertão do Piauí. Mas que tipo de família predominava entre os escravizados de São Raimundo Nonato? Atualmente, já não se discute sobre a existência ou não da família escrava, principalmente porque estudos recentes têm mostrado que a estruturação familiar de escravos foi uma realidade no contexto escravista. Compreender o seu significado para cativos e senhores tem sido a grande questão nos estudos da escravidão. Entender quais as estratégias utilizadas pelos cativos quanto às alianças de parentesco e, especialmente, qual o significado da família para cativos e senhores faz parte do conjunto de questões pertinentes a essa temática.

2 Sobre essa possibilidade ver GUTIÉRREZ, Horácio. Demografia escrava numa

economia nãoexportadora: Paraná 1800-1830. Revista de Estudos Econômicos. São

Paulo: 17 (2), 1987, p. 297-314. 3 FALCI, M. B. K. Escravo do sertão: demografia, trabalho e relações sociais: Piauí

1826-1888. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. 4 As famílias nucleares são entendidas como as que são formadas pelo casal e um ou

mais filhos. Em seguida, aquelas formadas apenas pelo casal, são as famílias solitárias.

As famílias matrifocais, apresentam apenas a mãe e seus filhos. (MOTA, 2012, p. 81).

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O organograma em continuidade (figura 1) destaca a formação de uma família nuclear, isto é, composta pelos pais e seus filhos. O casal Maria e Zacarias pertencia ao Pe. Sebastião Ribeiro Lima, mesmo padre que celebrou o ritual de batismo dos quatro filhos deste casal. A trajetória desta família pode ser acompanhada pelos assentos de batismo dos filhos e pelo registro de casamento de Maria e Zacarias. Inicialmente, verifica-se um intervalo de quatorze anos entre a oficialização da união, através do casamento, até o nascimento e batismo do primeiro filho5.

Esse fato não anula a possibilidade do casal ter outros filhos com datas de nascimento durante esse intervalo de tempo, porém prefere-se utilizar a data de batismo do primeiro filho como ponto referencial, visto que não foram encontrados registros de batismo de algum filho do casal com data anterior. É certo que esses vinte e um anos entre a data do casamento e o batismo do último filho6, podem representar a possibilidade de existência de uma família cativa estável no sertão piauiense, porém não é possível afirmar que essas famílias não se encontravam vulneráveis à constante ameaça de separação. É o que Eric Foner7 (1988, p.17) pondera quando afirma que “está claro que fortes laços familiares existiram durante a escravidão, mas sempre foram vulneráveis às rupturas”. Desse modo, é possível que o casal tenha tido outros filhos anteriores à oficialização do matrimônio ou mesmo após esse ritual e que podem ter sido separados de seus pais por inúmeras circunstâncias, talvez por esse motivo ocorra a ausência de outros filhos nos registros.

Experiências de compadrio escravo no Sertão

Dos assentos de batismo em que o casal é mencionado como pais do

rebento, foram localizados quatro registros entre 1872 e 1879. A partir do apadrinhamento dos rebentos é possível verificar também as estratégias de parentesco ritual estabelecidas pelo casal, especialmente pela escolha dos padrinhos, na maioria das vezes, pessoas de condição jurídica diferente e que, muitas vezes, residiam em outras propriedades.

O primeiro filho do casal foi Raimunda, nascida em dezesseis de fevereiro de 1872, foi levada a pia batismal em vinte e um de março do mesmo ano.

5 Além de utilizar o nome como referencial de busca e cruzamento de informações,

utiliza-se também, como referência de início das relações, a data de nascimento do

primeiro filho do casal. 6 Pode ser que outros filhos vieram após 1879, porém não foram localizados outros

registros de batismo que confirmassem essa possibilidade. 7 FONER, Eric. Nada além da liberdade: Escravidão – O significado da liberdade.

Revista Brasileira de História nº16; 1988.

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Raimunda teve como padrinhos um casal de condição jurídica livre, Jerônimo de Sousa Nogueira Boson e Lima e Francisca Adelino Lopes de Sousa Lima, ambos possivelmente parentes do proprietário do casal, pois ocorre repetição de sobrenomes em três casos de apadrinhamento. Pouco mais de um ano depois, nasceu Joaquina, a segunda filha do casal que foi batizada em maio de 1873 por pessoas de condição livre, Licurgo de Paiva e Maria Constantina Boson e Lima (ver organograma na sequência).

FIGURA 1 – Família do casal de cativos Zacarias e Maria.

As duas últimas filhas do casal receberam o nome de Maria. A primeira nasceu em dezembro de 1876 e foi batizada em fevereiro de 1877, tendo como padrinho o proprietário de escravos Luís Correia Lima e, como madrinha, a escrava Laurinda, cativa de Luís Correia Lima. Essas informações revelam que havia possibilidade de estabelecer relações de parentesco com pessoas livres ou escravas de diferentes propriedades e, sobretudo, que a escolha de compadres e comadres partia de uma rede de relações e de interesses bem mais complexas, visto que para a mesma família, por exemplo, ocorrem relações de parentesco entre pessoas de condições jurídicas diferentes e, em alguns casos, envolvendo o senhor do próprio escravo. A quarta filha do casal, que também recebeu o nome de Maria, nasceu em abril de 1879 e foi batizada dois meses depois pelo casal Constatino de Souza

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Nogueira Boson e Lima e Guilhermina Constantina Boson e Lima, ambos eram pessoas livres e proprietários de escravos.

Consideramos que havia o interesse por parte do casal Zacarias e Maria de estabelecer laços com pessoas de condição jurídica diferente, nesse caso, a rede de parentesco com pessoas livres esteve praticamente concentrada na família Boson e Lima. Não é possível afirmar sobre as razões destas escolhas, mas certamente havia um jogo de interesses tanto por parte dos cativos como pelo seu proprietário ou ainda pelos padrinhos, o que se nota é que os Boson e Lima possuíam relações de parentesco com o Pe. Sebastião Ribeiro Lima, e que isso pode ter influenciado o casal de escravos na escolha dos padrinhos de seus filhos.

Possivelmente, entre os interesses contidos no estabelecimento de relações de compadrio com pessoas livres, estava o de proteção, pois “[...] a possibilidade da separação de familiares através da venda, na segunda metade do século XIX, existia e amedrontava principalmente os escravos que viviam em pequenas propriedades” 8

Tecer essas redes de parentesco tanto com outros escravos, como pessoas livres, proporcionava ampliar o raio de proteção e solidariedade.

No que concerne à única madrinha com a mesma condição jurídica do casal, observamos a estratégia de garantir a manutenção das relações existentes entre os mesmos e, ao mesmo tempo, a possibilidade de que seus filhos pudessem ser ajudados pela comadre Laurinda, caso precisassem. Essa tentativa pode ser percebida também na escolha das testemunhas do casamento do casal, ambas eram escravos e pertencentes a outros proprietários de diferentes propriedades, ocorrendo, portanto, uma tentativa de ampliação das redes de solidariedade entre a comunidade escrava nos dois casos.

A cativa Maria, por exemplo, também apadrinhou três rebentos, filhos de escravas que pertenciam a diferentes proprietários e que viviam em outras propriedades, o que demonstra a possibilidade que o cativo tinha de ultrapassar as barreiras da propriedade em que vivia e estabelecer relações com outros cativos para além dos limites da fazenda. Como destacam Florentino e Goés “[...] na verdade, o que se buscava era aumentar o raio social das alianças políticas e, assim, de solidariedade e proteção, para o que se

8 ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de Famílias Escravas em Campinas ao

longo do século XIX. (Dissertação de Mestrado) Campinas-SP, 1999, p. 127.

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contava inclusive com ex-escravos, escravos pertencentes a outros senhores e, em casos eventuais, com alguns proprietários”.9

Outro caso de formação familiar e estabelecimento de parentesco é o da cativa Amância, escrava de Jorge Ferreira de Oliveira, proprietário da Fazenda Tigre. Além de Amância, foram encontrados registros de mais quartro cativas pertencentes a Jorge Ferreira de Oliveira e todas elas possuíam, em média, cinco filhos cada uma. Amância batizou seis filhos entre 1873 e 1884, sendo que dois destes eram do sexo masculino e os demais do sexo feminino.

Nesse caso, a família de Amância seria considerada matrifocal, pois a formação desta está em torno apenas da figura da mãe e dos filhos, em razão da ausência da paternidade dos rebentos nos assentos de batismo. Porém, é necessário ressaltar, mais uma vez, que a ausência do pai nos registros de batismo está relacionada principalmente ao não reconhecimento pela igreja das relações consensuais existentes entre os pais das crianças, o que não significa que a cativa Amância não possuía um companheiro. Tarcísio Botelho chama a atenção para essa questão salientando que:

[...] a possível ausência do pai escravo deve ser posta em dúvida, já que pode estar sendo influenciada pela documentação utilizada. Apenas os laços conjugais legalmente sancionados eram levados em consideração. Assim muitos núcleos familiares que apareciam constituídos apenas de mãe e filhos poderiam na verdade contar com a presença de um parceiro masculino fixo, que também dividiria atribuições e encargos. 10

Em segundo lugar, detaca-se a frequência, pelo menos em tese, de relações

consensuais entre casais que residiam em diferentes propriedades, principalmente para aqueles que pretenciam ao mesmo proprietário, mas que desenvolviam suas atividades em propriedades diferentes. E, no caso de Amância, a quantidade de filhos nascidos em curtos intervalos de tempo, entre um e outro, leva a crer que havia um relacionamento estável.

Entretanto, outras questões podem explicar a ausência da paternidade nos registros. Uma delas diz respeito a separação do casal principalmente por venda, este assunto já foi mencionado em capítulo anterior em que se destaca,

9 GOÉS, José Roberto Pinto de. FLORENTINO, Manolo. A paz das senzalas:

famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790 – 1850. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1997, p. 90. 10 BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia e família

escrava no norte de Minas Gerais no século XIX. São Paulo: FFLCH/USP, 1994, p.

127.

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para esse período, a possibilidade de venda de cativos do sexo masculino em grande número para outras regiões do país, principalmente para a região Sudeste. Destarte, ocorre a impossibilidade de afirmar a presença da parternidade, visto que não foi possível localizar o registro de casamento de Amância, pois pode ser que a mesma não tenha oficializado a união com o pai das crianças, se for considerado o fato de que muitos proprietários de escravos não apoiavam o casamento a fim de não enfrentarem problemas com a lei, caso desejassem, futuramente, vender um dos cônjuges.

Além da formação familiar, o parentesco ritual estabelecido através do batismo pode ser investigado no sentido de identificar a utilização do mesmo como uma estratégia de sobrevivência, mobilidade social e proteção. A documentação evidencia a predominância de pessoas livres para apadrinharem os filhos das cativas, sendo que poucos são os registros em que libertos apadrinham filhos de escravos e nenhum caso (do escopo documental utilizado por esta pesquisa) em que um escravo serve como padrinho de filhos de libertos ou livres.

Ocorre, no último caso, a nítida presença na sociedade escravocrata da relação hierárquica “para as atitudes, para as ações”, pois nenhum escravo chegou a ser padrinho ou madrinha de uma pessoa livre, porém a maioria dos padrinhos de filhos de escravos eram livres. “[...] Mas, nem por isto cativos deixaram de se relacionar com livres e liberto, [...] embora resguardando hierarquia de valor nestas nelações.”11

Para o recorte temporal estudado em São Raimundo Nonato, grande parte das cativas preferia pessoas livres ou libertas para apadrinharem os seus filhos, como foi o caso da escrava Amância (figura 2)12.

11 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 199, p. 292. 12 Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registros de Batismo de

Filhos de Escravos (1871-1888).

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FIGURA 2 – Família da Cativa Amância.

Essa maioria de padrinhos e madrinhas livres é evidente no caso da cativa

Amância. Mas, quais foram as estratégias utilizadas por Amância quanto ao parentesco ritual estabelecido pelo batismo? Dos seis filhos batizados, apenas dois tiveram, pelo menos, um dos padrinhos na condição de escravo. João, cabra, nascido em março de 1875, foi batizado, em junho de 1877, pelo escravo Manoel da Cruz e por Savina Maria de Jesus, de condição livre. Manoel da Cruz era cativo de Antonio da Costa Passos, proprietário da Fazenda Caldeirão e casado desde outubro de 1852 com Savina Maria. Percebemos, nesse caso, uma aliança de parentesco através do compadrio que envolvia escravos e livres e acreditamos que, ao escolher o casal de padrinhos de João, a mãe do rebento procurou ampliar o raio de relações existentes entre eles e, principalmente, garantir a proteção do filho, caso necessitasse.

Boaventura, parda, nascida em 1882, foi batizada em outubro do mesmo ano e teve como padrinho Manoel de Araújo, de condição jurídica livre, e, como madrinha, a escrava Emília. O interessante em relação às escolhas dos padrinhos, é que mesmo os padrinhos escravos pertenciam a outras propriedades e, portanto, eram cativos de outros senhores. Amância não estabeleceu o compadrio com nenhuma das quatro cativas que também viviam na mesma propriedade, ou seja, seus filhos não foram apadrinhados pelas outras cativas da propriedade e Amância também não serviu como madrinha de nenhuma das crianças que eram filhas das demais escravas. Pode ser que todas as escravas, inclusive Amância, preferiram estabelecer alianças

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de parentesco fora da propriedade onde viviam, fortalecendo os vínculos com pessoas de mesma condição social e, portanto, com interesse em garantir os laços de solidariedade entre os mesmos.

E no caso dos padrinhos livres? O que Amância esperava ao estabelecer o compadrio com pessoas de condição jurídica diferente? Maria, a primeira filha de Amância, nasceu em 1873 e também teve como padrinhos um casal de condição jurídica livre, Antônio José dos Passos e Ana Maria do Espírito Santo, no registro de casamento dos mesmos, Antônio é citado como proprietário13.

O casal Nicolau Carlos da Mota e Idalina Maria da Conceição, ambos livres, foram os padrinhos do rebento Agostinho e levaram o afilhado a pia batismal em junho de 1877. Evarista, nascida em 1884, teve como padrinhos um casal de livres, Gervásio Vicente de Oliveira e Emília Maria de Oliveira. Em agosto de 1880, Maria, a quarta filha da cativa Amância, foi apadrinhada por pessoas livres, Vitoriano Pereira de Araújo e Maria das Neves, costureira.14

Considerações Finais

Apesar das limitações das fontes, que dificultam acompanhar a trajetória

dos padrinhos, em alguns casos, o estado civil e a profissão são mencionados nos registros. Essas informações podem ajudar a compreender que tipo de expectativas essas mães cativas possuíam em relação à escolha de compadres e comadres. É possível que um dos significados dessas estratégias para estabelecer relações de parentesco esteja relacionada à posição social que os padrinhos ocupavam naquele momento, pois, além de serem livres, estes possuíam alguma profissão ou mesmo eram proprietários de terras.

A possibilidade de estabelecer redes de parentesco com pessoas de status jurídico diferente pode ter sido também uma medida de proteção. Mesmo que as crianças fossem livres em consequência da Lei de 1871, havia os riscos de serem separadas de suas mães que ainda eram escravizadas pelos seus senhores. Nesse caso, os padrinhos, que pelas normas da igreja seriam os “pais espirituais” da criança, poderiam atuar nessa rede de proteção e solidariedade, caso fosse necessário.

Obviamente, que além da desejada proteção de sua família, a cativa Amância possuía anseios em relação à conquista de algumas vantagens, como

13 Cartório 2o Ofício de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento,

1889-1892. Documentação não catalogada. 14 Cartório do 2o Ofício de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de

Casamento, 1889-1892. Documentação não catalogada.

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sua liberdade ou uma possível mobilidade social, visto que “[...] para os cativos, possuir um padrinho ou compadre livre nas imediações significava vatagens que podiam sobrepujar as associações internas ou desejo por laços familiares mais amplos”.15 Casos como o do casal Zacarias e Maria e da família de Amância saltam aos olhos na documentação, revelando a existência e manutenção das famílias e de suas redes de sociabilidade no sertão piauiense do século XIX.

15 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na Sociedade Colonial: 1550-1835. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia Das Letras/CNPq, 1988, p. 332.

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“ORDENS SÃO ORDENS, CUMPRA-SE”: A LEGISLAÇÃO REPUBLICANA NO PARÁ EM TORNO DO PROGRAMA DE

COLONIZAÇÃO (1900-1910)

Francisnaldo Sousa dos Santos1

Resumo O presente artigo tem como objetivo discutir a legislação criada nos primeiros anos da República no Estado do Pará, voltada para o programa de colonização que vinha sendo realizado desde o Império, bem como compreender o próprio processo imigratório. Além da letra da lei, outra importante fonte de análise são os relatórios dos órgãos ligados ao programa como a Repartição de Obras Públicas, Terras e colonização e a Inspetoria de Terras e Colonização nos governos de Lauro Sodré e José Paes de Carvalho.

Palavras-Chave: Legislação, colonização, imigração

Introdução Se faz muito interessante observar a afirmativa que Palma Muniz faz das

primeiras ações do governo republicano no Pará quanto ao plano de colonização que vinha sendo desenvolvido. O autor destaca a morosidade com que os lotes do núcleo colonial de Castanhal – que estava em formação – eram divididos e os imigrantes instalados. Segundo Palma Muniz, as primeiras ações do governo republicano mais se pareciam com ações sociais, pois estavam mais preocupados no estabelecimento das famílias, do que propriamente com o projeto de colonização.2 Essa morosidade pode ser explicada pelo próprio processo de transição que o país vivia e que os Estados deveriam se adequar à nova realidade política. Entende-se que, mais do que nunca, as atenções política estavam voltadas para o novo cenário que se

1 Licenciado em História pela Universidade Estadual do Maranhão/Centro de Estudos superiores de Caxias (2007); especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Africana pela Faculdade Integrada Brasil-Amazônia - FIBRA (2009) e mestrando em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará. 2 MUNIZ, João de Palma. Estado do Grão-Pará. Imigração e Colonização. História e Estatística 1616 -1916. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1916, p. 61

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descortinava. Contudo, se as primeiras ações voltadas para a imigração e colonização no Pará não engrenavam no início dos anos de 1890, ao longo dessa década o governo republicano sancionou uma série de leis e decretos que, de um modo geral, buscaram solucionar o problema da falta de mão-de-obra na agricultura local e, consequentemente, o próprio povoamento da região Bragantina.

A proposta deste artigo é analisar a legislação criada na primeira década do governo republicano no Pará, que corresponde aos governos de Lauro Sodré e José Paes de Carvalho. Mais do que simplesmente apontar o que dizia a legislação acerca da política de colonização, tem-se uma preocupação maior que é refletir acerca do contexto em que essa legislação é criada e os objetivos pensados pelo legislador, além dos agentes e instancias envolvidas e, principalmente, a ação dos colonos frente às imposições do governo na forma da lei. A partir dessa perspectiva, Francivaldo Nunes entende, por exemplo, que “o processo de implantação e consolidação das áreas de colonização agrícola reflete, portanto, a relação entre as legislações pensadas para administrar esses espaços e o modo de vida dos colonos”.3 De um modo geral, o ordenamento criado em prol da colonização ajuda não apenas a pensar pela perspectiva da administração do Estado, mas também pela do próprio colono, que se via diretamente envolvido nessa teia composta de artigos e parágrafos.

Novos ares políticos, nova política de imigração

Com a mudança de regime político se fazia necessária uma nova

organização administrativa para resolver o problema da imigração e da colonização. Por isso, no governo de Lauro Sodré vai ser criada a Repartição de Obras Públicas, Terras e Colonização com o decreto n. 364 de 2 de julho de 18914. A incumbência desse órgão do governo estadual era cuidar de “todo o serviço de colonisação e immigração”5. Todas as questões que envolveriam a política de terras no Estado, como legitimação, demarcação, medição ou a extremação das terras públicas das do domínio particular, ficaram a cargo desse novo órgão que, em seu segundo artigo, tornou sem efeito o artigo 52

3 NUNES, Francivaldo Alves. Sob o signo do moderno cultivo: Estado imperial e agricultura na Amazônia. Tese de doutorado – Universidade Federal Fluminense, 2011, p. 26. 4 Actos do Governo Republicano do Pará na Administração do Dr Lauro Sodré em junho, julho, agosto, setembro e outubro de 1891. Belém: Typ. do Diário Official, 1892 (Lei n. 364 de 2 de julho de 1891) 5 MUNIZ, João de Palma. Op. Cit, p. 63-64

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do Decreto n. 1318 de 18546, que abria possibilidade de recurso contra decisões da administração provincial junto ao Governo Imperial. Os recursos de que trata o citado artigo 52 deveriam ser interpostos daquela data em diante ao próprio governo dentro de um prazo de até dez dias a partir da data de publicação da sentença no Diário Oficial.

Mas, foi apenas com o decreto n. 410 de 8 de outubro de 18917 que esse novo órgão se constituiu completamente, tendo o engenheiro civil Henrique Américo Santa Rosa como seu diretor. Esse mesmo decreto também criou o primeiro regime de terras do Estado quando, por exemplo, estabelecia que o governo reservaria as terras devolutas para a criação de colônias ou que apenas por meio de compra se poderia adquirir terras devolutas dentro dos limites do Estado. Nesse caso específico o legislador se apoiou no que regulamentava a própria Constituição Federal de 1891, que no artigo 64, deixava claro que as terras devolutas passavam a pertencer aos Estados, dentro dos seus territórios, com exceção apenas daquelas terras indispensáveis para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.8 Sendo de responsabilidade das unidades da federação dispor das terras devolutas em seus domínios, muitos Estados aproveitaram para vendê-las.

Portanto, as terras devolutas pertencentes ao Estado poderiam ser negociadas pela autoridade administrativa por meio de seus agentes públicos. E isso não foi uma condição adotada apenas no Pará. No Rio Grande do Sul, por exemplo, entre 1890 e 1914 a legislação acerca da imigração e da colonização esteve voltada, sobretudo, para “a cobrança da dívida colonial e a criação de comissões para verificação da posse das terras”. Nesse Estado, a colonização passou a ser vista como uma oportunidade para auferir lucros aos cofres públicos, o que não ocorreu durante o período provincial.9 Em Minas

6 Essa lei mandou executar a Lei N. 601 de 18 de setembro de 1850. O artigo 52 do decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854 dizia que “Das decisões do Presidente da Província dá-se recurso para o Governo Imperial. Este recurso será interposto em requerimento apresentado ao Secretário da Presidência dentro de dez dias, contados da data da publicação da decisão na Secretaria; e sendo assim apresentado suspenderá a execução da decisão enquanto pender o recurso que será remetido oficialmente por intermédio do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império”. 7 Actos do Governo Republicano do Pará na Administração do Dr Lauro Sodré em junho, julho, agosto, setembro e outubro de 1891. Belém: Typ. do Diário Official, 1892, p. 250 (Lei n. 410 de 8 de outubro de 1891) 8 Sobre C.F. de 1891 ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm 9 IOTTI, Luiza Horn (org). Imigração e colonização: legislação de 1747 a 1915. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do RS, Caxias do Sul, EDUSC, 2001, p. 33

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Gerais não era diferente. O regulamento dos núcleos coloniais aprovado pelo decreto n. 1258 estabelecia a venda de lotes e a forma de pagamento, dando preferência de venda aos colonos que tenham pago a própria passagem para o Brasil e para Minas Gerais ou que, tenham tido as passagens financiadas pelo governo, tenham família numerosa e mesmo assim devendo dispor em sua maior parte de pessoas válidas para o trabalho na lavoura, ou seja, acima de 12 anos.10

Com o propósito de não apenas povoar a região Bragantina, mas também de desenvolver a agricultura11 é que o governo estadual vai sancionar a Lei n. 99 de 22 de março de 1893 que estabeleceu prêmios aos importadores de gado e aos lavradores. Contudo, a mesma foi revogada quanto à premiação aos pecuaristas e mantida a premiação aos lavradores por outra lei de n. 228 de 1º de maio de 1895. A parte da lei que se manteve inalterada estabelecia prêmios aos três primeiros agricultores que apresentassem dez mil novos pés de café, cacau, algodão ou mesmo seringueira, mas deixava dúvidas quanto a forma de pagamento dessa premiação. A lei acabou provocando alguns embaraços como a negativa que o primeiro requerente aos prêmios Capitão Joaquim Zacharias da Silva, agricultor de Bragança, recebeu em 20 de fevereiro de 1894, depois de impetrar pedido sete dias antes. De acordo com o despacho dado pelo governo para ter direito à premiação aquele agricultor devei ter provado que plantou depois da lei pouco pelo menos 10 mil novos pés de café, devidamente comprovado com um atestado assinado pelo Intendente do município que atingiu o total exigido, como estabelecia a terceira parte do 2º artigo. Joaquim Zacarias da Silva apresentou ou novos documentos apenas em dezembro do mesmo ano.12 Outra lei com o mesmo objetivo foi criada em março de 1896 sob o n. 336, estabelecendo prêmios de até quinhentos mil réis por lote de mil cacaueiros ou cafeeiros ou de um conto de réis por lote com dois mil algodoeiros ou duas mil seringueiras. Esta lei, diferente da primeira, não exige que sejam pés novos, apenas que seja em terreno próprio. A lei

10 Minas Geraes, Actos do governo, 22 de fevereiro de 1899, p. 02 11 Francivaldo Alves Nunes lembra que, para além desse objetivo, as autoridades provinciais também buscavam ter um controle sobre esses espaços que constituam os núcleos coloniais, sobre os seus ocupantes e, consequentemente, sobre a própria produção e as áreas de floresta. Ver: Nunes, Francivaldo Alves. A Semente da Colonização: um estudo sobre a colônia agrícola Benevides (1870-1889). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia, Belém: 2008, p. 17 12 PARÁ. Relatórios das Repartições Estaduais apresentados ao Sr. Governador Dr. Lauro Sodré em 1895. Belém: Typ. do Diário Official, 1896, pp. 15-16

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também estabelecia que fossem creditados em cada lei do orçamento do Estado a verba de cem contos de réis para o pagamento dos referidos prêmios.13

Palma Muniz afirma que até o ano de 1894 as questões relativas à colonização e a imigração no Grão-Pará não dispuseram de uma legislação especifica que tratasse do tema, para que esse problema pudesse ser visto como uma pauta do programa de governo. Portanto, o primeiro passo para uma organização de fato se daria com a “creação de uma lei especial, condensando sispositivos que permitissem uma organização systemática e permanente”.14 A primeira lei nesse sentido, a dar uma organização ao tema, foi a de n. 223 de 30 de junho de 189415, que de acordo com o caput autorizou “o governador a promover a introducção de estrangeiros que pretendessem estabelecer-se no Estado agricultores ou industriaes”. Para o então governador Lauro Sodré essa lei surgiu como um passo decisivo em direção à solução do problema da imigração no Estado do Pará, mas deixou claro que jamais havia se iludido “acerca das grandes difficuldades, à primeira vista insuperáveis, que se nos antolhava ao ter que pôr em execução aquela lei. Tratava-se de um serviço inteiramente novo, que nós íamos crear”.16

O legislador teve a preocupação de elencar as pretensas qualidades do imigrante estrangeiro, como “de bôa conduta e aptos para o trabalho”, que fosse na agricultura ou em “qualquer indústria ultil”. A preferência era por imigrantes acompanhado com suas famílias, pois certamente essa medida afastaria a possibilidade de se instalar pessoas sem compromisso de fixação com o local para o qual seria destinado. Para conseguir atraí-los a citada lei aponta alguns favores17, como a indenização de passagens, dez dias de hospedagem antes de se dirigirem ao núcleo colonial, tratamento médico assegurado por dois anos nos espaços onde se instalarem e obrigações do

13 Coleção das Leis Estaduais do Pará dos anos de 1891 a 1900 precedida da constituição política do Estado. Belém: Imprensa Official, 1900, p. 356 (Lei n. 223 de 30 de junho de 1894) 14 MUNIZ, João de Palma. Op. Cit, p. 66 15 Coleção das Leis Estaduais do Pará dos anos de 1891 a 1900 precedida da constituição política do Estado. Belém: Imprensa Official, 1900, p. 236 (Lei n. 223 de 30 de junho de 1894) 16 PARÁ. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. Lauro Sodré governador do Estado ao expirar o seu manadadto em 1º de fevereiro de 1897. Belém: Typ. do Diário Official, 1897, p. 25 (http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2423/000025.html). 17 Esse artigo será alterado pela Lei n. 583 de 21 de junho de 1898.

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Estado que aparecem como favores ao imigrante como a gratuidade no transporte e na alimentação até o ponto de destino.

Dentre esses ditos “favores”, um dos mais importante é o que estabelece a concessão gratuita de um lote colonial de 25 hectares em terrenos férteis em qualquer núcleo colonial ficando à escolha do imigrante, onde encontrará a mata derrubada para que possa começar a plantar e a construir sua casa18. Essa medida acabou alterando o que estabelecia o decreto n. 410 de 8 de outubro de 1891, o qual determinava que as terras devolutas deveriam ser adquiridas pelo colono por meio de compra. Outro importante favor a ser mencionado é o que determinava o fornecimento gratuito de ferramentas e utensílios para o trabalho, além de uma ajuda no valor de trinta mil réis mensais por pessoa adulta ou oitenta mil réis por família, valores pagos durante seis meses, enquanto preparam o primeiro plantio. A concessão desses favores dependia do cumprimento de alguns deveres por parte do imigrante, como a obrigatoriedade de manter-se no Estado por um prazo de três anos contados da chegada, além de declarar que queria estabelecer-se no Estado, indicando o local para onde pretendia dirigir-se.

Esse último artigo citado, como veremos, foi revogado, quase dois anos depois, pela Lei n. 331 de 21 de fevereiro de 1896. Sobre essa revogação o diretor da Repartição de Obras Públicas, Terras e Colonização, em um de seus relatórios, lembra que, as primeiras reclamações com a criação da lei n. 223 veio por parte do governo italiano, que via uma forma de “coerção por demais vexatória ao espírito de liberdade dos imigrantes, seus conterrâneos”. Henrique Américo Santa Rosa ainda destaca que essa supressão foi prejudicial ao serviço de imigração, sobretudo, no que tange a introdução de imigrantes italianos.19 Com um certo tom de repúdio ele pergunta se seria justo que o governo continuasse a despender qualquer gasto com imigrantes que nunca pretenderam ficar no Estado desde o momento da saída do país de origem, se o governo do Pará não poderia exigir dos mesmos que permanecessem por um tempo determinado no local destinado, não poderia impedir a saída desses imigrantes e muito menos cobrar indenização desses colonos. Conclama que algo deveria ser feito para solucionar esse problema, pois caso contrário o

18 O engenheiro Henrique Américo Santa Rosa diretor da Repartição de Obras Públicas, Terras e Colonização apontou em seu relatório do ano de 1897 que o governo deveria oferecer mais do que uma área para que o imigrante construísse sua casa, mas dar a casa já pronta para moradia, visto por ele como algo essencial. Ver: Relatório apresentado pelo Diretor da Repartição de Obras Públicas, Terras e colonização em 9 de janeiro de 1887. Belém: Typ. do Diário Official, 1987, p. 163 19 Ibidem, p. 139

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Estado continuaria a gastar “em favor da immigração do Sul” e critica a propaganda realizada pelos encarregados em promover a imigração para o Sul do país contra a imigração com destino ao Pará.20

Além daqueles favores aos imigrantes acima mencionados, sejam eles introduzidos pelo governo ou por particulares e até mesmo por imigrantes espontâneos, fossem nacionais ou não, a lei n. 223 autorizou o governador a criar núcleos coloniais, “nas proximidades dos principaes centros agrícolas do Estado”. A introdução desses imigrantes dependeria da aquisição por parte do governo de um local no interior para recepção e hospedagem dos mesmos, previsto no Artigo nono, assim como a discriminação de lotes em pelo menos um núcleo colonial. O local destinado para servir de hospedaria para os imigrantes foi a antiga Olaria do Outeiro, próximo do igarapé Maguary, recebido em 19 de agosto de 1895, cuja regulamentação se deu com o Decreto n. 131 de 10 de outubro de 1895. De acordo com o diretor da Repartição de Obras Públicas, Terras e Colonização era vista como uma das melhores em todo o paíz.21

Outra importante lei criada pelo Estado visando o desenvolvimento da colonização foi a de n. 284 de 15 de junho de 189522. Por esta lei foram criados dez núcleos coloniais em diversos pontos do Estado, especificamente nos municípios de São Caetano de Odivelas, Curuçá, Macapá, Cintra, Portel, Óbidos, Santarém, no Tocantins, no alto Tapajós e na estrada Lauro Sodré entre as cidades de Alemquer e os Campos Gerais. Por sua vez, essa lei vem como consequência da lei anteriormente mencioanda que autorizou o governo do Estado a criar núcleos coloniais em locais convenientes. Até o início de 1897, quatro núcleos coloniais haviam sido criados em virtude da referida lei, foram eles: Tauajury em Monte Alegre, o núcleo Benjamim Constant em Bragança, e os núcleos Marapanim e Jambuassú na estrada para Salinas.23 Para efetiva criação desses núcleos e o consequente povoamento dos mesmos os recursos seriam garantidos pela lei orçamentária n. 307 de 29 de junho de 1895 para o exercício de 1895 e 1896. De um total de 11.510:000$000 foram

20 Ibidem, p. 140 21 Ibidem, p. 144 22 Coleção das Leis Estaduais do Pará dos anos de 1891 a 1900 precedida da constituição política do Estado. Belém: Imprensa Official, 1900, p. 286 (Lei n. 284 de 15 de junho de 1895) 23 Relatório apresentado pelo diretor da Repartição de Obras Públicas, Terras e colonização em 9 de janeiro de 1887. Belém: Typ. do Diário Official, 1987, p. 164

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destinados para a introdução de imigrante e fundação de colônias 500:000$000.24

Uma terceira lei a dar prerrogativas ao governado para trabalhar em prol da colonização foi a de n. 330 de 21 de fevereiro de 189625. Por essa lei, com apenas dois artigos e que alterava a lei n. 223 de 30 de junho de 1894 no artigo quarto, o governador ficava autorizado a introduzir no Estado um total de cem mil imigrantes, incluindo nesse total os 25 mil dos contratos celebrados com Emílio Martins e Francisco Cepeda, em um prazo de 10 anos. Com essa lei foi suprimido o artigo 4º da lei n. 223 de 30 de junho de 1894 “que exigia a permanência do imigrante no Estado do Pará, pelo menos por três annos”26

Já no governo de José Paes de Carvalho ganha destaque a lei n. 581 de 20 de junho de 1898, que autorizou o governador do Estado a fundar núcleos coloniais suburbanos em locais visto como convenientes. De acordo com Palma Muniz o objetivo maior com essa lei era “modificar de forma mais útil e adequada aos interesses da colonisação, a lei n. 284 de 15 de junho de 1895, que mandou criar 10 núcleos coloniais”. Para a criação desses núcleos suburbanos deveriam ser observadas algumas circunstancias: os núcleos deveriam ser subsidiados e fiscalizados pelo Estado; ter capacidade para receber entre 20 e 60 famílias de colonos, fossem eles estrangeiros ou nacionais; estes gozariam dos mesmos direitos dos estrangeiros já garantido em leis anteriores, mas ao mesmo tempo garantia apenas aos estrangeiros a localização nos núcleos depois de acharem-se os lotes devidamente preparados. 27 O que obrigava o colono nacional a preparar seu lote para começar a produzir, o que poderia acarretar problemas, pois este, tendo apenas seis meses de auxilio com “ração” por parte do governo, teria menos tempo para começar a colher.

A mais importante lei criada durante o governo de José Paes de Carvalho foi a de n. 583 de 21 de junho de 189828, que reorganizou o serviço de imigração e colonização e modificou a legislação precedente. Para Franciane Lacerda o objetivo do governo estadual ao sancionar a lei era “legalizar a situação migrantes nacionais e estrangeiros, bem como incentivar, mas ao

24 Coleção das Leis Estaduais do Pará dos anos de 1891 a 1900 precedida da constituição política do Estado. Belém: Imprensa Official, 1900, pp. 296-299 (Lei n. 307 de 29 de junho de 1895) 25 Ibidem, p.353 (Lei n. 330 de 21 de fevereiro de 1896) 26 MUNIZ, João de Palma. Op. Cit. p. 70 27 Ibidem, p. 79 28 A referida lei pode ser encontrada com todos os seus artigos em: MUNIZ, João de Palma. Op. Cit. p. 79

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mesmo tempo disciplinar, os migrantes que pretendiam espontaneamente ou por meio de contrato, localizar-se no Pará como ‘agricultores’”.29 Ao tratar da difícil situação dos cearenses em consequência das constantes secas que assolavam aquele Estado, o governador José Paes de Carvalho destaca que o governo recorreu à aplicação da citada lei para socorrer migrantes que aportavam em Belém30. Isso porque, em seus trinta e dois artigos vai tratar sobre direitos e deveres dos imigrantes e colonos nacionais, bem como dos favores do Estado e das diretrizes para a criação de estabelecimentos agrícolas particulares. Quanto a organização espacial dos núcleos a lei determinava que os mesmos tivessem no máximo 300 lotes, sendo um terço desses aos colonos nacionais e o restante aos estrangeiros. Chama atenção a alteração feita no artigo 2º da lei n. 223 de 30 de junho de 1898 que trata dos favores do governo aos colonos. Os lotes que antes eram gratuitos, passam a ser vendidos ao valor de oito mil réis por hectare, tendo cada lote 25.000 hectares, com 250 metros de frentes e 1.000 de fundos. Outra mudança importante trata da preparação prévia do terreno para o primeiro plantio e do adiantamento da construção de uma pequena casa. Antes, a legislação previa apenas a derrubada das árvores, mas a limpeza e a construção da moradia ficavam por conta do colono. Quanto ao fornecimento de alimentos pelo governo, a lei estipulava “ração” integral nos seis primeiros meses e apenas a metade nos seis meses seguintes.

No mesmo ano em que essas duas últimas leis foram sancionadas uma série de muitos núcleos coloniais foram criados. Eugênio Égler inclusive afirma que nesse período houve “um novo surto de colonização”31. A maioria desses núcleos ficou localizado ao longo da estrada de ferro de Bragança, entre eles os de Ferreira Pena, Anita Garibaldi e Ianetama. Esses dois últimos, de iniciativa particular após contrato celebrado com o governo estadual, acabaram fracassando, principalmente por causa do baixo número de famílias italianas ali instaladas. O governo então assumiu a responsabilidade pelos núcleos coloniais. Como consequência, “a colonização prosseguiu com retirantes cearenses”.32

29 LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência. (1889-1916). Belém: Ed. Açaí, 2010. p. 312 30 PARÁ. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho governador do Estado em 7 de abril de 1899. Belém: Typ. do Diário Official, 1899, p. 49 (http://brzil.crl.edu/bsd/bsd/u2430/000002.html) 31 Égler, Eugênia Gonçalves. “A Zona Bragantina no Estado do Pará”. Revista Brasileira de Geografia. São Paulo, nº 3 (julho/setembro de 1961), p. 531 32 Ibidem, p. 532

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Vale destacar que muitas dessas colônias foram emancipadas apenas três anos depois com a criação da lei n. 1.000 de 20de abril de 1901. Foram elas: Santa Rosa, Couto de Magalhães, Anita Garibaldi, Ianetama, Acará e Óbidos. A mesma lei dispensou não só toda a administração dessas colônias como de outras colônias anteriormente emancipadas. A única exceção foi apenas a colônia Benjamim Constant que, mesmo emancipada desde dezembro de 1899, seu pessoal administrativo continuou a ser pago pela Fazenda do Estado até 30 de junho de 1901. Como a citada lei deixou claro, outras colônias já haviam sido emancipadas. Em 1900 as colônias Ferreira Pena, Inhangapy, Jambussú, Monte Alegre, Marapanim e Salvaterra alcançaram autonomia. Contudo, nem sempre, ser emancipado era sinal de alegria para os colonos, pois de acordo com Franciane Lacerda, embora fosse um momento de comemorações onde ocorriam batismo e casamentos, era também “o momento em que os colonos deixavam de receber auxílios do governo e, mesmo que precariamente, passavam a se manter por conta própria”.33 Sem esse auxilio do governo tudo ficava muito mais difícil para os colonos e em alguns casos houve revoltas, como em Benjamim Constant no ano de 1902, inclusive com a morte de um colono por parte das autoridades coloniais. Um grupo de colonos nacionais insatisfeitos com a diminuição das “rações” que depois de seis meses sendo distribuídas integralmente, passaram a ser distribuídas apenas meia ração.34 Era sempre muito interessante para o governo emancipar uma colônia, pois representaria uma redução nos custos de manutenção desses espaços.

No que tange às questões administrativas, José Paes de Carvalho reformou a Repartição de Obras Públicas, Terras e Colonização por meio do decreto 482 de 24 de setembro de 1897 depois de ser autorizado pela lei n. 460 de 15 de março do mesmo ano. As alterações realizadas deram origem a uma diretoria geral que manteve à frente o engenheiro Henrique Américo Santa Rosa e três seções, sendo elas: Obras Públicas, Terras e Minas e a de Imigração e colonização, que ficou sob a chefia do engenheiro João Arnoso. Contudo, essa nova organização durou pouco tempo. Ainda no governo de Paes de Carvalho foi criada a Inspetoria de Terras, Colonização e Imigração por meio do decreto n. 663 de 21 de março de 1899, separando desta a seção de Terras e Minas.35 Como primeiro inspetor foi nomeado o capitão-tenente

33 LACERDA, Franciane. Op. Cit, p. 314 34 Sobre essa revolta ver: Relatório da Secretária de Obras Públicas, Terras e Viação ao Sr. Governado do Estado do Pará Dr. Augusto Montenegro em 21 de junho de 1902. Belém: Typ. do Diário Oficial, 1902, p. 255 (Anexo 4) 35 MUNIZ, João de Palma. Op. Cit. p. 84

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José Fractuoso Monteiro da Silva e em seguida pelo coronel Joaquim J. Ferreira de Mendonça. Essa organização somente foi desfeita no governo de Augusto Montenegro.36

Devido os gastos com contratos de imigração onerosos ao Estado, a economia não vinha bem. Pensando assim, uma das primeiras medidas realizadas por Augusto Montenegro foi a extinção da Inspetoria de Terras e Colonização, que funcionava com 28 funcionários e foi criada a 4ª Seção da Diretoria dos Trabalhos Públicos tendo João de Palma Muniz como chefe. Essa mudança foi apenas parte de muitas mudanças que ocorreram na administração estadual realizada com o decreto n. 996 de 16 de abril de 1901 ao criar as secretarias estaduais. Por sua vez, a 4ª seção passou a se chamar 3ª Seção e estava inserida na Secretaria de Estado de Obras Públicas, Terras e Viação.37

Conclusão

De um modo geral podemos concluir que a legislação em torno da

imigração e da colonização na primeira década da República no Estado do Pará visava dar uma organização para a entrada e permanência de estrangeiros, além da formação e manutenção dos núcleos coloniais, objetivando um fomento à agricultura. Podemos afirmar inclusive que uma organização desse nível dada após 1889 faltou por parte das administrações provinciais que se propuseram a alavancar a política de colonização na Região Bragantina, pois foram criadas apenas leis esparsas, ou seja, leis que tratavam apenas de pontos específicos como autorização de despesas anuais para promover a emigração até a província do Pará (Lei n. 263 de 13 de outubro de 1854) ou mesmo leis que estabeleciam verbas para despesas com a vinda de número específico de famílias europeias (lei n. 665 de 31 de outubro de 1870 – 12 famílias; lei n. 1232 de 5 de dezembro de 1885 – 30 famílias).

36 Ibidem, p. 85. 37 Ibidem, p. 94

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TERRAS DE MANDO, DOMÍNIO DO PATRONATO NO PARÁ: A GRANDE PROPRIEDADE E O NÚCLEO SINDICAL DA REGIÃO

DO TOCANTINS

Luís Ribeiro da Rocha1 Francivaldo Alves Nunes2

Resumo O estudo da estrutura agrária no Brasil tem se mostrado um desafio para pesquisadores e estudiosos preocupados em compreender as desigualdades presentes no campo, consequência da concentração fundiária e da ausência do poder público em promover políticas de ocupação regular e legal destes espaços. Aqui buscamos compreender as características das grandes propriedades, aspectos da estrutura fundiária do Tocantins através do estudo do Núcleo dos sindicatos patronais correspondentes a esta região. Trata-se, no entanto de compreender a dinâmica fundiária presente na grande propriedade, ou seja, seus processos de mudança e conformação, os instrumento de representação dos grandes proprietários, as estratégias de organização patronal, de uso e domínio do território, assim como as complexas teias de relações presentes no cotidiano do patronato rural, essencial para caracterizar e estabelecer um perfil social desses proprietários e suas formas de representações. Palavras-chave: Terra; Grande Propriedade; Poder; Sindicato Patronal.

Introdução O estudo da estrutura agrária no Brasil tem se mostrado um desafio para

pesquisadores e estudiosos preocupados em compreender as desigualdades presentes no campo, consequência da concentração fundiária e da ausência do poder público em promover políticas de ocupação regular e legal destes espaços. A região amazônica devido às grandes proporções territoriais aparentemente pode conduzir alguém menos atento a compreensão de que se

1 Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, na Universidade Federal do Pará/2015. Neste Simpósio estarei apenas apresentando meu projeto de pesquisa que está em andamento. 2 Orientador

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trata de um espaço em que os conflitos em torno da posse e ocupação das terras seja menos intenso, por se tratar de uma área em que os dados populacionais são bem diminutos se comparados à sua dimensão territorial.3

Os registros têm demonstrado, no entanto, outra realidade. Trata-se de uma região que tem sido associada aos conflitos rurais de repercussão local, nacional e internacional, em função da luta pela posse da terra entre atores e organizações sociais inseridos nesse processo.4 Esta questão tem quase sempre sido associada à ausência do Estado em viabilizar legalmente a apropriação privada de terras devolutas por segmentos da sociedade, gerando conflitos entre agentes, instituições e movimentos sociais.5

Diante destas questões que tem como gênese a propriedade da terra entendida aqui como os direitos socialmente reconhecidos a uma pessoa de realizar ações com um recurso, de extrair rendimentos dele e de autorizar ou proibir a terceiros o seu uso em uma circunscrita parcela(s) de terra6. No caso,

3 No caso do Estado do Pará o mais populoso da região Amazônica, os dados do IBGE de 2010 apontam uma baixa densidade demográfica, ou seja, pouco mais de seis habitantes por quilômetro quadrado. In:http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=pa 4 De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em relatório de 2012, os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e parte dos estados de Mato Grosso, Maranhão e Tocantins apresentam os maiores índices de ameaças de morte envolvendo disputas por terra. As informações apresentam um aumento de 15% no total de ocorrências, em comparação com o ano anterior. As ameaças envolvem trabalhadores rurais, pequenos proprietários, quilombolas, indígenas, sem-terra e madeireiros, grileiros, fazendeiros e agentes públicos. Os confrontos entre esses grupos saltaram de 1.186 para 1.363. Além das ameaças de morte, a Amazônia concentra 69% do total de conflitos por terra e 79,3% dos assassinatos. De acordo com a Comissão, a região reúne a participação de 52,2% do total das ações violentas dos fazendeiros em todo país; 67,7% do total das ações violentas dos empresários; 86,6% das ações dos grileiros; 96,8% das ações dos madeireiros; 65,1% das ações violentas das mineradoras e 80% das ações dos pistoleiros. In: http://www.cptne2.org.br 5 Ao Estado é atribuído nestas literaturas o papel, um tanto utópico, de fomentador e agente de políticas de reforma agrária e de colonização de novas terras, assim como de estimulador da construção de modelos de desenvolvimento agrário e de ações coletivas no espaço rural que busquem agregar diversos e diferentes interesses. Sobre esta questão: MARTINS, 1980 e1994; SANTOS, 1993. Para uma leitura mais especifica da questão associada a Amazônia destaca-se: BRITO, 2001; FRENZL, SIMONIAN & COLEHO, 2000; e MONTEIRO & COELHO, 2004. 6 SANTOS, Rui. Direitos de Propriedade Fundiária e Estratificação Social Rural: Um Contributo Sociológico”. In: Álvaro Garrido et al. (eds.), Estudos em homenagem a

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buscamos compreender as características das grandes propriedades, ou seja, aspectos da estrutura fundiária do Tocantins através do estudo do Núcleo dos sindicatos patronais correspondentes a esta região. Trata-se, no entanto de compreender a dinâmica fundiária presente na grande propriedade, ou seja, seus processos de mudança e conformação, os instrumento de representação dos grandes proprietários, as estratégias de organização patronal, de uso e domínio do território, assim como as complexas teias de relações presentes no cotidiano do patronato rural, essencial para caracterizar e estabelecer um perfil social desses proprietários e suas formas de representações.

No caso dos Núcleos sindicatos patronais rurais a sua formação remete ao VI Encontro Ruralista, realizado no período 07 e 08 de dezembro de 1996 pela Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Pará (FAEPA), na época a principal entidade representativa dos interesses dos grandes proprietários. Na defesa da regionalização das ações da entidade, foram criados dez (10) Núcleos de sindicatos rurais paraenses. Segundo Aluísio Fernandes da Silva Junior7 tratava-se de uma estratégia da FAEPA em fortalecer a organização sindical e estimular a criação de novos sindicatos no interior do Pará, uma vez que uma das principais atribuições dos Núcleos era coordenar as atividades em defesa do agro-extrativismo, incorporando a pecuária, de forma a dinamizar a organizações de proprietários rurais e estimular a sindicalização.

A expectativa era que com a criação dos Núcleos e o consequente fortalecimento da organização dos grandes proprietários se estabelecesse um maior poder de barganha junto às instituições para assegurar o domínio sobre as terras, até antes controladas pelo “mando”, ou seja, pelo uso da força das armas sem um aparato legal ou institucional para este domínio. Cada núcleo, sob a responsabilidade de um coordenador, passou a englobar uma quantidade de municípios e a congregar os sindicatos da respectiva região. Como justificativa se utilizou a necessidade de criação de um plano de ação voltado para valorizar o setor rural que atendesse aos interesses dos diversos setores que envolvesse a grande propriedade. Neste contexto, o primeiro núcleo a

Joaquim Romero de Magalhães: Economia, instituições e império. Coimbra, Ed: Almedina, 2012. 277-293. 7 SILVA JÚNIOR, Aluísio Fernandes. Territorialidade e representação do patronato rural paraense. (Dissertação de Mestrado em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável). Belém: Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas. Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural. Universidade Federal do Pará, 2008.

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apresentar estatuto foi o Núcleo Rural de Tapajós, porém, o primeiro a ser instalado foi o de Marabá, em 1997, durante o Encontro Ruralista Regional8

O Núcleo da Região do Tocantins, objeto deste estudo congrega os municípios de Baião, Breu Branco, Cametá, Goianésia do Pará, Mocajuba, Moju, Novo Repartimento, Tailândia e Tucuruí, sendo este último município sede do Núcleo. Como apontamos anteriormente tem a função de congregar as representações de proprietários rurais dos municípios correspondentes, o que permite se constituir como espaços de atuação de lideranças locais, ligadas às grandes propriedades de terras e vinculadas a empresas agropecuárias9. Para a FAEPA10, os Núcleos patronais rurais são formados por empresários rurais, fazendeiros, ruralistas ou produtores rurais (pessoas físicas ou jurídicas, proprietária ou não, que desenvolvem, em área urbana ou rural, a atividade agropecuária, pesqueira ou silvicultural, bem como a extração de produtos primários, vegetais ou animais, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou por intermédio de prepostos). No caso do Núcleo da Região do Tocantins, considerando as diferentes atividades vinculadas à agropecuária e extrativismo, ainda em 2005 segundo dados do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), destacam-se quatro (04) municípios: Baião, Moju, Novo Repartimento e Tailândia, abrangendo quinhentos e trinta e cinco (535) grandes propriedades.

É proeminente no discurso historiográfico, quando analisa a estrutura fundiária de uma região observar no seu processo formador o confronto entre trabalhadores rurais e fazendeiros sob a identificação convencional de agricultores sem-terra para o cultivo, numa referência aos primeiros, e latifundiários, para os últimos11. Na prática os trabalhadores rurais compreendem uma gama de pessoas que exercem atividades agrícolas, como assalariados, posseiros, meeiros, arrendatários, produzindo em áreas inferiores a três (03) módulos rurais,12 com predominância de mão-de-obra familiar, e

8 FAEPA, Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Pará. 53 anos valorizando o homem e a produção rural. Belém: L & A editora, 2004. 9 FERNANDES, Marcionila. Donos de terras: trajetória da união democrática ruralista - UDR. Belém: UFPA/NAEA, 1999. 10 FAEPA, Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Pará. Núcleos Sindicais. Disponível em: http://www.faepanet.com.br 11 HOFFMANN, Rodolfo e NEY, Marlon Gomes. Estrutura fundiária e propriedade agrícola no Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2010. 12 De acordo com o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), no art. 4º, incisos III e II, entende-se por Módulo Rural como a área rural fixada a fim de atender às necessidades de uma propriedade familiar, ou seja, um imóvel que possa ser diretamente explorado

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cultivos diversificados desde o extrativismo, passando pelas culturas e criações de subsistência (feijão, arroz, milho, mandioca, abóbora, aves, suínos, caprinos, ovinos, bovinos) até pomares de fruteiras e essências florestais. O patronato rural, por sua vez, é compreendido como empresários com extensões de terras superiores a três (03) módulos rurais, empregadores de mão-de-obra assalariada, cultivos e criações especializadas. Muitas vezes são ausentes dos seus estabelecimentos, gerenciados por terceiros.

No caso da Região do Tocantins as pesquisas voltadas para compreensão da estrutura fundiária além de cometer as generalizações apontadas anteriormente quando fazem referência aos agricultores sem-terra e aos grandes proprietários, apresentam um olhar voltado para compreender o campesinato paraense através das relações e confrontos imediatista presentes entre as personagens que compõe esta dinâmica, sem se preocupar que estes enfrentamentos são resultados de uma estruturação agrária que se legitima também no campo da luta institucional que envolve as entidades representativas de interesses de trabalhadores e proprietários. Nestes estudos os elementos centrais de suas análises geralmente são os posseiros, os agricultores familiares em suas diferentes representações, e em menor intensidade as oligarquias, os fazendeiros e empresários agropecuários, apesar de haver relação entre as diferentes classes, ficando muito preso as análises que envolvem os confrontos mais diretos entre estes agentes, como dissemos anteriormente. O risco disso é não dar mais espaços para a compreensão de estratégias de organização social desses grupos e deixar de analisar novas arenas de lutas que são as instituições que congregam estes indivíduos13.

A principal justificativa que fundamenta esse trabalho é a necessidade de melhor compreender e identificar os agentes atuantes nos espaços agrários e das mudanças e transformações provocadas no ambiente rural. A proposta é

por uma família para lhes garantir a subsistência e viabilizar sua progressão socioeconômica. Em outras palavras, trata-se de uma unidade de medida agrária, expressa em hectares, que busca refletir a interdependência entre a dimensão, a situação geográfica do imóvel rural, a forma e as condições do seu aproveitamento econômico. Essa unidade de medida é fixada com base nos critérios determinados pelo artigo 11 do Decreto nº 55.891/65, que regula o Estatuto da Terra, e deve considerar a localização e os meios de acesso do imóvel em relação aos grandes mercados, as características ecológicas das áreas em que se situam e os tipos de exploração predominantes em uma determinada região. In: http://www.faepapb.com.br 13 ALMEIDA, Alfredo Wagner de. Os conflitos agrários na Amazônia segundo os movimentospphist.com.br/camponeses, as instituições religiosas e o Estado (1969-1989). Belém: EdUFPA, 1989.

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colaborar com outros estudos que buscam entender esta formação da estrutura fundiária pelo viés dos conflitos armado e da violência em torno da terra. Este trabalho agrega outro viés de análise, ou seja, quando propõe compreender o processo de formação das grandes propriedades através do estudo do patronato rural, representado pelo Núcleo Sindical da Região do Tocantins. O estudo da entidade patronal permite ainda conhecer as estratégias de organização e as manifestações dos atores que compõem este Núcleo, através das diferentes representações, ou seja, proprietários, fazendeiros, empresários rurais, produtores rurais e ruralistas. Através do estudo do Núcleo Sindical do Tocantins é possível compreender as políticas traçadas pelos órgãos governamentais para a região, permitindo ainda identificar as mudanças que proporcionaram contradições, conflitos e violência, entre os atores envolvidos com a questão agrária, sejam eles públicos ou privados, pessoas físicas ou jurídicas.

Diante das questões levantadas buscamos analisar a dinâmica agrária presente nestas áreas, ou seja, seus processos de mudança e conformação, os instrumento de representação dos grandes proprietários, as estratégias de organização patronal, de uso e domínio do território, assim como as complexas teias de relações presentes no cotidiano do patronato rural, essencial para caracterizar e estabelecer um perfil social desses proprietários e suas formas de representações.

A partir de documentação produzida por agentes públicos, instituições e seu cruzamento com a memoria oral dos grandes proprietários, nos debruçamos sobre as seguintes problemáticas:

- Quando se utiliza a expressão “patronato rural” para os grandes proprietários de terra da Região do Tocantins, de que agentes sociais estão se falando? Que atividades econômicas desenvolvem? Como estes agentes se autodefinem?

- Como estes agentes que se veem patronato como se movimentam (atuam) no Núcleo sindical? Como percebem este Núcleo?

- Qual a trajetória de atuação do Núcleo? Quais as estratégias de organização envolvem esta entidade? Que relações estabelecem com os sindicatos sediados nos municípios? E com a FAEPA?

- Como Núcleo sindical dialoga com os órgãos governamentais? E com outras entidades? Quais as contradições, os conflitos e acordos estabelecidos com esta relação?

- Quais as principais demandas sindicais chegam ao Núcleo? Como são encaminhadas?

- Quais as estratégia utilizadas pelo Núcleo para acionar os órgãos públicos? E as estratégias para que estas demandas sejam atendidas?

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Este trabalho está pautado em uma abordagem teórico-metodológica a respeito dos conceitos de território, poder e patronato. Para além de outros autores que se dedicaram ao estudo do território14, e outros, em função das questões aqui priorizadas, empregaremos a concepção de território utilizada por Rogério Haesbeart da Costa15, que é enfocada numa perspectiva histórica e geográfica, intrinsecamente integradora, que vê o território como o processo de domínio (político-econômico) e/ou de apropriação (simbólico-cultural) do espaço pelos grupos humanos. Ou seja, a noção de território proposta requer estudos a respeito de relações de poder e de conflitos de poder que se desenvolvem a partir da necessidade de apropriação de um espaço, sendo que esta disputa se realiza no interior de um determinado grupo.

Considerando o território como o espaço onde as relações de poder e conflitos de poder se apresentam, provocando nos atores envolvidos nesta relação, a sensação de ganho ou perda de domínio, torna-se necessário recorrer ao conceito de poder proposto por Hannah Arendt16, em que “o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto”, pois “o poder nunca é propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido”. Para completar a construção conceitual de poder recorremos a Paul Claval17, para quem o poder não é apenas estar em condições de realizar por si mesmo as coisas, é também ser capaz de fazer com que sejam realizadas por outros. Neste aspecto o poder se traduz nas relações, ou seja, quando se reconhece a natureza legítima da autoridade a partir de articulações de interesses em que cada um dá e recebe poder, às vezes de forma inconsciente, pois a liberdade de alguns é reduzida sem que eles o percebam.

As categorias conceituais apontadas anteriormente fazem sentido neste trabalho, uma vez que tratam de estabelecimento de um poder sobre um

14 SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. SANTOS, Milton. O retorno do território. In: Santos, M. et al (org.) Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec e ANPHUR, 1994. SACK, Robert. Human Territoriality: its theory and history. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. LEFEBVRE, Henri. La production de l’ espace. Paris: Anthropos, 1984. 15 COSTA, Rogério Haesbeartd. O mito da desterritorialização: do “fim do território” à multiterritorialização. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 16 ARENDT, Hannah. Poder e violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. 17 CLAVAL, Paul. Espaço e poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A, 1979.

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território, ambos em formação. O patronato rural, herdeiro de relações de dominação da oligarquia construída na primeira metade do século XIX, ainda na chamada República Oligárquica, disputa a hegemonia com outras categorias em um espaço conflitado, cobiçado, dinâmico. Ao longo dos anos o patronato rural paraense apresentou estratégias visando uso e domínio do território, materializados em atividades econômicas ou ciclos como o extrativismo da borracha, da castanha, da madeira, a pecuária bovina e a implementação de monoculturas, voltadas para o agronegócio, estabelecendo relações de poder e conflitos de poder entre as personagens que compõem a estrutura agrária do Tocantins18. Neste aspecto, entende-se o patronato rural como uma categoria política representada por entidades (Confederação, Sociedade, Sindicato, Associação, Cooperativa) que congregam diferentes atores sociais como produtor rural, ruralista, fazendeiro, empresário agropecuário e proprietário rural, com o objetivo de defender os direitos, reivindicações e interesses comuns, independentemente do tamanho da propriedade e do ramo de atividade de cada um, seja lavoura ou pecuária, extrativismo vegetal, pesca ou exploração florestal.

Desta forma, do ponto de vista teórico, seguimos a concepção de Regina Bruno19, ao fazer referência ao patronato como “classes dominantes no campo [que] buscam se auto representar e se auto definir como “produtores e empresários rurais”. Ao utilizar a expressão “produtores e empresários rurais” o patronato se institui como a figura do latifúndio produtivo, associado ao termo moderno como sinônimo de produção e reprodução cada vez mais subordinada ao capital, voltados para os padrões produtivos da agroindústria. Este discurso defende a tecnologia como modelo do desenvolvimento agrícola. É assim que se busca forjar o conceito de patronato, ligado a modernidade do espaço rural. No entanto, acompanhamos as observações de Sônia Regina Mendonça20 para construção do conceito de patronato quando afirma que se trata de uma classe dominante do setor rural que guarda contradições e disputas interna que se verificam, por exemplo, na luta pelo

18 SILVA JÚNIOR, Aluísio Fernandes. Territorialidade e representação do patronato rural paraense. (Dissertação de Mestrado em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável). Belém: Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas. Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural. Universidade Federal do Pará, 2008. 19 BRUNO, Regina. Senhores da terra, senhores da guerra: a nova fase política das elites agroindustriais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária: UFRRJ, 1997. 20 MENDONÇA, Sonia Regina de. O Ruralismo Brasileiro, São Paulo, Hucitec, 1997.

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controle da representação patronal evidente no interior das federações, sindicatos, associações e cooperativas.

Por tratar-se de uma pesquisa que perpassa a história das organizações patronais acreditamos ser importante desenvolver leitura que analisem o processo de formação das organizações patronais rurais, seus agentes e estratégias de atuação. Isto nos condiciona a situar as primeiras organizações no país e no Estado, exigindo uma dinâmica reflexiva sobre a bibliografia que desvela estas questões e que podem ser encontradas nos acervos da biblioteca da Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Pará - FAEPA, Biblioteca Central da Universidade Federal do Pará - UFPA, Biblioteca do Núcleo de Ciências Agrária e Desenvolvimento Rural – NEAF/CA, Biblioteca do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia - NAEA, Biblioteca da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Amazônia Oriental - EMBRAPA, Biblioteca do Museu Paraense Emílio Goeldi - MPEG e Biblioteca Arthur Viana do Centro Cultural e Turístico da Fundação Cultural do Estado do Pará, Tancredo Neves - CENTUR.

Concernente ao Núcleo da Região do Tocantins, o que poderíamos apontar como um segundo momento da pesquisa, esta deve se realizar nos arquivos da entidade em sua sede na cidade de Tucuruí e nos sindicatos correspondentes. Deve se atentar ainda para a necessidade de entrevistas e conversas com funcionários e gestores. O propósito é a coleta de informações que permitam descrever as formas iniciais de organização que geraram a entidade, a composição das diretorias, forma de organização espacial através da regionalização (sindicatos) e eventos patronais, demandas sindicais e individualizadas. Outra documentação que pode elucidar ainda mais estas questões são as atas de encontros, de reuniões, estatutos e ficha sindical. Trata-se de uma etapa rotineira junto a esta entidade, reconstituindo as mudanças ocorridas e diluídas entre os documentos apresentados para análise, contrastando com outras informações oriundas de outros centros de pesquisas.

Outra etapa em que se propõe analisar as formas como esses grandes proprietários se autodefinem, com o objetivo de constituirmos o perfil social desta categoria é a entrevistas com membros ligados ao Núcleo da Região do Tocantins. Essas entrevistas devem ser realizadas a partir de um roteiro pré-estabelecido e flexível, proporcionando acúmulo de informações importantes para a construção do mesmo. Assim, estaremos trabalhando com a oralidade como fonte na perspectiva de que a memória humana e sua capacidade de rememorar o passado assumem uma posição de testemunha do vivido. Nesse caso, compreendemos a memória como a presença do passado, como uma construção de fragmentos representativos desse mesmo passado, nunca em

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sua totalidade, mas parciais em decorrência dos estímulos para a sua seleção. Não se trata, no entanto da lembrança de certo indivíduo, mas de um indivíduo inserido em um contexto familiar, social ou comunitário, de tal forma que suas lembranças são permeadas por inferências coletivas (HALBWACHS, 2004: 85).

Além das entrevistas outros dados devem ser coletados no Instituto de Terras do Pará - ITERPA, no Instituto de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, selecionando-se os grandes proprietários de terras da região do Tocantins, inclusive identificando as formas de uso da terra nestas grandes propriedades e as formas utilizadas para acionar estes órgãos governamentais, as demandas e as estratégias utilizadas para que essas demandas sejam atendidas. Isto permite não apenas identificar esses agentes sociais, mas perceber as relações que são construídas com o poder público com o propósito de atender seus interesses.

Sabemos que existem poucos estudos relacionados à apropriação e posse da terra tendo como objeto o sindicato patronal. Esta é uma pesquisa que se encontra em andamento muito ainda, há de ser explorado sobre o tema envolvendo a luta no campo institucional, quando os grupos com interesses convergentes se organizam em sindicatos e associações para garantir domínio e posse da terra. No caso do sindicato da Região do Tocantins criado para fazer frente à crescente organização dos trabalhadores rurais e ao mesmo tempo fortalecer a FAEPA nos Estado do Pará.

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ALDEAMENTOS INDÍGENAS DA PROVÍNCIA DO PARÁ: ALGUNS ASPECTOS QUE ENVOLVERAM ESSA QUESTÃO

(1840-1860)

Marcimiana de Oliveira Silva Farias1 Francivaldo Alves Nunes2

Resumo A criação de aldeamentos indígenas no século XIX foi um assunto bastante discutido por intelectuais e por políticos da época, principalmente pela possível utilidade desses espaços para o desenvolvimento social e econômico do Império. Nesse sentido arregimentar mão-de-obra e moralizar a população indígena ganhou um espaço significativo nas falas e exposições da elite política e letrada Imperial. No entanto, os discursos em torno desse assunto ganhavam elementos novos de acordo com as especificidades de cada região e com a Amazônia não foi diferente. Utilizaremos Relatórios da Presidência do Pará e os Anais da Câmara dos Deputados que são alguns dos documentos que nos permitem compreender como esse projeto político imperial foi percebido e implantado pelas autoridades locais, além do que representam um importante espaço de discursão em torno desse assunto nos permitindo perceber os resultados da política de implantação das colônias indígenas na província.

Palavras-chave: Indígena; Império; mão de obra.

Apontamentos iniciais

As questões que envolveram a civilização indígena no Brasil do século XIX

são muitas. Os discursos em torno desse assunto destacam constantemente temas como; trabalho, civilização, moralização, modernização e terra, que eram as principais preocupações dos intelectuais e dos políticos da época quando o assunto era os indígenas, no entanto essas preocupações mudavam de acordo com cada região onde eram discutidos como veremos posteriormente.

De acordo com John Monteiro na busca da construção de uma nação brasileira, quando o assunto era o lugar que o indígena deveria ocupar nesse

1 Graduada em História pela UFPA. Mestranda em História pela UFPA. 2 Professor de História da UFPA.

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processo as opiniões eram muitas vezes conflitantes e contraditórias já que grande parte das discursões sobre o assunto percorria apenas os gabinetes que não consideravam a realidade existente no território. Segundo o autor, sobrou para os construtores do projeto de nação a difícil tarefa de “conciliar uma identidade americana, mestiça, com as práticas de exclusão das populações indígenas e negras” que ora reconheciam o indígena apenas como parte de um passado comum da identidade nacional, ora os excluíam totalmente desse projeto, declarando guerras ofensivas contra esses povos (MONTEIRO, 2001:131).

Ainda sobre o projeto de nação no qual estavam incumbidos boa parte a elite política e letrada do império em meados de 1800, Kaori Kodama destaca a importância desse assunto em seus estudos sobre a etnografia do IHGB, para o autor os anos de 1840 a 1860 são marcados por um intenso debate político que acabou gerando o Regulamento das missões, Catequese e Civilização dos índios de 24 de julho de 1845. Nesse regulamento encontram-se as regras e propostas que diziam respeito às populações indígenas e a relação que deveriam existir entre estas e a sociedade imperial nascente (KODAMA, 2009: 14).

Ambos os autores listados acima destacam que, diante da intensa discrepância entre a realidade existente no território e a estudada e pensada nos gabinetes do Império e ainda a necessidade de criação de um espirito de unidade nacional traduzidos no projeto de nação à solução dada pelos políticos e intelectuais da época foi pensar em um plano de civilização indígena através da criação de espaços que viabilizassem esse projeto que foram os aldeamentos indígenas.

Para Amazônia algumas questões devem ser pensadas, uma primeira é perceber a implantação dos aldeamentos do século XIX como uma necessidade de arregimentação de mão-de-obra para o trabalho agrícola. Outra diz respeito ao período marcado por um intenso controle social feito por parte das autoridades locais que ainda estavam receosos por conta da cabanagem que foi uma revolta ocorrida entre os anos de 1835-18403. Nesse sentido, Claudia Maria Fuller ao analisar a criação dos Corpos de Trabalhadores4 nos

3 Para mais informações sobre a cabanagem pesquisar (Ricci, 2003.). 4 Claudia Maria Fuller (2008: 93-115) diz que os Corpos de Trabalhadores foi uma das medidas tomada pelas autoridades para a manutenção da ordem publica, essa medida consistia no recrutamento compulsório de índios, mestiços e negros que não fossem escravos e que não estavam ligados a nenhum tipo de emprego. Os recrutados exerciam várias atividades que vão dês do trabalho em obras publica até serviço de particulares na agricultura. Para mais ver também (Fuller, 2008: 41-75).

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diz da preocupação por parte das autoridades em criar mecanismos de controle da população local e conservação da ordem publica, apesar de que a autora não esta trabalhando diretamente com os aldeamentos indígenas ele nos traz dados interessantes para se pensar o período (FULLER, 2008:93-112).

Nesse texto, nos aproximamos de análises que pensam o modelo de colônias indígenas não apenas como uma estratégia de arregimentar mão-de-obra em si, mais sim, como uma forma de controle da floresta, de seus recursos e de seus próprios habitantes, agregando à agricultura um poder simbólico de uma atividade capaz de moralizar a população (NUNES, 2011: 253 - 341).

Para tanto, fizemos uso de documentos produzidos por agente públicos como os relatórios de administração do governo imperial, do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras públicas e relatórios do Ministério dos Negócios do Império. Esses relatórios eram debatidos na Assembleia Geral, sendo que nesse momento representavam um espaço de registro de propostas e manifestos sobre esse assunto. Estivemos atentos ainda alguns escritos publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (RIHGB).

Nossa intenção é ainda fazer uma analise do contexto histórico das colônias indígenas da região, bem como identificarmos quais as principais opiniões a respeito dessas colônias e os sujeitos envolvidos com essas questões na Amazônia do século XIX entre as décadas de 1840 a 1860, tendo em vista de que é dentro desse período que o governo imperial cria o Regulamento das Missões de Catequese e Civilização dos índios (1845) que foi uma importante ferramenta para a legitimação desse projeto colonial e dos discursos que se referiam a ele.

Império brasileiro: contexto histórico

O período imperial é considerado por muitos autores como um momento

de reorganização político social, nessa perspectiva tanto a elite política quanto a intelectual pensavam na melhor forma de criar um espirito unificado da população imperial, isso se dava por conta de varias revoltas que estavam acontecendo em todos os cantos do território e pela necessidade de progresso e modernização do império. Segundo Kaori Kodama a criação do instituto Histórico e Geográfico em 1839 foi uma das estratégias para esse fim, pensar a construção da nação brasileira como forma de se criar um espirito nacional e uma história do Brasil que unificasse as províncias, tornando o Brasil um estado centralizado e civilizado. Nessa perspectiva o Instituto ao longo de 1839 até fins de 1860 em suas publicações trimestrais da revista, lançavam em

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todo o Império as principais discursões em torno desse assunto. Estas publicações nos permitiram observar tanto as opiniões dos representantes da revista, quanto dos políticos da época quando o assunto era modernização e progresso e como o indígena foi inserido nesse processo (KODAMA, 2009: 14-15).

Aldeamentos indígenas: aspectos históricos e historiográficos

Segundo Vânia Maria Losada Moreira, a tentativa de tornar o “índio

bravo” como parte constituinte da população foi discutida desde o período colonial pelas politicas pombalinas, segundo a autora quando se fala em politicas indigenistas do século XIX não tem como não lembrar o plano de José Bonifácio de Andrade e Silva5 chamado de Apontamentos para a Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil. Neste estudo, José Bonifácio defende um projeto de nação em que estava ligado à incorporação de parte dos índios “bravos”. Nesse sentido, José Bonifácio acreditava que os indígenas pudessem ser civilizados e propunha uma serie de alternativas que resumidamente estavam associadas a “educação, trabalho, comércio, convívio com os brancos sem o uso da força, ou seja, por métodos brandos” (MOREIRA, 2009, p. 2). Diante destas questões, os aldeamentos durante o Império surgem como uma resposta aos problemas enfrentados pelo Diretório dos Índios, principalmente a exploração que os diretores estabeleciam em relação ao trabalho indígena. A conclusão de Vânia Monteiro se resume a associar todo o debate em torno dos aldeamentos construídos do século XIX como desdobramento do plano de José Bonifácio de transformar em cidadão os indígenas, principalmente os considerados “bravos” (MOREIRA, 2009, p. 2).

Existem vários estudos sobre a criação de aldeamentos indígenas no século XIX que levaram em consideração a criação do Regulamento das Missões Catequese e Civilização dos Índios, entre eles achamos importante destacar os de (KODAMA, 2009), (MONTEIRO, 2201). Ambos os autores discutem o objetivo da criação desses espaços destinados a tirar os indígenas das matas e a inseri-los na sociedade através do trabalho e da catequização, porém as

5 Segundo Emília Viotte da Costa (1987, p. 61-130), José Bonifácio de Andrade e Silva foi um dos políticos mais influente e contraditório de sua geração e um dos que se propuseram a pensar em um projeto de nação que mais se adequasse ao Império Brasileiro. Vânia Moreira (2009, p. 1-17) destaca que José Bonifácio pensa o lugar do índio nesse processo e constrói seu apontamento para catequese e civilização dos índios no intuito de civilizar as hordas selvagens estimulando a migração desses indígenas para os aldeamentos.

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analises feitas por esses autores não consideram as especificidades existentes em cada região do Império. Já autores como (BRAGA, 2009), (MOREIRA, 2002) e (VIEIRA, 2006), entre outros já reconhecem que apesar do Regulamento das Missões ter sido um projeto pensado de maneira homogenia para todo o território ele ganhava novos contornos de acordo com as necessidades da região na qual eram implantados. Isso se dava por diferentes motivos observados nas falas das autoridades, entre eles estavam à quantidade de indígena existente na região e até mesmo as relações conflituosas entre os povos indígenas e os colonos.

No entanto, as análises feitas à cima, mesmo que em algumas delas já haja o reconhecimento de que o regulamento foi adaptado a cada região onde ele foi implementado não nos diz muito quando o assunto é a implantação desse regulamento em nossa região. Esta questão foi problematizada por Márcio Couto Henrique, para o autor ainda existe um grande vazio historiográfico sobre as missões oitocentistas. Quando se escreve sobre esses espaços de colonização, os autores tendem ou a esquecer às diversidades e especificidades existentes em cada região, ou não observar que as formas de controle no interior desses espaços de colonização poderiam ser observadas na instituição de um ritmo de trabalho e na adoção de uma prática econômica (HENRIQUE, 2007: 209-233).

Sobre esta questão o estudo de Mauro Cezar Coelho é bastante esclarecedor ao analisar os discursos produzidos pelos intelectuais e políticos da época o autor nos mostra que esses discursos expressavam os interesses daqueles que os formulavam e com isso demonstravam conflitos que devem ser problematizados. O autor verifica esses discursos levando em consideração o Regulamento das Missões de 1845, como ele foi percebido pelos políticos e intelectuais locais e como foi julgado a sua eficácia. Em sua análise sobre esse assunto ele também observou que o Regulamento das Missões foi uma importante estratégia de controle dessa população pelo Estado Imperial (COELHO, 2007: 1-14).

Estas diferentes possibilidades quanto à implantação dos aldeamentos nos leva então a pensar esses espaços com características relacionadas diretamente aos locais em que foram implantados, sem perder de vista a ideia de um projeto nacional. Isso que dizer que para cada região as colônias indígenas se caracterizavam de forma a atender as exigências da localidade em que iria ser implementado. No caso da Amazônia estes espaços devem ser pensados quando se observa as exigências da região quando a mão-de-obra e moralização das populações locais. Tratava-se portanto de utilizar a mão-de-obra indígena como forma de aumentar as rendas públicas através do trabalho

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na agricultura, assegurar a posse e ocupação da terra bem como a civilização desses povos (NUNES, 2011: 253 - 341).

Aldeamentos indígenas nas paginas da Revista do IHGB

Não é segredo que os membros do IHGB estavam em busca das origens

da nacionalidade brasileira. Nesse momento a elite imperial queria despertar nos leitores da revista um espírito de unidade nacional na qual os indivíduos tivessem um sentimento de verdadeiros construtores de uma nação civilizada, moderna e unida. Constantemente eram publicados na revista assuntos referentes às populações indígenas, informações memoriais, relatos contemporâneos de colonos contando a situação pela qual estava vivendo determinada povoação. O que se evidencia é que os artigos publicados no Instituto sempre estavam procurando responder e dar opinião a vários questionamentos em torno da catequese e civilização desses grupos. As preocupações estavam em definir qual seria “o melhor sistema de colonizar os índios entranhados [dos] sertões”. E nesse caso se apontavam “se conviria seguir o sistemas dos jesuítas, fundado principalmente na propagação do cristianismo, ou se outro do qual se esperem melhores resultados do que os atuais” (BARBOSA, 1840, p. 3). Essa indagação feita por Januário da Cunha Barbosa nos revela uma das preocupações em torno da colonização dos índios, ou seja, qual o caminho de colonizar esses povos. Essa questão foi levantada nas primeiras paginas da RIHGB em 1840. E para Cunha Barbosa o assunto é de interesse “à prosperidade do Brasil”. Ele continua seus escritos chegando à conclusão de que “a melhor forma de colonizar esses povos seria através das missões jesuíticas”. Para ele os religiosos eram os únicos verdadeiramente dispostos a adentrarem nas matas em busca desses indivíduos e a viverem em condições precárias nos aldeamentos, acreditava que só através da catequese os indígenas poderiam chegar à verdadeira civilização, principalmente nas províncias mais afastadas. No entanto, o que nos chama a atenção, entre outras coisas, é a forma pela qual ele acreditava ser a mais correta para criar um espirito mais amigável e de confiança na relação entre os indígenas e os colonos que era através do trabalho.

A importância dos aldeamentos e da necessidade da valorização do trabalho aparece ainda nos escritos de Rabello da Silva, para quem estes espaços “não só os continham com sistemas em que envolviam a religião, como cuidavam do seu aumento, fomentando por todos os modos a agricultura, comércio e a povoação dos campos”. Para o autor esses espaços serviriam tanto p modificar o comportamento dos indígenas como também para a produção de gêneros agrícolas (SILVA, 1840, p. 161).

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Outro que deixou sua opinião nas paginas da revista foi Domingos Alves Branco Moniz Barreto que apesar de concordar com a criação desses espaços fazia algumas ressalvas, segundo o autor, há de se ter cuidado com os “péssimos missionários que concorreram não só para a desordem espiritual”, mais também “produziram por um largo tempo a um duro cativeiro” fazendo menção aos aldeamentos indígenas controlados pelos jesuítas. Muniz Barreto, em seu discurso sobre os benefícios da colonização indígena através da catequese, destacava a importância dos índios para a ocupação de algumas áreas. Dizia que os índios conheciam como ninguém as “brenhas” e com isso podiam “servir de guias para as entradas nos serões em busca de ouro e produtos florestais, bem como a implantação de novas colônias”. Porém, os planos de catequese e civilização indígena não deviam ser feitos nos gabinetes e sim a partir das experiências vividas dia a dia pelos colonos. Nesse caso, a catequese se apresentava como o principal meio de levar os povos indígenas a civilização e aos bons costumes da sociedade (BARRETO, 1856, p. 37).

A civilização indígena nos discursos das autoridades locais

Durante os anos de 1840 até fins do de 1860 entre os debates dos políticos nas assembleias provinciais e imperiais se falava de colônias para se abastecer os braços escravos existente no território. Isso se dava por motivos óbvios, ou seja, as autoridades politicas já conseguiam vislumbrar a escassez de mão-de-obra escrava. Os motivos são destacados no relatório de uma comissão criada para reformular um projeto de lei que organizasse a implantação dessas colônias indígenas no território. As discursões circulavam em três principais categorias de colônias, as de estrangeiros, as de nacionais e as de indígenas.6 A comissão criada para discutir esse projeto chama a atenção dos políticos para que, o quanto antes, eles pudessem entrar em um consenso para a criação de uma legislação em torno da criação desses espaços. Nesse sentido, um dos motivos para se pensar nos aldeamentos é o fim do trafico de escravos e consequentemente a escassez de mão-de-obra, a comissão deixou claro que o uso cada vez mais progressivo de braços livres para a agricultura tinha que ser à medida que os escravos fossem desaparecendo do cenário produtivo. Nesse sentido, os componentes da comissão não deixaram de discutir e concordar que a criação de aldeamentos de índios tornava-se a cada dia mais urgente.

Para Candido José de Araujo Vianna, ministro dos Negócios do Império em 1841, não havia necessidade de gastar grandes somas com a vinda de estrangeiros para o território se aqui havia um grande números de indígenas

6 Anais do Parlamento Brasileiro, 3º ano da 4º legislatura, Tomo 1º, 1840, p. 739.

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que não produziam. Para ele ao aldear esses povos dois graves problemas seriam solucionados: primeiro o da mão-de-obra e o segundo é que com esses indígenas aldeados os hábitos deles mudariam, eles passariam a adotar o modo de vida das populações consideradas “civilizadas” promovendo assim o aumento produtivo.7 Esta posição foi compartilhada pelos ministros que sucederam Araújo Vianna embora declarasse o pouco esforço do governo em promover a colonização indígena. Joaquim Marcellino de Brito dizia que por mais que se observasse a necessidade do aproveitamento do trabalho indígena, muito pouco as províncias tinham feito em busca de criar condições para implantação dos aldeamentos, para este ministro “bem mesquinhos tem sido até agora os recursos consignados, ao passo que é [o aldeamento] o expediente mais apropriado, e por ventura o único eficaz de povoar uma grande parte de nosso território”.8 Lamentava o ministro que o governo não poupava dinheiro e estratégias para atrair estrangeiros ao passo que o que era mais viável para o Império a catequese e colonização dos indígenas para solucionar o problema populacional e de mão-de-obra. Nesse sentido, ele expõe algumas características que fazem dos indígenas os mais indicados como por exemplo, o fato deles terem nascidos no território e por isso estarem totalmente adaptados ao clima e de não estarem acostumados com “os cômodos da vida social”, estando mais apropriados para a lavoura.9

Para o ministro José da Costa Carvalho, mesmo depois da criação do Regulamento de 24 de Julho de 1845, pouco se progrediu com relação à catequese e civilização indígena. Ao fazer um balanço dos relatórios dos presidentes detectou que em muitas províncias não havia se quer um aldeamento. Para ele as principais dificuldades estavam na carência de missionários e o descaso dos diretores e encarregados das aldeias.10 Expõem a dificuldade e escassez de encontrarem missionários dispostos a se embrenharem nas matas em busca desses índios errantes, destacando a importância desses missionários na catequese e civilização dos índios. Nos chama a atenção um comentário que ele fez sobre a província do Pará, mais precisamente em Cametá, onde cerca de seiscentos indígenas que queriam ser

7 Relatório do Ministério dos Negócios do Império, 1ª Sessão da 5ª Legislatura, 1841, p. 28-29. 8 Relatório do Ministério dos Negócios do Império, 3ª Sessão da 6ª Legislatura, 1845, p. 25. 9 Relatório do Ministério dos Negócios do Império, 4ª Sessão da 6ª Legislatura, 1846, p. 31. 10 Relatório do Ministério dos Negócios do Império, 4ª Sessão da 8ª Legislatura, 1851, p. 18-20.

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aldeados, demostrando que em alguns casos nem era necessário que se embrenhassem nas matas em busca desses braços, o que o deixava ainda mais frustrado.11

Com relação às opiniões dos presidentes de província e dos demais políticos locais podemos dizer que compartilhavam com os que apontavam que havia uma grade quantidade de indígena na região e de seu não aproveitamento para o trabalho na lavoura. A esse respeito notamos na fala de Souza Franco, que ele pedia maior atenção ao assunto da colonização e catequização indígena. Defendia os aldeamentos como estratégia de dominação necessária para assegurar a “tranquilidade publica”, “segurança pessoal” e “melhoramento econômico do país”. Isso se dava por que para ele, através da catequese, aos poucos esses indígenas iam sendo inseridos nas lavouras e no trabalho compulsório, absorvendo os costumes e os hábitos civilizados12. Com isto, Souza Franco agrega ao trabalha na agricultura um elemento simbólico capaz de moralizar essa população por meio das práticas agrícolas, já que até então eram povos dependentes da floresta e do extrativismo como forma de garantir a aquisição de recursos e meios de sobrevivência. Situação quase sempre condenável pelas autoridades. Neste aspecto a palavra moralizar, ganhava novos elementos significativos, passava a está associada à ideia de incutir valores, transformar comportamentos, civilizar, inserir nos indígenas hábitos sociais e modificar seus costumes e práticas consideradas pela população local como primitivas.

Esse elemento simbólico também é percebido nas palavras de outro governante quando se refere a esses espaços:

É esse um objeto, senhores, que me parece digno de toda vossa consideração, tanto pela sua importância, como pelo abandono, em que tem estado. Em uma Província tão vasta, e tão pouco povoada, e falta de braços como é esta, custa a crer que existam embrenhados nas matas tantos milhares de indígenas, de que se não tira proveito algum, quando dele se pudera ter feito uma bela conquista para a religião, e para a civilização, e um pronto recurso para as necessidades da Agricultura, Comércio e Indústria.13

11 Relatório do ministério dos Negócios do Império, 1ª Sessão da 9ª Legislatura, 1852, p. 33-35. 12 Relatório da Presidência da Província do Pará, 14/04/1841, p. 14. 13 Discurso do vice-presidente do Pará, 1845, p. 27.

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Para João Maria de Moraes14, retomando algumas considerações anteriormente construídas por Souza Franco quanto à necessidade de utilização dos índios principalmente no trabalho agrícola, a criação de aldeamentos deveria ser um assunto de interesse de todos os parlamentares, dados os benefícios tanto religiosos quanto políticos. No caso, assim como Souza Franco, destacava a necessidade de que as politicas de promoção da agricultura como principal atividade econômica na província do Pará se legitimava pela busca do aumento da produção de alimentos, mas ainda pela capacidade da agricultura em proporcionar a ocupação regular da terra. Somente a constituição da posse de terras, por se só já promoveria um novo comportamento desta população anteriormente ambulante e caracterizada por uma produção irregular, dizia José Maria de Moraes. Na fala de Francisco Coelho, presidente do Pará em 1848, observamos a mesma preocupação de José Maria de Moraes, quando registra que “a caridade cristã, e o interesse próprio, tudo aconselha o dever de chamar ao grêmio da comunhão civil e religiosa tantas almas ignorantes e selvagens, e tantos braços vigorosos mais inúteis, perdidos para si, e para nós”.15 Ele acrescenta que só depois do trabalho dos missionários é que se podiam aproveitar a mão-de-obra indígena e que se enviasse mais recurso do governo destinado a essas missões, os resultados seriam ainda mais proveitosos.16

A partir de 1845 com o Regulamento das Missões Catequese e Civilização dos Índios, começam a aparecer reclamações dos presidentes sobre a dificuldade de se implantar o novo Regulamento em cada região, por que a legislação foi criada e pensada de maneira generalizada deixando de lada as especificidades locais. Para Francisco Coelho “o Regulamento de vinte e quatro de Julho de 1845 precisava ser adaptado às condições locais”. Ele argumentava que, por exemplo, uma das dificuldades encontradas estava à falta de diretores dispostos a enfrentar as adversidades locais. argumentava que ao manter o contato com os indígenas, se fizesse de maneira a despertar confiança, por que ao contrario estes não ficariam muito tempo aldeados e a melhor forma era através dos cuidados dos religiosos. Repetindo posicionamento de outras autoridades provinciais, se evidencia um acreditar nos aldeamentos como espaços que se por um momento pode arregimentar mão-de-obra para o trabalho, principalmente agrícola, por outro garante a

14 João Maria de Moraes foi exerceu a presidência da Província do Pará nos anos de 1845, 1846, 1847, 1848, 1850, 1855 e 1864. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Maria_de_Morais). 15 Relatório da Presidência da Província do Pará, 01/10/1848, p. 101-105. 16 Ibidem.

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moralização dos silvícolas, ou seja, a valorização da terra, do trabalho e da vida sedentária17.

Como podemos observar ao analisar os discursos das autoridades provinciais sobre a construção de espaços de colonização, incluindo os aldeamentos, estes foram pensados para que os povos indígenas, por meio do trabalho na agricultura, adquirissem as práticas e costumes da sociedade, considerados modernos e civilizados. A agricultura nesse sentido possuía um poder simbólico capaz de educar, civilizar e moralizar esses povos.

17 Relatório da Presidência da Província do Pará, 01/10/1849, p. 77-78.

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MIGRAÇÃO RURAL NA AMAZÔNIA: POBRES RETIRANTES - SEM

TERRA OU EXPROPRIADOS DA TERRA?

Maria José dos Santos1

Reforma Agrária É palavra Que dói na alma Que grita na calma De quem Não se levanta Poemas sem Terra (Carlos Pronzato)

Estas palavras do cineasta e poeta Carlos Pronzato feitas em homenagem

aos trabalhadores e trabalhadoras rurais mortos na chacina de Eldorado dos Carajás evidenciam que o Latifúndio e a disputa por terra na História do Brasil continuam sendo um grave problema social mesmo passado dois séculos do fim do Período Colonial. As denúncias do trabalho escravo, grilagem das terras, prisões indevidas, assassinatos de lideranças rurais, destruição de lavouras e a expropriação de comunidades rurais inteiras, parecem não ressoar aos ouvidos da justiça e da sociedade civil.

A imprensa diariamente veicula conflitos envolvendo a questão agrária, ora por disputas das terras indígenas, ora por conflitos entre agricultores familiares e empresários do ramo madeireiro ou pecuarista2. Atualmente, soma-se a estes uma enxurrada de operações da Polícia Federal, além de prisões e intervenções nos recém-criados Instituto de Terras (ITERAIMA)3 em virtude da emissão ilegal de títulos definitivos. Em virtude de dois fatores principais, primeiro que a terra para os agricultores familiares não tem valor de

1 Professora da Universidade Estadual de Roraima –UERR. Doutoranda na Universidade Federal do Pará – UFPA. 2 Dentre as várias denúncias destacam-se duas “ Agricultores temem ameaças de fazendeiros : Um dos coordenadores do movimento de luta pela terra denunciou a folha de boa vista que fazendeiros das proximidades estão fazendo ameaças de morte contra eles”. Jornal Folha de Boa Vista, 09 de Novembro de 2012. Outra matéria publicada pelo mesmo jornal demonstra a expropriação “ Pressão: Pequenos produtores donos de terra da região do tucano, em Normandia, denunciaram que estão sendo pressionados a vender suas terras para grandes produtores do Mato Grosso que estão se instalando em Roraima. Jornal Folha de Boa Vista, 20 março de 2012: p. 03-A. 3 Sobre estas denúncias ver Matéria “ Deputado Mecias de Jesus aponta fraudes na emissão de títulos definitivos pelo Instituto de Terras de Roraima - ITERAIMA. Jornal Folha de Boa Vista. 16 de Março de 2011: p. 03-A.

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mercado e nem é usada para a especulação imobiliária, ou seja, não é negócio, e em segundo devido a necessidade de recursos financeiros para pagar os impostos, levantar a documentação necessária e iniciar a jornada de viagens a capital para o longo processo de regularização fundiária.

Estas informações, tanto quanto a discussão de grilagem de terras, parecem muito batidas, ou não trazem nenhuma novidade em especial àqueles que residem na Amazônia. Então por que retomar estas questões? Por que é importante discutir a História Rural, incluindo a migração, os projetos de colonização e a expropriação da terra?

Destacaram-se aqui alguns aspectos para contribuir com esta indagação. O primeiro discorre da necessidade de se fazer uma releitura da participação dos trabalhadores rurais dentro da História da formação da sociedade e do estado de Roraima, assim como uma tentativa de interpretação da migração enquanto estratégia de resistência e não fuga. Por fim quem eram os migrantes? Por que, abandonaram seus estados de origem e migraram para a Amazônia? Como foram construídos socialmente? E como foram representados na produção historiográfica?

No levantamento feito na literatura – e que será detalhado mais tarde neste artigo – os trabalhadores rurais foram estigmatizados principalmente sobre os seguintes aspectos: ora como “pobres migrantes”, “maranhenses despossuídos”; “preguiçosos” ora como “vítimas” das políticas públicas militares para a Amazônia; e ainda como “transgressores das leis”, visto que alguns negociavam e vendiam seus lotes, mas um dos discursos que mais impressiona foi o discurso da negação da sua identidade, quando alguns autores afirmam que a ausência de produção agrícola e o problema da colonização é culpa “destes migrantes que não tinham conhecimento da atividade agrícola”.

Parte da produção bibliográfica que apresenta estas interpretações foi realizada por memorialistas ou funcionários de órgãos oficiais. Esta produção como nos lembra Raymond Williamns (WILLIAMNS, Ano:200-205) refletem o lugar social, político, e econômico de quem escreve, e estes sempre tomam uma posição definida que será perpassada em sua escrita e pesquisa4. Além disso, esta visão incorporou traços e características dos momentos em que foram produzidas e constituíram-se abordagens político-administrativas que visavam, sobretudo, dar um enfoque sobre a “origem” do estado e a

4 Ver: Marxismo e Literatura. Cap. 9 - Alinhamento e Compromisso. Neste o autor busca discutir as relações intensas entre escritores e sociedade. Para este a escrita é alinhada, no sentido que ela expressa explícita ou implicitamente, a experiência a partir de um ponto de vista específico e o Compromisso é rigorosamente um alinhamento consciente, ou uma modificação consciente do alinhamento.

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valorização dos pioneiros que foram personalidades importantes. Esta pretensão de se legar à posteridade a “saga” dos “colonizadores”, “pioneiros” e dos desbravadores do Vale Rio Branco é perceptível nestas produções, como afirma a historiadora Maria Luiza Fernandes em seu artigo intitulado Breves comentários sobre a Historiografia de Roraima (FERNANDES, 2008:12).

Neste sentido, o exercício proposto aqui será de inserir na história da formação da sociedade roraimense não somente aqueles que se destacaram economicamente e politicamente (os estadistas, políticos, assim como os pioneiros, as famílias importantes dos Magalhães, Brasis, Motas etc...), mas inserir também os demais sujeitos históricos deste processo e, dentre estes os rurais, como dona Verônica, seu Pereira, seu João Didi, seu Florentino, e o seu Baiano, mulheres como Enésia, Verônica e Maria, netas e filhas de trabalhadores rurais, nascidas em Minas, Goiás e Bahia, que chegaram nestas terras na década de 1970, com marido, filhos e uma determinação, conquistar sua terra. Cidadãos simples, homens e mulheres comuns, que também construíram a História de Roraima e ressignificaram seu destino ao migrar para a Amazônia.

O Rural na Produção Literária de Roraima

Quem te dará A terra Se não forem Tuas mãos? Quem te dará A terra Se não forem Teus braços? Poemas sem Terra ( Carlos Pronzato )

De acordo com o levantamento realizado durante o curso de Mestrado5,

pode-se afirmar que existe uma recente – porém, extensa e diversa – produção literária sobre os Projetos de Assentamento, Migração, Políticas Públicas e Movimentos Sociais do Campo, em especial, a partir da década de 1990; esta incluindo Memorialistas, Sociólogos, Geógrafos, Agrônomos e Historiadores. Estes fizeram uso de uma infinidade de teorias e métodos de trabalho alcançando os mais diversos objetivos de pesquisa.

O primeiro trabalho foi produzido pelo administrador e memorialista Aimberê Freitas intitulado História e Geografia de Roraima que toca de forma

5 Em Busca da Terra. Dissertação de Mestrado defendida em 2010, no Programa de Pós – Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.

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superficial e sucinta no processo de migração e colonização para a Região Sudeste na década de 1980, limita-se a retratar esse processo em poucas palavras: “Para ocupar essa região, eminentemente de florestas foram trazidos colonos, do Maranhão em sua maioria, mas também do Paraná e do Rio Grande do Sul” (FREITAS,1997: 33)

Nesta abordagem, os trabalhadores e trabalhadoras rurais “foram trazidos” estigmatizados como os “Maranhenses”, esta interpretação deixou um ranço a ser seguido por outros memorialistas e pesquisadores e uma visão que retira toda a historicidade da experiência social destes sujeitos, não existe nenhuma autonomia e nenhum protagonismo do sujeito histórico capaz de lutar, resistir e transformar sua realidade. E esta imagem é ainda muito forte nos discursos sociais de que os migrantes trazidos só atrapalharam o “desenvolvimento” do estado.

Um dos primeiros trabalhos que se preocupou em colocar a questão da migração, refletida enquanto questão agrária e relação de fronteira, foi o do geógrafo e professor da Universidade Federal de Pernambuco Nilson Crócia de Barros com a obra Roraima – Paisagem e Tempo na Amazônia Setentrional (BARROS, 1995). Resultado de sua pesquisa de Pós–Doutorado, este é, ao ver desta pesquisadora, o primeiro trabalho detalhado sobre a chegada dos colonos na década de 1970 e 1980. Essa pesquisa acaba por fornecer importantes informações sobre a criação dos projetos de assentamento, colonização e migração no sudeste de Roraima, além da relação de fronteira política, frente pioneira e povoamento, este trabalho abriu vários caminhos para futuros pesquisadores.6 Outro trabalho a realizar uma análise densa das fontes historiográficas e memorialistas quanto à chegada dos migrantes durante o Estado militarizado foi a dissertação de Elizangela Martins (MARTINS, 2010). Esta aponta quanto à chegada dos migrantes que estes não bem vistos , assim como à abertura da BR-210.

Para fazer a relação da migração com a identidade de trabalhador rural, foi necessário sensibilidade para perseguir os indícios sociais que a migração carrega consigo. Desta forma, foi possível perceber que existe uma profunda relação entre a migração e o processo de destituição da terra sofrido pelos migrantes em suas regiões de origem como Rio Grande do Sul, Goiás, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Maranhão e Santa Catarina, ou seja, a

6 Este trabalho afirma que o “O sudeste de Roraima nos municípios de São Luiz do Anauá e São João da Baliza é a área principal sob colonização desde meados dos anos de 1970” (BARROS, 1995, p. 19).

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relação com a História Agrária Nacional.7 Estas histórias quase silenciosas e experiências quase invisíveis destes

sujeitos sociais8, que aqui expõem seus nomes, rostos e vidas, por meio das entrevistas orais, deixaram os rastros de sua memória não somente neste artigo, mas em nossa vida, como homens e mulheres, corajosos, que enfrentaram seus medos e inseguranças, recriando-se e desconstruindo as concepções de passividade e ingenuidade do sujeito histórico frente ás imposições estruturais, porém estes limites mudaram suas trajetórias e foram enfrentados coletivamente9.

Para esta interpretação da História foi decisivo o conjunto da obra de Edward Palmer Thompson, o qual aponta o processo de resistência e construção social do sujeito ou seja não acredita nos determinismos históricos e na ausência de conflitos diante das mudanças econômicas e sociais. Neste sentido, propõe uma interação dialética entre a experiência e a consciência social (THOMPSON, 1981:15).

Thompson consegue, após minuciosa análise do processo histórico, identificar que a resistência dos camponeses estava relacionada a sua identidade de camponês com a terra e, portanto, a sua intimidade e relação de desejo pela posse da terra. Sobre isso, o autor afirma que

[...] O pequeno proprietário estava interessado na rigorosa limitação e regulamentação dos direitos comunais; o aldeão e o uso capiente queriam que prevalecesse uma definição mais vaga. Os olhos do pequeno proprietário (como os de qualquer lavrador em qualquer época ou nação) brilhavam diante da expectativa de obter imediatamente o direito de propriedade-mesmo que fossem apenas os quatro ou cinco acres que o cercamento poderia lhe conferir (THOMPSOM,1987:49).

O método de análise escolhido a partir da coleta das entrevistas orais,

jornais e arquivos do INCRA, dos sindicatos rurais e da CPT, demonstraram que a manutenção da identidade de rural, e o desejo da posse de sua própria terra foram fundamentais na resistência destes sujeitos. Neste sentido ocorreu

7 Para tanto foi preciso investigar quem são estes sujeitos sociais, qual sua rota de migração até Roraima, utilizou-se a História de vida. Buscou-se investigar como se deu este processo de expropriação nos seus estados de origem. 8 Compartilha-se aqui a compreensão de História enquanto “uma autêntica ciência da experiência”. BLOCH, Marc. A Estanha Derrota. 9 As entrevistas orais foram coletadas ao longo de dois anos 2007-2008, com exceção de seis que foram realizadas ainda em 2003. Todas as entrevistas foram realizadas dentro de uma perspectiva de primeiro conhecer a História de vida e no segundo a conquista da terra.

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o que Thompson denomina de interação dialética entre a experiência e a consciência social10.

Não se pode negar que existia uma política do Estado Brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, de incentivar a migração pra Amazônia dentro dos objetivos de crescimento econômico e de esvaziamento das áreas de conflito de outras regiões do país, porém, por outro lado, existia também a intenção dos trabalhadores rurais de adquirir novamente sua própria terra pra plantar e criar seus filhos. Existiu a luta, a terra foi conquistada e não dada pelas políticas públicas daquele período.

Os migrantes não vieram trazidos pelos grandes projetos ou simplesmente iludidos pelas propagandas existentes, mas, vieram com uma estratégia, obter sua própria terra, ainda que fosse na desconhecida Amazônia. Como demonstra a fala do técnico do INCRA a seguir

No projeto Jauaperi as pessoas ocupavam seus lotes por conta sem ter uma seleção, por exemplo, a ocupação de São João da Baliza foi uma ocupação espontânea aonde os migrantes iam chegando e iam tirando o lote assim como o núcleo urbano, isso no final da década de 1970, somente em 1986 foi criado o projeto JATAPU11 .

A documentação encontrada nos arquivos do INCRA demonstrou que o

processo de ocupação no projeto Jatapu, que deveria ter sido planejado, ocorreu de forma espontânea, sem o olhar e o controle do Estado. Isto fica claro ao verificar um despacho dado em 1983 pelo diretor do INCRA Aldo Morais Pessoa, que, ao analisar um pedido para regularização dominial de um lote com 100 hectares na gleba Jauaperi, no município de São Luiz, pertencente a Alaerte do Carmo, neste o diretor reconhece a necessidade do Estado em regularizar a posse, pois segundo ele o lote já teria sido ocupado há anos, o documento evidencia ainda que existia a necessidade do INCRA tentar obter o controle deste processo. No despacho este defere com as seguintes palavras

O pedido de referencia justifica-se plenamente visto que a migração para o Território em busca de terras é cada vez mais acentuadas, o que força esta autarquia, em situação de excepcionalidade, planejar e executar um trabalho de regularização fundiária mais acelerado. Com isso minimiza-se ainda o surgimento

10 THOMPSON, Edward Palmer. A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros: uma crítica do pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 15-17. 11 Idem, Ibidem.

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de conturbação social, grilagens e o famigerado comércio de terras na zona rural.12

As palavras citadas “migração em busca de terra”, evidencia que estes

cidadãos tinham um objetivo muito claro e definido na sua viagem para a Amazônia, o reencontro com a terra. A ocupação espontânea da para a Perimetral Norte em Roraima foi intensa e os próprios migrantes retiravam seus lotes, dividiam entre sí as terras e organizavam sua ocupação, como se estivessem chegando ao final de uma grande batalha. A vida ganhara novamente esperança e o sonho tornara-se realidade. As vozes de muitos entrevistados em alguns momentos das entrevistas desaparecem de emoção diante a memória do dia que chegaram e retiraram seu lote, esta a emoção marca um reencontro com a terra. No surgimento da vila de São João da Baliza, o senhor João Pereira, um dos principais líderes que surgiu no processo dessa conquista relembra como a divisão da terra era feita

Durante os anos de 1970, e 1974, a gente tinha que se virar pra dar terra pros que chegavam eu tirava aquele cipó de titica, media cinqüenta metros dele usava como fita métrica pra medir os lote que eram de cem ha. e fazíamos então um sorteio, colocando os nomes das pessoas num saco, eles tiravam um papel com um número dentro de um saquinho, era na sorte, cada um tirava o número que por sua vez era o próprio numero do lote onde iria ficar.

Esse depoimento de Pereira é crucial e acaba evidenciando que logo no

inicio da abertura da Perimetral Norte os migrantes, inclusive ele próprio, começaram a retirar ou comprar de antigos posseiros seus lotes antes de um planejamento do INCRA.

Portanto, quanto a esta ocupação, diferentemente do que afirma Magalhães em algumas passagens de sua obra que “Coube ao INCRA promover os assentamentos” 13. Pereira, quando indagado sobre a responsabilidade do INCRA e do Estado quanto ao início da ocupação na Perimetral, não pestaneja em afirmar “Na verdade não tinha Secretaria de agricultura, não tinha INCRA, Estado não tinha nada disso. O INCRA nesse tempo nunca deu um palmo de terra pra ninguém, nem nunca deu as caras por aqui” 14.

Esta informação pode ser confirmada tanto pela fala do técnico, assim

12 Processo de Coordenadoria Regional do Extremo Norte – Coordenação Fundiária de Roraima (CR-15), T-1/ N° 1.009/83- PAR-JUAPERI de 06//06/1983. Folha 08. Ministério da Agricultura, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. PF/Roraima. Arquivo INCRA, Boa Vista – RR. 13 MAGALHAES. Op. cit., p.102. 14 Entrevista com o Sr. João Pereira, migrante maranhense. São Luiz do Anauá (RR), janeiro de 2010.

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como o próprio arquivo do INCRA, que comprova a instalação apenas de uma sede regional ainda ligada ao estado do Amazonas, na denominada Vila do INCRA a partir de 1979, onde atualmente fica o município de Rorainópolis, quanto pela fala de Verônica que ainda hoje possui o lote retirado com o tal do “cipó titica” citado anteriormente.

Quando cheguei em meados de 1981, comecei a trabalhar por um período de dois anos, conseguimos um lote na BR dado pelo vice prefeito o seu João Pereira (...) Todos os dias chegava um pau de arara, e era o seu João quem agasalhava toda essa gente, não sei como ele conseguia o lote, ele é um homem do povo”.

Dona verônica é mineira, veio também em busca de terra em cima de um

caminhão saído de Minas Gerais com seu marido. Outro migrante senhor Pereira que deu uma contribuição importante, a posteriori às famílias que ainda estavam por chegar

Eu sou Maranhense, minha esposa também, nascemos em Graça Aranha, hoje tenho sete filhos e dez netos. Migramos de lá pro Goiás de lá viemos pra Rondônia e depois pela estrada que chegava até Manaus, como não dava pra vir pela BR 174, aluguei um barco que nos trouxe até Caracaraí, esta viagem de barco demorou uns seis a sete dias. Olhe quando eu cheguei aqui à família do seu Antonio Didi também chegou e nós dividimos este pedaço aqui é pra fazer a cidade e nossos lotes foram tirados por nós mesmos. A minha família era grande, era eu, minha mulher, Maria Pereira (aponta para mulher sentada ao seu lado) meus filhos, minha sogra, meus cunhados, cunhadas e um sobrinho e eu dizia “olha vamos plantar, terra tem muito.

Mais uma vez na entrevista é citado outro migrante, o senhor Didi,

também um dos migrantes que chegara ao Baliza na década de 1970. Este afirma que, ao retirar seu lote, a abertura da Perimetral ainda estava sendo realizada e ele trabalhou por alguns tempos na empresa construtora como relembra:

Retirei este lote aqui porque era próximo do rio e fui buscar e retirar outro maior na mata. Então convidei minha família toda pra cá. Depois minha esposa chegou e ela ficava aqui eu ia pra mata, aqui no Baliza tinham poucas casas, e ainda não estavam prontas.15

O Sr. João de Deus e sua família são oriundos do Maranhão, porém

passaram boa parte de suas vidas em Goiás, onde residiam com seus pais

15 Entrevista com o Sr. João de Deus Costa Bezerra. São João da Baliza (RR), novembro de 2009.

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quando decidiu migrar. O senhor Didi é importante não somente na história local, por ser uma história viva na construção da cidade de São João da Baliza, mas porque foi um dos incentivadores da valorização da cultura, pois incentivou e recriou a tradição da dança do bumba meu boi, trazido do Maranhão e outras demonstrações culturais. Atualmente, Didi é um pequeno pecuarista, possuindo mais de 100 cabeças de gado, reside com sua esposa em seu lote e continua trabalhando na terra.

Outro depoente foi o senhor Florentino Nunes de Macedo, o Barbeiro, natural do Piauí, chegou à Perimetral Norte em 1974. Seu lote faz parte do pequeno grupo que está localizado à margem da Perimetral, onde posteriormente foi criado o Projeto Jauaperi. Ele afirma:

Cheguei aqui em 1974, quando cheguei trabalhei na ponte do Rio São Francisco, naquela época já tinha mais moradores pra cima. Aqui já estava o João Pereira, Didi, e outros. O governador da época o Ramos Pereira e posteriormente o Getulio Cruz, nenhum deles fez nada por nos aqui. Nos ficamos aqui sem nada, mas trabalhei duro, mesmo com minha esposa doente conseguir cuidar deste meu lote e até o dia de hoje sou eu que cuido16.

O período que o senhor Florentino chegou corresponde ao início da

abertura da BR-210, na qual trabalhou prestando serviços para a Empresa Paranapanema, período de chegada de muitos moradores, 1975-1980, atualmente o lote do senhor Florentino pertence ao município de São Luiz do Anauá, às margens da BR-210.

Outra entrevistada foi a senhora Enésia Aparecida Rodrigues, paranaense que veio com o pai e os irmãos para a Perimetral Norte e relata que lá está feliz e que não existe nada mais importante do que ter sua própria terra:

Nasci no Paraná, em Ponta Grossa, perto de Curitiba. Meu pai era agricultor, trabalhava na roça dos outros com batatinha e plantação de fumo [tabaco]. O meu pai não era o dono da terra. Quanto às dificuldades [silêncio, choro] eram muitas... Por isso estamos aqui até hoje, os companheiros que vieram do Paraná para cá em busca de terra também conseguiram, o que é mais importante do que ter, a própria terra.? 17

Com base no relato colhidos com a senhora Enésia, a experiência vivida e

16 Entrevista com Florentino Nunes de Macedo, trabalhador rural que chegou à BR-210 em 1976, onde reside até hoje. São Luiz do Anauá (RR), janeiro de 2009. 17 Entrevista com a Senhora Enésia Aparecida Rodrigues, trabalhadora rural que saiu com os pais do Paraná para Roraima em 1979. Vila Moderna, município de São Luiz do Anauá (RR), Janeiro de 2009.

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sofrida pelo pai com a expropriação da terra, com o trabalho de diarista no interior do Paraná, e as dificuldades enfrentadas pela família, nunca deixariam de ser parte da memória e logo da História destes sujeitos.18

As palavras a seguir de Argemiro de Souza refletem que no jogo pela sobrevivência acabam existindo alternativas, e a migração para a Amazônia representava uma delas

Eu fui cedo morar em São Paulo, trabalhei na usina do Francisco Matarazzo na Fazenda Santa Rosa, na época era uma das maiores do país. Lembro-me que dormia numa pensãozinha, não tinha casa, e de madrugada o caminhão pegava a gente pra ir trabalhar, mas era difícil. Depois trabalhei na empresa Camargo Correa em construção e várias outras firmas... Aqui na terra a gente sabe plantar, vive bem, sobrevive bem, cria nossos filhos com fartura, trabalhando junto com a família, os sogros, genros, trocando dias com eles. A nossa vivência na floresta nos ensinou isso desde cedo. Como eu, eu já sou filho de rural e já trabalhei muito nas roças, aprendi muito com meu pai.19

Fica claro nas palavras de Argemiro que a relação com a terra não é

determinada apenas pela necessidade de trabalho ou a falta dele, mas pela identidade com a terra. Em outras palavras, estes migrantes poderiam ter aumentado a estatística do êxodo rural, ou terem se transformado em “bóias-frias” 20, assim como milhares de camponeses. Eles fogem a essa regra, saindo da posição de sujeitos passivos, diante das transformações do campo e passam à posição de sujeito transformadores desta realidade.

E. P. Thompson é novamente inspirador por trazer a reflexão sobre as estratégias de resistência desenvolvidas nas experiências de vida dos trabalhadores, propiciando outro olhar a este processo, a princípio interpretado como desistência ou aceitação.21 Aqui parece ser correto relembrar o que Thompsom crítica, a “visão simplista de analisar movimentos da multidão como espasmos” ou seja, movimentos que são provocados simplesmente pela fome.22 Esta mesma crítica pode ser feita a compreensão da chegada de milhares de trabalhadores na Amazônia no período militar, no

18 POLLACK, Michel. Memória, Esquecimento e Silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV/Cpdoc, 1989, p. 9. 19 Entrevista com o senhor Argemiro de Souza, trabalhador rural e migrante oriundo da Bahia. Vila Moderna, Município de São Luiz do Anauá (RR), janeiro de 2009. 20 Cf: SILVA, Maria Aparecia Moraes. A Luta Pela Terra. São Paulo: Editora UNESP, 2004. 21 THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa. Vol. I: A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 9-10. 22 THOMPSOM, Edward Palmer. Costumes em Comum. Op. cit., p. 152.

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entanto, é necessário tentar investigar a contra pelo, ou seja, como os trabalhadores utilizaram-se desta política, caso os movimentos sociais do campo no Nordeste e no Sul não influenciaram esta política militar? São questões que precisam ser aprofundadas.

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COLONIZAÇÃO E MIGRAÇÃO NA CAPITANIA DO PARÁ : O CASO DE MOJU (SÉCULO XVIII)

Regina Célia Corrêa Batista1

Resumo Este artigo pretende contribuir com a discussão acerca do processo de ocupação/colonização do espaço da Capitania do Grão-Pará no século XVIII. Me reporto para esta abordagem ao caso do Rio Moju, onde um complexo cenário de migração se intensificou para aquela região, principalmente a partir de meados do século XVIII, com a distribuição de Sesmarias e a chegada de diversos sujeitos que conformaram uma realidade de ocupação do espaço, de um lado, por grandes proprietários que almejavam aumentar suas rendas, de outro, por uma infinidade de pequenos agricultores que se assentavam na região em busca de seu sustento e de sua família. No bojo desse processo, índios e negros também contribuíram para dinamizar e conformar o perfil demográfico propiciado por essas relações.

Introdução

A condição de fronteira do Estado do Maranhão e Grão-Pará

proporcionou as mais variadas experiências experimentadas pelos sujeitos que fizeram parte desse processo. Ao lado de instalações físicas como fortalezas e regimento militares, a Coroa Portuguesa cuidou de incentivar a instalação de núcleos populacionais e o cultivo da terra, ações que assegurariam a posse mais efetiva do território.

Desde a segunda metade do século XVII até meados do século seguinte, a Capitania do Grão-Pará sentiu mais intensamente a política de ocupação lusa no seu território, principalmente na região aos arredores de Belém, onde se assentaram as bases de um povoamento mais considerável. Uma economia fundamentada em sítios de engenhos, na produção manufaturada e na

1 Mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Atua como docente do Plano Nacional de Formação de Professores, no Curso de Licenciatura Integrada em História e Geografia (PARFOR - História e Geografia) da Universidade Federal do Oeste do Pará. Atualmente é formadora de História no Programa de Formação Continuada da Secretaria Municipal de Educação (SEMED), no Município de Marabá (Pará).

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agricultura de pequenas propriedades toma corpo, porém sem abandonar o extrativismo, qual ainda tem uma participação expressiva entre as atividades desenvolvidas pelos moradores.

Neste período, a região que compreendia os rios, Moju, Acará, Guamá e Capim, era a mais bem povoada de toda a Capitania. O processo de povoamento dessa região propiciou a formação de pequenas e médias propriedades, bem como, de uma infinidade de modestos sítios que se organizavam com base na agricultura, no extrativismo e na criação de animais. Todas as unidades se distribuíam as margens do rio e ainda penetraram nas malha intrincada de igarapés e furos formadores deste primeiro circulo da ocupação que, cada vez mais, girava em torno de Belém.

Neste artigo pretendo me deter em um estudo de caso por mim investigado mediante o desenvolvimento de pesquisa para elaboração de dissertação de mestrado, defendida em março de 2011. Trata-se do fluxo migratório verificado em direção à região de Moju, intensificado principalmente pelas doações de Cartas e Sesmarias solicitadas para aquela região, até meados do século XVIII. A partir dai, um complexo cenário de ocupação e uso do território começa a se desenhar pelos sujeitos envolvidos nesse processo. A ocupação do espaço e o uso do território

A doação de Sesmarias era uma política de doações de terras utilizada em

Portugal desde o século XII. Essa estratégia de colonização foi preferida pelos portugueses mediante a necessidade de cultivar a terra e aproveitar os recursos das suas Colônias.

As doações para o Rio Moju apresentaram períodos de intensificação e pausa, a saber: de 1727 até 1747, as doações foram intensas, sendo passadas 40 Cartas de Datas neste período, no ano de 1734 registrou-se o maior número de concessões, oito; seguido do ano de 1738, com seis e de 1737, com quatro. A partir daí seguiu uma pausa de sete anos, voltando a novamente ocorrer duas doações no ano de 1754. Durante a vigência da politica pombalina registrou-se a doação de apenas três sesmarias, uma em 1763 e duas em 1764, como podemos verificar na tabela abaixo:

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Tabela 1: Doações de Sesmarias para o Moju no Século XVIII ANO DOAÇÕES MORADORES

DA CIDADE MORADORES EM OUTRO LOCAL

NÃO DECLARADO

1727 1 0 1 0 1728 3 3 0 0 1729 2 2 0 0 1730 2 1 1 0 1732 2 1 1 0 1733 1 1 0 0 1734 8 7 0 1 1737 4 3 0 1 1738 6 0 1 5 1739 2 2 0 0 1741 1 1 0 0 1742 1 1 0 0 1743 1 1 0 0 1745 1 0 0 1 1746 2 0 0 2 1747 3 0 0 2 1754 2 0 0 2 1763 1 0 0 1 1764 2 0 0 2 TOTAL DE DOAÇÕES

45 TOTAL DE MORADORES DA CIDADE

23

Fonte: BATISTA. Regina Célia Corrêa. 2011.

Ao que parece dois motivos principais podem ter levado ao escasso

movimento de doações de sesmarias no período pombalino na região de Moju. O primeiro seria o próprio cenário demográfico da região, a qual já apresentava neste período uma gama considerável de moradores, já que, foi de meados da primeira metade do século XVIII até a virada para a segunda metade que se concentrou o maior índice de doações de sesmarias.

O segundo motivo seria a intensa investida do Marques de Pombal nas Vilas e Lugares de Índios, secundando esse esquema de apossamento de terras para as outras regiões. Acompanhando as doações de terras em outras localidades percebemos este intervalo das doações também para Cametá, Igarapé-Miri, Acará e Abaetetuba, enquanto que nos Lugares de Baião e Beja as doações de sesmarias ocorrem depois de 1764. Neste período também se intensificam as doações para a região do Marajó e para a região bragantina,

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indicando a preocupação da administração pombalina em expandir a área de colonização lusa que esteve concentrada nas regiões mais próximas da cidade.2

Outra característica explicitada pela tabela é a tendência dos solicitantes de sesmarias para o Moju serem oriundos da cidade de Belém, ratificando a disposição verificada entre os mais abastados moradores da cidade em expandirem seus negócios, assentando suas lavouras e engenhos nas cercanias de Belém.

Tais moradores foram beneficiados pela constante preocupação da Coroa em implementar múltiplas estratégias de desenvolvimento do cultivo de variadas espécies nesta região, não só aquelas trazidas pelo colonizador, como o açúcar e o tabaco, mas também dos produtos da terra, como o cacau, o cravo e o anil. Neste sentido, a distribuição de terras por Datas e Sesmarias, também se insere neste contexto, sendo mais uma forma da Coroa atuar no sentido de dilatar a produção agrícola no Estado.

Assim, lavrar a terra pelos seus súditos foi a forma mais eficaz, encontrada pela Coroa portuguesa, para ocupar efetivamente seus domínios. Para isso contou com a ajuda significativa dos homens de negócio desta região, já que, as doações eram feitas, em sua maioria, de acordo com o patrimônio do favorecido, ou seja, para ser beneficiado pelas doações o solicitante deveria demonstrar que tinha possibilidades para lavrar a terra.

Tal era o caso da abastada família Moraes Bittencourt, que possuíam propriedades em diversos locais da Capitania do Pará, dentre estes, no Moju. A família parece ter sido uma das primeiras a se beneficiarem da política de ocupação daquela região. Um pedido de concessão de sesmaria, em 1718, no rio Moju, feito por Luiz Moraes Bittencourt, tem como justificativa o fato de suas terras naquele mesmo rio estarem cansadas, pois, já fabrica açúcar nelas há mais de cinquenta anos3. Em 1724, sua viúva e filhos requerem outra sesmaria nas proximidades do mesmo rio4. Em 1725, Dona Portazia de

2 Os dados deste parágrafo foram obtidos a partir do cruzamento bibliográfico com fontes primárias: ÂNGELO-MENEZES. Maria de Nazaré. “Cartas de Datas e Sesmarias. Uma leitura dos componentes mão-de-obra e sistemas agro-extrativista do vale do Tocantins colonial”. Paper do NAEA, nº 151 (2000); ACEVEDO MARIN, Rosa. “Camponeses, donos de engenhos e escravos na região do Acará nos séculos XVIII e XIX”; Projeto Resgate/AHU, Pará (Avulsos), 1755-1777. 3 CARDOSO. Alana Souto. Apontamentos para a história da família e demografia histórica da Capitania do Grã-Pará (1750-1790). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação em História Social da Amazônia, UFPA, 2008. p. 43 4 REQUERIMENTO da viúva e filhos de Luís Morais Betencourt, moradores na cidade de Belém do Pará, para o rei [D. João V], solicitando a confirmação da carta de data e sesmaria localizada nas proximidades do rio Moju, na paragem situada na

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Bitancourt, requere confirmação de suas terras que ganhara de casamento de seu pai5. A família Bittencourt foi uma das famílias muito influentes que viveram na Capitania do Pará no século XVII. A primeira noticia que se apurou, sobre esta família, é que pelo menos dois de seus integrantes, Jorge de Lemos Bittencourt e Antônio Ferreira de Bittencourt, natural da ilha de São Miguel, atuaram no transporte de casais açoreanos para esta capitania.6

Nesta altura, a intenção da Coroa Portuguesa é, ao mesmo tempo, controlar a densidade populacional do arquipélago açoriano, e proporcionar aos habitantes das nove ilhas melhores condições de sobrevivência no Novo Mundo, já que as ilhas eram constantemente assoladas por terremotos e por erupções vulcânicas; saqueadas por piratas e por corsários de todos os lados e por pragas que arrasavam as suas lavouras, causando mutações na economia local e transtornos às famílias. A Coroa também queria garantir, na região Amazônica, a consolidação do domínio português e a fixação das fronteiras geográficas, quer assegurando a defesa do litoral, quer organizando núcleos de colonização no Pará e no Maranhão. 7

Esses núcleos de colonização vinham sendo incentivados desde o século XVII, estimulados pela promessa de melhores condições de vida e pela necessidade da Coroa em fomentar a colonização, estimulando a iniciativa de particulares em participarem do projeto metropolitano. A política de doação de terras veio ao encontro destes interesses e atuou no sentido de divisão do espaço entre os súditos portugueses.

Para além deste grupo que intencionava aumentar seus domínios, estavam, em sua maioria, aqueles que declaravam “não ter terra para lavrar” ou “estarem lavrando em terra alheia”, buscavam assim terras próprias para se dedicarem às suas culturas.

margem direita do igarapé Pacurituba. 11 de fevereiro de 1724, Projeto Resgate/AHU, Pará (Avulsos) Cx. 8, Documento. 667. 5 APEP. Livro de Sesmarias n° 02, página 101 (verso). APUD: ÂNGELO-MENEZES. Maria de Nazaré. Cartas de Datas e Sesmarias. Uma leitura dos componentes mão-de-obra e sistemas agro-extrativista do vale do Tocantins colonial. Op. Cit, p. 03. 6 CONSULTA do Conselho da Fazenda para o rei D. Filipe II, sobre o requerimento de Jorge de Lemos de Betencourt, solicitando que os capitães de navios que o acompanham no transporte de duzentos casais de açorianos para o Pará, sejam de nobre qualidades e naturais daquelas Ilhas. 26 de maio de 1618. Projeto Resgate/AHU, Pará (Avulsos) Cx. 1, documento. 7. 7 CARDOSO. Alana Souto. Op. Cit, pp. 34-35.

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Delineava-se assim um quadro produtivo, oriundo da cidade, no qual, as pessoas com objetivo de expandir ou adquirir terras para desenvolver suas atividades e sustentar suas famílias, começaram a se deslocar para a região de Moju, consigo traziam suas famílias, seus agregados, escravos e parentes, que ajudavam a configurar a demografia da região. ´

A ocupação e utilização do território iam assim de definindo de um lado, por um grupo de grandes proprietários, que nem sempre utilizavam a região para moradia, mas sim, para assentarem lavouras e utilizarem os recursos dali extraídos. De outro, por um grupo de pequenos e médios proprietários que assentavam moradia e desenvolviam as mais variadas atividades na região, como a agricultura, o extrativismo, a criação de animais e as manufaturas.

No cerne desse processo de ocupação e utilização do espaço, verificamos a presença dos nativos da terra e também dos negros africanos, os últimos principalmente a partir da segunda metade do século XVIII, com a inauguração da politica pombalina na região. A relação tecida entre esses vários sujeitos, principalmente mediadas pelo trabalho, é essencial para entendermos o aumento populacional considerável naquela região ao final do século XVIII.

Em 1765, o Rio Moju contava com uma população de 208 moradores, enquanto que, em 1778, a agora denominada Freguesia do Espirito Santo do Rio Moju contabilizava um total de 1837 pessoas, contando pessoas livres e os escravos. Crescimento maior do que o verificado na vizinha Freguesia de São José do Rio Acará que em 1765 tinha uma população de 552 habitantes – por tanto maior que Moju -, no entanto teve um crescimento populacional menor neste intervalo de tempo, apresentando em 1778 uma população de 1017 habitantes.8

A ocupação do espaço de Moju tinha assim significados diferentes de acordo com o grupo envolvido. Para a Coroa Portuguesa, a investida naquela região significava por em prática as diretrizes pensadas para a ocupação do espaço Amazônico, se fazendo mais presente e inibindo possíveis investidas estrangeiras nas suas possessões, além de impulsionar as atividades econômicas, incentivando suas potencialidades, no sentido de gerar riquezas e aumentar os rendimentos da Coroa.

Para o grupo dos proprietários mais abastados que buscavam a ampliação de suas possessões, o território no Moju significava o lugar onde esses sujeitos

8 Os dados apresentados neste parágrafo foram obtidos a partir do cruzamento de dados bibliográficos com fontes primárias: ACEVEDO MARIN, Rosa. “Camponeses, donos de engenhos e escravos na região do Acará nos séculos XVIII e XIX”. Papers do NAEA, n° 131 (2000) e mapas populacionais de 1778.

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tinham uma possibilidade de expandir os seus negócios e aumentar as suas riquezas, além de ampliar o seu leque de relações e influencia no cenário econômico e político no Estado.

Era o caso de Domingos Monteiro de Noronha, o qual fazia petição, em 1724, solicitando confirmação de carta de data e sesmaria no Rio Moju, onde este possuía um engenho real de fazer açúcar, o qual ele comprara com três quartos de légua de terra, pouco mais ou menos, principiando no Rio Moju, no igarapé que se achava a borda do pasto do dito engenho, no sitio chamado Juquirí Vassú, correndo rio acima pelo Rio Moju, à parte esquerda, confinando com as terras de Francisco de Lameira da Franca. Nesta mesma petição solicitava mais um quarto de légua no Rio Guajará, onde possuía uma fazenda de cacau e plantava suas roçarias para o sustento de sua família e de seus servos.9

Em 1725, Manoel de Oliveira Pantoja recebe por sesmaria uma légua de terras nas cabeceiras do Rio Moju, para seu sustento e de sua família. Mais tarde, em 1778, são encontrados três membros da família no recenseamento da população da freguesia de Moju: João Pedro de Oliveira Pantoja, capitão auxiliar, branco, solteiro, senhor de engenhoca, situado na localidade Nossa Senhora do Carmo, chefe de um núcleo familiar composto de 40 pessoas, sendo 31 escravos; Carlos de Oliveira Pantoja, sargento auxiliar, branco, casado, lavrador, situado na localidade Nazareth, chefe de um núcleo familiar de 27 pessoas, sendo 9 escravos e Maximiano de Oliveira Pantoja, freguez da cidade, soldado auxiliar, branco, casado, lavrador, situado na localidade Meruhí, chefe de um núcleo familiar de 3 pessoas e possuía 3 escravos.

Tais dados nos demonstram a tendência de permanência de alguns grupos familiares na região. Famílias que estabeleceram domínios em Moju, sendo beneficiados pelas doações de sesmarias e que acabaram por incentivar também o estabelecimento de outros membros da família no local, ocupando novas áreas, aumentando o número de propriedades no local. Crescimento este que era difícil para que a Coroa conseguisse acompanhar.

9 REQUERIMENTO de Domingos Monteiro de Noronha, para o rei [D. João V], solicitando confirmação de carta de data e sesmaria localizada no sítio chamado Juquiri Vassû, nas proximidades do rio Moju, a fim de ali estabelecer um engenho para produzir cacau. Projeto Resgate/AHU, Pará (Avulsos). 18 de Maio de 1724. Cx. 8, documento 694. Obs: esta carta de sesmaria é pedida em 1723, com confirmação em 1727, no entanto a justificativa para o rio Moju é aumentar o seu engenho de açúcar ali estabelecido, inclusive aparece na confirmação açúcar e lenha. a produção de cacau é solicitada para o sitio do rio guajará no mesmo pedido, talvez por isso o equívoco do verbete.

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Nas Cartas de Datas e Sesmarias para o Rio Moju investigadas é comum nos pedidos o solicitante indicarem como limite para suas terras, vizinhos que não encontramos na documentação, como beneficiários das doações, ou ainda, que aquele local era “bastante povoado”, o que aponta algumas particularidades da aquisição de terras nesta região.

Uma obrigatoriedade fundamental do sesmeiro era cultivar a terra, entretanto, muitos sesmeiros acabavam “dividindo” esta responsabilidade com pequenos lavradores, arrendando suas terras. Como os limites das terras era algo facilmente burlado pelos colonos, muitos deles acabavam se apossando de terras vizinhas, trazendo a cena na Amazônia, a figura do posseiro.

A ocupação antes da regularização da terra foi uma prática que se tornou comum na Amazônia. Em 1738 Amaro Pinto Vieira, solicitava no Igarapé Jambuaçú, braço do Rio Moju, uma Carta de Data de Sesmaria de duas léguas para as terras onde estava situado há anos e ali possuía uma roça de cacau. Este era o caso também de João Matos, ajudante da Companhia das Ordenanças da cidade de Belém, que pleiteava Carta de Data para as terras que beneficiava há quatro anos no Rio Moju.10

Interessados na ocupação e povoamento, os governos colonial e metropolitano não tomavam as glebas dos posseiros, arrendatários e sesmeiros, ainda que parcialmente cultivadas ou sem exploração.11 Percebe-se assim, algumas das particularidades das leis de Doações de Datas portuguesas na Amazônia, mediante sua especificidade local, na tentativa por parte da Coroa em regularizar esse sistema.

Para este grupo maioritário de pequenos e médios agricultores, a ocupação do território em Moju significou a possibilidade de estabelecerem moradia e rendimentos de onde pudessem retirar o seu sustento e de suas famílias. Assim, a ocupação naquela região ia seguindo os cursos dos rios, adentrando os furos e igarapés, aonde iam se estabelecendo os núcleos de povoamento.

Nativos e africanos foram outros sujeitos que chegaram à região, mediados pelo trabalho e ali estabeleceram relações diferenciadas no uso do território. Ao contrário do que durante muito tempo foi pensado, a mão-de-obra indígena e africana não se excluíram, ao contrário, se complementavam no cerne do desenvolvimento das atividades econômicas na região amazônica. A intensificação da coexistência entre brancos, negros e índios, neste período,

10 ÂNGELO-MENEZES. Maria de Nazaré. Cartas de Datas e Sesmarias. Uma leitura dos componentes mão-de-obra e sistemas agro-extrativista do vale do Tocantins colonial. Op. Cit, p. 47 e 43. 11 NEVES. Erivaldo Fagundes. Sesmaria em Portugal e no Brasil. Revista Politéia: História e Sociedade. Vol. 1, nº 1. Vitória da Conquista. 2001, p. 135.

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estabelecida pelas novas diretrizes referentes à mão-de-obra, favoreceu ao fortalecimento de novas redes de sociabilidades formadas no cerne das relações de trabalho na região de Moju.

No que se refere aos nativos da terra, sua participação foi constante no processo de colonização de Moju, bem como de toda a Capitania do Pará. Por meio deles se construíam as moradias dos colonos, as embarcações, vários utensílios domésticos, as expedições de recolhimento das drogas-do-sertão, de guerra justa, de resgate, produzia-se sal, farinha, entre outras muitas atividades essenciais para o desenvolvimento da vida na Colônia.

Em Moju os descimentos e as mudas foram as duas principais formas pelas quais os nativos da terra chegavam à região para realizarem os mais variados trabalhos, principalmente nos sítios dos moradores e na fábrica de madeiras do Estado.

Os descimentos eram práticas da legislação indigenista na Amazônia, onde populações nativas inteiras eram levadas a se deslocarem e se aldearem sob a égide, primeiro dos religiosos, até meados do século XVIII e depois do Estado, a partir da segunda metade desse século. Um exemplo neste sentido foi o descimento de índios da Capitania do Rio Negro para a fundação de uma aldeia destinada ao trabalho na Ribeira de Moju.12

As mudas eram outra prática da legislação indigenista na Capitania do Pará, onde os nativos eram destinados a trabalharem por um período de seis meses nas diversas atividades desenvolvidas pelo Estado e por particulares, depois deveriam ser liberados para voltarem para as suas localidades. No entanto, na prática, várias interferências aconteciam para que o processo se desse diferente daquele inicialmente estipulado. O não cumprimento do prazo e do valor estipulado para o pagamento dos índios era recorrente, bem como, as fugas e a recusa por parte dos nativos em se manterem debaixo dessa legislação aplicada pelo branco.

Esse complexo cenário ainda contava com a presença dos sujeitos escravos africanos, que foram arrancados de seu local de origem e trazidos forçados para os domínios coloniais lusos e aqui se juntaram ao emaranhado processo

12 OFÍCIO do [governador interino do Estado do Maranhão e Pará], Bispo do Pará, [D. fr. Miguel de Bulhões e Sousa], para o [ex-secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Diogo de Mendonça Corte Real, sobre o descimento de Índios vindos do Rio Negro, remetidos pelo governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], para a fundação de uma nova Aldeia nas proximidades da Ribeira do Moju, atendendo à necessidade de mão-de-obra para a conservação e aumento do trabalho na fábrica das canoas ali estabelecida. Pará, 13 de Novembro de 1756. Projeto Resgate/AHU. Pará (Avulsos). Cx. 41. documento 3816.

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de colonização desse espaço. Esse fluxo de trabalhadores proporcionou uma série de situações que iam conformando o processo de ocupação do espaço e uso do território.

Esses sujeitos, muitas vezes, empreendiam fugas que poderiam significar tanto o retorno ao seu local de origem – claro aqui me referindo aos índios, pois, tal possibilidade é praticamente nenhuma em relação aos africanos -, mas também culminaram significativamente na formação de novas unidades, nas imediações das fábricas, onde esses sujeitos buscavam realocar seu papel na sociedade colonial. Embrenhados nos matos à formar mocambos, índios, negros e mestiços criavam laços de solidariedade e estabeleciam suas próprias maneiras de viver. Considerações finais

O processo de colonização da Amazônia significou a necessidade da Coroa

lusa em pensar a região como fronteira, para traçar seus planos de atuação nesse espaço. Tal perspectiva nos leva a pensar na complexidade e diversidade de situações que a ocupação desse território proporcionou.

O estudo do caso de Moju nos ajuda a lançar luz sobre essa complexidade, principalmente quando nos debruçamos sobre a dinâmica de ocupação daquele espaço, salientando as variadas experiências dos sujeitos envolvidos nesse processo.

O fluxo migratório para aquelas paragens se deu de forma mais intensa principalmente a partir do século XVIII, com a doação de Datas e Sesmarias, mas também pela investida de outros sujeitos que não precisaram da autorização do Estado para se estabelecerem na região, também pela chegada e ação de sujeitos como nativos e negros africanos que, ainda que tenham sofrido a influência do Estado para chegarem naquela região, acabaram redirecionando os objetivos iniciais e refazendo suas histórias naquele lugar, como por exemplo, com as fugas e formação de mocambos e quilombos na região.

Essa complexa rede de acontecimentos, interligados, nos ajudam a compreender o cenário explicitado pelo recenseamento de 1778, onde brancos, negros, índios e mestiços aparecem compondo o perfil demográfico da população que se estabeleceu naquela região e ali desenvolveram suas atividades, estabeleceram relações, enfim, construíram suas histórias.

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FLAGELADOS OU CANDUNGA? INDECISÃO E MIGRAÇÃO NO ROMANCE CANDUNGA DE BRUNO DE MENEZES

Renan Brigido Nascimento Felix1

Resumo

A ideia de mudança, pessoas saindo de um lugar para outro. Em horizontes que se abrem, ou se fecham. Trata-se de um fenômeno antiquíssimo da sobrevivência humana, pois migrar também é pisar em um território marcado por incertezas. Com o detalhe de que a forma de enfrentar tais situações foi o texto literário, mas que de maneira nenhuma reduz à dimensão histórica do assunto. Assim, ao nomear a obra por flagelados e depois mudá-lo para o Candunga, sendo este o nome de um personagem da Obra publicada em 1954. Representou uma deliberação que nos apresenta a possibilidade de conectá-las aos debates relativos a migração. Nesse sentido, ao nos atermos a indecisão quanto ao nome da obra verificamos que flagelados estabeleceu uma conotação que está muito além do que a possibilidade de se ter tornado o título definitivo do romance, de Bruno de Menezes. Nos levou a observar amparado em diferentes fontes que o abandono a flagelados, caracterizou uma decisão por parte do autor, cheia de significados históricos, no contexto da década de 1950. Foi possível compreender que não se tratavam apenas de oscilações casuais, mas apresentavam ligações com assuntos levado aos jornais em circulação na Capital Paraense, que faziam com que o termo fosse amplamente utilizado. Daí nos ampararmos nas proposições da historiadora Franciane Gama Lacerda quanto à noção de vislumbrar pessoas onde se recorrentemente homogeneizava-se na desfiguração de flagelados, discurso frequente tanto no final do XIX quanto na primeira metade do século XX. Portanto, ao problematizarmos em modalidades que vão da representação ficcional a histórica desejamos integrar a presente discussão ao segundo capítulo da dissertação.

Palavras-chave: Migração. História. Texto literário. Flagelados. Indecisão.

A obra Candunga efetivamente dada ao conhecimento do público na

década de 1950 percorrera nos anos anteriores ao lançamento, diversas mãos

1 Professor da Secretaria de Estado e Educação e Discente do Mestrado em História Social-Universidade Federal do Pará

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tendo a maneira menos formal de um livro, isto é um manuscrito. Aparentemente, esse fato em si não se constitui como singular, pois entre os que escrevem geralmente há essa troca de conteúdos escritos, seja pela necessidade de conhecimento, de possíveis questionamentos ou até mesmo pela necessidade de aprovação da editora. Portanto, é uma prática das mais comuns, nas etapas de aprovação e avaliação de um trabalho, semelhante a um escrito literário, ou trabalhos de naturezas diferentes.

Assim, quando Bruno de Menezes atestava o fato em 1954, com a seguinte dedicatória ao seu amigo Jaques Flores: “Irmão Jaques: Enfim, o nosso “Candunga” depois de correr meio mundo vai a tuas mãos, para um grande e fraternal abraço. Teu sempre Bruno de Menezes” 2. As linhas de maneira bem lacônica apresentavam o dado, de que não se está diante de algo novo. Entretanto, o que nos leva a considerar a questão, diz respeito às imbricações históricas e também literárias, não do ir de mão em mão de um manuscrito, mas, sobretudo do nome que intitulava esse trabalho, isto é: “Flagelados” e não ainda “Candunga”. Título que o acompanhou nesse “correr de meio mundo” tal qual afiançado pelo escritor. Entretanto, a publicação em 1954 resolveria a questão quanto ao nome da mesma, acompanhado do subtítulo definitivo “Cenas das Migrações Nordestinas na Zona Bragantina”.

Além do fato, que na entrega ao público da primeira edição, ou passados mais de 39 anos, na posterior reedição das obras completas do autor em 1993. Não apareceria qualquer consideração à indecisão quanto à escolha do nome do romance. Daí a necessidade de se analisar as relações que levaram Bruno de Menezes a abandonar a primeira escolha, que o poeta José Eustachio ao lê-lo ressaltaria os aspectos expostos acima: “Mostraram-me, porém, os originais; li o manuscrito, e fiquei assombrado pela verdade incontestável: Ele escreveu mesmo um romance, - Flagelados”3.

No artigo publicado em 1959 constantemente o evocou com sentidos diversos se referindo à obra, como por exemplos: “cheia de martírios de

2 Dedicatória presente na primeira edição do livro, publicado pela Revista da Veterinária (Editora) em novembro de 1954, conservada no setor de obras raras do Centur, também presente no 3º volume das Obras Completas de Bruno de Menezes, reeditado pela Secretária de Cultura do Estado – Secult em 1993 em ocasião do centenário de nascimento de Bruno de Menezes. Interessante observar que na primeira edição, consta no final nota de correção que versam acerca de diversos lapsos de revisão. 3 “Bruno de Menezes, romancista!” - Artigo de José Eustachio de Azevedo – Publicado no Jornal Vespertino, 11/10/1959.

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flagelados nordestinos” 4 ou mais adiante ressaltaria “bem se vê que o escritor do Flagelados”5 . Por essa razão, as evidencias em José Eustachio de Azevedo, de maneira bem clara apontam a leitura que fez dos originais, manuscritos do até então flagelados. Permitindo compreender também, a rede de comunicação literária que se estabelecia entre os intelectuais sem que para isso existisse a figura propriamente dita do livro, talvez pelas já conhecidas dificuldades do fazer literário em meio às condições econômicas da Amazônia. Sinalizada em carta de Dalcídio Jurandir 6 a Bruno com os seguintes aspectos:

O seu caminho é o caminho de todos nós, seus companheiros nas lutas pelo pão, os velhos conflitos e as velhas angustias interiores, a sêde de cultura, o vago anarquismos lírico e em surdina á maneira de knut Hamsun...Como este, quanta fome você não passou! Mas a lua entrava pela sua boca de maravilhado e eita! Lá vais a intoxicação lunar, a bebedeira astral... Nesse tempo, onde a gente podia achar emprego, para ganhar um pedaço de pão e comprar um livro? 7

Por essa razão, ao indicarmos o titubear do autor para nomeação do

romance, se está diante de um acontecimento que representa uma possibilidade singular a discussão dos diversos significados atribuídos à migração, bem com aos sujeitos que delas fizeram parte nesse longo processo de mudanças, que uma infinidade de homens e mulheres passaram no final do XIX e de boa parte dos anos do século XX. Principalmente, por se tratar de um aspecto de transformações de grande impacto as relações históricas da Amazônia, que na maior parte das vezes como demostrou a historiadora Franciane Lacerda (2010) em suas análises foram significativamente ignorados pelas discussões que trataram da migração no território brasileiro, e quando por vezes concederam espaço foi de maneira bastante resumida ou sem o devido aprofundamento que o tema merece.

Ainda mais quando esses diálogos permitem a articulação de história e literatura, frente aos contrastes de duas situações que possivelmente colidiram nas retinas dos sujeitos envolvidos no processo, isto é, uma Natureza Amazônica antevista através de muitos adjetivos: pródiga, acolhedora e salvadora das agruras de uma história recente de exploração. E ao mesmo

4 “Bruno de Menezes, romancista!” - Artigo de José Eustachio de Azevedo – Publicado no Jornal Vespertino, 11/10/1959. 5 Idem. 6 MENEZES, Bruno de. Obras completas de Bruno de Menezes. Belém: Secretaria Estadual de Cultura: Conselho Estadual de Cultura, 1993. p.379-380. 7 Idem.

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tempo, com uma incidência para muitos, de uma memória familiar marcada por lutas e na maior parte das vezes com derrotas sucessivas. Seja pela expropriação de suas terras, fugas de um solo cansado e de águas por vezes escassas. Com isso, esse cenário de enfretamentos, de dramas. Fazia oposição a uma expectativa de algo melhor, com uma vida mais próspera, alimentada talvez pela ideia de uma terra farta, água em abundância e recursos disponíveis ao uso. Representações que são focalizadas pela narrativa. Homens e mulheres de ferramentas agrícolas em punho frente a uma ideia, um sonho ou simplesmente um recomeço; em face de uma Natureza cujas novas feições ainda estavam para ser definidas.

Assim, a narração apresenta um pequeno grupo, uma família e seu afilhado que de tão comum, talvez espelhasse centenas com nexos similares. Desse ponto que se estreia, visões distintas ganharam espaço a fim de retratar um processo significativo: a migração. Quando se considera o tema migratório a escala de abordagem pode ser de menor proporção, afinal diz respeito a uma família, porém aproximadas de milhares por partilharem trajetórias correlatas. Daí não se pode de maneira nenhuma deixar de vislumbrar que a ideia de mudança, pessoas saindo de um lugar para outro. Em horizontes que se abrem, ou se fecham. Afinal trata-se de um fenômeno antiquíssimo da sobrevivência humana, pois migrar também é pisar em um território marcado por incertezas. Com o detalhe de que a forma de enfrentar tais situações foi o texto literário, mas que de maneira nenhuma reduz à dimensão histórica do assunto.

Nomear a obra pelo termo flagelados e depois mudá-lo para o de uma personagem foi uma escolha que de maneira nenhuma pode ser deixada de escanteio. Primeiramente, porque a opção inicial representa muito mais que uma mera alteração, ou mudança isenta de vinculações, por mais simples que possa parecer o fato, se considerarmos os diversos processos que são movidos, no momento atual que nos encontramos inseridos. Por inúmeras pessoas que comparecem até os tribunais para solicitar a um juiz a mudança no seu registro civil, motivada por uma série razões, entre elas, porque não gostaram da escolha dada pelos pais na certidão de nascimento. Com essa noção, por mais básica que seja. Nos leva a pensar que estamos diante de uma perspectiva que um nome que uma pessoa carrega inegavelmente marca a experiência de vida de uma pessoa, que por vezes conviveu a vida inteira com uma identificação pessoal que lhe foi incomoda por longos anos. Se do panorama individual e ao mesmo tempo coletivo que uma atribuição identitária dessa natureza traz, apresentando por seu turno algo significativo e digno de nota na trajetória de sujeitos históricos. Ponderar, também a respeito do nome outorgado a um romance se constitui uma reflexão

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importante quanto ao envolvimento dos homens e aquilo que produzem em termos culturais.

Flagelados, por seu turno apresenta uma conotação que está muito além do que a possibilidade de se ter tornado o título definitivo do romance, de Bruno de Menezes. O fato de não ter sido a opção que lhe traria a distinção sobre a capa. Nos leva a observar que o abandono a flagelados, caracterizou uma deliberação por parte do autor, cheia de significados históricos, que, portanto influenciaram de modo significativo na decisão final. Embora, Maria Anunciada Chaves8, ao discutir os fatores relacionados à respectiva mudança praticada pelo autor, tenha se centrado na ideia que o escritor tinha a respeito dos diversos personagens que compõe o romance, que por apresentar a luta pela sobrevivência da família de Francisco Gonzaga em meio à Amazônia, no caso, Antonio Candunga surgiria na narrativa acompanhando a família, ganhado gradativamente espaço na obra. Nesse sentido, Flagelados enfatizaria a diversidade de nordestinos que compõe a trama, já Candunga, para escritora denotaria a resistência encarnada na figura de um jovem retirante, cujos aspectos rústicos de modo algum esconderiam tal sensibilidade. A consideração de fato guarda uma resposta possível à solução do impasse.

No entanto, a noção de que flagelados enfatizasse a diversidade dos nordestinos ambientados na trama é sem dúvida, objeto de ponderação. Afinal, de maneira nenhuma o flagelo da seca quando pensado para dar sentido a uma infinidade de histórias envoltas em um longo processo é capaz de ater-se ao “detalhe revelador” 9 tal qual nos diria Carlo Ginzburg, mesmo porque no contexto da década de 1950 os principais jornais em circulação na capital paraense fariam uso do termo em uma infinidade de reportagens, cujos títulos fomentavam distorções, bem como tinham finalidade de promover notícias de impacto, por vezes sensacionalistas, entre elas, destacamos algumas: “Provocadores comunistas incitando os flagelados”10,“Corredor aéreo em socorro aos flagelados”11,“Emprego para 13 mil flagelados”12,“Cem flagelados vão morrer nos seringais”13,“Mais flagelados para Amazônia”14,“Os

8 Maria Anunciada Chaves, “Bruno, Símbolo da Inteligência Paraense” In: Obras Completas de Bruno de Menezes volume 3, 1993, Belém, Conselho Estadual de Cultura, p.15-18. 9 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 10 A Província do Pará, 20/06/1951. 11 A Província do Pará, 28/03/1951. 12 A Província do Pará, 10/04/1951. 13 Folha Vespertina, 13/02/1952.

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flagelados transportados pelo Santarém trocam roupas pela alimentação”15. São alguns dos títulos que embalaram as informações privilegiadas nesse contexto pela A província do Pará e Folha Vespertina. Pode-se estabelecer que o tom preponderante que reinava era o da maneira vaga de apresentar os indivíduos envolvidos, no qual a seca se tornava plano de destaque para as razões da migração, sem que maiores esclarecimentos entrassem no texto.

Com isso, o uso nas matérias jornalísticas que na maior parte das vezes ganhavam destaque já na primeira folha, constitui um elemento que justamente o fazia linguagem comum nas vozes dos jornais, pintadas com as tintas do martírio da fome, alimentadas pelas consequências da escassez das chuvas no ano 1951, que traria uma leva consideravelmente de migrantes a Amazônia, cujos rostos vagamente apareciam pela razão de todos serem amontoados em derredor da noção descaracterizadora de flagelados. O problema maior não diz respeito à preferencia pelo emprego amplo do termo, mas sim na incapacidade de ser perceber seres humanos e suas histórias de vidas, pelo fato da generalização de sua utilização.

Perspectiva que não aparece somente no contexto em que estamos analisando, mas percorreu a virada do XIX para o XX, embora não fosse a única conceituação que se recorria tanto na linguagem das correspondências oficiais, como nas apresentadas nos veículos de comunicação escrita. Em consequência disto, podemos observar com maior profundida, as menções na discussão de Franciane Lacerda (2010), pois a historiadora analisou quanto as incompreensões relacionadas à experiência da migração cristalizaram-se como “definidores do nordestino”16, ou seja a recorrência homogeneizadora a essa nomenclatura, demonstradas em duas noções principais na exposição da historiadora: “uma espécie de quadros de horrores provocados pela seca levando os flagelados a uma vida de terríveis desgraças”17. A outra evidencia marcante, novamente seria amparada por essa mesma impressão a ele amparada, isto é: “figura desse flagelado que sai do nordeste para Amazônia, um imigrante quase sempre seringueiro”18. Nesse sentido, a abordagem caminhou na construção de uma experiência social, distanciada de rotulações

14 Folha Vespertina, 23/06/1951. 15 Folha Vespertina, 01/12/1951. 16 LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). Belém: Ed. Açaí. 2010. p.84. 17 idem 18 LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). Belém: Ed. Açaí. 2010. p.84.

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como cearenses, nordestinos, arigós, ou até mesmo de retirantes19 asseverado por Francivaldo Nunes, como referencia usada para situar de maneira geral tanto a condição, como a imprecisão quanto a local de origem.

Por isso, os jornais e algumas documentações caminharam em imprecisões, favorecendo o que Franciane Lacerda estabeleceu ao considerar que “flagelados”20 também representou uma “tentativa de homogeneizar as múltiplas vivencias desses homens, mulheres e crianças”21. Quando não tratados pela assistência do poder público, por termos como: indigentes22 e loucura23 conforme a documentação no Arquivo da Prefeitura Municipal de Bragança. As cartas e ofícios remetem-nos a recortes, da história de vida diferentes sujeitos sociais, moradores das colônias agrícolas da zona bragantina, relatos estes que dizem respeito também a uma política de assistência que se fazia entre o poder público e seus representantes nas colônias, que através do conhecimento que possuíam com as autoridades constituídas pediam certos favores, como também as próprias autoridades, por vezes aparecem nesses documentos pedindo pelos seus conhecidos a diferentes órgãos do estado.

O prefeito Simpliciano Medeiros Junior dirigiu-se ao Secretário de Saúde pública, pedindo para que o lavrador Semão Corrêa, que segundo consta no documento, devido a uma séria enfermidade “tornou-se indigente, em estado grave de saúde”24 fosse posto no Hospital da Santa Casa e assim solucionasse um problema da Prefeitura de Bragança. Não sabemos se a saúde de Semeão foi recobrada, mas pelo teor do documento chegou ao Hospital. De modo semelhante, Edú Honorato da Silva25, escreveu da colônia do Montenegro em Bragança, recorrendo ao mesmo Simpliciano, porém não para si, mas por

19 NUNES, Francivaldo Alves. Sob o signo do moderno cultivo: Estado Imperial e agricultura na Amazônia, Universidade Federal Fluminense, 2011.p.304. 20 LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). Belém: Ed. Açaí. 2010. p.84. 21 Ibidem, p.16. 22 Ofício presente no LIVRO Nº 044 – ANO 1952- 16 de fevereiro de 1952. Gestão de Simpliciano Medeiros Junior – Arquivo da Prefeitura Municipal de Bragança 23 A presente carta encontra-se no LIVRO Nº 044, no qual constam documentos esparsos do ano de 1951. Gestão de Simpliciano Medeiros Junior (1951-1955) – Arquivo da Prefeitura Municipal de Bragança. 24 Ofício presente no LIVRO Nº 044 – ANO 1952- 16 de fevereiro de 1952. Gestão de Simpliciano Medeiros Junior – Arquivo da Prefeitura Municipal de Bragança 25 LIVRO Nº 044, no qual constam documentos esparsos do ano de 1951. Gestão de Simpliciano Medeiros Junior (1951-1955) – Arquivo da Prefeitura Municipal de Bragança.

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Manoel Queiroz de Souza, descrito como amigo e “incansável pela nossa cauza”26 precisa levar a mulher a Belém, pelo fato de estar, segundo a missiva em “estado de loucura”. Daí a necessidade de três passagens aos acompanhantes da esposa de Manoel de Sousa.

Assim, relações eram feitas em diferentes esferas institucionais, a priori o prefeito poderia estar apenas cumprindo o papel inerente ao seu cargo de prefeito, socorrer os desvalidos, os que sem encontrar a devida assistência na cidade eram levados a se tratar na capital. No entanto, aqui questionamos se as práticas da assistência pública ao invés de estenderem-se a todos os munícipes, como de fato deveria o ser, acabam por acontecer com base em vínculos pessoais, no qual, o que é de direito se transforma em favor, situação que no livro Candunga é enfaticamente abordada pelo narrador, através das ingerências de comerciantes e administradores da região27.

Além do que, nesses documentos prevalece às relações pessoais, alguém que por ter proximidade, ou por ser a autoridade, se incumbe de pedir, ou de solicitar o que despacha. Na carta, é possível verificar o pedido, que talvez alguém próximo ao prefeito efetuou, por um terceiro, que justamente é um colono que passa por uma situação difícil. O cerne desses documentos, não reside, especificamente, no pedido que possivelmente fosse atendido, mas, na contrapartida de quem recorria a esses sujeitos, sem deixar de mencionar do acontecia a quem não gozasse da assistência desses benfeitores.

Retomando o dialogo da literatura com a história, além das discussões que já levantamos relativas às indecisões quanto ao título da narrativa de Bruno de Menezes. No livro da escritora bragantina Lindanor Celina28, tem-se um tratamento aos grupos de migrantes que chegavam até Bragança que reforça esse caráter demonstrado no decorre da discussão, pois na passagem em questão nos é descrita pela personagem principal, a seguinte cena: “Naquele dia, a cidade amanheceu em alvoroço: os flagelados vindo do Nordeste num instante se espalharam pelas ruas. A pobreza fazia dó. Recebiam o que se lhes levasse, com uma avidez que eu nunca vira”29. A descrição foi longa na narrativa, mas sempre se referindo ao espanto que causaram a chegada dos novos habitantes das colônias da bragantina. Até mesmo a ideia de espetáculo

26 Idem. Obs: mantido sem correção o conteúdo do documento. 27 O narrador relata quatro comerciantes dominantes nas colônias agrícolas, além de citar as relações que os mesmo congregavam com a prefeitura e as outras esferas públicas. Observar melhor nas páginas 115 e 137 da obra. 28 LINDANOR, Celina. Menina que vem de Itaiara.3. ed. Belém: Cejup,1996. 29Idem,p.70

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gratuito no final de um dos parágrafos adentrou o conteúdo narrativo: “Ia-se ver os flagelados como quem ia a um circo”30.

A narrativa machadiana, embora não estabeleça nenhuma conexão direta com os significados que estamos discutindo acerca do termo em apreço. Levam-nos a pensar que as oscilações na escolha de um nome nunca são esvaziadas de sentido e principalmente de flexões com a História. Na obra Esaú e Jacó, além da própria decisão repleta de metáforas históricas que o nome da obra constitui. Afinal, os irmãos gêmeos que inscrevem o título da trama de Machado de Assis, acertadamente ligam-se aos gêmeos do enredo Pedro e Paulo, pois dividiram-se e rivalizaram iguais aos primeiros. E nas páginas do Antigo Testamento além de vermos duas nações surgindo de cada um dos filhos Isaque. Aparece também uma mudança carregada de significados, isto é, Deus mudou o nome de Jacó, chamando de Israel dele nasceria o adjetivo que nomearia ao povo Hebreu.

O Pedro e Paulo de Machado de Assis são metáforas carregadas de sentidos ligados a história da virada do Império a República, fato que transpareceria na trama nas opções de cada um dos personagens. Outro exemplo, que saiu das páginas da obra em questão. Foi descrito por Lilia Schwarcz 31, como um drama cívico entre bolachas e cafés. No episódio, se tem Custódio titubeando quanto ao nome que daria a sua confeitaria, várias opções são discutidas por Custódio e o conselheiro Aires, indo de confeitaria do império, do governo, da república, do catete. Finalmente, chegariam a um veredito, mantendo o nome do dono. “Gastava-se alguma cousa com a troca de uma palavra por outra, Custódio em vez de Império, mas as revoluções trazem sempre despesas”32.

De Brás Cubas mais uma metáfora que o escritor Machado de Assis, empregaria seria na deliberação acertada, segundo asseverou Sidney Chalhoub33 ao dizer: “Em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis reescreveu Helena. A maior parte das ações se desenvolve entre 1840 e 1869, e Machado cifra o significado do romance na trajetória de Brás, que é o Brasil que vivera até 1869” 34. Atributo que se revelaria ao longo da narrativa

30 Idem,p.70. 31SCHWARCZ, Lilia Moritz. Drama cívico entre bolachas e cafezinho. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 1, N.º 5. Rio de Janeiro, 2005. 32Idem. 33 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.p.73. 34 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.73.

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cheia de entrelaçamento com a vida do personagem, sobressaindo na posição do historiador, um Brás que: “compraz-se em explicar repetidamente ao leitor como personagens e acontecimentos da narrativa justificam-se somente levando-se em consideração seus caprichos ou supostas necessidades.” 35

Com isso, Bruno de Menezes através da seleção definitiva do sobrenome de um personagem para nomear a obra. Não colocaria no romance ponderações a flagelado correlatas ao texto bíblico, semelhante à mantida por Machado em Esaú e Jacó. Afinal, estão imbricados de significados para além do açoite da seca, mas marcadas sofrimento justapostos ao lado infligir dor através de chicote como no caso dos imputados a Cristo, ou dos flagelos reservados a terra no Livro de Apocalipse. Assim, a trajetória de Candunga seria antevista como possiblidade para fundamentar o romance a partir de um personagem bastante relevante à narrativa, pois o próprio complemento com o subtítulo: “Cenas das Migrações Nordestinas na Zona Bragantina” viria ressaltar os diversos aportes que os deslocamentos de levas de nordestinos engendraram na Zona Bragantina.

Assim, podemos talvez afirmar que Candunga denote a perspectiva de um sobrevivente, representando se não um paradigma de migrante nordestino, que resistiu às dificuldades consagradas das terras amazônicas, como ideário de terra prometida aos homens sem terra, mas um personagem que longe da sina de herói. A medida que já na primeira apresentação que fez o narrador, depois de descrevê-lo. Ressalva-lhe a fidelidade de cão rafeiro sempre apto a defender a família em qualquer situação, por essa razão, Antonio Candunga é um personagem que evolui dentro do cenário narrativo que abre uma possibilidade entrever as lutas pela sobrevivência dos nordestinos, tendo como ponto de partida, um personagem representativo dos anseios de melhora social de inúmeros migrantes de carne osso que fizeram parte da história social da Amazônia de boa parte do século XX.

35 Idem,p.75.

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LAVRANDO EM TERRAS ALHEYAS PELLAS NÃO TER PRÓPRIAS: IGNACIO JOSÉ PINHEIRO E A OCUPAÇÃO DO

PERIASSÚ DE SÃO BENTO

Samir Roland1

Introdução Este trabalho tenta compreender através de documentos de solicitação e

confirmação de sesmarias, a participação de Ignacio José Pinheiro na ocupação de uma região denominada de Periassú ou Perizes de São Bento localizada dentro da capitania de Cumã na segunda metade do século XVIII2.

É importante pensarmos esse fenômeno não como algo que foi totalmente controlado pela coroa portuguesa, mas que também contou com as decisões pessoais de indivíduos (militares, religiosos e colonos etc.) que participaram ativamente desse processo,movimentando-se pelo espaçocolonial em busca de riquezas e benefícios pessoais obtidos com a exploração das áreas cultivadas. A ocupação do território, portanto, significou para muitos colonos uma oportunidade de ascensãosocial noperíodo colonial. Assim, é importante, de um lado, tentar compreender a importância das doações de sesmarias para a ocupação do território, e de outro, as ações e estratégias desses indivíduos nesse espaço colonial.

Segundo Maria do Socorro Coelho Cabral, a ocupação do Estado do Maranhão ocorreu através de processos distintos liderados por duas frentes colonizadoras: a litorânea (agricultura) e a pastoril baiana (pecuária). De acordo com essa tese, a primeira frente de ocupação teria expandido através docontrole efetivo da coroa portuguesa. Com o objetivo de consolidar a ocupação do território, fortaleceu as bases administrativas pelas diversas regiões da província.

1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. 2 Após a reconquista do Maranhão, as autoridades portuguesas resolveram distribuir o território em várias capitanias privadas, com o intuito de ocupá-lo e desenvolvê-lo economicamente. Essa divisão abrangeu ascapitanias de: Cumã,“Tapuitapera e Cametá (pertencentes à família Alburquerque Coelho de Carvalho), Caeté (Álvaro de Sousa), Cabo do Norte (Bento Maciel Parente) e Ilha Grande de Joanes (Antônio de Sousa de Macedo)”2.Vale ressaltar que nem todas as capitanias obtiveram êxito, com exceção de Tapuitapera e Cumã que formaram ao longo de mais de um século, vários núcleos populacionais interconectados com a capital São Luís. Assim, Cumã não pode ser compreendida desvinculada de Tapuitapera, já que esta última foi durante quase um século o seu centro, administrando vilas e povoados circunvizinhos, mantinha estreitas relações políticas e econômicas com a capital São Luís.

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Nesse sentido, a coroa coordenou as expedições em busca de riquezas naturais, além de estabelecer como meta principal, a exploração e o povoamento das novas terras conquistadas através da agricultura.

Ainda com a tese de Cabral, a outra frente de ocupação denominada de frente pastoril baiana, teriapartido da Casa da Torre da Bahia, migrando para o Piauí e, alcançando posteriormente o sul do Maranhão por volta de 1730. De acordo com a autora essa frente se expandiu sem contar com a intervenção da Coroa, tendo apenas participação de potentados baianos e piauienses que buscavam paragens para o estabelecimento de suas fazendas de gado3.

Apesar da importância desses estudos, pensamos que a ocupação do norte do Maranhão não foi resultado de decisões de um poder central que conseguiu estabelecer um controle efetivo sobre todas as etapas da conquista. Mas um processo que seguiu em alguns momentos ordens de várias instâncias de poderes, já que “o poder real partilhava o espaço político com poderes de menor hierarquia”4.Por outro lado, a economia não se resumiu apenas a agricultura, mas apesar da sua predominância, contou com uma diversidade de outras atividades econômicas. Assim, como afirma Rafael Chambouleyron, osentido da ocupação, portanto, “não se fazia, portanto, independentemente do espaço e ambiente no qual iam, pouco a pouco, se estabelecendo os portugueses”5.

A ocupação do norte do Maranhão partiu dos centros administrativos de Alcântara (Tapuitapera) e de São Luís (Ilha de Upaon Açu) para o interior do território desde a primeira metade do século XVIII, perdurando até a segunda metade do século XVIII, quando vários moradores oriundos especialmente de Alcântara ainda procuravam terras para o estabelecimento de suas lavouras e gados.

Vale ressaltar que a presença desses colonos se intensificou após a expulsão dos jesuítas, consolidando pelos arredores do rio Pericumã, a fundação de algumas vilas através da organização de núcleos populacionais, que mais tarde, constituíram-se em distritos que compõem a atual Baixada Maranhense.

3CABRAL, Maria do Socorro Coelho. Caminhos do Gado: Conquista e ocupação do sul do Maranhão. São Luís: EDUFMA, 2008. 4 FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. F. (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.p. 166-167. 5 CHAMBOULEYRON, Rafael. Terras e poder na Amazônia colonial (séculos XVII-XVIII). In: CONGRESSO INTERNACIONAL PEQUENA NOBREZA NOS IMPÉRIOS IBÉRICOS DE ANTIGO REGIME, 1., Anais...2011, Lisboa. 2011. Disponível em: http://landsoverseas.files.wordpress.com/2012/01/chambouleyron2011_iict.pdf. Acesso em: 17 de mar. de 2014. p.3.

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Cabe ressaltar que essa região esta localizada “na zona de transição entre a Amazônia e o Nordeste em uma zona de baixa latitude”6, composta de vários lagos e rios como o Turiassu, Pericumã e Maracu, foi uma região de difícil acesso durante o período colonial. Além do mais, devido à posição geográfica essa região pode ser caracterizada como sertão. Pois, segundo assevera Rafael Chambouleyron,

o sertão ganha igualmente outros significados, vinculados ao próprio processo de expansão do domínio português sobre a região. Não sem razão, havia muitos sertões, em geral designados pelos rios que os cortavam, indicando a importância da penetração fluvial pelo interior do território [...] Significativa era, igualmente, a importância que adquiriram outras expressões de sentido fluvial – como os igarapés – para identificar e demarcar o território devassado e ocupado pelos portugueses (por exemplo, no estabelecimento das concessões de sesmarias)7.

Ainda segundo Chambouleyron era "no sertão, e através dos seus rios,

portanto, que os portugueses buscavam drogas e escravos. Alguns produtos, como o cacau, também eram cultivados pelos moradores, mas boa parte dos gêneros era coletada ou negociada no interior da Amazônia”8. Por outro lado, “a coleta das drogas do sertão implicava estabelecer intercâmbios com os grupos indígenas do sertão que auxiliavam os portugueses”. O sertão, ou melhor, os “sertões” são regiões eivadas de sentidos. No entanto, as regiões de sertão podem ser caracterizados através dos conceitos de “Vastidão, distância, oposição ao litoral, acracia, refúgio, violência, conversão”9que permitem entender esse tão dilatado território.

Produzimos uma tabela que demonstra o perfil de alguns colonos que ocupavam a região do Periassú, com base no processo de sesmaria de Ignacio José Pinheiro.Devido alguns limites desta pesquisa, não foi localizar outras cartas de sesmarias que permitissem a compreensão mais precisa dessa região. Por outro lado, “é possível que a população estabelecida ao longo dos rios, cultivando a terra, fosse maior do que podemos inferir pelas concessões e confirmações de terras”10 como afirmou Chambouleyron. Vejamos abaixo:

6FARIAS FILHO, Marcelino Silva. (org). O espaço Geográfico da Baixada Maranhense. São Luis: JK Gráfica editora, 2012. p.15. 7 CHAMBOLEYRON, Rafael; BONIFÁCIO, Monique da Silva; MELO, Vanice Siqueira de. Pelos sertões “estão todas as utilidades”. Trocas e conflitos no sertão amazônico (século XVII). Revista de História. São Paulo, n. 162, p. 13-49, 2010. p.15. 8Ibidem., p. 16. 9Ibidem., p. 18. 10 CHAMBOULEYRON, Rafael. Povoamento, Ocupação e Agricultura na Amazônia Colonial (1640-1706).p. 105.

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Tabela 1- Perfis de alguns colonos ocupantes do Periassú ou Perizesde

São Bento

Nome Estado

Civil Local de

Nascimento Local de Moradia

Economia Idade

Manoel de Arede

Casado Alcantara Alcantara Lavoura 54

Ricardo Barbosa

Casado Sam Luis Alcantara Lavoura 36

Francisco Araujo

Casado Sam Luis Alcantara Lavoura 38

Manuel Oliveira

Casado Santa Maria de

Ancora Alcantara Lavoura 40

Arturio de Sá

Casado Lisboa Alcantara Lavoura 54

Antonio da Costa

Casado Alcantara Alcantara Lavoura 44

Francisco Chagas

Casado Alcantara Alcantara Lavoura 40

Raymundo Arios

Solteiro Alcantara Alcantara Lavoura 36

Jose da Mota

Casado Alcantara Alcantara Lavoura 39

Fonte: Carta de sesmaria de IgnacioPinheiro. Fundo: Secretaria do Governo-APEM. De acordo com a tabela acima,podemos destacar que: I) A maioria dos

colonos era casado (sendo apenas 1 solteiro), II) Todos eram moradores de Alcântara (demonstrando que muitos colonos, apesar de possuírem terras em regiões interioranas, onde exerciam atividades econômicas, continuavam residindo nos centros urbanos), III) Todos eles mencionaram no processo de sesmaria apenas a prática da lavoura (o que assinala uma predominância da agricultura em detrimento da pecuária, todavia não elimina a prática desta última, pois existem ainda que em menor quantidade, documentos que apontam para a prática dessa atividade na região); IV) No que diz respeito ao local de nascimento, constata-se que a maior parte eramde nascidos em Alcântara (correspondendo a 5 indivíduos), sendo apenas 2 de São Luís e 2 de Portugal, estes últimos das cidades de Santa Maria de Ancora e Lisboa, o que demonstra a mobilidade dos colonos. V) No que se refere à idade, percebe-se a prevalência de colonos com idade entre 36 a 54 anos, ou seja, com certa experiência de vida e geralmente com famílias constituídas.

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A ocupação dessa região pode ser explicada através da ação desses sujeitos, os quais em muitos casos se depararam com circunstâncias em que precisaram tomar decisões próprias, mesmo que suas ações representassem em muitos casos a vontade soberana.Até porque nem sempre a coroa conseguia satisfazer todas as necessidades que iam surgindo durante o processo de colonização11. Nesse sentido, asredes de relações e negociações mantidas entre Majestade e seus súditos foram fundamentais, sendo

responsáveis pela sustentação dos vínculos entre a metrópole e a colônia, era regida por regras e princípios marcados pelos valores de uma sociedade estamental, valores esses que regulavam os interesses de ambas as partes, bem como a busca de um consenso12.

Essas relações funcionaram basicamente, de um lado, com a figura do rei

que detinha o poder de conceder honrarias aos seus súditos que participassem daconquista, ocupação e/ou defesa do território, e de outro, com os sujeitos interessados nessas recompensas que procuravam corresponder às expectativas de Sua Majestade. Entretanto, como eram numerosos os requerentes do que as honrarias ofertadastornou-seimprescindível que esses sujeitos se destacassem perante os demais, mostrando-se merecedores desses privilégios. Desse modo os “recursos financeiros representavam, sobretudo, a relação que os requerentes estabeleciam com a administração colonial e com sua majestade na obtenção de nomeações e/ou prestação de serviços com sua própria fazenda”13. Portanto, esses “sesmeiros que possuíam patentes e cargos administrativos buscavam distinguir-se dos demais através dos títulos que possuíam e sesmarias que recebiam em troca dos serviços prestados à administração Colonial”14. Ignacio José Pinheiro e a ocupação do Periassú de São Bento

Na consulta aos registros de sesmarias referentes à capitania de Cumã, o

nome de Ignacio José Pinheiro sempre aparecia com destaque nas ações de ocupação doterritório.Em 1786, em missiva enviada ao governador e capitão-

11 FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. F. (orgs). O Antigo Regime nos trópicos. 2001. 12MELLO, Cristiane Figueiredo Pagano de Mello. A centralização política e os poderes locais ultramarinos: as câmaras municipais e os corpos militares. História Social, Campinas – SP, n.1, 153-172 p., 2005. p. 162. 13 SILVA, Rafael Ricarteda.Formação da Elite Colonial dos Sertões de Mombaça: Terra, Família e Poder (Século XVIII). Fortaleza, CE, 2010. 188 p. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado, Universidade do Ceará, 2010. p.99. 14Ibidem.,p.97.

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general do Maranhão Fernando Pereira Leyte de Foios,declarou ser “morador e Casado nesta Villa de Santo Antonio de Alcantara[e] que vive de suas lavouras nas partes do Periassú”15. Nesse mesmo documento, requereu carta de sesmaria com a justificativa de não possuir terras e porque “anda[va] lavrando em terras alheyas, pellas não ter próprias”16.Além do mais, disse ter condições suficientes para implantar o cultivo nessas terras “por ter bastante escravos com que as fassa”17. Segundo Nelson Nozoe“o apossamento de chãos cultiváveis por colonos constituía uma decorrência direta do fato de o sistema sesmarial privilegiar os homens de qualidade e/ou cabedal”18. Em outras palavras, tornava-se necessário que o solicitante justificasse sua pretensão à posse da terra alegando ter condições para colonizar a gleba recebida.

Enquanto à localização das terras, estavam situadas “na paragem do Piriassu (...) correndo para as partes do Piricomã”19 e mediao tamanho de “trezlegoasdeterra de comprido comhuã de largo”20. A partir desse momento a ocupação passava a ser regulamentada pela a carta de 7 de dezembro de 1696 e pelo alvará de 10 de fevereiro de 174521. Como exposto nesse fragmento:

Ordena Sua Mag.de inf.mar por Carta de 7 de Dez. de 1696, que as dattas de terras de Sesmarias, se concedão (...)detreslegoasdeCompridoehuma de largo, eque se cultivem e povoem dentro do termo dadas, que pello Alvará da mesma Senhora de 10 de Fever.o de 1745, São sincoannos, Com pena de que as não povoando no

15 REQUERIMENTO do Padre Jose Ayres de Santiago ao governador e capitão-general Fernando Pereira Leyte de Foios. São Luís, 08 de junho de 1784. Caixa: 0008, Maço: 00048. Fundo: Secretaria do Governo –APEM. 16 Ibidem. 17 Ibidem. 18 NOZOE, Nelson. Sesmaria e Apossamento de Terras no Brasil Colônia. Revista Economia. Brasília, DF, v.7, n.3, p. 597- 605, set/dez 2006.p. 596. 19REQUERIMENTO de Ignacio José Pinheiro ao governador e capitão-general Fernando Pereira Leyte de Foios. São Luís, 02 de maio de 1786. Caixa: 0006, Maço: 33. Fundo: Secretaria do Governo-APEM. 20Ibidem. 21 A carta de 7 de dezembro de 1696, determinava o tamanho das sesmarias que não deveriam ultrapassar três legoas de comprido com uma de largo. Já o Alvará definia o prazo de aproveitamento do território, sendo no máximo de cinco anos. Desse modo, para que os sesmeiros conservassem suas terras, os mesmos deveriam cumprir esses regulamentos, podendo ser penalizados com a perda de suas terras que retornavam a Coroa.

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ditto tempo Se haverem as ditas terras por devolutas para se poderem dar aquem as povoem22.

No processo de sesmaria de Ignacio José Pinheiro foram convocados pela

Câmara nove indivíduos23“para efeito de se perguntarem Einquerirem Testemunhas na forma que manda a carta de Deligencia de terras”24. Antes de serem inquiridas, as testemunhas faziam “o Juramento dos Santos Evangelhos” prometendo dizer à verdade as autoridades. Primeiramente, perguntava-se sobre os “Nomes os Cognomes Naturalidades, Idades, Estados, Ditos e Custumes”25das testemunhas. Em seguida, interrogavam-se informações sobre requerente e se o mesmo ocultava possuir terras. Os depoimentos estão organizados conforme a tabela nº 2 abaixo:

Tabela 2- Carta de diligência de terras de Ignacio Pinheiro

Manoel Gomes de Arede

[...] é lavrador e que tem bastantes Escravos ele é morador nesta Villa. Em quanto dise que lavra em terras alheyas por não ter próprias diseelle testemunha que teve noticia que lhe coubera meyalegoa de terra por herança de seu Sogro Ignacio Xavier Correa. [...] que as terras que o Suplicante pede, e com as Comfrontações que declara lhe não consta que outro algum as tenha pedido [...] naquellarefferida paragem há bastante terra devolluta (grifo meu).

Ricardo Barbosa

[...] É morador e casado nesta Villa. E que tem bastantes Escravos com os quais usa de suas lavoiras as quais faz em terras alheaspellas não ter próprias. [...] na paragem em que pede o suplicante as mencionadas terras há bastantes devolutas por lhe não constar terem se aly pedido (grifo meu).

22REQUERIMENTO de Ignacio José Pinheiro à rainha D. Maria I. 20/10/1788. AHU_ACL_CU_099, Caixa: 72, doc. 6253. 23 Segundo Vanda da Silva (2008, p.36), “Quanto à administração das terras coloniais, as câmaras tinham um papel fiscalizador imposto pela vasta legislação sesmarial publicada ao longo de todo o período colonial. Eram incumbidas da averiguação dos requerimentos de sesmaria (eram requisitados na secretaria do governo), de receber e posicionar-se sobre as reclamações ocorridas em relação a algum requerimento de sesmaria. Era também de sua competência indicar nomes para o cargo de juiz de demarcação de sesmaria”, dentre outras funções. 24REQUERIMENTO de Ignacio José Pinheiro ao governador e capitão-general Fernando Pereira Leyte de Foios. São Luís, 02 de maio de 1786. Caixa: 0006, Maço: 33. Fundo: Secretaria do Governo-APEM. 25Ibidem.

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Francisco Barbosa de Araujo

[...] É morador e casado nesta Villa e que tem bastantes Escravos com que usa de suas lavoira nas terras de sua sogra dise mais que sabe que o Suplicante tem uma porsão de terra que lhe coube em partilha por falecimento de seu sogro Ignacio Xavier Correa. [...] na paragem onde o Suplicante pede sabe há terra devoluta por lhe não constar se tenha pedido (grifo meu).

Manoel Rodrigues Oliveira

[...] É morador e Casado nesta Villa e que tem Escravos com quem fabrica suas lavoiras. Em terras alheyas e que não sabe que as samproprias. [...] na paragem onde [...] pede esta porsam de terra ha bastante devoluta das quais lhe não consta as tenhao pedido (grifo meu).

Arturio José de Sá

[...] É morador e casado nesta Villa e que tem bastantes Escravos com quem fabrica suas lavoyras Em terras alheyaspellas não ter proprias suas. [...] as terras pedidas [...] se acham devolutas pois lhe não consta setençam comcedido a outrem (grifo meu).

Antonio Pinheiro da Costa

[...] É morador e casado nesta Villa e que tem Escravos com quem fabrica suas lavouras, e que estas não consta [...] que as tenha próprias. [...] na paragem onde [...] pede a terra sabe [...] Estarem devollutas por lhe dizer o mesmo Ignacio José Pinheiro, e que lhe não consta que estejam pedidas por outrem (grifo meu).

Francisco das Chagas

[...] É morador e casado nesta Villa e que vive de suas lavoiras e que tem famíllia e Escravos com que as fabrica. Em terras de Sua sogra pellas não ter próprias. [...] na paragem mencionada em que pede [...] não sabe se ha terras devoluta por elle testemunha morar da dita paragem distante (grifo meu).

Raymundo José Arios

[...] É morador e casado nesta Villa e que tem bastantes Escravos que digo Escravos com os quais fabrica suas lavoiras porem que não sabe se sam suas ou não as terras em que lavra. [...] não sabia de serto se na referida paragem Em que pede [...] há terra devolutas so sim por ouvir dizer que estão devolutas (grifo meu).

Jose Pacheco da Mota

[...] É morador e casado nesta Villa e que tem Escravos com quem fabrica suas lavoiras porem não sabe [...] se lavra em terras próprias ou alheias. [...] parese não o haver na paragem que [...] pede terras devollutas por lhe constar terem se ali vizinhos pedido as quais quando se ouvirem de demarcar viram a ficar compreendidas as que pede o suplicante (grifo meu).

Analisando a tabela acima, percebermos que existe um interesse das

autoridades da Câmara em saber duas questões principais: 1) se as terras que ele pede eram devolutas. 2) se ele já possuía terras. Na primeira, apenas uma testemunha – José Pacheco da Mota – afirma ter conhecimento de que as terras que ele pede não eram devolutas, pois segundo ele vizinhos teriam pedido. Todavia todas as outras testemunhas alegam que as terras solicitadas eram devolutas, pois não tinham conhecimento se haviam sido ocupadas.

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Na segunda, é evidente a contraposição dos testemunhos, uma vez que revelam afirmações distintas. Primeiro, que possuía terras adquiridas por herança com o falecimento de seu sogro – isso fica claro nos testemunhos de Manoel de Gomes Arede e Francisco Barbosa de Araujo. Segundo, que lavrava em terras alheyas e que não tinha próprias, afirmação encontrada nos testemunhos de Francisco das Chagas, Arturio José de Sá, Ricardo Barbosa e Antonio Pinheiro Costa. Já as outras duas testemunhas alegam não ter conhecimento sobre o assunto.

No termo de Juramento do processo de sesmaria após ser interrogado pelo Ouvidor Geral Manoel Antônio Leitão Bandeira – responsável pelas averiguações e legalidades da concessão – Ignácio Pinheiro afirmou com segurança ser “Esta hea primeira datta que pedia, e pertendia Selhe concedeu por datta e Sesmarias e que não possuía outra”26.

Outro documento datado de 1784 faz referência das prováveis terras que Ignacio Pinheiro já vinha ocupando. Trata de um requerimento de sesmaria do padre Jorge Aires de Santiago enviado ao Governador do Estado do Maranhão, a missiva diz o seguinte:

Diz o Padre Jorge Aires de Santiago morador na Villa de Alcantara, que ele, e seus Irmãos tendo bastante escravatura não tem terras próprias em que lavrem; motivo porque recorre a (...) V. Excelencia para que Se digne Conceder-lhe em nome de Sua Magestade nas testadas de Arturio José de Sáhua légua de terra de frente, ou o que na verdade se achar entre as testadas de Antonio Fellipe Curvello de Mattos e as de Ignacio José Pinhreiro, e três defundo Correndo p.ª o Centro Comforme O Alvará27

Assim, ocupando as terras herdadas de seu sogro, requeria carta de

sesmaria a fim de legalizá-las, mas é possível que pretendesse aumentá-las, uma vez que pedia três léguas, já que o tamanho de sua primeira gleba era apenas meia légua como vimos. O próprio documento de 1786 nos permite afirmar com segurança que ele possuía terras antes desse pedido de sesmaria. Assim, “com frequência se ocupavam terras sem titulação para, em seguida, formularem pedidos de sesmarias ou legalização da posse, que antecipava à propriedade, com o uso parcial do terreno”28destaca Neves Fagundes.

26Ibidem. 27 REQUERIMENTO do Padre Jose Ayres de Santiago ao governador e capitão-general Fernando Pereira Leyte de Foios. São Luís, 08 de junho de 1784. Caixa: 0008, Maço: 00048. Fundo: Secretaria do Governo –APEM. 28NEVES, Erivaldo Fagundes. Sesmarias em Portugal e no Brasil.Vitória da Conquista. POLITEIA: Hist. e Soc., Feira de Santana, BA, v.1, n.1, p. 111-139, 2001. p.131.

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Ainda em 1784, o próprio Ignacio Pinheiro é interrogado como testemunha da Carta de diligencia do processo de sesmaria do padre Ayres de Santiago a fim de fornecer às informações do interesse das autoridades. Nessa ocasião,

Dise que sabe que o Reverendo Padre Jorge Ayres de Santiago e Seus Irmãos Sam moradores nesta Villa de Santo Antonio de Alcantara. Dise mais que sabe que os Suplicantes tem Escravos com quem usa de Suas lavouras porem que não sabe Se muitos ou pocos os ditos Escravos. Dise mais elle Testemunha que tem a notisia que o Reverendo Padre Jorge Ayres de Santiago tem huma porção de Terra Em que lavra porem que não sabe Se São muytas ou pocas as ditas terras e que nem sabe de que modo as ouve29

As alegações feitas tanto por Ignacio Pinheiro como pelo padre Ayres de

Santiago de “não possuir terras próprias em que lavrem” pode se tratar de uma estratégia utilizada por esses sujeitos nos discursos de obtenção de sesmarias para adquirem à aprovação das autoridades da época. Tanto no caso particular deIgnacio Pinheiro como do padre Jorge Ayres de Santiago, percebe-sea importância da legalização de suas terras que de fato só acontecia com o recebimento da carta de sesmaria outorgada pela câmara.

Apesar de poder estar ocupando as terras antes mesmo de 1784, Pinheiro só requereu carta de confirmação de sua sesmaria somente em 1788. E sua solicitaçãofoi atendida no ano seguinte pela rainha de Portugal D. Maria I.Como mostra missiva expedida ao governador Fernando Pereira Leyte de Foyoz que declarou:

Faço saber aos q esta mª Carta de Confirmaçam virem q por parte de Ignacio José Pinheiro Negociante Lavrador assistente na Capitania do Maranham me foi apresentada [...] mandada [...] por Fernando Perª Leite de Foios Governador Capitam General da Capitania30.

O documento de confirmação de sesmaria significou parao ocupante da

gleba o direito sobre a terra que deixava de ser posse e se tornava propriedade.Já para as autoridades representou a disciplina e a intervenção da coroa no empreendimento da colonização.

29REQUERIMENTO do Padre Jose Ayres de Santiago ao governador e capitão-general Fernando Pereira Leyte de Foios. São Luís, 08 de junho de 1784. Caixa: 0008, Maço: 00048. Fundo: Secretaria do Governo –APEM. 30CARTA de confirmação de sesmaria do Governador e Capitão General do Maranhão Fernando Pereira Leite de Foios ao negociante e lavrador Ignacio José Pinheiro. 28/02/1789. PT_TT_RGM/E/100043, Liv. 24, f. 288.

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Nesse sentido, a distribuição de sesmarias representava os interesses ligados a expansão econômica do território. De forma que a política de doação de sesmarias visava incentivar o aproveitamento econômico da terra, arrecadando ao mesmo tempo, a poupança do Estado “pensão e nem tributo algum mais que o Dizimo a Deus dos frutos que nella tiver e lavrar”31. Havia ainda a importância que se dava ao povoamento e a “urbanização” como forma de disciplinar a ocupação do território. O que fica evidente nesse fragmento de carta de sesmaria:

se nas ditas terras quiser Mandar fundar alguma vila, reservando os paus Reais que nelas houver para embarcações [...] e dará caminhos públicos e particulares onde forem necessários para Pontes, Fontes, Portos e Pedreiras e havendo nas sobreditas terras Estrada publica que atravesse Rio caudeloso que Necessite de Barca para sua passagem, não só ficará de ambas as margens do mesmo Rio a terra que baste para o uso público, mas tao bem de huma delas meya légua de terra com quadra para a comodidade publica e de quem arrendar a dita passagem32

As alterações no espaço foram ocorrendo à medida que os portugueses

foram fundando vilas e constituindo os “caminhos públicos e particulares” à população através da construção de pontes, fontes, portos, pedreiras e com a abertura de estradas que permitissem a acessibilidade a outros lugares da capitania, principalmente ao litoral.

O processo de ocupação do Periassú de São Bento, portanto, contou a ação da coroa portuguesa que visava disciplinar a ocupação através do mecanismo de sesmarias, impondo condições ao colono que ficava com o encargo de cumpri-las. Por outro lado, percebemos a ação desses indivíduos que buscavam a legitimação e o reconhecimento de suas terras, com o intuito de garantir a defesa de suas ocupações frente aos litígios existentes. A fertilidade dessas terras é quase evidente, dada à presença dos extensos campos úmidos da Baixada, sinal de solo rico e propício às atividades agrícolas e pecuaristas, o que deve ter feito crescer o interesse desses proprietários por essas paragens. A análise sobre a participação de Ignácio José Pinheiro no empreendimento de ocupação do Periassú, portanto, permite compreender as dinâmicas desse processo que pode ser explicada, de um lado, por parte da ação efetiva da coroa e, de outro, através das ações e estratégias desses sujeitos nesse espaço colonial.

31REQUERIMENTO de Ignacio José Pinheiro à rainha D. Maria I. 20/10/1788. AHU_ACL_CU_099, Caixa: 72, doc. 6253. 32Ibidem.

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AS TRAJETÓRIAS MAZAGANISTAS

Yure Lee Almeida Martins1 Resumo O presente artigo pretende fazer uma discussão sobre as trajetórias de vida exemplares de famílias oriundas de Mazagão na África Portuguesa em 1770. Brevemente abordarei a questão dos indivíduos e famílias que não vieram ao Pará. Mas principalmente trajetórias distintas de famílias de grupos sociais também distintos.

A direção dos que migram não é voluntária, nem totalmente pacífica Nas sociedades modernas o Estado é o grande criador de categorias de

codificação social, levando em consideração fatores econômicos e sociais e tendendo a privilegiar certos tipos de organização familiar 2. Durante a segunda metade do século XVIII o termo família era entendido como um local de convívio, sinônimo de fogos, termo comumente utilizado em documentos oficiais da administração portuguesa. Estudos em antigos dicionários revelam que no antigo regime os termos “família”, “fogos” e “domicílio” eram praticamente sinônimos 3.

Dentre os indivíduos e famílias que foram listados para embarcar ao Pará, foram ao menos nove os casos de pessoas que “ficaram doentes” no hospital do arsenal de Lisboa as vésperas de embarcar. O cirurgião José Moraes (54 anos) e sua esposa Felícia Caetana (46 anos) ficaram cuidando destes doentes. Outros dois casos são de escravos que ficaram para ser embarcados em outra oportunidade por estarem fugidos e ainda havia dois degredos para Mazagão

1 Professor Mestrando. Aluno do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará. 2 BOURDIEU, Pierre. Razões praticas sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Correa – 11ª Ed. Campinas, SP. Papirus 2011. P.134. 3 FREITAS, José Luiz de. Família e domicilio uma proposta de conceituação e categorização. SPEFPPB (Seminário Permanente de Estudos da Família). São Paulo: IPE-USP/ANPUH, 1991, V. 11, nº 22. PP 15-19. E FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Lisboa: Estampa, 1995.

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que ficaram esperando a decisão de um novo lugar para o cumprimento de suas penas 4.

A metodologia empregada neste artigo será a prosopografia. Uma tentativa de construir e analisar as biografias de indivíduos e família para buscar entender a complexidade do grupo como um todo dentro de suas singularidades e semelhanças. De modo geral, os trabalhos sobre prosopografia só começam a aparecer a partir da segunda metade da década de 1960, após a aposentadoria de Labrouse, e principalmente focados em elites. Muitos historiadores embalados pela rediscussão do termo “classe” a partir das luzes reinterpretativas da revolução francesa se inseriram nessa discussão.

Dentro deste debate o termo “elite” também passa a ser revisto, não mais sobre um prisma puramente marxista. Nesse sentido a técnica da prosopografia foi sendo gradativamente desenvolvida para a aplicação em estudos sobre as elites e mais tarde também outros grupos sociais. Estudar as prosopografia de elites passou a ser entendido como o estudo de um instrumento muito útil para se conhecer os mecanismos do poder. E a questão de como se limitar estes grupos fora posta com alguma frequência como um grande problema metodológico5.

A prosopografia ganha eco como pratica historiográfica a partir de algumas publicações dos Annales durante a década de 1970. Ela passa a ter uma grande utilização em trabalhos sobre a história de Roma “uma ciência auxiliar da epigrafia e da história antiga que estuda a filiação e a carreira de grandes personagens”. Nesse sentido as problematizações metodológicas acabaram por impor que trabalhos de orientação prosopográfica incluíssem, ao pelo menos preferencialmente, verbetes ou notas biográficas com intuito de restituir um pouco da vida, da carne, da cor e da originalidade de cada um dos indivíduos do grupo estudado em questão6.

4 Curiosamente um terceiro homem ficou prezo na cadeia do Bairro de Belém do Tejo por ter "tratado" com uma mazaganista casada que se queixou ao marido e as autoridades. AHU_ACL_CU_013, Cx. 66, D. 5673. 5 CHARLE, Christophe. Como anda a história social das elites e da burguesia? Tentativa de balanço crítico da historiografia contemporânea. In: Heinz, Flávio. (org.). Por outra história das elites. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: 2006. PP. 22-30. 6 LALOUETTE, Jacqueline. Do exemplo á série: história da prosopografia. In: Heinz, Flávio. (org.). Por outra história das elites. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: 2006. PP 63-69.

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Quanto ao Brasil, mais recentemente, trabalhos como os de Russell-Wood e Francisco Bethencourt tem indicado a necessidade de se conhecer a carreira dos administradores para melhor entender o funcionamento do Império. Russell-Wood afirma que o império português analisado unicamente sob o viés institucional pareceria centralizado, mas que as praticas humanas existentes inviabilizavam toda esta centralização e rigidez, demonstrando muita flexibilidade estatal e autonomia dos colonos nas interpretações jurídicas. Nas palavras da autora Russell-Wood apresenta um plano horizontal e um vertical das redes de governança do império português. Na primeira verifica-se as relações dos agentes com os governantes e na vertical, as flexibilidade do Estado, criaria um canal direto entre os colonos e Lisboa, o centro do poder7.

Teodora Joaquina Rosa e Antonio Maria, órfãos de Mazagão, foram deixados com o Conde da Cunha por uma mulher chamada Teresa Maria. A mesma Teresa Maria conseguiu não embarcar para Belém e ficou em Lisboa na companhia de seu pai, um criado do Conde da Cunha 8.

Estes últimos casos são salutares por demonstrarem que através de relações de parentesco e outras formas de sociabilidade, mesmo pessoas mais humildes puderam evitar aquilo que para alguns mazaganistas era um degredo. Havia seis famílias em casas de parentes ou amigos e outras 177 que não se tem indicação alguma. É muito provável que dentre estes para os quais a fonte traz o silêncio, também tenham existido pessoas que aproveitando suas relações familiares puderam fugir de sua sentença. Ainda assim para a grande maioria não foi possível contrariar a decisão da Coroa. chegaram ao Pará aproximadamente 1642 indivíduos divididos em 388 famílias de novos colonos. Saíram de Lisboa em direção ao Vale Amazônico no dia 15 de setembro de 1769 9. Ficaram no Reino aproximadamente 450 pessoas.

Como podemos observar através das listas de embarque. Mais de uma vez os mazaganistas foram separados de acordo com uma estrutura militar. Um pouco menos rigorosa do que no caso da lista de pagamentos. No entanto mais rígida em evidenciar aqueles que iriam servir exclusivamente a coroa como militares.

Segundo Nadalin, referindo-se a recenseamentos, mas em uma análise que podemos adotar com ressalvas ao caso das listagens de Mazagão. A preocupação do Marques de Pombal em cobrar das autoridades as listagens

7 SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra. Política e administração na América Portuguesa do século XVIII. PP. 44-46 8 Idem. 9 Vidal, Laurent. Op. Cit. PP 51-87.

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que dessem conta da população, principalmente das colônias, estava ligada a preocupações militares potencializadas a partir de um momento especialmente crítico em meio às tensões fronteiriças da América entre Portugal e Espanha durante a segunda metade do século XVIII 10.

Neste sentido podemos aferir acerca do entendimento que havia sobre a forma de governar durante o século XVIII, que passa a ser arte de administrar, gerir pessoas, coisas, fatos excepcionais (catástrofes climáticas e epidemias, por exemplo) e as relações entre as pessoas (relações pessoais, econômicas, culturais e comportamentais) 11. Dessa forma podemos entender que as listas populacionais, ou listas nominativas, tinham as mais diversas funções durante a segunda metade do setecentos. Primeiramente, a necessidade de se ter um controle da população masculina disponível para o recrutamento e para servir a coroa de armas nas mãos ou mesmo cargos da administração pública.

O controle populacional por parte do Estado também era de fundamental importância, pois, a partir dos levantamentos populacionais, o poder central, fortalecido pelas reformas pombalinas, exercia um controle cada vez maior sobre a população 12.

Por outro lado o desenvolvimento da arte de governar propiciou a aplicação da estatística, que já era utilizada para resolução de questões relativas á soberania, como instrumento de conhecimento do Estado naquilo que hoje chamamos de ramos da economia, econômico. Isso também permitiu ao Estado o conhecimento mais profundo de problemas específicos da população. A estatística dará aos Estados conhecimentos sobre fatos relativos á natalidade, mortalidade, nupcialidade que tem relação direta com a economia. E a família passará a não mais ter um papel como modelo para a arte de governar e sim como unidade de medida, no interior da população. Ou seja, é fundamental conhecer as configurações estatísticas da família, enquanto um segmento privilegiado, para um bom conhecimento populacional.13.

10 NADALIN, Sérgio. História e demografia. Elementos para um diálogo - Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais – ABEP, 2004. 248p. (Coleção Demographicas, v.1). 11 FOUCAULT, M. Governamentabilidade. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 24ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Graal. P. 166. 12 NADALIN, Sérgio Odilon. “Demografia numa perspectiva histórica”. ABEP, São Paulo, 1994. p. 35. 13 FOUCAULT, M. op. Cit. P. 169

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Jacques Revel identifica o surgimento de dois ramos de estatística adotadas pelos monarcas europeus. Um de tradição alemã, descritivo que buscava abranger todos os aspectos da região estudada (solo, clima, vegetação, águas, tamanho da população, suas atividades e comportamento). O outro de tradição inglesa – Political arithmetick – muito preocupado em criar dados numéricos para longas series temporais que pudessem ser comparadas posteriormente. Segundo o próprio Pombal ele era influenciado pela aritmética política de William Petty devido a tê-la conhecido durante o tempo que passou diplomata em Londres. O termo “aritmética política” acabou sendo vulgarizado entre os círculos intelectuais e burocráticos portugueses do fim do século XVIII, especialmente para dados econômicos e demográficos 14.

Retomando a questão dos migrantes de Mazagão, entre fins de 1768 e o final de 1770 uma intensa troca de informações e, na medida do possível, um cuidadoso planejamento por parte dos representantes da administração portuguesa na África, em Lisboa e no Pará dá inicio a movimentação de uma população que as vésperas da Independência do Brasil ainda estaria mantendo mobilidade sem uma certeza sobre seu futuro. Isso teria possibilitado o sucesso da migração dos mazaganistas, ainda que não tenha havido um sucesso da Vila Nova de Mazagão. Praticamente todas as pessoas listadas para servir como colonos no Pará foram embarcados para este destino. E iriam se integrar a outra estrutura que esteve paralelamente sendo preparada no Pará, enquanto seu transporte era executado.

A família Valente do Couto

Em meio aos preparativos planejados para a recepção dos mazaganistas no

Pará, as autoridades locais foram muito além das ordens recebidas para construir a Vila de Mazagão. Partindo desta lógica pode-se observar também, como alguns indivíduos mesmo ainda ausentes se inseriram na lógica de funcionamento dos poderes locais. Alguns mazaganistas, como é o caso de Mateus Valente do Couto buscavam por cartas, enviadas muito antes de sua saída de Lisboa, garantir seus lugares dentre os representantes coloniais no Pará. Fazendo de sua influencia na coroa, muitas vezes como fidalgos e cavaleiros fidalgos, uma quase certeza de garantir novas e importantes posições no Estado do Grão-Pará e Maranhão.

14 SANTOS., Antonio Cesar de Almeida. Aritmética política e a administração do estado português na segunda metade do século XVIII. PP. 144-147

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Assim Manuel Gonçalves Mininéa recém chegado a Lisboa em 1769 garante o seu posto de capitão de Infantaria da Guarnição de Macapá 15. Um pouco antes de Mateus Valente do Couto, que em setembro do mesmo ano foi promovido ao posto de Mestre de Campo dos Auxiliares da Vila de Nova Mazagão 16. Utilizando-se da mesma estratégia que Manuel Gonçalves Mininéa, Valente do Couto obteve sua mercê, com um detalhe curioso, nem a Vila existia e nem um único praça mazaganista iria para a ela até o inicio do ano de 1771. Mesmo assim quando a Coroa o tornou Mestre de Campo sem que ele sequer tivesse pisado no continente e não mais que alguns pregos houvessem sido empregados no construção da nova vila.

Ainda para exemplificar essa estratégia utilizada por Valente do Couto e Gonçalves Mininéa, rapidamente João Fróes de Brito, Bartolomeu de Macedo, Manuel da Fonseca e Pinho, e Francisco de Azevedo Coutinho obtiveram mercês e se tornam capitães dos Auxiliares no Pará 17. Duas semanas depois de Gonçalves Mininéa enviar a primeira carta solicitando posto no Pará, Jerónimo Pereira da Nóbrega teve sua patente também expedida para um cargo18. Para além dos interesses individuais destes mazaganistas devemos entender que também era uma necessidade da coroa portuguesa garantir que a nova Vila tivesse suas autoridades instituídas por Lisboa.

O fato de Valente do Couto como outros mazaganistas garantirem postos de alguma importância no Pará lhes dava uma vantagem sobre outros indivíduos e famílias que não tinha este nível direto de relação com as autoridades portuguesas. No entanto isso não significava que o sucesso deste grupo como colonos no Pará fosse algo certo. Mas é certo que esta pratica visava sem dúvidas reforçar o caráter de reino, de nobreza guerreira, que detinham os defensores da Mazagão Marroquina.

Mateus Valente do Couto tinha 76 anos quando em 1768 a Fortaleza de Mazagão recebeu ordem final para ser abandonada. Nesta altura ele vivia em uma casa apenas com sua mulher Catarina Rosa de 70 anos e sua filha Joana Gonçalves de 36. Ele era sargento mor da infantaria da praça19.

Quando da partida para Lisboa um ano depois a família era composta pelo casal Mateus e Catarina, pelos filhos João Valente do Couto (padre frei de 43 anos), Luis Valente do Couto (cabo de esquadra de 36 anos) e pelos escravas

15 AHU_ACL_CU_013, Cx. 54, D. 4910. 16 AHU_ACL_CU_013, Cx. 64, D. 5560. 17 AHU_ACL_CU_013, Cx. 64, D. 5561. 18 AHU_ACL_CU_013, Cx. 64, D. 5568. 19 AHU. Cod. 1784.

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mouras Ana da Conceição e Maria Rosa20. A família de Valente do Couto chegou ao Pará em 1770 no Navio Santana Nossa Senhora da Glória 21apresentando a mesma configuração que tinha ao sair de Mazagão em 1769.

Mateus Valente do Couto enviou carta ao Conselho Ultramarino logo após chegar em Belém e informou ter chegado em segurança após 55 dias de viagem, e disse possuir boa saúde e também em sua família todos se encontravam bem, apenas sua mulher tivera uma inflamação na perna e teve a saúde logo restituída. E afirmava estar feliz por conta dos préstimos que a “nobreza da terra” lhe tem dado assim como o Governador. Por fim indicava o nome de seu filho, António Dinis de Couto Valente, para o lugar de sargento-mor do Terço da vila Nova de Mazagão, apesar de pai e de não esquecer de seus deveres indica o filho por este ter merecimento22.

Pouco tempo depois o padre frei João Valente do Couto (43 anos), filho de Mateus Valente do Couto, foi nomeado para assumir a função de sacerdote da população de Mazagão23 e almejava a assumir a Vigária da freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Nova Mazagão. Esta segunda nomeação não ocorreu sem conflito, uma vez que outros sacerdotes almejavam a mesma vaga como o padre frei Diogo Dias da Costa (69 anos) e os padres Francisco Afonso da Costa (59 anos) e Braz João Romeiro (70 anos). E foi justamente o clérigo mais jovem que viria a assumir a vaga de Vigário 24.

Com isso ficou bem clara a influencia e o poder que a rede de relações que o padre frei João Valente do Couto e sua família tinham. Como prova o fato de este padre ter recorrido ao ex-inquisidor e vigário capitular do bispado do Pará, Geraldo José de Abranches, alguns meses depois para solicitar a confirmação da vigaria de Nova Mazagão. Na mesma correspondência ainda solicita a Igreja de Santo Alexandre, solicitação essa que foi atendida, para servir de paróquia aos mazaganistas ainda residentes em Belém. Para que com estas providencias os sacramentos fossem descentemente dados a este povo. Justificava seu o pedido pelo fato deste religioso também atender ao povo das duas freguesias de Belém uma vez que os párocos dessa cidade viviam muito espalhados 25.

20 AHU_ACL_CU_013, Cx. 82, D. 6720 21 APEP. Cod. 207. 22 AHU_ACL_CU_013, Cx. 65, D. 5583. 23 APEP Códice 208. Listas das Famílias de Mazagão. Livro II. 24 AHU_ACL_CU_013, Cx. 64, D. 5562. 25 AHU_ACL_CU_013, Cx. 65, D. 5593.

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A cidade de Belém na qual os mazaganistas foram recebidos é a cidade que executou a expulsão de várias ordens religiosas e não possui muitos religiosos para atender uma já considerável população. Em Belém, a população do que hoje podemos chamar de “embrião da cidade” era de 10299 pessoas, incluídos brancos, indígenas, mestiços e africanos. Isso quando somado o número dos moradores das duas freguesias que compunham a cidade, a Sé e Campina. Ou seja, a chegada dos mazaganistas em Belém causou um aumento demográfico abrupto na população da cidade de aproximadamente 15% 26.

No caso do outro filho de Mateus Valente do Couto, Antonio Dinis do Couto, ao menos aparentemente sua mercê foi conseguida sem a concorrência de outros mazaganistas. Antonio Dinis do Couto Valente ou Antonio Dinis do Couto saiu da Mazagão marroquina em 1768 ao 40 anos com sua esposa Dona Margarida Josefa de 41 anos e sua filha Maria da Pena de França de 19 anos. Antonio Dinis era alferes de infantaria por patente real. E diferente de seus pais que vieram no Navio Santana Nossa Senhora da Glória ele chegou em Belém no Navio Nossa Senhora da Purificação27. Portanto Antonio Dinis chefiava um segundo núcleo da família Valente do Couto.

Não pudemos precisar ao certo quando Mateus Valente do Couto passou com sua família para Nova Mazagão nem como se deu seu estabelecimento inicial na nova Mazagão. O fato é que em 1778 encontramos D. Catharina Xavier da Roza, viúva, como chefe de família. Possuía ela apenas um escravo do sexo masculino, não as escravas que trouxera, e o recenseador a considerou de “pouca possibilidade e de nenhuma applicação”28. Ou seja uma viúva de 80 anos com apenas um escravo não tinha muita possibilidade de inserção nas atividades econômicas locais.

Um olhar direto sobre o recenseamento me faria ver uma mulher totalmente desamparada. No entanto, por conhecer o nomes dos indivíduos dessa população e em especial os membros da família de Cataria Rosa. Pude perceber que o filho dela o padre João Valente do Couto, que se tornou vigaria de Nova Mazagão devido as boas relações de sua família, foi identificado como de “medianas possibilidades” pelo recenseador29. E muito provavelmente deveria amparar sua mãe viúva.

Entre 1770 e 1778 Antonio Dinis do Couto iniciou sua carreira no Pará já como sargento-mor do Terço da vila Nova de Mazagão e passou importantes

26 “Mapa de todos os habitantes e fogos do Pará e Rio Negro em 1772” AHU_ACL_CU_013, Cx.72, D. 6100. 27 APEP. Cod. 207. 28 AHU_ACL_CU_013, Cx. 94, D. 7509 29 AHU_ACL_CU_013, Cx. 94, D. 7509

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postos na hierarquia soldadesca local. Foi inspetor da fortificação de Macapá, alferes de infantaria e ajudante de ordens do capitão da infantaria30. No ano de 1778 Dona Margarida Josefa residia nas proximidades de Nova Mazagão, provavelmente em Macapá, segundo Gama Lobo da Almada, e se encontrava viúva. Ainda por informações de Almada pude verificar que a família de Dinis do Couto quando se instalou na região recebeu casa, as ferramentas que se deviam dar aos colonos e socorro de farinha e Almada ainda sugeriu que as autoridades tratassem melhor esta viúva que vivia com seu filho Mateus Valente do Couto (Neto) e cinco escravos que lhe sustentavam a casa através da lavoura31. Este socorro de farinha era um auxilio que a Coroa portuguesa prometeu aos colonos mazaganistas e lhes era dado por um ano, período de instalação das famílias no entender das autoridades.

Por conta do testamento da viúva deste neto de Mateus Valente do Couto, também chamado Mateus Valente do Couto, em nome de Dona Julia da Fonseca Zuzarte do ano de 1815. Vimos que assim como o pai e o avô, Mateus Valente do Couto (Neto) ocupou um posto na carreira de armas, capitão. E que anos mais tarde mudou para Belém onde faleceu poucos anos antes de sua esposa deixando muitos bens para os filhos que tinham nomes muito parecidos com os de seus bisavós e avós. Mateus (Neto) e Julia Zuzarte tiveram como filhos Lucas Valente do Couto, D. Maria Valente (que foi casada com o capitão Pedro Silva da Cunha) que lhe deixou os netos D. Julia, D. Sebastiana, Antonio Francisco e D. Mariana Graces Palha de Almeida (que foi casada com Manoel de Azevedo, falecido) que lhe deixou o bisneto Mateus32. A família de Lourenço Rodrigues, um ferreiro

Lourenço Rodrigues era o cabeça de família da primeira família a ser

embarcada de Belém em canoas para construir e colonizar a Vila Nova de Mazagão em 1770. Sua história começa muito antes, mas só me foi possível acompanhá-la a partir de 1768. Lourenço deixou o Marrocos aos 50 anos. Ele artilheiro da Fortaleza de Mazagão. Neste primeiro momento seu fogo era

30 AHU. Códice 1257. “Relação dos mazaganistas estabelecidos na Vila Nova de Mazagão, e suas vizinhas, por Manoel Gama Lobo da Almada”. 31 AHU. Códice 1257. 32 Centro de Memória da Amazônia. Fundo: Tribunal de Justiça. Testamento de Dona Julia da Fonseca Zuzarte, 28 de novembro de 1815. 11ª Vara Cível da Comarca da Capital/Cartório Fabiliano Lobato

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composto por ele, sua esposa Eugenia Maria, 45 anos, e Mariana da Piedade filha do casal, 21 anos33.

Em apenas um ano (1769), o destino comum dos mazaganistas lhe pregou uma peça, sua esposa Eugenia falece. E também por ação deste destino ele se casa em Lisboa com outra mulher de Mazagão, Maria José de 30 anos. O novo fogo de Lourenço Rodrigues passa a ter a seguinte configuração:

Lourenço Rodrigues masculino cabeça de familia 50

Maria Jose feminino mulher do cabeça de família 30

Joao Rodrigues masculino filho 27

Antonio Rodrigues masculino filho 9

Sebastiao Rodrigues masculino filho 10

Maria do Nascimento feminino filha 8

Caterina Maria feminino filha 5

A filha de Lourenço, Mariana da Piedade, simplesmente desapareceu na

documentação. Não consta ter saído de Lisboa, nem de ter chegado em Belém. Nesse caso, ela só pode ter tido dois destinos, ou faleceu com sua mãe entre a viagem para Lisboa e os seis meses de permanência ali ou conseguiu escapar do embarque. Quanto a nova formação do fogo de Lourenço, ele é bastante peculiar. Aparecem cinco novos filhos e a fonte não deixa muito claro se são do marido ou da mulher. De qualquer forma, todos tem idade para ser filhos de Lourenço. E apenas João Rodrigues de 27 anos não poderia ser filho da segunda esposa.

Paralelamente aos transportes da população. Todo o intento da coroa portuguesa em povoar Nova Mazagão parecem ter sido logrados pela lentidão nas obras. A utilização do indígena no projeto de defesa e delimitação das fronteiras se confrontava diretamente com o Diretório, que previa a utilização do nativo indígena como parte importante da consolidação da ocupação portuguesa na Amazônia34. Portanto o projeto de colonização idealizado para Nova Mazagão esbarrou por grandes dificuldades já em seus primeiros anos devido á falta destes braços para uma obra que era tida primordial para o sucesso da colonização na região. Ou seja, os problemas no andamento da

33 AHU. Cod. 1784. 34 TORRES, Simei Maria de Souza. Projetos coloniais: antagonismos e confluência nas fronteiras da Amazônia setecentista. In: Temas setecentistas: governos e populações no Império Português. Editora UFPR/SCHLA, 2009. PP. 128-129

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construção pela falta do trabalhador indígena era visível, no entanto, a enorme falta de trabalhadores especializados não era um problema a se ignorar.

Já em sua chega á Belém em Janeiro de 1770, além de sua nova esposa e cinco filhos, Lourenço traz consigo o agregado José do Rego de 30 anos. Todos vieram juntos no Navio Nossa Senhora das Mercês da Companhia35. E quando Lourenço e sua família foram escalados para já em abril do mesmo ano partirem para Nova Mazagão, que ainda estava no inicio de suas obras, o agregado José do Rego já não acompanhava a família36. E o fato de Nova Mazagão estar sendo construída com escassez de trabalhadores especializados deixou Lourenço, “oficial ferreiro”, no topo da lista de prioridades para embarque imediato.

Podemos comprovar isso ao menos para todo o ano de 1771. Pois do primeiro embarque de colonos para a nova vila, em 1770, até o fim do ano de 1771 temos a descrição das profissões dos chefes de família, e em alguns casos as profissões de outros membros37. A partir do segundo embarque, em 25 de maio de 1771, até o sétimo em 13 de outubro encontramos 74 famílias sendo encaminhadas para nova Mazagão. Até o fim daquele ano seriam 100 famílias, 363 pessoas. As listas de embarque nos apontam 13 cabeças de família com as respectivas profissões indicadas. Um cirurgião, um sangrador, sete carpinteiros, dois pedreiros, um barbeiro e um sapateiro. Ainda encontramos um serralheiro filho de uma viúva, um boticário agregado do sangrador Manoel da Silva Lisboa e um sapateiro agregado de outra família. Esse envio de profissionais “brancos” e especializados para a Vila, indica a carência de trabalhadores.

E por fim esta família desaparece. Não consta nenhum Lourenço Rodrigues no recenseamento de 1778, nem na investigação complementar feita por Almada. Muito menos na relação de pessoas de Mazagão residentes em Belém também de 1778. Nem o nome de uma viúva Maria José. Nem nomes dos filhos com idades que me permita identificá-los como da família de Lourenço. O grande cerne da questão não é o que aconteceu com estas pessoas, mas sim o fato de terem desaparecido. No caso da família Valente do Couto havia algumas correspondências, no caso da família de Lourenço só havia uma menção em documentos em que toda ou grande parte da população de Mazagão era contabilizada. Ou seja, por não serem nobres ou importantes eles simplesmente desapareceram. A família ascendente de Manoel Gonçalves

35 APEP. Cod. 207. 36 APEP. Cod. 207. 37 APEP. Cod. 207.

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O major Gaspar Leitão da Cunha, do 2º Regimento de Primeira Linha do

Pará era filho do capitão de Fragata Manoel Gonçalves da Cunha, transferido para o Pará vindo de Mazagão após a década de 1760. Gaspar era casado com Maria Antonia da Fonseca Zuzarte, também natural de Mazagão. Um dos filhos do casal, Ambrósio, seria deputado provincial do Pará(1848-1852), deputado geral (1855-1870), juiz (1854), chefe de polícia (1859), desembargador, presidente das províncias Paraíba, Pernambuco, Maranhão e Bahia, senador (1870), Ministro do Império do Ministério Cotegipe e por fim agraciado com o título de Barão de Mamoré38.

Mas voltemos ao inicio desta trajetória. O único Manoel Gonçalves dentre um total de seis, identificado como trabalhador de navio em 1768 se chamava Manoel Gonçalves Neves, um cabeça de família solitário de 33 anos que era sargento de um navio39. No ano seguinte (1769) quando os mazaganistas eram contabilizados para embarcar de Lisboa para Belém, Manoel Gonçalves Neves, 33 anos, sargento de navio, se encontrava casado com Dona Francisca da Cunha de 50 anos e traziam consigo 4 filhos.

Família de Manoel Gonçalves em 176940

Nome Sexo casamento

Idade

Sargento de navio

Manoel Gonçalves Neves

masculino casada cabeça de familia 33

dona Francisca da Cunha

feminino casada mulher do cabeça de família

50

dona Leonor Salgueira

feminino filha 9

Antonio de Azevedo

masculino filho 8

Luis de Loureiro

masculino filho 7

dona Antonia Maria Rosa

feminino filha 6

Não posso afirmar que Manoel Gonçalves se casou neste ano, nem que já

era casado. A fonte também deixa dúvida se as crianças são filhas dele ou da

38 MARIN, Rosa. Alianças Matrimoniais na Alta Sociedade Paraense. Revista Estudos Econômicos 15, Edição Especial, 1985. PP 153-167. 39 AHU. COD. 1784. 40 AHU_ACL_CU_013, Cx. 82, D. 6720

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esposa. O fato é que em 1770 ao descer em Belém a esposa de Manoel era outra, Maria Manoel de 28 anos. Conforme a tabela abaixo:

Família de Manoel Gonçalves em 177041

Nome Sexo casamento

idade

Sargento de navio

Manoel Gonçalves Neves

Masculino casada cabeça de familia

33

dona Maria Manoel Feminino casada mulher do cabeça de família

50

dona Leonor Salgueira Feminino filha 9

Antonio de Azevedo masculino filho 8

Luis de Loureiro masculino filho 7

dona Antonia Maria Rosa feminino filha 6

Comparando o nome e a idade dos membros da família, fica impossível

afirmar não ser a mesma. A família de Manoel Gonçalves passou de um indivíduo solitário em 1768 a um homem casado em segundas núpcias com filhos ao chegar em Belém em 1770.

Em 1778, não encontramos nenhum Manoel Gonçalves da Cunha ou Manoel da Cunha. Mas Manoel Gonçalves Neves ainda se encontrava na Vila e foi listado como homem branco, casado, natural de Mazagão e liderava um fogo composto por 3 homens, uma mulher e dois casais de escravos. Ainda assim o recenseador o classificou como “de pouca possibilidade e de nenhuma applicação”. No censo de Macapá de 1808 nem ele, nem a esposa nem os filhos são listados. Daí pela lógica, suponho que tenham mudado, mas não posso precisar o paradeiro da família para ver como se construiu a rede social que permitiu a um neto de Nova Mazagão alcançar um ministério do Imperio.

41 APEP. COD. 207.