ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS · 1. AULAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL: DO GÊNERO À AVALIAÇÃO...

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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS II Simpósio ProfLetras/ UENP & I SIDIALE - Simpósio Diálogos Linguísticos e Ensino Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) Campus de Cornélio Procópio 16 a 17 de outubro de 2017 Letícia Jovelina Storto (editora) TEXTOS PUBLICADOS EM 31 DE JULHO DE 2018 Realização: Apoio:

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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS

II Simpósio ProfLetras/ UENP

& I SIDIALE - Simpósio Diálogos Linguísticos e Ensino

Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP)

Campus de Cornélio Procópio

16 a 17 de outubro de 2017

Letícia Jovelina Storto (editora)

TEXTOS PUBLICADOS EM 31 DE JULHO DE 2018 Realização:

Apoio:

Anais do SIDIALE

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COORDENAÇÃO GERAL Profa. Dra. Eliana Merlin Deganutti de Barros

COMISSÃO ORGANIZADORA Profa. Dra. Ana Paula F. N. Brandileone

Profa. Dra. Eliana Merlin Deganutti de Barros Profa. Dra. Letícia Jovelina Storto

Profa. Dra. Marilúcia Domingos dos Santos Striquer

COMISSÃO TÉCNICA Luciana Teixeira

Osnir Branco Rithielle Aparecida Castellani

Vanessa Santos Fonteque

COMISSÃO CIENTÍFICA Gabriela Martins Mafra Letícia Jovelina Storto

Marilúcia Domingos dos Santos Striquer

MONITORES Camila da Silva Pelizari

David Fernandes Gabriela Pepis Belinelli

Geovana Pelaquim Marques Giovanna Moraes Ferreira

Giselle Rodrigues de Oliveira Tebom Kamilla Danielye Batista

Mariana Helena Delavia e Silva Nathalia de Souza Toncovitch

Osnir Branco

WEB DESIGN Letícia Jovelina Storto

Carga Horária: 24 horas

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ – UENP

Campus de Cornélio Procópio

PR 160, Km 0 (saída para Leópolis) Cornélio Procópio, PR

Fones: (43) 3904-1906; 3904-1907

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ORGANIZAÇÃO E EDITORAÇÃO DOS ANAIS Letícia Jovelina Storto

COMO CITAR: SOBRENOME, Nome do autor do artigo. Título do artigo. In: SIMPÓSIO PROFLETRAS/UENP, 3, SIDIALE - SIMPÓSIO DIÁLOGOS LINGUÍSTICOS E ENSINO, 1, out. 2017, Cornélio Procópio. Anais eletrônicos… Cornélio Procópio, PR: UENP, 2018. Disponível em: <https://anaisdosidiale.webnode.com>. Acesso em: mês e ano.

■ Os textos aqui publicados são de responsabilidade exclusiva de seus autores, incluindo revisão linguística e citações.

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PROGRAMAÇÃO GERAL

16/10/2017 (segunda-feira) Manhã (UENP/ CAMPUS/ Bloco C) A partir das 8h 8h30: Abertura oficial do Evento 9h-2h: Encontro dos mestrandos do Profletras com a Profa. Irandé Antunes: “O texto e suas propriedades: fundamentos e implicações pedagógicas”. 12h-14h: Almoço Tarde (UENP/ CAMPUS/ Bloco C) 14h-17h20min: Sessões de comunicação individual Noite (UENP/ CAMPUS/ Bloco C) 19h20min-21h20min – Minicursos Simultâneos: 1. AULAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL: DO GÊNERO À AVALIAÇÃO Profa. Dra. Cláudia Maris Tullio (UNICENTRO) 2. DIMENSÕES ENSINÁVEIS DOS GÊNEROS DE TEXTOS: UMA METODOLOGIA PARA O ENSINO DA LÍNGUA Profa. Dra. Maria Ilza Zirondi (UEL) 3. OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA PARA PROFESSORES E FUTUROS PROFESSORES Prof. Dr. Flávio Freire (UEL) 4. IMAGENS E REPRESENTAÇÕES NA LITERATURA INFANTIL Profa. Dra. Sonia Pascolati (UEL) 5. ENSINO PLURAL NA ERA MULTIMODAL: CONFLUÊNCIA ENTRE SABERES E FAZERES NO ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS/ADICIONAIS Profa. Dra. Claudia Cristina Ferreira (UEL) Profa. Mnda. Thalita Aguiar Molin Miguel (PG – UEL) 6. ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA NA PERSPECTIVA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA Prof. Dndo. Reinaldo César Zanardi (UEL) 17/10/2017 (terça-feira) Manhã (UENP/CAMPUS - Bloco C) A partir das 8h: Credenciamento 8h-12h: Apresentações dos trabalhos dos mestrandos da Turma 4 do Profletras 12h-14h: Almoço Tarde (UENP/ CAMPUS/ Bloco C) 14h-17h20min: Sessões de comunicação individual Noite (UENP/CAMPUS - Anfiteatro PDE) 19h: Atividades Culturais: Voz e Violão com Cíntia Roberto Marson e Matheus José Sanches Ariza Espetáculo de stand up comedy com Renan William Silva de Deus Noite de Autógrafos com a Profa. Dra. Irandé Antunes 19h40min: Conferência de encerramento com a Profa. Dra. Irandé Antunes (UFCE), “O ensino de língua segundo as perspectivas da linguística de texto”

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APRESENTAÇÃO

Em 2017, o III Simpósio PROFLETRAS/UENP se articula ao I SIDIALE - Simpósio

Diálogos Linguísticos e Ensino -, evento criado pelo Grupo de Pesquisa (CNPq) DIALE,

liderado pelas Profas. Dras. Eliana Merlin Deganutti de Barros e Letícia Jovelina Storto. O

primeiro refere-se ao terceiro evento do PROFLETRAS (Mestrado Profissional em Letras

em rede nacional) da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), cuja finalidade

é apresentar e debater as pesquisas desenvolvidas por mestrandos do Programa, para

que essas possam ser aperfeiçoadas durante o seu desenvolvimento. O evento também

objetiva ser um espaço de discussão de estudos sobre o ensino-aprendizagem e

formação do professor de língua portuguesa e literatura, promovendo palestras de

pesquisadores da área. É nesse sentido que o evento se articula ao SIDIALE, um evento

que busca fomentar pesquisas na área dos Estudos da Linguagem, tendo como escopo

estudos tanto de fenômenos linguísticos diversos como da língua como objeto de ensino-

aprendizagem. Sendo assim, é um evento que vai ao encontro das discussões

empreendidas no PROFLETRAS. O evento conjunto se destina, assim, a professores,

alunos (graduação ou pós-graduação) e pesquisadores da área de Letras, com ênfase na

área de ensino da língua portuguesa e literatura. É um evento importante não só para a

comunidade acadêmica, mas para os profissionais da Educação Básica, pois foca,

sobretudo, a simbiose inerente entre teoria e prática docente.

O grupo DIALE - Diálogos Linguísticos e Ensino (UENP/ CNPq) desenvolve

pesquisas em duas linhas, uma que se dedica aos estudos analíticos do texto e do

discurso, outra que foca tanto o ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa, como

língua materna, como a formação do professor. Ambas as linhas têm como escopo uma

visão enunciativa da linguagem e sociointeracional do ensino e aprendizagem.

Este simpósio reúne pesquisadores desse e de outros grupos de pesquisa que se

interessam pela pesquisa a respeito de linguagem, ensino etc.

Eliana Merlin Deganutti de Barros Letícia Jovelina Storto

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SUMÁRIO A CARTA DO LEITOR: UMA ANÁLISE DOS ASPECTOS SÓCIO-COMUNICATIVOS, DISCURSIVOS E LINGUÍSTICOS QUE FORMAM

O GÊNERO .............................................................................................................................................................................. 8

Sara Nicacia de Souza .................................................................................................................................................. 8

Renata Isabelly Maldonado ...................................................................................................................................... 8

Marilu cia dos Santos Domingues Striquer ......................................................................................................... 8

A DIDATIZAÇÃO DA RESENHA DE FILMES MEDIADA PELA METODOLOGIA DAS SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS DE GÊNEROS .. 18

Giovanna Moraes Ferreira ..................................................................................................................................... 18

Eliana Merlin Deganutti de Barros ..................................................................................................................... 18

A PRESENÇA DA MULTIMODALIDADE NAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PIBIDIANOS EM SUBPROJETOS DE LÍNGUA

INGLESA .............................................................................................................................................................................. 47

Leticia Vidotti dos Santos ....................................................................................................................................... 47

Célia Regina Capellini Petreche ........................................................................................................................... 47

A RECEPÇÃO CRÍTICA DAS EDIÇÕES DA CAROS AMIGOS - “LITERATURA MARGINAL - A CULTURA DA PERIFERIA ATO I, II E

III” - NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO ........................................................................................................................... 63

Ana Paula Franco Nobile Brandileone .............................................................................................................. 63

Maria Luiza Navarro Martins ................................................................................................................................ 63

A (NÃO) IMPARCIALIDADE E O DISCURSO DE ESQUERDA E DIREITA NOS JORNAIS ONLINE BRASILEIROS ...................... 75

Renan William Silva de Deus ................................................................................................................................ 75

Lívia Maria Turra Bassetto .................................................................................................................................... 75

ABORDAGENS DISCURSIVAS NAS AULAS DE LÍNGUA MATERNA EM ESCOLAS PÚBLICAS PARAENSES ............................... 90

Paulo Robson Silva da Silva ................................................................................................................................... 90

AVALIAÇÃO NO ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA EM CONTEXTO INDÍGENA: CONSIDERAÇÕES SOBRE

LÍNGUA E CULTURA ............................................................................................................................................................ 103

Marina Oliveira Barboza .......................................................................................................................................103

CONVERGÊNCIAS ENTRE OS ESTUDOS DO LETRAMENTO, A LINGUÍSTICA APLICADA E A PEDAGOGIA DO MOVIMENTO SEM

TERRA................................................................................................................................................................................ 116

Bruna Carolini Barbosa .........................................................................................................................................116

CORDA BAMBA, DE LYGIA BOJUNGA, E BISA BIA, BISA BEL, DE ANA MARIA MACHADO: CONSTRUINDO UMA TRADIÇÃO

........................................................................................................................................................................................... 133

Cíntia Roberto Marson ..........................................................................................................................................133

Thiago Alves Valente ..............................................................................................................................................133

EM TELA NELL, (1994): A METALINGUAGEM NO CINEMA .............................................................................................. 153

Izabel Cristina Marson ...........................................................................................................................................153

Osnir Branco ..............................................................................................................................................................153

ENUNCIAÇÃO E DISCURSO: DO ROMANCE AO FILME ......................................................................................................... 161

Tânia Regina Montanha Toledo Scoparo .......................................................................................................161

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LETRAMENTO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA .................................................................... 182

Paulo Robson Silva da Silva .................................................................................................................................182

NA PRÁTICA, A TEORIA EM LETRAS É OUTRA COISA? ...................................................................................................... 196

Vladimir Moreira .....................................................................................................................................................196

Marcelo Cristiano Acri ...........................................................................................................................................196

O APAGAMENTO DO –R EM TEXTOS DA EJA: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DA SOCIOLINGUÍSTICA EDUCACIONAL

........................................................................................................................................................................................... 208

Suely Claudia Lobato Maciel ...............................................................................................................................208

Dircel Aparecida Kailer .........................................................................................................................................208

PPPS, GRADES E EMENTAS: A PRÁTICA EM LETRAS ........................................................................................................ 219

Beatriz do Prado Ferreira ....................................................................................................................................219

Núbio Delanne Ferraz Mafra ...............................................................................................................................219

SAMBA NA ESCOLA: ANÁLISE DO GÊNERO TEXTUAL SAMBA EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA ............. 230

Juliana dos Santos Barbosa ..................................................................................................................................230

Letícia Jovelina Storto ............................................................................................................................................230

SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS DO GÊNERO CANÇÃO NO PIBID-INGLÊS: DESENVOLVIMENTO DE CAPACIDADES DE LINGUAGEM

........................................................................................................................................................................................... 244

Emanuelle Cricia Oliveira da Silva ....................................................................................................................244

Célia Regina Capellini Petreche .........................................................................................................................244

SILÊNCIO E DISTANCIAMENTO: A ESCOLARIZAÇÃO DA LEITURA E A (NÃO) FORMAÇÃO DO LEITOR .............................. 263

Bruna Carolini Barbosa .........................................................................................................................................263

UMA ANÁLISE ESTILÍSTICA DE MÚSICAS DA MPB: O DESVIO ESTILÍSTICO E SUA EXPRESSIVIDADE .............................. 274

Nathalia de Souza Toncovitch ............................................................................................................................274

Gabriela Pepis Belinelli .........................................................................................................................................274

Lívia Maria Turra Bassetto ..................................................................................................................................274

UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O GÊNERO “ARTIGO DE OPINIÃO” NO 9º DO ENSINO FUNDAMENTAL ................ 285

Jane Fernanda de Godoy Garcia .........................................................................................................................285

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NO NÍVEL SINTÁTICO: ANÁLISE DE RECORRÊNCIA EM ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS .................. 296

Eduardo Sae Bonoto ...............................................................................................................................................296

Vera Maria Ramos Pinto .......................................................................................................................................296

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A carta do leitor: uma análise dos aspectos

sócio-comunicativos, discursivos e

linguísticos que formam o gênero

Sara Nicacia de Souza (UENP/CJ - G)

Renata Isabelly Maldonado (UENP/CJ - G)

Marilúcia dos Santos Domingues Striquer (UENP)

RESUMO: Esta pesquisa objetiva investigar quais são os aspectos que constituem o gênero textual carta do leitor. O gênero foi escolhido como foco de análise, visto que é um importante instrumento de interação social entre a sociedade e as mídias, e mesmo sendo um texto curto é bastante complexo em sua constituição. Assim, conhecer as especificidades da carta do leitor é importante quando se pretende agir na sociedade tendo essa ferramenta como meio de opinar ou sugerir assuntos a serem abordados pelas mídias, bem como criticar posicionamentos ou tratamentos dado a um referido tema ou situação. Em decorrência, a partir de conhecidas as características sócio-comunicativas, discursivas e linguística da carta do leitor, pretendemos refletir como esse gênero pode ser tomado como eixo organizador do ensino e da aprendizagem da língua materna em salas de aula da educação básica, por entendermos que textos argumentativos são importantes ferramentas de interação social. Logo, para alcançar nosso objetivo nos pautamos sobre os preceitos teórico-metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo. Os resultados demonstram quais são os elementos que constituem o gênero e, principalmente, confirmam nossa premissa de que a carta do leitor é uma ferramenta de interação entre uma mídia e seus leitores, pois promove espaço para que o autor da carta possa ser um colaborador na construção das matérias veiculadas e para que a mídia conheça a repercussão de seu trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Carta do leitor. Gênero textual. Ensino de língua portuguesa.

INTRODUÇÃO

A escolha da carta do leitor para o desenvolvimento deste artigo se justifica

pela sua contribuição no aprimoramento das habilidades de argumentação, do

relatar experiências e expressar desejos que um sujeito desenvolve ao produzir esse

gênero. A carta do leitor está atrelada a diversos propósitos comunicativos: sugerir,

agradecer, criticar, solicitar, comentar, dentre outros que envolvem a interação de

uma pessoa com os meios de comunicação da sociedade da qual ele participa,

dando espaço para uma postura crítica cidadã perante os assuntos em pauta na

sociedade.

Nesse sentido, interessamo-nos em conhecer quais os elementos sociais,

discursivos e linguísticos que formam o gênero textual carta do leitor. Para tanto, o

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respectivo trabalho tem embasamento teórico, entre outros autores, em Bakhtin

(1997) e Marcuschi (2002 e 2005), os quais definem e exploram o quão importantes

são os gêneros textuais por estarem relacionados a língua viva.

Dessa forma, compreendendo a importância dos gêneros textuais, este artigo

objetiva conhecer, de uma maneira aprofundada, a carta do leitor, de modo que se

possa distinguir quais elementos e operações de linguagem devem ter tomados

como objeto de ensino tendo como o referido gênero como eixo condutor.

Ao inserir o estudo de gêneros textuais, o professor ultrapassa o aprendizado

escolar, ampliando a compressão que o aluno tem sobre a realidade. Muitas vezes,

pela falta de criticidade, eles se veem paralelos a tudo o que acontece na sociedade,

mas ao aprender a produzir uma carta do leitor, por exemplo, eles podem sentir que

terão sua voz ouvida. Enfim, ao tomar consciência de que podem manifestar seus

pontos de vista, sugerir, interferir nos acontecimentos do mundo concreto, tomarão

seu papel como cidadãos efetivos. Ao trabalhar de forma contextualizada o professor

está formando pessoas para agirem fora do ambiente escolar.

Nas diretrizes para o Ensino Fundamental e Médio de Língua Portuguesa os

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) apontam que

No processo de ensino e aprendizagem dos diferentes ciclos do ensino fundamental espera-se que o aluno amplie o domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania (BRASIL, 1999, p. 32).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Segundo Marcuschi (2002) o gênero textual é

Uma forma concretamente realizada e encontrada nos diversos textos empíricos. Isso se expressa em designações diversas, constituindo um princípio de listagens abertas, tais como: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, instruções de uso, outdoor, etc, são textos historicamente situados. Sua definição não é linguística, mas de natureza sóciocomunicativa. (2001, p. 31)

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Bakhtin (1997) e Marcuschi (2002) explicam que cada gênero assume

características singulares de acordo com a esfera social em que vão estar inseridos.

Cada um entra em consonância com as necessidades de interação social, ou seja, a

escolha de um gênero está em conformidade com o objetivo do locutor, dos

interlocutores e do meio disponível para sua veiculação. Por serem relativamente

estáveis, muitas vezes não é possível submeter um gênero a uma classificação

estrutural única, visto a variedade das esferas da atividade humana. E também

porque, segundo Bakhtin (1997, p. 169), “a quantidade gêneros orais e escritos são

inesgotáveis, não sendo possível fazer um repertório ou uma lista, pois há sempre

novos gêneros sendo criados”.

Para um melhor entendimento do que são os gêneros Marcuschi (2002) propõe

uma distinção entre os termos "tipos textuais" e "gêneros textuais", já que em geral,

os tipos textuais, denominados também como gêneros escolares, são apenas meia

dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,

descrição e injunção. Enquanto que a expressão gênero textual abrange os textos

da nossa vida diária. (MARCUSCHI, 2002, p. 25-26).

Sobre os gêneros, os PCN’s (BRASIL, 1999) reforçam a importância da

promoção da reflexão, na escola, por meio dos gêneros, e assim incentiva os

profissionais da educação a inovarem suas práticas didáticas, tendo como eixo

organizador das aulas de língua portuguesa os mais diversos gêneros que existem

na sociedade. No Paraná, as Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua

Portuguesa do Estado do Paraná reforçam que “cabe ao professor planejar e

desenvolver atividades que possibilitem aos alunos a reflexão sobre o seu próprio

texto, (…) de um texto selecionado ou de outros textos, de diversos gêneros que

circulam no contexto escolar e extraescolar” (PARANÁ, 2010, p. 80). Sendo assim, é

importante que nas atividades escolares sejam tomados como objeto de ensino os

mais diversos gêneros textuais.

Quanto a efetividade das atividades com gêneros, Stadykoski (2007) afirma que

Em relação à avaliação das produções textuais dos gêneros, devemos abandonar os critérios quase exclusivamente literários ou gramaticais e deslocar seu foco para outro ponto: o bom texto não é aquele que apresenta, ou só apresenta características literárias, mas aquele que é adequado à situação comunicacional para tanto, aspectos como a adequação ao conteúdo, da estrutura e da linguagem como um todo e o cumprimento da finalidade que motivou a produção. (…) A leitura da literatura de ficção de não-ficção, de jornais, revistas, enfim de vários

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gêneros que circulam na sociedade é uma forma de oferecer condições para que os alunos ampliem seus conhecimentos e assim possam desenvolver o raciocínio, o senso crítico, a compreensão do real, a curiosidade intelectual, que são essenciais para a constituição de uma sociedade mais politizada. (2007, p. 8)

Atingir tais objetivos é o motivo da elaboração deste artigo, pois é necessário

proporcionar subsídios teórico-metodológicos para realizar atividades com os

gêneros nas aulas de língua portuguesa. No caso, para tanto, delimitamos a

abordagem ao gênero carta do leitor.

CARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO CARTA DO LEITOR

De acordo com Silva e Araújo (2008), a carta do leitor é uma importante

ferramenta para fomentar a aprendizagem dos conteúdos da língua materna, pois

contextualiza-os abordando assuntos de repercussão social. Além disso, os alunos

também podem produzi-la tendo a oportunidade de refletir sobre questões sociais e

sobre o poder que a imprensa exerce sobre a sociedade brasileira, o que torna a

relação entre os conteúdos mais significativas.

Todos os gêneros são divididos em esferas da comunicação/situações

comunicativas e Bakhtin (1997) explica muito bem como se define, de modo geral, o

que vem a ser uma esfera:

O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. (BAKHTIN, 1997, p. 279)

Por estar atrelada a notícias em pauta na sociedade, na maioria das vezes, no

contexto de recepção a carta do leitor pertence à esfera jornalística. Essa esfera é

muito ampla, pois abrange vários assuntos como entretenimento, notícias, saúde,

humor. Sua função é informar e comentar acontecimentos sociais diversos, que se

mostra de grande importância para a compreensão da nossa sociedade, mas é

preciso se atentar, pois influem e podem até manipular a sociedade. Por isso, se faz

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necessário confrontar as informações entre os suportes de mesmo tipo. No âmbito

do contexto de produção, na carta do leitor pode ser considerada também a esfera

da cidadania, pois neste tipo de carta podem estar reclamações, sugestões,

manifestações políticas, por exemplo. Porém, quando está presente em revistas

juvenis e de fofocas, pertence a esfera do entretenimento. (BARROS, 2012)

Vista de um plano geral, a carta do leitor tem o objetivo de levantar a discussão

sobre determinado assunto, o que contribui para que as pessoas reflitam e

percebam os diferentes pontos de vista, tanto positivos como negativos, que antes

não haviam percebido. Seus suportes variam entre jornais e revistas jornalísticas e

juvenis, por isso alcança praticamente todas as faixas etárias em praticamente todos

os meios sociais. (BEZERRA, 2005 apud STADYKOSKBEZ, 2007).

Marcuschi (2005) considera a carta do leitor um gênero secundário do gênero

maior “cartas”, uma vez que a carta do leitor se diferencia das cartas tradicionais

principalmente pela ausência de contato imediato entre emissor e destinatário que

não se conhecem. Contudo, não é por ser um gênero secundário que é um gênero

menor ou menos importante que qualquer outro.

As cartas do leitor são publicadas em revistas e jornais, ou seja, esses são os

suportes, os lugares onde as cartas circulam, e, nesses veículos há sempre uma

lugar: uma seção, uma página onde as carta são publicadas. Nesse sentido, as

cartas são recebidas pelos editores da seção, os quais fazem as avaliações e

seleções determinando assim, as escolhidas. A prioridade, de um modo geral, é

dada às cartas que discutam assuntos gerais (comportamentais, políticos,

econômicos) e que provoquem interesse no conjunto da sociedade. Além disso,

antes da publicação, a carta do leitor pode ser editada pela equipe de revisão

responsável por adaptar o texto, corrigindo erros, resumindo e/ou parafraseando o

texto, já o editor ou uma equipe específica são os responsáveis por decidir se irão

publicá-la na íntegra ou somente trechos mais relevantes. Segundo Bezerra 2007

(apud Stadykoskbez, 2005), por sofrer esses tipos de mudanças, esse gênero

configura-se como uma carta de coautoria, de autoria do leitor/autor e do

jornalista/editor da revista ou jornal.

Algumas revistas e jornais estabelecem nomes para as seções que publicam o

referido gênero, por exemplo, segundo Rodrigues e Arruda (2015), a seção no Jornal

Zero Hora intitula-se “Do leitor”, no jornal Folha de São Paulo, “Painel do Leitor”, no

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Jornal O Estado de São Paulo, “Fórum de Debates”, na revista em quadrinhos turma

da Mônica, “Mônica dá o recado”, na revista Capricho, “Diz aí”. Além disso,

Alguns jornais, como, Zero Hora, do Grupo RBS, costumam propor um tema por edição. Outros, como Folha de São Paulo, deixam os leitores livres para comentar as matérias anteriores. Conforme Paltridge (2006), os assuntos das cartas do leitor são provenientes de outros gêneros, como editoriais, artigos de opinião, notícias etc. Dessa forma, a carta do leitor é mais do que uma reação a um único texto, é uma reação a outros textos e/ou eventos, permitindo uma relação entre dois ou mais textos, o que evidencia sua intertextualidade. (RODRIGUES; ARRUDA, 2015, p. 29)

O autor de uma carta do leitor é o leitor de um jornal e revista e o seu

destinatário são também os leitores que acompanham a revista ou jornal. Esse

gênero é ainda uma arma publicitária para a imprensa saber o que está agradando

ou desagradando a opinião pública de forma que os organizadores do suporte

saibam qual é a recepção do leitor sobre o que foi exposto para possíveis melhorias.

Mas para o autor/leitor é uma oportunidade de ter sua opinião compartilhada com os

demais leitores (DUARTE, online). Ao escrever esse gênero o autor ocupa, portanto,

o papel discursivo de alguém que discute sobre um tema e também de colaborador

da revista ao lhe oferecer sugestões, críticas, elogios.

Apesar de não ter regras rígidas, pois o assunto, a linguagem e a estrutura

pode variar de acordo com a revista ou jornal, de acordo com Duarte (online), há

certas recomendações comuns entre essas mídias: a linguagem é objetiva, em

norma culta padrão, sem vícios de linguagem, jamais poderá ser publicada com

palavras de baixo calão ou escritas de maneira ofensiva e preconceituosa. Sobre a

escolha do léxico a ser empregado na carta do leitor, Barros (2012) afirma que o

léxico deve estar relacionado ao assunto da carta/da mídia que a publica. Quanto a

estrutura, precisa ter: título, texto da carta, e o mínimo de informações sobre o autor

da opinião, como o seu nome, cidade ou profissão.

Ainda sobre a estrutura da carta, mesmo repleta de elementos essenciais à sua

estrutura, assim como os outros gêneros, é relativamente estável/fixa, pois “apesar

de sua relativa estabilidade, os gêneros não são entidades fixas que permanecem

estáticas, independentemente do tempo e das mudanças ocorridas na sociedade. Ao

contrário, há gêneros que desaparecem e outros que nascem, dependendo das

necessidades dos falantes que os utilizam.” (ISOLA, 2005, p. 68). Por exemplo, a

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carta do leitor, sem dúvida, é originária, transformou-se da carta pessoal. E, se

relaciona com a carta de reclamação, o artigo de opinião, entre outros.

Desse modo, recriam-se sempre novos textos, os quais podem se modificar, se

transformar, por vezes, sem deixarem de conter elementos de textos precedentes,

seja de maneira explícita ou implícita. Assim, há um mover constante no surgimento

e desaparecimento de gêneros híbridos que se ajustam à atividade social e

intelectual da qual texto e discurso fazem parte. (ISOLA, 2005).

De acordo com Isola (2005) as transformações que aconteceram entre a carta

pessoal e a do leitor, justificam porque a carta do leitor, ao mesmo tempo em que

pode ser explicativa, ao trazer uma nova informação, exemplificar fatos, situações ou

ideologias, é também argumentativa, já que o leitor expõe o seu posicionamento

sobre o assunto abordado, com o intuito de convencer e persuadir o destinatário. E,

mesmo sendo da ordem do expor argumentativo, na carta do leitor podem ser

narrados fatos que aconteceram no cotidiano, desde que sejam breves, para depois

expor os argumentos que evidenciem um determinado posicionamento. Nesse

sentido, há uma sequencialidade predominante, que é a argumentativa (BEZERRA,

2005).

E quanto aos recursos linguísticos, como por exemplo, no caso da carta, o uso

de substantivos e adjetivos, são escolhidos a partir dos padrões de afetividade da

carta, e também, como posto, conforme o assunto tratado e a mídia que a publica. A

pontuação segue os padrões epistolares formais (por exemplo, uso de vírgula após a

saudação inicial e final, caso tenha).

Fajardo (2009) detalha que quando a carta é mais pessoal, expondo a opinião

do autor, por exemplo, emprega pronomes e verbos em primeira pessoa; quando é

mais impessoal, no caso, por exemplo, do autor não se revelar de forma única, há o

emprego de pronomes e verbos na terceira pessoa. Pelo motivo já apontado, é o

assunto e a mídia que dita o tom.

Sobre o tempo verbal empregado, predominantemente na carta do leitor, os

verbos trazem consigo a noção de temporalidade e a carta por requerer um tempo

próximo ao que está sendo vivido, faz uso do presente, e o passado é deixado

apenas para aquelas situações em que é preciso narrar um fato. O futuro do

pretérito é usado para levantar questionamentos, demonstram também desejos e

sugestões. O levantamento de situações hipotéticas é identificado com o uso do

Anais do SIDIALE

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15

modo subjuntivo e do tempo futuro do pretérito (SILVA, 2008).

Segundo Rodrigues e Arruda (2015), os conectivos lógicos, sejam conjunções

ou locuções que expressam relações de causa/consequência, condição/conclusão,

oposição, finalidade, proporção, etc., são responsáveis por conectar uma oração a

outra dando uma sequencialidade lógica, de maneira a contribuir com o

entendimento do texto, e evidenciam a argumentação efetiva, que precisa estar

baseada na razão, ser coesa e coerente para convencer os destinatários. São entre

os mais usados na carta do leitor: “não só... mas também”, “tanto...como/quanto”,

“ainda”, “além disso”, “aliás”, “inclusive”, “só”, “somente”, “ou seja”,” isto é”, “em

decorrência”, “consequentemente”, “mais que/menos que” (RODRIGUES, ARRUDA,

2015).

Para mais, a carta do leitor faz uso dos quatro tipos de modalizadores: os

lógicos são os mais usados, porque estabelecem possibilidades: eu creio”, “eu

acho”, “é possível”, “talvez”; e os que revelam certeza: “é verdade que”, “com

certeza”, “sem sombra de dúvida”, deônticas que estabelecem permissão e

obrigação: “eu aconselho”, “eu sugiro que”, “é preciso que”, “é necessário que”,

apreciativas estabelecem análise ou julgamento: “tristemente”, “curiosamente”, “pena

que”, “ainda bem que”, e pragmáticas: “podem estar”, “podem vir a ser”, “pode vir a

causar”, “poderia evitar”, “pode ser” (RODRIGUES, ARRUDA, 2015). Com essas

ferramentas o leitor deixa claro o caráter subjetivo na carta definindo o seu

posicionamento, caso venha a ser questionado sobre a veracidade e comprovação

das afirmações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do presente trabalho possibilitou uma análise do gênero

carta do leitor como instrumento de contribuição no ensino de língua materna. Vimos

que a carta do leitor além de promover interação entre jornais, revistas e leitores,

pode também possibilitar aos alunos de língua portuguesa o desenvolvimento de

capacidades críticas, como por exemplo, ver que seus posicionamentos sobre

assuntos em pauta na sociedade podem ser ouvidos, como já foi mencionado no

texto. Além disso, pode possibilitar ao aluno o aprendizado do uso da argumentação

ao expressar suas opiniões de forma adequada ao público que será destinado o

texto.

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Contudo, é necessário reputar que esta perspectiva exige um tempo maior de

preparação e isso pode ser uma tarefa árdua para os professores, que além de ter

uma carga excessiva de trabalho cada vez mais estressante, ainda se deparam com

salas de aula cada vez mais lotadas de alunos e uma estrutura física precária que

não favorece a qualidade do ensino. Esse problema dificulta a inserção dos estudos

e análises de gêneros textuais no ambiente escolar, mas não impede que ao longo

do tempo vá se fixando como objeto de suma importância no aprendizado efetivo,

por meio do desenvolvimento de estudos que evidenciam os seus inúmeros

benefícios no processo de ensino/aprendizagem.

De modo particular, com a carta do leitor há a possibilidade de se elaborar

planos de aula que acionem o senso crítico dos alunos, mostrando que nem todas

as revistas ou jornais se expressam com o mesmo tipo de linguagem. Os resultados

das análises demonstram algumas das características da carta do leitor. Nos cabe

enfatizar que nossas ações cotidianas são dadas através de ações verbais, portanto,

a carta do leitor é apenas um exemplo de gênero que pode ser eixo organizador do

processo de ensino da língua portuguesa, contudo, vimos a carta do leitor como um

importante eixo visto ser um gênero que possibilita o trabalho com o

desenvolvimento do senso crítico dos alunos.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BARROS, Eliana Merlin Deganutti. Transposição didática externa: A modelização do gênero na pesquisa colaborativa. Revista Raído. Dourados: UFMS. v. 6, n. 11, p 11 - 35, jan./jun. 2012. Disponível em: <https://www.academia.edu/8142214/Revista_Ra%C3%ADdo_Em_foco_o_Interacionismo_sociodiscursiv_o>. Acesso em: 03 mar. 2017. BEZERRA, Maria Auxiliadora. Por que cartas do leitor na sala de aula? In: DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais e ensino. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais – Ensino fundamental– Língua Portuguesa. Brasília: SEF/MEC, 1998. DUARTE, Vânia Maria do Nascimento. A Carta do leitor Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/redacao/a-carta-leitor.htm>. Acesso em 03 mar. 2017.

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FAJARDO, Miriam. Carta do leitor. 2009. Disponível em: <https://profmi.wordpress.com/2009/06/03/carta-do-leitor/>. Acesso em: 03 mar. 2017. ISOLA, Regina L.Péret Dell´. Genêros híbridos: contornos difusos? Anais do Evento PG Letras 30 Anos. Recife: UFPE. v. 1, p. 66-80. 2005. Disponível em: <http://www.pgletras.com.br/Anais-30-Anos/Docs/estagios.htm>. Acesso em: 28 fev. 2017. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO,A R.; BEZERRA, M. A.(Orgs.). Gêneros textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. PARANÁ. Secretaria do Estado da Educação. Diretrizes Curriculares na Educação Básica – Língua Portuguesa. Curitiba: SEED, 2010. RODRIGUES, Daniela Leite; ARRUDA, Patrícia Packaeser. Estudo da língua portuguesa a partir do gênero textual carta do leitor. RevLet – Revista Virtual de Letras. Jataí: UFG. v. 07, nº 01, p. 24-43, jan/jul, 2015. Disponível em: <http://www.revlet.com.br/artigos/249.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2017. SILVA, Elizabeth Maria; ARAÚJO, Denise Lino. A funcionalidade de substantivos, adjetivos e verbos em carta de leitor: uma experiência com o ensino de língua portuguesa no cursinho pré-vestibular solidário da UFCG. Instrumento - Revista de Estudo e Pesquisa em Educação. Juiz de Fora: UFCG. v. 10, p. 129-139, jan./dez. 2008. Disponível em: <https://instrumento.ufjf.emnuvens.com.br/revistainstrumento/article/view/54/54>. Acesso em: 12 jan. 2017. STADYKOSKI, Regina Demeterko. O professor PDE e os desafios da escola pública paranaense: As cartas do leitor e o ensino de língua materna. Cadernos PDE. Irati: UNICENTRO. 2007. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde/pdebusca/producoes_pde/2007_unicentro_port_artigo_regina_demeterko_stadykoski.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2017.

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A didatização da resenha de filmes mediada

pela metodologia das sequências didáticas de

gêneros

The didatization of the movie review mediated by the methodology of the

didactic sequences of genres

Giovanna Moraes Ferreira (UENP/CP-G)

Eliana Merlin Deganutti de Barros (UENP/CCP-PQ)

RESUMO: Este trabalho refere-se a uma pesquisa de iniciação científica voluntária que tem como objetivo validar a implementação da metodologia das sequências didáticas de gêneros (SDG), analisando sua contribuição para o desenvolvimento de capacidades de linguagem dos alunos e até que ponto essa metodologia é adaptada para o contexto analisado. Os materiais de análise foram recolhidos do desenvolvimento do projeto PIBID “Letramentos na escola: práticas de leitura e produção textual”, sob orientação da profa. Dra. Eliana Merlin Deganutti de Barros. Tal projeto tem como escopo a didatização de gêneros do jornal com propósitos de escrita de um jornal escolar por alunos da Educação Básica. O projeto didático analisado foi realizado em um colégio público do município de Cornélio Procópio, no ano de 2016, tendo como objeto de ensino o gênero “resenha de filmes”. O trabalho tem como aporte teórico os estudos do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), sobretudo, em sua vertente didática. Como resultados, concluímos que a realização de todas as etapas da SDG é de fundamental importância para se chegar ao objeto da metodologia: a apropriação de um gênero de texto. Porém, muitos outros fatores pedagógicos influenciam os resultados, como a composição da turma (alunos com idades diferentes), tempo escolar escasso para o projeto, número de alunos por turma, falta de um trabalho mais sistematizado em relação ao teor argumentativo do gênero, etc. Espera-se, com essa pesquisa-ação, colaborar com os estudos sobre o ensino de produções de textos e contribuir para melhorias das futuras ações do subprojeto PIBID. PALAVRAS-CHAVE: Sequência didática. Resenha de filmes. Jornal escolar.

INTRODUÇÃO A partir de novas concepções de ensino e aprendizado de línguas, novas

metodologias são requeridas para que deem conta do trabalho com a linguagem de

forma contextualizada, a fim de valorizar a competência sociocomunicativa, como

colocado pelas Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE – PARANÁ, 2008). Para isso,

o trabalho docente com a metodologia da Sequência Didática de Gêneros (SDG)

criada pelos pesquisadores filiados ao Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) tem sido

muito relevante, pois suas bases teóricas, de cunho sociointeracionista, ancorada

em uma engenharia didática voltada para a produção de gêneros textuais orais e

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escritos, tem dado respaldo para a didatização desses novos objetos de ensino da

língua (cf. BARROS, 2012; PETRECHE, 2008).

A partir dessa premissa, este trabalho investiga como se dá o trabalho com a

metodologia das SDG em situação real de ensino: o desenvolvimento de um projeto

de ensino baseado na didatização do gênero “resenha de filmes”, realizado no

interior do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) de

Língua Portuguesa desenvolvido na Universidade Estadual do Norte do Paraná

(UENP) – no subprojeto Letramentos na Escola: Práticas de Leitura e Produção

Textual” – coordenado pela Profa. Dra. Eliana Merlin Deganutti de Barros. O projeto

trabalha com o desenvolvimento colaborativo de sequências didáticas de gêneros

(SDG) em colégios estaduais do município de Cornélio Procópio, com o objetivo de

publicar, ao final de cada ano, uma nova edição do Jornal PIBID.

O objetivo aqui é analisar a implementação da metodologia das SDG,

identificando em que medida as atividades elaboradas pelos professores-pibidianos

(professores em formação inicial) resultam na construção de saberes e no

desenvolvimento de capacidades de linguagem dos alunos e verificar até que ponto

essa metodologia é adaptada para o contexto analisado.

Para isso, iniciamos o trabalho explicitando o contexto da pesquisa de campo,

para, em seguida, trazer estudos que fundamentam o conceito de gêneros textuais

como instrumentos e objetos de ensino da língua e expor o funcionamento teórico-

metodológico da SDG. Na parte analítica do artigo trazemos considerações a

respeito da SDG desenvolvida no projeto de intervenção didática, analisando os

materiais produzidos e as produções de alguns alunos.

CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA

Este trabalho se constitui em uma pesquisa de Iniciação Científica, que se

volta à análise da implementação da metodologia das sequências didáticas, em um

contexto de implementação de um projeto de ensino centrado no gênero “resenha de

filmes”, desenvolvido colaborativamente por alunos1 do subprojeto de Língua

1 A autora deste trabalho foi uma das alunas pibidianas que desenvolveram o projeto de ensino da

resenha de filmes, em caráter de voluntarismo.

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Portuguesa - PIBID – da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e

orientado pela professora doutora Eliana Merlin Deganutti de Barros.

O referido subprojeto PIBID se volta à didatização de gêneros da esfera

jornalística, o que possibilita ao final de cada ano do projeto, a publicação de um

jornal escolar – o jornal PIBID – que no ano de 2016, o ano da realização da

sequência objeto de análise deste trabalho, estava em sua terceira edição.

A sequência didática do gênero “resenha de filmes” foi elaborada e

desenvolvida por três pibidianos, um deles, autora deste texto, e uma supervisora,

professora regente da turma do projeto “Orientação de estudos e leitura” (alunos do

7º e 8º anos). A implementação foi realizada em contraturno durante o segundo

semestre do ano letivo de 2016, em uma escola pública estadual da cidade de

Cornélio Procópio/PR. Para tanto, nos debruçamos sobre o estudo de textos teóricos

que se referem ao conhecimento necessário para uma boa formação para trabalhar

com a metodologia que o projeto se dedica. Também elaboramos um modelo teórico

e didático do gênero objeto de ensino, para, então, desenvolvermos a sequência

didática.

Como base teórica-metodológica para a produção do material de intervenção,

levamos em conta estudos do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), tanto na sua

vertente de análise de textos como no seu campo de estudos dedicados à didática

das línguas, com ênfase em uma engenharia (cf. DOLZ, 2016) centrada na

didatização de gêneros textuais por meio da metodologia das sequências didáticas

de gêneros (SDG) (cf. DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004), que será

explicada mais adiante.

A sequência teve um total de 19 oficinas, cada uma focando uma determinada

capacidade de linguagem (cf. SCHNEUWLY; DOLZ, 2004) necessária para se

produzir o gênero pretendido, com diversos tipos de atividades, como leituras de

exemplos de resenhas de filme, exibição do filme escolhido, discussão oral sobre

características do filme, exercícios escritos sobre a opinião dos alunos em relação

ao filme, revisão e correção, tanto coletiva como individual de erros cometidos pelos

alunos em suas produções, etc.

Durante toda a sequência, os alunos produziram três versões da resenha de

filmes do filme “Jurassic World”, que foi escolhido pelo grupo de pibidianos por ser

um filme promotor de uma discussão em voga, a alteração genética. Para isso, os

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alunos assistiram tanto o filme-fonte da resenha como seu antecessor, “Jurassic

Park III”, que serviria de base para uma possível comparação crítica entre ambos, na

parte avaliativa da resenha. Os dois filmes foram assistidos e discutidos por toda a

turma em duas oficinas.

Nesta pesquisa, analisamos o desenvolvimento da sequência didática do

gênero “resenha de filmes”, implementada no interior de um projeto de ensino

vinculado ao PIBID. Para isso, tomamos como corpus de análise deste trabalho: i) a

sinopse2 da sequência didática desenvolvida; ii) um caderno pedagógico planificado

a partir de textos instrucionais para o professor e de atividades didáticas para os

alunos; iii) as três versões das produções textuais de um dos alunos participantes,

denominado como aluno A; iv) diários críticos dos pibidianos professores do projeto;

e v) modelo didático do gênero.

GÊNEROS DE TEXTO COMO OBJETOS/INSTRUMENTOS DE ENSINO DA LÍNGUA

Bronckart (2003) ressalta que, para se comunicar, o indivíduo conta com um

repertório de gêneros textuais, configurações de enunciados pré-existentes em uma

comunidade linguística, e que esses gêneros expressam as atividades humanas por

meio de ações de linguagem, essas materializadas sempre em textos: “sequências

organizadas de comportamentos verbais, orais ou escritos, que são atribuíveis a um

agente singular, num contexto determinado de ação” (BRONCKART, 2003, p. 57).

Nessa visão, o gênero tem um papel central na mediação das interações

discursivas, pois age como um instrumento que possibilita a comunicação: “A

escolha de um gênero se faz em função da definição dos parâmetros da situação

que guiam a ação. Há, pois, aqui uma relação entre meio-fim, que é a estrutura de

base da atividade mediada” (SCHNEUWLY, 2004, p, 27). Schneuwly (2004, p. 28)

amplia essa visão e lança a metáfora do gênero como megainstrumento da

comunicação: “uma configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos

(sobretudo linguísticos, mas também paralinguísticos), permitindo [ao sujeito] agir

eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação”.

Numa vertente didática do ISD, Schneuwly e Dolz (2004, p.74) se apropriam

da premissa do gênero como megainstrumento, construída a partir dos estudos do

2 Planejamento da SDG desenvolvida, onde consta o título de cada oficina, seus objetos/conteúdos,

seus objetivos e atividades didáticas.

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Grupo de Genebra, para propor a tese de que é “através dos gêneros que as

práticas de linguagem materializam-se nas atividades dos aprendizes”. Nesse

sentido, postulam um interacionismo instrumental, o qual incide sobre as “relações

ensino-aprendizagem e sobre os diferentes instrumentos que podem ser construídos

para permitir a transformações dos comportamentos” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004,

p. 47). Para essa proposta didática, o gênero deve ser “utilizado como meio de

articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares” (SHNEUWLY; DOLZ,

2004, p. 71), agindo, assim, como instrumento de mediação da apropriação dos

saberes da/sobre a língua.

Por outro lado, na concepção defendida pelos pesquisadores do ISD, assim

na nossa, quando o gênero adentra a sala de aula, há um desdobramento, pois “o

gênero não é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo tempo,

objeto de ensino-aprendizagem” (SHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 76). Vemos, assim,

que dependendo do ponto de vista, o gênero pode ser considerado um instrumento

(meio) ou um objeto (fim) do ensino da língua.

Em consonância com os autores, acreditamos que nos apropriando dos

gêneros (tanto no âmbito da leitura como produção), estamos dominando suas

formas de realização, as quais condicionam a interação da qual ele é mediador.

Dessa forma, dominando os processos de leitura e produção de determinado

gênero, o aluno poderá desenvolver letramentos situados, específicos, que o levam

à competência sociocomunicativa. E de quanto mais gêneros ele se apropriar, mais

terá a possibilidade de compreender e se expressar em diversas esferas de

comunicação, como aponta Barros (2011, p. 138)

Ao dominar determinado gênero, o indivíduo é capaz de gerenciar regras de conduta, seleção linguístico-discursiva e estruturas de composição utilizadas: é a competência sociocomunicativa (tanto almejada pelo ensino), e que leva os falantes/aprendizes à detecção do que é ou não adequado em cada prática social. E ainda, quanto mais competente e experiente for o indivíduo, mais proficiente ele será na utilização e adaptação dos gêneros e no reconhecimento das estruturas formais e enunciativas que os compõem.

Conforme afirma a autora, o desenvolvimento da competência

sociocomunicativa se constitui em um objetivo almejado pelo ensino, como

pretendido, por exemplo, nas Diretrizes Curriculares Estaduais do Paraná, que

colocam que o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa “visa aprimorar os

conhecimentos linguísticos e discursivos dos alunos, para que eles possam

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compreender os discursos que os cercam e terem condições de interagir com esses

discursos” (PARANÁ, 2008, p. 50). Nesse sentido, compreendemos que os alunos

precisam ter acesso a conhecimentos do funcionamento dos textos e de suas formas

típicas (os gêneros), o que é possibilitado pelo trabalho didático com os gêneros

textuais. Isso porque, nessa perspectiva, se resgata a prática social na qual o gênero

está inserido, dando ênfase à ação de linguagem e não somente à estrutura formal

do texto. Além disso, considera-se o texto na sua completude e não apenas os

elementos linguísticos/gramaticais de forma fragmentada, foco, por exemplo, do

ensino gramatical tradicional (isso não significa que eles sejam ignorados, mas que

são focados por um outro viés, o da sua funcionalidade no texto/gênero). Com isso,

aumentará a possibilidade de sujeitos-aprendidizes interagirem por meio dos vários

gêneros legados pelas gerações anteriores e que estão presente em nossa vida

social.

Como salienta Antunes (2002), ao trabalhar pelo viés dos gêneros, se

beneficia a ampliação da competência dos alunos para produzirem e

compreenderem textos orais e escritos, não se fixando, assim, na apreensão de

fatos gramaticais que, muitas vezes, se fazem difusos e descontextualizados. Dessa

forma, ao considerar os gêneros textuais como objetos/instrumentos de ensino da

língua é afirmar a necessidade de um ensino contextualizado, diferentemente de se

estudar apenas a gramática (normativa ou de cunho metalinguístico), como se no

ato comunicativo só importassem a apreensão e a memorização de regras e

elementos linguísticos isolados.

Dolz e Schneuwly (2004) explicam que, na realidade, os gêneros sempre

estiveram presentes na sala de aula, “pois toda forma de comunicação – portanto,

também aquela centrada na aprendizagem – cristaliza-se em formas de linguagem

específicas” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 75-76), ou seja, em gêneros. Portanto,

não seriam os gêneros um objeto de ensino totalmente estranho à realidade do

aluno. Porém, diferentemente da tradição escolar, o trabalho didático a partir da

perspectiva dos gêneros como objetos/instrumentos de ensino deve ser

sistematicamente pensado, ajudando a responder às exigências comunicativas com

as quais o aluno é confrontado na escola e também fora dela.

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Para colocar em prática essa “sistematização”, autores genebrinos propõem

uma engenharia didática (cf. DOLZ, 2016) a partir da centralidade da metodologia

das SDG, tema do próximo tópico.

METODOLOGIA DAS SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS DE GÊNEROS

Para o trabalho com os gêneros textuais, consideramos como ferramenta de

ensino a SDG (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004), que se inscreve numa

perspectiva construtivista, interacionista social, e toma como objeto de ensino de

línguas, neste caso, a Língua Portuguesa, os gêneros textuais escritos ou orais. A

metodologia das SDG criada pelo grupo de pesquisadores genebrino filiados ao ISD

tem como pilar teórico pressupostos sociointeracionistas baseados nos estudos

sobre desenvolvimento e aprendizado de Vygotski (20033).

Os autores genebrinos propõem, assim, um ensino sistematizado da língua, a

partir da sequenciação de atividades voltadas para a apropriação de gêneros

textuais. A SDG, na concepção do ISD, configura-se em um conjunto de atividades

escolares organizadas em torno de um gênero textual, que possibilitaria o domínio

de uma determinada prática de linguagem, permitindo ao aluno falar e escrever de

maneira adequada em determinada situação comunicativa (DOLZ; NOVERRAZ;

SCHNEUWLY, 2004).

Por meio do desenvolvimento de atividades, organizadas nas etapas

“apresentação da situação”, “produção inicial”, “módulos” e “produção final”, os

alunos vão desenvolvendo capacidades de linguagem para se tornarem ator no ato

de produzir um determinado gênero textual. O objetivo é que desenvolvam

capacidades de linguagem para todos os níveis, de forma a compreenderem o

contexto de produção do gênero, as suas marcas linguístico-discursivas, e seu modo

de funcionalidade.

De acordo com essa vertente, é possível ensinar a produção de textos na

escola e, para isso, os professores devem “criar contextos de produção precisos,

efetuar atividades ou exercícios múltiplos e variados”, pois “é isso que permitirá aos

alunos apropriarem-se das noções, das técnicas e dos instrumentos necessários ao

desenvolvimento de suas capacidades de expressão oral e escrita, em situações de

comunicação diversas” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 96).

3 Cf. Barros (2013).

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A estrutura da SDG se configura da seguinte forma: 1) apresentação da

situação; 2) produção inicial; 3) módulos (podem ser vários, dependendo do contexto

e dos objetivos propostos); 4) produção final.

A apresentação da situação consiste em expor um projeto de comunicação

para os alunos, preparando-os para a produção inicial, pois é nela que há a

representação da situação de comunicação que deverá ser executada. Nessa etapa

é preciso: apresentar um problema de comunicação bem definido (a quem se dirige

a produção? Que forma assumirá? Quem participará?) e preparar os conteúdos dos

textos que serão produzidos, produzindo, assim, um projeto de classe mais “real”

para o aluno.

Na primeira produção, os alunos tentam fazer uma primeira versão do texto

oral ou escrito, revelando para o professor o que entenderam da proposta de

atividade. Deve-se lembrar que “a apresentação da situação não desemboca

necessariamente em uma produção inicial completa” (DOLZ; NOVERRAZ;

SCHNEUWLY, 2004, p. 101), portanto, a produção inicial pode ser simplificada.

Constitui-se em um momento de observação, que permitirá ao professor diagnosticar

as capacidades dos alunos para a produção do gênero e refinar e adaptar a SDG,

encaminhando suas ações futuras.

Quanto aos módulos, trata-se de trabalhar os problemas que apareceram na

primeira produção e conceder aos alunos os instrumentos para superá-los. Desse

modo, a metodologia das SDG funciona de maneira particular: parte de uma

atividade complexa, a primeira produção, para então trabalhar as dificuldades

encontradas nela, encaminhando, assim, para outra atividade complexa novamente,

a produção final.

O movimento geral da sequência didática vai, portanto, do complexo para o simples: da produção inicial aos módulos, cada um trabalhando ou outra capacidade necessária ao domínio de um gênero. No fim, o movimento leva novamente ao complexo: a produção final. (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 103)

Nessa etapa – nos módulos – os alunos devem ter claro para si o destinatário

de seu texto, as técnicas necessárias para elaborá-lo, sua finalidade e os meios de

linguagem mais eficazes para escrevê-lo. O professor precisa variar os modos de

trabalho, diversificando as atividades, para que os aprendizes tenham acesso, “por

diferentes vias, às noções e aos instrumentos, aumentando, desse modo, suas

Anais do SIDIALE

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chances de sucesso” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 105). De acordo

com os autores, o professor pode, por exemplo, propor atividades de observação e

análise de textos, podendo “comparar vários textos de um mesmo gênero ou de

gêneros diferentes etc.”; realizar tarefas simplificadas de produção de textos,

concentrando-se “num aspecto preciso da elaboração”, como, por exemplo, inserir

uma parte que falta num texto, revisá-lo, “elaborar refutações encadeadas ou a partir

de uma resposta dada, encadear com uma questão etc.”; elaborar uma “linguagem

comum” para poder interagir com textos, seja para comentá-los ou criticá-los (DOLZ;

NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 105).

Em nosso texto, nos referimos aos módulos com a nomenclatura de “oficinas”,

pois esse termo é mais próximo do contexto brasileiro, mas conservamos seus

objetivos e estrutura.

O educador deve propor exercícios e atividades que trabalhem dimensões do

gênero textual separadamente, de forma que o aluno foque sua atenção nos

elementos novos que necessita aprender, como aponta Dolz (2016). O autor propõe

que o professor elabore atividades que partam de tarefas mais mediadas pelo

professor e, aos poucos, essas sejam mais voltadas para a autonomia do aluno.

Para sua motivação, o aluno deve ver na realização dos exercícios um meio de

desenvolvimento pessoal. O professor deve, também, explicitar seus objetivos, para

que os alunos compreendam a finalidade das atividades realizadas, ou seja, quais

capacidades o aluno desenvolverá mediante sua realização.

Quanto à produção final, é nela que os alunos põem em prática as

capacidades adquiridas para a elaboração do gênero. Embora essa fase seja

denominada de “final”, ela pressupõe um processo de revisão e reescrita textual,

para que o aluno possa, assim, destinar seu texto à “publicação”, ou seja, finalizar a

interação.

A SDG, como vemos, busca preparar os alunos para dominar sua língua nas

situações mais diversas da vida cotidiana, já que podem ser trabalhados textos das

mais variadas esferas de comunicação, ajudando o aluno a desenvolver uma relação

consciente com o uso da linguagem. E, como coloca Barros (2013, p. 78), nessa

metodologia, o professor não pode apenas apresentar exemplos do gênero a ser

ensinado com questões de busca de respostas no texto, pois “[...] é necessário todo

um trabalho sistematizado para que o aluno possa realmente apropriar-se de uma

Anais do SIDIALE

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determinada prática de linguagem e não apenas tornar-se um ‘ledor’ de textos ou um

‘preenchedor de linhas textuais’”.

Em relação às questões de gramática, sintaxe e ortografia, os autores

genebrinos sugerem que essas sejam abordadas de forma paralela ao trabalho

realizado na SDG, já que “[...] ao produzir um texto, o aluno confronta-se

forçosamente com problemas provenientes desses domínios” (DOLZ; NOVERRAZ;

SCHNEUWLY, 2004, p. 115), não necessitando, assim, ser realizado um trabalho

sistemático no interior da SDG, pois o objetivo do trabalho é a aquisição de condutas

de linguagem. Ou seja, os autores não propõem, necessariamente, a realização de

módulos que trabalhem especificamente questões transversais da escrita, já que a

finalidade das SDG é desenvolver capacidades para a produção de um gênero

específico. Dessa forma, os módulos deveriam propor atividades relacionadas às

características (de qualquer natureza) desse gênero. Ou seja, questões relacionadas

à ortografia, morfossintaxe da frase, pontuação, etc. nem sempre são específicas de

uma prática de linguagem. Entretanto, os autores falam a partir de num contexto

francófano de ensino, onde há uma divisão entre aulas de gramática e aulas de

produção e leitura textual. No Brasil, embora não seja prática estabelecida, os

documentos oficiais da educação (cf. BRASIL, 1998; PARANÁ, 2008) recomendam a

prática de análise linguística (cf. GERALDI, 2003), para que os elementos

gramaticais sejam abordados de forma contextualizada (cf. ANTUNES, 2014). Nesse

sentido, no contexto brasileiro, nada impede que as SDG tenham módulos que

abordem problemas transversais da escrita diagnosticados nas produções dos

alunos ou que esses sejam objetos nas atividades de revisão textual.

Como explica Gonçalves (2010, p. 86),

Trabalhar com as SDs evita uma abordagem naturalista, segundo a qual, basta fazer um texto escrito, por exemplo, para que emerja no estudante uma nova capacidade; evita também uma abordagem impressionista. Sobretudo, consubstanciando nosso ponto-de-vista, a prática de SDs pressupõe uma perspectiva interacionista e social [...].

Mediante o desenvolvimento de SDG, o aluno entra em contato com os

variados instrumentos de comunicação, os gêneros, tomando consciência de sua

funcionalidade, aprendendo a serem seus leitores e produtores, o que permite o

desenvolvimento de múltiplas capacidades de linguagem orais e escritas para a

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28

atuação em práticas sociais essenciais para atuação no mundo “fora da sala de

aula”.

4 Análise da intervenção didática mediada pela metodologia das SDG: o gênero “resenha de filmes” como objeto unificador do projeto de ensino

Para esta pesquisa, como já antecipamos, os dados foram gerados a partir do

seguinte corpus: 1) a textualização da sequência didática da resenha de filmes

produzida pelo grupo de pibidianos (professores em formação inicial,

supervisionados por um docente da Educação Básica e coordenador por um

professor da universidade), com as atividades planejadas para os alunos e as

instruções para o professor (caderno do aluno e do professor); 2) três produções

textuais de um dos alunos assistidos pelo projeto, que de forma geral, representa a

recorrência de erros e acertos de toda a turma. Denominaremos o estudante como

aluno A; c) os diários dos professores-pibidianos; 4) modelo didático do gênero

resenha de filmes. Para uma visualização geral da SDG, trazemos uma sinopse,

contendo os objetos de ensino e as atividades propostas ao longo do projeto.

Quadro 1 – Sinopse da sequência didática do gênero “resenha de filmes”

TÍTULO DAS OFICINAS/ OBJETOS DAS OFICINAS

ATIVIDADES DAS OFICINAS

OFICINA 1: Conhecendo as preferências cinematográficas dos alunos - Repertório de produções cinematográficas dos alunos e conhecimento sobre a dinâmica dos filmes (clichês) - Categorias de filmes (gêneros – drama, etc.) - Critérios de avaliação de filmes

1. Discussão oral dos filmes que os alunos mais gostam, a partir de clichês de filmes. 2. Atividade escrita de elaboração de uma lista, individual, dos 10 melhores filmes selecionados pelos alunos para auxiliar na escolha consulta ao livro: “1001 filmes para assistir antes de morrer”, de Steven Jay Schneider. Posterior separação dos filmes em categorias. 3. Atividade oral, por meio de slides, das categorias de filme (comédia, suspense, animação, documentário, musical e ficção científica). 4. Discussão sobre a categorização dos filmes feita anteriormente por eles. 5. Apresentação de partes do vídeo: “10 FILMES QUE MAIS VENCERAM O OSCAR!” (acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=C5BNtF84c44) e de um recorte do vídeo “5 MAIORES INJUSTIÇADOS DO OSCAR!” (acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=ZXJQjmrL59o). 5. Leitura do texto “Top 10 filmes mais premiados no Oscar de todos os tempos”, para discussão sobre os argumentos apontados tanto nos vídeos quanto no texto em relação aos motivos de determinados filmes terem sido premiados ou não. 7. Discussão oral sobre os filmes apontados pelos alunos e também alguns ganhadores de Óscar.

OFICINA 2: Conhecendo o projeto PIBID

1. 1. Apresentação oral do projeto por meio de edições anteriores do Jornal PIBID (1ª edição-2014 e 2ª

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29

- Projeto PIBID

edição-2015). 2. 2. Análise oral do layout dos dois exemplares do

jornal. 3. 3. Leitura das sinopses de filme publicadas nesses

jornais escolares. 4.

OFICINA 3: Compreendendo o contexto de produção do gênero - Contexto de produção - Capacidades de ação

5. 1. Discussão oral sobre a diferença entre sinopse e resenha de filme.

6. 2. Discussão oral sobre as características de contexto de produção, a partir da leitura de um exemplo de resenha de e sinopse de filme.

7. OFICINA 4: Escolhendo o filme - Filme-alvo do projeto

1. Produção de uma lista coletiva dos filmes preferidos dos alunos pertencentes aos diversos gêneros cinematográficos, no quadro, contendo filmes sugeridos por alunos e alguns selecionados previamente pelo professor. 2. Votação para a escolha do filme a ser resenhado.

OFICINA 5: Lendo resenhas de filme - Contexto de produção - Plano textual global

1. Rodas de leitura com diversos exemplares de resenhas de filme em jornais e revistas (Folha de Londrina, Todatten).

OFICINA 6: Assistindo e discutindo o filme: Jurassic Park III - Informações sobre a produção cinematográfica do filme- Enredo do filme: Jurassic Park III - Categorias de análise de filme

1. Leitura coletiva da ficha técnica do filme Jurassik Park III 2. Leitura coletiva da sinopse do filme Jurassic Park III 3. Exibição do filme Jurassic Park III 4. Discussão oral sobre algumas categorias do filme: efeitos especiais, enredo, trilha sonora, atores, etc. 5. Atividade escrita de resposta à pergunta: qual seu parecer sobre o filme assistido?

OFICINA 7: Assistindo e avaliando o filme: Jurassic World - Informações sobre a produção cinematográfica do filme - Enredo do filme: Jurassic World - Categorias de análise de filme - Comparação crítica dos filmes Jurassik Park III e Jurassik World

1. Leitura coletiva da ficha técnica do filme Jurassik World 2. Leitura coletiva da sinopse do filme Jurassic World 3. Exibição do filme Jurassic World 4. Questionário escrito (individual) para a avaliação de categorias do filme Jurassik World 5. Atividade comparativa (escrita) entre os filmes assistidos.

OFICINA 8: Produzindo a primeira versão da resenha - Primeira produção do gênero “resenha de filme”

1. Primeira produção do gênero “resenha de filme” via ficha de avaliação do filme Jurassik World

OFICINA 9: Revisando coletivamente a primeira produção do gênero “resenha de filme”

1. Atividade por meio de slides para exposição das dificuldades contextuais (objetivo da resenha, destinatário, características gerais do gênero, etc.) e discursivas (resumir a história do filme, colocar uma avaliação do filme, colocar título, etc.) mais recorrentes dos alunos encontradas na primeira produção do

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- Contexto de produção do gênero - Plano textual global do gênero - Avaliação e opinião - Tipos textuais: descritivo e argumentativo - Modelos de sinopses de filme

gênero “resenha de filme” 2. Discussão oral com sugestões de como reescrever as resenhas de filme (o que mudar, o que acrescentar ou tirar, etc.) 3. Leitura de modelos de sinopses de filme.

OFICINA 10: Reescrevendo - Produção da segunda versão do gênero “resenha de filme”

1. Atividade de reescrita (segunda versão) da resenha com base na revisão coletiva realizada em sala.

OFICINA 11: Analisando a atuação do personagens e os efeitos especiais do filme Jurassik World - Atuação dos personagens do filme - Efeitos especiais do filme

1. Exibição do vídeo “Making Of Jurassic World in Oahu & Kauai, Hawaii” para uma posterior discussão oral (coletiva) a respeito da atuação dos personagens do filme, tendo em vista que o filme é uma ficção científica. 2. Exibição do vídeo “Making Of Jurassic World #2 “sobre como foi montada algumas cenas, verificação dos efeitos especiais utilizados e discutir a relevância disso para o filme.

OFICINA 12: Compreendendo os passos para escrita de uma resenha - Planejamento da escrita de uma resenha de filme

1. Atividade em duplas para planejar a escrita de uma resenha de filme (jogo de tabuleiro criado pelos pibidianos).

OFICINA 13: Aprendendo como ser um crítico - Ato de avaliar

1. Leitura e análise textual: atividade de identificação (com cores diferentes) dos trechos em que há avaliação na resenha do filme “Hotel Transilvânia 2”. 2. Discussão oral sobre qual elemento está sendo avaliado em cada trecho identificado. 3. Anotação, na própria resenha, dos elementos que estão sendo avaliados. 4. Atividade escrita de análise do uso de adjetivos, modalizadores, frases adversativas e do tom utilizado pelo resenhista (irônico, áspero, neutro).

OFICINA 14: Reconhecendo gêneros do mundo do cinema - Circulação e objetivos dos gêneros

1. 1. Atividade oral de identificação de gêneros relacionados ao cinema: trailer, resenha online, capa de filme, sinopse, resenha de filme.

2. 2. Discussão oral sobre a funcionalidade desses gêneros.

OFICINA 15: Conhecendo mais elementos e curiosidades sobre o filme Jurassic World - Conteúdo temático

1. 1. Leitura da reportagem “Os vilões agora são bem” com posterior discussão em relação às curiosidades sobre o filme Jurassic World.

2. 2. Atividade escrita sobre o preparo e caracterização do ator principal e discussão da fusão entre dinossauros reais que gerou o dinossauro ficcional: “Indominusrex”.

OFICINA 16: Revisando as sinopses coletivamente

1- 1. Explicação em relação ao conceito de concordância verbal e nominal com exemplificações

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- Elementos transversais da escrita: concordância, pontuação e ortografia

no quadro. 2- 2. Correção em relação à concordância em uma

frase retirada da segunda versão textual dos alunos (coletivamente).

3- 3. Correção em relação à concordância em três frases retiradas da segunda versão textual dos alunos (Dinâmica em grupos – dois).

4- 4. Correção coletiva da pontuação (dois pontos, ponto e vírgula, ponto final) em trechos da segunda versão textual dos alunos.

5- 5. Correção da pontuação de um trecho da segunda versão textual de um aluno (Dinâmica em grupos – dois).

6- 6. Correção ortográfica de palavras escritas pelos alunos erroneamente na segunda versão textual (Dinâmica em grupos – dois).

7- 7. Atividade de soletrar palavras escritas de forma equivocada pelos alunos na segunda versão textual (Dinâmica em grupos – dois).

OFICINA 17: Reescrevendo colaborativamente - Revisão e reescrita de erros em elementos linguísticos discursivos encontrados em uma resenha de filme de um aluno - Títulos de resenhas de filme

1. 1. Revisão e reescrita coletiva simultâneas (no quadro negro) da produção da segunda versão da resenha de filme de um aluno (foco em elementos linguísticos-discursivos)

2. 2. Discussão oral em relação a possíveis títulos que uma resenha de filme pode ter (exemplos de títulos de modelos de resenhas).

OFICINA 18: Entendendo a correção textual do professor - Correção de elementos tanto linguístico-discursivos, como ortográficos e temáticos dos textos escritos pelos alunos

1- 1. Intervenção individualizada sobre os problemas da escrita, a partir da correção feita pelo professor na segunda versão do texto dos alunos.

OFICINA 19: Escrevendo a última produção - Categorias de análise do filme (relembrar) - Avaliação do filme (reavaliar) Produção final

1- 1. Discussão oral sobre as categorias avaliadas no filme, a partir da retomada da ficha de avaliação desenvolvida na oficina 6.

2- 2. Reescrita da 3ª versão da resenha de filme com base na reflexão a respeito das categorias, nas revisões coletivas e na correção do professor.

OFICINA 20: Revisando a última produção - Problemas eventuais ainda presentes - Layout do gênero

1- 1. Atividade de digitação dos textos e seleção da foto da resenha para construção do layout da resenha.

2- 2. Atividade de construção de um painel com desenhos de dinossauros presentes no filme (Indominusrex, Velociraptors entre outros), fotos tiradas durante o projeto e a última versão da resenha produzida pelos alunos.

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Para uma melhor visualização das etapas da SDG, dividimos a análise em

subtópicos, que abrangem as etapas da metodologia da SDG proposta pelos autores

genebrinos. Com esses subtópicos, buscamos entender como as intervenções em

cada uma das etapas da metodologia contribuem para as produções dos alunos, e

em que medida a configuração de elaboração das atividades é refletida ou não

nessas produções, dentro de cada etapa da SDG. Analisamos o que foi realizado no

contexto real de intervenção em comparação com o que dizem os teóricos sobre a

metodologia.

APRESENTAÇÃO DA SITUAÇÃO

A etapa da apresentação da situação, que se configura em atividades

preparatórias para a primeira produção, foi realizada nas sete primeiras oficinas, nas

quais os pibidianos trabalharam leituras de resenhas de filmes, discutiram os filmes

preferidos dos alunos, escolheram qual seria o longa alvo da escrita da resenha e

apresentaram o projeto PIBID, levando as edições anteriores do jornal para que

visualizassem.

O objetivo dessa etapa é a delimitação de um problema de comunicação, em

que os alunos têm que ter claro em mente a quem se dirige a produção, que forma

assumirá e quem participará dela. A SDG em análise revela ter delimitado um

problema de comunicação, que mediante a proposta da publicação do Jornal PIBID,

explicitada aos alunos no projeto, cumpre o proposto de explicar quem participará

das produções, a quem se dirigirão e que formas assumirão.

Nessas sete primeiras oficinas foram trabalhadas questões relacionadas ao

contexto de produção do gênero. A partir da realização das oficinas 2 (atividades 2 e

3) e 4 (atividade 1), os alunos puderam entrar em contato com a leitura de resenhas

de filmes, tanto em jornais quanto em revistas, e discutir as diferenças entre a

sinopse e a resenha de filmes. Todas essas atividades foram trabalhadas oralmente,

ou seja, não foram planificados exercícios escritos de análise do gênero.

Como estipulado pela metodologia das SDG, foi introduzido um problema de

comunicação, em que os alunos se deparam com a prática de linguagem na qual o

gênero pertence. Diferentemente do que propõe o ensino a partir da escrita de

redações, em que se parte, normalmente, de um tema ancorado em uma tipologia

de textos (dissertação, narração, descrição) (cf. GERALDI, 1997), sem relação a

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alguma prática social exterior à escola, nessa fase inicial, os alunos foram motivados

para a escrita de um gênero que circula fora da sala de aula – a resenha de filmes. A

produção dos alunos teria destinatários específicos, já que seriam lidos pelos leitores

do Jornal PIBID. A motivação para esse projeto se deu, primeiramente, pela

apresentação das edições anteriores do jornal. Foram levados jornais PIBID das

edições anteriores para que os alunos os folheassem e conhecessem a dinâmica do

jornal. Em seguida, os professores-pibidianos expuseram o projeto e explicaram que

as melhores produções daquele ano seriam publicadas na próxima edição.

Os professores iniciaram a sequência interagindo com os alunos com várias

atividades que proporcionaram a elas saberem melhor os gostos dos alunos em

relação a filmes, o que nos permite perceber a preocupação didática em trabalhar

com um filme que envolvesse os alunos, pois assim, eles se sentiriam mais

determinados a escrever.

Nessa fase, verificamos, na análise, que há muitas atividades relacionadas ao

mundo cinematográfico, ou seja, atividades que tratam de categorias de análise de

filmes, como personagens, atores, enredo, trilha sonora, fotografia, ficha técnica,

informações técnicas sobre o filme, e etc. Assim, observamos que houve a

preocupação em se trabalhar vocabulário associado ao mundo do cinema, através

das atividades na SDG. Dessa forma, os alunos poderiam ter seu vocabulário

enriquecido. A título de visualização, apresentamos a seguir uma das atividades

elaboradas para a SDG que tratam da avaliação do filme. A atividade se encontra na

oficina 7 (atividade 4), e segundo a sinopse da SDG, tem como objeto de ensino o

trabalho com a avaliação das categorias de análise do filme.

Quadro 2 – Atividade sobre a avaliação do filme Jurassic World

AVALIAÇÃO DO FILME JURASSIC WORLD

O que achou do filme? ( ) Ótimo ( )Bom ( ) Regular ( ) Ruim

Qual sua parte preferida? R=_____________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

_______________

Qual o gênero cinematográfico do

filme?

( ) Ação ( ) Aventura ( ) Comédia ( ) Drama

Qual ou quais as cenas que mais

prenderam sua atenção?

R=_____________________________________________________________________

________________________________________________________________________

Há somente um clímax? ( ) Sim ( ) Não

Em que momento ocorre o clímax? R=_____________________________________________________________________

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Avalie as categorias do filme em até cinco estrelas

Categorias Estrelas Por quê?

Ator principal:

Atriz principal:

Ator coadjuvante:

Atriz coadjuvante:

Enredo:

Trilha sonora:

Fotografia:

Fonte: Caderno do aluno, Oficina 7, Atividade 4

Compreendemos que essa atividade pode estimular a formação de opinião a

respeito das categorias de análise dos filmes, pois trata desde elementos associados

ao enredo até a atuação dos atores, fotografia e trilha sonora. E o ato de avaliar o

filme está presente no gênero “resenha de filmes” como um dos mais importantes, já

que é esse ato discursivo que o difere da “sinopse de filmes”.

PRIMEIRA PRODUÇÃO

A primeira produção da resenha de filmes foi realizada na oficina 8. Como

colocado pela metodologia da SDG, a primeira produção serve para o professor

avaliar as capacidades dos alunos em relação à escrita do gênero, ou seja,

diagnosticar as maiores dificuldades que devem ser trabalhadas nos módulos

seguintes.

O modelo didático que orientou para a produção da SDG estrutura o gênero

“resenha de filmes” em cinco atos: descrever (a obra fílmica), narrar (o enredo),

avaliar (o filme), e, para isso, opinar e argumentar; fazendo uso de elementos

linguístico-discursivos, de forma a dar coesão ao texto. Trazemos, a seguir, a grade

de controle usada para mediar a correção e revisão das produções dos alunos do

projeto.

________________________________________________________________________

Todos atores têm uma boa atuação?

( ) Sim ( ) Não

A história é contada a partir de qual

perspectiva/personagem?

R=_____________________________________________________________________

________________________________________________________________________

Quem é o protagonista?

R=_____________________________________________________________________

________________________________________________________________________

__________

De quem foi a melhor atuação? R=_____________________________________________________________________

________________________________________________________________________

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Quadro 3 – Grade de controle para avaliação do gênero

Características da resenha de filmes Recorrência no texto do aluno

Descrever a obra Ausente

Narração do enredo do filme de forma resumida

Presente

Avaliar o filme como produto Ausente

Opinar em relação às categorias de análise (atores, enredo, fotografia, trilha sonora, efeitos especiais)

Presente

Argumentar, de forma que sustente a opinião

Ausente

Uso de conectivos e elementos coesivos Ausente Fonte: Caderno do Professor da resenha de filmes

Apresentamos abaixo a produção de um aluno que escolhemos para a

análise (que rotulamos como Aluno A). É um texto de um aluno que consideramos

que representa, de forma prototípica, as produções textuais da turma. Ou seja, é

uma produção considerada mediana: não é a pior nem a melhor. Ela representa os

problemas gerais dos alunos do projeto. Reproduzimos o texto da forma como ele foi

escrito pelo aluno.

1ª versão do aluno A

“Dois irmãos vão no parque de dinossauro que a tia trabalha o irmão mais velho não liga tanto como o

irmão mais novo. A tia manda uma mulher cuidar deles, os irmãos desaparese. Eles foram em um

brinquedo o homem mandou eles voltarem e eles não obedecem eles entram em um lugar que não

pode. A tia deles fica preocupada. Tem vários atores muito bons. No começo era um pouco ruim e

depois fica bom. A fotografia e o clímax ficou bom”.

Podemos verificar nessa primeira produção que trazemos para a análise que

o aluno produz um texto bastante narrativo, se atendo a contar o enredo do filme e

avaliar de forma simplória o filme (ruim, bom). Basicamente coloca algumas opiniões

sobre determinadas categorias cinematográficas (ator, enredo geral, fotografia e

clímax do enredo) ao final, mas sem sustentá-las, ou seja, sem apresentar razões

que embasem seu parecer.

Devemos salientar, contudo, que não se pode esperar primeiras produções

consistentes, pois, como exposto anteriormente, a produção inicial serve de

orientadora do trabalho futuro dos professores.

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OFICINAS

O trabalho a partir da primeira produção até a produção final denomina-se

“módulos”, segundo proposto pelos autores genebrinos, contudo, em nossa

pesquisa, os denominaremos “oficinas”, pois esse termo é mais comumente usado

na realidade do ensino brasileiro. Nas oficinas, o professor deve, conforme proposto

pela metodologia, intervir didaticamente para tentar sanar os maiores problemas dos

alunos diagnosticados na primeira produção, buscando diversificar as atividades de

forma a trabalhar as diversas dimensões do gênero textual por diferentes vias.

A SDG em questão possui atividades diversificadas. Foram trabalhadas

atividades escritas e orais de análise de textos, discussão sobre as categorias de

análise dos filmes assistidos, leitura de resenhas de filmes e reportagem de revista,

exibição de vídeos do behind the scenes do filme com entrevista com os atores e

edição dos efeitos visuais, e há também um jogo em que o objetivo era ordenar os

passos de escrita de uma resenha de filmes. Acreditamos que essa diversificação

contribui para que os alunos não se cansem de todo o processo da SDG, já que leva

tempo para desenvolvê-la, e eles não estão acostumados com atividades

sistematizadas que tomam grande período de tempo em torno de um mesmo

objetivo.

Na primeira oficina, após a realização da primeira produção, oficina 9, foi

realizada uma revisão coletiva, trabalhando vários conteúdos em apenas uma

oficina, como uma espécie de revisão do contexto de produção, plano textual global,

avaliação e opinião, sequência argumentativa, e ainda levaram dois exemplos de

resenhas de filmes. Para isso, fizeram uma apresentação de slides com trechos da

primeira produção dos alunos, para que pudessem comentar seus erros.

Apresentamos baixo um dos dispositivos didáticos (slides) usados na oficina de

revisão coletiva.

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Figura 1 – Dispositivo utilizado na oficina 9 de revisão e reescrita

Fonte: Caderno do Aluno da resenha de filmes, Oficina 9

Observamos que foi diagnosticada a falta do ato de avaliar nas produções dos

alunos. Então, houve discussão e atividades que focassem isso. Esta oficina,

segundo o diário de campo, foi muito produtiva, pois os alunos participaram com

entusiasmo e pareceram compreender vários erros que haviam cometido na primeira

produção da resenha, conforme relata um dos pibidianos.

“A atividade foi bastante proveitosa, pois os alunos demonstraram ter entendido o que as professoras discutiram. Após sanar erros trazendo os próprios textos dos alunos, os professores trouxeram um exemplo de resenha para discutir com eles, destacando os três elementos principais de uma resenha de filmes: apresentação do filme, descrição e crítica. Eles parecem ter entendido, pois participaram de maneira satisfatória das discussões” (DIÁRIO A).

Entretanto, observamos que a atividade não auxiliou muito nos resultados da

segunda versão do texto, feita logo na oficina seguinte. Após a atividade de revisão

coletiva, foi solicitado aos alunos que reescrevessem os seus textos (oficina 10),

tentando colocar em prática tudo que haviam discutido sobre o gênero. Porém,

identificamos que a solicitação para a realização de uma segunda versão foi feita

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muito antecipadamente, já que não se havia feito, além da revisão coletiva, qualquer

atividade sistemática que ajudasse os alunos a sanar um dos principais problemas

detectados na primeira produção – a dificuldade de avaliação do filme com

sustentação argumentativa. Na nossa análise, verificamos que poucos textos

apresentaram melhoras muito expressivas em relação a esse ponto. O aluno A, cujo

processo estamos analisando, por exemplo, como podemos observar, acrescenta

três trechos em relação à primeira produção: 1) um item que descreve/apresenta o

dia do lançamento do livro; 2) mais dois aspectos na avaliação (ação, personagem

[dinossauro]), mas sem sustentação, como na primeira versão (bom, legal); 3)

ampliação da narração do enredo, completando uma frase antes incompleta e

trazendo um fato novo. Além de acrescentar um título.

1ª versão do aluno A 2ª versão do aluno A

“Dois irmãos vão no parque de dinossauro que a tia trabalha o irmão mais velho não liga tanto como o irmão mais novo. A tia manda uma mulher cuidar deles, os irmãos desaparese. Eles foram em um brinquedo o homem mandou eles voltarem e eles não obedecem eles entram em um lugar que não pode. A tia deles fica preocupada. Tem vários atores muito bons. No começo era um pouco ruim e depois fica bom. A fotografia e o clímax ficou bom”.

Jurassic Word sua crítica “Dia 11 de junho de 2015 foi lançado. Tem vários atores muito bom, no começo é um pouquinho ruim e depois era muito bom a fotografia e o clímax ficou bom, a aventura, ação é muito bom e é legal o dinossauro. Dois irmãos vão no parque de dinossauro que a tia trabalha. A tia manda uma mulher cuidar deles. Os irmãos desaparece. Eles foram em um brinquedo, o homem mandou eles não voltarem mas eles não obedeceram eles entram em um outro lugar que não pode. A tia fica preocupada com os sobrinhos e tem um relacionamento com o homem que cuida dos dinossauros”.

Legenda: Azul (narração do enredo) / Vermelho (avaliação) / Preto (descrição do filme como produto) / Grifo de qualquer cor (inclusão de partes na segunda versão).

Como vemos, o aluno, além de apresentar, mesmo que sucintamente o filme

(dia do lançamento - aspecto trabalhado na oficina de revisão coletiva), observa a

incompletude da frase “A tia deles fica preocupada”, completando-a com a

informação “com os sobrinhos” e acrescenta o fato de a tia ter “um relacionamento

com o homem que cuida dos dinossauros”. Essa ampliação, a priori, pode ser

avaliada como insignificante, mas mostra uma observação mais atenta do aluno para

seu texto e uma autonomia em selecionar um acontecimento que julga importante

colocar no resumo do enredo, para compor sua resenha.

Em relação ao teor avaliativo da resenha, é interessante notar que o aluno

desloca a avaliação do final da resenha para o início. Isso pode ser reflexo do

modelo textual apresentado na avaliação coletiva, que traz pareceres logo no início

do texto. Entretanto, também é possível supor que ele, depois da revisão coletiva,

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39

tenha percebido a importância do processo avaliativo na resenha, por isso, sem ter

muitas ferramentas para melhorar seu parecer, desloca os trechos opinativos para o

início do texto e acrescenta mais itens no seu parecer, porém, sem aprofundá-los ou

justificar o seu ponto de vista.

Na oficina de número 11, os alunos puderam assistir a vídeos do behind the

scenes do filme, que mostram como se dá a filmagem da obra, a edição das cenas e

entrevista com os atores. Os objetos de ensino dessa oficina são a atuação dos

personagens e os efeitos especiais presentes no filme, que podem aumentar o

repertório temático dos alunos.

A oficina 12 trabalhou o plano textual global do gênero, mediante uma

atividade de tabuleiro em que os alunos tinham que ordenar os passos de escrita da

resenha de filmes: título, descrição do filme, relato do enredo, avaliação,

argumentação e assinatura. A elaboração dessa atividade se justifica pelo fato de

que apenas algumas produções continham todos esses passos, e o trabalho com ela

poderia auxiliar os alunos à visualização desses elementos da escrita da resenha de

filmes.

Os alunos leram, na oficina 13, atividade 1, uma resenha do filme “Hotel

Transilvânia” e identificaram os trechos em que o autor avalia algum elemento do

filme. Já na atividade 4 da mesma oficina foram abordados, mediante questões de

identificação, o ato de avaliar, o tom da avaliação e o uso de adjetivos e conjunções

adversativas no ato de avaliar, como mostra a Figura 4.

Figura 2 – Atividade 4, oficina 13

1- Identifique no trecho a seguir quais adjetivos o crítico da resenha utiliza para caracterizar a trilha sonora em seguida explique qual a influência deles para o texto. “Destaque também para a trilha sonora que combina perfeitamente com o tom mais alegre e divertido do longa, bem como a modernidade que os monstros já apresentam ter”. 2- Identifique no trecho a seguir o uso de conjunção adversativa em seguida explique qual o sentido ela traz para o texto (positivo, negativo). “Hotel Transilvânia 2 nos mostra alguns temas interessantes, não só como a modernidade que chega ao hotel, mas a aceitação do diferente, que também esteve presente no primeiro filme”. 3- Identifique no trecho a seguir qual categoria do filme está sendo avaliado. Em seguida responda se a avaliação é positiva ou negativa depois justifique sua resposta por meio da análise dos adjetivos usados. Por fim encontre o conectivo adversativo do trecho e explique qual o sentido que ele traz para o texto. “Com boas cenas de ação e bom efeitos especiais o filme, que foi lançado recentemente em DVD e Blu-Ray, é uma ótima recomendação para ser visto em família, ou se você estiver sozinho e quiser dar boas risadas neste Carnaval!”

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Observamos que o uso do conectivo “mas” foi didatizado, no entanto, não foi

elaborada uma atividade que tratasse com mais sistematização dos conectivos, de

forma mais ampla e os alunos, de forma geral, como pode ser observado na

produção do aluno A não tinham um repertório amplo desses elementos. Porém, a

partir dessa atividade, os alunos tiveram a oportunidade de tomar consciência sobre

o funcionamento do “mas”, no entanto, na resenha de filmes outros conectivos

podem ser mobilizados.

Nas oficinas seguintes, a SDG focalizou atividades sobre o mundo

cinematográfico, prepararam atividade escrita a partir da leitura de uma reportagem

que tematizou a criação dos dinossauros, etc. Percebemos que a grande

preocupação dos professores era de os alunos terem subsídios para avaliarem as

categorias cinematográficas do filme assistido, por isso levaram muitas atividades

que as abordassem. Porém, verificamos a falta de atividades mais pontuais sobre o

ato de avaliar, com uma produção simplificada, por exemplo, em que poderia ser

apresentada uma produção em que houvesse a descrição do filme, o relato do

enredo, e pedisse que os alunos avaliassem a obra fílmica.

A SDG também dedicou uma oficina aos problemas transversais de escrita

(cf. DOLZ, GAGNON, DECÂNDIO, 2010). Houve a elaboração de atividades de

competição de correção dos erros ortográficos, de concordância e pontuação, de

forma que não abordassem esse domínio da língua de forma maçante. Houve a

explicação do conceito de concordância (oficina 16), a fim de que os alunos

corrigissem sentenças em que a concordância tinha sido feita de forma inadequada

dentro de seus próprios textos.

Segundo a metodologia proposta pelos autores de Genebra, não há

necessidade de trabalhar esses elementos de forma sistematizada no interior da

SDG, pois o foco não é a memorização de regras gramaticais, mas sim a aquisição

de condutas de linguagem. Contudo, se a gramática for trabalhada de forma

contextualizada, há espaço para esse domínio da língua, como proposto por vários

autores brasileiros a partir do conceito de análise linguística.

Observamos que o trabalho com as capacidades transversais foi realizado de

forma com que os alunos se atentassem para erros cometidos em relação a isso, no

entanto, como a última produção foi realizada algumas oficinas depois dessa

atividade, e anterior a uma correção individualizada do professor, que corrigiu

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

41

problemas de todos os níveis de forma resolutiva, não conseguimos dizer se esse

trabalho teria resultados positivos.

Antes da produção final, houve o desenvolvimento de mais uma oficina de

revisão coletiva (oficina 17), além de uma correção individual das produções, na qual

abordaram erros de todos os níveis. Observamos que os professores dão bastante

credibilidade à revisão coletiva, pois realizaram três durante toda a sequência. Isso

pode se dar ao fato de que quando realizam uma revisão coletiva, escrevem

juntamente com os alunos, e eles podem ver na prática o desenvolvimento da

escrita, com a ajuda dos professores, ou porque, conforme aponta Gomes (2006, p.

10), “por meio de interacção e do confronto de versões, [os alunos podem] descobrir

novas possibilidades para a construção de um texto concreto”.

Observamos, pois, que os objetos de ensino escolhidos pelos professores nos

módulos foram relacionados ao contexto de produção, plano textual global, o ato de

avaliar e opinar, elementos transversais da escrita, aspectos temáticos, a partir das

categorias de análise. O trabalho com todos esses objetos citados se revela de

fundamental importância, mas verificamos que dentre as atividades não

encontramos exercícios que tratassem do ato de argumentar, o que revela a falta de

êxito da maioria dos alunos ao mobilizar esse ato de linguagem.

De todas as etapas da SGD, os módulos são de suma importância, conforme

salientam os autores genebrinos, pois são neles que o docente deve trabalhar os

problemas de todas as capacidades linguísticas, de ação, discursiva e linguístico

discursiva, e trabalhá-las de forma variada para que os alunos consigam adquirir

essas capacidades, que serão refletidas em sua produção final. Caso contrário, a

última produção do texto do aluno pode ficar longe do esperado pelo professor.

PRODUÇÃO FINAL

A etapa da produção final é a última fase da SDG e se constitui no processo

de revisão e reescrita para se chegar à versão final do texto do aluno, depois de ter

percorrido todo o caminho das outras etapas da sequência. Nela, é possível avaliar

todo o trabalho desenvolvido desde a apresentação da situação, já que o texto do

aluno corrobora para vermos se a sequência foi ou não um bom instrumento de

ensino e aprendizado da Língua Portuguesa.

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T E X T O S C O M P L E T O S

42

A última produção foi realizada na penúltima oficina, de número 18, pois a

última oficina foi destinada à correção de erros gramaticais ainda presentes nos

textos para a seleção dos melhores, que como dito antes, seriam publicados no

jornal PIBID.

Trazemos para nossa análise a versão final do aluno A, o qual estamos

acompanhando o processo. Essa nova versão, como vemos, não há avanço em

relação à argumentação dos pareceres sobre o filme, porém o aluno amplia o ato

avaliativo, trazendo um ditado popular para ilustrar seu posicionamento (o filme, na

avaliação do aluno, começa ruim mas termina bem) e um novo adjetivo –

surpreendente – para avaliar o final do filme. Há também a adição dos nomes dos

atores entre parênteses, ao citar o personagem correspondente, característica

prototípica das resenhas de filmes, trabalhada durante as oficinas, assim como a

apresentação do nome do filme e sua duração, uma vez que desde a primeira

versão não havia referência ao filme.

1ª versão do aluno A 2ª versão do aluno A 3ª versão do aluno A “Dois irmãos vão no parque de dinossauro que a tia trabalha o irmão mais velho não liga tanto como o irmão mais novo. A tia manda uma mulher cuidar deles, os irmãos desaparese. Eles foram em um brinquedo o homem mandou eles voltarem e eles não obedecem eles entram em um lugar que não pode. A tia deles fica preocupada. Tem vários atores muito bons. No começo era um pouco ruim e depois fica bom. A fotografia e o clímax ficou bom”.

Jurassic World sua crítica “Dia 11 de junho de 2015 foi lançado. Tem vários atores muito bom, no começo é um pouquinho ruim e depois era muito bom a fotografia e o clímax ficou bom, a aventura, ação é muito bom e é legal o dinossauro. Dois irmãos vão no parque de dinossauro que a tia trabalha. A tia manda uma mulher cuidar deles. Os irmãos desaparece. Eles foram em um brinquedo, o homem mandou eles não voltarem mas eles não obedeceram eles entram em um outro lugar que não pode. A tia fica preocupada com os sobrinhos e tem um relacionamento com o homem que cuida dos dinossauros”.

Jurassic World sua crítica “Dia 11 de junho de 2015 foi lançado o filme Jurassic World com duração de 2h 05min, tem vários atores muito bons. Dois irmãos (Zach e Gray) vão no parque de dinossauros que a tia (Bryce Dallas) trabalha. A tia manda uma mulher cuidar deles os irmãos desaparecem. Eles foram em um brinquedo, o homem mandou eles não voltarem mas eles não obedeceram eles entram em um outro lugar que não pode. A tia fica preocupada com os sobrinhos e tem um relacionamento com o homem (Chris Pratt) que cuida dos dinossauros. E no meio da confusão, o dinossauro tinha escapado da jaula do parque. O final é muito surpreendente eu gostei muito. No começo é um pouquinho ruim e depois era muito bom “sabe aquele ditado que quando alguma coisa começa ruim e acaba bom”. A fotografia e o clímax ficou bom, a aventura, ação é muito bom e é legal o dinossauro”.

Legenda: Azul (narração do enredo) / Vermelho (avaliação) / Preto (descrição do filme como produto) / Grifo de qualquer cor (inclusão de partes na terceira versão).

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Verificamos que não há o uso de conectivos que tornam o texto mais coeso,

de forma a ligar de forma lógica as ideias, porém o texto se mantém compreensível e

claro. Isso pode se constituir em um reflexo da falta de atividades durante os

módulos que priorizassem esse importante elemento linguístico.

Apesar de os professores terem trabalhado muito com a temática do filme, e

levado vídeos e reportagens que tratassem das características técnicas do filme, não

observamos muito nos textos essas aulas refletidas.

Retornamos, então, com a grade de controle anteriormente apresentada –

figura 2 - analisando se o que foi desenvolvido, mediante os módulos, tiveram

resultados ou não da última produção do aluno.

O aluno descreveu a obra, em sua produção final, característica que não foi

encontrada em sua primeira versão. Na primeira produção ele havia opinado sobre

algumas categorias de análise, e na última versão amplia sua avaliação. Portanto,

averiguamos que sua capacidade analítica foi desenvolvida, apesar de não

observamos argumentação.

Devemos levantar, contudo, que houve produções muito boas, que

conseguiram atingiram as expectativas dos professores. Como, por exemplo, uma

das produções que foi escolhida para publicação do Jornal PIBID, que apresentamos

abaixo:

3ª versão do aluno B

Jurassic World (2015) “Jurassic World é um filme regular sobre dinossauros que se passa na ilha Nublar. Zack e Gray vão para a ilha para se divertirem em um parque onde sua tia trabalha. No entanto, eles se perdem da sua tia e vivem várias aventuras. No meio dessas aventuras eles são surpreendidos pelos dinossauros. A minha parte favorita é a parte em que o domador (Chris Patt) treina os dinossauros. Foi muito legal! Gostei muito, porque foi a parte que me surpreendeu, pois ele atuou muito bem. Gostei do clímax, também, porque estava emocionante, deu aquela tensão etc. Além disso, gostei da imagem, porque estava bem nítida. Se você quer assistir um filme ruim, assistam Jurassic Park 3, na minha opinião Jurassic World é melhor no climax, na trilha sonora e na imagem. A imagem do Jurassic Park 3, por ser um filme mais antigo, a imagem é horrível, o climax não é bom, não dá aquela tenção toda igual ao do Jurassic World e a trilha sonora (meu Deus!), não gostei, pois não é tão boa quanto a trilha sonora do Jurassic World e de outros filmes”. Legenda: Azul (narração do enredo) / Vermelho (avaliação) / Preto (descrição do filme como produto) / Verde (argumentação)

Identificamos que o aluno conseguiu elaborar a narração do enredo, fez

avaliações sobre várias categorias de análise, e ainda, produziu argumentação por

Anais do SIDIALE

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comparação com o outro filme assistido. Esse aluno fazia parte da turma mais velha

que frequentava o projeto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho com a sequência didática se revelou uma metodologia apropriada

para o ensino de produção de textos, mesmo que algumas produções não

conseguiram atingir o esperado, pois possibilita o trabalho pontual com as

características do gênero textual trabalhado, e colabora com a ideia de que a

produção de textos é uma tarefa difícil, que se dá de forma lenta, construída aos

poucos.

O fato de muitos alunos não apresentarem argumentos em suas produções

finais pode ser justificado pelo fato de que, como analisado, a sequência didática

não apresentou muitas atividades que focassem esse ato discursivo, ou porque eles

compreendem a argumentação como uma simples formulação de opiniões sobre as

várias categorias de análise fílmicas.

A respeito do gênero textual escolhido como instrumento de ensino e

aprendizagem da sequência didática em questão, verificamos que a resenha de

filmes se constitui em um ótimo gênero textual para ser trabalhado no ensino básico,

pois além de possibilitar a chance de os alunos aprimorarem sua capacidade de

narrar (parte da resenha em que se relata o enredo do filme), pode promover o

desenvolvimento do ato de avaliar, ou seja, dar juízo de valor às coisas, capacidade

muito valorizada nos documentos prescritivos da educação em nosso país.

Esperamos com esse trabalho contribuir com os estudos sobre o ensino de

produção de textos na disciplina de Língua Portuguesa, mediante o uso da

metodologia da SDG, que toma os gêneros textuais como objeto e instrumento de

ensino e aprendizagem, além de ajudar nas futuras discussões no projeto PIBID,

que tem como foco de suas ações docentes o desenvolvimento de SDG.

REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Língua, gêneros textuais e ensino: considerações teóricas e implicações pedagógicas. Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 65-76, jan./jun. 2002. ____ . Gramática contextualizada: limpando “o pó das ideias simples”. São Paulo: Parábola, 2014.

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45

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47

A presença da multimodalidade nas

representações sociais de pibidianos em

subprojetos de língua inglesa

Multimodality in social representations of “pibidianos” in subprojects of

English language

Leticia Vidotti dos Santos (UENP/CCP; G)

Célia Regina Capellini Petreche (UENP/CCP; PQ)

RESUMO: É perceptível, no atual cenário educacional brasileiro, uma crescente defasagem no quadro de profissionais da educação, assim como a redução pela procura de cursos de licenciatura. Considerando esta problemática, apresentamos os resultados de uma pesquisa sobre representações acerca da formação docente por meio da participação de pibidianos em dois subprojetos de língua inglesa de universidades do norte do Paraná em um encontro interinstitucional onde se discutiu o papel do Programa Nacional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) na formação inicial de professores de língua inglesa. A pesquisa pautou-se na análise de cartazes multimodais produzidos pelos referidos participantes e ancorou-se no quadro do Interacionismo Sociodiscurssivo (BRONCKART, 1999; 2006), na teoria de Kress e van Leeuwen (2006) sobre a leitura de imagens por meio da Gramática do Desing Visual, nas contribuições de Leal (2011), com sua proposta de análise semiótico sociointeracional, e de Pereira e Bueno (2015), que apresentam uma análise multimodal com base nos autores acima. Nosso objetivo geral é investigar quais representações são expressas pelos pibidianos acerca do papel do PIBID em seu desenvolvimento docente. Para prosseguirmos à definição de critérios para a análise dos dados, investigamos o conceito de representação em diferentes perspectivas e o conceito de multimodalidade. Os resultados revelam a importância do PIBID na formação inicial, além de outras representações sobre as concepções que os estudantes trazem sobre seu papel na sociedade e o papel da educação na formação ofertada pela educação básica. PALAVRAS-CHAVE: PIBID Língua Inglesa. Representações sociais. Multimodalidade.

INTRODUÇÃO A formação docente tem, cada vez mais, sido objeto de pesquisas no campo

educacional. No campo da formação de professores de língua inglesa, observamos

um número crescente de pesquisas sobre a construção de representações no

desenvolvimento profissional, tanto na formação inicial como na continuada.

Essa pesquisa tem origem na necessidade de investigação do processo de

formação inicial e desenvolvimento profissional possibilitado pela participação de

acadêmicos do curso de Letras Português/Inglês e Letras Inglês participantes do

Programa Nacional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), da Universidade

Estadual do Norte do Paraná – UENP – e da Universidade Estadual de Londrina -

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UEL. Assim, o objetivo geral da pesquisa é investigar quais representações são

expressas pelos pibidianos acerca do papel do PIBID em seu desenvolvimento

docente. Como objetivos específicos estão: a) realizar um levantamento dos temas

recorrentes no discurso dos bolsistas; e b) compreender como os pibidianos

reproduzem suas representações por meios multimodais.

O trabalho aqui desenvolvido fundamenta-se no quadro do Interacionismo

Sociodiscursivo - ISD (Bronckart, 1996) que pode ser resumidamente definido como

um construto teórico-metodológico cuja base epistêmica é a de que as condutas

humanas são o resultado de processos sociais de interação que se dão por meio de

artefatos simbólicos, especialmente a linguagem. Assim, a linguagem é

indispensável às condutas humanas por possibilitar o funcionamento das interações

sociais e do exercício da cidadania.

Nossa pesquisa também se apoia nos estudos sobre multimodalidade de

Kress e Van Leeuwen (1996/2006), criadores da Gramática do Design Visual,

doravante GDV. Segundo a visão dos autores, textos multimodais configuram-se ao

serem produzidos por meio de mais de um código semiótico, verbal e não-verbal. A

partir da união desses construtos, selecionamos os trabalhos de Leal (2001), Pereira

e Bueno (2015), e Lenharo (2016), cujas pesquisas apresentam a convergência

entre as contribuições do ISD e da GDV.

Esse aporte teórico fornece as bases para a análise de cartazes produzidos

por pibidianos acerca do papel desempenhado pelo PIBID em sua formação

docente.

Para organizar esse relato de pesquisa apresentamos quatro seções. Na

primeira tratamos do quadro teórico, apresentando o conceito de representação

social sob diferentes lentes, do conceito de representação para o ISD, os princípios

da GVD e de multimodalidade. Na segunda seção tratamos da apresentação dos

dados e do estabelecimento de critérios de análise. Na terceira, expomos os

resultados de nossas análises e encerramos com apontamentos finais e possíveis

contribuições da pesquisa.

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CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL

A noção de representação social resulta da interligação entre várias e

distintas áreas de conhecimento, em uma relação de interdependência na qual cada

campo do saber traz contribuições indispensáveis para essa construção. O sujeito

vive em uma relação de constante troca e recepção de informações, que trabalham

em harmonia na construção das representações sociais. (MOSCOVICI, 1978; 2009)

As representações sociais, no dizer de Sêga (2000), funcionam como

articuladores de ações e pensamentos, sendo componentes auxiliares na construção

do agir4 e, consequentemente, direcionando o posicionamento ideológico do sujeito.

O conceito do termo representação é, invariavelmente, ligado a cargos ou posições

que o indivíduo ocupa na sociedade em que vive. Ademais, para o autor o sistema

de representação oferece o caminho para que informações novas sejam

reconhecidas e familiarizadas.

Sousa e Villas Bôas (2011), ao analisarem trabalhos de Moscovici (1978)

enfatizam que as representações sociais funcionam como suporte para orientação

das relações e conflitos cotidianos, ou seja, são vistas como parâmetros acerca de

como conduzir o agir5.

O sujeito enquanto constrói sua representação individual, utiliza-se de

elementos sociais e sua representação sobre o mundo é resultante de fatores

extrínsecos e intrínsecos, numa relação de interdependência. (SPINK, 1993)

Seguindo posição interacionista social, Pontara, Miquelante e Cristovão

(2013), afirmam que a aprendizagem do sujeito acontece de acordo com o nível de

interação com o meio em que vive. Desse modo, a internalização de conhecimentos

se dá na mesma medida em que a aprendizagem se constitui. Logo, trata-se de dois

processos interdependentes.

Ainda se referindo ao campo das representações sociais, Machado (2008)

também recorre a Moscovici (1969) para destacar o caráter dinâmico e flexível do

termo, demonstrando que toda representação está interligada a um objeto e passível

a mudanças baseadas em experiências vividas.

4 O conceito de agir adotado neste trabalho tem uma dimensão geral, de atividade sobre o mundo, e uma

dimensão comunicativa, representada no discurso, e será apresentado adiante.

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Trazendo o conceito de representação ao campo educacional, foco desta

pesquisa, notamos que, ainda que de maneira escassa, estudiosos têm se dedicado

ao tema estabelecendo relações significativas entre a teoria das representações

sociais e o campo educacional por meio de análises de contextos singulares e

amplos (SOUSA e VILLAS BÔAS, 2011).

Machado (2008), recorrendo a Gilly (2001), também destaca a contribuição e

necessidade de entendimento da noção de representação social no meio

educacional. Isto possibilita uma visível melhora nas relações escolares, de modo a

aperfeiçoar o convívio entre o docente em formação e o ambiente com o qual

interage.

Segundo Sousa e Villas Bôas (2011), as representações sociais colaboram

para que haja compreensão sobre o pensamento do educador, acentuando quais

são as áreas do saber que ele utiliza, e, a posteriori, como as articulam com o senso

comum. Além disso, as autoras sugerem que as políticas educacionais devem ser

pensadas e moldadas considerando que a formação profissional do docente ocorre

ao passo que combina experiências de vida e ações curriculares.

Conforme indicado por El Kadri (2010), o tema identidade profissional tem

sido recorrente entre profissionais da área da educação, por ser uma ramificação

das identidades sociais que necessitam de atenção para seu contexto e

especificidades ainda pouco explorados.

Ao considerar o caráter dinâmico da constituição identitária, a autora acentua

a necessidade de aprofundar os estudos de aspectos complexos relacionados ao

tema. Assim, por meio desta descoberta acerca das representações do professor em

ação, seria possível auxiliar os docentes a compreenderem melhor a formação de

suas identidades profissionais e seu impacto em sua vida profissional.

Seguindo o pensamento de Wittgenstein (1953), Spink (1993) afirma que os

indivíduos estão em constante busca por identidades convincentes que lhes

permitem construir relações sociais. El Kadri (2010) entra em consonância com este

pensamento ao afirmar que a identidade do professor é um processo infinito de

busca. Desse modo, o docente se vê sempre à procura de algo que complemente ou

complete sua identidade.

Rios-Registro (2011), ao tomar o aluno-professor como centro de análise,

indica que este se utiliza de experiências sociais e históricas para a construção de

Anais do SIDIALE

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seus valores e princípios, e, consequentemente, modifica sua forma de agir no

contexto em que se insere.

Ao voltar a discussão para a formação do professor de Língua Estrangeira,

especialmente de Língua Inglesa, Ialago e Geraes Duran (2008) contestam a ideia

de uma formação isolada, sendo necessária uma complementação do processo

formativo para além do ambiente acadêmico.

Segundo Damasio e Geronasso (2014) uma boa formação inicial faz-se

extremamente necessário, contanto com o auxílio de políticas educacionais

eficientes. É necessário, também, segundo El Kadri (2010), que o docente, ao

decorrer de sua construção identitária, deixe de preocupar-se somente com os

aspectos linguísticos de sua formação, e passe a atentar-se também a outras áreas

que são, de certa forma, fundamentais para essa construção.

AS REPRESENTAÇÕES PARA O INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO

Considerando os conceitos até aqui apresentados, direcionamos o estudo

para os princípios do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) (Bronckart, 2007), cujos

princípios estão fundamentados na concepção de que o desenvolvimento humano é

concebido com base em “pré-constructos humanos”, relacionados a “diferentes

construções sociais já existentes em uma determinada sociedade”.

Ao vincular a aprendizagem vigotskiana aos pressupostos do Interacionismo

Sociodiscursivo, Bronckart (2007), citado por Pontara, Miquelante e Cristovão (2013)

afirma que a linguagem é constituída por um “fenômeno social e histórico”, resultante

das experiências coletivas do homem ao longo de sua vivência.

Machado (2004) afirma que os sujeitos produzem instrumentos que lhes

possibilitem “transformar a natureza e os objetos”, assim como formas semióticas,

como as línguas que regularizam as relações.

Além disso, a autora ressalta que a apropriação dos chamados constructos

históricos – ferramentas e formas semióticas – é a essência para o agir e o

desenvolvimento humano porque viabilizam a “ação do sujeito sobre a natureza e

sobre o outro”.

O conceito de agir no ISD está relacionado ao comportamento das pessoas

sobre o mundo, o agir não-verbal, e o agir por meio de textos orais e escritos. O

primeiro é chamado de agir geral, produzido em atividades coletivas construídas na

Anais do SIDIALE

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interação social, situado historicamente. Já o agir de linguagem, também produzido

sócio historicamente, é produzido na forma de ação de linguagem, necessária ao

entendimento das atividades gerais. Dito de outro modo, no ISD a linguagem exerce

um papel fundamental para a ação geral do homem sobre o mundo. (BRONCKART,

2006)

Ao relacionar os pressupostos do ISD com o objeto da pesquisa em foco – as

representações construídas por pibidianos de língua inglesa – percebo que o

trabalho desenvolvido no PIBID pode favorecer o desenvolvimento dos professores

em formação inicial. Para a melhor compreensão desse desenvolvimento,

consideramos o conceito de multimodalidade, que resumimos a seguir.

MULTIMODALIDADE

Seguindo os preceitos abordados na Gramática do Design Visual, doravante

GDV, pelas lentes de Bueno e Pereira (2015), “[...] qualquer texto cujos significados

são realizados através de mais de um código semiótico é multimodal [...].” (KRESS;

VAN LEEUWEN, 1996/2006, p.177).

Há, ainda, na teoria da GDV, uma separação entre dois tipos de participantes

no ato semiótico, são eles participantes interativos e representados, o primeiro é

caracterizado como aquele que conduz o ato da comunicação, bem como escreve,

lê, etc. Já o segundo refere-se àquele sobre quem se fala ou se produz sobre.

Em consonância com a GDV, Paes de Barros (2009) conceitua a

multimodalidade considerando textos que englobam em uma única esfera vertentes

verbais e não verbais. Ademais, fundamentando-se na Semiótica Social, que toma a

língua como um contexto sociocultural, a autora postula que “os textos são

constructos multimodais”.

Ainda em busca de construir uma definição pertinente ao termo

multimodalidade, trazemos a voz de Mendonça (2013), que, concordando com o

conceito já estabelecido, reafirma que a mescla entre signos verbais e elementos

semióticos extralinguísticos resulta em uma “tessitura de um texto multimodal”.

Adiante, seleciono em Mendonça (2013), duas implicações que advêm dos

textos multimodais, sendo: a) construção de coesão e coerência textual por meio da

junção de elementos verbais e não verbais; e b) a falta de linearidade no processo

de leitura desses textos.

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Visto que adoto neste artigo a concepção de multimodalidade como textos

que integram aspectos verbais e não verbais para a construção de sentidos globais,

buscamos em Kress (2003) três modalidades de análises em textos multimodais.

São elas: Linguística – englobando elementos verbais ou orais, tais como gramática

e vocabulário; Visual – prezando imagens coloridas estáticas ou em movimento; e

Espacial – centrando o olhar para a organização do “layout”, dos objetos dispostos e

do espaço da produção.

Além dos autores supracitados, apoiamo-nos em Lenharo (2016), que

também se embasa na teoria de Kress (2003, 2010) acerca da multimodalidade e

nos preceitos do ISD, no entanto, a autora traz a voz do teórico para discutir acerca

da presença da multimodalidade na abordagem dos “letramentos sonoro, visual,

digital, gestual, entre outros” (LENHARO, 2016).

Esta seção buscou conceituar, ainda que brevemente, os conceitos de

representação e multimodalidade, conceitos centrais para a análise dos cartazes

produzidos por pibidianos de duas universidades estaduais do norte do Paraná.

METODOLOGIA

A investigação desse trabalho tem como objeto de estudo um corpus

constituído por seis cartazes confeccionados por pibidianos em um encontro

interinstitucional do subprojeto PIBID – Língua Inglesa, no ano de 2015, sendo estes

selecionados de um conjunto de doze produções. Além disso, utilizou-se um

questionário que conduziu a elaboração dos materiais do encontro.

A escolha dos cartazes deu-se mediante uma observação acerca da

configuração das produções, bem como a quantidade de imagens e vocábulos

dispostos no campo imagético. Buscou-se por materiais como maiores números de

elementos significativos passíveis de análise, e, também, aqueles que fizessem

menções ao que lhes eram proposto nos questionários recebidos.

Apoiadas, principalmente, no quadro do Interacionismo Sociodiscursivo

(BRONCKART, 1996), que, como supracitado, toma a linguagem como um dos

principais artefatos simbólicos de interação, e nos estudos de Kress e Van Leeuwen

(1996/2006) sobre a conceituação de textos multimodais, os critérios de análise

foram estabelecidos.

Anais do SIDIALE

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54

O primeiro passo para a constituição da análise do corpus ocorreu com a

seleção dos cartazes a serem observados e a recuperação do questionário que

serviu como inspiração para essas produções.

Buscou-se, em sequência, captar a perspectiva dos participantes sobre a

realidade do ambiente escolar em que estavam inseridos, assim como a visão dos

alunos sobre a escola por meio do que era exposto em suas respectivas produções.

Adiante, realizou-se uma leitura detalhada dos elementos do texto e de seus

significados, com o intuito de identificar como esses pibidianos representavam a

contribuição do subprojeto de Língua Inglesa em seu processo de formação, e,

também, no âmbito escolar. Por fim, elaborou-se uma tabela comparativa que

buscou englobar os aspectos centrais das constatações realizadas.

A análise dos dados priorizou, justamente, o estudo dos elementos verbais e

não verbais dos cartazes, assim como a linguagem. Cabe ainda ressaltar que a

pesquisa aqui elaborada apoiou-se em uma perspectiva indutiva, pois partiu dos

dados para a teoria, tendo, ainda, se ancorado em um método de estudo de caso,

visto que privilegiamos o estudo de um grupo determinado.

ANÁLISES

Para atingirmos nossos objetivos de pesquisa, investigando quais

representações são expressas pelos pibidianos acerca do papel do PIBID em seu

desenvolvimento docente, iniciamos nossas análises com o levantamento dos temas

recorrentes no discurso dos bolsistas, materializados em cartazes produzidos

coletivamente em um encontro interinstitucional.

Apresentamos as análises de seis cartazes, buscando compreender como os

pibidianos expressam suas representações acerca da formação docente no PIBID

em textos multimodais produzidos coletivamente.

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Cartaz 1:

Imagem 1: Cartaz n.1

Notamos no cartaz n.1, alunos descontentes com o ensino unicamente

gramatical da língua inglesa nas escolas, o mesmo é representado pela união entre

expressões tristes, desenhos de livros da língua, e, também, pela presença da

representação de um tempo verbal comumente ensinado nas instituições de ensino.

Em contrapartida, percebemos uma notável mudança de expressão nos

mesmos alunos representados ao defrontarem-se com a presença de música,

“workshops” e jogos no ambiente escolar, logo, temos a concepção de que essas

ferramentas atuam de maneira atrativa para o meio educacional. Essa realidade é

representada nas produções por meio de semblantes alegres em união a notas

musicais e dos seguintes dizeres: “music”, “workshops” e “games”.

Cartaz 2:

Imagem 2: Cartaz n.2

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O cartaz de n.2 contém imagens que transmitem ideias diversas, o primeiro

ponto a ser analisado é a representação de alunos explanando pontos negativos do

ambiente em que estão inseridos, percebemos que há uma grande insatisfação

pertinente à aprendizagem da Língua Inglesa. Há, neste ponto, um relato acerca da

dificuldade no processo de aprendizagem, bem como uma grande insegurança

sobre a eficácia do atual sistema de ensino. Adiante, notamos, também, uma crítica

expressa verbalmente à estrutura das instituições públicas de ensino.

Por outro lado, verificamos na produção acima uma combinação entre

desenhos e dizeres que expressam esperança acerca de uma nova forma de ensino

voltada para o uso de música e jogos. Esse fato se confirma por meio da construção

de uma caixa de pensamento em que a professora em docência, ao notar um

despertar de interesse da turma, analisa a possibilidade de trazer mais atividades do

mesmo formato para a sala.

Por fim, uma última análise possibilita um olhar para o anseio dos bolsistas id

por uma construção de uma realidade diferente da atual nas escolas públicas. Por

meio da frase: “Alunos hoje, amanhã professores! Vamos construir uma realidade

diferente!”, os bolsistas representam uma grande vontade em contribuir no processo

de melhorias que o PIBID visa fornecer para o ensino das escolas públicas e,

também, na formação docente desses participantes do projeto.

Cartaz 3:

Imagem 3: Cartaz n.3

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O Cartaz de n.3 pode ser dividido em duas perspectivas. A primeira refere-se a uma

visão negativa expressa nos cartazes por meio de frases como: “não se aprende

inglês na escola pública”, “desmotivação”, “video games são só passatempos”, “falta

de recursos”, “falta de políticas públicas” e “preconceitos”. Notamos que as frases

expostas revelam a realidade que o sistema público de ensino vivencia na

atualiadade, essas dificuldades mostram-se como um grande desafio a ser superado

com o auxílio do projeto PIBID.

Referimo-nos, agora, a segunda perspectiva passível de análise no cartaz de

número quatro, esta diz respeito às possibilidades positivas e abrangentes que o

PIBID é capaz de atingir no meio escolar. Através de sentenças de significados

positivos, juntamente com as imagens de uma lâmpada, um livro e o símbolo do

projeto PIBID que representa duas mãos dadas, constatamos uma representação

otimista do projeto em questão. Passa-se a noção de que por meio do PIBID as

dificuldades anteriormente comentadas poderiam ser superadas, vindo, assim, a

transformar o conceito negativo estabelicido com a LI nas escolas públicas.

Cartaz 4:

Imagem 4: Cartaz n.4

O cartaz n.4, ao retratar bolsistas ID do projeto PIBID em cima de uma ponte

que liga a universidade à escola, remete-nos à ideia de que o projeto atua como uma

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ponte fortalecedora de vínculos entre alunos da instituição pública e alunos em

formação para docência. Notamos, acima desses bolsistas, algumas nuvens com

vocábulos que expressam inovações que o programa pretende proporcionar para os

dois cenários, além das ferramentas que serão utilizadas para tanto.

Sob outra perspectiva, há, embaixo dessa ponte, uma camada que representa

um antigo preceito enraizado na sociedade sobre a incapacidade de ensino da

Língua Inglesa nas escolas públicas. Entretanto, a presença dessa ponte acima dos

problemas retratados denota uma superação desses velhos juízos através dos

auxiliadores de ensino do PIBID, tais como: jogos e músicas.

Cartaz 5:

Imagem 5: Cartaz n.5

Ao analisar o cartaz n.5, verificamos a presença de um espiral constituído

mediante a presença de palavras chaves para a construção e qualificação do PIBID

para os bolsistas ID. Essa composição remete ao entendimento de que o programa

promove uma interação benéfica e vantajosa entre pibidianos e alunos de escolas

públicas, a fim da promoção de melhorias para o ensino público.

Adiante, há, na produção, desenhos variados e significativos, como o de

notas musicais, livros, videogames, corações e, também, de um capelo. Essas

representações sugerem que o programa em que estão inseridos – PIBID – tem

como proposta a utilização de materiais didáticos de cunho tecnológico para a

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atividade de lecionar, além de viabilizar um aprimoramento na formação dos

pibidianos.

Cartaz 6:

Imagem 6: Cartaz n.6

A produção de número 6 é constituída através da representação de um

coração integrado por diversos alunos de mãos dadas a um professor. Ao meio

desse coração, encontra-se uma imagem dualista – a parte direita apresenta as

dificuldades no âmbito escolar que dificultam a execução das atividades propostas,

tais como: celular, desinteresse por parte dos alunos e falta de investimento

necessário para a educação.

Em contrapartida, a face esquerda do cartaz representa, mediante a presença

de desenhos de notas musicais, videogames e o símbolo do PIBID, a integração que

o projeto promove entre novas ferramentas tecnológicas e o ensino da língua

inglesa. Essa produção suscita a discussão sobre os obstáculos a serem

ultrapassados pelo programa, bem como a visão positiva que os bolsistas ID

possuem acerca do projeto.

Na tabela a seguir, apresentamos uma grade de análise de todos os cartazes,

com os resultados de nossas análises acerca do levantamento temático que emerge

do conjunto de dados analisados. Nela observamos temas que remetem à realidade

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escolar, ao comportamento do aluno da educação básica, ao material didático

elaborado e utilizado nas intervenções didáticas e à formação docente.

Realidade escolar

Comportamento do aluno

Material didático do PIBID

Formação docente

- Escola como prisão; - Falta de investimentos; - Falta de políticas públicas; - Precariedade no sistema público de ensino; - Más condições de ensino; - Ensino pouco fiel ao contexto do estudante.

- Preconceito com a Língua Inglesa; - Relação não amigável entre professor e aluno; - Desinteresse pela língua; - Falta de motivação; - Cansados e frustrados como o ensino convencional do Inglês; - Dificuldades no processo de aprendizagem.

- Inovador; - Interessante; - Atrativo; - Tecnológico; - Músicas; - Jogos; - Eficiente; - Trabalho das quatros habilidades da Língua Inglesa de forma não convencional; - Ensino colaborativo.

- Contato antecipado com o ambiente escolar; - Reflexão sobre a didática; - Aprimoramento da didática e do lecionar; - Embasamento teórico; - Experiência com situações diversas da escola pública; - Reflexão acerca das práticas pedagógicas; - Proporciona ao pibidiano a conscientização sobre sua função social e global para a sociedade.

Tabela 1: Síntese analítica dos cartazes

CONCLUSÃO

Com o propósito de investigar o processo de formação inicial e

desenvolvimento profissional possibilitado pela participação de alunos bolsistas do

subprojeto de Língua Inglesa do Projeto PIBID, utilizamo-nos do quadro teórico do

ISD e da GDV para realizar a investigação proposta. Assim, foram selecionados seis

cartazes produzidos por acadêmicos em um encontro interinstitucional do Programa

Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência – PIBID, além de um questionário

que orientou a análise do material.

O estudo realizado por meio deste corpus possibilitou o reconhecimento da

representação positiva que esses estudantes de graduação dispõem sobre o projeto

PIBID, e, principalmente, sobre suas aspirações em construir um sistema

educacional mais eficaz em relação ao que é ofertado à rede pública de ensino

através da participação no projeto.

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As vozes sociais, representam seu agir comunicativo motivado por discursos

já ditos e suas motivações pessoais são expressas pela expressão de

representações multimodais, produzidas coletivamente, porém, com suas

construções discursivas particulares sobre o contexto do PIBID nos qual seu

desenvolvimento profissional acontece.

Assim, consideramos que, ao realizamos estas reflexões sobre as

representações de bolsistas do PIBID Inglês, de duas instituições formadoras, por

meio dos quadros teóricos metodológicos supracitados, fomentamos uma discussão

mais ampla sobre o papel do programa no meio acadêmico de formação inicial de

professores de língua inglesa. Ademais, esse trabalho pode oferecer subsídios para

que novas pesquisas sobre o mesmo tema sejam desenvolvidas, avançando sobre o

no conhecimento explorado, de modo que, parafraseando Machado (2004), sejam

criados cada vez mais espaços que permitam a instituição dos pibidianos como

pessoas, como verdadeiros atores nas atividades de formação das quais participam.

REFERÊNCIAS

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A recepção crítica das edições da Caros

Amigos - “Literatura Marginal - A cultura da

periferia Ato I, II e III” - no jornal Folha de São

Paulo

The critical reception of the Caros Amigos’ editions -“Marginal literature- The peripheral culture Act I,II and III”- in the Folha de São Paulo newspaper

Ana Paula Franco Nobile Brandileone (UENP/CCP/PQ/GP-CRELIT)

Maria Luiza Navarro Martins (UENP-CCP/G – PIBIC/FA)

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar resultado parcial de pesquisa de projeto de Iniciação Científica, intitulada “Literatura marginal: a memória do lançamento das edições Caros Amigos “Literatura marginal - A cultura da periferia Ato I,II e III” que, por sua vez, vincula-se a projeto maior de pesquisa denominado “A representação de territórios marginais na ficção brasileira contemporânea: recepção crítica e práticas de letramento”, coordenado pela Profa. Dra. Ana Paula F. Nobile Brandileone. O subprojeto em questão visa mapear a recepção da crítica das edições especiais da revista Caros Amigos, organizadas por Ferréz entre os anos 2001 e 2004, a fim de resgatar a memória do lançamento destas edições, sobretudo nos jornais de grande circulação nacional, considerando os seus suplementos literários. A partir da análise do material coletado objetiva-se expor e discutir os pontos de vista preliminares da crítica sobre essas produções literárias da periferia no momento em que estreiam. A pesquisa se justifica na medida em que essas edições representaram um marco decisivo para a entrada na cena contemporânea do movimento literário dos autores da periferia, legitimando a rubrica marginal - da qual se apropriaram -, como expressão da cultura periférica na literatura (NASCIMENTO, 2009; PATROCÍNIO, 2013; HOLLANDA, 2014). Considerando que a pesquisa está em andamento, serão apresentados os resultados obtidos da investigação entre os anos de 2001 e 2004 no jornal Folha de São Paulo. PALAVRAS-CHAVE: Caros Amigos “Literatura marginal - A cultura da periferia Ato I, II e III”. Recepção crítica. Jornal Folha de São Paulo ABSTRACT: This article has the objective to present the partial results from a Scientifiic Initiation project, tilted “Marginal literature: the memory of the release of the editions Caros Amigos “Marginal literature - The peripheral culture Act I, II e III” which is linked to a major project called “The representation of marginal territories in Brazilian contemporary fiction: critical reception and literacy practices” leaded by professor. Dr. Ana Paula F. Nobile Brandileone. The subproject in question wants to map the critical reception of Caros Amigos’ magazine special editions, organized by Ferréz between years 2001 and 2004, in order to rescue the memory of its release, especially in the newspapers with big national spread, considering their literary supplements. From the collected material analysis, this research aims to exhibit and discuss the preliminaries critic’s viewpoints about the debut of these peripheral literary productions. The research is justified as far as these editions represents a

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decisive milestone for the peripheral writers’ literary movement entrances in the contemporaneous literary scenario, legitimizing the marginal rubric – which they appropriated-, as the peripheral culture expression in literature, according to Érica Peçanha do Nascimento (2009), Paulo Patrocínio (2013) and Heloísa Buarque de Hollanda (2014). Considering that this research is still in progress, will be presented the results achieved from the investigation between years 2001 and 2005 in the Folha de São Paulo newspaper. KEYWORDS: Caros Amigos “Marginal literature - The peripheral culture Act I, II e III”. Critical reception. Folha de São Paulo newspaper

A INTRODUÇÃO DA VOZ PERIFÉRICA NO CENÁRIO LITERÁRIO

CONTEMPORÂNEO

No desafio de se discutir sobre a literatura no presente, Schøllhammer

chama a atenção para uma característica da literatura contemporânea: ela “[...] não

será necessariamente aquela que representa a atualidade, a não ser por uma

inadequação, uma estranheza histórica que a faz perceber as zonas marginais e

obscuras do presente, que se afastam de sua lógica” (2011, p. 10). Dentre estas

zonas não explorados e/ou incoerentes do presente, uma vertente literária ganhou

força no Brasil, a chamada Literatura Marginal, não só com o intuito de iluminar

estes espaços, mas como meio de expressão autônoma e contestadora evocada

pelas margens.

A Literatura Marginal é um movimento cujo princípio territorial e

socioeconômico aglutinam seus autores (PATROCÍNIO, 2013) num projeto que

busca valorizar a cultura das margens e denunciar a realidade precária e violenta do

universo periférico que compartilham por meio da literatura. Desse modo, conforme

Patrocínio, a produção literária torna-se um “[...] invólucro de um discurso político

determinado em construir uma reflexão que fornecerá os elementos necessários ao

leitor para a observação crítica de uma realidade específica” (2013, p.130),

elaborado para atingir principalmente a própria periferia e fazendo do marginalizado

o sujeito da própria história. Por esse viés, justifica-se a expressão cunhada por

Nascimento (2009) para conceituar essas produções: uma “literatura da periferia

para a periferia”. Nesse diálogo com as margens, os autores diluem nas produções

literárias suas experiências de vida, conferindo à literatura um valor testemunhal,

aspecto inédito e autêntico do movimento.

Esse movimento literário marginal de autores da periferia ganha contornos

mais nítidos na cena literária contemporânea a partir da publicação das edições

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Caros Amigos – Literatura marginal “A cultura da periferia” Ato I, II e III, organizadas

por Ferréz em parceria com a Editora Casa Amarela, sendo o primeiro ato lançado

em 2001, o segundo, em 2002 e o terceiro e último, em 2004. A publicação dessas

edições de literatura marginal representa “[...] um importante marco na formação e

estruturação desse grupo de autores, favorecendo a formação de um espaço

discursivo próprio dentro da série literária hegemônica” (PATROCÍNIO, 2013, p.16).

Isso porque, elas reuniram os autores num projeto intelectual comum, conferiram

visibilidade nacional às produções e se apresentam como instâncias de legitimação

para o adjetivo marginal que se apropriaram (NASCIMENTO, 2009; HOLLANDA,

2014).

É nesse sentido que surge a justificativa e o interesse desta pesquisa em

recuperar a fortuna crítica do “calor da hora” sobre os volumes da Caros Amigos,

pois é por meio deles que se sedimenta a formação de um movimento literário

inédito autenticamente evocado pelas margens, o qual passa ser reconhecido pelo

adjetivo marginal, agora também designando a expressão da cultura da periferia na

cena literária brasileira contemporânea.

METODOLOGIA

A fim de recuperar a fortuna crítica das edições da Caros Amigos no

momento em que são dadas à lume no panorama literário atual, foram mapeados,

por meio do acervo online6 do jornal Folha de São Paulo, os artigos publicados

entre os anos de 2001 e 2004 no suplemento cultural dominical denominado “Folha

Mais!”, correspondente à “Ilustríssima” atualmente. Vale destacar que não houve

publicações relacionadas especificamente às edições da Caros Amigos no

suplemento, apesar de apresentar artigos sobre Cidade de Deus , de Paulo Lins

(1997), Capão Pecado , de Ferréz (2000), bem como sobre literatura e cultura hip

hop. Dessa forma, partiu-se para investigação nos demais cadernos de cunho

cultural do jornal. Posteriormente, desenvolveu-se uma análise mais microscópica do

material coletado, buscando estabelecer diálogos com os estudos relacionados à

literatura marginal (HOLLANDA, 2014; PATROCÍNIO, 2013; NASCIMENTO, 2009).

Portanto, o trabalho se desdobra em pesquisa de campo e de cunho bibliográfico.

6 Site do acervo online do jornal Folha de São Paulo: http://acervo.folha.uol.com.br/.

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A RECEPÇÃO CRÍTICA DAS EDIÇÕES NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO

O total de recortes obtidos sobre a coleção da Caros Amigos no

mapeamento da Folha de São Paulo, resume-se a quatro publicações: duas no

caderno “Folhateen”, intituladas “‘Caros Amigos’ em versão mano”, no dia 03 de

setembro de 2001, e “A conquista do direito a arte, na marra, em uma sociedade

desigual”, em 05 de agosto de 2002; e outras duas no caderno cultural “Ilustrada”, “A

disputa pelos pobres na TV” , em 02 de setembro 2002, e “A vitória de Lula e uma

nova onda cultural”, em 30 de outubro de 2002. Os recortes estão relacionados ao

Ato I e ao Ato II da coleção, sendo que não houve manifestações sobre o Ato III.

Além disso, não há ocorrências no jornal sobre as edições durante o ano de 2003,

quando há um hiato entre o lançamento do segundo e do terceiro volumes. Para a

discussão que se seguirá, importa mencionar que os cadernos nos quais os recortes

foram veiculados não têm como objetivo central discutir de perto as edições

especiais, contudo não deixam de evidenciar o posicionamento crítico em relação às

publicações.

Os recortes no caderno “Folhateen” correspondem a notas de publicação

sobre o Ato I e sobre o Ato II. A primeira intitulada “‘Caros Amigos’ em versão mano”,

veiculada em setembro de 2001 é bastante sumarizada e se assemelha a um

anúncio publicitário, iniciando-se com “Está nas bancas...” e informa, ao final do

texto, o preço da revista. Mesmo assim, é interessante notar a consideração que o

autor anônimo faz da edição após mencionar alguns nomes que compõem o

primeiro volume, como o próprio Ferréz, Alessandro Buzo, Jocenir e Paulo Lins: “[...]

um pequeno panorama de uma das manifestações culturais do chamado gueto”

(2001, p.8), demonstrando a natureza coletiva da literatura marginal que surge no

panorama contemporâneo para fortalecer as manifestações artísticas da periferia.

Além disso, a rubrica Literatura Marginal escolhida por Ferréz para reunir os textos

da edição é devida e simplificadamente conceituada como a que se refere à "[...]

produção literária que nunca chega ao grande público: aquela que vem da periferia,

das prisões, da marginália" (2001, p.8), destacando o lançamento da edição por

introduzir vozes excluídas na cena literária.

O segundo artigo jornalístico divulga o ato II das edições e se intitula “A

conquista do direito a arte, na marra, em uma sociedade desigual”. Escrito por Luís

Augusto Fischer, professor de Literatura na Universidade Federal do Rio Grande do

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Sul (UFRGS), publicada em agosto de 2002, o recorte propõe uma discussão mais

densa, na medida em que o estudioso valoriza a apropriação da literatura por grupos

marginalizados, oportunizada pela publicação das edições da Caros Amigos.

Conforme o crítico, dificilmente no Brasil a “[...] barreira social é rompida

para dar amplo acesso ao patrimônio cultural ou para permitir o enunciado artístico

dos pontos de vista dos que não têm meios” (2002a, p.11), ou seja, a produção e o

consumo artístico e cultural são restritos às classes elitizadas e a expressão dos

menos privilegiados limita-se à cultura e à arte popular. Nesse sentido, valendo-se

de exemplos como Machado de Assis, Pixinguinha e Chiquinha Gonzaga, Fischer

(2002) sustenta a hipótese de que numa sociedade desigual como a brasileira,

quando há a conquista pelo direito a arte considerada de alto nível por grupos

excluídos, o saldo é positivo. Por esse motivo, para o professor, a segunda edição

da Caros Amigos merece atenção por seu ineditismo ao introduzir no discurso

literário a voz de um grupo que dificilmente teria oportunidade de se expressar por

meio da literatura, isto é,“[...] de gente que mora na periferia de São Paulo ou em

outras cidades do país. Gente que abre a boca para fazer literatura, que quer vida

melhor, e merece isso” (2002a, p.11)

Apesar de não tratar especialmente do assunto, curiosa também é a

expressão “na marra” presente no título do artigo. O termo suscita que para Fischer

(2002a), esse processo de superação de barreiras ou muros culturais, no que diz

respeito à literatura marginal, não ocorre por meio da incorporação facilitada da

cultura e da arte desenvolvida pelas comunidades marginalizadas. Na realidade, ela

se dá por uma apropriação sem licenças, um acesso construído pelo esforço de

quebrá-las à marretadas, ou como afirma Ferréz no seu “Terrorismo Literário” “[...]

não batemos a porta para alguém abrir, nós arrombamos a porta e entramos” (2005,

p.10).

No caderno “Ilustrada”, o artigo “A disputa pelos pobres na TV”, publicado

em setembro de 2002, por Esther Hamburguer, discute sobre a possibilidade de

autorrepresentação ofertada pela literatura marginal como meio de expressão

autônoma e alternativa das margens, opondo-se a imagem deturpada muitas vezes

difundida nas mídias, principalmente na televisão.

De acordo com a professora da Universidade de São Paulo (USP) na

Escola de Comunicações e Artes (ECA), “Foi-se o tempo em que a pobreza e a

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violência estavam excluídos da mídia, que pasteurizava o noticiário e a ficção,

representando um Brasil ‘ideal’, branco, pacífico e endinheirado” (2002b, p.6). O fato

pode ser notado, como exemplifica a estudiosa, com os lançamentos do curta-

metragem Palace 2 e do filme Cidade de Deus de Fernando Meireles,

respectivamente em 2001 e 2002. Dessa forma, se a representação das margens

nas mídias deixa de ser um tabu, o acontecimento estimula a discussão sobre como

e por quem ela deve ser construída, gerando uma disputa pela autoridade da

representação.

Partindo dessa consideração, a autora evidencia que com essa disputa

pelo controle da representação na cena pública, manifestações alternativas e

autorrepresentativas, ou seja, que partem dos próprios marginalizados rivaliza com a

construção da imagem da comunidade periférica sob o viés sensacionalista e banal

em programas televisivos como o “Cidade Alerta” e similares, por exemplo. Para

Hamburguer (2002), dentre essas manifestações que competem com a imagem

televisiva está a literatura marginal que “[...] arrisca a entrada daqueles que durante

séculos carregaram o estigma da ignorância no mausoléu dos letrados” (2002b, p.6).

Se atualmente a televisão ainda é o principal meio de informação para os brasileiros,

conforme dados da Pesquisa Brasileira de Mídia (2016) 7, no período em que o

artigo foi publicado, sem contar com a atual popularização da Internet, torna-se

bastante significativo o delineamento de um espaço alternativo de representação dos

grupos marginalizados, que destoe da imagem hegemônica do suporte televisivo,

como é o caso da revista.

As edições da Caros Amigos são evocadas quando Hamburger (2002)

encerra o artigo com um trecho do poema “A Bahia que Gil e Caetano não

cantaram”, de Gato Preto8, publicado no segundo volume das edições, apontando de

um lado para a vontade de autorrepresentação dos escritores marginais e, de outro,

rompendo com a imagem distorcida e ilegítima propagada pela televisão: "A

intenção é mostrar a verdadeira cara da minha terra, sem inverdades, maquiagens,

cenas de novela“ ( 2002b, p.6).

7 BRASIL. Secretaria de Comunicação Social; Assessoria de Pesquisa de Opinião Pública. Pesquisa

Brasileira de Mídia – 2016. Brasília – DF [S.N.], 2016. De acordo com a pesquisa 89% dos brasileiros utiliza a televisão como suporte midiático para informação e é o principal meio para 63% dos entrevistados. 8 Gato Preto é baiano e integrante do grupo de cordel urbano Extremamente e do grupo GOG de rap.

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T E X T O S C O M P L E T O S

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Também publicado no caderno “Ilustrada”, em outubro de 2002, o artigo

de Marcelo Coelho, intitulado “A vitória de Lula e uma nova onda cultural”, destaca

inicialmente a popularização da produção cinematográfica Cidade de Deus (2002) de

Fernando Meirelles baseada na obra homônima de Paulo Lins (1997).

Posteriormente, enquadra-a, juntamente com a coletânea de literatura marginal da

Caros Amigos e outras manifestações periféricas, como o rap, num fenômeno

cultural autêntico que prenunciou a ascensão de Lula à presidência do Brasil, pois

“[...] afirma-se hoje, no plano cultural, com o mesmo destaque e ar de novidade que

cercavam o sindicalismo do AC e do PT no finalzinho da década de 70” ( 2002c,

p.10). Contudo, o autor não considera o fenômeno como uma “onda vermelha”, ou

seja, como resultado de uma militância política.

Para refletir sobre qual seria então a feição dessa “nova onda cultural”, o

crítico compara Cidade de Deus com as produções cinematográficas Carlota

Joaquina, a princesa do Brasil9, de Carla Camurati (1994), com Central do Brasil10,

de Walter Salles Jr. (1998), e com O invasor11,de Beto Brant (2002), considerando o

contexto sociopolítico brasileiro e as concepções de Brasil ali representadas. Em

Carlota Joaquina, o Brasil se redemocratizava com a eleição de Fernando Henrique

Cardoso para Presidente da República e, nesse sentido, para o crítico o filme é

sintomático, pois “[...] O olhar estrangeiro é invocado, ‘in extremis’, para traçar o

quadro de um país fadado a não dar certo desde o início” (2002c, p.10). Já em

Central do Brasil, como acredita o crítico, quando a política internacionalista de FHC

já não expressava bons resultados, o olhar interno sobre o Brasil ganha força,

contudo

[...] traçava o percurso do litoral para o interior, encontrando ali uma utopia, algo açucarada do associativismo econômico, do pequeno artesanato, de uma fraternidade que servia como refúgio para o pequeno personagem em busca do pai (COELHO, 2002c, p.10).

9 Carlota Joaquina, a princesa do Brasil (1994), protagonizada por Marieta Severo, contracenando

com Marco Nanini no papel de Dom João VI, traz um painel da vida da infanta espanhola. O filme marca o renascimento do cinema brasileiro, praticamente extinto no período em que Fernando Collor governou o país. 10

Central do Brasil (1998) tem em seu elenco Fernanda Montenegro, no papel de uma escrivã de cartas para analfabetos, na estação Central do Brasil do Rio de Janeiro, que decide ajudar um garoto (Vinícius de Moraes) a encontrar o pai, depois do atropelamento da mãe. 11

O Invasor (2002) é um filme de baixo orçamento e se desenrola a partir do plano de dois sócios, Ivan (Marco Ricca) e Gilberto (Alexandre Borges), que decidem contratar um mercenário, Anísio, interpretado por Paulo Miklos, para assassinar o sócio majoritário após um desentendimento, a fim de assumirem a gerência da construtora que administram.

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70

Numa realidade brasileira urbana e sem idealismos do início deste século,

em O Invasor a periferia é sinônima de “[...] ameaça, contaminação e fascínio”

(2002c, p.10), enquanto em Cidade de Deus, vislumbrada por um novo ângulo, ela

“[...] vive isolada, autônoma, reduzindo-se ao mínimo [...] seus contatos com o

mundo exterior” (2002c, p.10), captando a violência e a precariedade de uma

impactante realidade brasileira na sua perspectiva interna. Nesse contexto é que o

aspecto central desta “nova onda cultural” que dá título ao artigo, na qual os volumes

da Caros Amigos estão inseridos, inscreve-se não apenas pelo seu caráter social

engajado e denunciativo, mas também pelo fato da periferia não compor um

[...] ‘objeto’ de um olhar externo, seja atemorizado, esperançoso ou sarcástico. [...], diríamos que nesse filme a periferia é ‘sujeito’, e não ‘objeto’, de um olhar. Talvez seja isso o que está em pauta no momento (COELHO, 2002c, p.10).

Portanto, se a “pauta no momento” é o enforque interno, a periferia como

sujeita da sua imagem, infere-se que a relação entre a “onda cultural periférica” e a

eleição de Lula se dá pela legitimidade da representação. Ora, o ex-presidente Lula,

líder político do Partido Trabalhista, era oriundo da classe operária e, portanto,

representante legítimo da classe trabalhadora, assim como os autores que compõem

as edições marginais e outras manifestações do gueto são moradores da periferia e

falam por ela. Então, a aproximação entre os acontecimentos refere-se ao operário

representando a classe operária na esfera política e os marginalizados, as margens

nas manifestações artístico-culturais. Nesse sentido, o lugar da fala torna-se

relevante para essa “onda cultural”, na medida em que privilegia a representação

feita pelo sujeito que é integrante do grupo social e da cultura que representa.

Após a análise dos recortes jornalísticos publicados no jornal Folha de

São Paulo sobre as edições Caros Amigos “Literatura marginal- A cultura da

periferia” percebe-se que os volumes não foram objeto de discussão pelo viés

artístico-literário. Sob este aspecto, vale considerar que os cadernos nos quais os

recortes foram veiculados não têm a intenção de discutir literariamente as produções

já que são culturais, espaços em que a literatura “passa a fazer parte do que se

chama de variedades” (SANTIAGO, 2004, p.164), mais a serviço da divulgação e da

informação do que da análise crítica. Contudo, pode-se apreender que a reflexão

empreendida pela crítica no “calor da hora” recaiu sobre o valor das edições da

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71

Caros Amigos enquanto resultantes de uma mobilização artístico-cultural da

periferia, dando destaque para seu caráter autorrepresentativo.

Desse modo, os volumes da Caros Amigos são interpretados pelos

críticos como componentes de uma empreitada cultural coletiva e integrada, haja

vista as correlações estabelecidas nos artigos com outras manifestações artísticas

como o rap, além das denominações apresentadas para se referirem ao fenômeno

cultural, no qual se inclui as edições, como “onda cultural” ou “mais uma das

manifestações do gueto”. Compreende-se, portanto, que as edições não são

percebidas como resultantes de uma prática literária isolada, mas fundidas a uma

agitação maior de cunho político, social e cultural que surge na periferia, em sintonia

com outras atividades acionadas pelas comunidades marginalizadas para as quais a

literatura torna-se parcela dessa soma cultural, como o movimento hip hop e projetos

culturais – citando o 1daSUL12 e a Cooperifa13, por exemplo.

Nesse sentido, as produções literárias marginais devem ser entendidas

como “[...] resultantes de um complexo empreendimento cultural e político encenado

nas periferias urbanas das grandes capitais do Brasil” (PATROCÍNIO, 2013, p.64).

Afinal, o pacto dos autores é antes ético e político do que estético (PATROCÍNIO,

2013; HOLLANDA, 2014), na medida em que o compromisso assumido por eles é o

de promover um discurso específico sobre a margem, buscando valorizar e reafirmar

a cultura da comunidade que compõem e construir uma identidade marginal

enunciada pelo próprio sujeito marginalizado.

Nesse panorama, é natural a reação da crítica em valorizar os aspectos

extraliterários, pois um dos ângulos que salta aos olhos nesta literatura feita pela

periferia é o seu explícito engajamento e a função sociopolítica e cultural atribuída à

prática literária. Não surpreende, então, que a literatura marginal seja um

interessante objeto de análise para os chamados estudos culturais, nos quais

[...] convocam-se interdisciplinarmente aportes de outras ciências, como a filosofia, a psicologia e psicanálise, a sociologia, a antropologia e a semiótica para lançar luz sobre como determinados traços da vida social, dentro de uma cultura específica, aparecem na obra literária [...] (BORDINI, 2006, p. 13).

12

O Movimento 1daSul (“Somos Todos Um pela Dignidade da Zona Sul”), foi criado por Ferréz, em 1999 com apoio de moradores de Capão Redondo, periferia da capital São Paulo, e hoje mantém uma grife de roupas e acessórios. 13

Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), fundada em 2000 por Sérgio Vaz, escritor e agitador cultural da periferia, promove saraus culturais e literários na cidade de São Paulo.

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Não à toa, um aspecto destacado pelos críticos da Folha ao abordarem

sobre as edições é sua autenticidade pelo caráter autorrepresentativo que possuem,

retratando as margens do ponto de vista interno e cedendo lugar à própria voz

excluída, afinal, este é um diferencial da literatura marginal dos escritores da

periferia que ganha reconhecimento a partir da publicação das edições da Caros

Amigos. Dessa forma, evidencia-se uma certa euforia com a novidade trazida pela

publicação dos volumes de literatura marginal por motivos similares aos propostos

por Patrocínio, pois eles surgem lançando luz sobre um fenômeno transgressor visto

que “[...] não se trata somente de ter voz própria, mas estabelecer essa voz como

meio de expressão coletiva, utilizando para tanto um espaço do qual esses grupos

foram, quase sempre, excluídos: a literatura” (2013, p. 64). Cabe assinalar que, não

raro, a figura do organizador Ferréz é apontada nas publicações, pois

Ao elaborar o projeto editorial que se colocou como uma possibilidade e reversão da estigmatização atribuída aos moradores da periferia ou às suas manifestações artístico-culturais, Ferréz se tornou o principal responsável por aglutinar escritores de diferentes regiões em torno de um projeto literário comum. (NASCIMENTO, 2009, p. 89)

Apesar dos artigos colocarem as edições em segundo plano ou nota

sumarizada da publicação, não se pode desprezar a importância desses volumes

terem sido matéria de discussão, já que concorreram para dar visibilidade e

popularizar as produções marginais pela força midiática ofertada por um suporte de

grande circulação nacional como a Folha de São Paulo. Por não passarem

despercebidas pela crítica literária brasileira, esta produção literária coletiva foi

levada

[...] para a àgora, para o espaço de discussão de intelectuais (que mereçam esta qualificação), editores, políticos, público, enfim, mas levar por suas próprias mãos. É dessa maneira que ocupam a pólis e criam uma nova forma de literatura assumidamente política (RESENDE, 2008, p. 39, grifos da autora).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista os resultados levantados com o mapeamento da recepção

crítica das edições da Caros Amigos na Folha de São Paulo, é possível perceber

Anais do SIDIALE

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73

uma abordagem da crítica que pendeu para os aspectos culturais e sociais

abarcados pelas edições da Caros Amigos, apontando para sua carga

autorrepresentativa e contestadora, introduzindo a voz legitimamente periférica na

literatura e compondo uma mobilização cultural maior promovida pela periferia.

Porém, a questão literária não foi alvo de discussão dos críticos, deixando em aberto

considerações quanto ao seu valor estético.

Como este artigo apresenta uma reflexão parcial da pesquisa

desenvolvida pelo subprojeto de Iniciação Científica, os resultados obtidos com a

análise dos recortes da Folha representa uma dentre as possíveis reações da crítica

instigadas pelas edições da Caros Amigos. Dessa forma, se as percepções críticas

aqui discutidas, centradas nos aspectos extraliterários, ressoam com a crítica de

modo geral, é partir dos resultados obtidos com o mapeamento nos demais

periódicos que se pretende investigar que será permitido averiguar se há

convergência ou diversificação dos juízos críticos sobre a literatura produzida pelos

escritores da periferia no momento em que estreia na cena literária brasileira

contemporânea.

REFERÊNCIAS

BORDINI, Maria da Glória. Estudos culturais e estudos literários. Letras de hoje.

Porto Alegre, v. 41, n. 3, set. 2006, p. 11-22.

“CAROS Amigos”, em versão mano. Folha de São Paulo, São Paulo, 03 set. 2001. Folhateen. p.8. COELHO, Marcelo. A vitória de Lula e uma nova onda cultural. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 out. 2002c. Ilustrada. p.10. FERRÉZ. Terrorismo literário. In:______(org.). Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 9 -14. FISCHER. Luís Augusto. A conquista do direito à arte, na marra, em uma sociedade desigual. Folha de São Paulo, São Paulo, 05 ago. 2002a. Folhateen. p.11. HAMBURGER, Esther. A disputa pelos pobres na TV. Folha de São Paulo, São Paulo, 02 set. 2002b. Ilustrada. p.6. HOLANDA, Heloísa Buarque de Holanda. Crônica marginal. In: RESENDE, B.; FINAZZI-AGRA, Ettore. Possibilidades da nova escrita literária no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2014. p.25-38.

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NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. PATROCÍNIO, P. R. T. do. Escritos à margem: a presença de autores de periferia na cena literária brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras; FAPERJ, 2013. RESENDE, Beatriz. A literatura na era da multiplicidade. In:______Contemporâneos: Expressões da Literatura Brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Fundação Biblioteca Nacional, 2008. p. 15-40. SANTIAGO, Silviano. A crítica literária no jornal. In:______.O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 157-167. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. O realismo de novo. In:______Ficção brasileira contemporânea. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 53-104.

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A (não) imparcialidade e o discurso de

esquerda e direita nos jornais online

brasileiros

The (non) impartiality and the left- and right-wing discourse in Brazilian online newspapers

Renan William Silva de Deus (UENP/CCP - G)14

Lívia Maria Turra Bassetto (UENP/CCP – PQ)15

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo demonstrar análises feitas com títulos de notícias, subtítulos e manchetes com temas políticos dos principais jornais online do Brasil, a partir de estudos dos conceitos de Análise do Discurso (AD) de linha francesa de Mussalim (2009), Orlandi (2007), Fiorin (1998) e Sobral (1980), com o intuito de identificar posições ideológicas e contestar a imparcialidade dita pelos veículos comunicativos. Como se sabe, não existe discurso neutro, portanto, a cada emprego linguístico, revelam-se posicionamentos políticos e ideológicos, mesmo quando a mídia se diz prezar pela imparcialidade ao divulgar informações. Assim, a cada manchete publicada, é possível verificar a presença de ideologias variadas a partir da materialidade linguística. Para a compreensão do objeto de análise, foram necessários estudos sobre discurso e ideologia, em especial o conceito de ideologia e sua relação com a linguagem, dado o papel da imprensa na sociedade, sendo ela um dos “Aparelhos Ideológicos de Estado”, como aponta Althusser (1980). O intuito deste trabalho também é demonstrar como as ideologias e defesas políticas por trás dos discursos, verificadas pelos vestígios deixados pelo produtor, afetam o interlocutor e, dessa forma, não contribuem para discussões sadias sobre política, uma vez que os discursos são da esfera jornalística e sua função principal é informar, porém, muitas vezes, acaba por manipular. PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso. Ideologia. Política. Mídia.

INTRODUÇÃO

O jornalismo sempre foi de grande importância na sociedade, seja por

informar, denunciar ou formar opinião. Campos (2011, p. 2) aponta que “não se pode

imaginar a nossa sociedade sem a presença da mídia”, tendo em vista que ela “[...]

coleta dados do mundo e os (re)transmite como forma de manter a comunidade

informada”. Dessa forma, compreendemos que o discurso jornalístico está muito

presente na vida das pessoas, além de possuir forte influência na forma como o

mundo funciona.

14

Graduando em Letras Português-Inglês na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), em Cornélio Procópio. 15

Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual Paulista (Ibilce – São José do Rio Preto). Professora da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/ Cornélio Procópio).

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76

Nesta pesquisa, observaremos a relação entre o discurso jornalístico e

ideologia a partir de uma análise pautada nos conceitos de Análise do Discurso de

linha francesa. Com isso, buscamos ilustrar como a ideia de imparcialidade na mídia

não funciona na prática. A respeito do que foi dito, Damacena (2007, p. 7) afirma que

Vem de longe a afirmação de que jornalismo é a arte de recontar acontecimentos da forma como aconteceram, sendo então um relato fiel da verdade. [...] Acreditar que o jornalismo é a reprodução verdadeira dos fatos é errado, pois é presumir que os jornais são imparciais.

Damacena (2007, p. 8) ainda expõe que “a imparcialidade é um mito que todo

profissional da área jornalística tenta em vão alcançar”. Assim, compreendemos que,

apesar de o jornalismo estar pautado em uma noção de imparcialidade, os jornais

acabam por defender interesses próprios e de grupos de poder que se beneficiam

dos discursos transmitidos por eles. Mas, ainda assim,

O jornalismo tem obrigação social para com a humanidade, pois é através de reportagens, que problemas de diferentes origens podem ser sanados. Mas é necessário compreender que o jornalismo não tem poder de resolver tais problemas, mas sim, apresentá-los para que pessoas qualificadas possam empreender uma resolução para tal (DAMACENA, 2007, p. 24).

Compreendida a importância, papel e influência do jornalismo na sociedade, é

preciso também compreender como essa “obrigação social com a humanidade”,

apontada por Damacena, funciona em paralelo com a defesa de interesses próprios

e a propagação de ideologias, reflexos desses interesses, ou seja, como os jornais

cumprem sua função social, não deixando de veicular suas ideologias e de agradar

ao público a quem o jornal está a serviço de, ou seja, políticos, grandes empresários,

etc.

A partir do exposto acima, buscaremos analisar a relação entre o discurso

jornalístico e ideologia em manchetes, títulos, subtítulos e chamadas de notícias em

redes sociais sobre temas políticos dos principais jornais online do Brasil, como

Estadão, Revista Fórum e Folha de S. Paulo. A escolha desses gêneros parte do

pressuposto de que são os mais lidos de um jornal (seja ele impresso ou online).

Sobre a manchete, por exemplo, Campos (2011, p. 4) aponta que:

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[...] é talvez o gênero mais lido do jornal pelo fato de que todos, de alguma maneira, devido a nossas obrigações profissionais, às poucas horas que temos para dedicar-nos ao ócio e ler o jornal com tranquilidade, concentração e profundidade; começamos a ler as notícias pelo referido gênero de discurso.

À vista disso, além de atingirem um público maior, a manchete e os outros

gêneros mencionados acima, apesar de serem limitados em extensão, acabam,

muitas vezes, por substituir a leitura da notícia em si, principalmente tendo em vista

a forte produção jornalística online e sua circulação em redes sociais, combinados

com a necessidade de se estar bem informado de forma rápida atualmente.

METODOLOGIA

Dentre os jornais online constituintes do corpus de análise deste trabalho

estão Folha de S. Paulo, Estadão, O Globo e Valor Econômico, como jornais

considerados de direita, e Brasil 24/7, Diário do Centro do Mundo, Revista Fórum,

Brasil de Fato e Jornalistas Livres, como jornais voltados à esquerda.

A seleção dos dez textos dos jornais mencionados acima foi feita tendo em

vista “[...] gestos de interpretação que [...] constituem [o texto] e que o analista, com

seu dispositivo, deve ser capaz de compreender”, como menciona Orlandi (2007, p.

26). Ainda, tal seleção tomou como base considerações de senso comum sobre o

que é considerado mídia de esquerda e mídia de direita16, visando um corpus

ideologicamente “múltiplo” e, por consequente, que demonstrem a ideia de que não

há uma imprensa única e imparcial.

O processo de análise constitui-se inicialmente da busca pela compreensão

da discursividade ao verificar como um objeto discursivo se constrói, “[...]

desfazendo assim a ilusão de que aquilo que foi dito só poderia sê-lo daquela

maneira” (ORLANDI, 2007, p. 77). Assim, verificamos as escolhas lexicais presentes

nos discursos, a fim de compreender como elas são, para a AD, “[...] vestígios que o

analista de discurso tem de apreender” (ORLANDI, 2007, p. 30) e que fornecem

pistas sobre a ideologia do jornal. Para isso, é fundamental analisar o significado das

palavras presentes nos discursos e quais efeitos de sentido esses apresentariam se

16

Tais considerações levam em conta defesas políticas já conhecidas pelo público leitor dos jornais selecionados.

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elas fossem trocadas por sinônimos, o que Orlandi (2007, p. 77) chama de “[...]

trabalho com as paráfrases, sinonímia, relação do dizer e não dizer etc”.

De forma geral, procuramos nesta pesquisa ressaltar como os discursos estão

carregados de sentidos e ideologias, não havendo discursos “neutros” e “imparciais”

também no meio jornalístico, trazendo à tona as estratégias utilizadas pela imprensa

para atingir seus objetivos, sendo um deles a transmissão de sua “visão de mundo”,

isto é, de sua ideologia. Ainda buscamos, com a AD, compreender como a relação

entre o discurso e ideologia trazida na mídia contribui para os numerosos papéis

ideológicos da linguagem, favorecendo a uma ou várias classes sociais (SOBRAL,

1980), ou seja, favorecendo um ou vários grupos políticos no poder.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para a compreensão da proposta deste trabalho, faz-se necessário uma breve

introdução à Análise do Discurso (AD), de linha francesa, e a conceituação de

elementos referentes ao que será analisado, como “discurso”, “ideologia” e “sujeito”.

ANÁLISE DO DISCURSO

A AD surge na França na década de 1960 com o filósofo Michel Pêcheux que,

nas palavras de Mussalim (2009, p. 105), “apoiado numa formação filosófica,

desenvolve um questionamento crítico sobre a Linguística” e “[...] coloca o estudo do

discurso num outro terreno em que intervêm questões teóricas relativas à ideologia e

ao sujeito”. Sendo assim, a disciplina tem por objetivo “[...] a compreensão de como

um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e

por sujeitos” (ORLANDI, 2007, p. 26); ou seja, busca explicitar como funcionam os

discursos e as estratégias de quem os produz para atingir seus objetivos, como

aponta Sobral (1980, p. 67). Ainda, “analisar o discurso implica interpretar os sujeitos

falando, tendo a produção de sentidos como parte integrante de suas atividades

sociais” (FERNANDES, 2005, p. 22), ou seja, é, a partir da AD, que se pode

compreender a ideologia presente no discurso do sujeito e as influências que outros

discursos têm sobre o seu, reveladas consciente ou inconscientemente por meio da

materialidade linguística.

Orlandi (2007, p. 70) aponta que a compreensão do funcionamento de um

texto e sua produção de sentidos é também a compreensão desse – do texto –

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enquanto “objeto linguístico-histórico”. Percebemos, portanto, que a AD visa o que

está por trás do discurso e que esses sentidos são dependentes do contexto e da

situação em que são produzidos (SOBRAL, 1980, p. 67). Além disso, com a AD,

compreendemos também como os sujeitos são levados “[...] a ocupar seu lugar em

determinada formação social” (MUSSALIM, 2009, p. 110), ou seja, em determinada

realidade histórica.

DISCURSO

A respeito do objeto de análise, Mussalim (2009, p. 101) aponta que “[...] toda

produção de linguagem pode ser considerada ‘discurso’” e, com seu estudo,

“observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2007, p. 15). Assim, compreendemos na

AD o estudo que considera o contexto na produção de discursos, visto que esses

“são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma

presentes no modo como se diz” (ORLANDI, 2007, p. 30), sendo, portanto, papel do

analista compreender os vestígios neles deixados. De forma mais simplificada, sobre

discurso e o seu estudo na AD, podemos dizer que:

O termo discurso pode-se referir tanto a um único enunciado como a uma grande quantidade de formações linguísticas, pois o mais importante não é sua extensão, mas sua natureza. O fundamental é sua pragmaticidade (que se dá situacionalmente), seu caráter retórico, a intenção do locutor de influenciar ao(s) interlocutor(es) por meio dele, a natureza histórico-social dos seus protagonistas, enfim, o contexto e a situação de sua produção (SOBRAL, 1980, p. 50).

De acordo com Fernandes (2005, p. 20), “[...] discurso implica uma

exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não

estritamente linguísticas”, logo, “[...] o discurso não é a língua(gem) em si, mas

precisa dela para ter existência material e/ou real”. Sendo assim, para estudar o

discurso, é fundamental verificar a relação entre o homem e o social,

compreendendo que é no discurso que se observa a relação entre língua e ideologia

(ORLANDI, 2007), ou seja, é com que o indivíduo externaliza sua ideologia.

Tendo em vista a indissociável relação entre língua e ideologia no discurso, é

também preciso compreender que não há discursos “neutros”. Sobral (1980) aponta

que, mesmo em enunciados altamente “informativos”, é possível encontrar marcas

que os fazem fugir de uma função “neutra”. Há ainda a noção de “não-dizer” trazida

Anais do SIDIALE

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80

por Ducrot (1972, apud Orlandi, 2007), em que há a presença do “pressuposto”,

derivado da instância da linguagem e do “subentendido”, aquilo que se dá no

contexto. O silêncio, para Orlandi (2007), também é compreendido como uma das

formas de se trabalhar o não-dito na AD, ou seja, ao omitir uma informação ou calar-

se perante a um acontecimento ou assunto, o locutor também está emitindo sua

visão a respeito desse.

IDEOLOGIA

Definidos o objetivo da AD e o conceito de discurso, devemos compreender

também o que é ideologia, visto que, como aponta Sobral (1980, p. 52), “a ideologia

tem na linguagem seu suporte fundamental, sendo as formações linguísticas

instâncias das ideológicas”. Althusser (1980, p. 69), filósofo francês importante para

a teoria de Pêcheux, define ideologia como “o sistema das ideias, das

representações, que domina o espírito de um homem ou de um grupo social”. Sua

relação com a linguagem e com o sujeito é, portanto, indissociável. Dessa forma, a

ideologia visa:

[...] a manutenção da organização social, que favorece a uma (várias) classe(s) ou grupo(s). Com efeito, cada grupo ou classe apropria-se da linguagem de um modo determinado, vinculando-a estreitamente à sua visão particular e interessada da realidade, usando-a em seu confronto com os(as) demais (SOBRAL, 1980, p. 46).

Isto posto, entendemos que há uma ligação primordial entre discurso e

ideologia. Para Fiorin (1998, p. 28), “[...] representações que servem para justificar e

explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele

mantém com os outros homens é que comumente se chama ideologia”, sendo esta

“uma ‘visão de mundo’, ou seja, o ponto de vista de uma classe social a respeito da

realidade” (p. 29). Fiorin (1998, p. 32) ainda apresenta o conceito de visão de mundo

como “formação ideológica” que, por consequente, constrói “formações discursivas”

em que o homem elabora seus discursos e reage linguisticamente aos

acontecimentos. Dessa forma, “[...] o discurso é mais o lugar da reprodução que o da

criação” (FIORIN, 1998, p. 32) e a ideologia “[...] é a condição para a constituição do

sujeito e dos sentidos” (ORLANDI, 2007, p. 46).

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81

O conceito de ideologia é também necessário para a compreensão deste

trabalho dado o papel da imprensa na sociedade e seu caráter ideológico. Althusser

(1980) aponta os jornais como um dos “Aparelhos Ideológicos de Estado” (AIE),

posto que, “pela maneira como se estruturam e agem esses aparelhos ideológicos –

por meio de suas práticas e de seus discursos – é que se pode depreender como

funciona a ideologia” (MUSSALIM, 2009, p. 104). O filósofo também menciona que

os AIE não precisam necessariamente ser de domínio público (como é o caso da

maioria dos jornais), pois o que importa é a maneira como funcionam (ALTHUSSER,

1980). Assim, ao retomar a citação de Sobral sobre ideologia, é possível entender

como a “[...] classe dominante é activa (sic) nos Aparelhos Ideológicos de Estado”

(ALTHUSSER, 1980, p. 48).

SUJEITO

Como mencionado anteriormente, o estudo da AD requer o conhecimento da

relação entre ideologia e sujeito. Para Mussalim (2009, p. 110), o sujeito concebe

seus “[...] textos como produtos de um trabalho ideológico não-consciente”. Assim,

não há liberdade ao sujeito para dizer o que quer, pois ele “[...] é levado, sem que

tenha consciência disso, a ocupar um lugar em determinada formação social e

enunciar o que lhe é possível a partir do lugar que ocupa” (MUSSALIM, 2009, p.

110).

Há ainda a relação entre a história e a linguagem no discurso do sujeito, pois

“[...] todo discurso se estabelece na relação com o discurso anterior e aponta para

outro” (ORLANDI, 2007, p. 62). O sujeito, consequentemente, “[...] só tem acesso a

parte do que diz” (ORLANDI, 2007, p. 49) e seu discurso constitui um “objeto

linguístico-histórico”, como já mencionado. Dito isso, é possível compreender que,

para a AD, o sujeito não é livre para dizer o que quer, ou seja, funciona pelo

inconsciente e reproduz a “visão de mundo” e/ou ideologia do lugar social em que

ocupa, estando “[...] submetido às regras específicas que delimitam o discurso que

enuncia” (MUSSALIM, 2009, p. 133).

De forma geral, para a AD, o sujeito não é fonte do que diz, posto que ele “[...]

diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo

qual os sentidos se constituem nele” (ORLANDI, 2007, p. 32). Ainda, “[...] não há

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discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão

materialmente ligados” (ORLANDI, 2007, p. 47).

ANÁLISE

Como já mencionado, o processo de análise busca verificar a escolha lexical

dos discursos presentes no corpus deste trabalho, a fim de compreender como a

ideologia do jornal se dá no discurso. Para isso, analisamos o significado das

palavras e expressões utilizadas e quais sentidos essas produzem.

Texto 1: Brasil 24/7, 30 de julho de 2017. Disponível em: <https://www.brasil247.com/pt/247/poder/309036/Temer-torrou-R$-41-bi-em-

emendas-para-se-safar.htm>. Acesso em: 08 ago. 2017.

A partir da leitura do texto acima (Texto 1), é possível depreender que o jornal

se posiciona de forma crítica em relação ao presidente Michel Temer, haja vista a

presença de palavras como “torrou” e “se safar”. A partir disso, percebemos a

necessidade de buscar o significado de palavras e expressões presentes nesses

discursos. Ao começar pelo verbo “torrou”, verificamos que esse tem por significado

“gastar” ou “consumir de forma excessiva”. No discurso em análise, se substituído

por “gastar”, o sentido seria certamente menos pejorativo – “Temer gastou R$ 4,1 bi

em emendas”. Ainda, utiliza-se a expressão “se safar”, que quer dizer “livrar-se de

algo difícil ou ruim”, ressaltando a visão do jornal Brasil 24/7, mais voltada a

esquerda e a seus partidos, em relação à atitude do político.

Texto 2: Jornalistas Livres, 29 de julho de 2017.

Disponível em: <https://jornalistaslivres.org/2017/07/com-fogo-doria-manda-arrancar-familias/>. Acesso em: 30 jul. 2017.

Assim como no texto 1, a partir da verificação da escolha lexical do texto 2 é

possível perceber como o jornal se posiciona a respeito de uma figura política.

Identificamos tal posicionamento tendo em vista a presença do verbo “arrancar”, que

não foi empregado por acaso. “Arrancar” quer dizer “tirar com força”, ou seja,

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transmite a ideia de uma atitude bruta por parte do político mencionado. Caso

substituído por “retirar”, por exemplo, o sentido seria outro – “Com fogo, Doria Jr.

manda retirar 50 famílias do centro de SP”.

Texto 3: Valor Econômico, 27 de outubro de 2016.

Disponível em: < http://www.valor.com.br/brasil/4758009/numero-de-pessoas-empregadas-tem-maior-queda-desde-2012-nota-ibge>. Acesso em: 21 nov. 2016.

O texto 3 traz uma inversão. O adjetivo “empregadas” demonstra a escolha do

jornal Valor Econômico em optar por mostrar uma queda no número de pessoas que

possuem um emprego ao invés de dar destaque a informação de que o número de

pessoas “desempregadas”, que não possuem um emprego, aumentou. O discurso

pode parecer confuso ao leitor que não tenha um censo crítico ao obter essa

informação, não percebendo o objetivo do jornal em tentar transmitir a notícia de

forma que ela pareça não tão relevante tendo em vista o momento em que foi

produzida, pouco após a posse de Michel Temer como presidente ao Dilma Rousseff

sofrer impeachment. Dado o posicionamento em “favor” do governo Temer,

percebemos como há no discurso do jornal Valor Econômico estratégias visando

beneficiar certos grupos de poderes, essas, de certa forma, buscam atingir

interesses próprios.

Texto 4: Folha de S. Paulo, 1 de julho de 2016.

Disponível em: < http://painel.blogfolha.uol.com.br/2016/07/01/psdb-nao-trabalhara-para-que-seus-deputados-votem-pela-cassacao-de-eduardo-cunha/>. Acesso em: 21 nov. 2016.

No texto 4, ao optar por dizer que o Partido da Social Democracia Brasileira

(PSDB) “não trabalhará” no processo de votação pela cassação de Eduardo Cunha,

o jornal, na verdade, “encobre” a informação de que o partido é “contra” a cassação

do político. Dessa forma, podemos dizer que o texto traz um eufemismo em vista de

informar sem realmente demonstrar a relevância dessa informação, ou seja, sem

demostrar que apesar das denúncias de corrupção contra Eduardo Cunha, o partido

sai em defesa do denunciado. O jornal Folha de S. Paulo, portanto, acaba por

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preservar a imagem do partido mencionado no texto tendo em vista o acontecimento

noticiado.

Texto 5: O Globo, 7 de dezembro de 2016.

Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/planalto-comemora-decisao-do-stf-que-teve-apelo-de-temer-dois-ex-presidentes-20607110>. Acesso em: 28 jan. 2017.

A decisão mencionada no texto 5 diz respeito ao Supremo Tribunal Federal

(STF) ter optado por manter Renan Calheiros na presidência do Senado. No texto, o

jornal escolhe utilizar a palavra “apelo”, que significa “pedido ajuda”. Essa escolha

demonstra a posição do jornal perante as figuras envolvidas na notícia. É possível

fazer essa constatação trocando a palavra “apelo” por “intervenção”, por exemplo –

“Planalto comemora decisão do STF que teve intervenção de Temer e de dois ex-

presidentes”. Assim, veremos que o sentido do texto seria outro, vez que

“intervenção” significa o ato de exercer influência em determinada situação na

tentativa de alterar o seu resultado, se encaixando bem no acontecimento trazido

pela notícia. Porém, ao analisarmos a ideologia trazida no jornal O Globo, veremos

que ele parte de uma visão voltada à direita, ou seja, a escolha lexical do discurso

em análise não é ocasional.

Texto 6: Brasil de Fato, 2 de agosto de 2017.

Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2017/08/02/em-mais-uma-manobra-para-conseguir-apoio-temer-alivia-divida-de-ruralistas/>. Acesso em: 08 ago. 2017.

O texto 6 apresenta a ideologia do jornal de forma mais clara do que os textos

analisados anteriormente, visto que no subtítulo da notícia há o uso da palavra

“golpista”, em referência ao presidente Michel Temer. O jornal Brasil de Fato,

portanto, optou por não esconder que acredita que o impeachment da ex-presidente

Dilma Rousseff foi um “golpe” articulado por Temer. Ainda, o jornal escolheu a

palavra “manobra” ao referir-se a ação do presidente para conseguir apoio,

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85

passando a ideia de comando e influência por parte do político para conseguir o que

quer.

Texto 7: Diário do Centro do Mundo, 2 de agosto de 2017.

Disponível em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/>. Acesso em: 2 ago. 2017.

Publicado na página inicial do jornal Diário do Centro do Mundo, o texto 7

segue a mesma linha do texto anterior (texto 6) e aponta de forma clara o

posicionamento do jornal a respeito de uma figura política, assim como os textos 1 e

2. No texto, a palavra “teatro” é usada como forma de substituir “votação da

denúncia contra Temer”, assim, trazendo seu significado de “fingimento” e/ou

“hipocrisia” na manchete para noticiar o acontecimento. É possível, portanto,

compreender que o jornal considera a votação como uma farsa, especialmente

tendo em vista que se utiliza da expressão “livrar a cara”, que passa a ideia de se

livrar/safar de algo ruim, ao completar a frase.

Texto 8: O Globo, 23 de setembro de 2016.

Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/doria-anuncia-que-devolvera-area-publica-que-invadiu-em-campos-do-jordao-20166818>. Acesso em: 28 jan. 2017.

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A partir da leitura do texto 8, é possível entender que João Doria, por decisão

própria, quis devolver a área que invadiu em Campo do Jordão. No entanto, o

político, que no momento de publicação dessa notícia era candidato do PSDB à

prefeitura de São Paulo, na verdade foi condenado pela justiça a devolver o terreno

invadido. Portanto, a palavra “anuncia” transmite a ideia errônea de que Doria por

boa vontade decidiu devolver o terreno. O subtítulo da notícia também reforça a ideia

trazida no título. Nele, apesar de mencionar que a Justiça decretou a reintegração de

posse, há o uso das palavras “tomou a decisão”. Em momento algum no título e

subtítulo o jornal O Globo utiliza palavras que passem a ideia de que a decisão foi na

verdade um ato de cumprimento da justiça. Dessa forma, percebemos que assim

como há estratégias que demonstram uma defesa ao presidente Michel Temer nos

discursos dos jornais de direita analisados acima, entre eles o jornal O Globo, João

Doria recebe o mesmo “tratamento”, demonstrando a visão do jornal e como esse

privilegia certos grupos e figuras políticas.

Texto 9: Estadão, 13 de julho de 2016.

Disponível em: < http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,estado-reduz-gasto-para-formar-professores,10000062546>. Acesso em: 21 nov. 2016.

Com a utilização do substantivo "gasto", no texto 9, podemos identificar o

posicionamento ideológico do locutor, o jornal Estadão, que compreende que o

dinheiro destinado a formação de professores é um "gasto". Dessa forma,

percebemos a "visão de mundo" do jornal, que ao expor o que pensa sobre

economia e assuntos voltados a administração governamental por meio da escolha

lexical no discurso em análise. O sentindo do discurso e a ideologia trazida nesse

seriam outros se substituíssemos a palavra “gasto” por “investimento”, por exemplo.

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Texto 10: Revista Fórum, 6 de julho de 2017.

Disponível em: <https://twitter.com/revistaforum/status/882958362446639105>. Acesso em: 08 ago. 2017.

No texto 10, há uma chamada em rede social a respeito de uma notícia

envolvendo as Reformas na Previdência propostas por Michel Temer. O jornal

Revista Fórum aponta que as propagandas veiculadas no SBT a respeito das

reformas são “enganosas”. A escolha dessa palavra demonstra o que o jornal pensa

das propagandas transmitidas no canal e, consequentemente, também sobre o tema

em discussão. Ao abrir a notícia de fato, no entanto, o título se mostra isento da

posição do jornal: “Silvio Santos não pode mais fazer campanha pra reformas de

Temer na TV”.

A partir do exposto, compreendemos que, diferentemente dos jornais O Globo

e Folha de S. Paulo, o jornal Revista Fórum expõe sua opinião sobre Temer e seu

governo de forma clara e não sai em defesa desses, haja vista que é considerado

um jornal de esquerda. Deste modo, podemos entender quais jornais são

reconhecidos como de esquerda ou de direita.

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88

CONCLUSÃO

A partir das análises e estudos feitos neste trabalho, entendemos como a AD

se torna uma excelente ferramenta de compreensão de objetivos e da significância

de discursos que nos cercam, sendo o discurso jornalístico um dos mais relevantes

entre eles. Ainda, por meio das análises realizadas é possível comprovar como a

ideia de imparcialidade na mídia é de fato um mito, haja vista múltiplas defesas

políticas e ideológicas inseridas nos discursos presentes no corpus de análise.

Dessa forma, percebemos como os jornais trabalham a serviço de interesses

próprios e, muitas vezes, manipulam informações em vista disso.

Analisar gêneros jornalísticos relacionados com o gênero notícia, no qual o

texto precisa ser claro e objetivo, possibilita, portanto, verificar que mesmo em textos

de níveis informativos e que buscam ser isentos de subjetividade e/ou

posicionamento ideológico, há a presença de elementos que trazem ideologias e

demonstram a visão do autor sobre o tema. Além disso, é possível comprovar a não

imparcialidade jornalística e como os objetivos da imprensa vão além de

simplesmente informar. Para isso, é preciso haver uma leitura crítica das

informações recebidas pelos veículos de comunicação, se atentando a como ocorre

a construção dos textos veiculados nesses, tendo em vista o contexto, portanto, as

defesas políticas já conhecidas nos jornais e suas ligações com grupos de poder de

esquerda ou direita.

Sendo assim, comprovamos que, mesmo ao buscar se informar de forma

rápida, é necessária uma visão crítica ao receber os discursos produzidos pela

imprensa, compreendendo de que forma tais discursos são construídos e quais as

consequências no jornalismo e na discussão política de fugir da função de informar

em detrimento de propagar ideologias.

REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.

CAMPOS, Rodrigo da Silva. Marcas de subjetividade nas manchetes de um jornal popular: possíveis implicações para um perfil de leitor. In: SIMPÓSIO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SOCIEDADE, 3, 2011, Campinas. Anais... Disponível em: < http://www.iel.unicamp.br/sidis/anais/ >. Acesso em out. 2017.

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89

DAMACENA, Janary Bastos. A Desconstrução da Notícia: O Mito da Imparcialidade no Jornalismo. 2007. 49 f. Monografia (Bacharelado em Jornalismo) - Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, Brasília, 2007.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. 6 ed. São Paulo: Ática, 1998.

MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: BENTES, Anna Christina (Org.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v.2. 6º ed., São Paulo: Cortez, 2009.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Analise do discurso: Princípios e procedimentos. 7ª ed. Campinas, SP: Pontes, 2007.

SOBRAL, Adail. Análise do Discurso, Linguagem e Ideologia. Estudos Linguísticos, XXII, Araraquara, GEL/UNESP, 1980.

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Abordagens discursivas nas aulas de língua

materna em escolas públicas paraenses

Discursive approaches in mother tongue classes in public schools on the Pará

Paulo Robson Silva da Silva (UEL-PG)17

RESUMO: No intuito de analisar a aplicabilidade (presença ou ausência, qualidade das abordagens) dos conceitos discursivos, a pesquisa “A Análise de Discurso como prática escolar no ensino de Língua Portuguesa na 8ª série (9° ciclo) do Ensino Fundamental das Escolas da Rede Pública de Belém”, realizada durante a graduação em Letras na Universidade do Estado do Pará (UEPA), possui pressupostos teórico-metodológicos baseados em principais conceitos da Análise de Discurso Francesa, tais como discurso (FOUCAULT, 1973), formação discursiva e formação ideológica (FOUCAULT, 1997), sujeito discursivo (PECHEAUX, 1975), heterogeneidade enunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1982), polifonia (BAKHTIN, 1987), etc. Por meio da pesquisa foi-se possível verificar as atividades desenvolvidas a partir de textos utilizados em sala de aula; traçar um perfil do ensino de língua portuguesa no que tange à abordagem dos textos que se denomina “interpretação de texto” e observar de que forma os conceitos da Análise de Discurso podem efetivamente contribuir para o ensino da língua materna. Os procedimentos de coleta de dados utilizados na pesquisa foram: levantamento bibliográfico acerca do tema, entrevistas realizadas com docentes e alunos de modo a se obter informações de como ocorre o trabalho com textos nas aulas, além de observações das aulas de Língua Portuguesa em turmas de 9º (nono) ano do Ensino Fundamental em escolas da rede pública de Belém- Pará e análise dos textos escritos dos livros didáticos e dos demais materiais utilizados pelo professor durante as aulas. Os instrumentos usados neste trabalho consistiram em roteiros de entrevistas dos docentes e alunos, as anotações feitas ao longo das observações e o recolhimento dos textos utilizados em sala de aula pelos professores. Os resultados foram de inserção das teorias do discurso no ensino de Língua Portuguesa nas escolas estudadas, fomentando conteúdo crítico principalmente na leitura de textos. PALAVRAS-CHAVE: Produção de Textos. Ensino de Língua Portuguesa. Análise do Discurso.

INTRODUÇÃO

Este artigo, fruto do projeto de iniciação científica “A Análise de Discurso

como prática escolar no ensino de Língua Portuguesa na 8ª série (9° ciclo) do

Ensino Fundamental das Escolas da Rede Pública de Belém”, pesquisa realizada

por alunos do curso de Letras da Universidade do Estado do Pará-UEPA, pretende

realizar uma discussão acerca da relação entre as práticas de leitura e produção

textual na escola e a análise de discurso.

Inicialmente serão apresentados alguns dos principais conceitos ligados

aos estudos discursivos e algumas das premissas trabalhadas pela análise de

discurso, como a relação de sentido, o conceito de ideologia, formação discursiva e

17

Mestrando em Letras- PROFLETRAS, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected].

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formação ideológica, as concepções de dialogismo e polifonia, a questão do sujeito e

da subjetividade e o conceito de autoria. Posteriormente serão descritos os dados da

pesquisa e, a partir desses recursos, serão traçadas considerações mediadas pela

relação ensino e teoria discursiva.

METODOLOGIA

A metodologia empregada para a execução do projeto consistiu na

análise sistemática dos dados da pesquisa gerados por meio de levantamento

bibliográfico, observações das aulas de Língua Portuguesa em 3 turmas de 8º série

e a análise dos textos escritos utilizados pelos professores durante as aulas, além de

entrevistas realizadas com docentes e alunos. A partir das constatações retiradas

desses dados, juntamente com o estudo do referencial teórico, promovemos uma

avaliação e uma conclusão.

Na primeira etapa da pesquisa, constituída do levantamento bibliográfico

pertinente ao tema, foi possível o aprofundamento nas teorias da AD, o que

propiciou o embasamento necessário para a efetivação da etapa posterior: as

observações nas escolas 1, 2 e 318.

A ESCOLA FRANCESA DE ANÁLISE DO DISCURSO E SEUS PRESSUPOSTOS

TEÓRICOS

Nos anos 60, emerge uma corrente das ciências da linguagem que toma

como objeto de estudo o discurso. Esta corrente busca articular o lingüístico e o

social, demonstrando as relações que vinculam a linguagem à ideologia. Nessa

conjuntura intelectual, destaca-se a chamada “escola francesa de análise de

discurso” (doravante AD), que é assim definida por Michel Pêcheux apud

MAINGUENEAU (1997, p. 11):

A Análise de discurso não pretende se instituir como especialista da interpretação, dominando ‘o’ sentido dos textos; apenas pretende construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito (...). O desafio crucial é o de construir interpretações, sem jamais neutralizá-las, seja através de uma minúcia qualquer de um discurso sobre o discurso, seja no espaço lógico estabilizado com pretensão universal.

18

Ressaltamos que, pelo teor científico deste trabalho, as escolas observadas não são citadas nominalmente, e, por este motivo, optamos por identificá-las em ordem numérica.

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92

A AD possui uma tríplice relação: com o sujeito – assujeitado e falado por

seu discurso, advindo do estruturalismo de Foucault, Lacan e Althusser; com a

historicidade de cada enunciado, herdado de Foucault; e com a materialidade das

formas de língua de Saussure, Harris e Chomsky. Essas premissas estabelecem a

originalidade da AD francesa e são também elas que estruturam em geral a análise

de discurso.

Para a AD, linguagem e ideologia possuem uma interligação, pois é na

linguagem que a ideologia se materializa. Dessa forma, todos os discursos são

ideológicos, já que ideologia deve ser compreendida como algo inerente ao signo em

geral. Na AD, a linguagem vai além do texto, trazendo sentidos pré-construídos que

são ecos da memória do dizer.

Desta maneira, a linguagem permite a construção de sentidos diversos,

os quais estão dentro do processo discursivo. O discurso passa a ser o lugar onde

emergem significações conforme se delimitam as condições de produção discursiva.

Esse processo da produção de sentido recai no conceito de formação

ideológica e formação discursiva. Ambos estão articulados com as noções de

discurso e ideologia e são importantes nas relações de sentido.

A formação ideológica constitui-se da relação entre as classes sociais, as

quais se organizam historicamente através de alianças e conflitos entre si, ou seja, é

um conjunto complexo de atitudes e representações que determinará as formações

discursivas. Nesse caso, pode-se dizer que a formação ideológica é constituída de

várias formações discursivas que se entrelaçam, formando interseções

heterogêneas.

Pode-se definir formação discursiva como a conjuntura que determina o

que deve ser dito, como deve ser dito, levando em consideração o contexto sócio-

histórico que o sujeito está inserido e qual a posição que este sujeito ocupa no meio

social.

A partir das concepções acima descritas, ainda se faz relevante

mencionar o papel do outro no processo de construção do discurso e de produção

do sentido deste.

Bakhtin, partindo de uma crítica à concepção monológica e abstrata de

língua de Saussure, postula uma acepção de ser humano na qual o papel do outro é

Anais do SIDIALE

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fundamental. Para ele, não é possível conceber o indivíduo sem serem consideradas

as relações que o ligam ao outro.

Por isso, para ele a palavra não é monológica, mas plurivalente, e o dialogismo passa a ser, no quadro de suas formulações, uma condição constitutiva do sentido. Baseado nesses pressupostos, Bakhtin elabora a sua teoria da polifonia. (...) O discurso se tece polifonicamente. Num jogo de várias vozes cruzadas, complementares, concorrentes, contraditórias. (BRANDÃO, 2004, p. 62 e p. 65).

Assim, ao romper com o monologismo ele instaura uma perspectiva

dialógica. Segundo ele, a dialogização do discurso é duplamente orientada (o duplo

dialogismo), estando a primeira delas voltada para os outros discursos e a segunda

voltada para o outro, o destinatário.

Na primeira orientação, tem-se que toda palavra é pluriacentuada e que

seu sentido constitui-se no entrecruzamento desses acentos contraditórios nela

presente. Assim, afirma Bakhtin que um enunciado vivo surge em um momento

histórico e num meio social determinados, tocando em milhares de “fios dialógicos

vivos” – os outros discursos – que colocados intertextualmente no tecido de todo o

discurso, têm lugar não ao lado deste, mas em seu interior, pois são dele

constitutivo.

Na segunda orientação, aquela que diz respeito ao destinatário, destaca

Bakhtin a importância da interlocução, afirmando ser toda enunciação dependente

do locutor e também do alocutário, à medida que, ao enunciar, o locutor concebe o

receptor não como mero decodificador, e sim como um elemento ativo no processo,

sendo assim o discurso determinado por uma réplica que, embora ainda não dita, já

seja prevista. Nesse sentido o discurso é, para Bakhtin, dialógico.

Nesse processo, o sujeito é sempre e, ao mesmo tempo, sujeito da

ideologia e sujeito do desejo inconsciente, e isso tem a ver com o fato de que os

indivíduos são atravessados pela linguagem antes de qualquer coisa. O sujeito do

discurso vai, então, colocar-se estratégica e perigosamente entre o sujeito da

ideologia (pela noção de assujeitamento) e o sujeito da psicanálise (pela noção de

inconsciente), ambos constituídos e revestidos materialmente pela linguagem.

Como se vê, a Análise de Discurso, ao construir a categoria teórica do

sujeito, o faz, desde o início, pautando-se por uma singularidade latente. O sujeito do

discurso não é apenas o sujeito ideológico marxista-althusseriano, nem apenas o

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sujeito do inconsciente freudo-lacaniano; tampouco é apropriado afirmar que esse

sujeito seja uma mera adição entre essas partes. O que vai fazer a diferença desse

sujeito é o papel de intervenção da linguagem, na perspectiva de materialidade

lingüística e histórica que a AD lhe atribui. A Análise de Discurso soube dar um

caráter revolucionário ao modo como era abordado o papel da linguagem; bem

distante do aspecto meramente formal e categorizador a ela atribuído por uma visão

estruturalista mais redutora em sua origem. A linguagem pela ótica discursiva ganha

um traço fundacional na constituição do sujeito e do sentido e vai distinguir-se

também da condição que lhe confere a psicanálise.

O fato de trabalhar perigosamente na fronteira entre certas áreas, não

raro traz problemas de distorções e confusões de toda ordem, ao provocar

aproximações entre conceitos inconciliáveis, já que produzidos sob enfoques

epistemologicamente distintos. A AD caracteriza-se, como se vê, desde o seu início,

por um viés de ruptura a toda uma conjuntura política e epistemológica e pela

necessidade de articulação a outras áreas das ciências humanas, especialmente a

linguística, o materialismo histórico e a psicanálise.

O que distingue e identifica a Análise de Discurso é sua forma peculiar de

trabalhar com a linguagem numa relação estreita, indissociável com a ideologia. Por

aqui começa a confusão, o mal-estar, já que a ideologia representa para muitos uma

questão anacrônica, seivada de um ranço marxista ultrapassado. A insistência em

falar num ‘sujeito interpelado pela ideologia’, sujeito assujeitado à moda

althusseriana, deixa a Análise de Discurso Francesa de Michel Pêcheux numa

condição de isolamento entre as demais análises de discurso. A noção de

assujeitamento se presta, por vezes, a certas confusões. Assujeitar-se é condição

indispensável para ser sujeito. Ser assujeitado significa, antes de tudo, ser alçado à

condição de sujeito, capaz de compreender, produzir e interpretar sentidos.

Na teoria do discurso, abandona-se a categoria do sujeito empírico, do

indivíduo, e trabalha-se com um sujeito dividido, com uma categoria teórica

construída para dar conta de um lugar a ser preenchido por diferentes posições-

sujeito em determinadas condições circunscritas pelas formações discursivas. Nem

a hipertrofia do sujeito cheio de vontades e intenções, nem o total assujeitamento e a

determinação de mão única. O sujeito assim, como é afetado pela formação

discursiva onde se inscreve, também a afeta e a determina em seu dizer. O efeito-

Anais do SIDIALE

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95

sujeito seria o resultante desse processo de assujeitamento produzido pelo sujeito

em sua movimentação dentro de uma formação discursiva.

O real do sujeito seria o inconsciente, aquilo que mais de perto diz do

sujeito, o que lhe é próprio. O que o move seria o desejo, a busca da completude, a

tentativa incessante de fechar os furos em sua estrutura psíquica. Esse inconsciente

é o mesmo que aparece na língua quando nela se tropeça: cometem-se lapsos, atos

falhos ou produzem-se chistes. O inconsciente, como diz Lacan, está constituído

pela linguagem.

Mas o sujeito da análise de discurso não é só o do inconsciente; é

também, como se viu, o da ideologia, e ambos são revestidos pela linguagem e nela

se materializam. Essa é uma particularidade que assegura ao campo discursivo

tratar de uma dupla determinação do sujeito – de ordem da interioridade (o

inconsciente) e da exterioridade (a ideologia). Essa relação conjuntiva entre desejo e

poder é que torna tão especial e complexo esse campo teórico.

A princípio, a conferência que inicia esse sujeito no campo discursivo

volta-se a um sujeito-autor, o qual está inscrito na instância da produção do texto.

Neste caso há necessidade de se entender o lugar materializado de onde o discurso

é decorrente- o texto- o qual é uma unidade estritamente lingüística, expressão do

pensamento (consciente) e que serve como anteparo para a promoção do(s)

discurso(s), por ser aquele lugar palco do sujeito autor que se instala e se ancora o

autor, como explicita ORLANDI (2005, p.73):

O sujeito, diríamos, está para o discurso assim como o autor está para o texto. Se a relação do sujeito com o texto é a da dispersão, no entanto a autoria implica em disciplina, organização, unidade. [...] Assim como definimos o discurso como efeito de sentido entre locutores e consideramos, na sua contrapartida, o texto, como sendo uma unidade que podemos, empiricamente, representar como tendo começo, meio e fim, uma superfície lingüística fechada nela mesma, assim também consideramos o sujeito como resultando da interpelação do indivíduo pela ideologia, mas o autor, no entanto, é representação de unidade e delimita-se na prática social como uma função específica do sujeito.

Assim, a autoria discursiva premedita um sentido manifestado no

consciente, ora entendido como a relação do texto com os referentes do mundo,

portanto materiais, em que predomina o valor semântico, e não de sentidos, dos

elementos contidos e reavivados no texto.

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Desta forma, a autoria, de certo modo, não está impregnada de marcas

do inconsciente, porém se revela como produto do materialismo histórico-dialético

que encontra espaço na linguagem, manifestado no relacionamento do homem com

as palavras, como já dito anteriormente, diferindo-se do discurso pela

homogeneidade (presente no estágio de autoria) considerada no ato primeiro - o de

enunciar, ou melhor, de promover enunciados em que a responsabilidade é

direcionada unicamente a um sujeito, aquele que “fala” o texto, o que o torna

monofônico, na lógica bakhtiniana.

A RELAÇÃO ANÁLISE DO DISCURSO X SALA DE AULA

Com base nos conceitos acima apresentados e nos resultados empíricos

da pesquisa, obtidos a partir dos dados retirados dos materiais coletados nas

escolas durante a pesquisa de campo serão traçados agora alguns comentários

concernentes às reflexões dos pesquisadores, isto é, algumas constatações acerca

da leitura e da produção textual, suas práticas em sala de aula e a articulação destas

com as teorias da Análise do Discurso.

Sabe-se que leitura e produção textual são temas que suscitam amplas

discussões no meio acadêmico, à medida que desempenham um papel fundamental

no ensino de Língua Portuguesa. Do mesmo modo, sabe-se que as atividades de ler

e produzir textos constituem-se um exercício complexo, que envolve diversos

mecanismos e competências por parte do autor/leitor do texto. No entanto, apesar

do ensino de Língua Portuguesa nas escolas ter como principal instrumento

metodológico a utilização de textos, verifica-se que a este uso estão associados

diversos problemas, que vão desde a seleção desses, que, na maioria das vezes,

não estão de acordo com a realidade dos alunos, até as atividades propostas a partir

dessa seleção, as quais se voltam ou para uma abordagem puramente gramatical ou

para exercícios de interpretação superficiais e restritos em que se admite uma única

forma de compreensão dos mesmos.

Tendo em vista essa problemática, esta pesquisa parte da hipótese de

que as concepções teóricas da Análise do Discurso (AD) podem ser inseridas no

ensino de português, no que tange às práticas de leitura e escrita, no sentido de

tornar essas aulas mais proveitosas, a partir da utilização dos conceitos e métodos

da desse campo teórico nas atividades de “interpretação de texto”, desde que para

Anais do SIDIALE

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97

isso haja um trabalho de reflexão e adequação dessas teorias, por parte do

professor. Assim, as aulas de língua seriam pautadas pelo que chamamos, aqui, de

perspectiva discursiva, que levasse em conta a produção do discurso e todas as

questões envolvidas nessa construção, o que tornaria as aulas de “interpretação de

texto” muito mais completas e eficazes.

Essa abordagem “discursiva”, se aplicada às aulas de leitura e escrita,

como se propõe nesta pesquisa, seria responsável por uma mudança na maneira de

se estudar a língua portuguesa, por meio da compreensão de conceitos como

língua, linguagem, sujeito e ideologia, o que levaria alunos e professores a outro tipo

de “interpretação de texto”, colocando um novo objeto de estudo para dentro da sala

de aula: o discurso que se materializa no texto escrito, dentre outras possibilidades.

Com esse tipo de abordagem, por exemplo, seria possível, logo de início,

um avanço no que se refere à compreensão do próprio processo comunicativo que

envolve o produtor e o leitor do texto, já que não se pode levar em conta apenas

aquele esquema elementar da comunicação (emissor, receptor, código referente e

mensagem), fruto de uma concepção estruturalista da língua, pois a noção de

discurso entra em confronto com a noção de mensagem, já que essa remete a mera

transmissão de informação e no discurso se analisa o sujeito, a língua em

funcionamento, a geração de sentidos, a história e a ideologia que está inserida no

texto, o que representaria uma visão não somente mais ampla como mais coerente

do processo comunicativo a ser apresentada aos alunos.

Outro problema que poderia ser contornado caso a abordagem discursiva

fosse empregada nas aulas de língua, é aquele comumente identificado nas

produções textuais dos alunos: a falta de interlocutor com a qual se depara o escritor

do texto. Afinal, para quem se escreve as tão famosas redações escolares (gênero

controverso, mas ainda muito utilizado nas salas de aula, apesar de muito discutido

por estudiosos da área)? Em situações reais de uso da língua, há sempre um

interlocutor. Nos textos escritos pelos alunos nas aulas de língua, contrariando esta

condição de existência dos textos reais, raras são as vezes em que se deixa claro

para quem se está escrevendo aquele texto, exigindo-se dos alunos que estes

escrevam sem saber para que ou para quem. Sobre isso adverte Irandé:

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98

Escrever sem saber para quem é, logo de saída, uma tarefa difícil, dolorosa e por fim, é uma tarefa ineficaz, pois falta a referência do outro, a quem todo o texto deve adequar-se. Como saber se dissemos de mais ou de menos? Como avaliar se fomos precisos, se fomos relevantes, se dissemos “com a palavra certa” aquilo que tínhamos a dizer? Sem o outro, do outro lado da linha, não há linguagem. Pode haver o treinamento mecânico e aleatório de emitir sinais, o que, na verdade, fora de certas situações escolares, ninguém faz. O outro, que caracteriza o ato inerentemente social da linguagem, paradoxalmente, só desaparece nas aulas de português, que até já se chamaram de aulas de “Comunicação e Expressão” (ANTUNES, 2003, p. 46-47).

Diante disso, deve-se perguntar: qual a função das aulas de língua na

escola atualmente? Ou melhor, como estão organizadas as aulas de língua

portuguesa em nossas salas de aula? E, afinal, como essas aulas deveriam ser?

Bem distante de pretensões ousadas de responder definitivamente a

essas questões, corroboramos com a proposição de Irandé Antunes quando diz que

seria altamente relevante para todos os cidadãos e altamente gratificante para professor e aluno poderem reconhecer no final da trajetória escolar, que o trabalho da escola teve grande êxito, pois foram ensinadas e aprendidas lições de programas amplos, que recebem a valoração da sociedade letrada, como o gosto pela literatura, a prática de leitura e da análise plural e crítica, da produção oral e escrita de textos adequados e relevantes, e a simpatia indiscriminada pela condição variada e mutável das manifestações linguísticas (ANTUNES, 2007, p. 65).

Sob esse ponto de vista, o papel da escola seria o de proporcionar ao aluno

o contato com muitos textos, fazer muitas leituras, promover, como aponta Irandé,

debates e discussões acerca de temas que ampliem o repertório do aluno para que

este, imbuído dessas ferramentas, possa ser um bom produtor de textos. E isso só é

possível se a escola perceber que não basta ensinar gramática aos alunos e que a

língua é muito mais do que um conjunto de regras e nomenclaturas confusas.

Quando a escola se dá conta disso, muitas outras questões passam a fazer parte

das aulas de língua portuguesa, como o estudo do léxico, das condições sociais de

produção e circulação dos textos que se estudam, e sem dúvida, as aulas de língua

seriam muito mais interessantes e produtivas, o que infelizmente não representa a

realidade das escolas pesquisadas.

De acordo com Geraldi (2006), a prática de análise linguística, ao lado da

leitura e da produção textual, constitui o conjunto de eixos que devem nortear o

ensino de língua portuguesa em sala de aula. Para o autor, essa prática corresponde

Anais do SIDIALE

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99

a atividades realizadas a partir de produções de textos dos próprios alunos, das

quais são retirados equívocos de ordem gramatical que serão posteriormente

trabalhados durante as aulas que têm como principal objetivo contornar esses

deslizes em exercícios de autocorreção. Assim, o ensino gramatical seria uma

ferramenta para a construção de melhores textos, um auxílio para o aluno e não um

compêndio de regras estudadas com fim em si mesmas.

Além dos aspectos acima delineados, aponta-se, aqui, a Análise do

Discurso como uma disciplina capaz de complementar as aulas de português tanto

nas práticas de leitura e produção de texto, quanto na análise linguística,

observando que alguns dos conceitos da Análise do Discurso podem ajudar o

professor em sua prática pedagógica. É possível também que algumas concepções

pontuais dessa disciplina possam ser repassadas para complementar os

conhecimentos dos alunos de tal forma que os mesmos consigam utilizá-las no

desenvolvimento das suas práticas de leitura e produção textual tanto na sua vida

escolar, quanto no meio social.

Assim, o que se defende nesta pesquisa é que as teorias linguísticas, em

especial aquelas propostas pela vertente discursiva desse campo (a AD francesa),

devam contribuir efetivamente para a melhoria do ensino de língua, partindo-se da

ideia de que este ensino pode ser enriquecido e tornado muito mais eficaz se suas

práticas refletirem essas produções teóricas, pois se sabe que a relação entre

teorias linguísticas e práticas escolares ainda está longe de constituir-se

completamente como uma via de mão dupla presente em todas as salas de aula do

país ou pelo menos na maioria delas.

Acerca da situação do ensino de Língua Portuguesa, é possível traçar um

quadro que demonstra a insuficiência das atividades escolares no que concerne ao

ensino de leitura e produção textual. Voese sintetiza essa deficiência nos seguintes

termos:

(...) ao propor uma teoria do discurso (e uma Análise do Discurso) como uma prática proveitosa ao ensino de Língua Portuguesa, não vejo condições para compactuar com uma pedagogia da facilitação, onde sempre prevalece a preocupação de encontrar recursos e técnicas de aprendizagem que aparentam simplificar o que é impossível de simplificar. Pelo contrário, uma apropriação de conceitos teóricos e de técnicas operacionais em relação ao discurso – e que se referem também à interpretação de pistas do contexto histórico – pode representar um razoável grau de dificuldades, mormente para uma pedagogia que, ao invés de desenvolver e libertar, desmerece a inteligência dos alunos ao negar-lhes as oportunidades e os meios para se construírem como sujeitos (VOESE, 2004, p. 134).

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100

Com base nessas idéias, pretendeu-se esboçar algumas ponderações de

uma abordagem discursiva nas práticas de leitura e produção textual nas aulas de

língua portuguesa, as quais se pautam nas observações das aulas realizadas.

Como já mencionado anteriormente, o texto é ou deveria ser o principal

objeto de estudo durante as aulas de língua portuguesa na escola. E, de acordo com

os pressupostos da análise do discurso, a construção de um texto não se dá apenas

pelo encadeamento de enunciados. Sua constituição extrapola os elementos

linguísticos. Quando se produz ou se lê um texto, há nesses processos a influência e

a pressão de ideologias, vozes e contextos, os quais determinam os

direcionamentos que serão dados ao discurso e, consequentemente, que efeitos de

sentido este discurso irá gerar para os sujeitos envolvidos na constituição dele.

Tomando o texto sob essa perspectiva, acredita-se que, para uma análise

efetiva de textos escritos na escola, faz-se necessária uma abordagem que leve em

consideração, dentre outras coisas, a relação existente entre o linguístico e o social,

método esse empregado pela Análise de Discurso (AD), em especial em sua

vertente francesa.

É preciso ainda que o texto em sala de aula seja concebido enquanto um

discurso polifônico, no qual se pode evidenciar as diferentes vozes constitutivas

desses textos, refletindo-se criticamente sobre a construção dos discursos

presentes, por meio de práticas que levem o aluno a pensar sobre os sentidos do

texto que lê bem como ter plena consciência de que esses discursos estão inseridos

em determinada conjuntura social e, portanto, não são neutros do ponto de vista

ideológico, ou seja, possuem uma intenção. E tudo isso faz parte de uma reflexão

diferenciada sobre a língua e sobre o texto, calcada na apreensão e posterior

inserção das concepções teóricas da AD em sala de aula, como ficou aqui

mencionado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho de analisar um objeto tão fluido como o discurso não é tarefa

das mais simples. A Análise do Discurso Francesa, entretanto, propõe-se a trilhar

caminhos por este território. Suas teorias revelam que o discurso, apesar de ser um

objeto complexo, está inserido em nosso dia-a-dia sem que muitas vezes nos demos

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101

conta disso. Estamos cercados de discursos por todos os lados e, se o homem só se

constrói pela e na linguagem, o homem-sujeito só existe discursivamente.

Em nossas aulas de língua, entretanto, parecemos, na maioria dos casos,

desconsiderar este aspecto. Lidamos com discursos diariamente, sejam eles orais

ou escritos, mas muitas vezes preferimos fugir de sua complexidade, ignorando o

fato de que o discurso existe e nada nem ninguém pode fazer parar sua existência

cíclica e infinita.

Ao assumirmos, aqui, uma postura discursiva para as práticas de leitura e

escrita na escola, não pretendemos afirmar que os alunos devem tornar-se

“analistas do discurso” e sim associar os avanços trazidos pela AD ao processo de

ensino-aprendizagem da leitura e produção textual, de modo que essas práticas

sejam atividades que construam o sujeito-aluno, levando-o a constantes reflexões

sobre a língua, o mundo, o discurso e sobre si mesmo.

O que percebemos por meio da análise do ensino de língua portuguesa

em três turmas de 8ª série (9º ano) do ensino fundamental foi que, embora os alunos

estejam na fase da adolescência e, dessa forma, já apresentem certo grau de

maturidade, grande parte dos exercícios a eles propostos possuem um nível de

dificuldade inferior ao seu desenvolvimento intelectual, restringindo o aprendizado à

mera decodificação de textos e aos estudos exaustivos da gramática normativa.

Em vista disso, apontamos os estudos discursivos a fim de que eles

constituam-se enquanto ferramentas, instrumentos para uma substancial melhoria

das chamadas aulas de “interpretação de texto”19, sem que isso signifique

facilitação, ao contrário, as teorias do discurso, aplicadas ao ensino de língua

portuguesa, visam ampliar as competências dos alunos no que se refere à leitura e a

produção textual.

Esperamos que este trabalho, apesar de constituir-se apenas como parte

de uma discussão ampla acerca da língua e do discurso, possa contribuir para os

estudos linguísticos, mas, sobretudo, colaborar na construção de práticas de leitura

e escrita na escola que levem em conta o aspecto discursivo constitutivo da língua,

dos textos e de nós mesmos, enquanto sujeitos que somos.

19

Aqui, corroboramos com Maingueneau (1997), que apresenta a análise do discurso como um instrumento que substituiria a explicação de textos, uma visão da AD como forma de exercício nas escolas.

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REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola, 2003. p. 19 - 109.

______. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. 3. ed. São Paulo: Parábola, 2007.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 191 - 200

BRANDÃO, Helena. H. N. Introdução à análise do discurso. 2. ed. rev. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2004.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 16. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

______. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

GERALDI, João Wanderley. Unidades básicas do ensino de português. In: ______ (org.). O texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. 3. ed. Campinas, SP: Pontes/Ed. Unicamp, 1997.

MAZIÈRE, F. A análise do discurso: história e práticas. São Paulo: Parábola, 2007.

MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Anna Christina. Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. v. II. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

ORLANDI, Eni Puccineli. Discurso & leitura. 6. ed. São Paulo, Cortez; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.

______. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas, SP: Pontes, 2007.

VOESE, Ingo. Análise do Discurso e o Ensino de Língua Portuguesa. São Paulo: Cortez, 2004 (Coleção aprender a ensinar com textos; v. 13/ coord. Geral Adilson Citelli, Ligia Chiappini)

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Avaliação no ensino e aprendizagem de língua

portuguesa em contexto indígena:

considerações sobre língua e cultura

Evaluation in the teaching and learning of Portuguese in indigenous context: considerations about language and culture

Marina Oliveira Barboza (UEL-PG)

RESUMO: O processo de ensino e aprendizagem da língua está intimamente ligado ao ato de avaliar, pois envolve os objetivos e propósitos do ensino com o resultado que se deseja, a aprendizagem do aluno. As culturas indígenas possuem modos próprios de vivenciar o aprendizado fora da escola, diz respeito às especificidades étnicas dessa população e que a tradição escolar de ensino ignora. As concepções de ensino e de língua vão influenciar o aprendizado e, consequentemente, as formas de avaliação praticadas na escola. Destacamos que o contexto analisado é o de uma escola situada dentro de uma aldeia indígena, cuja cultura e valores devem ser considerados na hora da elaboração do currículo escolar, e principalmente na avaliação do ensino, conforme garantem os documentos que regem a Educação Escolar Indígena. Este artigo pretende abordar questões sobre avaliação que envolvem o ensino de língua portuguesa em uma comunidade escolar indígena de MS. Os dados foram colhidos durantes acompanhamento de aulas e de um conselho de classe. As reflexões sobre avaliação serão baseadas principalmente em HAYDT (2004) e HOFFMANN (2006), dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Avaliação. Ensino de língua portuguesa. Contexto indígena.

INTRODUÇÃO A comunidade escolar tem um público em que a maioria das crianças é

falante da língua indígena, contudo, ao ingressarem na escola, aos poucos vão

aprendendo o português e deixando de falar a Língua Indígena na escola e na

comunidade. O trabalho de ensino do professor de língua portuguesa nesse contexto

deve considerar de modo crítico as questões linguísticas dessa população, ou seja,

não levar em consideração os fatores sociolinguísticos da comunidade é negar que

essa atitude passa por cima de uma cultura e um modo próprio de ver e

compreender o mundo.

Como afirma Street (2014) a transferência de letramento de um grupo

dominante para aqueles que têm pouco conhecimento sobre leitura e escrita implica

não apenas na transferência de habilidades técnicas, mas de valores culturais e

sociais do grupo dominante. Nesse sentido, o ensino de português nessas

comunidades deve preocupar-se com o fato de que não apenas a Língua

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Portuguesa é “ensinada”, mas junto os valores ocidentais, logo é preciso pensar qual

espaço está sendo dado para as culturas locais e se, de alguma forma, essas

culturas não estão sendo subvalorizadas por meio do ensino da língua portuguesa.

A negação do direito à língua e à cultura, dentre tantos outros aspectos, traz

um prejuízo histórico e cultural muito grande para essas comunidades. Dentre eles,

a perda de conhecimentos tradicionais e linguísticos. Cabe ressaltar ainda que as

populações indígenas, no Brasil, sempre viveram à margem de nossa sociedade

que, por sua vez, impõe seu poder e delimita os espaços sociais, econômicos e

simbólicos desses povos.

No primeiro tópico abordaremos questões sobre avaliação na perspectiva

interacional em Hoffmann (2006) e Haydt (2004) destacando que as atitudes do

professor e sua concepção sobre avaliação tem papel fundamental e afeta

significativamente a vida do educando. No segundo tópico, tendo em vista o contexto

específico da comunidade indígena, destacaremos a importância de se considerar

os aspectos linguísticos, étnicos e culturais no ensino de língua portuguesa. O

terceiro tópico abordará algumas práticas avaliativas na escola indígena e como os

professores concebem o ensino de língua portuguesa.

AVALIAÇÃO, ENSINO E APRENDIZAGEM: PRÁTICAS SENSÍVEIS

HAYDT (2004) diz que o ensino e a aprendizagem estão interligados, são

indissociáveis, ou seja, o rendimento do aluno diz respeito ao trabalho docente,

sendo responsabilidade do professor pensar suas técnicas de avaliação. A autora

diz que a atividade de avaliar não tem por meta atribuir nota, argumenta que,

em decorrência de uma nova concepção pedagógica, a avaliação assume dimensões mais amplas. A atividade educativa não tem por meta atribuir nota, mas realizar uma série de objetivos que se traduzem em termos de mudanças de comportamento dos alunos. E cabe justamente à avaliação verificar em que medida esses objetivos estão realmente sendo alcançados, para ajudar o aluno a avançar na aprendizagem. (HAYDT, 2004, p. 8)

Há uma cultura de avaliar na qual se confundem os objetivos avaliativos com

as notas utilizadas para medir o rendimento dos alunos. É preciso pensar em como

se chega ao resultado da nota, ou seja, quais instrumentos são utilizados para se

chegar a determinado resultado. A autora argumenta que os termos avaliar e medir

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105

comumente são concebidos como sinônimos, Haydt diz que nem todos os aspectos

da educação podem ser medidos.

Também Furtoso e Silveira (no prelo) destacam que a avaliação é um meio

para se chegar a aprendizagem e não um fim em si mesmo, ela deve ajudar o

professor no planejamento e implementação do ensino e não apenas medir e

classificar o desempenho do aluno.

Assim, avaliar é um processo interpretativo, não apenas os aspectos

quantitativos estão envolvidos na avaliação, mas também os aspectos qualitativos

“abrangendo tanto a aquisição de conhecimentos e informações decorrentes dos

conteúdos curriculares quanto as habilidades, interesses, atitudes, hábitos de estudo

e ajustamento pessoal e social” (HAYDT, 2004, p. 10).

A amplitude do termo avaliar também é discutido por Hoffmann (2006) que

destaca que não se deve confundir avaliação com provas, testes ou exercícios, pois

estes são apenas os instrumentos utilizados. Sugere a autora que se reflita primeiro

na concepção dos próprios educadores sobre avaliação para só depois pensar e

planejar as metodologias, instrumentos e formas de registro. Enfatiza o papel do

professor na relação com o educando no processo de avaliação de aprendizagem,

pois o modo como age o professor em relação a avaliação afeta a vida do

educando, e destaca três etapas a ser seguidas pelo avaliador:

Essa é a intenção do avaliador: conhecer, compreender, acolher os alunos em suas diferenças e estratégias próprias de aprendizagem para planejar e ajustar ações pedagógicas favorecedoras a cada um e ao grupo como um todo. o objetivo de “promover melhores condições de aprendizagem” resulta em mudanças essenciais das práticas avaliativas e das relações com os educandos, uma vez que toda observação ou “exigência” do professor passa a vir acompanhada de apoios, tanto intelectuais quanto afetivos, que possibilitam aos alunos superar quaisquer desafios. (HOFFMANN, 2006, p. 14) grifo nosso

Nessa perspectiva a educação passa a fazer sentido para professores e

alunos, pois como afirma Hoffmann (2006, p. 15) as pessoas são diferentes e,

portanto, têm olhares diferentes para o mundo, assim afirma a autora “pretender

constituir a avaliação da aprendizagem num processo objetivo, normativo e

padronizado é deturpá-la em seu significado essencial - de humanidade”.

A sala de aula é um espaço múltiplo e exige do professor diversos

movimentos em direção ao aluno, é o olhar focado nas diversidades e suas

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106

necessidades. Não é um trabalho fácil tentar dar conta de tantas especificidades,

mas a percepção desse aspecto é importante para o educador cuja prática é

engajada no propósito de fazer com que o educando torne-se competente na

busca de seu próprio conhecimento. Observar essas multiplicidades de aspectos faz

parte de um trabalho que é inerente ao ofício do professor educador.

A prática dialógica favorece a interação entre os alunos e entre os

professores, pois “na heterogeneidade de uma turma de alunos se expressam as

singularidades, uma vez que se revelam as opiniões dissonantes, os conflitos, os

diferentes jeitos de fazer, falar, de sentir, se forem criadas as oportunidades para tal”

(HOFFMANN, 2006, p. 16)

As práticas avaliativas na escola geralmente não possuem um para que se

avaliar, estão fortemente centradas na necessidade de aplicação de instrumentos

tais como provas, testes, trabalhos, seminários, resumos, etc. Esses instrumentos

são concebidos como avaliação, logo avaliar resume-se em aplicar tais

instrumentos. Não há reflexão sobre o que fazer com os resultados desses

instrumentos, não há uma interpretação, como destaca Haydt, dos aspectos

qualitativos do processo.

Há uma fragmentação da avaliação por bimestre, não sendo considerado o

progresso do aluno, mas apenas seu estado naquele momento, naquele bimestre e

em termos quantitativos, majoritariamente. Logo, um aluno que tenha conseguido

uma nota 10,0 no primeiro bimestre e no segundo um 4,0 terá como rendimento uma

média 7,0 mas o que fazer com esse resultado? O que houve com a nota no

segundo bimestre? São apenas os valores quantitativos que devem ser levados em

consideração?

São questões nas quais o professor deveria refletir, mas no geral os alunos

são vistos como números na escola, não raro se ouve de professores ;“ele é uma

aluno nota dez”; “ tirou zero”; “não tem média”. São afirmativas que traduzem as

concepções de avaliação do sistema escolar baseadas em dados matemáticos que,

isoladamente, nada representam em termos de saber o quanto o aluno é capaz de

desenvolver sua autonomia na aprendizagem, e de como interage com os diversos

saberes e com as pessoas a sua volta.

Os três aspectos defendidos por Hoffmann (2006, p. 17) na avaliação

observar, refletir e agir são importantes para pensarmos que a avaliação não pode

Anais do SIDIALE

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ser vista apenas como algo linear, mas é um ir e vir constante, há como afirma a

autora uma dinamicidade característica própria da aprendizagem, ou seja, “avaliar é

agir com base na compreensão do outro (...) sem uma reflexão séria e valores éticos

se perdem os rumos do caminho, a energia, o vigor dos passos em termos da

melhoria do processo”. Muitas vezes vemos professores cansados e desanimados

com tantos registros de notas, pois com certeza fazer parte de um contexto

avaliativo que não faz sentido, esgota as forças como bem destaca Hoffmann.

Não apenas professores se veem perdidos nesse processo, mas

principalmente os alunos, pois além de não verem sentido nas avaliações realizadas

na escola, não são vistos como sujeitos desse processo, ou seja, eles são apenas

recrutados para fazerem testes e provas, mas não são convidados a refletir sobre

sua própria aprendizagem.

O tipo de avaliação que geralmente se vê na escola é castradora e muitas

vezes humilhante para o aluno. Ao invés de sentir que é um ser em processo de

aprendizagem, e que, portanto, o erro faz parte desse processo, o educando tem

suas habilidades e capacidade cognitiva medidas em números por meio de provas e

testes que apontam mais para os erros e lacunas do que para o conhecimento

prévio ou para o progresso no aprendizado. Assim, muitos alunos passam a duvidar

de sua própria capacidade em aprender, pois são os números que dizem como ele é

cognitivamente. Há algo errado no reino da escola!

A sensibilização do professor às individualidades e subjetividades dos alunos

é essencial para o desenvolvimento sadio de relações que devem ser dialógicas por

natureza.

AVALIAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E QUESTÕES SOBRE LÍNGUA E CULTURA A comunidade escolar analisada neste trabalho é composta uma população

indígena falante da língua guarani ao contrário de outras comunidades da região que

já deixaram de falar a língua indígena, sendo portanto monolíngues em português.

Há nessa comunidade tanto por parte de algumas lideranças indígenas e

professores indígenas o desejo de manter viva a língua e com ela os saberes

culturais que são transmitidos via oralidade pelos mais velhos da aldeia.

Também há um movimento de linguistas nas universidades da região que

colaboram com a formação de professores dentro de uma perspectiva da linguística

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108

aplicada para o ensino e manutenção das línguas indígenas, visto que Mato Grosso

do Sul é uma região em que há uma população expressiva de indígenas.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na

Educação Básica dizem que as escolas indígenas devem fundamentar seus

projetos educativos pautados nos seguintes princípios: da especificidade, do

bilinguismo, do multilinguismo, da organização comunitária, da interculturalidade de

modo que as línguas sejam valorizadas, bem como o conhecimentos tradicionais,

suas ciências e suas identidades étnicas.

O acesso aos conhecimentos universais, técnicos e científicos da sociedade

envolvente também lhes é assegurado pelas leis leis sobre Educação Escolar

Indígena. Contudo, o que se vê nessas escolas, geralmente, é a falta de atenção

quanto às necessidades e especificidades dessa população e desconsideração

quanto à cultura.

O ensino de língua portuguesa, bem como de outras disciplinas é

simplesmente despejado sobre os educandos, não se questiona como essa

apreensão de conhecimento se relaciona com seus modos próprios de

aprendizagem e de saberes.

A interculturalidade está somente no papel. Como afirmamos anteriormente

em Street (2014) as propostas de letramento nessas comunidades trazem não

apenas as habilidades técnicas da alfabetização, mas também impõem outra lógica

de mundo, diferente da lógica dessas comunidades. Isso interfere nos processos de

ensino e aprendizado na medida em que os saberes locais vão sendo

subvalorizados e consequentemente abandonados, pois os alunos não encontram

relação com o suas práticas fora da escola.

A atuação do professor de língua nesse contexto não pode ser omissa à

essas

questões, muito embora isso requeira um engajamento na compreensão do outro e

nem todos os profissionais estão dispostos a envolver-se, ou por comodidade ou por

não acreditarem ser necessário ou possível, ou por falta de formação específica para

esses contextos.

Contudo, como ensinar uma segunda língua em um contexto bilíngue sem

observar questões como interferências linguísticas, mudança de código, as

interferências fonéticas, gramaticais, estilísticas, bem como os aspectos culturais

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desses falantes? Se esses aspectos não forem inerentes ao ofício de um professor

de línguas. Então, quais aspectos serão?

Observamos que por falta de uma formação linguística mais apropriada que

contemple os múltiplos aspectos e facetas do ensino de língua, o professor tende a

focar no ensino gramatical. Nesse contexto seria mais rico e proveitoso propiciar aos

alunos um ensino contrastivo das línguas de modo que entendessem o porquê das

diferenças linguísticas.

Nas fotos as seguir fazemos algumas observações sobre qual perspectiva o

ensino de língua portuguesa é pautado e como a cultura dominante vai sendo

incorporada por meio de livros didáticos e atividades que mesmo no melhor dos

propósitos não levam em consideração os valores culturais e ideológicos que estão

atrelados ao ensino de língua portuguesa. As reflexões aqui apresentadas foram

feitas a partir de observações de aulas de língua portuguesa numa escola indígena

no ano de 2014.

Foto 1 Foto 2

Foto 3

A foto 1 é do Livro didático: Vontade de Saber Português, 6º ano. 1ª edição.

São Paulo: FTD, 2012. PNLD: 2014 -2016. A página destacada traz uma atividade

de gramática, cujo propósito é reconhecer substantivos próprios, comuns, derivados

e primitivos. Os estudantes são convidados a tão somente copiarem um poema e

depois responderem ao questionário do livro. Nessa mesma página aparece uma

ilustração da História infantil Chapeuzinho Vermelho, nenhuma atenção é dada aos

aspectos literários da história, mas há um conteúdo de outra cultura implícito nessa

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110

página que poderia ser melhor discutido com os alunos, em contrapartida,

promovendo um ensino intercultural, poderia-se ouvir as crianças indígenas quanto

às histórias semelhantes em sua cultura.

Na foto 3 na sala de alfabetização observamos mais uma vez como os

aspectos culturais de outras culturas vão sendo incorporados ao ensino de língua.

Para mostrar às crianças as letras do alfabeto a professora utilizou para a letra W a

palavra Wolwerine em letras de forma e Wolverine para letras cursivas, causando

uma confusão ortográfica na vida escolar das crianças. Além disso tem o aspecto

cultural, Wolverine é um personagem do cinema americano, ou seja, o ensino de

Língua Portuguesa traz não só os valores da cultura nacional, mas os valores

culturais também incorporados de outras culturas.

A questão não é impedir o acesso aos valores culturais de outras populações,

até porque a proposta é a de um ensino intercultural. Contudo, não há essa prática

da interculturalidade, cada vez mais vai se impondo os saberes e costumes da

sociedade envolvente de modo que os saberes indígenas vão sendo subvalorizados,

já que não há representação desses saberes em livros didáticos, o conhecimento

que é transmitido é tão somente o da cultura dominante, há uma ausência de

representação dos valores locais.

Na Foto 2 observa-se que o foco em estudo gramatical e análise sintática da

língua portuguesa é transferido também para o ensino da língua guarani. A foto do

quadro de giz na sala de aula ilustra a atividade que os alunos devem fazer, ou seja,

escrever 5 frases com verbos intransitivos em língua guarani para entregar. Para

que? Quais os objetivos de aprendizagem de uma atividade como essa?

Nessa perspectiva de ensino a avaliação acompanha a mesma linha, ou seja,

são cobrados a nomenclatura da língua, análises sintáticas de frases

descontextualizadas e a isso se chama “ensino de língua”, ou seja, não há sentido

para o aluno aprender a língua dessa forma.

Em consequência desse ensino deficitário há várias situações em relação ao

ensino de Língua Portuguesa na comunidade tais como o aluno indígena sai da

escola como analfabeto funcional; os estudantes indígenas sofrem preconceito por

não saberem o português “correto”; alguns repetem vários anos e são tidos como

incapazes cognitivamente por não compreenderem a língua portuguesa; as

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111

interferências da língua indígena na língua portuguesa são avaliadas como erros

pelos professores.

Contudo, a apreensão da língua portuguesa é importante, pois precisam

interagir com o não indígena em diversos contextos fora da aldeia. Esse cenário

exige que o professor tenha uma formação mínima em ensino de língua portuguesa

como segunda língua, além de conhecimento, vontade e sensibilidade para com as

especificidades desse grupo social.

CONCEPÇÕES AVALIATIVAS EM CONTEXTO INDÍGENA: O CONSELHO DE CLASSE Os apontamentos sobre o ensino de Língua Portuguesa nessas comunidades

deixam evidentes a concepção de língua que os professores têm, e isso se reflete

nas concepções sobre avaliação do ensino e aprendizagem. Neste tópico

abordaremos a avaliação realizada no conselho de classe da escola procurando

destacar os aspectos sobre o ensino de língua portuguesa.

Hoffmann (2006, p. 38) diz que o “Conselho de Classe é um espaço

pedagógico de compartilhamento de juízos avaliativos sobre a aprendizagem e de

troca de experiências docentes nesse sentido”. A autora destaca ainda que é um

espaço institucional de compartilhamento de observações sobre os aluno para

decidir estratégias pedagógicas, além de promover reflexão sobre as concepções

pedagógicas, epistemológicas e didáticas.

É um momento em que a cultura de avaliação escolar se evidencia, ou seja,

como os professores e a escola veem o ato de avaliar e como atuam

individualmente e coletivamente nesse processo. Hoffmann afirma que há uma

tendência em prejulgar o aluno, antes mesmo de conhecê-lo em profundidade. Os

professores muitas vezes não distinguem avaliação de ensino e aprendizagem de

julgamentos pessoais e muitas vezes, preconceituosos sobre os alunos. Não raro

alunos de periferia ou cujas famílias não obedecem à formação tradicional são tidos

como problemáticos ou deficitários na aprendizagem sem que antes se faça um

diagnóstico sério sobre sua situação de aprendiz.

A avaliação na escola indígena retrata a concepção de ensino da escola.

Grande parte das aulas, não apenas de língua portuguesa, são ocupadas com

cópias do quadro. Pudemos perceber o quanto os alunos estão fatigados dessa

atividade escolar:

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“Todo dia a gente só copia” (aluno)

“pessoal, é continuação tá... vocês só vão copiar hoje, na próxima aula a gente faz as atividades”. (professor)

Durante o Conselho de Classe pudemos observar que de fato essa era uma

postura de todo o corpo docente havia uma ênfase muito grande sobre a cópia de

conteúdo do quadro. Os professores apontavam que os alunos não copiavam e que

por isso não aprendiam. Assim, a fala dos professores sobre os alunos durante o

conselho expressava o que viam como aprendizagem, ou seja, o fato de os alunos

copiarem os conteúdos.

P1: Os alunos não copiam, não fazem as atividades

P2: Eles não conseguem ler o que copiam P3: Não copiam as questões P4: Eles não copiam. Como vão aprender se não copiam (...) eles pulam linhas para não copiar tudo. P5: Eles não conseguem ler a própria letra P6: A hora que tem que pensar pra passar no papel eles não conseguem P7: Quando precisam pensar para interpretar eles não conseguem

Essas observações foram feitas por praticamente todos os professores de

todas as áreas de conhecimento. Acreditam que a cópia de textos é necessária para

o domínio da escrita e apreensão dos conhecimentos. Pelas observações acima

essa prática é massante e sem propósito para a aprendizagem, pois não produz

sentido para a maioria dos alunos e que chegam ao sexto ano ainda monolíngues

em língua indígena. Assim, as cópias em língua portuguesa não fazem mesmo

sentido, aliás não fazem nem para quem é nativo em língua portuguesa.

Os conhecimentos precisam ser contextualizados, discutidos, devem ter seus

objetivos apresentados aos alunos, copiar para que? As comunidades indígenas

concebem o conhecimento de modo prático, ou seja, conhecimento para utilidade,

para se usar de alguma forma. É importante que o aluno saiba qual a finalidade de

estudar determinados conteúdos, questionar e refletir sobre qual a relação dos

conhecimentos escolares com a realidade do aluno é importante para torná-lo sujeito

do processo de aprendizagem. Almeida Filho (2013, p. 9) diz que o aluno “é um

agente com recursos diversos para a aprendizagem e não mero receptor passivo de

um ensino pautado nos fatos do conhecimento acumulado”

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113

Além das cópias, as observações do conselho mostram a centralização da

avaliação nas notas. O conselho tem tempo determinado para começar e acabar e

muitas vezes, numa única manhã é preciso fazer o conselho de três ou quatro

turmas. Desse modo, não há tempo para maiores observações e o Conselho vira um

ditado de notas. As piores notas são justificadas pelos professores e,

majoritariamente, a culpa do baixo rendimento recai sobre o próprio aluno.

Alguns professores reclamam que os alunos já sabem que têm suas notas

aumentadas nos conselhos e se prevalecem não estudando o suficiente. Contudo, o

que se entende por “aumentar a nota” é dar míseros décimos: de 2,1 para 2,5; de

1,2 para 1,5. O que isso resolve? Gastar tempo em decidir décimos? E o aluno? E o

que fazer com a aprendizagem que não está ocorrendo? Aliada a essa situação as

notas são dadas sem critérios definidos como no exemplo abaixo:

P: Falei com a mãe para olhar o caderno dele. Não falta, mas não copia. (nota 4,5)

P: Não escreve nada é bem tímido. (4,5) P: Só tem cinco presenças, não fez nada. Deixei com (2,0)

No caso acima, um aluno que não falta recebe 4,5 e outro que tem apenas 5

dias de presença em um bimestre inteiro fica com média 2,0. Ou seja, o aluno não

falta, mas avaliação recaiu somente no fato de que ele não copia. Enquanto outro

que não assiste as aulas ficou com praticamente metade da nota do aluno que

nunca falta.

Percebe-se que as dificuldades dos professores em avaliar os alunos são

muitas e não há um parâmetro que considere o aluno de um modo mais integral. O

que é levado em conta é o quanto este consegue copiar e retransmitir o que

“aprendeu” e quanto isso representa em números. Não há um trabalho efetivo para

resolver o problema e alguns professores não têm certeza do que acontece com

seus alunos: “Eu acho que ele não é alfabetizado. Só copia. Demora”.

A escola torna-se apenas um espaço reprodutor de conhecimentos que em

nada contribuem para a aprendizagem dos alunos e nem para o seu

desenvolvimento cognitivo.

Os professores não conseguem perceber que a questão linguística dessa

população atinge todas as áreas e que seria necessário que todas as áreas tivessem

um mínimo de conhecimento sobre as implicações linguísticas para poder

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desenvolver as suas atividades pedagógicas. Hoffmann (2006, p. 19) propõe uma

avaliação mediadora na qual devem estar presente três tempos: tempo da

admiração cuja ação é um olhar sobre o outro, de modo a tentar entendê-lo num

processo dialógico; tempo da reflexão sobre os jeitos de aprender a realidade e o

terceiro tempo é o da ação, da tomada de consciência do que é preciso fazer como

educador.

Estes tempos têm relação com uma concepção formativa que segundo a

autora diz respeito ao envolvimento e comprometimento do educador com seus

alunos e com a consciência de que o progresso na aprendizagem depende da

intervenção pedagógica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As práticas de ensino e aprendizagem sempre se refletirão na avaliação.

Avaliar é agir sobre o outro e no caso da avaliação escolar, o outro, o aluno, vive

uma relação assimétrica de poder. O professor não pode usar a avaliação para

exercer qualquer tipo de dominação. A avaliação é para refletir sua própria prática

desenvolvendo estratégias pedagógicas com o objetivo primeiro de todo educador,

levar o aluno a ser sujeito de sua própria aprendizagem.

As escolhas realizadas pelo professor devem ser pautadas num olhar e numa

escuta sensível, principalmente em contextos de minorias como no caso de escolas

indígenas. Nessas comunidades o professor de língua deve organizar sua prática

pedagógica refletindo não apenas nas questões linguísticas, mas também deve

refletir sobre o papel da língua materna para a comunidade e sua relação com a

cultura e a identidade.

A prática de ensino com foco no que é relevante ser estudado poderia levar a

uma avaliação mais proveitosa tanto para o aluno quanto para o professor. É preciso

observar as possibilidades de se avaliar pensar nos objetivos e verificar quais

instrumentos serão melhor aplicados em cada etapa. Enquanto os testes e provas

objetivas forem o principal e, muitas vezes, a única forma de avaliar os alunos,

teremos alunos que reprovam anos seguidos, ou um aprendizado que não responde

às necessidades sociais.

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REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Dimensões Comunicativas no Ensino de Línguas. Campinas, SP: Pontes, 2013. FURTOSO, V.B.; SILVEIRA, P. Avaliação no ensino e na aprendizagem de línguas estrangeiras: revisão bibliográfica. In: SILVEIRA, P.; ARAUJO, V. (Orgs.) O ensino de línguas estrangeiras em discussão: da teoria à prática. No prelo. HAYDT, Regina Célia Cazaux. Avaliação do Processo de Ensino-Aprendizagem. São Paulo: Ática, 2004 HOFFMANN, Jussara. O Jogo do Contrário em Avaliação. Porto Alegre: Editora Mediação, 2006. MEC. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. Resolução nº 05, de 22 de junho de 2012. Disponível em <portal.mec.gov.br>. Acesso em: 31.08.2017.

STREET, Brian. Letramentos Sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola, 2014.

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Convergências entre os Estudos do Letramento, a Linguística Aplicada e a Pedagogia do Movimento Sem Terra

Convergences Between Literature Studies, Applied Linguistics and the

Landless Movement Pedagogy

Bruna Carolini Barbosa (PG - UEL/CAPES)

RESUMO: O termo letramento, no Brasil atribuído à Mary Kato (1986), surgiu para separar os estudos sobre alfabetização e os usos sociais da escrita. Nas últimas décadas o conceito de letramento tem sofrido vários deslocamentos em decorrência da incorporação de conceitos de áreas diversas, o que culminou no aparecimento de termos como letramento literário, letramento digital, entre ouros. Os New Literacy Studies, no Brasil chamados de Estudos do Letramento, representam uma perspectiva sociocultural em que a escrita não pode ser compreendida como uma capacidade individual, mas como exercício contextualizado de uma diversidade de práticas sociais letradas inseridas em diferentes culturas. Este trabalho objetiva discutir a perspectiva etnográfica dos Estudos do Letramento (HEATH, 1982; STREET, 1998, 1993, 2006; BARTON, 2000) e suas interfaces com o campo transdisciplinar e crítico da Linguística Aplicada (KLEIMAN, 1995, 2007, 2013; KLEIMAN e DE GRANDE, 2015). Para tanto, abordaremos as unidades de análise eventos e práticas de letramento, bem como sua articulação com alguns conceitos bakhtinianos (BAKHTIN, 1995) para analisar os usos da escrita pela Pedagogia do Movimento Sem Terra (CALDART, 2000, 2009). As discussões contribuíram para uma revisão da origem e diferentes usos do termo letramento, bem como da contribuição das unidades de análise desta área de pesquisa para a Linguística Aplicada. PALAVRAS-CHAVE: Estudos do Letramento. Linguística Aplicada. Eventos de Letramento. Práticas de Letramento. Pedagogia do Movimento.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este breve ensaio tem por objetivo discutir os pontos de convergência entre

a disciplina de Estudos Avançados “Interfaces entre Estudos de Letramento,

formação de professores e Linguística Aplicada”, ministrada pela professora Drª.

Paula Baracat de Grande, e as práticas de letramento do Movimento Sem Terra.

Para tanto, propomos um diálogo entre alguns conceitos suscitados durante o

curso e a Pedagogia do Movimento, que norteiam as ações educativas do MST.

Iniciaremos com a discussão sobre o conceito de Letramento e suas

ressignificações, decorrentes dos estudos etnográficos e o consequente surgimento

das unidades de análise “eventos de letramento” (HEATH, 1982) e “práticas de

letramento” e seus dois modelos – autônomo e ideológico (STREET, 1984). A partir

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das reflexões iniciais será possível estabelecer os pontos de encontro entre o que

hoje conhecemos como Estudos do Letramento e a Pedagogia do MST.

O termo “eventos de letramento” advém de um extenso estudo etnográfico

realizado por Heath (1992) em três comunidades distintas no sudeste dos Estados

Unidos: Tracktown, uma comunidade negra de operários, vindos recentemente da

zona rual; Roadville, uma comunidade branca de operários; e Mainstown,

representando a cultura mainstream de classe média, voltada para a escola.

A pesquisa buscava investigar o desenvolvimento da linguagem das

crianças quando elas estavam em casa em interação com os familiares, os meios de

construção de sentidos a partir dos livros e relacioná-los com a realidade, processo

este que é encarado como natural pela escola e pelos professores, enquanto, na

verdade, são comportamentos aprendidos, como comer ou sentar, por exemplo

(HEATH, 1992).

A partir dos estudos de Street no início da década de 80 surge o conceito de

práticas de letramento e os modelos autônomo e ideológico. A noção de prática

surge com o objetivo de investigar padrões nos eventos de letramento (STREET,

2010). Portanto, o conceito de práticas de letramento está intimamente associado ao

de evento de letramento ou seja, “situações de uso da escrita, as quais se

acrescentariam os valores, as crenças, os discursos sobre a escrita, as atitudes e as

construções sociais dos participantes dessas situações de escrita” (VIANA et. all,

2016, p.32).

OS LETRAMENTOS E A PEDAGOGIA DO MST

A origem da palavra “letramento” é atribuída à Mary Kato (1986) com o

objetivo de separar os estudos sobre alfabetização dos estudos sobre o impacto

social da escrita. Atualmente a noção de letramento abrange estudos sobre o

impacto social da escrita, não necessariamente vinculados à aquisição (KLEIMAN,

1995). O que veio a ser conhecido como os Novos Estudos do Letramento passou a

representar uma perspectiva que não focaliza o uso da escrita como uma

capacidade individual, mas como o exercício contextualizado de uma diversidade de

práticas sociais letradas inseridas em diferentes culturas.

O questionamento da supervalorização da escrita levou Street ao

envolvimento com conceitos teóricos pertencentes à área que são conhecidos hoje

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como New Literacy Studies ou Estudos de Letramento, no Brasil. A partir de estudos

do tipo etnográfico, o autor caracteriza diferentes modelos de letramento e postula a

ideia de letramentos, no plural, uma vez que, através de suas pesquisas etnográficas

em diferentes contextos culturais, submete seus dados a uma triangulação sob o

enfoque de três grandes áreas do conhecimento – Linguagem, Antropologia e

Educação - que o levam à percepção de diferentes formas de representação e

significação do letramento.

Com o objetivo inicial de investigar os aspectos e impactos sociais do uso da

língua escrita, os Novos Estudos do Letramento aos poucos foram infiltrando-se no

discurso escolar, apesar de tais estudos relativizarem a importância da

escolarização da língua escrita e considerarem a instituição escolar não

necessariamente a principal, mas somente uma dentre as possíveis agências de

letramento. (STREET, 2014; KLEIMAN, 2005).

A investigação etnográfica em lares e escolas de um bairro de classe média

de uma cidade do nordeste dos Estados Unidos, realizado por Street (2014), com o

objetivo de observar os modos como, tanto em casa quanto na escola, as

concepções de letramento são construídas e reproduzidas, fez com que o autor

começasse a questionar porque a variedade de letramento associada à

escolarização veio a tornar-se o tipo definidor, já que existem tantos outros tipos de

letramento praticados nas comunidades. Levou-o também a investigar o motivo pelo

qual o letramento escolar era privilegiado de tal forma que os letramentos

alternativos tornavam-se completamente marginalizados.

O termo “eventos de letramento” (HEATH, 1982) é fundamental para

pesquisas que se ocupam da investigação dos modos de apropriação de

significados mediados pela escrita:

In such literacy events, participants follow socially established rules for verbalizing what they know from and about the written material. Each community has rules for soccially interacting and sharing knowledge in literacy events. (HEATH, 1982, p.50)20

20

Em tais eventos de letramento os participantes seguem regras estabelecidas socialmente para verbalizar o que eles sabem a partir do material escrito e sobre esse mesmo material. Cada comunidade tem regras para interagir socialmente e compartilhar conhecimentos em eventos de letramento (traduzido pela autora).

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Street (2010), ao referir-se a tal conceito, aduz que essa expressão é usada

como uma “ferramenta de pesquisa para ter a noção de evento de letramento no

qual se pode dizer que há ali uma atividade, um evento. Há nele letramento

suficiente para que eu possa chamá-lo de evento de letramento” (STREET, 2010,

p.38).

A descrição desses eventos de letramento possibilita a visualização de

regularidades em que as próprias falas, discursos, tipos de texto e até mesmo certas

vestimentas ritualísticas podem sinalizar para o seu reconhecimento, permitindo o

agrupamento em conjuntos de eventos de letramento de forma a dar a eles um

padrão constituindo as práticas de letramento. Para Kleiman (2005, p.12), as

práticas de letramento são um “conjunto de atividades envolvendo a língua escrita

para alcançar um determinado objetivo numa determinada situação, associada aos

saberes, às tecnologias e às competências necessárias a sua realização”.

As práticas de letramento remetem às práticas sociais e concepções de

escrita e leitura, ou seja, qual significado é atribuído ao letramento em determinadas

situações. Street entende as práticas de letramento

como um conceito mais amplo, alçado a um nível mais elevado de abstração e referindo-se a comportamentos e conceitualizações relacionados ao uso da leitura e/ou da escrita. As práticas letradas incorporam não só os “eventos de letramento”, como ocasiões empíricas de que o letramento é parte integrante, mas também “modelos populares” desses eventos e pre-concepções ideológicas que os sustentam. (2014, p.174)

Hamilton (2000) criou uma metáfora que explica e diferencia os eventos de

letramento e as práticas de letramento. A autora utiliza a comparação com um

iceberg sendo que os eventos de letramento podem ser entendidos como a ponta do

iceberg, visível acima da superfície. As práticas, portanto, seriam o que está abaixo

da superfície, submerso, e corresponde à estrutura do iceberg, que não pode ser

visto, mas pode ser percebido a partir da ponta, ou seja, ou eventos de letramento,

visíveis e passíveis de registro.

Os eventos de letramento são as situações de comunicação mediadas pela

escrita e são passíveis de registro porque, em uma comunidade, é possível observar

e registrar os eventos de letramento nos quais estão inseridos os indivíduos. As

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práticas de letramento, por sua vez, são constituídas pelo conjunto de eventos de

letramentos, por sua regularidade e semelhança.

Em uma comunidade do MST, por exemplo, há várias situações de

comunicação mediados pela escrita: reuniões de brigada, assembleias, mística,

entre outras. Essas situações são os eventos de letramento, semelhantes em

determinados aspectos e praticados com regularidade, e que constituem, portanto,

as práticas de letramento do Movimento. A ideologia do MST está sempre presente

nas ações educativas do Movimento e a escola inserida nesse contexto sociocultural

está vinculada a uma perspectiva ideológica e politicamente engajada de letramento,

visando a propiciar uma educação transformadora.

O Setor de Educação do MST e que suas ações educativas vão além do

espaço escolar. A formação do militante é fruto de vários eventos de letramento,

como marchas, caminhadas, ocupações, assembleias, etc., e que a escola é um dos

mais importantes instrumentos de luta do Movimento. Os significados atribuídos à

leitura e escrita neste contexto está vinculado ao modelo ideológico de letramento, já

que devem estar inseridos em práticas sociais.Em contraposição à visão autônoma

de letramento (STREET, 2014), estudos apontam para a necessidade de se propor

práticas de ensino que priorizem os usos sociais da língua e as considerem para fins

de estruturação dos currículos e seleção de temas significativos ao contexto em que

estão inseridos os alunos (KLEIMAN, 2010).

Considerar o contexto e as singularidades dos sujeitos são fatores

indispensáveis quando pensamos na Educação do Campo. Ao longo da história, a

construção de uma proposta de educação pensada pelos e para os sujeitos do

campo tem ganhado força no debate nacional, inclusive com a formulação de

políticas públicas afirmativas e com o significativo protagonismo dos movimentos

sociais, em especial, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

PEDAGOGIA DO MOVIMENTO SEM TERRA

A educação no MST pode ser compreendida em três aspectos: as ações

político-organizativas do Movimento, as ações de educação não formal e as ações

de educação formal.

O primeiro aspecto está relacionado às ações educativas do Movimento de

um modo político organizacional, de que todos os militantes participam, como, por

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121

exemplo, marchas e ocupações. As ações políticas, entendidas como forma de luta,

possuem um caráter pedagógico, pois o MST entende-se como um sujeito educativo

em que os militantes são educados para a conquista da cidadania (CALDART,

2009).

O segundo aspecto diz respeito às ações educativas não formais. Como educação

não formal entendem-se as realizadas de forma organizada com base em um projeto

político pedagógico e em um espaço definido, mas sem estar vinculadas à política

educacional do Estado. Exemplos dessas ações educativas não formais são os

centros de formação existentes em diversos acampamentos. No Paraná, por

exemplo, existem alguns centros de formação, a saber, o CEAGRO – Centro de

Formação em Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável, situado em Cantagalo e

o ITEPA – Instituto Técnico de Pesquisa da Reforma Agrária, em São Miguel do

Iguaçu, entre outros.

O terceiro aspecto refere-se à educação formal, garantida pelo Estado e

subsidiada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, direito reivindicado

pelo Movimento desde sua origem, mas que passou a ser alvo de mobilizações com

objetivos específicos: a política pública de educação do campo, que deu origem às

Escolas Itinerantes.

Escola itinerante é a denominação dada às escolas localizadas em acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) […] Denominam-se itinerantes porque acompanham a luta pela Reforma Agrária, assegurando a escolarização dos trabalhadores do campo. Desta forma, a escola itinerante, em seus objetivos gerais, não se diferencia das demais escolas do MST; o que altera são as circunstâncias em que ela está inserida: em um acampamento, que, em geral, tende a ser um espaço no qual a luta de classes é mais evidente. (BAHNIUK e CAMINI, 2012, p.331)

As escolas itinerantes compõem a rede estadual de ensino com a aprovação

dos conselhos estaduais de educação e são vinculadas a uma escola-base,

responsável pelo tratamento de questões burocráticas, como verbas, matrículas e

outras. As escolas itinerantes têm particularidades em relação ao quadro de

professores:

[…] de forma geral, os educadores responsáveis pela educação infantil e pelos anos iniciais do ensino fundamental são acampados

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do MST. E os educadores dos anos finais do ensino fundamental e do médio são professores da rede estadual de ensino, selecionados a partir das exigências estabelecidas pela Secretaria Estadual de Educação. (BAHNIUK e CAMINI, 2012, p.332)

Embora a seleção dos professores para o ensino fundamental e médio seja

realizada pela Secretaria de Educação, o Setor de Educação do movimento, que

atua junto à direção em um modelo de gestão coletiva, tem relativa autonomia e

prioridade para opinar sobre essas escolhas. Convém apontar que, embora o

Movimento priorize a organicidade da escola, não há ainda um total distanciamento

do modelo educacional capitalista; assim, segundo Bahniuk e Camini (2012, p.331)

“ao mesmo tempo que apresenta possibilidades, por estar mais distante do controle

do sistema, também o compõe e o reproduz, não perdendo o peso da instituição

escolar”.

Organicidade é um termo recorrente no MST e refere-se ao movimento

orgânico que subsidia as instâncias organizativas, bem como a relação entre elas.

Na escola, a organicidade está relacionada “às várias formas de organização

vivenciadas pelos educadores e educandos, bem como à relação da escola com a

comunidade acampada e as instâncias do Movimento” (BAHNIUK e CAMINI, 2012,

p.334), ou seja, a organização coletiva em que os envolvidos no processo escolar

têm sempre o direito à participação, espaço para a problematização da avaliação,

além de organizarem-se em grupos de trabalho, denominados núcleos de base.

Organicidade relaciona-se à contraposição das relações sociais capitalistas que,

ideologicamente, se afastam da realidade e das contradições sociais.

[…] pensar numa escola que subverta a lógica dominante pressupõe incorporá-la à vida […] Sendo assim, consideramos a condição da escola itinerante em luta privilegiada para articular escola e vida. Porém, isso não significa dizer que naturalmente ela faça essa relação, pois requer condições concretas para tal, dentre as quais a de que os sujeitos envolvidos tenham clareza política acerca do projeto histórico em que o Movimento se referencia e da contribuição

da educação e da escola para este projeto. (BAHNIUK e CAMINI, 2012, p.333)

Para compreender o lugar que a escola ocupa no MST, é preciso refletir,

primeiramente, sobre o sentido educativo do próprio Movimento, entendê-lo

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enquanto sujeito social e educativo (CALDART, 2000). É preciso um olhar mais

sensível sobre seus sujeitos, sua identidade social, cultural e política, desde sua

gênese até suas tensões atuais, sua busca por direitos, a existência e identidade,

sua coletividade.

A atuação do Movimento nos dias de hoje leva à necessidade de se

apreender seu sentido sociocultural, da qual o sentido educativo faz parte. Por

sentido sociocultural entende-se a “produção histórica de um conjunto articulado de

significados que se relacionam com a formação do sem-terra brasileiro enquanto um

novo sujeito social, que se constitui também como um novo sujeito sociocultural”

(CALDART, 2000, p.23).

A expressão sujeito social é usada “para indicar uma coletividade que

constrói sua identidade (coletiva) no processo de organização e de luta pelos seus

próprios interesses sociais […] que extrapola sua influência para além dos limites da

questão agrária” (CALDART, 2000, p.23-25). Esses sujeitos sociais passam a

ocupar um lugar nas relações sociais e luta de classes, passando a desempenhar

um papel nos embates e agenda política, o que os configura, portanto, como sujeitos

políticos. A autora reforça que

Este sem-terra, formado pela dinâmica da luta pela Reforma Agrária e do MST, pode ser entendido também como um novo sujeito sociocultural, ou seja, uma coletividade cujas ações cotidianas , ligadas a uma luta social concreta , estão produzindo elementos de um tipo de cultura que não correspondente aos padrões sociais e culturais hegemônicos na sociedade capitalista atual, e na brasileira em particular, inscrevendo-se no que poderíamos talvez chamar de um movimento sociocultural que reflete e prepara mudanças sociais mais profundas […] Trata-se de compreender o MST e os sem-terra como algo a mais, ou com um ingrediente algo diferente; como sujeitos sociais que se produzem como sujeitos de uma cultura que tem uma forte dimensão de projeto, ou seja, de algo que ainda não é, mas que pode vir a ser. Daí a expressão sujeitos socioculturais para frisar uma possível diferença de sentido, em relação à produção de cultura a partir da vivência cotidiana mais simples. (CALDART, 2000,

p.26)

O MST suscita uma série de discussões no âmbito político-social; para

alguns é visto como um movimento social mais organizado e exemplo de luta, para

outros tomado como um grupo a ser exterminado, alvo de ações repressivas de

governos e elites ligados ao latifúndio ou não. Há os que se perguntam e se intrigam

com o caráter questionador do Movimento, na busca pela mudança do atual estado

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das coisas (CALDART, 2000). O fato é que este Movimento leva à inquietação, não

somente porque traz de volta ao cenário a questão agrária, mas porque levanta

discussões amplas sobre questões sociais como a fome e injusta distribuição da

terra e riquezas naturais. Tais inquietações levam à reflexão. A despeito disso,

afirma Caldart:

O MST está se tornando um símbolo de contestação social não simplesmente porque contesta ou pelo jeito que contesta. Sua contestação adquire força cultural e simbólica, porque suas ações se enraízam em uma questão social que é forte e justa. Forte porque mexe com a própria estrutura social de um país historicamente marcado pelo latifúndio, parente da escravidão. Consensualmente justa porque não há argumentos éticos contra a idéia de que a terra, bem natural e carregado de uma simbólica quase mágica, deve estar nas mãos de quem a deseja trabalhar e a fará produtiva, aplacando a fome de milhões de pessoas, outro mal incompatível com o chamado 'mundo moderno' (ou pós-moderno) de que as elites brasileiras lutam para fazer parte a qualquer custo (2000, p.22).

São discussões trazidas à tona pelo MST que não se restringem à questão

agrária, mas de forma mais ampla, apresentam temáticas que são discutidas (ou ao

menos deveriam ser) por toda a sociedade. A autora (CALDART, 2000) chama a

atenção ainda para os novos significados trazidos pelo Movimento e o vínculo com a

terra, os novos significados e valores e o retorno de utopias libertárias por muitos

consideradas mortas. Enumera três pontos teóricos fundamentais para que se

compreenda o Movimento: o primeiro seria compreender o MST em sua

historicidade, como um processo que integra as mudanças de longa duração; o

segundo diz respeito à interpretação cultural da vida social como forma de se

compreender as interações humanas; e o terceiro seria de não idealizar o

Movimento, para o bem ou para o mal.

O que começou com a luta pela Reforma Agrária foi desenvolvendo setores

igualmente organizados: educação, formação profissional, cooperativismo, etc.

Sobre a amplitude conquistada pelo MST, as proposições de Gehlen vão ao

encontro dos objetivos que permeiam os objetivos da Reforma Agrária:

A reforma agrária interessa na perspectiva de que ela seja portadora de transformações econômicas, sociais e políticas para a sociedade em geral. Estas transformações devem visão à solução de problemas relativos ao trabalho, ao nível de vida, à garantia de um espaço e de

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canais para participar no poder. Participação esta que, além do direito de produzir, consumir, saber votar, etc., garanta condições de gestão do processo produtivo no sentido de defini-lo enquanto fins e formas de produção, de organização dos produtores e da produção, das tecnologias, da pesquisa, etc., acenando para um 'novo' modelo de desenvolvimento alternativo e moderno (GEHLEN, 1988, p.22).

O MST destaca-se por ser um movimento social em busca por direitos

garantidos constitucionalmente. O Movimento criou setores a fim de acompanhar o

desenvolvimento e implementação das propostas e entre eles há o setor de

educação, responsável por conduzir a busca por uma pedagogia que conceba o

espaço educacional como uma forma de transformação e de dar continuidade à luta.

De acordo com dados publicados em sua página oficial, o Movimento

começou priorizando a conquista de terras, mas logo percebeu o quão significativa

era a educação para a conquista de seus interesses, que não estavam mais restritos

à questão agrária, mas também demandavam, o ensino de qualidade e gratuito, o

emprego e a conquista de direitos previstos na Constituição Federal.

Durante os primeiros anos de luta, os Sem Terra reunidos sob a bandeira do MST tinham como prioridade a conquista da terra. Mas eles logo compreenderam que isso não era o bastante. Se a terra representava a possibilidade de trabalhar, produzir e viver dignamente, faltava-lhes um instrumento fundamental para a comunidade de luta. A continuidade a luta exigia conhecimentos tanto para lidar com assuntos práticos, como para entender a conjuntura política, econômica e social. Arma de duplo alcance para os Sem Terra, a educação tornou-se prioridade do Movimento. (MST – site oficial)

Dessa forma, ações de protagonismo por parte do Movimento levaram à

construção de um ideal de educação que fosse pensada pelos povos do campo e

para os povos do campo, uma educação que levasse em conta a realidade e os

interesses desses sujeitos. A educação localizada no campo deveria ser, então,

pensada e efetivada por esses sujeitos e não apenas por instâncias governamentais

a reproduzir valores urbanos.

DIÁLOGOS POSSÍVEIS

As práticas escolares, sobretudo nas aulas de Língua Portuguesa, têm

grande responsabilidade no que concerne aos usos da linguagem e habilidades

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discursivas, necessitando, portanto, de uma metodologia que vá ao encontro de

suas necessidades. É nesse sentido que os projetos de letramento são favoráveis e

dialogam com as diretrizes pedagógicas da escola do Movimento. Os projetos de

letramento podem ser caracterizados como:

projetos de trabalho escolar que destacam a centralidade das práticas sociais de letramento no processo educacional e por isso tornam-no eixo estruturante das atividades escolares, da apresentação dos conteúdos curriculares e do desenvolvimento de temas valorizados. […] Os projetos de letramento requerem um movimento pedagógico que vai da prática social para o “conteúdo” (seja ele uma informação sobre um tema, uma regra, uma estratégia ou procedimento), nunca o contrário […] não substitui os eixos temáticos nem os eixos conteudísticos relevantes no trabalho escolar. (KLEIMAN, 2010, p.377-383)

Uma postura observadora e pesquisadora por parte do professor é

indispensável para o sucesso do projeto de letramento, uma vez que se desenvolve

constantemente uma etnografia em sala de aula, para que o planejamento seja feito

sob a perspectiva do aluno e não do ponto de vista do professor, que deve estar

disposto, inclusive, a flexibilizar seu planejamento.

Dada a tradição escolar de disciplinarizar o conhecimento e sistematizá-lo de

forma a obter o controle dos conteúdos, é comum que os projetos de letramento não

sejam adotados por grande parte dos professores, pois isso seria romper com um

ciclo que vem se repetindo há décadas nas escolas com o trabalho pedagógico

girando em torno de prescrições inflexíveis.

Há que se levar em consideração, entretanto, o fato de que a própria

configuração escolar com seu espaço restrito, cronogramas previamente agendados

e inflexíveis, compartimentalização de disciplinas, entre outros aspectos, acaba

dificultando a adoção de metodologias alternativas, o que nos leva a refletir sobre a

maneira pela qual a estrutura escolar se impõe e, consecutivamente, afeta o trabalho

pedagógico, que acaba reproduzindo o padrão dominante.

As mudanças na escola e em seus modos de organização ocorrem de modo

demasiadamente lento(as); urge empreender esforços para as transformações em

prol da construção de um espaço que priorize o desenvolvimento da criticidade e o

desenvolvimento de projetos pode ser uma alternativa de ressignificação do fazer

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docente e discente e também podem aproximar mais do tempo, do espaço e das

práticas sociais da vida real (OLIVEIRA; TINOCO; SANTOS; 2014).

Em parte, pode-se dizer que a configuração dos modos de organização

escolar não mudaram ao longo dos anos por responsabilidade dos próprios

professores, que acabam por reproduzir em sua prática a forma pela qual foram

ensinados. Em especial na disciplina de Língua Portuguesa, isso corresponde ao

ensinamento de atividades gramaticais classificatórias e analíticas para fins

escolares, sem reflexo dessa ação pedagógica na prática social, pois ela começa e

termina em sala de aula e, uma vez que não tem implicações na vida do aluno, esse

conhecimento passa a não fazer sentido para ele.

Contudo, as práticas de linguagem em contexto social não são

compartimentadas e isso faz com que uma metodologia que tome a língua como

algo alheio às práticas sociais não seja coerente, já que “em situações de leitura e

escrita das quais participamos fora da escola, perceberemos que a lógica de

compartimentalização e ação individual, que caracterizam a esfera escolar, nessas

situações desaparecem” (OLIVEIRA; TINOCO;SANTOS; 2014, p.20).

A escola tende a reproduzir as práticas de letramento dominante e

“letramentos locais, de resistência, adquiridos em trajetórias pessoas singulares, às

margens da educação formal, que moldam a vida cotidiana das pessoas, são menos

visíveis e recebem menor apoio”. (KLEIMAN, 2010, p.377). Diante disso, é

necessário pensar no desenvolvimento de um trabalho em que a escrita esteja

inserida nas práticas sociais.

Há perspectivas limitadas para o ensino de leitura e escrita, que restringe a

prática docente apenas aos saberes curriculares e hegemônicos, através de uma

concepção instrumental, sem levar em conta as questões de identidade e valores

subjacentes ao contexto. Kleiman (2010) reitera que não existe método de

letramento, todavia, “uma perspectiva escolar do ensino da língua escrita pode, no

entanto, estar filiada a uma perspectiva sociocultural de letramento” (KLEIMAN,

2010, p.379), no caso, a perspectiva dos projetos de letramento.

Ao propor um projeto de letramento, o professor permite ao aluno

experienciar, no tempo e espaço escolar, situações de linguagem as quais ele

encontraria também em sociedade; o professor pode unir as questões individuais de

cada aluno ao projeto escolar. Além disso, o caráter coletivo dos projetos de

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letramento tira do centro da aprendizagem a figura do professor como transmissor

de conhecimento e a experiência de ensino e aprendizagem passa a ser uma ação

partilhada entre os membros dessa ação coletiva.

Quando o professor ocupa o lugar central dentro do ensino-aprendizagem de

língua materna, esse processo passa a funcionar por meio de uma lógica bancária

de educação, em que as aulas expositivas são uma marca e o professor, através de

uma postura unilateral, transmite todo o seu saber aos alunos que, passivamente, o

recebem, relegados a essa relação em que o medo à autoridade do professor e do

fracasso escolar são argumentos para que não façam questionamentos (FREIRE,

1987).

A partir dos processos de descoberta e construção de sentidos propiciados

através do projeto, será oferecida ao aluno a oportunidade de ressignificar esse

conhecimento construído na escola em contextos do mundo social do qual ele faz

parte, e é por isso que não faz sentido o desenvolvimento de projetos de letramento

com objetivos distantes do contexto sociocultural em que se inserem os sujeitos da

aprendizagem. Sobre isso Kleiman comenta:

O projeto de letramento parece constituir um meio de dinamização da aula, pois a reflexibilidade e abstração passam a formar parte do arsenal de instrumentos do aluno para dar conta das tarefas nessa rede de atividades, que integra tanto as práticas de letramento da esfera escolar quanto as práticas de outras esferas que o desenvolvimento do projeto demanda. Nesse percurso, as práticas sociais não escolares passam a ter existência no processo de ensino-aprendizagem. (KLEIMAN, 2010, p.387)

A ação partilhada para descobertas e construção de saberes passíveis de

ressignificação de contextos não escolares para o contexto escolar vai ao encontro

dos pressupostos educacionais freirianos, em que o conhecimento é resultado de

uma comunhão de saberes com vistas à construção da criticidade do indivíduo que,

então, será capaz de reconhecer seu opressor e articular formas para se libertar da

opressão. Nessa perspectiva, os projetos de letramento tornam-se uma metodologia

coerente e aliada com os princípios filosóficos e pedagógicos do MST para a

construção de “uma nova ordem social, cujos pilares principais sejam a justiça

social, a radicalidade democrática, e os valores humanistas e socialistas”

(CADERNO DE EDUCAÇÃO..., 1996, p.6).

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129

Valorizar o saber do aluno e sua cultura contribui para que ele se sinta

envolvido no processo educacional, que passe a participar mais ativamente das

questões escolares e a interagir com seus pares e professores, aumentando o

repertório de conhecimentos partilhados oralmente que serão subsídios para futuras

práticas de leitura e escrita, permitindo que o binômio leitura e escrita passe a ser o

tripé, em equilíbrio, leitura-escrita-oralidade (MACHADO, 2010).

Kleiman (2007) chama a atenção para um aspecto crucial para um ensino

voltado para a perspectiva social da escrita: o lugar que os conteúdos ocupam no

planejamento escolar. Em um ensino tradicional os conteúdos compõem a

estruturação do currículo e das práticas, com o argumento de que o aluno precisa

saber dominar o código para ler e escrever, como se o código por si já garantisse

que o aluno conseguiria atribuir sentido ao que lê. A respeito disso, Kleiman enfatiza

que,

[…] toda situação comunicativa que envolve o uso da língua escrita – em todo evento de letramento – há a necessidade de tudo isso e, portanto, SEMPRE surge a oportunidade para o professor focalizar de forma sistemática algum conteúdo, ou seja, de apresentar materiais para o aluno chegar a perceber uma regularidade, praticar repetidas vezes um procedimento, buscar uma explicação. Nesse caso, o movimento será da prática social para o 'conteúdo' (procedimento, comportamento, conceito) a ser mobilizado para poder participar da situação, nunca o contrário, se o letramento do aluno for o objetivo estruturante do ensino. (KLEIMAN, 2007, p.6)

Quando os conteúdos gramaticais deixam de ocupar o papel central para a

elaboração do currículo, o trabalho passa a ser orientado com base na relevância

dos textos para os alunos, o quanto são significativos para eles. A partir dessa

perspectiva “a prática social não pode senão viabilizar o ensino do gênero, pois é

seu conhecimento o que permite participar nos eventos de letramento de diversas

instituições e realizar as atividades próprias dessas instituições com legitimidade”

(KLEIMAN, 2007, p.8).

Os gêneros se efetivam nas interações humanas nas diferentes esferas de

comunicação, e por isso são classificados em primários (da comunicação cotidiana)

e secundários (comunicação com códigos mais elaborados), caracterizando-se,

dada essa flexibilidade das interações, como relativamente estáveis. Os gêneros

são, portanto, mediadores das interações sociais e são por elas mediados

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(BAKHTIN, 2003). Na escola, os gêneros transformam-se em objetos de ensino,

entretanto, isso “não significa que o gênero deva constituir-se no elemento

estruturante das práticas sociais mobilizadas no projeto, sob o risco de reduzir o

objeto de ensino e o trabalho escolar aos seus aspectos formais e analíticos”

(KLEIMAN, 2007, p.14).

A prática do professor baseada em uma concepção social da escrita parte,

portanto, de uma observação de cunho etnográfico para que seja possível encontrar

um tema que estruture o desenvolvimento do projeto de letramento que requer um

movimento que vá da prática social para a prática escolar e não o contrário, isso

significa que o trabalho parte do ponto de vista do aluno e não do professor. Vale

enfatizar que a flexibilização desse planejamento é crucial, já que são os interesses

dos alunos e da comunidade escolar que determinarão o ritmo e caminhos do

planejamento escolar, bem como preconizam os documentos norteadores à

Pedagogia do Movimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É na escola que o Sem Terrinha apreende e vivencia o espírito coletivo e de

luta característicos dos militantes e as práticas escolares devem ser pensadas e

executadas com vistas à formação de um sujeito crítico e questionador; um indivíduo

que dará continuidade a luta e às conquistas do MST; militantes capazes de transpor

os limites do latifúndio e alcançar o terreno das políticas públicas.

O MST, no decorrer de sua história, por meio do pensamento coletivo,

construiu uma Pedagogia capaz de dar visibilidade ao homem do campo, seus

interesses e especificidades, protagonizando um projeto incorporado aos debates

públicos, institucionais e governamentais. A ousadia criativa levou à elaboração de

uma proposta que extrapola os limites do Movimento, na medida que permite pensar

a educação a partir de uma perspectiva da classe trabalhadora.

No MST a escola se apresenta como uma instituição emancipadora,

praticante dos ideais freirianos e buscando a utopia da educação transformadora

sem perder de vista que, mesmo que nunca a alcancem completamente, para os

militantes a caminhada é o mais importante; veem na luta diária dos acampados,

assentados, camponeses militantes, coletivos de professores e simpatizantes à

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causa a possibilidade de almejar um mundo mais justo. É um Movimento movido ao

sonho de conquista da Terra e esperança.

As diretrizes educacionais do MST convergem com os Estudos do

Letramento ao que concerne a priorização de uma educação que não se paute

somente nos aspectos formais do conhecimento científico, mas em sua efetivação

no terreno sociais e seu lugar dentro das relações de poder. Tanto a Pedagogia do

Movimento, quanto os Estudos de Letramento estão aliados à Linguística Aplicada,

uma vez que propõe uma educação voltada à transformação social e não apenas um

aprendizado que descontextualiza o saber e o viver.

REFERÊNCIAS

BAHNIUK, C.; CAMINI, I. Escola Itinerante. In: CALDART, R.; PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO; P.; FRIGOTTO, G. Dicionário da Educação do Campo. São Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 331 – 336. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

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Corda Bamba, de Lygia Bojunga, e Bisa Bia,

Bisa Bel, de Ana Maria Machado: construindo

uma tradição

Corda bamba, by Lygia Bojunga, and Bisa bia, bisa bel, by Ana Maria Machado: constructing a tradition

Cíntia Roberto Marson (G-UENP/CCP)21

Thiago Alves Valente (UENP/CCP)22

RESUMO: Esta pesquisa é resultado do trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Letras Português – Inglês da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus Cornélio Procópio. Diante da recente consolidação da literatura infantil e juvenil brasileira, objetiva-se demonstrar em que medida a construção de personagens complexas se torna um aspecto caracterizador do texto literário considerado emancipatório, tornando-se, assim, um elemento recorrente e configurador de certo modelo valorizado na escrita para crianças e/ou jovens leitores. Desse modo, os objetos de análise são as obras Corda Bamba (1979), de Lygia Bojunga, e Bisa Bia, Bisa Bel (1981), de Ana Maria Machado, escritoras representativas da literatura infantil e juvenil brasileira, que têm se dedicado à criação de obras com alto nível de criatividade e originalidade. Para isso, toma-se como aparato teórico Martha (2008), Ceccantini (2010), Luft (2010), Zilberman (2003; 2005), Franco Junior (2009), entre outros estudos que contribuíram para este trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Infantojuvenil Brasileira; Personagens; Crítica. ABSTRACT: This research is result of a Final Paper presented to the Letras Portuguese/English undergraduate program of the State University of Northern Paraná, campus Cornélio Procópio. In face of Brazilian children’s literature recent consolidation, it seeks to demonstrate in what extent complex characters construction becomes a characterizer aspect of literary text considered emancipatory, becoming, therefore, a recurrent element and configurator of a valued model in the writing for children and/or young readers. Thus, the analysis objects are the works Corda Bamba (1979), by Lygia Bojunga, and Bisa Bia, Bisa Bel (1981), by Ana Maria Machado, representative Brazilian children’s literature writers, who have dedicated themselves to the creation of works with high level of creativity and originality. For this, it takes as theoretical apparatus Martha (2008), Ceccantini (2010), Luft (2010), Zilberman (2003; 2005), Franco Junior (2009), among other studies that contributed to this paper. KEY-WORDS: Brazilian Children’s Literature; Characters; Critic.

21

Graduanda do 4º ano de Letras Português-Inglês na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus Cornélio Procópio. 22

Doutor em Literatura e Vida Social pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP/ASSIS). Professor e Coordenador de Centro do Curso de Letras Português-Inglês na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus Cornélio Procópio.

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INTRODUÇÃO

Tedo em vista a necessidade de investigar como a literatura infantojuvenil

brasileira contemporânea se constitui e constrói a sua identidade específica, esta

pesquisa tem como objetivo demonstrar, a partir de estudos de pesquisadores

consagrados na área, como Zilberman (2003; 2005), e estudos mais recentes de

outros pesquisadores, em que medida a construção de personagens complexas se

torna um aspecto caracterizador do texto literário considerado emancipatório. Por

meio dos estudos de Ceccantini (2010), Martha (2008) e Luft (2010), pode-se

constatar na literatura infantojuveni a predominância da linha de introspecção

psicológica, o que confere um “tom” dado aos textos destinados à crianças e jovens.

Para melhor elucidar esta tendência psicologizante, são analisadas algumas das

principais personagens das obras Corda Bamba (1979)23, de Lygia Bojunga, e Bisa

Bia, Bisa Bel (1981)24, de Ana Maria Machado, escritoras representativas da

literatura infantil e juvenil brasileira, que seguiram a herança deixada por Monteiro

Lobato. Sendo assim, busca-se investigar a partir de quais parâmetros tais

personagens são construídas, a fim de problematizar os modelos que estão sendo

supervalorizados em detrimento de tantos outros, que também ofereceriam a

oportunidade de amadurecimento e formação do leitor.

A TENDÊNCIA PSICOLOGIZANTE NA LITERATURA INFANTOJUVENIL

BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Inicialmente, a fim de demonstrar como algumas obras contemporâneas

premiadas e reconhecidas pela crítica correspondem à caracterização de

personagens complexas na literatura infantojuvenil brasileira contemporânea,

recorre-se aos artigos “A literatura infantil e juvenil: produção brasileira

contemporânea” (2008), de Martha, e “Vigor e diversidade: a literatura infantil e

juvenil no Brasil em 2008” (2010), de Ceccantini.

Martha (2008) elenca um rol de obras que foram premiadas ou recomendadas

por instituições, entre os anos de 2006 e 2008. Para uma análise mais detalhada, a

pesquisadora se detém em alguns títulos: Lis no peito: um livro que pede perdão

(Biruta, 2005), de Jorge Miguel Marinho; O rapaz que não era de Liverpool (SM,

23

Para a pesquisa fora utilizada a 24ª edição (2016) 24

Para a pesquisa fora utilizada a 3ª edição (2007)

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2006), de Caio Riter; Alice no espelho (SM, 2005), de Laura Bergallo; Pena de ganso

(DCL, 2005), de Nilma Lacerda; e Adeus contos de fadas (7 Letras, 2006), de

Leonardo Brasiliense.

A partir desta seleção, será apresentado, brevemente, o tema proveniente de

cada narrativa destacada no intuito de confirmar a tendência em optar por

personagens psicologizadas: Lis no peito: um livro que pede perdão – as angústias

frente à descoberta do amor; O rapaz que não era de Liverpool - as emoções e os

sustos vividos por ocasião da descoberta de ter sido adotado/crise de identidade;

Alice no espelho – padrão de beleza e bulimia/crise de identidade; Pena de ganso –

afirmação da identidade feminina e o papel da escrita; Adeus contos de fadas –

minicontos sobre experiências nas relações familiares, sociais e afetivas. Diante

deste corpus, Martha (2008, p. 10, grifos do autor) afirma que

As narrativas selecionadas relatam o desabrochar sentimental, a aprendizagem humana dos protagonistas, jovens que buscam o conhecimento de si mesmos e dos outros e participam gradativamente na aventura da existência. Por essa razão, entendemos que mesmo os minicontos de Brasiliense podem ser considerados narrativas de formação, subgênero muito próximo do Bildungsroman (romance de formação).

Ceccantini, por sua vez, em uma das edições do informativo da Fundação

Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), em setembro de 2010, após destacar

que a produção de 2008 foi marcada por três efemérides: o centenário da morte de

Machado de Assis, os duzentos anos da chegada da Corte portuguesa e os cem

anos da imigração japonesa, expõe algumas importantes considerações sobre a

literatura destinada às crianças:

A categoria livro infantil corresponde,sem dúvida, ao maior segmento da produçãonacional, abarcando cerca de 40%do total de lançamentos no país [...] Como efeito da grande quantidade de títulos, há uma pulverização de temas e formas, valendo a pena chamar a atenção para o fato de que a fantasia predomina largamente sobre o verismo e de que, nas melhores obras, há um esforço de injetar poeticidade e ludismo na linguagem dessas narrativas que, por vezes, acabam por se aproximar da prosa poética e do livro-jogo. (CECCANTINI, 2010, p. 8, grifos do autor)

O professor também discorre sobre as obras destinadas ao público juvenil:

O segmento referente à literatura juvenil é, em termos quantitativos, o segundo maior do conjunto da produção nacional para crianças e jovens em 2008 – por volta de 19% de todos os títulos publicados no setor. De um

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ponto de vista qualitativo, entretanto, talvez seja aquele que demonstrou maior vitalidade no período, revelando um empenho em explorar temas em sintonia com questões candentes da sociedade contemporânea – particularmente as mais diretamente ligadas ao universo juvenil – e, ao mesmo tempo, buscar a contrapartida formal para expressá-las. Verifica-se, em diversos títulos, um esforço de pesquisa e experimentação no nível da linguagem e dos elementos estruturais das narrativas e até mesmo no nível da materialidade do livro. (CECCANTINI, 2010, p. 9, grifos do autor)

Neste artigo, Ceccantini também apresenta, assim como Martha, obras cujas

narrativas se voltam para o mundo interior das personagens. Dentre tantos títulos,

serão destacados aqueles que confirmam a tendência psicologizante da literatura

infantojuvenil: O fazedor de velhos, de Rodrigo Lacerda – formação do protagonista

por meio do auxílio de um velho professor; Todos contra D@nte, de Luís Dill, e

Clique para zoar, de Isabel Vieira – bullying; Eu sou Maria, de Sonia Rodrigues –

dificuldades de relacionamento em uma nova escola por parte da protagonista

bolsista/preconceito social; O Golem do Bom Retiro, de Mario Teixeira –

preconceito/anti-semitismo; Quando eu acabar de crescer, de Lino de Albergaria –

conflitos entre pai e filho; Meu pai não mora mais aqui, de Caio Riter, e Baratinadas,

de Marília Pirillo – tensões geracionais; O colapso dos bibelôs, de Índigo – distopia

de um mundo sem mídias para comunicação.

Por meio das narrativas citadas por Martha (2008) e Ceccantini (2010),

percebe-se, pela crítica especializada, a valorização de personagens complexas,

que buscam organizar o caos interior. Elas constroem sua identidade e refletem

sobre si mesmas e o mundo que as cercam:

Nessas narrativas, o que desperta a atenção dos leitores, na ênfase no processo de construção das personagens, é o fato de que a infância e a adolescência não são vistas como preparação para a maturidade, mas enfocadas como etapas decisivas no processo de vida, plenas de significado e valor, portanto. Em outras palavras, as personagens não são construídas como ainda-não-adultos ou já-não-mais-crianças, são portadoras de uma identidade própria e completa. É verdade também que se envolvem em situações que as obrigam a refletir e reformular conceitos que possuem a respeito de si mesmas e do mundo. (MARTHA, 2008, p. 16)

Ao encontro das análises de Martha e Ceccantini, em artigo intitulado “A

literatura juvenil brasileira no início do século XXI: autores, obras e tendências”

(2010), Luft realiza uma análise das narrativas juvenis brasileiras premiadas entre os

anos de 2001 e 2009, buscando responder quais são as principais tendências do

gênero e qual a sua posição no cenário nacional. Ainda que a pesquisa se restrinja

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137

apenas à literatura destinada aos jovens, ela é importante na medida em que

confirma, assim como na literatura infantojuvenil, o caráter psicologizante que

predomina nas narrativas destinadas ao público em questão. A pesquisadora, a

partir das obras selecionadas, identifica as seguintes linhas ou tendências: linha de

introspecção psicológica, linha de denúncia social, linha da fantasia, linha das

relações amorosas, linha de narrativas policiais/investigativas, linha de terror e de

suspense, linha de revalorização da cultura popular, linha do romance histórico e

linha da intertextualidade.

Apesar das inúmeras tendências que constituem as narrativas juvenis do

início do século XXI, Luft (2010, p. 122) afirma que a linha de introspecção

psicológica é a que se destaca:

Predominam, no Brasil, narrativas juvenis pautadas pela introspecção psicológica, que exploram o “espaço interior” das personagens, geralmente adolescentes. Conjugadas ao tema, estão duas inovações temáticas representativas da literatura juvenil publicada nos últimos anos: a descrição de aspectos psicológicos dos protagonistas e a abordagem de conflitos familiares, amorosos, bem como a tematização de questões polêmicas e presentes na vida do jovem atual, como a morte, a enfermidade, a dor e a solidão, entre outros.

Portanto, de acordo com Luft (2010, p. 124), esta tendência explora, de modo

geral, “[...] temáticas acerca do amadurecimento e da aprendizagem humana de

jovens protagonistas que buscam o conhecimento de si mesmos e dos outros”.

É interessante perceber a correlação entre personagens complexas/intimistas

e o modelo emancipatório proposto por Zilberman (2003). Neste modelo o escritor

“[...] recusando a intermediação dos pais na relação entre a criança e a realidade,

coloca seus heróis numa posição de autonomia em relação a uma instância superior

e dominadora” (ZILBERMAN, 2003, p. 215). Isto é, não há mais a assimetria

adulto/criança, pois, agora, a última consegue trilhar seus próprios caminhos sem

submeter-se às ordens impostas pelo adulto. Portanto,

[...] não se trata de um reforço da estrutura familiar ou de uma reforma em seu interior, mas da proposta de um outro funcionamento da relação entre indivíduos, segundo a qual ficam suprimidas as divisões estanques entre o adulto e a criança, assim como as ligações de dependência e sujeição entre eles. (ZILBERMAN, 2003, p. 216)

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T E X T O S C O M P L E T O S

138

A fim de elucidar a discussão a ser levantada, pode-se refletir sobre as

considerações de Edmir Perrotti (1986) em sua obra intitulada O texto sedutor na

literatura infantil, mais especificamente, no capítulo “O ‘utilitarismo às avessas’”.

Segundo Perrotti (1986, p. 117), “o discurso utilitário procurou sempre

oferecer a crianças e jovens atitudes morais e padrões de conduta a serem

seguidos, ordenando os elementos narrativos em função de tal finalidade exterior”.

Frente a este discurso, os escritores, principalmente a partir de 1970, começaram a

questioná-lo, também ao nível da organização do discurso. Contudo, muitas vezes,

houve apenas o uso do discurso utilitário como modelo do “utilitarismo às avessas”

por parte de tais escritores, criando um momento de impasse na literatura

infantojuvenil, conforme explicita o autor.

Este “utilitarismo às avessas”, explica Perrotti (1986, p. 117), “[...] consistiu no

questionamento dos conteúdos burgueses, dentro de padrões discursivos idênticos

ao utilizado pela tradição, ou seja, dentro do modelo utilitário”. Como exemplo desse

“utilitarismo às avessas”, o autor discorre sobre as obras Raul da Ferrugem Azul

(1979), de Ana Maria Machado; Marcelo, Marmelo, Martelo (1976), de Ruth Rocha; e

A curiosidade premiada (1978), de Fernanda Lopes de Almeida.

Levando em consideração a problemática salientada por Perrotti, pode-se,

também, refletir sobre o modelo emancipatório. Assim como os escritores caíram no

impasse devido ao “utilitarismo às avessas”, resultando em um ensinamento

pedagógico, os autores contemporâneos, ao priorizar a construção de personagens

cada vez mais “psicologizadas” originadas no modelo emancipatório, não estariam

alimentando a reprodução de uma literatura menos elaborada que, no afã de atender

as demandas de mercado – sobretudo pautado na crítica vinculada a programas de

compras de livros – acaba produzindo uma literatura que não apresenta inovação?

Valente (2015), em artigo intitulado “Juventude em ebulição: Odeio muito tudo

isso (2014)”, analisa a obra Odeio muito tudo isso, de Luiz Carlos Freitas. Segundo o

professor, à narrativa são incorporados elementos do mundo juvenil, a fim de que o

público identifique-se ao texto. Ao longo da narrativa, o protagonista, Raú, está

buscando a sua identidade, e vivencia experiências e descobertas, como a

separação dos pais e a descoberta do amor. Contudo, não há uma abordagem mais

crítica sobre as situações vividas pela personagem, contribuindo para uma leitura

previsível do texto.

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139

Além disso, o autor expõe que se estabelece uma inconsistência narrativa na

obra, uma vez que Raú recorre a referências intelectuais relevantes, porém suas

conclusões e observações são reducionistas. Isto é,

A superficialidade dá ao protagonista um tom caricatural que não chega a tornar a ironia que faz de si mesmo um tipo de autocrítica mais perturbadora ao jovem leitor, antes, parece a mesma atitude infantilóide do início da história, um sujeito apegado às modas do momento, o que, contrariando personagens mais densas de um Bildungsroman, significa o não amadurecimento diante da vida. (VALENTE, 2015, p. 233, grifos do autor)

Há, claramente, a tentativa de construir uma personagem mais complexa e

conferir à narrativa um “tom” psicológico, ao abordar questões emocionais e

identitárias. Contudo, de acordo com Valente (2015), o leitor se depara com um texto

em que a emancipação não se efetiva, e portanto, permanece na expectativa de algo

mais.

A análise realizada pelo professor expõe um texto que, embora tenha se

pautado em um modelo do que seja a “boa” literatura para jovens, não consegue

alcançar o movimento de emancipação. Tem-se uma personagem complexa, porém,

a obra torna-se menos densa, pois carece de elementos que a tornem significativa

para a formação do leitor. Portanto, na tentativa de alcançar o modelo

emancipatório, o escritor cai no impasse do “utilitarismo às avessas”, discutido

anteriormente. Sendo assim, a necessidade de produzir uma literatura a partir do

que tem sido valorizado pela crítica, leva o autor a apresentar um texto aquém do

esperado.

Não se nega, com isso, o valor do modelo criado por Zilberman, mas

problematiza-se em que medida a literatura infantojuvenil fica presa em

determinados moldes, reproduzindo e dando continuidade à linha de introspecção

psicológica, o que configura um “tom” dado a esta literatura.

Lobato é o primeiro escritor da literatura infantojuvenil brasileira que coloca

suas personagens em posição de autonomia e não atribui à literatura função

meramente instrutiva. O autor cria personagens que vivenciam experiências,

amadurecem com os conflitos superados e, nem por isso, todas elas são redondas

(FRANCO JR., 2009); com exceção de Emília, as demais personagens são planas.

Reitere-se que isso não impossibilita a identificação do leitor com tais personagens.

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140

Ao refletir sobre esta tendência “psicologizante” que marca a literatura

infantojuvenil brasileira contemporânea, esta pesquisa pretende, portanto, investigar

a constituição de um modelo de personagem que atenderia a uma fórmula para a

subjetividade do leitor em termos emocionais, psíquicos e identitários.

ANÁLISE DAS PERSONAGENS EM CORDA BAMBA (1979) E BISA BIA, BISA

BEL (1981)

Antes de iniciar a análise sobre as personagens em Corda Bamba e Bisa Bia,

Bisa Bel, apresenta-se as biografias das renomadas escritoras, Lygia Bojunga

(1932- ) e Ana Maria Machado (1941- ).

Lygia Bojunga Nunes25 (Pelotas RS 1932), autora de literatura infantojuvenil,

passa sua primeira infância em uma fazenda. Aos 8 anos muda-se com a família

para o Rio de Janeiro. Em 1951, torna-se atriz da Companhia de Teatro “Os Artistas

Unidos”, e viaja pelo interior do Brasil. Atua nesse momento, também, como atriz de

rádio. Ao abandonar os palcos e as atividades que exerce, começa a escrever para

o rádio e a televisão. Em busca de uma vida mais integrada à natureza, refugia-se

no interior do estado do Rio de Janeiro. Funda, acompanhada de seu segundo

marido, Peter, uma escola rural para crianças carentes, a Toca, que dirige por cinco

anos. Faz sua estreia literária em 1972, com o livro Os Colegas, e, já em 1973,

recebe o Prêmio Jabuti. Em 1982, torna-se a primeira autora, fora do eixo Estados

Unidos-Europa, a receber o Prêmio Hans Christian Andersen, uma das mais

relevantes premiações concedidas aos gêneros infantil e juvenil. Nesse mesmo ano

muda-se para a Inglaterra, vivendo alternadamente entre esse país e o Brasil. Em

1988, volta ao teatro, escrevendo e atuando em palcos no Brasil e no exterior.

Trabalha com edição e produção de livros, feitos de forma artesanal. Em 1996,

publica Feito à Mão, uma realização alternativa à produção industrial, como indica o

título, composto manualmente com papel reciclado e fotocopiado. Em 2002,

publica Retratos de Carolina, o primeiro livro de sua própria editora, a Casa Lygia

Bojunga. Pelo conjunto de sua obra, em 2004, ganha o Astrid Lindgren Memorial

Award, prêmio criado pelo governo da Suécia, jamais antes outorgado a um autor de

literatura infantojuvenil. Com esse incentivo, cria nesse ano a Fundação Cultural

25

Biografia disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa19123/lygia-bojunga. Acesso em: 25 set. 2017.

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141

Lygia Bojunga com o intuito de desenvolver ações que aproximem o livro da

população brasileira.

Ana Maria Machado26 (1941), escritora e jornalista brasileira, nasceu em

Santa Tereza, Rio de Janeiro, no dia 24 de dezembro de 1941. Foi aluna do Museu

de Arte Moderna. Iniciou a carreira de pintora, participou de exposições individuais e

coletivas. Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na

mesma universidade lecionou no curso de Letras.

A escritora abandonou a carreira de pintora para se dedicar aos livros. Nos

anos sessenta foi exilada pelo regime militar indo morar na Europa. Em Paris,

trabalhou na revista Elle e fez doutorado em Linguística orientada por Roland

Barthes.

De volta ao Brasil, Ana Maria retomou o seu projeto de escrever livros infantis.

Em 1977, ganhou o Prêmio João de Barro pelo livro História Meio ao Contrário. Em

1979, fundou a primeira livraria dedicada a livros infantis no Brasil, a Malasartes.

Em 1993, foi Hors Concours do Prêmio da Fundação Nacional do Livro

Juvenil. Em 2000, ganhou o Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o prêmio

Nobel de Literatura Infantil Mundial. Em 2001, recebeu o Prêmio Literário Nacional

Machado de Assis, na categoria conjunto da obra. Atualmente tem mais de 100

livros publicados. Além disso, Ana Maria Machado foi eleita para a cadeira nº 1 da

Academia Brasileira de Letras - biênio 2012-2013, sendo a primeira escritora de

livros infantis a fazer parte da ABL.

De acordo com as considerações de Arnaldo Franco Junior em “Operadores

de leitura da narrativa” (2009), foram analisadas algumas das principais

personagens das obras Corda Bamba (1979), de Lygia Bojunga, e Bisa Bia, Bisa Bel

(1981), de Ana Maria Machado, a fim de verificar como se configuram tais

caracterizações na literatura infantojuvenil. Entre as categorias elencadas por Franco

Júnior (2009) para os estudos sobre personagens, encontramos planas, planas com

tendência a redonda e redonda, de acordo com a abordagem de Forster e Candido.

Partindo do princípio de que personagens consideradas propícias à

emancipação da criança – em termos de formação emocional, psíquica, identitária –

26

Biografia disponível em: https://www.ebiografia.com/ana_maria_machado/. Acesso em: 25 set. 2017

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142

são aquelas considerada mais complexas, a análise mais esquemática, a seguir,

visa colocar em evidência o contraponto entre personagens infantis protagonistas de

obras valorizadas pela crítica especializada e as outras personagens que também

compõe o universo ficcional dos mesmos textos.

As protagonistas de Corda Bamba e Bisa Bia, Bisa Bel são, perceptivelmente,

personagens redondas, pois apresentam

[...] um alto grau de densidade psicológica, ou seja, marca-se pela alinearidade no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seu fazer (as suas ações). [...] Tal personagem é imprevisível, surpreendendo o leitor ao longo da narrativa, pois representa de modo denso a complexidade, os conflitos e as contradições que caracterizam a condição humana e, nesse sentido, não é redutível aos limites de uma categoria social. (FORSTER, 1974 apud FRANCO, 2009, p. 39)

Em Corda Bamba, Maria perde a memória devido ao fatídico acidente dos

pais, pois ao realizarem o espetáculo na corda bamba, sem a rede de proteção,

Márcia e Marcelo se desiquilibram e perdem a vida de maneira trágica. A partir

disso, Maria, por meio dos sonhos que tem, começa a revisitar o passado, recuperar,

gradativamente, a memória e reconstruir a sua identidade. Nos sonhos que tem, a

menina abre várias portas, de diferentes cores, e em cada uma visita fatos que

marcaram a sua história. Diante disso, confirma-se o alto grau de densidade

psicológica da personagem, pois ela representa, complexamente, os conflitos e

contradições de sua natureza humana. A seguir, apresenta-se um possível trecho

que exemplifica a afirmação acima:

Márcia, Marcelo e a Menina apareceram na corda, de malha branca e arco de flor. (Ah, que bom que era ficar assim olhando os três trabalhando juntos!) Quando o número acabou, o circo quase veio abaixo de tanta palma. A Menina se agarrou numa corda e veio escorregando pro picadeiro, o público batendo palma e a Menina escorregando, escorregando. Tocou no chão. Maria largou guarda-chuva e correu. Chegou juntinho da Menina, se endireitou bem, encostou o ombro no dela. Estavam do mesmo tamanho; o rabo de cavalo igualzinho; tudo igualzinho: a Menina tinha chegado nos dez anos que Maria tinha. (BOJUNGA, 2016, p. 130)

Neste momento, no espaço onírico em que se encontra Maria, ela vê a si

mesma quando relembra um episódio de seu passado. Dessa maneira, verifica-se a

caracterização da personagem, que apresenta alta complexidade psicológica.

Em Bisa Bia, Bisa Bel, a protagonista, Bel, é uma personagem redonda, pois

a sua imaginação cria a bisavó, Bisa Bia, e a bisneta, Neta Beta, e ao longo da

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143

narrativa a garota mantém uma íntima relação com ambas personagens. Isto é nítido

no seguinte trecho: “Eu, Bel, uma trança de gente, igualzinho a quando faço uma

trança no meu cabelo, divido em três partes e vou cruzando umas com as outras, a

parte de mim mesma, a parte de Bisa Bia, a parte de Neta Beta. [...] Trança de

gente” (MACHADO, 2007, p. 77).

Como uma criança que está descobrindo a si mesma e ao mundo, Bel tem

suas dúvidas, angústias, e vive contradições, o que evidencia sua complexa

natureza:

Mesmo quando eu acho que minha bisneta é que está certa, às vezes meu coração ainda quer-porque-quer fazer as coisas que minha bisavó palpita [...] apesar de saber que é tão mais fácil seguir os conselhos de Bisa Bia, e que nesse caso todos vão ficar contentes com o meu bom comportamento de mocinha, tenho uma gana lá de dentro me empurrando para seguir Neta Beta, lutar com o mundo, mesmo sabendo que ainda vão se passar muitas décadas até alguém me entender. Mas eu já estou me entendendo um pouco – e às vezes isto me basta. (MACHADO, 2007, p. 65)

A partir da fala de Bel é possível perceber que sua identidade se constrói a

partir das experiências compartilhadas com Bisa Bia e Neta Beta. Apesar disso, a

personagem demonstra seu medo e insegurança, quando pensa em seu próprio

comportamento, pois, em alguns momentos, sente-se dividida entre seguir os

conselhos da Bisa Bia ou da Neta Beta. A personagem realiza ações que

surpreendem o leitor, uma vez que seu comportamento não é previsível, e isso

confirma a complexidade existente entre o seu ser e o seu fazer.

Em contraposição à constituição da personagem Maria, em Corda Bamba, a

professora particular de Maria, Dona Eunice, pode ser considerada uma personagem

plana:

O olho de Maria foi procurar o número da páginas mas encontrou a mão da Dona Eunice no caminho. Dedo cheio de anel. E cada unha grande assim, pintada de vermelho escuro. [...] Lá pelas tantas a mão da Dona Eunice apertou a mão de Maria. - Quer fazer o favor de prestar atenção, Maria? (BOJUNGA, 2016, p. 56-57).

Dona Eunice é uma professora tradicional que não possui paciência durante

as aulas de Maria; chama a atenção da menina várias vezes e seu comportamento é

sempre o mesmo: rude e impaciente. Assim, a professora corresponde à

personagem plana, pois

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144

[...] é aquela que apresenta baixo grau de densidade psicológica. Em geral, tal personagem marca-se por uma linearidade no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seu fazer (as suas ações) (FORSTER, 1974 apud FRANCO, 2009, p. 39).

Em Bisa Bia, Bisa Bel é possível identificar Marcela como uma personagem

plana:

Num instante estava encarapitada no muro, vendo aquela chata da Marcela, toda frosô, arrumada numa roupa de butique, fivela de florzinha no cabelo, falando mole, cheia de nhenhenhém, jogando sorrisos para o Sérgio. (MACHADO, 2007, p. 39-40)

Marcela apresenta uma linearidade entre o seu ser e o seu fazer, pois suas

atitudes correspondem à sua essência e identidade. No trecho citado acima, a

personagem é apresentada em sua roupa de butique, florzinha no cabelo e fala

mole, o que indica uma delicada mocinha, bem comportada e meiga, conforme

mostra o trecho a seguir:

- E quem precisa de vara? A gente sobe na goiabeira... – foi dizendo o Sérgio. - E o portão? - Ué, pulamos o muro... – completei eu. - Eu não posso – explicou Marcela. – Mamãe disse para eu não me sujar; que ia estragar minha roupa toda. E eu nem sei fazer essas coisas de moleque. (MACHADO, 2007, p. 40-41)

Há, portanto, notoriamente, uma personagem que não possui complexidade

psicológica e que vive de acordo com as orientações que recebe de um adulto, no

caso de Marcela, de sua mãe.

Como elemento estrutural das narrativas, mesmo personagens simpáticas às

protagonistas mantêm-se com um grau limitado de complexidade. A personagem

plana com tendência a redonda pode ser identificada por Barbuda e Foguinho, em

Corda Bamba. De acordo com Candido (1976 apud FRANCO, 2009, p. 39), essa

personagem

[...] apresenta um grau mediano de densidade psicológica, ou seja, embora se marque por uma linearidade predominante no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seu fazer (as suas ações), tal personagem não se reduz totalmente à previsibilidade.

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145

Assim que Márcia e Marcelo estavam prestes a entrar no palco para realizar o

espetáculo sem a rede de proteção, Foguinho discute com o casal e tenta convencê-

los a desistir daquele perigoso trabalho. Apesar de a personagem trabalhar no circo

cuspindo fogo – por isso o nome Foguinho -, suas ações não se limitam à sua

categoria social. Pode-se perceber que há um determinado grau de densidade

psicológica por meio do seguinte trecho, no qual Foguinho discute com Márcia:

Foguinho era o mais nervoso: - Dá tempo: ainda não anunciaram o número. - Mas a gente já fez o acordo. - Rasga! - Não pode! - O que não pode é fazer o que vocês tão fazendo! [...] - Não! Vem, Marcelo, tá na hora. - Não tá certo, não tá certo! vocês não podem deixar eles tirarem a rede, vocês não podem deixar eles botarem a corda tão alto. (BOJUNGA, 2016, p. 131)

Barbuda, mulher de Foguinho, também demonstra ser uma personagem

plana com tendência a redonda, pois, apesar de sua simplicidade, ela diz o que

pensa e possui, assim como Foguinho, determinado grau de densidade psicológica.

No trecho a seguir, em que Barbuda conversa com Dona Maria Cecília, avó de

Maria, a personagem expõe sua opinião, independente da autoridade que a avó tem

sob a vida de sua neta:

- Eu não sou uma mulher instruída, uma mulher assim... assim de trato, feito a senhora, mas eu sou uma pessoa muito franca, sabe, e gosto de dizer o que penso. E então eu vou dizer uma coisa que o Foguinho disse “não diz!”, mas que tá aqui atravessada na garganta e tem que sair. Sabe, Dona Maria Cecília, é um pecado a Maria não ficar com a gente. A senhora é avó, tem direito. A gente não é nada dela, só amigo, mas eu acho que com a gente ela ia ser muito mais feliz. (BOJUNGA, 2016, p. 28)

Ainda que Barbuda trabalhe no circo e tenha atitudes condizentes com o lugar

social que ocupa, a personagem não é um sujeito passivo que se cala diante das

situações que vivencia, e isso pode vir a surpreender o leitor, ainda que de maneira

limitada. Sendo assim, não se pode considerar Barbuda e Foguinho personagens

planas, uma vez que suas ações não são totalmente previsíveis.

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146

É perceptível que as personagens redondas se impõem ao leitor, de modo

que a identificação do leitor com as demais personagens seja mais difícil, pois estas,

na maior parte da narrativa, atuam como coadjuvantes. Logo, percebe-se na

literatura infantojuvenil a valorização de personagens complexas, que tentam

superar conflitos internos, e, consequentemente, emancipar-se.

A partir da análise da caracterização das personagens presentes em Corda

Bamba e Bisa Bia, Bisa Bel, constata-se a predominância da linha de introspecção

psicológica na literatura infantojuvenil brasileira, que busca colaborar para a

formação emocional, psíquica e identitária do leitor.

Em “Leitura Crítica da Literatura Infantil”27 (2001), Mortatti problematiza o

movimento histórico de constituição da literatura infantil, a partir do pressuposto de

que a superação da condição de menoridade deste campo de conhecimento está

relacionada com a assunção, advinda dos pesquisadores interessados, de uma

atitude interdisciplinar mediante à pluralidade constitutiva do gênero, qual seja,

literário e didático. Além disso, por meio do conceito de configuração textual, a

autora apresenta uma proposta de leitura crítica dos textos de literatura infantil, com

o intuito de contribuir para a busca do reconhecimento da legitimidade do estatuto

acadêmico-científico deste campo do saber.

Para Mortatti (2001, p. 183),

[...] o estatuto acadêmico-científico desse campo de conhecimento está diretamente relacionado com a produção de uma crítica específica de textos de literatura infantil, mediadora e suporte para a produção da história e teoria também específicas do gênero.

Desse modo, a autora salienta a necessidade de haver um distanciamento

crítico por parte do pesquisador, que parte da pergunta: “por que gostei (ou não)?”

ou sua variante “por que devo gostar ou não?”, buscando analisar a configuração

textual, que “[...] permite abordar, de um ponto de vista interdisciplinar, a identidade

específica dos textos do gênero, ou seja, sua unidade múltipla determinantemente

constitutiva” (MORTATTI, 2001, p. 183).

27

Mortatti utiliza a expressão genérica “literatura infantil” para designar os textos literários destinados a um público não-adulto, independentemente da superespecialização classificatória, hoje em voga, que faz distinções entre “literatura infantil”, “literatura infantojuvenil” e “literatura juvenil”.

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147

Diante disso, a autora enfatiza que em todas as etapas do processo de leitura

crítica de textos de literatura infantil o trabalho do pesquisador é um ato de

interpretação que envolve a produção de significados e sentidos. Assim, Mortatti

expõe a necessidade de investigar como se dá a constituição deste campo do

conhecimento, salientando que é dentro da configuração textual que resultam

sentidos e explicações, uma vez que este é o ponto de chegada e de partida do

trabalho investigativo.

Essa visada teórica vem ao encontro da proposta deste trabalho: investigar

sob quais parâmetros são construídas as personagens da literatura infantojuvenil

brasileira valorizada pela crítica acadêmica como um conjunto de textos de

qualidade literária – em termos de forma e conteúdo. Mais especificamente, parte-se

da premissa de que, nos últimos 30 anos, a literatura infantojuvenil brasileira teve a

constituição de seu cânone, para o qual convergem alguns traços recorrentes,

dentre eles, a presença de personagens complexas, cujos problemas centrais são

de ordem psicológica ou emocional.

Na perspectiva de se buscar a correlação entre personagens complexas, mais

intimistas, e o modelo emancipatório, pode-se ler em Zilberman (2003, p. 219), “A

representação da família”, que Corda Bamba traduz a emancipação autêntica da

criança:

A recuperação da memória vem acompanhada de uma liberação total – da culpa, já que fora Maria Cecília quem verdadeiramente ocasionara as dívidas que Márcia queria pagar; da influência dos pais, pois, ao assumir sua morte, a menina se livra simultaneamente do poder repressivo da avó e da lembrança opressiva ocasionada pela perda dos genitores. Trata-se, simbolicamente, da ruptura de um cordão umbilical, representado, na obra, pela corda bamba que conduz a menina de volta a seus procriadores. Reconquistar o passado é também desprender-se dele e, portanto, desenvolver recursos para viver autonomamente o futuro. Por isso, o livro encerra sintomaticamente com um catálogo de projetos mentalizado pela protagonista.

A assimetria adulto/criança é abolida da narrativa e Maria supera seus medos,

traumas, e de forma autônoma constrói o caminho que trilhará, sem que para isso a

família detenha total poder sobre si. As escolhas realizadas pela menina, após a

descoberta da nova porta, permitem que ela amadureça diante da vida e elabore seu

futuro de forma independente. Enquanto organiza sua vida futura, também organiza

o seu mundo interior.

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148

Em relação à Bisa Bia, Bisa Bel, Zilberman (2005, p. 85), em “Garotas que

mudam o mundo” afirma que

[...] é o que se poderia chamar um livro feminista, não apenas porque traduz o processo de independência da mulher ao longo da história, marchando do convencionalismo e da obediência de Bia à completa autonomia e autoconfiança de Beta. Mas também porque elege um ângulo feminino para traduzir essas questões, revelando como o processo de liberação nasce de dentro pra fora, não por ensinamento, mas enquanto resultado das experiências vividas. É o que se passa com Bel, a menina que se transforma internamente, sem deixar de ser ela mesma, ou, em outras palavras, o que ela poderia ser, considerando as coordenadas de seu tempo.

A autora expõe a importância da obra enquanto elemento que salienta o

processo de independência da mulher ao longo da história, demonstrando a

transformação vivenciada por Bia, sem que ela perca a sua identidade. Portanto,

nota-se que Zilberman confere importância às obras devido ao processo de

independência das protagonistas, que constroem sua identidade e subjetividade ao

longo da narrativa, a partir das experiências vivenciadas.

Os seguintes trabalhos realizados sobre as obras Corda Bamba e Bisa Bia,

Bisa Bel, versam sobre a importância das personagens protagonistas e seus

conflitos interiores, estabelecendo uma íntima relação entre literatura emancipadora

e personagens mais intimistas.

Faria (2015), ao analisar a construção da personagem Maria, afirma que ao

passar pela porta vermelha e enfrentar o dia mais angustiante de sua vida, – a morte

dos pais – a personagem supera os seus medos e angústias, revelando uma força

que a própria menina desconhecia. Assim, “Maria já não tem mais medo de

enfrentar-se, de enfrentar aquilo que antes a aterrorizava, agora ela sente-se livre

para pensar e sonhar e acima de tudo trilhar seu próprio caminho rumo ao futuro”

(FARIA, 2015, p. 33).

Por meio das considerações da autora, é nítida a relação entre personagens

complexas e literatura emancipadora. Ao salientar a capacidade de Maria trilhar o

seu próprio caminho e construir o futuro, Faria corrobora a hipótese de que o modelo

emancipatório requer uma personagem mais psicologizada, que após vivenciar

angústia, sofrimento e medo, consegue (re)construir a sua vida e sua identidade.

Santos (2011, p. 7), ao destacar o papel do imaginário ao longo da narrativa

de Corda Bamba, salienta que é por meio dele que Maria reconstitui e reconstrói a

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149

sua vida, pois “[...] a personagem percorre os meandros do imaginário que transfere,

integra e flui para o real na busca de sua identidade”. Desse modo, a autora ressalta

a função que tem o imaginário na vida da protagonista, que consegue superar o

trauma vivenciado e recuperar a memória. Maria vivencia situações que, ora se dão

no espaço onírico, ora se confundem à fantasia, e, vez ou outra, parecem ocorrer na

vida real. A fragmentação da narrativa corresponde à identidade fragmentada da

personagem, que tenta recuperar a sua história e (re)encontrar o sentido e

significado de sua vida. Portanto, ao enfatizar a importância do imaginário nesta

obra, Faria aponta para a inevitável relação entre personagem complexa/intimista e

literatura emancipadora.

Sobre Bisa Bia, Bisa Bel, Yazlle (2008) demonstra que Isabel constrói sua

identidade e subjetividade por meio da relação mútua que mantém com sua bisavó,

Bisa Bia, e sua bisneta, Neta Beta:

Isabel também pode ser considerada uma espécie de síntese de Bisa Bia e neta Beta, quando seleciona os traços de ambas as mulheres com que ela possui uma estreita ligação. Esse ato de selecionar envolve não somente poder de decisão da criança, como também uma certa autoridade advinda de sua autonomia, que, por sua vez, é decorrente de seu processo de autoafirmação. (YAZLLE, 2008, p. 312, grifos nossos)

A autora ressalta o poder de decisão da garota, evidenciando sua autonomia

durante a busca de autoafirmação. Ou seja, evidencia-se que o modelo

emancipatório condiz com o crescimento, a autonomia e a liberdade da protagonista.

Por fim, Azevedo e Rabinovich (2012), assim como Yazlle, discutem sobre a

formação de Bel devido à relação que mantém com Bisa Bia e Neta Beta. Para as

autoras, lidar com as diferenças ao entrar em contato com a bisavó e a bisneta

[...] representa o caminho da menina em direção à formação da própria identidade.O contato com suas origens, proporcionado por Bisa Bia, e com as perspectivas de futuro, através de Neta Beta, conduzem Isabel a construir o “si mesmo”, a sua própria maneira de estar no mundo. (AZEVEDO, RABINOVICH, 2012, p. 219)

Portanto, as pesquisadoras salientam o processo de construção da identidade

de Bel por meio das experiências vivenciadas a partir do contato com a geração

passada (Bisa Bia) e o futuro (Neta Beta).

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Diante das recentes pesquisas, é nítida a valorização das personagens

complexas, pois elas oferecem a oportunidade de formação emocional, psíquica, e

identitária do leitor. Percebe-se que os estudos salientam os mesmos aspectos

positivos das obras, portanto, assemelham-se às abordagens já realizadas por

Zilberman. Desse modo, pode-se afirmar que não houve pesquisas efetivamente

inovadoras que se detivessem em outros aspectos significativos das obras

analisadas.

Com isso, evidencia-se a valorização desta construção de personagens por

meio da crítica, o que acaba criando um modelo a ser seguido pelos demais

escritores que desejam atingir um público e vender suas obras. Contudo, faz-se

necessário problematizar em que medida a recorrência à personagens

psicologizadas pode se tornar exaustiva e nem sempre garantir a adesão do leitor.

Obras que apresentem personagens mais planas, menos psicologizadas, não

contribuiria, também, para a formação do leitor? É preciso discutir os modelos

supervalorizados pela crítica, a fim de refletir sobre a produção do gênero e,

consequentemente, sobre a recepção do público diante de tais obras.

As obras premiadas elencadas por Martha (2008), Ceccantini (2010) e Luft

(2010) demonstram uma recorrência nas narrativas infantojuvenis, porém, será que

os escritores não estariam se repetindo e, ao seguirem modelos consagrados pela

crítica, como obras de Lygia Bojunga e Ana Maria Machado, não criam uma camisa

de força para esta literatura? Além disso, nem todos os autores possuem a maestria

das escritoras citadas, podendo produzir narrativas menos densas que sequer

alcançam o modelo emancipatório – conforme demonstra o artigo de Valente (2015).

Tendo em vista a recente consolidação deste campo do saber, é de suma

relevância investigar o que tem sido produzido e o que é recorrente nas narrativas

destinadas à crianças e adolescentes, a fim de elucidar tendências e especificidades

constitutivas de tais textos. Portanto, esta pesquisa contribui na medida em que

expõe como se dá a configuração da literatura infantojuvenil brasileira

contemporânea e aponta as necessidades em relação à futuras pesquisas que

contemplem a identidade específica do gênero.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dados os limites deste trabalho, conclui-se que a literatura infantojuvenil

brasileira tem se voltado para uma linha psicologizante, que encontra respaldo no

modelo emancipatório, criando um “tom” a tais narrativas. A partir das obras

recentemente premiadas, percebe-se que escritores contemporâneos buscam

pautar-se em autoras representativas – como Lygia Bojunga e Ana Maria Machado –

para produzir uma literatura que corresponda a modelos já consagrados pela crítica.

Além disso, problematiza-se em que medida tais obras são aderidas positivamente

pelo público leitor, uma vez que as personagens sempre estão vivenciando conflitos

de ordem psicológica, emocional e afetiva.

Ademais, esta pesquisa também aponta para a evidente necessidade de

investigar a produção contemporânea da literatura infantojuvenil, buscando elucidar

tendências e modelos de um gênero e sua pluralidade constitutiva.

REFERÊNCIAS

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Em tela Nell, (1994): a metalinguagem no

cinema

Izabel Cristina Marson (SEED/PR) PQ/EFM

Osnir Branco (UENP/CCP) PG

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo propor a inserção do filme Nell em sala de aula, com proposta para o 1°ano do ensino médio regular, com o objetivo de abordar questões como a aquisição da língua materna; uso língua oral e da língua escrita; a linguagem como recurso humano; a comparação entre variação linguística e norma padrão. Para este fim, nos ateremos aos teóricos: Bagno (2003), Antunes (2003), Bakhtin (2009), Marcuschi (2008). Quanto às teorias que se utilizam do cinema como propagador de discursos de grande relevância para compreensão ou aquisição de conceitos da linguagem em Benjamin (1992), Barthes (1980). PALAVRAS-CHAVE: Cinema. Ensino. Linguagem.

INTRODUÇÃO

“A gratuidade é a única moeda da arte” (1998, p. 34), afirma

Pennac, e recente-se porque esse bem gratuito não chega ao aluno. Igualmente

marginalizados são: os alunos ficcionais do autor italiano, advindos de realidades

cercadas de livros na infância; e os nossos alunos reais, brasileiros advindos do

trabalho nos canaviais, ou como diaristas, ou na construção civil. Todos, os de lá e

os daqui, com históricos escolares inconclusos e retornando à escola para, mais

uma vez, tentar um final feliz no que diz respeito à educação formal. Os alunos de

Como um Romance (1998) ora dormem em sala durante as aulas, ora ouvem o

professor; o conteúdo ensinado pelo educador, a leitura corrente de dezenas de

romances clássicos e best-sellers, para significar, distanciam-se do Programa, o que

gera angústia a quem ensina.

No caso brasileiro, o conteúdo programático também não sugere o

que espanta o sono e causa interesse ao aluno jovem e adulto. Ao contrário, a

linguagem do professor, geralmente elaborada para além da compreensão de quem

tenta aprender; os conteúdos contemplados; a distância entre o que já sabem os

discentes como experiência vivida e o que é ensinado teoricamente em sala são

apontados como os principais empecilhos. Sobre isso Freire (1996, p. 42) lembra

que a formação docente requer formar para a solidariedade social e política para que

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154

o ensinar não seja o ensinar para a formação de “obstáculos” ao saber e à formação

do cidadão crítico. Para ele, o ser humano inserido na sociedade demonstra o quão

consciente já o é como cidadão. Temos então que, atender as classes populares

transpõe o ensinar a ler e escrever. Partir dos saberes vividos sugere percurso em

que se valorize o que traz o discente, e que o domínio deste para além do ler e

escrever elucidam o significado das entrelinhas que unem senso comum e saberes

científicos.

A construção da consciência se dá em torno da percepção do

contexto social em que está este sujeito. É da análise de fatos, situações,

exemplificações, que o indivíduo tece comparações com conteúdos teórico-

científicos que formem sentido e ensejem aplicação concreta, seja esta última, o

pensamento de forma filosófica, ou a solução para um problema prático em seu

ambiente familiar ou de trabalho.

Considerar apenas os saberes valorizados por determinadas classes

sociais é o mesmo que dizer que na África os deuses eram menos valorativos que o

dos europeus ou que os remédios da Ilha de Cabo Verde curavam menos que os

remédios levados para lá pelos portugueses. Ensinar a grupos excluídos requer do

educador que saiba sobre a importância que determinados grupos concedem a suas

crenças e saberes. O senso comum é ponto de partida aos conteúdos ditos

clássicos que venham a significar para o educando. O significado virá, porém, da

abordagem metodológica.

Para Freire (p. 122),

[...] Respeitar a leitura de mundo, do educando não é também um jogo tático com que o educador ou educadora procura tornar-se simpático ao educando. É a maneira correta que tem o educador de, com o educando e não sobre ele, tentar a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de interligar o mundo. Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral e da humana, de modo especial, como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento. (grifo do autor)

Para tanto, propõe-se aqui o trabalho com o gênero cimatográfico, o

longa metragem Nell, em sala de aula em proposta de Plano de Trabalho Docente

que inclua este gênero. Antes disto, um breve comentário sobre o enredo do filme:

inicia-se com a morte de uma senhora idosa e seu corpo sendo preparado para a

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despedida final. A mulher morta era mãe da personagem-tema deste filme, uma

eremita, vivia apenas com a filha Nell, mulher de, aproximadamente, 30 anos de

idade, e que possuía problemas na fala, morava em uma casa no meio da floresta. A

primeira impressão que ela passou foi a de uma pessoa selvagem com problemas

mentais. Os Drs. Jerry Lovell (Liam Neeson) e Paula Olsen (Natasha Richardson)

interessam-se pelo caso, mas tiveram divergências de opinião sobre a situação de

Nell. Paula instala câmeras na casa de Nell, com intuito de observá-la. Jerry procura

estabelecer contato direto, encontra resistências, mas obtém bons resultados. Com

o passar do tempo, conseguem ganhar a confiança de Nell, começam a

compreender a fala, os hábitos e os medos dela, descobrem que a personagem é

absolutamente capaz de viver só e de decidir sobre a própria vida. Nell possuía

dificuldades na fala devido ao convívio continuado com a mãe a qual tinha

paralisação facial. A personagem era diferente das pessoas da cidade, pois adquiriu

uma cultura própria do meio em que vivia e, por isso, sofreu discriminação. Os

médicos da cidade queriam a internação, para que recebesse os cuidados

necessários a uma deficiente mental. Deram a ela diagnósticos precipitados, dentre

esses o de autismo. Após passados os três meses estipulados pelo juiz, chega o dia

da decisão sobre quem cuidaria de Nell, enquanto todos achavam que ela não seria

capaz de se cuidar sozinha, ela se levanta e pede para Jerry “traduzir” a sua fala e

começa a própria “defesa”. Demonstra todo o seu carinho, medo, angústia e

vontade, mostra que está em pleno gozo de suas faculdades mentais e poderia se

cuidar sozinha, era solitária sim e possuía um modo particular de ver a vida e o

mundo e comunicar-se.

Na observação do cotidiano escolar, o gênero filme é comumente

atividade apenas para preenchimento das lacunas de tempo, aparecendo deslocado

dos planejamentos. É preciso lembrar que um filme pode vir a representar

oportunidade para que um aluno-expectador questione, relacione, interprete,

compare um filme a outro filme, uma situação a outra, ou à própria vida.

PROJETANDO O CINEMA NA SALA DE AULA

De acordo com as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná

(2008), os gêneros textuais oferecem a possibilidade de análise quanto à (o):

temática; contexto social, histórico e literário; finalidade; elementos composicionais

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do gênero; intertextualidade; vozes sociais do discurso imagético e textual (roteiro);

interlocutores; interdiscursividade; e discurso ideológico.

Para THIEL e THIEL, apud, GUIDE, 2004, p. 324, a questão da

compreensão do cinema requer que este seja visto como experiência de vida. [...]

“Ele (o cinema) pode marcar profundamente nossa existência da mesma forma que

a literatura ou a música. Uma experiência de vida põe em jogo nossa própria

existência e aquilo que somos”. Experiência que, sugerimos, parta do popular em

direção ao conhecimento sistematizado. Ao citar as diferentes formas de nos

comunicarmos, Benjamin (1992) lembra que,

A divulgação do livro só se torna possível com a descoberta da arte da impressão. A tradição oral, patrimônio da épica, é de natureza diferente da que constitui a essência do romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos, sagas e mesmo novelas - é que ele não provém da tradição oral, nem a alimenta. O romance distingue-se, sobretudo da narrativa. O narrador vai colher aquilo que narra à experiência, seja própria ou relatada. E transforma-a por vezes em experiência daqueles que ouvem a sua história. (Benjamin, 1992, p. 32)

De acordo com o autor, a natureza da oralidade e a natureza da

escrita são distintas. Escrever um romance é algo diferente do que seja contar uma

história. O contador de histórias irá buscar nas experiências vividas, na

intencionalidade do que é narrado, no contexto social, filosófico, político e cultural,

rudimentos para que seja compreendido.

Ao referir-se ao mundo apressado e urbano do início do século XX,

Walter Benjamin afirma que, “Quando alguém manifesta o desejo de ouvir uma

história, é cada vez mais frequente surgir o embaraço entre as pessoas que o

rodeiam. É como se uma capacidade que nos parecia inalienável, a mais segura de

todas, nos tivesse sido tirada; a capacidade de trocar idéias”. (1992, p. 28)

Para Irandé Antunes (2003, p. 24, apud Marcuschi, 2001, 19) existe

[...] “uma quase omissão da fala como objeto de exploração no trabalho escolar;

essa omissão pode ter como explicação a crença ingênua de que os usos orais da

língua estão tão ligados à vida de todos nós que nem precisam ser matéria de sala

de aula”.

A oralidade pode ser vista em sala de aula como tarefa informal sem

ênfase em avaliações ou inserida em atividades de menor organização. No entanto,

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a autora lembra sobre isso que a oralidade é geradora de aprendizagem e

representa para grande percentual dos educandos recurso para que se compreenda

a implicitude nos textos escritos. Para Benjamin (1992, p. 37),

A narrativa, que durante muito temo prosperou no círculo do trabalho manual - do camponês, do marítimo e, depois do homem urbano – é, ela também, como que uma forma artesanal de comunicação. Não pretende transmitir o que há de puro “em si” nas coisas, como o fazem a informação ou o relato. A narrativa mergulha as coisas na vida do narrador para depois as ir aí buscar de novo. Por isso a narrativa tem gravadas as marcas do narrador, tal como o vaso de barro traz as marcas da mão do oleiro que o modelou. (1992, p. 37)

De acordo com Walter Benjamin, a memória se alimenta dela

mesma retornando a si quantas vezes forem necessárias, a memória circula. Bagno

(2002) enfatiza que todos tem direito à linguagem para ouvirem e serem ouvidos e

que barreiras sociais são impeditivos a que a palavra do outro ganhe significado. No

filme Nell, a protagonista se vê na iminência de ter sua vida decidida por terceiros,

ao tomar a palavra novamente para si, ela emancipa-se ao apresentar com clareza o

que deseja fazer sobre sua vida. Observamos que àqueles que detinham a ciência

da linguagem, havia o certo e o errado, para a protagonista haverá, na verdade, um

período de aprendizado, onde ela reinventa o modo de ver e descrever o mundo. A

emancipação linguística ocorre, portanto, no ir e vir dos usos e reflexões sobre o

lugar em que está agora inserida, além de, frequentemente, fazer escolhas de

linguagem que a estimulam ao aprendizado. E Barthes apud Souza (2015),

Analisando fotogramas dos filmes Ivan, o terrível (1944) e O encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein, Barthes identifica três níveis de sentido nas imagens: o informativo, que diz respeito ao cenário, ao figurino, às personagens e suas relações; o simbólico, que diz respeito ao simbolismo referencial, diegético, histórico e autoral; e o terceiro sentido, que é o nível da significância, qualificando-se como obtuso, pois é errático, obstinado, não mensurável, opondo-se aos dois primeiros níveis. Enquanto o nível simbólico é óbvio e intencional, propondo uma evidência fechada ao destinatário, o obtuso, justamente por sua clareza demasiada no significante, torna-se velado, fugidio, excessivo, desnecessário (BARTHES, 1990). O sentido obtuso não pode ser descrito, mas apenas constatado, “é um significante sem significado” (BARTHES, 1990, p. 54), sendo que, mesmo se fosse suprimido, não comprometeria a comunicação e a significação. O terceiro sentido “está fora da linguagem”, “é a própria contranarrativa; disseminado, reversível, preso à sua própria duração” (BARTHES, 1990, p. 55-56).

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Para Barthes,

O tempo de leitura dos textos escritos é livre, a não ser que sejam muito convencionais, engajados a fundo na ordem lógico-temporal: o tempo de leitura do filme não o é, já que a imagem não pode ir mais rapidamente nem mais lentamente, ou se perderia até seu contorno perceptivo. O fotograma, ao instituir uma leitura simultaneamente instantânea e vertical, despreza o tempo lógico (que é apenas um tempo operatório); aprende a dissociar a imposição técnica (a “rodagem”) da essência fílmica, que é o sentido “indescritível”. Talvez fosse a leitura desse outro texto (aqui fotogramático), que reivindicasse S. M. E., quando dizia que o filme deveria apenas ser visto e ouvido, mas que é necessário escrutá-lo com atenção total. Este ouvir e este olhar não postulam apenas uma simples aplicação do espírito (exigência banal), mas sim uma verdadeira mutação da leitura e de seu objeto, texto ou filme: grande problema de nossos tempos (BARTHES, 1990, p. 60).

Em outras palavras, o filme para o contexto da escola não é uma

forma de passatempo, um preenchimento do tempo no ambiente de sala, mas sim

um gênero que exige preparação acerca dos elementos da narrativa e elementos

temáticos para uma maior compreensão por parte dos alunos.

Na proposta do plano de trabalho docente temos: 1. Visualização do

filme Nell. 2. Debate com a turma sobre o significado da linguagem oral na obra. 3.

Produção de painel com imagens que façam menção às diferentes formas de

comunicação humana. 4. Pesquisa extra-classe sobre outras obras fílmicas que

retratem o tema linguagem. 5. Apresentação da pesquisa em sala de aula pelos

alunos. 6. Elaboração de resenha do filme Nell. 7. Comparação em sala de aula das

resenhas produzidas com ênfase às particularidades observadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As obras fílmicas retratam questões sociais, políticas e culturais

universais. Em etapas de planos de trabalhos docentes compostos de variados

gêneros textuais como poemas, contos, textos informativos, pensamos o cinema

com espaço e significação em sala de aula de aula.

Os filmes podem ou não apresentar semelhança temática, assim o

plano de trabalho pode ser seguido por outro onde o professor possa fazer uso de

mais de uma das sugestões e acréscimos. O filme como gênero textual em sala de

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159

aula alcança significado na relação intertextual com outros gêneros. Ele não está à

margem dos conteúdos escolares, ele é um destes conteúdos. Aqui visto sob as

orientações das Diretrizes Curriculares Estaduais para Língua Portuguesa e

Literatura (2008), tendo o Discurso Como Prática Social o filme não representa

preenchimento das lacunas de tempo no ambiente escolar, mas sim elemento para

análise e estudo no processo ensino-aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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Enunciação e discurso: do romance ao filme

Enunciation and Discourse: From Romance to Film

Tânia Regina Montanha Toledo Scoparo (UEL-PG)

RESUMO: O discurso é um processo de produção de sentido, por meio de um texto. A significação corresponde às relações entre sujeito enunciador e enunciatário, ou seja, o sentido do texto é construído na decodificação do enunciatário, pelo modo como o texto é percebido por ele. Comunicar envolve, sobretudo, pressupor o outro, o enunciatário, a quem intencionamos atingir: seus saberes, suas necessidades, o que será comunicado. O campo é o da enunciação, instância linguística logicamente pressuposta pelo enunciado. A Semiótica instaura o ator, o tempo e o espaço na narrativa. Para essa teoria, a discursivização promove a mediação para a superfície, envolve as manifestações da enunciação nas marcas dos dêiticos que revelam a presença dos atores, do tempo e do espaço (sintaxe discursiva), além da cobertura de temas e figuras (semântica discursiva). A tentativa é entender qual o objetivo do texto, ou seja, os mecanismos de produção de sentidos que estão sendo mobilizados por um enunciador para convencer um enunciatário de alguma coisa. Nesse trabalho, propomos uma leitura de um fragmento do romance Lavoura Arcaica e do filme homônimo, comparando-os, utilizando, para isso, a semiótica de linha francesa. Nesses objetos de análise, estamos lidando com textos literário e fílmico, gêneros discursivos construídos por um enunciador que cria e recria a realidade elaborando complexos efeitos de sentido que concedem ao enunciatário (leitor/espectador) a perspectiva de criação de novas ideias sobre o mundo, ampliando seu conhecimento. Essa possibilidade de novas maneiras de ver o mundo constrói-se na relação entre enunciador/enunciatário. O objetivo do trabalho é mostrar que o leitor do romance, assim como o espectador do filme, no processo para a compreensão de texto, precisa recuperar a unidade deste, delineando os elementos que o compõem, verificando sua trajetória e captando as inter-relações que se estabelecem entre eles. PALAVRAS-CHAVE: Enunciação. Discurso. Romance. Filme

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, usamos a teoria da significação proposta por Algirdas Julien

Greimas. Na semiótica greimasiana, há a preocupação com a significação

multiforme, e a análise trata da construção de sentido de um texto a partir de suas

relações. Para isso trabalha com o percurso gerativo de sentido constituído de três

patamares, segundo Fiorin (1999a): as etapas do percurso são o fundamental, o

narrativo e o discursivo. Para cada um desses patamares há um componente

sintáxico e um componente semântico. Cada um desses patamares mostra como se

produz e se interpreta o sentido de um texto, num processo que vai do mais simples

ao mais complexo.

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Para a condução deste trabalho, faremos a leitura do romance Lavoura

Arcaica (1975), de Raduan Nassar, e do filme homônimo (2001), de Luiz Fernando

carvalho, utilizando o nível discursivo para a produção de sentido desses textos.

Ao iniciar a leitura do romance, o leitor já se depara com uma história em que

a mistura de figuras e imagens metafóricas e extremamente sensíveis é uma

constante: nudez, quarto, catedral, angústia, caule, mão, rosa branca, desespero,

acrescente-se a isso a imagem de tons claro e escuro que suscitam na manifestação

do conteúdo do texto. A realidade cotidiana posta em ficção, o passado indefinível

que mescla com o presente e os tempos modernos, caracterizados por elementos

precisos e concretos, amor e ódio, liberdade e opressão, moderno e arcaico, paixão

e moral, natureza e cultura, ordem e desordem, entre outros, se emaranham nas

malhas do texto, provocando a sensibilidade e a atenção do leitor, instigando-o a

descobrir pistar que levem à ordenação desses elementos e à depreensão da

coerência que possibilitará o entendimento global do texto.

O leitor do romance, assim como o espectador do filme, nesse processo para

a compreensão do texto precisa recuperar a unidade do texto, delineando os

elementos que o compõem, verificando sua trajetória e captando as inter-relações

que se estabelecem entre eles.

Isso acontece por meio de pistas que o narrador deixa no processo de

construção do texto. O leitor/espectador busca chegar, por essas pistas, à

estruturação que, num nível mais abstrato e profundo, alinhava a coerência e serve

de base à manifestação. O leitor/espectador, ao apreender essa base de

sustentação de sentido, é capaz de analisar e formular os elementos mais concretos

de constituição de texto.

ENUNCIAÇÃO E DISCURSO NO ROMANCE

Nesse trabalho estamos lidando com texto literário, um gênero discursivo

construído por um enunciador que cria e recria a realidade elaborando complexos

efeitos de sentido que concedem ao enunciatário a perspectiva de criação de novas

ideias sobre o mundo, ampliando seu conhecimento. Essa possibilidade de novas

maneiras de ver o mundo constrói-se na relação entre enunciador/enunciatário. No

mundo manifestado, a leitura é o olhar efetivo na busca da significação para melhor

compreender a si e ao mundo.

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Em Lavoura Arcaica romance há uma instalação no enunciado de um eu que

conta sua história, dividido entre os conteúdos do universo moderno e do arcaico

deflagrando o seu interior. A liberdade e a opressão são temas que permeiam todo o

mundo do eu protagonista da história.

A teoria semiótica recupera a enunciação através da análise interna do texto,

em suas estruturas discursivas, que revelam pistas por meio de projeções da sintaxe

do discurso, de escolhas de temas e figuras, ancoradas por ideologias. Consoante

Barros:

A análise interna do texto [...] mostra que as escolhas feitas e os efeitos de sentido obtidos não são obra do acaso, mas decorrem da direção imprimida ao texto pela enunciação. Ressalta-nos o caráter manipulador do discurso, revela-se sua inserção ideológica e afasta-se qualquer ideia de neutralidade ou de imparcialidade (1990, p. 82)

Dessa forma, a semiótica nos insere no fazer manipulador do enunciador.

Enunciador e enunciatário, enquanto sujeitos da enunciação, executam a função

actancial de destinador e destinatário do discurso. O enunciador, como destinador-

manipulador do discurso, conduz o enunciatário (destinatário) a crer e fazer. O fazer

persuasivo do enunciador e o fazer interpretativo do enunciatário efetivam-se no e

pelo discurso-enunciado (BARROS, 2002, p. 92-93).

Analisemos, portanto, os aspectos enunciativos por meio das pistas no texto

para compreendemos a configuração do fazer manipulador do enunciador do

romance.

No ato de produção do discurso, a enunciação deixa nele suas marcas e

busca persuadir o enunciatário, realizando um fazer persuasivo (fazer-crer) que o

leve a um fazer informativo (fazer-saber) e a um fazer factitivo (fazer-fazer),

manipulador. O texto não pode gerar-se sem a participação do leitor que o próprio

texto trata de construir. Somente pela enunciação enunciada, manifestada pelo olhar

de André, é que haverá a geração da leitura como percurso.

Dessa forma, analisemos as estratégias enunciativas no romance, no que se

refere ao aspecto discursivo, as manifestações dos actantes investidos como “eu” e

“tu”, atores da cena enunciativa. Enunciação entendida pela semiótica greimasiana

como o ato de realização do enunciado. Fiorin (2008) explica que a enunciação é a

instância do ego-hic-nunc, ou seja, eu-aqui-agora. Esses três elementos

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caracterizam as categorias da enunciação e são chamados de dêiticos, pois indicam

as pessoas, o tempo e o espaço da situação de enunciação.

Conforme Fiorin (2008, p. 78), “O mecanismo básico com que se instauram no

texto pessoas, tempos e espaços é a debreagem”, que pode ser de dois tipos:

enunciativa, quando projeta no enunciado o eu-aqui-agora e produz um efeito de

subjetividade; e enunciva, ao construir o ele-então-lá, e, nesse caso, “ocultam-se os

actantes, os espaços e os tempos da enunciação”, produzindo um efeito de

objetividade. Nesse sentido, observa-se que, ao produzir o discurso, o enunciador

deixou marcas no interior do enunciado para realizar um fazer persuasivo,

manipulador, procurando fazer com que o enunciatário (leitor) aceite o que ele está

dizendo; e, por outro lado, o enunciatário realiza um fazer interpretativo, para se

concretizar a produção de sentido do texto, tornando-se um coenunciador28 do texto.

No texto Lavoura Arcaica, há a projeção pressuposta de uma pessoa “eu”,

sujeito manipulador André, juntamente com as categorias enunciativas de tempo

(agora) e espaço (aqui), uma vez que são relacionadas ao “eu” que enuncia. Mas

além do “aqui”, o enunciador projeta no enunciado um “lá”, estabelecendo uma

relação subjetiva entre o espaço enunciativo e o espaço enuncivo. O tempo “agora”,

percebido em poucos momentos da narrativa, (“o quarto é inviolável”) (p. 9)29, “(Em

memória do avô, faço este registro)” (p. 91) e “(Em memória de meu pai, transcrevo

suas palavras)”, (p. 195) (grifos nossos) é realizado por meio de um movimento entre

ir e vir, rememorativo, tanto de um passado recente quanto mais distante, a infância.

Esse passado é restaurado para dar sentido a seu presente; nesse processo de

retomada, as lembranças são ressignificadas a partir de seu presente. Sua história é

uma dimensão do passado. Quando fala do espaço, a fazenda, as casas nova e

velha, André alude a um espaço datado e materializado no passado, no lá, e a partir

de um espaço-tempo do passado que projeta um olhar sobre o presente, aqui.

Ao narrar sua história num quarto de pensão, (aqui), o sujeito traz as

lembranças dos espaços da fazenda, do bosque, da casa velha, (lá), ressignificadas

28

O leitor para a semiótica é um coenunciador, uma vez que é ele quem vai designar a escolha dos elementos que irão tecer o texto. Nesse sentido, o leitor-enunciatário é o destinatário da comunicação e também sujeito que produz o discurso, por isso o resultado do ato de leitura é produto de uma criação, um ato de linguagem em que o leitor produz significação. 29

Usaremos várias vezes trechos do texto para exemplificar, por isso, desse ponto em diante, quando houver, após uma citação do romance, somente a página, trata-se da 3ª edição do romance, publicado em 1989 (originalmente em 1975), pela Editora Companha das Letras, São Paulo.

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no aqui, como representativas de sua solidão e de sua opressão vivenciadas junto à

família:

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silencia e cheios de paciência meu sono adolescente? (p. 13).

O jogo realizado pelo enunciador, entre o presente e passado, é marcado por

certas debreagens temporais. Benveniste (1989, p. 43-44), ao considerar as

diferenças entre passado simples e o passado composto em francês, explica que

Em francês contemporâneo, não há concorrência entre dois “tempo”, mas complementaridade entre dois sistemas de enunciação, o discurso e a narrativa. O passado simples é o “tempo” de base da “narrativa”, e o passado perfectivo do “discurso”.

Benveniste elucida essa instância narrativa como “enunciação histórica”, ou

seja, “trata-se da apresentação dos fatos sobrevindos a um certo momento do

tempo, sem nenhuma intervenção do locutor na narrativa. Para que possam ser

registrados como se tendo produzido, esses fatos devem pertencer ao passado”

(1989, p. 262).

Teríamos, então, quando o sujeito rememora a sua história, o passé simple,

e, em português, conferiria ao que Fiorin designou pretérito perfeito 2, “que pertence

ao sistema enuncivo” (1999b, p. 132). O passé composé seria o tempo do discurso.

Esse tempo em francês foi designado por Fiorin (1999b, p. 132) como pretérito

perfeito 1. No texto em questão, há poucas variabilidades entre as debreagens

temporais enuncivas e as enunciativas, pois as enuncivas se encontram em quase

todo o texto, por este ser uma rememoração. Observemos o fragmento abaixo:

eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte (p. 9-10) (grifos nossos).

As formas verbais destacadas estão no pretérito imperfeito ou perfeito 2.

Esse tempo é concomitante ao marco de referência pretérito e a debreagem

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enunciva instala o plano da narrativa. Isso acontece em (quase) todo o texto, pois,

de fato, André conta sua história em um presente pouco referenciado.

Somente em alguns momentos, na narrativa, acontece a debreagem

enunciativa. Esse tempo delimita o discurso, o que é do momento da ação, no

presente. É o que ocorre, por exemplo, no início do primeiro capítulo, quando André

começa a narrar sua história:

Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo (p. 9).

As formas verbais em destaque, no fragmento, no presente, configuram

debreagem enunciativa, que intensificam a presença do “eu” no texto. Nesse

romance, portanto, o enunciador usou de elementos linguísticos, os dêiticos

temporais adverbiais e verbais para produzir o efeito de sentido pretendido, ou seja,

contar sua história de paixão, raiva, revolta, solidão, opressão, almejando um leitor,

coenunciador, com sensibilidade e que estivesse em sintonia com uma linguagem

rítmica-melódica peculiar ao discurso da prosa-poesia, a qual está na base de sua

narração. Na enunciação, o efeito de sentido produzido pelo enunciador do texto foi

de subjetividade. De maneira geral, verificamos que as marcas de atorialidade,

espacialidade e temporalidade também delimitam a sensibilidade e a cognição do

sujeito em seu fazer persuasivo, as quais estão demarcadas no conteúdo da

enunciação.

Pela manifestação de um eu, por um tempo presente (alguns momentos) e

passado (rememoração) predominantemente no pretérito imperfeito, e por um

espaço aqui (e lá, nas lembranças), produziu-se uma leitura compreensiva do

sentido do texto.

A partir dessas relações projetadas no texto, “instaura-se um intrincado jogo

de articulações temporais”, conforme Fiorin (1999a, p. 42) e o enunciador ordena as

realizações das ações no presente ou no passado, conforme a necessidade.

Ainda há, no texto, a operação de debreagens internas, ou seja, de 2º grau.

Isso ocorre quando o enunciador “dá a palavra a uma das pessoas do enunciado ou

da enunciação já instaladas no enunciado” (FIORIN, 1999a, p. 46), criando, assim, a

ilusão de situação “real” de diálogo. Analisemos um fragmento:

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E foi então que ele me abraçou, e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família inteira; voltamos a nos olhar e eu disse “não te esperava” foi o que eu disse confuso com o desajeito do que dizia e cheio de receio de me deixar escapar não importava com o que eu fosse lá dizer, mesmo assim eu repeti “não te esperava” foi isso o que eu disse mais uma vez e eu senti a força poderosa da família desabando sobre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia “nós te amamos muito, nós te amamos muito” [...] (p. 11) (grifos nossos).

Esse fragmento faz parte do primeiro capítulo do texto. André está em um

quarto de pensão e chega seu irmão Pedro, com a intenção de levá-lo para a

fazenda, de onde André fugiu. Quando o irmão entra no quarto, André diz “não te

esperava”. O enunciador dá voz a André, pessoa da enunciação já instalada no

enunciado. O eu, nesse caso, registra por meio de uma debreagem enunciativa e de

uma enunciva, um eu e um ele no discurso. O eu com valor de ele manifesta-se

como interlocutor de um diálogo, que tem como interlocutário (tu) o irmão Pedro. Em

seguida, em “nós te amamos muito, nós te amamos muito”, o enunciador dá voz a

Pedro, ao ele. Pedro (ele) faz uma debreagem enunciativa, instaurando um eu no

discurso. Esse tipo de debreagem é responsável pela construção de diálogos e

constitui os interlocutores, cedendo voz a atores que já estão inscritos no discurso.

Com esse tipo de recurso, o discurso provoca sensação de presente enunciativo no

interior do tempo passado, como, também, produz um efeito de verdade, conforme

Fiorin (1999a, p. 46):

a debreagem de 2º grau cria a unidade discursiva denominada discurso direto e cria um efeito de sentido de verdade. Com efeito, o discurso direto proporciona ao enunciatário a ilusão de estar ouvindo o outro, ou seja, suas “verdadeiras” palavras” (grifo do autor).

Bertrand (2003, p. 96) assim se manifesta em relação à debreagem interna:

De fato, o diálogo se apóia sobre [...] a narração que, fornecendo-lhe seus recursos semânticos, constitui seu referente interno. Esse dispositivo garante a coesão do conjunto e engendra essa forma de credibilidade particular para o leitor que se chama “ilusão referencial.

Essas articulações exercidas pelo enunciador são responsáveis pela coesão

do composto enunciativo, fabricando o efeito de sentido de realidade e de ilusão

referencial. Esses efeitos possibilitam estabelecer o contrato veridictório entre

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enunciador e enunciatário, nivelando o “fazer-crer” de um e o “crer verdadeiro” de

outro, conforme explana Bertrand (2003, p. 99):

O problema não é, pois, o “verdadeiro” em si mesmo, em sua hipotética realidade, mas o balanço incerto entre o “fazer crer” de um lado e o “crer verdadeiro” do outro. Aqui se situa a problemática da veridicção:’O discurso é esse espaço frágil em que se inserem e se leem a verdade e a falsidade, a mentira e o segredo; [...] equilíbrio mais estável ou menos de um acordo implícito entre os dois actantes da estrutura da comunicação. É esse entendimento tácito que é designado pelo nome de contrato veridicção’

30.

O enunciador de Lavoura Arcaica procura fazer com que seu destinatário-

leitor creia na realidade de sua história, por meio do estabelecimento de um contrato

de veridicção. O enunciatário, ao crer na “realidade” dos fatos, está colaborando com

o enunciador na construção de sentidos que despertem a sensibilidade dos dois

para os problemas familiares, o conflito entre pai e filho, a paixão, a solidão, o amor

pela irmã, o incesto, enfim, situações da vida real.

Em relação aos procedimentos semânticos do discurso, há uma coerência

instalada no texto por meio do revestimento dos valores do nível narrativo e o seu

recobrimento por figuras do conteúdo. Tematização e figurativização são dois níveis

abstratos no percurso gerativo do sentido greimasiano. Greimas (s/d, p. 454), no

“procedimento de conversão semântica” afirma que “a tematização permite também

formular diferentemente, mas de maneira ainda abstrata, um mesmo valor”.

Ao se tomar um texto figurativo, é necessário descobrir o tema subjacente às

figuras, pois para que estas tenham sentido precisam remeter a um tema, que, por

sua vez, é o revestimento de um esquema narrativo (FIORIN, 1999a, p. 64-66).

A narração de todos os momentos vivenciados por André caracteriza-se por

um rico trabalho com figuras realizado e arquitetado pelo enunciador do texto.

O texto em análise é predominantemente figurativo. Textos literários são

figurativos por excelência. Consoante Bertrand (2003, p. 154) “ao lermos um texto

literário, entramos imediatamente na figuratividade”.

O romance concentra-se na oposição liberdade versus opressão, em primeira

instância, e moderno versus arcaico, em segunda. Nesse sentido, no nível

discursivo, a opressão é tematizada como sujeição, de um lado, mas que faz emergir

a rebeldia, de outro (de André) às imposições arcaicas do pai. A liberdade está

30

Greimas, A. J. Du sens II. Essais sémiotiques. Paris: Seuil, 1983, p. 105, apud Bertrand, 2003, p. 99.

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relacionada à possibilidade de viver a paixão pela irmã e longe dos desmandos do

pai. Quanto às figuras, o pai figurativiza (actorializa) a imposição/dominação. André

figurativiza (actorializa) a sujeição, a revolta. Inúmeras figuras e temas articulam as

duas ocorrências no plano discursivo, além de determinar a concretização dos

esquemas narrativos. Não analisaremos todas as figuras presente na obra, por isso,

vamos nos ater a um conjunto de figuras de uma passagem do texto para ilustrar

essa concretização. Usaremos o capítulo 25 (p. 158-172). No retorno à casa

paterna, na segunda parte da obra, intitulada “O retorno”, o confronto entre pai e filho

se dá por meio de um longo diálogo e ficam bem demarcados os temas que

subjazem as figuras.

Nesse fragmento, as figuram representam o mundo, em relação ao pai, com

“coração, rosto, filho, colheita, casa, mesa, dias, festa, natureza, frutos, alimento, o

faminto, teto, cama, roupa, cabeça, pessoas, palavra, pão, boca, família, irmãos,

mãos, planta, galardão, ave, semente, semeador, grãos, milênios, mundo, mãe,

caminho, víbora, língua, demônio, homem, água, trevas, luz, árvore, chão,

pedregulho, espinhos”

Em relação a André, as figuras são “casa, mesa, tempo, pai, sol a sol, corpo,

pés, chagas, mundo, família, olho, vísceras, alimento, pão, santo, planta, hoje,

mundo, mãos, pés, ventos, prisioneiro, carcereiro, membros, aleijão, mãos, pés,

algoz, boi, canga, pescoço, canzis, semente, palavras, farelo, grão, ovo, fruto,

família, pombas, oliveira, urtigas, coração, porta, irmãos, tarefas, campos, lavoura,

luz, ”.

Na leitura dessas figuras, encontramos os temas que lhes dão significados.

Segundo Fiorin (1999a, p. 70), “as figuras estabelecem entre si relações, formam

uma rede”, são encadeadas umas às outras. A esse “encadeamento de figuras, a

essa rede relacional reserva-se o nome de percurso figurativo”. Os percursos

figurativos do texto remetem aos temas da opressão, liberdade, arcaico, moderno,

revolta. Vamos nos ater a esses principais, mas o romance ainda abre para muitos

outros temas, como natureza e cultura, paixão e moral, sagrado e profano, ordem e

desordem, entre tantos outros.

A figurativização da liberdade e do moderno surge com a oposição entre

opressão e arcaico. Por detrás de um sistema patriarcal implacável, põe em cheque

a sujeição e a revolta do sujeito, de sua paixão perante o que narra, mostrando a

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subjetividade que está explícita no ato de narrar. André mergulha no seu interior,

distanciando-se da ordem imposta pela autoridade e poder do pai. Percebemos aqui

a desigualdade entre ambos pela própria solenidade ao recebê-lo. A figura do pai é

descrita por André como “majestade rústica”, “densidade de sua presença”,

configurando, subjetivamente, uma presença dominadora. André percebe que não é

possível um diálogo com o pai, e acaba, neste capítulo, exacerbando sua exclusão

no seio da família. Para o pai só existe a família submetida às suas leis, à sua

ordem, pois, assim, encontrará a alegria, a saúde, as necessidades supridas. Nesse

diálogo entre os dois, o pai está sentado na cabeceira da mesa, e para ele, os

valores da família estão estáveis e estabelecidos. Em André, percebemos, nesse

diálogo, primeiro sua insatisfação, revolta, o anseio pela liberdade e, depois, a

solidão, a submissão. Observamos nesse diálogo pontos de vistas totalmente

díspares. O discurso do pai é retórico, congruente; de André é provocativo,

incongruente; os dois não se entendem, o diálogo mais parece monólogos, cada um

com seu ponto de vista. André percebe que não poderá romper a ordem do pai,

então se aprisiona, e acaba por internalizar as leis do pai, completando o círculo

contínuo que perpetua por gerações. Antes de seu retorno, desse diálogo, André se

voltou à paixão pela irmã e ao contato sempre com a natureza para fugir dessa

autoridade. Percebemos que toda essa ação é fugaz, momentânea, caracterizada

pela individualização, própria do ser humano moderno.

O percurso figurativo analisado pode ser assim figurativizado,

complementando o levantamento dos campos semânticos:

Quadro 1: O semantismo codificado nos percursos figurativos

Sujeitos/Ator Figuras Percurso Figurativo Temas

André

Semente, mesa, família, alimento, pão, santo, pai, planta, hoje, mundo, mãos atadas, atar pés, chagas, prisioneiro, carcereiro, aleijão, membros, mãos, pés, algoz, boi, pescoço, canga, canzis, mundo, semente, farelo, grão, larva, núcleo, casulo, mundo, ovo, fruto, família, palavra, semente, bojo, pombas, oliveira, urtigas

Da desordem Da raiva Da Solidão

Do Moderno Da Revolta Da liberdade

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coração, pai, porta, como os irmãos, campos de lavoura, luz do dia, sol se pôr

Da sujeição Da Submissão

Pai

Casa, cabeça, pai, mãe, irmão, família, já basta, caminho, palavra, mesa, víbora, língua, demônio, homem, cale-se, luz, trevas, poeira, olhos, arvore, frutos, grão, coração, rosto, filho, casa, mesa, natureza, frutos, alimento, o faminto, teto, cama, roupa limpa, gerações, fé, milênios, família, pão, irmãos, palavra, semente, mãos, frutos, planta, ave, ovos, ninho, semeador, grãos,

Da autoridade Da ordem

Da Opressão Do Arcaico

Em todo o texto as figuram nos direcionam à “nossas experiências

perceptivas mais concretas” (BERTRAND, 2003, p. 154):

[...] o conceito semiótico de figuratividade foi estendido a todas as linguagens, tanto verbais quanto não-verbais, para designar esta propriedade que elas têm em comum de produzir e restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais concretas. A figuratividade permite, assim, localizar no discurso este efeito de sentido particular que consiste em tornar a realidade sensível: uma de suas formas é a mimésis. (Idem, p. 154)

A narração de todos os momentos vivenciados por André caracteriza-se pela

arquitetura de um rico trabalho com figuras realizado pelo enunciador do texto.

Essas figuras apresentam-se relacionadas ora à liberdade (moderno), ora à

opressão (arcaico). Dessa forma, constroem-se isotopias temáticas e figurativas, que

são, também, responsáveis pela construção da coesão sintagmática do discurso,

garantindo sua coerência semântica.

Conforme Fiorin (1999a, p. 81) “isotopia é a recorrência do mesmo traço

semântico ao longo de um texto. Para o leitor, a isotopia oferece um plano de leitura,

determina um modo de ler o texto”. Não iremos mapear todo o texto para revelar as

várias isotopias que ele oferece. Nesse sentido, atentemo-nos somente a uma

isotopia que, no nosso entender, sintetiza o conteúdo da obra Lavoura Arcaica. A

figuratividade presente na actorialização de André leva-nos a criar sentidos

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relacionados à sua fragmentação perante as situações vivenciadas com o pai. As

figuras integram uma isotopia que leva o leitor a interpretá-la como representante

dos temas propostos na narrativa do romance. Chega-se, assim, à isotopia temática

da universalização, ou seja, a fragmentação histórica do sujeito, dos problemas

enfrentados pela família e pelo homem, mesmo que sejam problemas e situações

projetadas em tempo e espaço diferentes no decorrer da história do homem.

A isotopia da universalização é uma síntese das relações e conflitos arcaicos

das famílias entre a liberdade e a opressão, o moderno e o arcaico (antigo), a paixão

e a moral, a ordem e a desordem, o amor e a morte, a natureza e a cultura, entre

outros. O ciclo da família de André é o mesmo de muitas famílias. As histórias se

repetem, mas o homem continua praticamente o mesmo, e esse ciclo da

intemporalidade é uma imagem da universalização encontrada nos conflitos de

André.

Enfim, a análise discursiva demonstrou-nos que o enunciador do texto

construiu os temas presentes, constituindo “a espinha dorsal” da narrativa. Esses

temas são dados a conhecer ao sujeito André e divergem na sua apreensão: os

temas da liberdade, do moderno são apreendidos de maneira eufórica, uma vez que

integram um universo de sentidos valorizado por ele. O contrário acontece como os

temas da opressão e do arcaico, que são apreendidos de maneira disfóricos por não

coadunar com seus valores e sentimentos. O enunciador arquiteta sentidos

relacionados à fragmentação do ser com intenção, no discurso enunciado, de

compartilhar com o enunciatário a universalização das ações humanas. Como

Carvalho (2002, p. 47-48) se pronunciou sobre a obra de Raduan, André ecoa os

gritos e os gemidos de uma sociedade inteira, a obra “lembra um espelho gigante,

espelhando tudo e todos!”, pondo em xeque, por meio de metáforas, as utopias, as

leis, a ordem. Há uma consciência social que permeia todo o texto, “Somos um

planeta de excluídos” (Idem) e estes, em qualquer época, bradam num grito de

revolta. É esse o grito de André. Um grito universal contra todo discurso que gera

leis, ordem e, consequentemente, excluídos, “os que não têm lugar na grande mesa

posta da “família” social, estes habitam o verdadeiro inferno” (Idem, grifo do autor).

Enfim, o enunciador do texto deixa marcas de sua produção e o próprio texto

oferece os caminhos para que o leitor faça a interpretação.

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173

No próximo tópico, vamos abordar os procedimentos de discursivização em

relação ao cinema. Poderemos observar o surgimento da dimensão enunciativa,

atentando para os conceitos de actorialização, temporalização e de espacialização

discursivas, ou seja, da sintaxe do espaço e de sua relação com a categoria tempo

no âmbito do discurso cinematográfico.

O DISCURSO NO FILME

Em Lavoura Arcaica filme, o enunciador instaura uma debreagem actorial,

espacial e temporal enunciativas de primeiro grau (eu/ aqui/ agora), criando assim

um simulacro de uma ação que transcorre com intervenção explícita em primeira

pessoa do narrador do filme (a visão de André por meio de uma câmera subjetiva).

Temos, dessa forma, um simulacro pautado pela subjetividade. Como no romance,

André narra sua história.

Como vimos, no nível discursivo, a temporalização é o momento em que o

sujeito da enunciação instaura em seu enunciado a categoria de tempo por meio de

uma debreagem enunciativa ou enunciva.

Vejamos como se desenvolve a temporalização em Lavoura Arcaica filme. Na

primeira sequência, no quarto de pensão, percebemos uma objetividade aparente

correspondente à debreagem enunciva, quando se instala um tempo com status de

“naquele momento”. Conforme Fiorin (1996, p. 45) essa debreagem é aquela

[...] em que se instauram no enunciado os actantes do enunciado (ele), o espaço do enunciado (algures) e o tempo do enunciado (então). Cabe lembrar que o algures é um ponto instalado no enunciado, da mesma forma, o então é um marco temporal inscrito no enunciado, que representa um tempo zero, a que se aplica a categoria topológica concomitância vs não-concomitância.

Na verdade, essa debreagem de tempo (então) dessa sequência inicial do

filme caracteriza-se por uma suposta debreagem temporal enunciva, pois estamos

assistindo ao filme em um momento do presente, todas as imagens que vemos

estão acontecendo no presente do indicativo. O momento de referência é o de

presente, cuja concomitância se dá no momento do acontecimento, o presente do

presente. O cinema é a arte do presente. É a partir dele que visualizamos

debreagens e embreagens, sejam elas enunciativas ou enuncivas.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

174

A história de André ocorre, então, nessa concomitância, cujo momento de

referência é o presente. A partir do momento que Pedro chega ao quarto da pensão,

há a debreagem enunciativa de segundo grau, as vozes do interlocutor (André) e do

interlocutário (Pedro). Temos instaurada uma anterioridade também enunciativa,

cuja figurativização institui-se no momento em que ocorrem os flashbacks, a partir

das lembranças do ator do enunciado, André. Os fatos do passado introduzem o

simulacro de enunciação. A concomitância do presente, o momento da enunciação,

alterna-se com a anterioridade do presente, instalada a partir de uma embreagem

enunciativa. Visualmente, na debreagem enunciativa, instala-se o aqui (o espaço do

quarto), e o agora (o presente diegético), como referências. Como no romance, há

um ir e vir constante devido aos flashbacks, há sempre um presente presentificado e

uma anterioridade do presente. A presentificação das lembranças da fazenda, do

passado, surge na concomitância do presente do enunciado fílmico.

Dessa forma, quando, no início da narrativa, no quarto de pensão, André

começa a contar suas ações na fazenda, na concomitância do presente, o recurso

da embreagem enunciativa nos transporta para o interior de suas lembranças. Tais

embreagens são apresentadas ao enunciatário por meio de recursos visuais,

consoante Silva (2004, p. 135-136), como flashbacks (as analepses), flashforwards

(as prolepses), cortes (indica mudança de sequência, de cena, de plano), os

avanços e os recuos da câmera (travellings para frente ou para trás), fade-out

(escurecimento da imagem) e a fusão

(quando uma cena funde-se a uma outra indicando uma nova sequência de acontecimentos). Um outro recurso que também é utilizado é o cromatismo das cenas: às vezes, pouca ou muita luz (na maioria dos casos, nos filmes em preto e branco) e cores ou preto e branco (nos filmes coloridos) servem para marcar a embreagem. Esses recursos são algumas das principais ferramentas que o cinema utiliza para indicar a presentificação do passado e do futuro em qualquer momento de referência (grifos do autor).

O recurso visual que sugere a presentificação de uma anterioridade do

presente, evocada pela embreagem enunciativa, no momento de referência

presente, foi o corte das imagens. Pedro, ao chegar no quarto, abraça o irmão e diz

“Abotoe a camisa, André”. No momento de referência presente, instaurada pelo

agora, há um corte de imagens, instaurando uma anterioridade também enunciativa,

André se recorda das tardes na fazenda, quando criança, enunciando, em voz off

“Na madorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

175

escapava aos olhos apreensivos da família”. A sequência acontece em 7min30seg

de filme:

Figura 01 – Os irmãos no quarto da pensão Figura 02 – André no bosque da fazenda

Nessa sequência, comparemos o quarto de André, no presente da ação, no

quarto de pensão, fig. 01, em relação a outra imagem, as lembranças da infância, a

anterioridade, fig, 02. Há uma mudança significativa em relação ao sentimento

interno de André ao relatar seu encontro com o irmão e suas lembranças da infância.

Isso se dá por meio do cromatismo instaurado nas imagens. No quarto há pouca luz

e a sombra esculpe as personagens, transmitindo um efeito de interioridade,

fechada, nebulosa, angustiada. Ao se lembrar da infância, em nova sequência, o

claro sobressai, revelando lembranças de uma infância mais pura, inocente. Assim,

o corte e o cromatismo instauraram a presentificação de uma anterioridade do

presente.

Outro recurso, o da fusão, encontra-se na sequência em que o pai, em um de

seus sermões, narra a história do faminto31. A sequência se inicia em

1h16min40seg:

Figura 03 – André na pensão Figura 04 – Início da transformação, na pensão

31

Há uma passagem, no romance, que traz a parábola do faminto, cuja fonte encontra-se em As Mil e Uma Noites.

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Figura 05 – Transformação de André Figura 06 – A história do faminto

Nessa sequência, há uma transformação da própria personagem André, em

outra personagem, o faminto da história do pai. Ainda no quarto de pensão, André

começa a narrar essa sua lembrança, fig. 03, no presente da ação e a câmera

figurativisa o olhar de André para revelá-lo uma outra personagem, o faminto,

quando vemos a transformação acontecer. Há uma fusão entre a imagem que

mostra André, fig. 04, no quarto de pensão, o agora, e a que revela André,

transformado em faminto, fig. 05, teatralizando a história bíblica. Essa nova

sequência figurativiza uma anterioridade do presente por meio de uma embreagem

enunciativa. A partir do momento do agora, uma embreagem enunciva é instaurada

e vemos André e o pai transformados em personagens de uma história, fig. 06. O

ele, alhures / algures, então é instaurado. Do agora de André, a fusão nos transporta

para a anterioridade do presente, em que vemos André transformado em outra

personagem. Nessa cena, da representação teatral da história do faminto, o

cromatismo é um recurso visual para demarcar esse jogo das embreagens

enunciativa/enunciva, em preto e branco. Assim, fica bem destacado que a cena

retratada é uma história contada/transfigurada por um ele / alhures, algures / então.

A alternância entre o presente do presente, do ato de enunciar, do agora –

como no início do filme, no quarto de pensão – e a anterioridade do presente – as

memórias de André – pontua a narrativa de todo o filme. Essa alternância é

necessária para o avanço da narrativa. Na estrutura que o filme apresentou, muito

parecida com a do romance, concomitantemente, o avanço da narrativa de André

(presente do presente) progride no sentido em que este conta sua história para o

irmão e narra suas lembranças (anterioridade do presente). A narrativa da vida de

Anais do SIDIALE

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177

André sob seus vários pontos de vista, subjetivamente, também progride na mesma

direção.

Vejamos agora como se dá a sintaxe do espaço e de sua relação com a

categoria de tempo no âmbito do discurso cinematográfico. Na esfera da

discursivização, a espacialização compreende procedimentos de localização

espacial, em que realizações de debreagem e de embreagem empreendidas pelo

enunciador tem o propósito de lançar a própria enunciação para fora de si e colocar

no enunciado “uma organização mais ou menos autônoma, que serve de quadro

para a inscrição dos programas narrativos e de seus encadeamentos” (GREIMAS;

COURTÉS, s/d, p. 155), como também compreende a programação espacial,

“graças aos quais se realiza uma disposição linear dos espaços parciais (obtidos

pela localização), conforme a programação temporal dos programas narrativos”

(Idem, p. 155).

Fiorin (1996) concebe uma diferença entre espaço linguístico e espaço tópico,

ou seja, o espaço linguístico organiza-se a partir do aqui, do lugar do eu, e este irá

colocar-se como centro e ponto de referência da localização, ele situa os objetos,

sem que tenham importância seus lugares no mundo. Já o espaço tópico é

conceptualizado nas línguas e irá assinalar a descontinuidade na continuidade.

Nesse sentido, as línguas determinam esse espaço “seja como uma posição fixa em

relação a um ponto de referência, seja como um movimento em relação a um

referência (FIORIN, 1996, p. 262). Esse espaço, portanto, define-se ou em relação

ao enunciador ou em relação a um lugar inscrito no enunciado. Consoante Fiorin

(1996) é espacial, no espaço tópico, o ponto de referência: enunciativo - o

enunciador ou o enunciatário - ou enuncivo - ponto de referência inscrito no

enunciado. Isso revela que o espaço tópico

Funciona como um especificador do espaço linguístico propriamente dito. Quando se usa um espaço tópico, estará ele sempre precisando um espaço linguístico explicitamente manifestado ou não [...] Isso nos conduz à conclusão de que o conceito de debreagem só se aplica ao espaço linguístico e não a seu especificador. Teremos assim uma debreagem enunciativa, quando o ponto de referência for o espaço do enunciador [...] A debreagem será enunciva quando tivermos algures/alhures, figurativizado ou não, instalado no enunciado [...] (FIORIN, 1996, p. 265) (grifos do autor).

Observemos, então, como se instaura a categoria do espaço na diegese de

Lavoura Arcaica. São vários os espaços tópicos no filme. Vamos observar como se

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178

constrói o espaço do quarto de pensão e do bosque (início da narrativa), por meio de

um olhar semiótico:

Figura 07 – Espaço do quarto Figura 08 – Espaço do bosque na fazenda

O espaço exterior às memórias do ator do enunciado é instaurado por uma

debreagem enunciativa, colocando o aqui na diegese narrativa. Os espaços do

alhures/algures relacionados pelas memórias do ator do enunciado manifestam-se

em contraponto ao aqui inserido inicialmente, por meio de uma debreagem enunciva

de segundo grau. Temos, portanto, o alhures/algures representado pelo espaço

inscrito no enunciado. Quando os flashbacks são acionados, há o efeito de sentido

da presentificação de algo que estava fora da situação de enunciação entre

interlocutor e interlocutário. As oposições espaciais entre aqui/alhures-algures

podem ser neutralizadas, resultando em uma embreagem espacial. Dessa forma,

especificamente, em Lavoura Arcaica, a embreagem espacial se dará entre os

espaços do sistema enunciativo - aqui - e aqueles do enuncivo – algures/alhures.

Na primeira sequência do filme, no quarto de pensão, o espaço é enunciativo,

fora das memórias de André. Pedro, enquanto interlocutor, chega à pensão para

levar André de volta à família, na fazenda. Nessa interação entre eles, há uma

relação interlocutor/interlocutário, com uma debragem enunciva de segundo grau,

depreensível do diálogo. André traz as lembranças para dentro do quarto. Na

primeira ocorrência de lembranças no filme, há um corte entre as imagens que, de

um lado, representam o espaço enunciativo, fig. 07, (o quarto), de outro, o enuncivo,

fig. 08, (o bosque), e o que temos, como presentificação, é o espaço enuncivo, por

tomar o lugar do enunciativo. A oposição entre os espaços é neutralizada pelo

processo da embreagem, percebida visualmente pela ação, no filme, do corte entre

as imagens, e a partir da debreagem enunciva de segunda grau, o espaço enuncivo

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179

ocupa o lugar delegado anteriormente pelo espaço enunciativo. Em toda a narrativa

fílmica, teremos esse tipo de embreagem espacial, que será visualizada em

alternância entre cortes, fusões e cromatismo das imagens dos espaços enuncivo e

enunciativo.

Em relação ao componente semântico, ou a semântica discursiva, nessa

primeira sequência do filme, no quarto da pensão, temos um espaço fechado e

sufocante, marcado pela interioridade opressiva de André; e ao se lembrar do

bosque, quando criança, há um espaço aberto. Esses espaços, nessa sequência,

mostram uma primeira oposição que se funda entre /aberto/ e o /fechado/,

relacionando-se à oposição semântica de base /liberdade/ vs /opressão/ da

narrativa. Esses espaços tópicos figurativizam, no discurso, os temas da liberdade e

da opressão. Nessa configuração espacial será dado o primeiro passo para a

constituição do embate entre pai e filho, entre liberdade e opressão. Várias figuras

visuais concretizam esses temas: o quarto é pequeno, fechado, sufocante;

novamente, o claro e o escuro se alternam, manifestando uma atmosfera emocional,

com efeito dramático, da opressão de André, exercida naquele espaço pela figura do

irmão (representante das palavras do pai). Quando a sequência muda, trazendo as

lembranças da infância de André, no espaço aberto, a iluminação clara comandada

por leis naturais, da natureza, modela a alegria da criança, sua liberdade.

A oposição semântica fundamental /liberdade/ vs /opressão/, que se

estabelece na diegese do filme, toma uma direção figurativa importante na sua

relação com a imagem visual. Na imagem, há sempre um jogo de outras oposições

que concretizam a oposição de base: /luz/ vs /sombra/, /claro/ vs /escuro/, /fechado/

vs /aberto/. Essas oposições fundamentam o discurso diegético do filme.

O cinema, como uma semiótica sincrética32, mostra aqui um universo

figurativo (plano do conteúdo) que dá respaldo à cena representada, vinculada no

plano da expressão. Os planos33 de conjunto, fechado, de um lado, panorâmicos de

outo contaminam o enunciado fílmico, instituindo um espaço, por um lado, opressivo,

32

Semiótica sincrética reporta-se à manifestação de um conteúdo em um sistema de significação verbal e não verbal, ou seja, textos entendidos como formas textuais que integram visual e verbal na mesma enunciação, como ocorre nos textos fílmicos, nos clips, nos textos publicitários, por exemplo. 33

A expressividade do discurso se constrói a partir dos planos, que são as tomadas de cenas entre dois cortes, segmentos contínuos da imagem (chamados: Plano Geral - engloba cenas amplas; Plano Conjunto - conjunto de elementos envolvidos na ação; Plano Fechado - ou close-up, câmera próxima da figura humana ou do objeto, focaliza um detalhe). O movimento panorâmico é a rotação da câmera em torno de um eixo, vertical ou horizontal, sem deslocamento do aparelho.

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sufocante, desesperador, e por outro, alegre, contagiante. A visualização entre um e

outro esclarece os sentimentos de André. As cores apagadas de um e iluminadas de

outro também incidem sobre uma ambientação visual.

Enfim, duas sequências distintas, colocadas lado a lado, ilustraram momentos

bons de André na infância e a solidão na vida adulta. Esses fragmentos do filme

trazem a figurativização da liberdade (espaço aberto), e a opressão (espaço

fechado). Dois espaços que centralizam o olhar do enunciatário, com significados

distintos, mas complementares. Temos, no segundo fotograma, fig. 08, o sujeito

discursivo André criança, cuja ideia de liberdade, emoldurada pela composição da

cena, em primeiro plano, é distante (passado) – a criança brinca no bosque, alheio

ao futuro –; no primeiro fotograma, fig. 07, como oposição, temos um efeito de

proximidade (hoje), em que a composição da cena aponta, a partir de um plano de

conjunto, que traz o sujeito André adulto, numa contundente posição de decepção e

amargura debruado em uma opressão esmagadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao propormos a análise da transmutação fílmica da obra literária Lavoura

Arcaica, foi nossa intenção promover um diálogo entre os dois discursos, literário e

fílmico, verificando os mecanismos de construção de sentido mobilizados pelos dois

textos.

Para isso, realizamos um estudo semiótico dos discursos utilizados no

romance e no filme, utilizando como ferramenta de análise a teoria semiótica de

linha francesa. O arcabouço teórico dessa linha ajudou-nos a desvendar os

processos de geração de sentido dos textos. Fizemos uma leitura dos aspectos

discursivos para compreender o processo de construção de sentidos materializados

em textos literários e fílmicos.

Concluindo esta dupla leitura, entendemos que ambos, romance e filme,

têm, nos dramas pessoais, o ingrediente ideal para sustentar a trama, envolvendo o

leitor/espectador ao longo da narrativa literária/fílmica. O enredo enfoca um drama

comum e perene, o confronto entre desejo e proibição, entre o autoritário e o

anárquico, que sustenta a narrativa.

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181

REFERÊNCIAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

__________. Teoria do Discurso: fundamentos semióticos. 3 ed. São Paulo: Humanitas, 2002. BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, 1989. BERTRAND, Dénis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: Edusc, 2003. CARVALHO, Luiz Fernando. Sobre o filme Lavoura Arcaica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação – as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996. __________. Teorias do discurso e ensino da leitura e da redação. In: GRAGOATÁ. O ensino de língua e da literatura. Revista do Instituto de Letras - Programa de Pós-Graduação. Niterói: EDUFF, nº 2, 1 º semestre, 1997. __________. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1999a (2009). __________. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1999b. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix. s/d. LAVOURA ARCAICA. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: Europa Filmes, 2001. DVD (172 min), son., color. Baseado no romance Lavoura Arcaica de Raduan Nassar. NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 1989. SILVA, Odair José Moreira. A manifestação de cronos em 35 mm – o tempo no cinema. Dissertação de mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 2004.

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Letramento na formação de professores de

língua portuguesa34

Literacy in the training of portuguese language teachers

Paulo Robson Silva da Silva (UEL-PG)35

RESUMO: Este artigo contextualiza o projeto de extensão “Letramento x Alfabetização: a dimensão

sociocultural da leitura e da escrita no âmbito educacional”, desenvolvido em parceria à Universidade do Estado do Pará (UEPA) e prefeituras do Estado do Pará, teve por finalidade promover junto aos professores do Ensino Fundamental a utilização de práticas de Letramento que possibilitem o desenvolvimento de estratégias ativas para a compreensão da escrita e da leitura pelo alunado, além de distinguir um conjunto de habilidades e competências - o letramento – do processo de alfabetização permitindo ao educador compreender a necessidade de desenvolver o seu olhar para o processo de aprendizagem e as percepções adquiridas pelo educando. Assim, visou-se assegurar não apenas a compreensão da informação quer escrita ou falada, mas principalmente, reafirmar a relevância de uma formação baseada no letramento que possibilite agir conforme tais informações. Para isso utiliza-se de metodologia adequada ao tema proposto com discussões teóricas e atividades práticas fundamentadas em FREIRE (1998), KLEIMAN (2004), KAUFMAN (1994), SOARES (2003), BUNZEN (2006), COLELLO (2006), GARCEZ (2005), GERALDI (2002), KOCH (1998), LAJOLO (1982), MARCUSCHI (2002) e MATTOS (2003). Diante da exposição sobre as perspectivas de letramento foi possível contrapor as estratégias tradicionais de ensino da língua materna. Ao fazê-lo foi necessário discutir com propriedade a partir de formação continuada proposta pelo projeto em questão conceitos que vislumbrem as situações multimodais de comunicação, baseadas nos conceitos de multiletramento (ROJO, 2012). Foram obtidos resultados de reflexão nas práticas educativas no que concerne ao trato da linguagem e a aplicabilidade teórica-prática no ensino.

PALAVRAS-CHAVE: Letramento. Leitura e escrita. Práticas de ensino de Língua Portuguesa.

INTRODUÇÃO

Recentes estudos vêm revelando aspectos interessantes no percurso

educacional, tanto de crianças, de jovens e adultos, para atingirem o objetivo da

alfabetização, bem como todo o conhecimento envolvido nesse processo. Nesse

sentido, reflexões são feitas para ações que possibilitem uma nova prática

pedagógica, que favoreça a formação de indivíduos, como sujeitos, críticos e

34

Este artigo é resultado do projeto de extensão denominado Campus Avançado, promovido pela Pró-reitoria de Extensão (PROEX) da Universidade do Estado do Pará(UEPA), executado no ano de 2009 em municípios paraenses de Bujaru e Igarapé-Miri. 35

Mestrando em Letras- PROFLETRAS, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Email: [email protected]

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letrados. O interesse aqui se concentra, portanto, no aprofundamento da

compreensão de processos e fatores envolvidos na construção daquela condição

letrada, pela discussão de como esse processo é fundamental para a aquisição de

outra perspectiva, além do modelo educacional tradicional e formal, infelizmente

ainda posto em nossa sociedade.

Para tanto, é interessante perceber neste artigo a discussão por meio da

base teórica da pesquisa realizada pelo Projeto de Extensão Campus Avançado, da

Universidade do Estado do Pará (UEPA) e revelar como está sendo repercutida a

proposta do letramento entre os professores do ensino fundamental, do mesmo

modo em que é estabelecida a noção de alfabetização e suas problemáticas nesse

eixo.

LETRAMENTO: UMA DEFINIÇÃO

O termo letramento disseminou-se nos anos 80, com o surgimento de uma

categoria ainda não explicada pela literatura disponível da época. O contexto

educacional empregava o termo alfabetização para categorizar o indivíduo, que

soubesse ler e escrever, ou seja, um indivíduo que pudesse decodificar a grafia.

Entretanto, sua conceituação termina nessa simples denominação, e nesse sentido

o letramento vem preencher a lacuna dessa nova perspectiva educacional.

Nos últimos anos, escutou-se muito falar em letramento, mas para quê

serve? Por que serve? E para quem serve? São apenas poucas perguntas que

estão no abstrato esperando por serem respondidas.

A necessidade de se descobrir outra possibilidade educacional vai

ultrapassar barreiras do como sistematizar ações para benefício de um bem comum.

Diante da evolução do ensino, a possibilidade para um novo parâmetro surgiu em

nossa sociedade fazendo deste (o letramento), um objeto de estudo, ainda pouco

explorado dentro do contexto educacional.

É pertinente ressaltar a importância do conhecimento de mundo de um

indivíduo, já que não podemos descartar no processo de aquisição do

conhecimento, apenas uma verdade absoluta, um conceito pronto e acabado sobre

o tema. Por isso, faz-se necessário uma breve contextualização do que seria um

indivíduo letrado x um indivíduo alfabetizado. Como afirma FREIRE(1998, p. 55):

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“O ato de ler e escrever deve começar a partir de uma compreensão muito abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os seres humanos fazem antes de ler a palavra. Até mesmo historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e a seguir escreveram as palavras.”

Para tanto, algumas observações devem ser feitas do conceito de

alfabetização, segundo SOARES (2004, p. 23): “É a ação de alfabetizar, de tornar

“alfabeto”, logo entramos em um outro conceito intrínseco ao primeiro, alfabetizar o

que seria? É tornar um indivíduo capaz de ler e escrever. A partir dessa assertiva

conseguimos configurar o nosso principal objetivo, a distinção do ato de alfabetizar,

do ato de letrar. O termo letramento vem-se mostrando pertinente aos estudos sobre

o processo de ensino-aprendizagem da linguagem escrita, já que se observa em

nosso país o termo alfabetização ainda muito relacionado a uma visão dessa

aprendizagem como um processo de codificação/decodificação de sons em letras e

vice-versa. Essa visão está de um modo geral ligada à suposição de que a

linguagem escrita é a fala por escrito.

A medida que reflexões são feitas sobre a nossa análise visualizamos a

distinção dos termos, apesar deles se complementarem. Mas, porque são distintos e

ao mesmo tempo se complementam? Sua distinção consiste no ato de um indivíduo

ser letrado, sem ser alfabetizado ou ser alfabetizado sem ser letrado. Ou seja,

aprender o código e saber como usá-lo.

Portanto, é possível alfabetizar letrando por meio da prática da leitura e

escrita. O grande problema é que muitos educadores se preocupam com a

alfabetização, e deixam de lado o contexto social daquele aluno.

Tais afirmações servem-nos para perceber as diferenças dos conceitos de

letramento e alfabetização, entretanto, ainda temos que levar em consideração todo

o processo de descoberta a uma nova perspectiva frente à crescente necessidade

da expansão educacional.

Soares(1998) apresenta muitos aspectos complexos da noção de

letramento. Destacamos aqui apenas alguns que nos parecem mais problemáticos

em relação ao eixo do presente estudo. Primeiramente, a dificuldade de conceituar

letramento; em segundo lugar, a possibilidade de conceberem-se letramentos (no

plural); e, em terceiro, como conseqüência das duas questões anteriores, a falta de

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condições para definir critérios de avaliação ou estabelecer diferentes níveis de

letramento. Três outras antigas perguntas circulam na temática em si e diante desse

estudo, particularmente, nem sempre de modo explícito: Por que alfabetizar? Para

que alfabetizar? E como alfabetizar?

Inicia-se essa discussão no demonstrativo clarividente de que uma

educação descentralizada permite uma aquisição maior de saberes, visto que

quando agregamos informações pertinentes do referido tema, o contextualizamos

com situações concretas. E, a partir desse momento, o letramento determina uma

aprendizagem capaz de transcender um ensino apenas de recepção de conteúdos,

educação em que o indivíduo seja um ser-crítico capaz de absorver não apenas o

conhecimento científico, mas também o conhecimento de mundo, e principalmente o

conhecimento que o traga para dentro da sua realidade, como afirma

FREIRE(1998,p. 21): “ é construir, reconstruir, contatar para mudar, o que não se faz

sem abertura ao risco e à aventura do espírito.”

A pessoa letrada já não é a mesma que era quando era analfabeta ou

iletrada, sua relação com o contexto, com os outros torna-se diferente, justamente

por visualizar de maneira crítica tudo que a cerca.

A palavra letramento, no entanto, ainda não está em nossos dicionários, por

se tratar de uma prática de ensino “nova”. Mais especificamente, sua primeira

aparição na literatura deu-se no livro de Mary Kato intitulado de “No mundo da

escrita: uma perspectiva psicolingüística”, de 1986, quando a referida autora afirma a

seguinte situação: “ Acredito que a chamada norma padrão, ou a língua falada culta,

é conseqüência do letramento, motivo porque, indiretamente é função da escola

desenvolver no aluno o domínio da linguagem falada institucionalmente aceita.”

De certa forma, o fato de que o problema da aprendizagem da leitura e da

escrita tenha sido considerado, no quadro dos paradigmas conceituais “tradicionais”,

como um problema, sobretudo metodológico contaminou o conceito de método de

alfabetização, atribuindo-lhe uma conotação negativa- é que, quando se fala em

“método” de alfabetização, identifica-se, imediatamente, “método” com os tipos

“tradicionais” de métodos – sintéticos e analíticos (fônico, silábico, global etc.), como

se esses tipos esgotassem todas as alternativas metodológicas para a

aprendizagem da leitura e da escrita.

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186

Talvez se possa dizer que, para a prática da alfabetização, tinha-se,

anteriormente, um método, e nenhuma teoria. Com a mudança de concepção sobre

o processo de aprendizagem da língua escrita, passou-se a ter uma teoria, e

nenhum método. Acrescente-se a esses equívocos e falsas inferências o também

falso pressuposto, decorrente deles (os métodos) e delas (as teorias), de que

apenas através do convívio intenso como material escrito que circula nas práticas

sociais- ou seja, do convívio com a cultura escrita- a criança se alfabetiza.

LETRAMENTO X ALFABETIZAÇÃO

A alfabetização, como processo de aquisição do sistema convencional de

uma escrita alfabética e ortográfica, foi, assim, de certa forma obscurecida pelo

letramento, porque este acabou por freqüentemente prevalecer sobre aquela, que,

como conseqüência, perde sua especificidade. É preciso, a esta altura, deixar claro

que defender a especificidade do processo de alfabetização não significa dissociá-lo

do processo de letramento, como se defenderá adiante. Entretanto, o que

lamentavelmente parece estar ocorrendo atualmente é que a percepção que se

começa a ter- de que se as crianças estão sendo, de certa forma, letradas na escola,

não estão sendo alfabetizadas- parece estar conduzindo à solução de um retorno à

alfabetização como processo autônomo, independente do letramento e anterior a

ele.

É evidente que o professor alfabetizador não pode perder de vista o

elemento “orgânico” da alfabetização- o domínio do sistema. Em se tratando de

letramento, a atenção do professor deveria estar voltada ao fato de fazer com que o

aluno se aproprie e se envolva em práticas sociais fazendo uso desse sistema. “O

que pode ter acontecido, ao longo das últimas décadas, é que em lugar de se fugir a

essa ‘excessiva especificidade’, apagou-se a necessária especificidade do processo

de alfabetização” (SOARES, 2004,p. 37).

Assumir o letramento como objetivo do ensino no contexto dos ciclos

escolares implica adotar uma concepção social da escrita, em contraste com uma

concepção de cunho tradicional que considera a aprendizagem de leitura e produção

textual como a aprendizagem de competências e habilidades individuais. A diferença

entre ensinar uma prática e ensinar para que o aluno desenvolva individualmente

uma competência ou habilidade não é mera questão terminológica. Em instituições

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

187

como a escola, em que predomina a concepção da leitura e da escrita como

conjunto de competências, faz-se necessário conceber a atividade de ler e escrever

como um conjunto de habilidades progressivamente desenvolvidas, até se chegar a

uma competência leitora e escritora ideal, a do usuário proficiente da língua escrita.

Os estudos do letramento, por outro lado, partem de uma concepção de leitura e de

escrita como práticas discursivas, com múltiplas funções e inseparáveis dos

contextos em que se desenvolvem. A prática social como ponto de partida e de

chegada implica, por sua vez, uma pergunta estruturante do planejamento das aulas

diferente da tradicional, que está centrada nos conteúdos curriculares.

A DESINVENÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO

O neologismo desinvenção pretende nomear a progressiva perda de

especificidade do processo de alfabetização que parece vir ocorrendo na escola

brasileira ao longo das duas últimas décadas. Certamente essa perda de

especificidade da alfabetização é fator explicativo – evidentemente, não o único, mas

talvez um dos mais relevantes – do atual fracasso na aprendizagem e, portanto,

também no ensino da língua escrita nas escolas brasileiras, fracasso hoje tão

reiterado e amplamente denunciado. É verdade que não se denuncia um fato novo:

fracasso em alfabetização nas escolas brasileiras vem ocorrendo insistentemente há

muitas décadas; hoje, porém, esse fracasso configura, e de forma inusitada.

Anteriormente ele se revelava em avaliações internas à escola, sempre concentrado

na etapa inicial do ensino fundamental, traduzindo-se em altos índices de

reprovação, repetência, evasão; hoje, o fracasso revela-se em avaliações externas à

escola – avaliações estaduais (como o SARESP, o SIMAVE), nacionais (como o

SAEB, o ENEM) e até internacionais (como o PISA) – espraia-se ao longo de todo o

ensino fundamental, chegando mesmo ao ensino médio, e se traduz em altos

índices de precário ou nulo desempenho em provas de leitura, denunciando grandes

contingentes de alunos não alfabetizados ou semi-alfabetizados depois de quatro,

seis, oito anos de escolarização. A hipótese aqui levantada é que a perda de

especificidade do processo de alfabetização, nas duas últimas décadas, é um, entre

os muitos e variados fatores, que pode explicar esta atual “modalidade” de fracasso

escolar em alfabetização.

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T E X T O S C O M P L E T O S

188

Talvez se possa afirmar que na “modalidade” anterior de fracasso escolar –

aquela que se manifestava em altos índices de reprovação e repetência na etapa

inicial do ensino fundamental– a alfabetização caracterizava-se, ao contrário, por sua

excessiva especificidade, entendendo-se por “excessiva especificidade” a

autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico em

relação às demais aprendizagens e comportamentos na área da leitura e da escrita,

ou seja, a exclusividade atribuída a apenas uma das facetas da aprendizagem da

língua escrita. O que parece ter acontecido, ao longo das duas últimas décadas, é

que, em lugar de se fugir a essa “excessiva especificidade”, apagou-se a necessária

especificidade do processo de alfabetização.

Várias causas podem ser apontadas para essa perda de especificidade do

processo de alfabetização; limitando-se às causas de natureza pedagógica, cita-se,

entre outras, a reorganização do tempo escolar com a implantação do sistema de

ciclos, que, ao lado dos aspectos positivos que sem dúvida tem, pode trazer – e tem

trazido – uma diluição ou uma preterição de metas e objetivos a serem atingidos

gradativamente ao longo do processo de escolarização; o princípio da progressão

continuada, que, mal concebido e mal aplicado, pode resultar em descompromisso

com o desenvolvimento gradual e sistemático de habilidades, competências,

conhecimentos. Porém, não se detém aqui no aprofundamento das relações entre

esses aspectos– sistema de ciclos, princípio da progressão continuada– e a perda

de especificidade da alfabetização, porque parece que a causa maior dessa perda

de especificidade deve ser buscada em fenômeno mais complexo: a mudança

conceitual a respeito da aprendizagem da língua escrita que se difundiu no Brasil a

partir de meados dos anos de 1980.

Segundo Gaffney e Anderson (2000, p. 57), as últimas três décadas

assistiram a mudanças de paradigmas teóricos no campo da alfabetização, que

podem ser assim resumidas: um paradigma behaviorista, dominante nos anos de

1960 e 1970, é substituído, nos anos de 1980, por um paradigma cognitivista, que

avança, nos anos de 1990, para um paradigma sociocultural. Segundo os mesmos

autores, se a transição da teoria behaviorista para a teoria cognitivista representou

realmente uma radical mudança de paradigma, a transição da teoria cognitivista para

a perspectiva sociocultural pode ser interpretada antes como um aprimoramento do

paradigma cognitivista que propriamente como uma mudança paradigmática.

Anais do SIDIALE

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189

Embora Gaffney e Anderson situem essas mudanças paradigmáticas no

contexto norte-americano, pode-se reconhecer as mesmas mudanças no Brasil,

aproximadamente no mesmo período; em relação ao período que aqui interessa,

pode-se afirmar que, tal como ocorreu nos Estados Unidos, também no Brasil os

anos de 1980 e 1990 assistiram ao domínio hegemônico, na área da alfabetização,

do paradigma cognitivista, que aqui se difundiu sob a discutível denominação de

construtivismo (posteriormente, socioconstrutivismo). Ao contrário, porém, dos

Estados Unidos, em que esse paradigma foi proposto para todo e qualquer

conhecimento escolar, tomando como eixo uma nova concepção das relações entre

aprendizagem e linguagem, traduzida no movimento que recebeu a denominação de

whole language, entre nós ele chegou pela via da alfabetização, através das

pesquisas e estudos sobre a psicogênese da língua escrita, divulgada pela obra e

pela atuação formativa de Emilia Ferreiro.

Não é necessário retomar aqui a mudança que representou, para a área da

alfabetização, a perspectiva psicogenética: alterou profundamente a concepção do

processo de construção da representação da língua escrita, pela criança, que deixa

de ser considerada como dependente de estímulos externos para aprender o

sistema de escrita – concepção presente nos métodos de alfabetização até então

em uso, hoje designados “tradicionais” – e passa a sujeito ativo capaz de

progressivamente (re)construir esse sistema de representação, interagindo com a

língua escrita em seus usos e práticas sociais, isto é, interagindo com material “para

ler”, não com material artificialmente produzido para “aprender a ler”; os chamados

pré-requisitos para a aprendizagem da escrita, que caracterizariam a criança

“pronta” ou “madura” para ser alfabetizada – pressuposto dos métodos “tradicionais”

de alfabetização – são negados por uma visão interacionista, que rejeita uma ordem

hierárquica de habilidades, afirmando que a aprendizagem se dá por uma

progressiva construção do conhecimento, na relação da criança com o objeto “língua

escrita”; as dificuldades da criança, no processo de construção do sistema de

representação que é a língua escrita – consideradas “deficiências” ou “disfunções”,

na perspectiva dos métodos “tradicionais” – passam a ser vistas como “erros

construtivos”, resultado de constantes reestruturações.

Sem negar a incontestável contribuição que essa mudança paradigmática,

na área da alfabetização, trouxe para a compreensão da trajetória da criança em

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

190

direção à descoberta do sistema alfabético, é preciso, entretanto, reconhecer que ela

conduziu a alguns equívocos e a falsas inferências, que podem explicar a

desinvenção da alfabetização, de que se fala neste tópico – podem explicar a perda

de especificidade do processo de alfabetização, proposta anteriormente.

Em primeiro lugar, dirigindo-se o foco para o processo de construção do

sistema de escrita pela criança, passou-se a subestimar a natureza do objeto de

conhecimento em construção, que é, fundamentalmente, um objeto lingüístico

constituído, quer se considere o sistema alfabético quer o sistema ortográfico, de

relações convencionais e freqüentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em

outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da alfabetização, obscureceu-se

sua faceta lingüística – fonética e fonológica.

Em segundo lugar, derivou-se da concepção construtivista da alfabetização

uma falsa inferência: a de que seria incompatível com o paradigma conceitual

psicogenético a proposta de métodos de alfabetização.

A ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR DO LETRAMENTO: A RESPONSABILIDADE DA

ESCOLA COM O CONTEXTO SÓCIO-CULTURAL DO ALUNO

Para FREIRE (1998), a leitura é uma fonte de conhecimento que deve ser

trabalhada no contexto escolar de forma a proporcionar ao leitor uma

interpretabilidade pessoal e social das aferições discutidas no texto, em que suas

opiniões e gostos literários possam ser os mais abrangentes possíveis e ao mesmo

tempo prazerosos. Cabendo ao professor a função de mediar as problematizações

expostas, adequar seu currículo a cada situação encontrada no ambiente escolar e

desenvolver práticas que fomentem a leitura, análise lingüística e composição de

textos.

É neste intuito que também é essencial a valorização da cultura popular em

que nosso aluno está inserido e que procure aprofundar seus conhecimentos,

incentivados a buscar a compreensão crítica do que é a palavra escrita, a

linguagem, as suas relações com o contexto, e conseqüentemente, participando

ativamente das mudanças constantes da sociedade.

Desse modo, observa-se que há uma necessidade de se identificar, se

apropriar e se utilizar os conceitos e (por que não?) os pré-conceitos dos alunos nas

atividades escolares. A escola da atualidade não desenvolve essa noção, portanto,

Anais do SIDIALE

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191

não a pratica em suas mediações. A exemplo da constatação do grupo que

desenvolveu o projeto de extensão Campus Avançado em um município paraense

em que os professores do ensino fundamental eram desprovidos desse olhar sobre

o aluno, martirizando-os com exercícios em que mais se figurava o obscuro; o vazio,

do que o verdadeiramente conhecido, pois o ambiente cultural e social dos alunos

não eram explicitados em nenhum instante nas aulas das mais variadas disciplinas.

A proposta do letramento vem significativamente contribuir para solucionar,

de certa forma, essa problemática da escola. Tfouni (1995, p. 20) apud COLELLO

(2006) alerta para a diferença no nível social da alfabetização e do letramento:

Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de uma sociedade. Sociedade esta capaz de estabelecer momentos de interação.

Portanto, a escola deve mobilizar-se para incluir práticas pedagógicas que

reflitam o cotidiano do aluno e o leve a criticar acerca dele, estimulando-o ao

interesse do aprendizado formal através daquele adquirido em sua vivência, o

informal. No entanto não devem ser esquecidos os outros produtos do

desenvolvimento humano e que possuem caráter multicultural ou, mais

especificamente, macrocultural. Afinal, deve-se partir da particularidade

(microcultural) para o todo (macrocultural), em termos sócio-culturais, e do todo

(texto, palavra, etc) às particularidades (sílabas, fonemas, etc.), nos termos do

letramento.

O fato é que por meio do letramento a interdisciplinaridade é, na sua

essência, perpendicular ao seu objetivo maior da etapa educacional, ou seja,

entrecruza-se com o social, com a ambientação, com o cotidiano do alunado. Esse é

um atributo do letramento não muito difundido e que chama atenção por considerar o

conhecimento empírico já bastante pressuposto de vários conhecimentos, e nessa

relação, partindo-se da ambientação do aluno, obtém-se as unidades lógicas das

quais a escola se prevalece, porém, de modo geral, atualmente sem muitas

demonstrações de avanço, pois, de certa forma, pouco se reconhece nesse espaço

acerca da conjugação destas unidades. A conjugação, nesse âmbito, define-se

como a própria formulação sócio-cultural.

Por outro lado, as colocações aqui manifestas reafirmam o intrínseco

Anais do SIDIALE

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192

condicionamento que a linguagem possui com a semântica da palavra, pois o

significado e o sentido surgem como ponto de partida para o processo de

inteligibilidade frente à leitura e à escrita, sejam elas grafológicas ou sensitivas (a

chamada “leitura de mundo”, como é mencionado popularmente). A leitura de

mundo, na verdade, ao que se verifica, é a própria proficiência linguística- tão

mencionada pelos teóricos de letramento. Essa conversão não é impertinente, nem

tão quanto irrelevante, pois aos educadores cabe o papel de levar os alunos a

entender como se estabelecem os fenômenos diários nas suas micro e

macroesferas, repercutindo, de tão logo, na seguridade36 da (re)utilização do mais

variados contextos em que o aluno for submetido- um perigo constante, já que, como

se sabe, os desvios de linguagem (de conduta social, generalizando) podem resultar

em graves punições. Dessarte, há de se perceber que a linguagem sempre vai estar

conjugada com o social, pois, longe de esclarecer “quem originou quem?”, ambos

estão inseparavelmente conectados.

Inconcebível é a escola desprezar o contexto sócio-cultural do aluno,

tornando-o assujeitado do processo de ensino-aprendizagem. Trata-se, portanto, de

repensar em alternativas estimulantes aos discentes para o aprendizado da leitura e

da escrita, o que, neste caso, não se pode fazê-lo desvencilhando-se do sujeito em

questão; desse aluno. O próprio Ministério da Educação do Brasil reconhece a

importância dessa ação:

Na escola, crianças e adolescentes precisam ter contato com diferentes textos, ouvir histórias, observar adultos lendo e escrevendo. Precisam participar de uma rotina de trabalho variada e estimulante, em que as origens dos alunos e suas atividades pessoais, seus gostos, sejam considerados (grifo nosso), e, além disso, receber muito incentivo dos professores e da família para que, na idade adequada, aprendam a ler e escrever. (SEB/MEC, Indicadores da qualidade da educação: dimensão, ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, 2006, p. 5)

Uma das alternativas para empreender tamanho resultado ao

aprimoramento da leitura e da escrita na educação formal atualmente é conceber

como estabelecida no país uma cultura informatizada, conectada ao mundo virtual,

36

O termo seguridade mencionado aqui faz alusão metafórica ao seu uso cotidiano, no qual corresponde desde o início da década de 40, à seguridade social, expressão universalmente consagrada pela primeira vez na 1ª Conferência Sul-Americana de Seguridade Social (1942), em que desde este momento é definido como “amparo generalizado ao cidadão contra os riscos sociais no geral”.

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que, apesar de nem todos terem acesso a esse recurso, está sendo bastante

difundido pelo governo. Entende-se como recurso (o computador) interdisciplinar

porque pode ser trabalhado em variados contextos e possui essa significativa

inserção na sociedade brasileira de modo geral, como reafirma o Ministério da

Educação:

Mas sabemos que hoje em dia muito do que as pessoas lêem e escrevem é por meio de um computador. Por isso, a escola precisa se equipar com computadores e acesso à Internet e, desse modo, possibilitar a crianças e adolescentes que participem de projetos educativos usando a informática, especialmente no que diz respeito à aprendizagem da leitura e da escrita. (SEB/MEC, Indicadores da qualidade da educação: dimensão, ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, 2006, p. 6)

Nessa perspectiva, os indivíduos possuem papel social importante por

serem agentes do emblemático aprimoramento dos usos da escrita em ambientes

complexos, multimodais. Estes argumentos, como se viu anteriormente, são

sustentados por questões discutidas a partir de algumas décadas para cá com

outras abordagens do letramento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A necessidade de conhecer melhor os processos de

alfabetização/letramento dos indivíduos justifica-se pelo papel constitutivo que a

linguagem tem na criação dos sujeitos e, por isso, a importância de contínuas

revisões nas práticas de trabalho com a linguagem na escola. Justifica-se, também,

pela possibilidade de geração de subsídios para novas investigações na direção de

uma teoria social da alfabetização e do letramento.

A condição de pessoa letrada é pressuposta como diretamente ligada aos

vários discursos, que são apresentados e em práticas sociais diárias, no qual se

exijam a oralidade e escrita do indivíduo, suas múltiplas facetas perante ao seu

contexto, principalmente através da linguagem escrita.

O dinamismo social é fundamental para nossas considerações finais, visto

que essa cadeia de relações, informações, troca, em que os indivíduos estão

inseridos possibilita múltiplas considerações e novas perspectivas frente a esse

“novo” comportamento para com o ensino, sua pluralidade de idéias nos remete as

práticas sociais de ser o sujeito um ser heterogêneo e não fragmentado de

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194

conhecimentos adquiridos durante sua vida social. Com base, nisso observamos que

a relação oralidade/escrita se constitui como fator relevante para o estudo da

caracterização dos modos como a condição letrada se constitui no espaço

educativo, e também no espaço educativo.

Assim, destaca-se a importância de atividades que: trabalhem diferentes

linguagens sociais em que a inter-relação de gêneros do discurso primários e

secundários seja vivenciada; envolvam situações em que a linguagem escrita seja a

fonte das interações, constituindo-se como eventos de letramento, para que todos

inseridos no processo de ensino/aprendizagem possam se sentir como parte

constitutiva de uma nova realidade.

Os efeitos que se pretenderam neste trabalho por meio das práticas letradas

depreenderam novas conquistas para a clientela que ali se encontrava: os

professores do Ensino Fundamental (primeiro ao quinto ano) das cidades paraenses

de Bujaru e Igarapé-Miri. Os professores puderam revisar conteúdos e distribuí-los

através dos gêneros textuais, dotados de investida social, publicados em lugares

parceiros. Com isso estabeleceu-se implicações da funcionalidade do usa da

linguagem e contemplou-se o estímulo às práticas sociais da linguagem, muitas

vezes não dimensionada por aqueles agentes da educação que ali se encontravam.

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Na prática, a teoria em Letras é outra coisa?

In practice, the theory in Letters is something else?

Vladimir Moreira (UEL–PQ)

Marcelo Cristiano Acri (SEED–EFM)

RESUMO: O PRALE (Dimensões da prática como componente curricular das licenciaturas paranaenses em Letras) foi idealizado com o intuito de analisar a estruturação dos cursos de licenciatura em Língua Portuguesa, do estado do Paraná, no que se relaciona a sua formação para a atividade em sala de aula – entendendo-se que esta oportunize ao graduando a aprendizagem de conteúdos teóricos e práticos e não ocorra somente no momento do Estágio Supervisionado. O objetivo desse recorte do projeto de pesquisa é avaliar os aspectos discursivos na leitura dos documentos (Projetos Político-Pedagógicos) dos cursos de licenciatura das seguintes universidades: Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS-Realeza) e Universidade Estadual de Maringá (UEM). A metodologia utilizada foi a busca de ocorrências de expressões-chaves que evidenciem a formação pensando a atuação em sala de aula em todas as séries do curso, dentre as quais destacamos, a expressão “prática”, procedendo uma análise discursiva de suas ocorrências nos documentos. Fundamentamo-nos em concepções sobre prática de ensino (HEIN, 2010; DINIZ-PEREIRA, 2011; SOUZA NETO & SILVA, 2014), currículo (SILVA, 2010) e formação de professores de Língua Portuguesa (OLIVEIRA, 2006; PIETRI, 2003). Realizou-se uma leitura dos documentos, buscando evidenciar as ocorrências das expressões-chave e, posteriormente, uma análise mais detalhada sobre os contextos em que eram apresentadas. Um dos indicativos observados é que são expressões utilizadas não pontualmente relacionadas às questões da prática durante o curso, mesmo em currículos cujas ementas estão diretamente ligadas à atuação do professor em sala de aula. PALAVRAS-CHAVE: Formação de professores. Prática. Currículo.

INTRODUÇÃO

Os cursos de licenciatura têm sido objetos de inúmeras discussões, tendo

como foco os debates sobre sua dualidade na relação entre teoria e prática. As

questões levantadas partem de cursos que privilegiam a teoria até aqueles que

entendem que a prática deve ser o foco na preparação do profissional da educação.

Tendo em vista esse entrave, o PRALE (Dimensões da prática como

componente curricular nas licenciaturas em Letras) foi idealizado com o objetivo de

analisar e avaliar a estruturação dos cursos de licenciatura em Língua Portuguesa

do estado do Paraná, tendo em vista a formação do estudante para a prática em

sala de aula. Para ser avaliada a “prática como componente curricular”, o Projeto

efetivou uma busca virtual em todos os cursos de licenciatura em Letras do estado

do Paraná e foram encontrados programas de cursos nas seguintes Universidades:

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IFPR; UEL; UEM; UEPG; UNICENTRO; UENP; UNIOESTE; UNESPAR; UFFS;

UFPR e UTFPR. No primeiro momento, objetivou-se verificar a estrutura das

propostas por meio de expressões-chaves e os contextos em que elas estão

inseridas. As expressões destacadas foram: prática curricular; capacit/capacitar;

context/contexto; prátic/prática; ensin/ensino; escol/escola;

instrumen/instrumentalizar; profiss/profissional; estág/estágio; formação d.

Entendemos que, por meio delas, desconstruiremos os textos e poderemos analisá-

las em partes, visando sempre o contexto em que foram empregadas, uma vez que

dependendo de onde a expressão estiver colocada, o sentido poderá ser diferente.

Para o presente trabalho, objetivamos apresentar um recorte do projeto de

pesquisa, avaliando os aspectos discursivos na leitura dos documentos (Projetos

Político-Pedagógicos) dos cursos de licenciatura das seguintes universidades:

Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS-Realeza) e Universidade Estadual de

Maringá (UEM). A metodologia utilizada foi a busca de ocorrências de expressões-

chaves que evidenciem a formação pensando a atuação em sala de aula em todas

as séries do curso, dentre as quais destacamos a expressão “prática”, procedendo

uma análise discursiva de suas ocorrências nos documentos.

Iniciamos a análise calcados na proposição de Diniz-Pereira (2011, pág. 204)

que, ao tratar do modelo da racionalidade prática, comenta:

As atuais políticas para o preparo dos profissionais da educação, no país,

parecem consoantes com esse outro modo de conceber tal informação. As

propostas curriculares elaboradas, desde então, procuram romper com o

modelo anterior, revelando um esquema em que a prática é entendida como

eixo dessa preparação. Por essa via, o contato com a prática docente deve

aparecer desde os primeiros momentos do curso de formação.

Para podermos averiguar com mais acuidade, partimos de alguns conceitos

básicos sobre “prática de ensino” e suas nuances; “currículo”, buscando entender as

formas existentes; e as discussões sobre a “formação do professor de língua

portuguesa”. Essa análise busca também responder à seguinte pergunta: na prática,

a teoria em Letras é outra coisa?

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198

PRÁTICA DE ENSINO

Hein (2010), ao tratar de práxis e da noção de prática, faz um percurso

histórico expondo documentos oficiais e as concepções que apresentam em torno

das questões relacionadas ao currículo e à prática de ensino. A partir disso,

considera que os cursos de formação não levam em consideração as dimensões

políticas, culturais e filosóficas que são importantes na formação do futuro professor.

A autora destaca que, nesses documentos oficiais, a concepção de prática é

apresentada de forma fragmentada e generalizada. Sendo que as causas para a

fragmentação são, segundo Hein (2010), a diversidade de termos presentes nos

documentos que se referem ao tema (prática) e a dificuldade gerada exatamente por

essa diversidade.

Souza Neto & Silva (2014) afirmam que há a necessidade de discutir e

compreender o que é prática como componente curricular, assim como questões em

torno do Currículo e do Estágio Curricular Supervisionado. Segundo eles, já em 1975

considerava-se que a prática deveria perpassar por todo o currículo.

A prática como componente curricular é entendida por Souza Neto & Silva

(2014, p. 897) como

uma prática que deveria produzir algo no âmbito do ensino, podendo ser

entendida como (a) uma estratégia para a problematização e a teorização

de questões pertinentes ao campo da educação e à área de ensino de...,

oriundas do contato direto com o espaço escolar e educacional e com o

espaço das vivências e experiências acadêmicas ou profissionalizantes; e

(b) um mecanismo para viabilizar a integração entre os diferentes aportes

teóricos que compõem a investigação científica e os campos de

conhecimento em educação e ensino de...

Dessa forma, a prática como componente curricular não deve ficar restrita ao

estágio e desarticulada com o restante do curso; deve, pelo contrário, permear toda

a formação e constituir um referencial ou matriz a fim de orientar o currículo.

Semelhantemente, não se atém às disciplinas pedagógicas, considerando-se as

áreas e disciplinas. Tem como fim articular diferentes práticas sob uma perspectiva

interdisciplinar com ênfase em procedimentos de observação e reflexão, registro de

observações feitas e resolução de situações-problemas.

Ao pensar na prática como componente curricular inserida no currículo, o

resultado foi, segundo Souza Neto & Silva (2014) em sua pesquisa, catastrófico, pois

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199

a não compreensão levou à sua pulverização nas disciplinas da graduação, sendo

específica, pedagógica ou de intervenção, e restrita à ideia de melhorar a relação

entre teoria e prática na disciplina.

Por essas concepções, os cursos de graduação compõem-se de modelos nos

quais a teoria é dada nos anos iniciais e a prática é pensada nos anos finais. Os

autores concluem que é preciso conceber um currículo que seja capaz de

contemplar um novo paradigma de formação, articulada em três eixos em sua matriz

curricular: disciplinas que comporão cada ano, articulação entre as séries e

intervenção e modificação da prática pedagógica. Essa prática pedagógica deve ser

entendida como a práxis que surge desde o processo de planejamento curricular, de

ensino e/ou de trabalho até tomadas de decisões no cotidiano da docência,

orientação e intervenção. Ela também constrói a identidade do professor como

agente social e potencial transformador da realidade como profissional (SOUZA

NETO & SILVA, 2014).

Há tentativas de mudar essa situação, como, a de separar a prática de ensino

vinculada ao estágio da prática perpassando em toda formação. No entanto, os

autores destacam ainda que, no Estágio Curricular Supervisionado, a teoria é

instrumentalizada e adota-se a coerência discursiva, contrapondo-se à escola, que

adota a coerência pragmática.

Diniz-Pereira (2011) destaca que há um risco grave de pensar a prática de

ensino como sendo uma mera “formação em serviço”, ou seja, apenas horas

trabalhadas em sala de aula sem que haja planejamento e intencionalidade

formativa. Igualmente, o descuido que ocorre em relação ao embasamento teórico

na formação de professores leva a ideias que supervalorizam a prática e minimizam

o papel da formação teórica.

Afirma Diniz-Pereira (2011, p. 2016) que “a prática pedagógica não é isenta

de conhecimentos teóricos e que estes, por sua vez, ganham novos significados

quando diante da realidade escolar.”

CURRÍCULO Em relação ao currículo, Silva (2010) demonstra que a concepção de

currículo foi se transformando com o desenvolvimento da sociedade. Ele trata

inicialmente do que é a teoria, dizendo que ela descobre e descreve um objeto de

existência independente, e faz uma contraposição com a ideia do discurso, que

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

200

produz seu próprio objeto e depois o descreve, o que, retoricamente, acaba

parecendo algo realmente descoberto.

A partir de então, trata da concepção de currículo, dizendo que se trata de um

processo de racionalização de resultados educacionais, cuidadosa e rigorosamente

especificados e medidos. Resulta sempre de um processo de seleção de

conhecimentos e saberes, oriundos de um universo mais amplo, cujo objetivo é

modificar as pessoas que o adotarão (SILVA, 2010).

As teorias colocam o currículo com um enfoque na questão da identidade,

porém, Silva (2010) destaca que nele há, sob um olhar estruturalista, uma questão

de poder também, visto que privilegiar alguns conhecimentos e não outros é uma

forma de agir sobre o outro. Dessa forma, as teorias do currículo estão inseridas em

um campo epistemológico social (SILVA, 2010).

O autor cita Laclau (2010) que corrobora com sua concepção de que, ao

pensar o currículo, deve-se questionar o que ele pode fazer, em vez de se

questionar como fazê-lo.

Silva (2010, p 46) afirma que a questão “não é saber qual conhecimento é

verdadeiro, mas qual conhecimento é considerado verdadeiro. A preocupação é com

as formas pelas quais certos conhecimentos são considerados como legítimos, em

detrimento de outros, vistos como ilegítimos.” Para o autor, a “escola e o currículo

devem ser locais onde os estudantes tenham a oportunidade de exercer as

habilidades democráticas da discussão e da participação, de questionamento dos

pressupostos de senso comum da vida social.” (SILVA, 2010, p, 54).

FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Segundo Oliveira (2006), a formação do professor implica na lida de um

professor como aluno (curso de formação) e um professor como professor (formação

continuada). Soma-se a essa ideia e de que a discussão que existe entre teoria e

prática não deve ater-se a um pensamento dicotômico (epistemologia da prática vs.

epistemologia de conteúdos), mas partir de uma epistemologia que mostrem as

orientações práticas possibilitadas a partir de cada teoria (OLIVEIRA, 2006).

Oliveira (2006) afirma que os cursos de formação de professores

desenvolvem um currículo com conteúdos e estágios distanciados da realidade da

escola. Crê-se que os conteúdos teóricos não orientam a prática; segundo

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

201

pesquisas, a prática em sala de aula, pelo contrário, demonstra a transposição de

conceitos teóricos aprendidos.

O que ocorre é que as grades curriculares dos cursos de Licenciatura em

Letras partem de uma concepção de língua como um sistema estruturado em níveis

(norma culta, variantes), orientando as práticas docentes nas escolas. Os cursos de

formação de professores ainda trazem uma concepção de linguagem e língua que

somente possibilitam práticas que “desenvolvam habilidades concernentes ao

domínio das relações entre signos e não aquelas entre signos e a realidade vivida,

concreta, na qual a língua se constitui e constitui sujeitos falantes e escreventes.”,

como afirma Oliveira (2006, p. 107).

Cerca de oitenta por cento das disciplinas das grades curriculares dos cursos

de Letras traz disciplinas de descrição da língua com uma visão normativa

(estruturalista ou gerativista) de língua (OLIVEIRA, 2006). Tal ocorre devido ao fato

de um currículo não ser algo instrumental técnico, “mas sim um artefato social e

cultural, atravessado por relações de poder, transmitindo visões sociais particulares,

interessadas e historicamente situadas das diversas áreas do conhecimento”.

Oliveira (2006) defende que é preciso discutir a relação teoria e prática sem

deixar de lado a questão da organização curricular dos saberes de referência

(saberes disciplinares) buscando perceber os currículos como instrumentos que

viabilizem políticas públicas. Os currículos também são o lugar em que se

processam, produzem e transmitem conhecimentos de forma a construir

subjetividades e identidades. Em suma, pensar um currículo comprometido com uma

“metaformação”: formação consciente, que parte do questionamento do “fazer”

pedagógico, formando profissionais preocupados com o ensino da estrutura de

línguas e com o funcionamento da linguagem enquanto prática discursiva de

natureza social.

O problema, sobretudo, é que os currículos perpetuam uma concepção de

professor de línguas que não é a mesma que a escola exige, levando a ideia (no

senso comum) de que os cursos superiores não formam professores preparados

para dar aula.

De acordo com Pietri (2003), a formação de um futuro professor de Língua

Portuguesa perpassa por questões sócio-políticas importantes e definidoras da

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

202

forma como a escola lidará com os alunos. Há década, discute-se se o ensino deve

pautar-se tendo o ensino gramatical como foco ou questões (sócio)linguísticas.

Como afirma Pietri (2003), a dicotomia estabelecida entre Linguística e

Gramática não possui a função única de delimitar as duas disciplinas; há implicações

relativas às concepções que envolvem diretamente o aluno e a forma como será

recebido dentro da sala de aula – juntamente com seu falar.

DOCUMENTOS ANALISADOS

Esse artigo apresenta a análise feita nos documentos – Projetos Político-

Pedagógicos – de duas instituições escolhidas dentre todas as que estão fazendo

parte do nosso corpus de estudo. A escolha feita baseia-se no fato de trazerem os

documentos mais completos e apresentarem casos interessantes para essa

discussão. As instituições são a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS),

referente ao campus de Realeza, e a Universidade Estadual de Maringá (UEM).

O Projeto Político-Pedagógico da UFFS, composto por trezentas páginas, traz

uma apresentação bastante completa desse tipo de documento: a parte inicial de

apresentação do curso e concepções em torno de sua estrutura, grade curricular,

objetivos, ementas, referências bibliográficas e outras seções (subcapítulos que não

se encaixam na estrutura tradicional de um PPP, seções referentes à pós-graduação

ou à formação em Língua Espanhola – nesse documento – ou outras línguas,

dependendo do curso).

Nesse documento, a expressão-chave “prática” apresentou duzentas e

dezoito ocorrências; porém, como o documento refere-se a um curso com

habilitação também em Língua Espanhol e nosso foco é a formação do professor de

Língua Portuguesa, consideramos as cento e duas ocorrências que relacionam à

área da Língua Portuguesa. Desse número de ocorrências, a expressão-chave

distribui-se da seguinte forma: 24 ocorrências no PPP, 21 ocorrências na Grade

Curricular, 08 ocorrências nos Objetivos, 04 na Ementa, 27 nas Referências e 18 em

Outros.

O Projeto Político-Pedagógico da UEM, um pouco diferente da UFFS, é bem

menor, composto por 21 páginas e os cursos não são de licenciaturas (ou

bacharelado) únicas. As habilitações são: Português e Literaturas Correspondentes

(Licenciatura); Português/Francês e Literaturas Correspondentes (Licenciatura);

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

203

Português/Inglês e Literaturas Correspondentes (Licenciatura); Inglês e Literaturas

Correspondentes (Licenciatura); Inglês e Literaturas Correspondentes (Licenciatura

e Bacharelado). A estrutura do Currículo divide-se em uma breve apresentação,

grade curricular e especificação das disciplinas com ementas e objetivos.

O documento apresenta uma incidência não muito grande da expressão-

chave “prática”. Ela aparece 17 vezes na grade curricular; 19 vezes nas ementas e

38 vezes nos objetivos. Após o levantamento, buscamos analisar o contexto em que

ela se apresentava e, dos casos que apareceram, destacamos alguns.

CASOS EM DESTAQUE

Para servir de exemplificação de como a expressão-chave é apresentada nos

documentos, selecionamos trechos que demonstram a diversidade de compreensão

em cada documento. No Projeto Político-Pedagógico da Universidade Federal da

Fronteira Sul, trazemos os recortes a seguir:

(...) partir dessa noção de formação de professor, o Curso de Letras

Português e Espanhol – Licenciatura adota a concepção de linguagem

como prática simbólica, social, política e ideológica, prática inscrita nos

processos históricos que permitem ao homem significar, reproduzir ou

transformar a realidade ao seu redor. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA

FRONTEIRA SUL, 2010, p. 24).

Os referenciais aqui expostos para o ensino das línguas portuguesa e

espanhola e respectivas literaturas sinalizam que a metodologia a ser

adotada no Curso de Letras Português e Espanhol – Licenciatura da UFFS

primará pela articulação, numa perspectiva histórica, crítica, cultural e

interdisciplinar, dos estudos teóricos, da prática pedagógica e da prática

profissional, a fim de produzir, fazer avançar e socializar conhecimentos e

saberes específicos da área, buscando a qualidade acadêmica e a inserção

social dos seus egressos, (...). (UNIVERSIDADE FEDERAL DA

FRONTEIRA SUL, 2010, p. 29).

V – a articulação entre a teoria e a prática no processo de formação

docente, fundada no domínio de conhecimentos científicos e didáticos,

contemplando a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão;

(UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL, 2010, p. 32).

Entender a realidade na qual está inserido e sobre fazer uma reflexão para

uma (posterior e concomitante) prática docente comprometida e

transformadora. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL, 2010,

p. 33).

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

204

(...) o curso de Letras Português e Espanhol – Licenciatura da UFFS terá

405 horas de prática como componente curricular, que não se confundem

com a prática de ensino e o estágio obrigatório. (UNIVERSIDADE

FEDERAL DA FRONTEIRA SUL, 2010, p. 43).

Considerando cada ocorrência, pode-se perceber que os usos são bastante

distintos:

O primeiro excerto traz a expressão-chave referindo-se à língua enquanto

ferramenta discursiva e enfoca a comunicação;

O segundo excerto apresenta a expressão-chave com duas ocorrências

distintas: referindo-se à atuação em sala de aula e a pesquisa a partir

dessa primeira “prática”;

O terceiro traz a expressão-chave com a ideia de prática em seu sentido

geral, não distinguindo – como ocorre em outros casos nesse documento –

se se trata da prática pedagógica, prática profissional, prática de estágio

ou prática de ensino;

O quarto traz também a mesma expressão com um sentido geral, porém,

com um viés do professor também pesquisador da sua própria atuação em

sala de aula;

O último apresenta a expressão inicialmente como cerne da formação do

professor (prática como componente curricular) e a concepção de prática

de ensino, que se refere à atuação do profissional na escola, porém, fora

da sala de aula (planejamento, elaboração de material didático, etc.).

No caso da Universidade Estadual de Maringá, destacamos uma ementa e

três objetivos de disciplinas e apresentamos em seguida algumas observações a

respeito da relação entre a expressão-chave “prática” com outros elementos

importantes do texto, que aparecerão em destaque.

DISCIPLINA LINGUÍSTICA II - OBJETIVO Estudar analítica e criticamente teorias sobre o processo de ensino e

aprendizagem de língua materna à luz da Linguística Aplicada; realizar

práticas dos conteúdos ministrados às questões de ensino de língua

materna. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ, 2011, p. 11).

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

205

Prática com o sentido de exercícios de conteúdos, pensando as questões

do ENSINO de língua. Entende-se que essa prática vem acompanhada de

um viés metodológico.

Não está explicitado aqui se realizar práticas de conteúdos tem a ver com

a prática de sala de aula. Toda realização exige um contexto concreto. O

que o Programa deveria apresentar era uma simulação da prática dos

conteúdos;

DISCIPLINA METODOGIA DO ENSINO DE GRAMÁTICA - OBJETIVOS (...) capacitar o graduando de Letras a articular princípios teórico-práticos,

possibilitando-lhe autonomia profissional e intelectual no trato de questões

pedagógicas do ensino de língua materna; aplicar os princípios

metodológicos básicos em exercícios de língua padrão na prática da sala de

aula. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ, 2011, p. 14).

Interessante notar que os objetivos possuem uma relação intrínseca no

percurso de aquisição do conhecimento, fazendo uma programação que

vai desde os "fundamentos" da Linguística Aplicada ao ENSINO,

capacitando o aluno para articular elementos teóricos-PRÁTICOS, para

que tenha autonomia PROFISSIONAL e poder aplicar princípios

metodológicos em sua PRÁTICA de SALA de aula.

Observa-se que em apenas uma disciplina o aluno deverá percorrer um

processo um tanto complexo, partindo de princípios teóricos, incidindo em

sua prática metodológica em sala de aula um processo que deveria ser um

pouco mais longo, que não se encerrasse em apenas uma disciplina;

DISCIPLINA OFICINA DE LEITURA E PRODUÇÃO ESCRITA EM LINGUA INGLESA I - OBJETIVO Desenvolver as habilidades de compreensão e produção oral, criando

oportunidades para um engajamento em comunicação interativa, além de

atividades práticas de ensino; desenvolvimento de atividades práticas de

ensino. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ, 2011, p.16)

Por se tratar de uma oficina de produção escrita, acredita-se que haja

estreita relação com a PRÁTICA DE ENSINO. As expressões utilizadas

não mostram que essas práticas sejam em forma de estratégias de ensino,

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

206

nem de aspectos didático-metodológicos. Com certeza, apenas uma

simulação teórica da prática;

DISCIPLINA PRÁTICAS METODOLÓGICAS EM EDUCAÇÃO LITERÁRIA -

EMENTA

Articulação da prática e da teoria no que concerne ao desenvolvimento de

saberes, habilidades, competências e atitudes, tomando-se por base os

diferentes contextos institucionais de atuação ligados à formação inicial e

contínua. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ, 2011, p. 19).

As PRÁTICAS metodológicas no ENSINO partem de um estudo crítico,

discussão e reflexão sobre a linguagem, do processo de ENSINO-

aprendizagem. Não de forma explícita, mas porque verificamos na ementa

que essas reflexões incidirão no "estágio", tomando-se por base os

diferentes CONTEXTOS institucionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos que, a partir da análise da expressão-chave em seus contextos

de uso, as ocorrências não são pontualmente relacionadas às questões da prática

durante o curo, mesmo em currículo cujas ementas estão diretamente ligadas à

atuação do professor em sala de aula.

Hein (2010) afirma que a concepção de prática é fragmentada e generalizada

e isso dificulta a compreensão do que seja realmente a prática e de como ela deve

ser desenvolvida nos cursos de formação de professores. Como foi possível

observar, tal ocorre nos documentos, dificultando o leitor na compreensão de como

deve conceber a prática em sua disciplina e desenvolver um trabalho na graduação

que sensibilize o aluno com relação à teoria em sua futura atividade profissional.

A prática de ensino deve produzir integração entre aportes teóricos a fim de

compor uma investigação científica e os campos de conhecimento na área da

educação (SOUZA NETO & SILVA, 2014). No entanto, o termo tem se apresentado

com significados tão distintos que leva o professor formador, nos cursos de

graduação, a tratar dele de acordo com uma concepção distinta e única, que

possivelmente não é a que a escola exige. Destacando-se também o que Diniz-

Pereira (2011) afirma em relação ao risco existente de se pensar a prática de ensino

como mera formação em serviço. Esse autor defende que esse descuido pode

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

207

resultar em ideias que supervalorizam a prática e minimizam o papel da formação

teórica.

Ainda segundo Diniz-Pereira (2011, p. 2016), “a prática pedagógica não é

isenta de conhecimentos teóricos” e “estes, por sua vez, ganham novos significados

quando diante da realidade escolar.”

Para podermos averiguar com mais acuidade, partimos de alguns conceitos

básicos sobre “prática de ensino” e suas nuances; “currículo”, buscando entender as

formas existentes; e as discussões sobre a “formação do professor de língua

portuguesa”. Essa análise busca também responder à seguinte pergunta: na prática,

a teoria em Letras é outra coisa?

REFERÊNCIAS

DINIZ-PEREIRA, Júlio Emílio. A prática como componente curricular na formação de professores. Educação, Santa Maria, v. 36, n. 2, p. 203-218, maio/ago. 2011. HEIN, Ana Catarina Angeloni. A práxis e a noção de prática nos documentos oficiais sobre a formação de professores. 2010. 86 f. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, SP, 2010. OLIVEIRA, Maria Bernardete Fernandes de. Revisitando a formação de professores de língua materna: teoria, prática e construção de identidades. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, v. 6, n. 1, p. 101-117, jan./abr. 2006. PIETRI, Emerson de. A constituição do discurso da mudança do ensino de língua materna no Brasil. 2003. 202 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. Disponível em <http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/269629>. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. SOUZA NETO, Samuel; SILVA, Vandeí P. da. Prática como componente curricular: questões e reflexões. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 14, n. 43, p. 889-909, set./dez. 2014. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ. Projeto político-pedagógico. Maringá, 2011. UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL. Projeto pedagógico do curso de graduação em Letras Português e Espanhol – Licenciatura. Chapecó, 2010.

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T E X T O S C O M P L E T O S

208

O apagamento do –R em textos da EJA: uma

análise sob a perspectiva da Sociolinguística

Educacional

The deletion of -R in EJA texts: an analysis from the perspective of educational sociolinguistics

Suely Claudia Lobato Maciel (UEL – PG)

Dircel Aparecida Kailer (UEL)

RESUMO: O apagamento do /R/ em coda silábica que já foi usado, de acordo com CALLOU et.al. (1998), por Gil Vicente para representar, em suas peças, a fala de pessoas menos escolarizadas, atualmente, no Português Brasileiro (PB), já não sofre o mesmo estigma, tanto que é recorrente na fala de pessoas de qualquer grau de escolarização, principalmente, em coda externa de verbos (comer ~ comeØ), no discurso mais espontâneo (CALLOU et.al. 1998, MONARETTO, 2000, AGUILERA e KAILER, 2015, ALMEIDA e KAILER,2015 entre outros). Sendo assim, este estudo, com base nos pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística Variacionista (LABOV, 1972) e da Sociolinguística Educacional (BORTONI-RICARDO, 2004), tem como principal objetivo verificar a transposição desse fenômeno, já não estigmatizado na fala, para os textos escritos de 31 alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) de Belém do Pará. Além disso, busca-se identificar os contextos linguísticos (classe gramatical, extensão silábica e vogal da sílaba alvo) e extralinguísticos (faixa etária, sexo, origem, tempo de escolarização e etapa de ensino) que possam favorecer ou desfavorecer a apócope do referido segmento. Por entender a importância da variação linguística no contexto da sala de aula, especialmente em se tratando de alunos da EJA, jovens e adultos que possuem pouca vivência com a linguagem escrita em contextos mais formais; bem como do direito desses alunos a se apropriarem da variante de prestígio para utilizá-la em situações mais monitoradas, esta pesquisa parece uma importante contribuição para os estudos fonético-fonológicos e sociolinguísticos do PB no contexto educacional. PALAVRAS-CHAVE: Apagamento do –R em coda silábica. Escrita. Sociolinguística. EJA.

INTRODUÇÃO

Muitos pesquisadores vêm estudando o apagamento ou apócope do /R/ em

coda silábica na oralidade, bem como os contextos linguísticos e sociais que

favorecem sua implementação (CALLOU et al., 1998; MONARETTO, 2000;

AGUILERA e KAILER, 2015; ALMEIDA e KAILER, 2015; entre outros), sendo esta,

inclusive, uma das questões investigadas por parte da equipe do Projeto Atlas

Linguístico do Brasil (AliB).

A transposição desse apagamento da oralidade para a produção escrita de

alunos do Ensino Fundamental na modalidade da Educação de Jovens e Adultos

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

209

(EJA), em Belém do Pará, parece ser uma variante bastante produtiva, uma vez que

eles têm utilizado cada vez mais da apócope do segmento –R em coda silábica

externa, mesmo nos textos escritos mais monitorados.

Poucos são os estudos que apresentam o apagamento do referido segmento

na escrita, como corpus de investigação (ALMEIDA, 2016; GURJEL, 2016; entre

outros), sendo estes realizados, principalmente, para dissertações do Mestrado o

Profletras é um programa recente, com menos de cinco anos de existência. Sendo

uma das exigências do referido programa, todos os estudos precisam estar voltados

para o ensino, utilizando como informantes alunos do ensino regular. Desta forma,

justifca-se a relevância desta pesquisa como contribuição para os estudos fonético-

fonológicos e sociolinguísticos do Português Brasileiro (PB), bem como para o

desenvolvimento de práticas pedagógicas que auxiliem o professor a trabalhar tal

processo em sala de aula com alunos da EJA.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Embasados nos pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística

Variacionista de orientação laboviana (WEINREICH, LABOV & HERZOG,1968) e da

Sociolinguística Educacional (BORTONI-RICARDO, 2005), primeiramente fizemos

um levantamento das ocorrências de apagamento do –R nas produções escritas de

31 alunos da EJA, para, em seguida, codificar esses dados conforme os contextos

linguísticos (classe morfológica, vogal da sílaba alvo e extensão silábica) e

extralinguísticos (sexo, faixa etária, anos de escolarização, local de residência, etapa

da EJA). Terminada a codificação dos dados, eles foram submetidos à análise

probabilística no Programa Goldvarb X que nos fornece os resultados em percentual

e em peso relativo37, conforme apresentamos a seguir.

37

Os valores dos pesos relativos devem ser lidos da seguinte forma: quanto mais próximos de 0, menos favoráveis à aplicação da regra variável; quanto mais próximos de 1, mais favoráveis. Se estiverem próximos a 0,5, significa que o fator em análise é neutro quanto à aplicação ou não da regra em análise, no caso deste estudo, do apagamento do –R em coda silábica em textos de alunos da EJA.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

210

ANÁLISE DOS DADOS

GRÁFICO 1: Relação Ocorrência / Variante Apagamento do –R

O Gráfico 1 apresenta a porcentagem de apagamentos em relação ao número

de ocorrências da variante –R em coda silábica. Ao analisá-lo, pode-se perceber

que, embora os números demonstrem que a quantidade de apagamento é bem

menor que a de realização, trata-se de um percentual significativo, especialmente

considerando-se que são textos escritos em uma situação de comunicação que

exige uma linguagem mais monitorada (um trabalho escrito em sala de aula).

Podendo-se inferir que, apesar de ser, na escrita, conforme postula Bortoni-Ricardo

(2005), um erro decorrente de regras fonológicas graduais, por ocorrerem também

entre falantes da língua culta, o apagamento do -R deixou de ser estigmatizado na

fala mais formal (CALLOU et al., 1998; MONARETTO, 2000; AGUILERA e KAILER,

2015; ALMEIDA e KAILER, 2015; entre outros), e começa a ser utilizado mesmo em

situações mais monitoradas, como no texto escrito mais formal, o que dá indícios de

uma possível mudança linguística completa.

Para compreender melhor como esse processo efetiva-se na escrita, faz-se

necessário, contudo, uma análise dos contextos extralinguísticos e linguísticos que

serão analisados, conforme o grau de relevância apresentado pelo programa

Goldvarb X para aplicação da regra variável de apagamento do –R.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

211

Na tabela a seguir serão apresentados os resultados em percentuais e os

pesos relativos dos contextos selecionados pelo programa Goldvarb X como mais

relevantes para a implementação da variante em estudo.

TABELA 1: Atuação da Variável Sexo para a Implementação da Variante Apagamento do -R

SEXO TOTAL/APAGAMENTOS

PERC. DE APAG. PESO RELATIVO

FEMININO 172/10 23.3% 0.587

MASCULINO 105/20 19% 0.360 FONTE: Elaborada pela autora.

A variável sexo foi a primeira variável a ser selecionado pelo programa

Goldvarb X como mais relevante para aplicação da regra de apagamento do –R. A

Tabela 1, especialmente o peso relativo, confirma o que os percentuais já

apontaram, que o sexo feminino favorece a implementação da variante apagamento

do –R. Em conjunto com o pensamento de Labov (1992) de que há uma tendência

de as mulheres evitarem as construções estigmatizadas e privilegiarem as formas de

prestígio, conclusão a que também chegaram outros estudos acerca da variação

(FISCHER, 1958; MOLLICA, PAIVA & PINTO, 1989; SCHERRE, 1996, entre outros),

pode-se supor que, se as mulheres estão usando a variante apagamento do -R, ela

não é vista como sendo uma variante desprestigiada na comunidade investigada.

Outra variável observada, neste estudo, e apresentada, a seguir, diz respeito

à relação entre a faixa etária dos informantes e à implementação da variante

apagamento do –R.

TABELA 2: Atuação da Variável Faixa Etária para a Implementação da Variante Apagamento do -R

FAIXA ETÁRIA TOTAL/APAGAM. PERC. DE APAG. PESO RELATIVO

1 (15 A 18 ANOS) 134/33 24.6% 0.728

2 (MAIOR DE 18 ANOS) 143/27 18.9% 0.285 FONTE: Elaborada pela autora.

O segundo contexto mais relevante para a implementação do apagamento foi

a faixa etária. Observa-se, na tabela 2, que a faixa etária 1 (pessoas entre 15 e 18

anos) é bastante favorável para a implementação da variante em estudo (0.728),

especialmente se comparado com a faixa etária 2 (pessoas acima de 18 anos) que

possui um peso relativo bem menor (0.285).

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

212

Tal análise encontra respaldo no estudo feito por Naro (2012), que demonstra

a preferência das pessoas mais velhas por formas mais antigas, e dos jovens pelas

variantes inovadoras, o que pode ser mais um indício de mudança linguística efetiva

em se tratando do apagamento da variante –R ou, ao menos, para o prolongamento

de seu uso.

Outra variável relevante para a implementação da variante em estudo é a

origem dos informantes, que será apresentada a seguir.

TABELA 3: Atuação da Variável Origem para a Implementação da Variante Apagamento do -R

LOCALIDADE TOTAL/APAGAM. PERC. DE APAG. PESO RELATIVO

CAPITAL 192/44 22.9% 0.573

INTERIOR 85/16 18.8% 0.339 FONTE: Elaborada pela autora.

A análise da Tabela 3, apesar de os pesos relativos estarem próximos da

neutralidade (capital 0.573 e interior 0.339),também conduz à hipótese de que tal

variante não é vista de forma estigmatizada pela comunidade investigada, uma vez

que os informantes nascidos em Belém, capital do Pará, apagam mais o segmento –

R em coda silábica do que aqueles nascidos no interior do estado, e que, segundo

Bortoni-Ricardo (2005), dentro do continuum rural-urbano, os vernáculos rurais são

mais estigmatizados (por sua origem influenciada pelo tupi e pelo pidgin das

comunidades escravas), enquanto os vernáculos urbanos são socialmente

prestigiados (por sua origem mais próxima à língua trazida pelos colonizadores).

A variável tempo de escolaridade, foi o terceiro contexto selecionado pelo

programa Goldvarb X, como relevante para aplicação da regra variável de

apagamento do -R, conforme verificamos a seguir.

TABELA 4: Atuação da Variável Tempo de Escolaridade para a Implementação da Variante

Apagamento do -R

TEMPO SEM ESTUDAR TOTAL/APAG. PERC. DE APAG. PESO RELATIVO

SEMPRE ESTUDOU 120/31 25.8% 0.418

2 A 5 ANOS 54/07 13% 0.405

6 A 10 ANOS 25/04 16% 0.471

MAIS DE 10 ANOS 60/18 30% 0.742 FONTE: Elaborada pela autora.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

213

De acordo com os resultados apresentados na Tabela 4, verifica-se que as

pessoas com mais de 10 anos sem estudar apagam mais o rótico em coda silábica

do que as outras categorias analisadas, o que vem ao encontro das hipóteses

levantadas no início deste estudo, quando se pressupôs que um tempo considerável

fora do ensino formal poderia comprometer a competência linguística do informante

em situações monitoradas de uso da língua.

No entanto, o que chama atenção, na tabela apresentada, é o peso relativo

dos informantes que sempre estudaram (embora estejam em uma situação de

distorção idade/série e por isso frequentem a EJA) é muito próximo do daqueles que,

por qualquer período de tempo analisado, ficaram fora do ensino formal. A partir do

que se pode inferir, por se tratar de um erro advindo de um traço gradual, tal qual

explicitado anteriormente, a escola pode não estar trabalhando com os alunos as

possibilidades de uso dessa variação, de forma a instrumentalizar esse educando

para o uso concreto da língua nas diversas situações de comunicação com as quais

ele terá contato ao longo da vida.

As variáveis apresentadas até então são extralinguísticas, ou seja, externas

ao texto. A partir de agora, serão analisadas as variáveis linguísticas selecionadas

como relevantes para o uso do apagamento do –R no referido corpus.

TABELA 5: Atuação da Variável Vogal da Sílaba Alvo para a Implementação da Variante Apagamento

do -R

VOGAL DA SÍLABA ALVO TOTAL/APAG. PERC. DE APAG. PESO RELATIVO

A 123/42 34.1% 0.693

E 86/13 15.1% 0.354

I 30/03 10% 0.265

O 38/02 5.3% 0.386 FONTE: Elaborada pela autora.

A partir da análise da Tabela 5, pode-se perceber que a vogal baixa (a) é

mais favorável ao apagamento do –R do que as demais. De onde se pode inferir

que, considerando uma possível interferência da oralidade na escrita, a variante

apagamento ocorre mais em sílabas formadas pela vogal baixa por acomodação

articulatória, pois seria mais trabalhoso para o falante, após pronunciar a vogal

central [a], ter de pronunciar uma consoante glotal [h] (variante utilizada em Belém

para o rótico em coda silábica).

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T E X T O S C O M P L E T O S

214

A próxima variável linguística analisada é a classe morfológica a que

pertencem as palavras, sendo classificadas em verbos e não verbos.

TABELA 6: Atuação da Variável Classe Morfológica para a Implementação da Variante Apagamento

do -R

CLASSE MORFOLÓGICA

TOTAL/APAGAM. PERC. DE APAG.

PESO RELATIVO

VERBO 220/56 25.5% 0.579

NÃO VERBO 57/04 7% 0.227 FONTE: Elaborada pela autora.

Os resultados apresentados naTabela 6 vão ao encontro da conclusão

apresentada nos estudos de Aguilera e Kailer (2015) de que, na oralidade, o

apagamento do /R/ ocorre com mais frequência em verbos do que em nomes;

pensamento que já foi comprovado por outros estudos, como o de Ribeiro (2013),

que afirma que a transposição do apagamento do rótico da oralidade para a escrita é

muito mais frequente em verbos do que em não verbos.

Dois fatores analisados, neste trabalho, não foram selecionados pelo

programa Goldvarb X como relevantes para a implementação da variante

apagamento do –R: a extensão silábica da palavra e a etapa de ensino do

informante. Contudo, por perceber a importância desta última variável para a análise

desenvolvida com a produção textual das turmas pesquisadas, serão demonstrados,

através do gráfico a seguir, apenas os resultados em percentual.

2: Relação Etapa de Ensino / Variante Apagamento do –R

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

215

O Gráfico 2, a respeito da relação entre a variável etapa de ensino e a variante

apagamento do –R, apresenta um percentual de uso dessa variante muito próximo

entre os informantes matriculados na 3ª etapa (26 apagamentos de 117

possibilidades, o que corresponde a 22.2% de apócope do segmento –R) e os

matriculados na 4ª etapa (34 apagamentos de 160 possibilidades, o equivalente a

21.2%). Tal semelhança justifica o fato de o programa não selecionar tal variável,

pois nas duas etapas há mais realização do –R do que apagamento.

Esses resultados vão de encontro à maioria dos estudos que tratam do

apagamento do /R/ na oralidade (CALLOU et al., 1998; MONARETTO, 2000;

AGUILERA e KAILER, 2015; ALMEIDA e KAILER, 2015; entre outros). Enquanto

esses autores concluem que o apagamento é um fenômeno mais recorrente entre

pessoas com menos escolaridade, os dados, aqui apresentados, demonstram que

tanto os alunos da 3ª Etapa (correspondente aos 6º e 7º anos do Ensino

Fundamental Regular) quanto os da 4ª Etapa (correspondente aos 8º e 9º anos do

Ensino Fundamental Regular) utilizam a variante apagamento do –R de forma

equivalente (22.2% e 21.2%, respectivamente), ou seja, apesar de serem

percentuais baixos em relação à realização do referido segmento, pode-se dizer que,

por tratar-se de um texto escrito, a referida variante é relativamente recorrente tanto

em quem inicia o Ensino Fundamental II quanto naqueles que estão concluindo essa

etapa de ensino, o que nos remete à hipótese mencionada anteriormente: de que a

escola não vem trabalhando com tanta ênfase a questão do apagamento, tanto na

oralidade quanto na escrita, por, provavelmente, considerá-lo como um traço

gradual, não estigmatizado, optando por enfatizar outras dificuldades apresentadas

na produção textual dos alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este estudo foi possível verificar que a variante apagamento do –R é, de

fato, bastante produtiva em textos escritos por alunos da EJA em Belém do Pará,

sendo recorrente em 22% das possibilidades analisadas.

Também se pôde perceber, na análise de variáveis extralinguísticas como

faixa etária, origem e sexo, que, provavelmente, a variante não é vista de forma

estigmatizada pela comunidade de fala investigada e caminha para uma mudança

linguística efetiva ou, pelo menos, para o prolongamento de seu uso.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

216

Diferentemente do que hipotetizávamos, os alunos com mais tempo de

escolaridade e em etapa mais elevada da EJA apresentaram uma quantidade de

apagamentos muito próxima daqueles que pararam de estudar por algum tempo ou

que estão em uma menor etapa de ensino. É provável que isso esteja ocorrendo por

tratar-se de uma variante gradual, ou seja, que não é estigmatizada na fala, o que

leva a escola a não dar tanta ênfase em atividades que instrumentalizem os alunos

em relação ao uso ou não da variante apagamento do –R.

A partir da análise das variáveis linguísticas, pôde-se verificar que, da mesma

forma que outros estudos sobre dados orais (AGUILERA e KAILER, 2015)

demonstram, os verbos no infinitivo constituem o ambiente mais propício para que

haja o apagamento do -R na escrita desse grupo de alunos. Quanto às vogais da

sílaba alvo, verificamos que a vogal central baixa [a] é a mais favorável ao

apagamento do –R.

Vale ressaltar que os dados, aqui apresentados, fazem parte de um estudo

maior que está sendo desenvolvido como projeto para dissertação de Mestrado, e

que pretende incluir, ainda, atividades pedagógicas que possam auxiliar o professor

de língua portuguesa a dar um direcionamento, em suas aulas na EJA, para o

trabalho com a variação linguística, voltado para os processos fonético-fonológicos,

recorrentes na fala, principalmente o apagamento ou apócope do –R.

REFERÊNCIAS

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T E X T O S C O M P L E T O S

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219

PPPs, grades e ementas: a prática em Letras

PPPs, curriculum guidelines and syllabus: the practice in Letters Couse

Beatriz do Prado Ferreira (UEL-IC/ARAUCÁRIA – G)

Núbio Delanne Ferraz Mafra (UEL – PQ)

RESUMO: O projeto de pesquisa “PRALE - Dimensões da prática como componente curricular das licenciaturas paranaenses em Letras” tem refletido sobre o conceito de prática como componente curricular presente nas propostas das licenciaturas paranaenses em Letras. Nesse sentido, estão sendo analisados diferentes documentos oficiais de 20 instituições públicas de ensino superior paranaenses que ofertam licenciatura em Letras/Português. Para essa comunicação, apresentaremos a análise de alguns desses documentos (projetos político-pedagógicos, grades curriculares e ementas dos cursos de Letras) relativos a 10 instituições: IFPR-Palmas, UENP-Jacarezinho, UNESPAR-Apucarana, UNESPAR-Campo Mourão, UNESPAR-Paranaguá, UNESPAR-Paranavaí, UNESPAR-União da Vitória, UNICENTRO-Guarapuava, UTFPR-Curitiba, UTFPR-Pato Branco. A análise dos documentos desenvolveu-se primeiramente na identificação das expressões-chave PRÁTICA COMO COMPONENTE CURRICULAR, PRAT (prática), ENSIN (ensino), CAPACIT (capacitação), CONTEXT (contexto), ESTAG (estágio, estagiário), ESCOLA, FORMAÇÃO D (formação de profissional, docente), INSTRUM (instrumentos), PROFISS (profissional, profissionalização), SALA. Os fundamentos da pesquisa dialogam com a Teoria do Discurso (LACLAU; MOUFFE, 2015), Estudos do Currículo em Letras (MARINHO, 2007) e Formação de Professores (DINIZ-PEREIRA, 2011). Numa fase posterior da pesquisa, buscaremos identificar, através de entrevistas, os encaminhamentos dados pelos colegiados desses cursos à recomendação dos documentos oficiais para implementação da “prática como componente curricular” nas propostas curriculares.

PALAVRAS-CHAVE: Prática. Currículo. Letras.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, os currículos de vários cursos de graduação do Brasil têm

passado por reformulações. Dada a dinâmica natural do conhecimento acadêmico,

reformulações periódicas dos cursos de graduação não só são bem-vindas como

necessárias. No caso dos cursos de Letras, essas reformulações se intensificaram

no diálogo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2001).

Porém, no caso das licenciaturas, a discussão sobre a relação teoria e prática

nas propostas curriculares ganhou um ingrediente a mais de uns tempos para cá: a

chamada “prática como componente curricular”. Mais do que um ingrediente, os

cursos de formação de professores têm sido provocados a contemplar essa visão da

prática em seus novos currículos.

Visando entender como as licenciaturas paranaenses públicas de

Letras/Português têm trabalhado esse assunto em seus currículos, estamos

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

220

desenvolvendo na Universidade Estadual de Londrina o projeto de pesquisa PRALE

– Dimensões da Prática como Componente Curricular das Licenciaturas

Paranaenses em Letras. Buscamos compreender como o conceito de “prática como

componente curricular” influencia na formação do profissional e como as teorias do

currículo e do discurso nos ajudam nas diferentes análises a serem empreendidas.

Ainda que na fase inicial, entendemos que essa pesquisa já contempla

relevantes análises do levantamento documental conseguido até o momento. Nesse

sentido, analisamos nesse artigo os PPPs (projetos político-pedagógicos), grades e

ementas de 10 dos cursos analisados. Do universo de onde expressões-chave que

estão sendo trabalhadas na pesquisa, selecionamos para esse artigo a análise das 3

mais recorrentes: PRAT (prática), ENSIN (ensino) e PROFISS (profissional,

profissionalização).

Na próxima seção, apresentaremos as linhas gerais do nosso projeto. Em

seguida, exporemos os fundamentos teóricos do estudo, calcados principalmente na

Teoria do Discurso (LACLAU; MOUFFE, 2015), Estudos do Currículo em Letras

(MARINHO, 2007) e Formação de Professores (DINIZ-PEREIRA, 2011).

Estruturamos a apresentação e análise dos dados levantados, seção seguinte desse

artigo, a partir das expressões-chave anteriormente referidas. Na parte final do

nosso texto, desenvolvemos as considerações finais, sinalizando os próximos

passos da pesquisa.

O PROJETO DE PESQUISA PRALE

O projeto de pesquisa “PRALE – Dimensões da Prática como Componente

Curricular nas Licenciaturas Paranaenses em Letras” tem como objetivo principal

refletir sobre os aspectos discursivos constantes em propostas curriculares e

entrevistas, no contexto de implementação da “prática como componente curricular”

nos cursos de licenciatura em Letras.

Para isso, estão sendo analisados na primeira etapa da pesquisa documentos

dos 20 cursos de graduação em Letras, habilitação em Português (licenciatura única

e/ou dupla), as instituições de ensino superior públicas do Estado do Paraná,

listados a seguir: IFPR-Palmas, UEL, UEM, UEPG, UNICENTRO-Guarapuava,

UNICENTRO-Irati, UENP-Jacarezinho, UENP-Cornélio Procópio, UNIOESTE-

Cascavel, UNIOESTE-Foz do Iguaçu, UNIOESTE-Marechal Cândido Rondon,

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221

UNESPAR-Campo Mourão, UNESPAR-Apucarana, UNESPAR-Paranavaí,

UNESPAR-União da Vitória, UNESPAR-Paranaguá, UFFS-Realeza, UFPR, UTFPR-

Curitiba, UTFPR-Pato Branco.

Os documentos analisados são: projetos político-pedagógico (PPPs), grades

curriculares e programas. Eles estão sendo analisados com base nas seguintes

expressões-chave: PRAT (prática), ENSIN (ensino) e PROFISS (profissional,

profissionalização). seguintes expressões-chave relacionadas ao tema da pesquisa:

PRÁTICA COMO COMPONENTE CURRICULAR, PRAT (prática), ENSIN (ensino),

CAPACIT (capacitação), CONTEXT (contexto), ESTAG (estágio, estagiário),

ESCOLA, FORMAÇÃO D (formação de profissional, docente), INSTRUM

(instrumentos), PROFISS (profissional, profissionalização), SALA.

O próximo passo será entrevistar 8 (oito) coordenadores dos cursos

investigados, a serem selecionados, objetivando um aprofundamento das questões

levantadas durante a análise da proposta curricular.

Mais do que identificar informações expressas nas propostas curriculares e

entrevistas, busca-se desenvolver uma análise que tome o texto “como

concretização de sentidos, de posicionamentos constituídos em determinadas

condições de produção” (MARINHO, 2007, p. 168).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A construção do conceito de “prática como componente curricular tem se

dado por caminhos confusos, a partir da própria gênese de sua constituição,

expressa em documentos oficiais a partir de 2001. Souza Neto e Silva (2014), Hein

(2010) e, principalmente, Diniz-Pereira (2011) buscam recuperar as idas e vindas da

prática como componente curricular nos diferentes documentos oficiais que tratam

do tema. Visando uma maior clareza expositiva, apresentamos essa trajetória em

sequência cronológica.

Para melhor compreendermos a tortuosa construção desse conceito, faz-se

necessário inicialmente recuperarmos a base dos problemas, expressa na

concepção de “prática de ensino” presente na Lei n. 9.394/96 - Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional (LDBEN). Observemos os artigos 61 e 65 da LDBEN:

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222

Art. 61. A formação de profissionais da educação, de modo a atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino e às características de cada fase do desenvolvimento do educando, terá como fundamentos: 1. a associação entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviços; 2. aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e outras atividades. (...) Art. 65. A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas.

O artigo 61 traz importante avanço ao reconhecer a necessidade da

“associação entre teorias e práticas”. O artigo 65, por seu turno, faz referência à

prática de ensino, mas a apresenta numa redação que geram problemas que

demandam reparos em documentos posteriores.

O primeiro documento que vem em socorro da visão de prática de ensino

expressa no artigo 65 da LDBEN é o Parecer CES 744/97 - Câmara de Educação

Superior do Conselho Nacional de Educação, acompanhado do anexo “Projeto de

Resolução”, fixando orientações para o cumprimento da obrigatoriedade das 300

horas de prática de ensino, apresentada no referido artigo 65. Dois anos depois, o

Parecer CNE/CP 115/99, de 10 de agosto de 1999, que tratava das Diretrizes Gerais

para os Institutos Superiores de Educação, procurou explicitar a concepção de

“prática de ensino” como “articulador do processo de formação dos professores”.

A primeira vez que apareceu, na recente legislação educacional brasileira,

alguma referência mais explícita à expressão “prática como componente curricular”

foi no Parecer CNE/CP 009/2001, de 8 de maio de 2001 - Conselho Pleno do

Conselho Nacional de Educação, que tratava das Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de

licenciatura, de graduação plena.

Uma concepção de prática mais como componente curricular implica vê-la como uma dimensão do conhecimento, que tanto está presente nos cursos de formação nos momentos em que se trabalha na reflexão sobre a atividade profissional, como durante o estágio nos momentos em que se exercita a atividade profissional.

Todavia, os documentos seguintes sobre o mesmo tema, publicados três

meses depois (Parecer CNE/CP 21/2001, de 6 de agosto de 2001, e o “Projeto de

Resolução”, anexado a tal documento), ignoram a expressão em questão, referindo-

se apenas à já conhecida expressão “prática de ensino”.

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223

O Parecer CNE/CP 28/2001, de 2 de outubro de 2001 – que estabeleceu a

duração e a carga horária dos cursos de Formação de Professores da Educação

Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena – deu nova

redação ao Parecer CNE/CP 21/2001 e esclareceu, de uma vez por todas, o que

pretendia dizer o artigo 65 da LDBEN referente à prática de ensino. Ao mesmo

tempo, há um esforço para se distinguir “prática como componente curricular”,

“prática de ensino” e “estágio supervisionado”, como se pode constatar pelo trecho

do Parecer CNE/CP 28/2001, que destacamos a seguir:

É fundamental que haja tempo e espaço para a prática, como componente curricular, desde o início do curso e que haja uma supervisão da instituição formadora como forma de apoio até mesmo à vista de uma avaliação de qualidade. (...) ao mínimo legal de 300 horas deve-se acrescer mais 100 horas que, além de ampliar o leque de possibilidades, aumente o tempo disponível para cada forma de prática escolhida no projeto pedagógico do curso. As trezentas horas são apenas o mínimo abaixo do qual não se consegue dar conta das exigências de qualidade. Assim, torna-se procedente acrescentar ao tempo mínimo já estabelecido em lei (300 horas) mais um terço (1/3) desta carga, perfazendo um total de 400 horas. Por outro lado, é preciso considerar um outro componente curricular obrigatório integrado à proposta pedagógica: estágio curricular supervisionado de ensino entendido como o tempo de aprendizagem que, através de um período de permanência, alguém se demora em algum lugar ou ofício para aprender a prática do mesmo e depois poder exercer uma profissão ou ofício. Assim, o estágio curricular supervisionado supõe uma relação pedagógica entre alguém que já é um profissional reconhecido em um ambiente institucional de trabalho e um aluno estagiário. Por isso é que este momento se chama estágio curricular supervisionado.

Ainda assim, a expressão “prática como componente curricular” vai

novamente desaparecer quando da publicação da Resolução CNE/CP 1, de 18 de

fevereiro de 2002, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação

de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de

graduação plena – ainda que essa resolução insistisse na articulação das dimensões

da teoria e da prática na formação de professores.

Finalmente, a expressão “prática como componente curricular” será retomada

de forma explícita e devidamente articulada – lembrando que ela sua primeira

aparição fora no Parecer CNE/CP 009/2001 – a partir da publicação da Resolução

CNE/CP 2, de 19 de fevereiro de 2002, que instituiu a duração e a carga horária dos

cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da

Educação Básica, em nível superior

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224

Art. 1º A carga horária dos cursos de Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, será efetivada mediante a integralização de, no mínimo, 2800 (duas mil e oitocentas) horas, nas quais a articulação teoria-prática garanta, nos termos dos seus projetos pedagógicos, as seguintes dimensões dos componentes comuns: I – 400 (quatrocentas) horas de prática como componente curricular, vivenciadas ao longo do curso; II – 400 (quatrocentas) horas de estágio curricular supervisionado a partir do início da segunda metade do curso; III – 1800 (mil e oitocentas) horas de aulas para os conteúdos curriculares de natureza científico-cultural; IV – 200 (duzentas) horas para outras formas de atividades acadêmico-científico-culturais.

Visando uma melhor compreensão de todo esse processo normativo, Diniz-

Pereira (2011, p. 211) elabora o seguinte quadro-resumo que, baseado na atual

legislação educacional, compara a “prática como componente curricular” com o

“estágio curricular supervisionado”:

PRÁTICA COMO COMPONENTE

CURRICULAR

ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO

mínimo de 400 horas mínimo de 400 horas

desde o início do curso a partir da segunda metade do curso

"ao longo de todo o processo formativo" em "um tempo mais concentrado"

em outros espaços (secretarias de educação,

sindicatos, "agências educacionais não

escolares", comunidades)

em escolas (mas não apenas em salas de aula)

orientação/supervisão da instituição formadora orientação da instituição formadora e supervisão

da escola

orientação/supervisão articulada ao trabalho

acadêmico

orientação articulada à prática e ao trabalho

acadêmico

tempo de orientação/supervisão: não definido tempo de supervisão: que não seja prolongado, mas seja denso e contínuo tempo de orientação: não definido

Para Souza Neto e Silva (2014), esse conjunto de reformulações normativas

tem levado tanto a “prática como componente curricular” quanto o “estágio curricular

supervisionado à perda dimensão original de “prática reflexiva” (SCHÖN, 1997),

ficando restritas a uma instrumentalização do ensino.

Pratica como componente curricular implica vê-la como uma dimensão do conhecimento que tanto está presente nos cursos de formação, nos momentos em que se trabalha na reflexão sobre a atividade profissional, como durante o estágio, nos momentos que se exercita a atividade profissional. (HEIN, 2010, p. 60)

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225

A prática como componente curricular é uma ferramenta que está presente

em toda a formação do docente, tanto na teoria (estudo em sala) quanto na prática

(estágios). De acordo com Hein (2010), as diferentes dimensões da prática – prática

educativa, prática de ensino, prática como componente curricular, prática de estágio,

prática profissional – são extremamente importantes para a formação básica de

professores. No caso da prática de ensino, trata-se da vinculação entre a formação

teórica do profissional e início da vivência profissional, ou seja, ela é a ligação entre

teoria e prática; daí sua importância para a formação de professores.

A exposição das idas e vindas da expressão “prática como componente

curricular” em diferentes documentos oficiais, ainda que um pouco exaustiva, visa

reforçar a consciência de que a referida expressão, não obstante os avanços

inerentes a ela que procuramos demonstrar, transita conceitualmente em terreno

ainda pantanoso a partir de sua origem. Portanto, entendemos que esse percurso

normativo tortuoso contribui para justificar as dificuldades e os embates nas

licenciaturas quando das propostas de implementação desse encaminhamento na

reformulação de seus currículos.

Na Teoria do Discurso (LACLAU; MOUFFE, 2015) a linguagem é tomada

como uma das dimensões das práticas sociais, ou seja, é a inclusão dos sujeitos e

sua relação com um social que será organizado e transformado. Nesse sentido,

ganha significância trabalharmos a “prática como componente curricular” a partir dos

seus meandros de construções e avaliações.

Cunha (2013) entende que devemos compreender avaliação como um

discurso, o que significa dizer que precisamos analisar além das palavras,

considerando seus contextos, sujeitos e sentidos que são construídos nas práticas

sociais. De acordo com ela, o fenômeno social precisa ser compreendido, ou seja,

não precisamos apenas descrever, mas interpretar os conceitos que adquirimos com

as ciências sociais.

Quando pensamos todo esse cenário instalado nas licenciaturas em Letras,

aos problemas da formação se somam as especificidades de um curso que vive

desafiadores impasses no âmbito do ensino de língua portuguesa, não obstante a

vasta e relevante trajetória formativa associada a essa licenciatura. Em diálogo com

a realidade das licenciaturas em Letras, Oliveira (2006) procura fugir da dicotomia

epistemológica instaurada entre conteúdos e práticas, defendendo uma

Anais do SIDIALE

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226

epistemologia que deixe claro os encaminhamentos práticos possibilitados por cada

teoria, evidencie as orientações práticas que cada teoria possibilita, sem dispensar

uma discussão sobre a organização curricular dos saberes de referência.

Em outras palavras, significa pensar o currículo de cursos de formação de professores comprometidos com uma “metaformação”, uma formação consciente, a partir de uma visão de educação que questione o “fazer” pedagógico, no caso específico dos professores de língua materna, formando profissionais comprometidos não apenas com o ensino da estrutura de línguas, mas também com o entendimento do funcionamento da linguagem como uma prática discursiva de natureza social. (OLIVEIRA, 2006, p. 109, grifo nosso)

Essa visão da formação de professores de língua materna vem na esteira da

constituição do discurso da mudança no ensino de língua que emergiu na década de

1980 (PIETRI, 2003) e que, de certa forma, se mantém até hoje. Fortalecem-se os

discursos sobre a necessidade de se repensar os rumos do ensino de língua

materna e do papel da Linguística nessa reformulação, afastando equívocos e

entulhos da tradição ainda presentes no ensino de língua. Reformulação que

desemboca no repensar dos currículos a partir desse “novo” objeto ensino

sustentado pelos estudos da linguagem, com pressupostos advindos das teorias da

enunciação, da análise do discurso, da pragmática, da psicolinguística, da linguística

textual, da sócio-linguística, do sócio-interacionismo, do construtivismo, entre outras.

ANÁLISE DOS PPPs, GRADES E EMENTAS

Dos 20 (vinte) cursos analisados no projeto de pesquisa PRALE, enfatizamos

10 (dez) IES, que são: IFPR-Palmas, UENP-Jacarezinho, UNESPAR-Apucarana,

UNESPAR-Campo Mourão, UNESPAR-Paranaguá, UNESPAR-Paranavaí,

UNESPAR-União da Vitória, UNICENTRO-Guarapuava, UTFPR-Curitiba e UTFPR-

Pato Branco. Apenas os PPPs (projetos político-pedagógicos), grades curriculares e

programa ementas foram analisados nesse artigo. Entre as 11 expressões-chave da

pesquisa, selecionamos as que mais apareceram: PRAT (prática), ENSIN (ensino) e

PROFISS (profissional, profissionalização).

Em conformidade com a Teoria do Discurso (LACLAU; MOUFFE, 2015), as

expressões-chave foram utilizadas como uma ferramenta para entendermos os

contextos que estavam inseridas, a fim de podermos averiguar como essas

universidades estão trabalhando o conceito de “prática como componente curricular”.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

227

Analisando a expressão PRAT, percebemos que ela não aparece em todos os

documentos analisados, como é o caso da UNESPAR-União da Vitória e IFPR-

Palmas; nas IES UENP-Jacarezinho, UTFPR-Pato Branco e UNICENTRO-

Guarapuava a expressão aparece com ausência de exemplificações ou

aprofundamentos; uso indistinto das expressões “teórico e prático” e “teórico-

prático”; ausência de relação da expressão com o currículo e a formação docente;

presença apenas como nome das disciplinas da grade curricular.

A expressão ENSIN aparece com abundancia em expressões como “ensino

médio”, “ensino fundamental”, “ensino a distância” e “problemas no ensino de

literatura”; divergência de significado com a utilização de dois termos em um mesmo

documento (ensino-aprendizagem, ensino e aprendizagem); ausência da expressão

em alguns documentos; raras citações da expressão relacionada à formação do

graduando; presença também como nome de disciplina da grade curricular. Já a

expressão PROFISS aparece com a utilização da mesma expressão para diferentes

significados (graduando, professor, áreas fora da licenciatura); ausência da

expressão em alguns documentos; vinculação ao docente licenciado e a outras

áreas de Letras; rara utilização da expressão “ensino profissional”.

UNESPAR-Apucarana e IFPR-Palmas, não informam sobre o

desenvolvimento do graduando, nem com base teórica-metodológica nem com a

prática, mas em suas grades curriculares deixam explicito que os estágios

supervisionados (ensinos fundamentais ou médios) começam no início do terceiro

ano ou quinto período do curso. UNESPAR-Campo Mourão, UNESPAR-Paranaguá,

UNESPAR-Paranavaí e UNESPAR-União da Vitória não dão informações nem sobre

a grade curricular do curso, apenas uma pequena descrição do que é o curso de

Letras.

UTFPR-Curitiba, UTFPR-Pato Branco, UENP-Jacarezinho e UNICENTRO-

Guarapuava foram as universidades mais preocupadas em detalhar como funciona o

desenvolvimento do profissional e nelas os termos: “prática de ensino”. Na UENP-

Jacarezinho, o termo aparece como nome de uma matéria junto com o estágio

supervisionado (exemplo: Disciplina: Prática de Ensino de Língua Portuguesa I (sob

a forma de Estágio Supervisionado); na UTFPR-Pato Branco o termo também

aparece como nome de matéria e assim, como na UENP-Jacarezinho, o estágio

supervisionado aparece no mesmo período (exemplo: Práticas de Ensino de Língua

Anais do SIDIALE

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228

Portuguesa no Ensino Fundamental); na UTFPR-Curitiba é o mesmo sistema das

outras universidades, mas o estágio supervisionado não é igual ao nome da matéria

(exemplo: Práticas de Ensino de Língua Portuguesa I).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os fundamentos teórico-metodológicos contribuíram para uma observação

para além das expressões-chave. Observamos também contextos que estavam

inseridas, a frequência com que apareciam etc.

Os estudos do currículo colaboram na construção da identidade profissional

dos docentes na medida em que se ressalta a individualidade e o contexto social

que os alunos estão inseridos. Os currículos são elementos que possuem história

que precisa ser estudada e compreendida, levando em conta inclusive a importância

do conceito da “prática como componente curricular” na formação e desenvolvimento

do profissional em Letras.

As análises das expressões-chave nos PPPs, grades e ementas de Letras até

aqui apresentadas denotam ausência ou imprecisão na aplicação do conceito de

“prática como componente curricular” nesses documentos.

Por outro lado, a entrevista com alguns dos coordenadores dos cursos

analisados, etapa seguinte dessa pesquisa, buscará se aproximar da realidade

cotidiana dos cursos, identificando os encaminhamentos efetivos e práticos dados

por eles à demanda para implementação da “prática como componente curricular”

nas propostas curriculares.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CES

nº 492/2001: aprova as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Arquivologia, Biblioteconomia, Ciências Sociais - Antropologia, Ciência Política e Sociologia, Comunicação Social, Filosofia, Geografia, História, Letras, Museologia e Serviço Social. Brasília: MEC/CNE, 3 abr. 2001. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf. CUNHA, Kátia S. A teoria do discurso como abordagem teórica e metodológica no campo das políticas públicas em educação. Estudos Políticos, v. 7, n. 2, p. 257-276, 2013. DINIZ-PEREIRA, Júlio Emílio. A prática como componente curricular na formação de professores. Educação, Santa Maria, v. 36, n. 2, p. 203-218, maio/ago. 2011.

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229

HEIN, Ana Catarina A. A práxis e a noção de prática nos documentos oficiais sobre a formação de professores. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara, 2010. LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios, 2015 MARINHO, Marildes. Currículos da escola brasileira: elementos para uma análise discursiva. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 20, n. 1, p. 163-189, 2007. OLIVEIRA, Maria Bernadete F. Revisitando a formação de professores de língua materna: teoria, prática e construção de identidades. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 6, n. 1, p. 101-117, jan./abr. 2006. PIETRI, Émerson de. A constituição do discurso da mudança do ensino de língua materna no Brasil. Tese (Doutorado) — Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. SCHÖN, Donald. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, Antonio. (Org.). Os professores e a sua formação. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1997. SOUZA NETO, Samuel de; SILVA, Vandeí P. Prática como componente curricular: questões e reflexões. Diálogo Educacional, Curitiba, v. 14, n. 43, p. 889-909, set./dez. 2014.

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230

Samba na escola: análise do gênero textual

samba em livros didáticos de língua

portuguesa

Samba in the school: analysis of the textual genre “samba” in portuguese language textbooks

Juliana dos Santos Barbosa (UNIFIL)

Letícia Jovelina Storto (UENP/PPPGEN/PROFLETRAS)

RESUMO: Esta pesquisa, realizada como atividade do Programa Especial de Formação

Pedagógica (Profop), buscou identificar em que medida o gênero textual samba está presente em livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio. Por meio de Análise Documental, foram avaliadas 6 obras adotadas por um colégio estadual da cidade de Londrina, nos ciclos de 2009 e 2013. O referencial teórico que subsidiou a análise foi constituído por três pilares: as políticas públicas de seleção e distribuição de material didático do Estado brasileiro; as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para o Ensino Médio; e estudos que definem o samba como um complexo cultural contemporâneo. O resultado da investigação revelou que o referido gênero textual tem presença esparsa nos materiais didáticos pesquisados, apesar do amplo e variado repertório disponível. Com base nesses dados, o artigo traz uma reflexão, questionando os motivos dessa ausência e afirmando que o fato central não é se temos uma cultura popular expressiva, a questão é se olhamos para ela. Sob tal perspectiva, esta pesquisa pretende contribuir para a desconstrução de alguns sentidos que historicamente associaram estereótipos simplistas ao samba e à cultura popular de forma geral, ocultando a riqueza cultural que lhes é inerente. Por outro lado, como estudo preliminar, pretende contribuir para que a música popular tenha maior presença no ambiente escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Samba. Língua Portuguesa. Livros Didáticos. Ensino Médio.

INTRODUÇÃO

O samba, gênero musical brasileiro e afro-originado, possui um vasto

repertório, com letras que falam do cotidiano, da economia, da cultura, de fatos

históricos, da vida popular, entre outros temas. Elaboradas em grande parte por

artistas populares, as letras dessas canções oferecem uma leitura de mundo

peculiar, constituindo um manancial para uso em sala de aula. A presente pesquisa,

realizada como atividade curricular do PROFOP38, se propôs a averiguar em que

medida o samba está presente em livros didáticos de Língua Portuguesa indicados

pelo Plano Nacional do Livro Didático para escolas públicas do Ensino Médio.

38

Programa de Formação Professores da Universidade Federal Tecnológica do Paraná – Câmpus Londrina

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

231

A escolha do tema tem relação com as pesquisas realizadas pela autora

deste trabalho no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da

Universidade Estadual de Londrina. Desde 2004, seus estudos sobre a cultura do

samba resultaram em uma dissertação, uma tese, um livro, dois capítulos de livros,

cursos e palestras, além de vários artigos, sendo um deles resultado de uma

pesquisa feita em estágio pós-doutoral, concluída ano de 2015. Além dos trabalhos

de cunho acadêmico, alguns projetos foram desenvolvidos sobre a mesma temática,

como o ciclo de formação pedagógica “Samba na Escola”, os projetos culturais

“Cantos Negros” e “Menestréis de Noel”, além dos programas radiofônicos “Estação

Samba” e “100 anos dos mestres do samba”, veiculados pela UELFM, emissora

educativa da Universidade Estadual de Londrina.

A questão que dá origem à pesquisa é resultado da percepção sobre o

potencial pedagógico do samba e do interesse em explorar o uso do gênero textual

no processo de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa. Somados à estreita

relação com o assunto, outros fatores também apontam o samba como tema

propício para o ambiente escolar:

a) de acordo com as Diretrizes Curriculares da Educação Básica da

Secretaria de Estado da Educação do Paraná (DCE/PR), os professores de Língua

Portuguesa devem explorar a dimensão artística do conhecimento e lançar mão de

textos produzidos em diferentes esferas sociais;

b) a Lei Federal 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino da história e da

cultura africana e afro-brasileiro nas escolas e, neste contexto, o samba, como

cultura afro-originada, pode contribuir de forma significativa com o cumprimento da

legislação, seja pelo conteúdo veiculado em suas letras, seja pela própria história de

sua formação;

c) De acordo com o site das Nações Unidas, a Assembleia Geral da ONU

proclamou o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de

Afrodescendentes (resolução 68/237) citando a necessidade de “reforçar a

cooperação nacional, regional e internacional em relação ao pleno aproveitamento

dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos de pessoas

afrodescendentes, bem como sua participação plena e igualitária em todos os

aspectos da sociedade”;

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

232

d) este artigo está sendo elaborado exatamente no ano em que se

comemora o centenário de lançamento de um dos primeiros sambas gravados. A

canção “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, lançada com grande

repercussão no carnaval de 1917, é considerada um marco na história fonográfica

desse gênero musical expoente da cultura brasileira;

e) a diversidade de assuntos abordados nos sambas tem potencial para

atender ao indicativo das DCE/PR, segundo o qual, os conteúdos disciplinares

devem ser tratados, na escola, de modo contextualizado, estabelecendo-se, entre

eles, relações interdisciplinares, de forma que tais conhecimentos contribuam para a

crítica às contradições sociais, políticas e econômicas presentes na sociedade

contemporânea.

A partir dessas perspectivas, o presente estudo se deu em três etapas.

Primeiramente foi elaborado um aporte teórico reunindo conhecimentos sobre a

cultura do samba em conexão com as Diretrizes Curriculares da Educação Básica e

com os princípios do Plano Nacional de Livro Didático. A segunda etapa do estudo

contemplou o levantamento de dados em livros didáticos de Língua Portuguesa,

fornecendo um mapeamento do referido material didático. Na terceira e última fase,

os resultados foram analisados sob a luz do referencial teórico.

REVISÃO DE LITERATURA

Para analisar o gênero textual samba em livros didáticos de Língua Portuguesa,

elaboramos um aporte teórico fundamentado em 3 pilares: as políticas públicas de

seleção e distribuição de material didático pelo Estado brasileiro; os preceitos das

Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para o Ensino Médio; e estudos que

definem o samba como um complexo cultural contemporâneo.

O PLANO NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO PARA O ENSINO MÉDIO: O QUE É

E COMO FUNCIONA

O Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLD/EM) foi

instituído pelo Ministério da Educação em 2003 (Resolução nº 38, de 25/10/2003),

como parte da política educacional de distribuição de material didático aos alunos da

educação básica das escolas públicas pelo Estado brasileiro. Esse programa atende

aos princípios da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de

Anais do SIDIALE

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233

fornecimento de materiais didáticos, de universalização do acesso e da melhoria da

qualidade da educação básica, além da participação de professores na escolha das

obras didáticas.

Segundo o portal do Ministério da Educação39, o PNLD/EM passou a ser

implantado de maneira gradativa, no ano de 2004, em algumas regiões do Brasil.

Em 2005 o Programa comprou e distribuiu obras didáticas de Língua Portuguesa e

Matemática (para utilização em 2006) aos alunos do ensino médio público de todas

as regiões do país. À época, com um orçamento de R$ 143,8 milhões, foram

comprados 12,5 milhões de livros, distribuídos para 7,1 milhões de alunos. Entre os

anos de 2007 e 2013 o Plano passou a distribuir obras didáticas referentes às

disciplinas de Biologia, História, Química, Geografia, Física, Filosofia, Sociologia,

Língua Estrangeira (Inglês e Espanhol), Arte e Educação Física. Desta forma, o

Estado alcançou a pretendida universalização do atendimento aos alunos do ensino

médio das escolas públicas brasileiras.

Visando contribuir com o processo de escolha feito pelos professores, o MEC

elabora, a cada três anos, o Guia de Livros Didáticos, com resenhas e informações

acerca de cada uma das obras aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático

(PNLD). Como peça fundamental do PNLD, o Guia tem, a priori, três funções: a)

orientar docentes da Educação Básica para que possam melhor realizar o processo

de escolha das obras que serão utilizadas em conformidade com o projeto político-

pedagógico da escola; b) oferecer informações aos pesquisadores e demais

interessados em compreender, acompanhar e refletir sobre o alcance, limites e

contribuições das obras e do PNLD; c) facilitar o debate público e social acerca

dessa importante política pública, sendo mediador de concepções, afirmações e

convocações com impactos no campo do currículo e da experiência social.

DIRETRIZES CURRICULARES: O QUE SÃO E PARA QUE SERVEM

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) são normas para a Educação Básica

que orientam o planejamento curricular das escolas e dos sistemas de ensino. As

Diretrizes têm origem na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, que

define como competência da União “estabelecer, em colaboração com os estados,

Distrito Federal e os municípios, competências e diretrizes para a Educação Infantil,

39

Site do Ministério da Educação: www.portal.mec.gov.br

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234

o Ensino Fundamental e o Ensino Médio”. A proposta é nortear os currículos e os

seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar a formação básica comum.

O processo de definição das diretrizes curriculares conta com a participação das

mais diversas esferas da sociedade. Dentre elas, o Conselho Nacional dos

Secretários Estaduais de Educação (Consed), a União Nacional dos Dirigentes

Municipais de Educação (Undime), a Associação Nacional de Pós-Graduação e

Pesquisa em Educação (ANPEd), além de docentes, dirigentes municipais e

estaduais de ensino, pesquisadores e representantes de escolas privadas.

No Paraná, as Diretrizes Curriculares da Educação Básica defendem um

currículo baseado nas dimensões científica, artística e filosófica do conhecimento.

De acordo com o documento, a produção científica, as manifestações artísticas e o

legado filosófico da humanidade, possibilitam um trabalho pedagógico que aponte

na direção da totalidade do conhecimento e sua relação com o cotidiano.

A dimensão artística interessa de forma direta na concepção do presente estudo

que pretende discutir a presença do samba no ambiente escolar. De acordo com as

DCE/PR, o conhecimento artístico tem como características centrais a criação e o

trabalho criador. Esta característica da arte como criação é um elemento

fundamental para a educação, pois o desenvolvimento da capacidade criativa dos

alunos tem uma direta relação com a produção do conhecimento nas diversas

disciplinas, possibilitando um diálogo que favorece a unidade no trabalho

pedagógico.

De forma mais específica, no que ser refere à Língua Portuguesa, as Diretrizes

Curriculares da Secretaria de Educação do Estado do Paraná estão fundamentadas

numa proposta que “dá ênfase à língua viva, dialógica, em constante movimentação,

permanentemente reflexiva e produtiva” (p.48). Entre as diversas orientações

metodológicas as DCE/PR consideram importante que o professor de Língua

Portuguesa propicie práticas de leitura de textos de diferentes gêneros e discuta

sobre finalidade, intenções, intertextualidade, aceitabilidade, informatividade,

situacionalidade, temporalidade, vozes sociais e ideologia. Tais orientações estão

fundamentadas na premissa de que, ao aprimorar os conhecimentos linguísticos e

discursivos dos alunos, o ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa contribuiu

para que esses estudantes compreendam os discursos que os cercam e tenham

condições de interagir de forma protagonista com esses discursos.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

235

Enfim, ao conceber a língua como uma arena em que diversas vozes sociais se

defrontam, as Diretrizes assinalam ainda que o professor deve propiciar ao

educando a prática, a discussão, a leitura de textos das diferentes esferas sociais,

defendendo que as práticas discursivas abarquem, além dos textos escritos e

falados, a integração da linguagem verbal com outras linguagens. Neste sentido, o

samba oferece uma gama de possibilidades, conforme exposição a seguir.

A CULTURA DO SAMBA

Reconhecido como patrimônio imaterial do Brasil, o samba está presente em

todas as regiões do país, sendo conhecido tanto em âmbito nacional quanto no

exterior. Para atravessar seu primeiro século de existência e chegar com vivacidade

ao século XXI, essa cultura popular viveu em contínua tensão de relacionamento,

influências e contradições com a cultura dominante.

De acordo com Nei Lopes (2005) os negros escravizados trazidos da África a

partir do século XVI, deram origem aos principais traços musicais da diáspora

africana nas Américas. No Brasil, o chamado samba urbano, surgido no início do

século XX, se configurou a partir do encontro desses batuques ancestrais com as

tradições musicais europeias. Longe de se dar numa relação igualitária, essa fusão

aconteceu na seara das relações de poder entre colonizadores e colonizados, num

território marcado pelo caráter dialógico, colaborativo, antagônico e conflituoso.

Neste processo de hibridização que delineou a plasticidade do gênero musical, a

matriz africana falou mais alto, fazendo do samba um fruto do talento e da coragem

do povo negro para ultrapassar limites sociais covardemente impostos e enfrentar a

invisibilidade.

As rodas de samba realizadas no início do século XX eram lugares de encontro e

mediação, onde se fortalecia o elo umbilical com a cultura africana. Foi numa dessas

festas, em meados de 1916, que nasceu a composição “Pelo Telefone”, registrada

por Ernesto dos Santos (o Donga) e Mauro de Almeida. Lançado em 1917, esse

samba constitui um importante marco na relação dos sambistas com o carnaval e

com os meios de comunicação de massa. A presença do samba nas festas

carnavalescas e a ampla divulgação no rádio contribuíram para que fosse

desencadeado o processo de descriminalização dessa manifestação cultural, que

Anais do SIDIALE

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236

culminaria, futuramente, na sua transformação em um dos símbolos da identidade

brasileira.

Esse trajeto envolveu diversos atores sociais num intrincado jogo de interesses.

À luz dos estudos feitos por Stuart Hall (2003), identificamos neste processo

episódios de resistências e concessões ocorridas no campo das disputas culturais.

Afinal, resistir não é só confrontar, mas também aproveitar brechas para se firmar.

Neste ponto destacamos o protagonismo dos artistas criadores para enfrentar a

ocultação social a que fica submetida a vida popular. As letras de samba são

exemplares quando falam sobre o cotidiano de forma provocativa, fazem crítica

social, ou contam histórias que deixam registradas as memórias dessa cultura.

Entre essas composições, há um tipo específico que tem sido objeto de estudo

da autora deste trabalho: aquelas falam do próprio samba. Embora o tema lírico-

amoroso seja o mais evidente em todo o cancioneiro popular brasileiro, as canções

autorreferentes têm uma presença marcante na cultura do samba. Quase todos os

grandes compositores usam procedimentos metalinguísticos em suas canções,

dando indícios da importância do referido recurso de linguagem no seio dessa

cultura. As metacomposições representam uma forma de afirmação cultural. Tendo

representado a obstinação de um povo escravizado num país que repreendeu a

cultura de matriz africana, o discurso metalinguístico é exatamente a crônica dos

movimentos de repressão e da resistência (BARBOSA, 2014).

É bastante comum que os compositores façam homenagens entre si por meio de

tributos cantados. Com enunciados marcados preponderantemente pelo conteúdo

afetivo e pela intertextualidade, essas letras trazem demonstrações de

reconhecimento e admiração entre sambistas de diferentes gerações. Há canções

que enunciam posturas e valores da cultura do samba, outras registram a trajetória

dessa manifestação cultural, além de destacarem o aspecto inebriante do ritmo.

Quase toda agremiação carnavalesca tem seu hino, sejam escolas de samba ou os

blocos de carnaval. Da mesma forma, é comum encontrar letras que homenageiam

cenários sociais do samba, como os morros, a Praça Onze, a Festa da Penha, a

Pedra do Sal, a Lapa, os bairros suburbanos e os botequins.

Assim, o samba acontece não somente como um conjunto de eventos históricos,

mas como narrativa desses eventos. Esses narradores leem a história a contrapelo,

Anais do SIDIALE

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237

para usar uma expressão benjaminiana, pois através da sua arte, eles registram

fatos cotidianos, muitas vezes ocultos para a grande maioria.

E não é somente no discurso musical que esses artistas contam a história dos

desestoricizados40. Em suas telas, os chamados sambistas-pintores retratam,

principalmente, elementos do cotidiano popular e da cultura do samba, como os

instrumentos típicos do gênero musical, o botequim, a comida, entre outros. Assim

como as canções retratam o universo do samba, esses artistas plásticos também

deixam registrada a história dessa cultura em suas imagens. Retratando o povo e o

ambiente popular, os pintores tornam visíveis mundos socialmente ignorados e, em

convergência com as composições autorreferentes, respondem criativamente a uma

questão importante: o desocultamento.

Essas obras, normalmente pouco exploradas no ambiente escolar, constituem

uma fonte para os processos de ensino-aprendizagem pautados na diversidade

cultural, na formação cidadã e no desenvolvimento da criatividade. O fato ser uma

cultura popular gerada nas regiões suburbanas, torna o samba fundamental como

expressão da vida popular. Uma expressão rica poeticamente, que não deveria ser

renegada nos materiais didáticos.

METODOLOGIA

A presente pesquisa tem caráter exploratório e utiliza como técnica de coleta de

dados a Análise Documental. O corpus é constituído por 6 livros didáticos de Língua

Portuguesa de ensino médio, adotados por um colégio da cidade de Londrina, nos

ciclos de 2009 e 2015.

Os livros de didáticos de Língua Portuguesa adotados pelas escolas públicas de

ensino médio de todo o país são distribuídos por meio do Programa Nacional do

Livro Didático, do Ministério da Educação. De acordo com o site do MEC, o PNLD

“tem como principal objetivo subsidiar o trabalho pedagógico dos professores por

meio da distribuição de coleções de livros didáticos aos alunos da educação básica”.

A escolha desse material didático é feita pela equipe pedagógica de cada escola,

a partir de uma lista elaborada pelo MEC. O programa é executado em ciclos

trienais, sendo que os livros distribuídos para alunos dos ensinos fundamental e

40

Expressão cunhada por Homi Bhabha (1998)

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

238

médio devem ser conservados e devolvidos para utilização por outros alunos por um

período de três anos.

Para a coleta de dados, foram selecionadas 2 coleções de livros didáticos

adotadas pela equipe pedagógica do Colégio Estadual José de Anchieta,

respectivamente dos ciclos 2009 e 2015. Para realização do presente estudo, a

instituição de ensino, localizada na região central da cidade de Londrina, emprestou,

por um período de 30 dias, as seguintes obras:

a) Livros de Língua Portuguesa da coleção “Linguagem em Movimento”, de Izeti

Fragata Torralvo e Calos Cortez Minchillo. Editada pela FTD em 2008, a

coleção é composta por três volumes que somam 1056 páginas, e foi adotada

no triênio 2009-2011.

b) Livros de Língua Portuguesa da coleção “Português Linguagens”, de autoria

de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães. Editada pela

Saraiva em 2013, a coleção é composta por três volumes que somam 1200

páginas, e foi adotada no triênio 2015-2017.

Na consulta aos livros didáticos de Língua Portuguesa buscou-se detectar a

presença/ausência do gênero textual samba, identificando o contexto didático-

pedagógico de sua citação na referida bibliografia.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O levantamento realizado nas duas coleções constata um total de 11 vezes

em que o samba aparece em 2.256 páginas pesquisadas. Nos quadros 1 e 2,

apresentados a seguir, localizam o volume, o título das canções, seus compositores,

bem como o contexto didático-pedagógico em que músicas são utilizadas.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

239

Quadro – O samba na coleção “Linguagem em Movimento” (2009) C

OLE

ÇÃ

O L

ING

UA

GE

M E

M M

OV

IME

NT

O

OCORRÊNCIAS Contexto didático-pedagógico V

ol.1

Não há ocorrências de samba neste volume

--------------------------------------------------------------------------------------------------

Vol. 2

1. Trecho da canção “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso (p. 11).

O samba é apresentado como exemplo de obra influenciada pelo nacionalismo.

2. Trecho do samba-enredo “Terra dos papagaios... navegar foi preciso”, da escola de samba Unidos da Tijuca no ano 2000 (p.12).

O samba é citado para ilustrar a presença do culto a um Brasil idealizado na cultura popular contemporânea.

3. Trecho da canção “Virando pó”, de Elton Medeiros e Ana Terra (p. 141).

O samba é trabalhado como proposta de exercício sobre o uso de pronomes

Vol. 3

Não há ocorrências de samba neste volume

--------------------------------------------------------------------------------------------------

Quadro 2 – O samba na coleção “Português Linguagens” (2013)

OLE

ÇÃ

O P

OR

TU

GU

ÊS

LIN

GU

AG

EN

S

OCORRÊNCIAS CONTEXTO DIDÁTICO-PEDAGÓGICO

Vol.1

1. Trecho da canção “Quando o carnaval chegar”, de Chico Buarque (p. 56)

A canção ilustra o conceito de rima.

2. Em uma tirinha de Laerte, o personagem canta um samba (p. 58)

A tirinha ilustra um exercício sobre versos e rimas.

3. Trecho da canção “Quando o carnaval chegar”, de Chico Buarque (p.154).

O samba é trabalhado como proposta de exercício sobre intertextualidade com uma tirinha de Ziraldo

4. Letra da canção “Samba do approach”, de Zeca Baleiro (p. 360).

O samba é trabalhado como proposta de exercício sobre estrangeirismos e neologismos.

5. Trecho da canção “Não tem tradução”, de Noel Rosa (p. 391).

Exercício do ENEM

Vol. 2

6. Trecho da canção “O morro não tem vez”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes (p.96)

O samba é apresentado como um poema (sic) de Vinícius de Moraes, em um exercício sobre pronomes pessoais.

Vol. 3

7. Trecho da canção “Samba do Arnesto”, de Adoniran Barbosa (p. 118)

O samba é trabalho como proposta de exercício sobre a influência estrangeira na variedade linguística popular

8. Citação de compositores de samba como Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres e Ataulfo Alves.

Na seção “Ouça” os sambistas são citados entre os compositores de música popular brasileira da segunda fase do Modernismo.

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T E X T O S C O M P L E T O S

240

Percentualmente, o samba ocupa pouco menos de 0,5% das páginas dos

livros avaliados. A primeira coleção avaliada, “Linguagem em Movimento”, apresenta

3 ocorrências, todas no vol. 2, sendo que nos vol.1 e 3 não há referências ao gênero

textual. A segunda coleção consultada, “Português Linguagens” apresenta 8

ocorrências, sendo 5 casos no vol. 1 (o livro com o maior número de ocorrências

entre os pesquisados), 1 caso no vol.2 e 2 casos no vol. 3.

Os índices são bastante baixos, principalmente se comparados a outros

gêneros textuais como a tirinha e a publicidade, amplamente explorados no material

didático consultado. Além disso, as canções mencionadas são, em grande parte de

compositores como Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, intelectuais

com origem na classe média. Nesta pesquisa há, inclusive, o caso da canção

“Quando o carnaval chegar”, que aparece duas vezes no volume 1 da coleção

Português Linguagens.

Há uma variedade de artistas a serem explorados e com obras relevantes

que podem contribuir de forma significativa com a diversidade de vozes na sala de

aula. Como já exposto neste artigo, as DCE/PR assinalam que o professor de

Língua Portuguesa deve trabalhar com textos das diferentes esferas sociais, bem

como deve considerar a dimensão artística do conhecimento em sua atuação

pedagógica.

Contudo, a diversidade de gêneros textuais e de dimensões do

conhecimento não está efetivamente contemplada nos livros didáticos, segundo

avaliação feita pela equipe de professores responsável pela elaboração do Guia de

Livros Didáticos (PNLD/2015). Fato que também ficou confirmado pelos resultados

da presente pesquisa. De acordo com o Guia, os livros de Língua Portuguesa

indicados para o Ensino Médio destinam pouco espaço “à produção literária que não

se identifica com os cânones estabelecidos [...] [e] ainda mais rarefeitos são os

gêneros próprios das culturas juvenis, como os fanzines e as letras de música”

[grifo nosso].

A equipe do Guia ressalta ainda que os temas presentes nos livros

frequentemente colaboram para uma formação cidadã, mas quase sempre são

abordados na perspectiva das classes médias das grandes e médias cidades. As

periferias urbanas, as camadas populares e a população rural aparecem como tema

de alguns textos, mas não em sua própria voz ou perspectiva.

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T E X T O S C O M P L E T O S

241

Neste cenário, o gênero textual samba poderia ser um elemento relevante

para os processos de ensino-aprendizagem. O samba é uma cultura popular por

excelência: nasceu na diáspora negra afro-brasileira como herança de um povo

escravizado que encontrou na dimensão artística uma forma legítima de expressão,

de memória coletiva, protesto e resistência cultural. Os enunciados dessas canções

são, ao mesmo tempo, fonte de leitura de mundo e registro histórico das camadas

populares. Trata-se, é importante ressaltar, de um material muitas vezes com

conteúdos representativos de um contradiscurso à história contada sob a ótica

dominante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Plano Nacional do Livro Didático dispõe atualmente de um processo

democrático de seleção e distribuição de livros didáticos para estudantes do sistema

público de ensino. Na consulta feita às duas coleções de livros de Língua

Portuguesa, foi possível perceber que, de maneira geral, os autores desses

materiais têm preocupação em contextualizar historicamente os conteúdos

trabalhados, ao mesmo tempo em que buscam mostrar como as influências

estéticas de períodos históricos anteriores aparecem em manifestações linguísticas

e literárias contemporâneas. Todavia, há uma ausência de manifestações da cultura

popular, em especial neste trabalho foi constatado que o samba, uma cultura popular

contemporânea que simboliza a brasilidade, quase não consta nesses materiais

didáticos.

Seria um distanciamento entre a academia (que produz os livros) e a vida

popular? Não temos esta resposta, mas fica evidente que a questão não é se temos

uma cultura popular expressiva, a questão é se olhamos para ela. Sob tal

perspectiva, este trabalho pretende contribuir para a desconstrução de alguns

sentidos que historicamente associaram estereótipos simplistas ao samba, ocultando

a riqueza cultural que lhe é inerente.

Como crônicas musicadas do cotidiano, essas canções são profícuas para

instigar debates nas salas de aula, pois contam a história da vida popular a partir do

olhar de quem a vivencia. Os compositores populares tomam a palavra para contar

sua própria história. Essa atitude de responder criativamente a questões sociais nos

remete aos princípios das diretrizes curriculares, segundo os quais o trabalho criador

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T E X T O S C O M P L E T O S

242

constitui elemento fundamental para a educação, pois a escola é tanto o espaço do

conhecimento historicamente produzido pelo homem como também espaço de

construção de novos conhecimentos, ao qual é inerente o processo de criação.

Enfim, considerando as ausências detectadas pela presente pesquisa, bem

como as demandas apontadas pelas Diretrizes Curriculares e pelo Guia do Livro

Didático, avaliamos que o samba teria grande potencial ser mobilizado no processo

de ensino-aprendizagem, tanto da Língua Portuguesa quanto de outras disciplinas.

Nos sambas-enredo (trilha sonora dos desfiles carnavalescos), por exemplo, têm

história, cultura e geografia brasileiras. Tem Tiradentes, Drummond e Iracema. Tem

a Guerra de Canudos, Semana de Arte Moderna e Usina de Belo Monte. Em 2007, a

escola de samba Estação Primeira de Mangueira levou para a avenida um desfile

inteiro sobre a Língua Portuguesa. E, para além dos desfiles carnavalescos, tem

samba o ano inteiro. Martinho da Vila musicou o poema “A Serra do Rola Moça”, de

Mário de Andrade. Adoniran Barbosa registrou com riqueza poética e melódica o

falar dos imigrantes ítalo-paulistas. Padeirinho da Mangueira explicou para os

moradores da cidade as gírias do morro.

Para a disciplina de Língua Portuguesa, entendemos que o samba como

recurso pedagógico amplia a diversidade de gêneros textuais em sala de aula,

contempla a dimensão artística do conhecimento, propicia atividades

interdisciplinares, além de trabalhar aspectos da cultura africana e afro-brasileira, em

conformidade com a Lei 10.639/2003. Concluímos que há uma gama de

possibilidades a serem exploradas e organizadas para que se tenha mais samba na

escola.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Juliana dos Santos. Nelson Sargento e as Redes Criativas do Samba. Curitibia: Appris, 2014.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG,1998.

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução n° 2, de 30 de janeiro de 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Disponível em www.portal.mec.gov.br. Vários acessos.

BRASIL. Ministério da Educação. Guia de livros didáticos: PNLD 2015: língua portuguesa: ensino médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2014.

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243

PARANÁ. Secretaria de Educação. Diretrizes Curriculares da Educação Básica Língua Portuguesa. Paraná: SEED, 2008.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

LOPES, Nei. Partido Alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.

ONU. Década Internacional de Afrodescendentes. Disponível em: <http://decada-afro-onu.org>. Acesso em: 20 maio 2017.

PARANÁ. Secretaria da Educação. Portal dia dia da educação. Disponível em <www.educacao.pr.gov.br>. Vários acessos.

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244

Sequências didáticas do gênero canção no

Pibid-inglês: desenvolvimento de capacidades

de linguagem

Didactic sequences of the text genre song in Pibid-English: development of

language capacities

Emanuelle Cricia Oliveira da Silva (UENP/G)

Célia Regina Capellini Petreche (UENP/PQ)

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma análise de sete sequências didáticas (SD) do gênero canção elaboradas no subprojeto PIBID-Inglês desenvolvido na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) campus Cornélio Procópio – PR, voltados para o ensino de língua inglesa de três escolas estaduais situadas no mesmo município. Para tanto, ancoramo-nos nos pressupostos teóricos e metodológicos do interacionismo sociodiscursivo (ISD), para o qual a linguagem tem caráter central no desenvolvimento humano. Como critérios de análise, utilizamos as definições de capacidades de linguagem propostas por Dolz e Schneuwly (2004), que as dividem didaticamente em: 1) capacidades de ação; 2) capacidades discursivas; e 3) capacidades linguístico-discursivas. Objetivamos analisar a organização interna das SD, verificando quais capacidades de linguagem foram enfatizadas por seus elaboradores, investigar a coerência destas com os objetivos propostos e refletir sobre os impactos do processo de elaboração do material didático na formação dos pibidianos. A análise das SD revela o predomínio de capacidades de ação, pois os pibidianos enfatizam aspectos contextuais do gênero explorado. Os resultados indicam que, embora haja algumas lacunas na organização interna, as SD podem contribuir para o desenvolvimento de capacidades de linguagem e formação docente. PALAVRAS-CHAVE: PIBID-Inglês. Sequência Didática. Capacidades de linguagem

INTRODUÇÃO

O ensino de língua materna e estrangeiras, por meio de uma abordagem com

gêneros textuais, tem alcançado cada vez mais espaço privilegiado no contexto

brasileiro, principalmente, a partir da década de 90, após relações diretas entre um

grupo genebrino e pesquisadores brasileiros e a partir das pesquisas de Cristóvão

(2001, 2007), Beato-Canato (2008), Ferrarini (2008), Petreche (2008), entre outros,

que aderem os princípios do grupo, focando seus trabalhos na intervenção didática

com base em gêneros textuais.

Voltados para a intervenção na educação, (MACHADO, 1997,2000, 2001;

ROJO, 2000; DIONÍSIO, MACHADO E BEZERRA, 2002; GUIMARÃES, 2006/2007;

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T E X T O S C O M P L E T O S

245

CRISTOVÃO, 2001/2007) os estudos buscaram, principalmente, investigar questões

relacionadas às ferramentas de ensino; ao desenvolvimento de capacidades de

linguagem (CL) por meio de sequências didáticas (SD) de gêneros textuais; às

dimensões da formação de professores; à interação da ferramenta e dos envolvidos

na aprendizagem propiciadas pela análise de experiências didáticas.

Os estudos realizados nessa área buscam alternativas metodológicas para o

trabalho dos profissionais de línguas que se veem muitas vezes desmotivados pela

falta de orientação metodológica adequada, pela falta de interesse dos alunos, por

condições de trabalhos inadequadas, por falta de informação condizente com as

necessidades sócio históricas.

Pensando nessas questões e buscando alternativas para o trabalho do

professor de língua inglesa, bem como melhorias para o ensino de inglês nas

escolas públicas, o subprojeto PIBID de língua inglesa desenvolvido na Universidade

Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus Cornélio Procópio, formula suas

propostas de trabalho, pautadas nas Diretrizes Curriculares de Língua Estrangeira

Moderna (PARANÁ, 2008), um dos documentos norteadores do ensino de línguas

no Brasil, que prescrevem o ensino pautado em gêneros textuais por esses

funcionarem como práticas reais da interação humana.

Por meio de uma parceira escola pública e universidade, o projeto fomenta

discussões acerca do ensino de gêneros pautado em SD de gêneros bem como a

elaboração coletiva de materiais didáticos sobre a perspectiva interacionista

sociodiscursiva, tendo em vista que o objetivo do ensino a partir de gêneros textuais

é contribuir para o desenvolvimento de capacidades de linguagem nos alunos das

escolas públicas parceiras e, ainda, contribuir para o desenvolvimento e

aprendizagem dos futuros profissionais de língua inglesa.

No ano de dois mil e quinze, foram elaboradas setes Sequências Didáticas

(SD) com base no gênero canção, voltadas para o ensino de língua inglesa no

Fundamental II e Ensino Médio de três escolas estaduais localizadas no município

de Cornélio Procópio – PR.

Assim, esta pesquisa tem por objetivo geral analisar o material didático

elaborado no projeto supracitado e seus possíveis impactos na formação inicial dos

pibidianos. Descreveremos e analisaremos a organização geral das setes SD. Para

atingir esse objetivo, primeiramente analisaremos a organização estrutural das SD,

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

246

identificando o título, canção, objetivos de ensino, os módulos que apresentam, se

há um trabalho com a oralidade.

Na sequência, investigaremos quais capacidades de linguagem foram

mobilizadas nas atividades e sua coerência com os objetivos de ensino

apresentados. Avaliaremos se o material está de acordo com a proposta

metodológica apresentada por Dolz, Noverraz & Schneuwy (2004) e os possíveis

impactos desse processo na formação inicial.

Dessa forma, esse artigo está organizado em cinco partes. Primeiramente,

apresentamos o referencial teórico do ISD. Em seguida, descrevemos o contexto de

pesquisa e os critérios de análise. Depois disso, apresentamos as análises do

material didático elaborado pelos pibidianos no ano de 2015 e, por fim, discutimos os

resultados e seus impactos em na formação dos bolsistas.

LENTES TEÓRICAS

As Diretrizes Curriculares de Línguas Estrangeiras Modernas do Estado do

Paraná – DCEs LEM (2008) postulam que o objeto de estudo de uma língua

estrangeira é a língua, portanto adere as concepções backtinianas de língua como

discurso, por meio do qual os sujeitos constroem significados, tendo uma

compreensão de linguagem enquanto interação verbal e não somente como um

sistema linguístico (PARANÁ, 2008).

O documento sugere, ainda, que o ensino aconteça por meio do estudo de

diferentes textos e que possibilite o aprendizado das diferentes dimensões do

aprendizado: leitura, escrita e oralidade. Sendo assim, cabe aos docentes propiciar

aos alunos o contato imediato com textos verbais ou não verbais para que estes

possam interagir socialmente, podendo haver comunicação com outros sujeitos

(PARANÁ, 2008).

Em consonância com os pressupostos até aqui apresentados, essa pesquisa

está fundamentalmente ancorada nos estudos do interacionismo sociodiscursivo

(ISD) que defende que o desenvolvimento humano acontece através das práticas

discursivas ou eventos comunicativos dos quais o ser humano participa

(BRONCKART, 2006).

Na abordagem interacionista sociodiscursiva, as atividades de linguagem têm

caráter central pois são elas que permitem que os indivíduos ajam e construam

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247

representações sobre o mundo (BRONCKART, 1999). Sendo assim, a assimilação

de gêneros discursivos corrobora para a socialização do indivíduo bem como sua

“inserção prática nas atividades comunicativas humanas” (BRONCKART, 1999, p.

103).

O ISD recupera em sua base teórica as proposições de Bakhtin acerca do

gênero discursivo e seu caráter eminentemente social. Também, dá continuidade

aos estudos vygotskianos para os quais a linguagem é um sistema simbólico comum

a todos os grupos sociais, tendo, portanto, um papel fundamental na constituição do

pensamento, possibilitando a conceitualização e a organização do real (SOARES,

2006).Desse modo, as práticas de linguagem desenvolvidas no quadro social “são

de extrema importância, pois são elas que conduzem o desenvolvimento humano na

direção de um pensamento consciente” (PONTARA, MIQUELENTE, CRISTOVÃO,

2013, p. 82).

Para Dolz, Noverraz e Schneuwy (2004, p. 97), o ensino de gênero por meio de

uma SD tem a “finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto,

permitindo-lhe assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada

situação de comunicação”, ou, no nosso caso, motivar os alunos a compreender e

interagir com o gênero canção em sua vida social, tentando atribuir significados que

vão além do gênero em si.Ao ser tomado como objeto de ensino, os gêneros

textuais corroboram para a construção de “conhecimentos linguísticos-discursivos

necessários para as práticas de linguagem em sala de aula” (STUTZ; BIAZY, 2007,

p. 1231) e também necessários para a formação social do indivíduo fora da esfera

escolar.

Para a transposição didática de gêneros para a esfera escolar, os autores

propõem duas ferramentas de ensino: modelos didáticos do gênero e a sequência

didática (SD). No subprojeto PIBID-Inglês os alunos não utilizaram a ferramenta

modelo didático, pois o gênero canção comporta diferentes facetas e estilos, sendo

difícil buscar uma caracterização ou especificidade pertinente ao gênero em si.

Buscou-se, no entanto, observar as capacidades de linguagem ensináveis das

canções que estavam sendo tomadas como objeto de ensino.

A respeito da SD de gêneros, Dolz e Schnewyly (2004) a descrevem como uma

sequência de módulos de ensino, organizados conjuntamente para melhorar uma

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248

determinada prática de linguagem, sendo divididas nas seguintes etapas:

apresentação da situação; produção inicial; módulos; e produção final.

A etapa da apresentação da situação corresponde ao momento em que os

alunos são apresentados a situações de linguagem envolvendo o gênero a ser

trabalhado e a um projeto de classe, definindo claramente o que será feito qual

gênero a ser trabalhado, quem serão os interlocutores, em que suporte/local a

produção irá assumir, e assim por diante.

Passa-se, então, à produção inicial cuja finalidade é diagnóstica, pois é o

momento em que os alunos elaboram um primeiro texto oral ou escrito. Os módulos

ou oficinas são as atividades ou exercícios elaborados para levar os alunos ao

desenvolvimento de capacidades de linguagem concernentes ao gênero em foco.

Em seguida, na produção final o aluno tem a oportunidade de mostrar aquilo que de

fato conseguiu apreender.

As capacidades de linguagem (CL) foram divididas didaticamente em três

dimensões: 41

Quadro 1. Capacidades de linguagem

CAPACIDADES DE AÇÃO CAPACIDADES DISCURSIVAS CAPACIDADES LINGUÍSTICO-DISCURSIVAS

Capacidades relativas ao contexto de produção que permitem a apreensão do gênero.

Conhecimentos relativos a organização do texto.

Conhecimentos relacionados ao Dominicio das operações de linguagem

Pode ser trabalhada por meio de atividades que explorem o enunciador; destinatário; assunto; data e local de produção; finalidade; adequação a situação de comunicação; relação dos vocabulários com aspectos culturais/sociais, etc.

Pode ser desenvolvida por meio de atividades de reconhecimento da organização (o que o texto traz visualmente); características que evidenciem grau de proximidade do locutor com o destinatário; entender a função da organização do conteúdo naquele texto; perceber a diferença entre formas de organização diversas.

Pode ser desenvolvido por meio de atividades que explorem elementos linguísticos e sua função no texto; entender as vozes que falam no texto; identificar a relação entre sentenças, enunciados, etc. Dominar operações de coesão, coerência, etc.

VER CRISTOVAO; CANATO; PETRECHE; SANTOS 2010

As capacidades de ação relativas ao gênero canção possibilitam ao aluno

realizar inferências acerca da esfera de circulação, a quem se dirige, data e ano de

publicação e/ou lançamento da canção, razões que acarretaram em sua produção.

41

CRISTOVÃO E STUTZ (2011) propõem uma quarta capacidade, a de significação, no entanto, está não está inserida nos materiais elaboradas e nem será considerada como critério de análise, haja vista que as SDs analisadas nesta pesquisa não puderam contemplar atividades que buscavam mobilizar esta capacidade.

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249

As capacidades discursivas permitem que o aluno compreenda a organização

da canção suas estrofes, disposição dos versos, os discursos e sequências

empregados pelo autor.

As capacidades linguísticos-discursivas proporcionam a apreensão de

elementos/configurações linguísticas a fim de expandir o vocabulário dos alunos,

entender as escolhas linguísticas do autor da canção e seu encadeamento de

enunciados. As atividades que englobam as SD elaboradas pelos alunos-bolsistas

foram elaboradas tendo em vista o desenvolvimento de CL, as quais serão

apresentadas em nossas análises

O GÊNERO CANÇÃO E O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA

A escolha do gênero canção para direcionar o projeto PIBID-Inglês já citado

deu-se devido a sua grande relevância no ensino de línguas por ser um gênero

presente na realidade dos alunos das escolas públicas parceiras do projeto. Em

suas respostas a um questionário usado para identificar suas preferências musicais

os alunos afirmaram gostas de ouvir canções sem inglês. Além disso, o trabalho com

o gênero canção pode possibilitar o aprendizado das quatro habilidades

concernentes ao ensino de línguas estrangeiras: listening, speaking, writing e

reading (CARVALHO, ANDRADE, EUSTÁQUIO, 2013).

Além dessas habilidades essenciais para a comunicação, o trabalho com esse

gênero foi considerado adequado para proporcionar ao aluno o desenvolvimento de

capacidades de linguagem. Além de ser consoante com a proposta das DCEs de

promover um ensino que forme cidadãos críticos, capazes de agir em sociedade,

tendo em vista que o trabalho com o gênero canção possibilita o diálogo com a

história, cultura, arte e sociedade.

Ao discorrer sobre o gênero canção, Costa (2005), assevera que a canção é

um gênero múltiplo o qual possui tanto a linguagem verbal quanto a musical. Sendo

assim, ao ser levado para a sala de aula, deve abordar tanto as dimensões da

oralidade quanto da escrita. Ademais, há diferentes estilos musicais presentes na

nossa sociedade e que, influenciados por determinados ambientes, alguns estilos

apresentam diferentes funções sociais. O hip hop, por exemplo, segundo Souza

(2014, p. 22), em sua essência, pode ser ferramenta para “denunciar problemas

sociais como violência, pobreza, drogas”, dentre outros.

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250

No ambiente escolar, o ensino do gênero canção pode levar os alunos a

refletirem sobre as diferenças culturais e questões sociais, fazendo inferências sobre

as escolhas do autor, sem perder de vista o contexto de produção da canção. Ao

discutir sobre o uso de canção no ensino de inglês, Carvalho, Andrade e Eustáquio

(2013, p. 2) acreditam que

Pode se revelar uma eficiente ferramenta de ensino, desmistificando o conceito de que aprendizagem só pode ser construída por meio de métodos tradicionais de transmissão de conhecimento e ampliando as possibilidades de construção da aprendizagem através do lazer e do ócio criativo.

Ao trabalhar com canções em sala de aula, especialmente ao utilizar os textos

de canções populares, de acordo com Papa e Lantorno (1986), o professor de

Língua Estrangeira estaria engajando-se em práticas múltiplas, como: apresentação

de aspectos mais importantes da cultura estrangeira; revisão de vocabulário

conhecido, práticas de expressões rítmicas, apresentação de estruturas novas em

contextos significativos, reforço de estruturas que os alunos já conhecem,

construção de vocabulário e práticas de habilidades linguísticas.

Corroborando estes apontamentos sobre o ensino de inglês com canção e os

preceitos do ISD, os participantes do projeto PIBID-Inglês elaboraram SD como

forma de se explorar a canção tanto com objetivos instrumentais como educacionais.

Desse modo, apresentamos a seguir o contexto no qual esta pesquisa foi realizada,

bem como nossos procedimentos metodológicos.

METODOLOGIA

O contexto e dados de pesquisa

As SD foram desenvolvidas no subprojeto PIBID Inglês da Universidade

Estadual do Norte do Paraná por meio de um processo colaborativo entre vinte e

dois alunos de iniciação à docência, quatro supervisoras – professoras das escolas

parceiras do projeto e duas coordenadoras, docentes do curto de Letras da mesma

universidade. O subprojeto PIBID Inglês busca a integração de professores em

serviço e futuros professores de língua inglesa como parceiros no processo de

investigação, desenvolvimento e aplicação dos conhecimentos teóricos e práticos,

em um movimento de ação, reflexão e ação.

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T E X T O S C O M P L E T O S

251

Assim, para elaboração das SD foram realizadas leituras concernentes ao

trabalho com o gênero canção em sala de aula (SOUZA,2014); das Diretrizes

Curriculares Estaduais para o ensino de Línguas Estrangeiras Modernas DCE-LEM

(PARANÁ, 2008); estudos sobre concepções teóricas que tomam os gêneros de

textos como mediadores da interação humana através da linguagem

(MARCUSCHI,2005; BAKHTIN, M. 2003) e estudos que preconizam o trabalho com

gêneros por meio de SD (SCHNEUWLY, 1994; DOLZ, 2012).

Ao longo do desenvolvimento do projeto do ano de dois mil e quinze, os alunos

das escolas participantes estudariam uma canção em comum a fim de participarem

de uma competição musical entre escolas ao final do processo de intervenção nas

escolas. Para atingir esse objetivo, as ações do projeto consistem em leituras dos

teóricos acima mencionados, elaboração das SD levando em consideração as

necessidades educacionais dos alunos das escolas públicas, bem como faixa etária

e nível de inglês e intervenção escolar a fim de preparar os alunos para uma

competição musical entre escolas estaduais do município de Cornélio Procópio.

As SD elaboradas tinham como objetivos desenvolver nos alunos as

capacidades de linguagem apresentadas pelo ISD: capacidades de ação,

capacidades discursivas e capacidades linguístico-discursivas.

Para analisarmos as atividades presentes nas SD, apoiaremos em três

parâmetros. Primeiramente, comentaremos os títulos dados as SD, as canções

trabalhadas e os objetivos de ensino. Posteriormente, buscaremos identificar nas SD

determinados padrões organizacionais, por exemplo, analisaremos se as SD

apresentam título, se as atividades estão divididas em módulos, se exploram a

oralidade, ou seja, nos atentaremos a aspectos estruturais (DOLZ; NOVERRAZ;

SCHNEUWLY, 2013). Em seguida, analisaremos as capacidades de linguagem

mobilizadas em cada atividade a fim de identificarmos aquelas predominantes em

cada SD e traçarmos um panorama.

Analisaremos sete sequências didáticas identificadas pelas abreviações SD1,

SD2, SD3, SD4, SD5, SD6 e SD7. A seguir, apresentamos nossas análises e

discussão dos resultados.

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252

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Inicialmente, organizamos as SD de acordo com seus títulos, quando

mencionados, canção explorada e objetivos de ensino explicitados, conforme o

quadro a seguir:

Quadro 2. Panorama geral das SD

TÍTULOS CANÇÕES OBJETIVOS DE ENSINO

SD1. Não mencionado.

1. Wake Me Up – Aviciii

● Apresentar a história do gênero música ● Trabalhar listening

SD2 Young Dreamers

2. Wake Me Up-Aviciii

● Motivar a aprendizagem da Língua Inglesa ● Enriquecer o vocabulário dos alunos através da música ● Avaliar o aprendizado dos alunos

SD3. Não mencionado.

3. See you Again – Wiz Khalifa

● Identificar as características do gênero música; ● Compreender as estruturas linguísticas e funcionais, além da esfera de circulação do Gênero música; ● Aprimorar a oralidade dos alunos.

SD 4 - Working on empathy

4. Hey Brother- Aviicii

● Desvendamento dos alunos acerca do tema empatia ● Exercício da oralidade

SD 5 Feel the magic

5. Magic – Cold Play

● Impulsionar e fomentar discussão sobre possíveis sentidos de magia; ● Apresentar contrapontos a fim de desconstruir alguns paradigmas sobre o sentido da palavra “magia”. ● Apresentar o contexto de produção da música a ser trabalhada; ● Apresentar a estrutura do gênero música; ● Desenvolver a oralidade por meio da letra da música. ● Enriquecer o vocabulário dos alunos; ● Aprimorar habilidades como listening, writing, reading, speaking; ● Estimular o espírito competitivo. ● Trabalhar com a organização de sentenças

SD 6 Save me 6. Crazy- Simple Plan

● Avaliar o conhecimento prévio dos alunos sobre os estilos musicais e a banda Simple Plan. ● Desenvolver a oralidade através do gênero música. ● Instigar a competitividade através de atividades que envolvam o gênero música. ● Apresentar o contexto da banda Simple Plan, bem como a música Crazy. ● Construir o pensamento crítico dos alunos

SD 7 We are the champions !!!

7. Hall Of Fame- The Scrip

● Reconhecimento dos cantores, banda, contexto de produção, curiosidades. ● Reconhecer o vocabulário da música, compreender através do clipe o que a música diz.

Observamos que nem todas as SD apresentam título. Quanto aos objetivos de

ensino, é importante mencionar que algumas SD trazem objetivos gerais, no início

Anais do SIDIALE

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253

das SD mostrando o que buscou desenvolver nos alunos das escolas públicas.

Outras SD, não apresentam objetivos no início e sim a cada novo módulo.

Observamos, ainda, nos objetivos, a dificuldades de alguns pibidianos em

padronizar os objetivos, pois ora começavam os objetivos com verbo, ora com

substantivo. Os objetivos deveriam ser elaborados tendo em vista o aluno, em

alguns momentos, os elaboradores descrevem como objetivos daquela aula, o que

será feito como aprimorar a oralidade dos alunos.

Após elencamos as informações gerais das SD, realizamos um levantamento

afim de identificarmos os itens que compõem sua arquitetura interna. Desse modo,

identificamos categorias como módulos, objetivos, organização, orientação ao

professor, foco na oralidade. O quadro abaixo sintetiza as informações encontradas:

Quadro 3. Panorama geral das SD

ITENS IDENTIFICADOS SDS TOTAL

Título SD4; SD5; SD6; SD7 4

Subtítulos SD4; SD2 2

Objetivo geral SD1; SD3; SD5; SD6 4

Objetivos específicos SD2; SD7; 1

Módulos SD1; SD2; SD3; SD5; SD6; SD7 5

Orientações ao professor SD2; SD3; SD5 2

Foco na oralidade SD1; SD3; SD4, SD5; SD6 5

Organização por temas SD6 1

Para este trabalho, devido à restrição de número de páginas e à extensão dos

dados, apresentaremos quadros de análise de duas SD. Para tanto, selecionamos

as SD 2 e a SD 5 por apresentarem entre si um contraste na exploração de

capacidades de linguagem. Em seguida, apresentaremos resultados gerais das sete

SD que foram analisadas ao longo do processo de pesquisa, a fim de traçarmos

considerações gerais do estudo.

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254

SEQUÊNCIA DIDÁTICA 2

A SD2 foi elaborada para uma turma de 2° ano do Ensino Médio e está dividida

em módulos, sendo que a divisão de conteúdos está separada pelas expressões

primeira aula, segunda aula e terceira aula. Há dez atividades divididas entre

atividades de vídeo, dinâmicas, questões orais, atividades em grupos e atividades

expositivas. Não há atividade de escrita e sim um exercício de assinale de

informações sobre o contexto de produção da canção.

As atividades desenvolvidas são predominantemente expositivas, assim, ao

longo da SD, há subtópicos com explicações sobre o passo a passo que o professor

deve seguir nas aulas, contendo nome da atividade a ser realizada, por exemplo:

apresentação de um vídeo sobre a evolução da canção, dinâmica, e assim por

diante. Além disso, em cada um desses subtópicos há explicação objetiva do como

realizar as atividades e de como explicar o conteúdo aos alunos.

Há, ainda, na parte introdutória, o tópico Conteúdo, onde está escrito Gênero

música. Além disso, os objetivos de aprendizagem estão bastante claros: a) motivar

a aprendizagem da língua inglesa; b) enriquecer o vocabulário dos alunos através da

música; e c) avaliar os alunos através das atividades propostas.

Essa SD não apresenta atividades variadas para se trabalhar com as

diferentes capacidades de linguagem, predominando o trabalho com as capacidades

de ação. Há uma atividade que explora a função discursiva de determinado

elemento na canção e outra que explora o signo linguístico (CLD) de forma mais

contextualizada. Isso mostra que os pibidianos deram ênfase maior no trabalho com

questões contextuais da canção. Quanto a oralidade, habilidade ainda pouco

explorada no contexto público de ensino no Brasil (FABRÍCIO, 2015; RAMOS;

SILVA, 2013; MARZARI; BADKE, 2013), e que é o foco do programa, esta não foi

mobilizada.

Quadro 4. SD2 Capacidades de linguagem e outros conhecimentos privilegiados

ATIVIDADADES CAPACIDADE DE LINGAGEM PRIVILEGIADA

OUTROS CONHECIMENTOS/HABILIDADES

PRIVILEGIADAS

1. Apresentação de vídeo sobre a evolução da canção no tempo

CA

2. Dinâmica de papéis contendo minibiografias para que os grupos adivinhem a banda.

CA

3. Apresentação do vídeo anterior com legenda. Os alunos devem identificar as

CA

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bandas e épocas.

4. Conversa informal a respeito de música eletrônica

CA

5. Apresentação da biografia do cantor Aviicii.

CA

6. Atividade de “time line” (organizar frases)

CD

7. Apresentação de três canções para que os alunos identifiquem o cantor

CA

8. Apresentação da canção estudada e perguntas sobre as impressões dos alunos e seu conhecimento sobre a canção.

CA

9. Apresentação do contexto de produção da canção seguido de perguntas sobre o ano de lançamento e estilo.

CA

10. Apresentação do clipe da canção e exploração e sua temática.

CLD

SEQUÊNCIA DIDÁTICA 5

Na SD 5 o trabalho foi desenvolvido a partir da canção Magic , da banda Cold

Play. Logo no início há a apresentação dos objetivos de ensino. Após a

apresentação dos objetivos, há o título Feel the magic seguido de uma imagem. A

SD está organizada em seis módulos e contém vinte e uma atividades no total. Os

pibidianos que elaboraram essa SD deram especial atenção às diferentes

capacidades de linguagem.

As atividades possuem uma clara organização e em cada módulo as atividades

têm um foco diferente, apresentando um título que corresponde ao foco que será

dado, por exemplo: Let’s work, Let’s improve your vocabulary, entre outros. Além

disso, abaixo de cada tópico é apresentada metodologia, explicando o passo a

passo que irão seguir em cada um dos módulos bem como os materiais/recursos

didáticos que usarão para a aula.

As atividades que compõem a SD são bastante variadas: há atividades de

vídeos; dinâmicas; games; questões escritas; leitura de textos; mobilização do

vocabulário da canção. Há, ainda, orientações claras para a realização de cada

atividade.

Visando explorar a produção oral, assim como nas demais SD, há atividade de

tongue twister. Há, também, uma atividade de perguntas em inglês sobre a canção,

mas não explicita se os alunos deveriam responder em inglês.

Identificamos que essa SD buscou englobar as diferentes capacidades de

linguagem sendo que há oito atividades que mobilizam capacidades de ação, quatro

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256

de capacidades discursivas e sete linguístico discursivas. A SD apresenta uma

coerência interna, pois conseguiu propor atividades coerentes aos objetivos

previamente apresentados, como vemos o quadro abaixo:

Quadro 5. SD5 Capacidades de linguagem e outros conhecimentos privilegiados

ATIVIDADES CAPACIDADE DE LINGUAGEM

PRIVILEGIADA

OUTROS CONHECIMENTOS/HABILI-

DADES PRIVILEGIADAS

1. Apresentação de vídeo de mágicos e truques de mágicos reconhecidos para identificar o conceito de mágica dos alunos.

CA

2. Leitura de texto sobre magia. CA

3. Atividade de Materializar o conceito de magia em um cartaz.

CA

4. Apresentação de slides sobre o conceito de magia retirado do dicionário

CA

5. Apresentação da banda Coldplay através de slides 6. Jogo de perguntas e respostas sobre a banda. 7. Apresentação do clipe da canção para discussão.

CA

8. Leitura de texto sobre a banda seguido de perguntas sobre o texto.

CA

9. Apresentação da sinopse do videoclipe e da letra da canção para compreensão da mensagem da canção

CLD; CA

10. Complete as lacunas com informações da canção Ex: Magic is a song about _______.

CLD

11. Complete com base nas informações da sinopse.

CLD

12. Pergunta sobre o que acharam da canção e se o clipe está relacionado à sua letra.

CA; CLD

13. Perguntas sobre a estrutura da canção CD

14. Atividade de organizar trechos da canção. CD

15. Atividade de substituição de imagens por palavras da canção.

CLD

16. Dinâmica em que os alunos ouvem a letra da canção e selecionam maior números de palavras presentes.

Compreensão oral

17. Tongue twister Prática de produção e compreensão oral

18. Crossword. CLD

19. Dinâmica de bexigas para formar frases com as palavras da canção

CD

20. Atividade de colocar frase da canção em ordem enquanto ouve

CD

21. Dinâmicas: Telefone sem fio, dança da cadeira; campo minado, todos envolvendo palavras ou frases da canção.

CLD

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257

Com base nos resultados alcançados, pudemos perceber que nas atividades

que compõem as SD há predominância de capacidades de ação, sendo 51% das

atividades, ou seja, a maioria delas enfatiza aspectos contextuais, trabalhando a

evolução do gênero canção, o contexto de produção da canção, quem/quando/onde

a produziu, a temática, local de circulação, além de considerar o conhecimento

prévio dos alunos e as representações que eles constroem sobre determinado

assunto.

Ocupando uma posição intermediária, as capacidades linguístico-discursivas

são 40% das atividades trabalhadas e voltam-se para o reconhecimento de aspectos

linguísticos do gênero canção. Vale ressaltar que a escolha das canções privilegiou

aquelas cuja temática fosse relevante para o ensino e apresentasse elementos

linguísticos significativos, pois não podemos perder de vista que o papel do

professor de língua estrangeira é também ensinar questões linguísticas. Além disso,

as canções foram selecionadas levando em consideração a faixa etária, gosto e

nível de dificuldade dos alunos, portanto apresentavam aspectos linguísticos os

quais atendiam esses critérios.

As capacidades discursivas ocupam menor frequência nas atividades, sendo

9% das atividades, pois apenas algumas SD apresentam atividades que exploram o

conhecimento sobre a organização da canção. Acreditamos que isso pode ter

acontecido pelo gênero canção englobar diferentes organizações textuais, embora

encontrem algumas similaridades, e os pibidianos podem ter sentido dificuldades em

trabalhar essa capacidade.

Algumas atividades que mobilizaram a CD não compreendem o gênero no

todo, mas sim excertos da canção os quais os alunos deveriam colocar em ordem,

ou seja, o aluno também precisava mobilizar conhecimentos linguístico-discursivos

para a realização da tarefa. É importante colocar que não há necessidade de tomar

as CL de forma isolada, é valido que ao trabalho a cada módulo sempre recupere

outras capacidades já trabalhadas.

O gráfico a seguir permite uma melhor visualização das capacidades de

linguagem mobilizadas nas sete SD analisadas.

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258

Gráfico 1: Percentual de capacidades de linguagem nos dados

Quanto à configuração geral das SD, observamos dificuldades e alguns

pibidianos em trabalhar a oralidade baseando-se na própria letra da canção, haja

vista que esse era o foco do projeto. Quando há atividades que trabalham a

oralidade, em algumas SD são descontextualizadas, fazendo uso de tongue twister.

Embora este seja descontextualizada, ou seja, não trabalha a oralidade com base na

letra da canção, mostra-se uma importante ferramenta para o desenvolvimento da

pronuncia das palavras e o connect speech. Observamos igualmente que algumas

SD possuem deficiência na coerência interna, pois apresentam objetivos que

pretender atingir no trabalho, mas não propõem atividades visando atingir tais

objetivos.

Constatamos que seis SD estão organizadas em módulos, mas nem todas

apresentam uma progressão de conteúdo, isto é, não há um módulo específico para

capacidades de ação, ou discursiva ou linguístico discursivas, os módulos

apresentam diferentes atividades que englobam diferentes CL. Isso é bastante

positivo, haja vista que as capacidades de linguagem devem ser exploradas

conjuntamente.

CONCLUSÃO

A análise das SD possibilitou investigarmos o processo de transposição

didática realizado pelos pibidianos, a partir de estudos teóricos do ISD e a

pensarmos em quais conhecimentos devem ser aprofundados nas próximas

elaborações coletivas. Podemos apontar a necessidade de exploração de

capacidades linguístico-discursivas, o reconhecimento da estrutura organizacional

do gênero e, principalmente, atividades com ênfase na produção oral da canção.

51% 40%

9%

Capacidades de Linguagem

Capcidades de açãoCapacidades DiscursivasCapacidades linguístico-discursivas

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259

A organização das SD está adequada à organização proposta por Dolz e

Schneuwly (2013) pois, embora não haja produção inicial, há módulos que exploram

as capacidades de linguagem relativas ao gênero.

É preciso ressaltar ainda que o processo de elaboração do material foi afeado

pela greve que as escolas estaduais enfrentavam na época, pois houve atraso no

calendário escolar, interferindo diretamente na intervenção didática nas escolas.

Sendo assim, a produção final, a qual deveria ter sido realizada, isto é, uma

competição musical entre as escolas parceiras do subprojeto, teve de ser realizada

separadamente em cada turma.

As SD enfatizam o trabalho com capacidades de ação, havendo um número

maior de atividades que mobilizam aspectos relativos ao contexto de produção, à

mobilização do conhecimento prévio e do meio de circulação do gênero.

Ademais, observamos a carência de atividades que mobilizem capacidades

discursivas, de reconhecimento da organização do gênero canção (estrofe, versos e

rimas).

Quanto às capacidades linguístico-discursivas, estas também foram bastante

enfatizadas, o que demonstra a preocupação dos pibidianos em propiciar aos alunos

o conhecimento de algumas estruturas linguísticas da canção estudada e sua função

no texto, sendo trabalhadas de maneira contextualizada, sempre partindo da letra da

canção.

Há atividades que não mobilizaram capacidades de linguagem, mas sim outros

conhecimentos igualmente relevantes para o ensino como compreensão e produção

oral, leitura e interpretação de textos verbais e não verbais. Estas não foram

classificadas como atividades mobilizadoras de CL por terem sido apresentadas de

forma descontextualizada.

No que diz respeito à organização geral das SD, identificamos dificuldades no

trabalho com a oralidade partindo do próprio gênero canção, pois ainda há poucas

atividades de produção oral, haja vista que o objetivo final do projeto é uma

competição musical, a qual foi modificada devido ao pouco tempo de

desenvolvimento das atividades em virtude das condições do contexto.

Com este trabalho buscamos investigar o material elaborado para o ensino de

língua inglesa de escolas públicas de Cornélio Procópio – PR no ano de dois mil e

quinze e verificar em que medida este pode contribuir para o desenvolvimento de

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260

capacidades de linguagem dos alunos da educação básica e, bem como contribuir

para futuros processos de elaboração de materiais didáticos do subprojeto PIBID-

Inglês.

Acreditamos que o trabalho com o gênero canção por meio das SD

apresentadas contribui para o desenvolvimento de capacidades de linguagem dos

alunos, contudo o material analisado precisa ser aprimorado em relação às

capacidades de linguagem e ao desenvolvimento da oralidade.

A análise das SD possibilitou, ainda, visualizarmos o percurso desenvolvido

pelos pibidianos na elaboração do material, revelando que esse processo contribuiu

grandemente para seu desenvolvimento profissional. Algumas lacunas por nós

apontadas, justificam-se por esta ser a primeira elaboração do material didático e

primeiro contato de muitos alunos com a metodologia do ISD.

Podemos, com esta pesquisa, afirmar que, no contexto investigado, o processo

de elaboração das SD contribui para a formação inicial de professores de LI.

Acreditamos que os pibidianos, ao apropriarem da teoria e da prática proporcionadas

pelo PIBID- inglês, estes constroem novas representações acerca do ser professor.

O subprojeto contribui, ainda, para a formação continuada das professoras das

escolas participantes, que têm a oportunidade de, por meio de um projeto de ensino,

terem acesso às novas metodologias de ensino, resultando na apropriação de novos

conhecimentos e melhorias para seu trabalho docente.

Concluímos, então, que a pesquisa nos possibilitou-nos refletir sobre nossa

própria formação enquanto participante do subprojeto e como coordenadora do

subprojeto, possibilitando novos modos de agir e organizar nosso trabalho.

Esperamos contribuir com a prática de professores que utilizam SD de gêneros

no ensino de LI, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento de capacidades

de linguagem.

Por último, consideramos, em pesquisas futuras, o aprofundamento de nossos

critérios de análise a fim de refletirmos em maior profundidade acerca do papel dos

objetivos de ensino na construção de material didático no desenvolvimento docente.

REFERÊNCIAS

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Silêncio e distanciamento: a escolarização da

leitura e a (não) formação do leitor

Silence and Distancing: The Schooling of Reading and the (Non) Formation of

the Reader

Bruna Carolini Barbosa (PG – UEL/CAPES)

RESUMO: Práticas de ensino que veem a leitura como produto e não como processo têm comprometido a formação de leitores e influenciado o desempenho dos alunos em provas de avaliação nacional, bem como no próprio exercício da cidadania. Tendo em vista a necessidade em se pensar estratégias para a formação de leitores, este trabalho se propõe a discutir a escolarização da leitura por meio da análise de uma sequência de atividades propostas em sala de aula por uma professora do 7 ª ano do ensino fundamental de uma escola do campo. Iniciamos com algumas considerações sobre o ensino da leitura em uma perspectiva sociointeracionista (BAKHTIN, 1992 1995; BRONCKART, 1999), para, posteriormente, mobilizarmos algumas categorias de análise dos Estudos do Letramento (STREET, 2014) que permitirão verificar os procedimentos empregados e que culminam na pedagogização e na reprodução de uma concepção autônoma do letramento, que distancia os sujeitos da aprendizagem da língua, impedindo a construção das múltiplas leituras possíveis do texto. A análise permitiu discutir alguns agires recorrentes no encadeamento de atividades de escolarização da leitura que podem atravancar o processo de formação do leitor e a formação de sujeitos críticos. PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Estudos do Letramento. Sociointeracionismo.

INTRODUÇÃO

O ensino de língua portuguesa têm mudado significativamente nas últimas

décadas. Com a virada pragmática o objeto das aulas de Língua Portuguesa deixou

de ser exclusivamente a gramática e o texto passou a compor um papel relevante

em sala de aula, entretanto, o ensino da leitura pouco evoluiu desde então. Práticas

de ensino que encaram a leitura como produto e não como um processo têm

comprometido a formação de leitores em nosso país e influenciado no desempenho

em provas de avaliação nacional, bem como no próprio exercício da cidadania dos

sujeitos da aprendizagem.

Além de prejudicar o desempenho nas avaliações, o ensino da leitura, da

forma que ocorre, impossibilita ao aluno o encontro consigo mesmo e com os outros,

negligencia o acesso a outras possibilidades, nega a fuga da realidade que, muitas

vezes, é tão cruel. De acordo com Petit (2008, p.62), “o que está em jogo é a própria

Anais do SIDIALE

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264

identidade daqueles que se aproximam dos livros, da sua maneira de representar a

si mesmos, de tomar as rédeas de deus destinos”.

Do não conformismo com o insucesso no ensino da leitura e da necessidade

em se pensar sobre estratégias para a formação de leitores é que surge o desejo de

refletir sobre as práticas de ensino que favoreçam o sujeito da aprendizagem e o

desenvolvimento da proficiência leitora, possibilitando o acesso ao conhecimento e

participação social e a quebra do paradigma da voz única, a qual estão

predestinados os que vivem em situação de vulnerabilidade social, por exemplo; a

voz que silencia as outras vozes e distancia o sujeito de si mesmo e dos outros:

discursos, sujeitos, possibilidades e histórias.

Inciamos com algumas considerações sobre o trabalho com a leitura em sala

de aula, buscando problematizar alguns aspectos relacionados às atividades de

ensino da leitura que são comumente propostas em materiais didáticos. A partir da

reflexão sobre as características das atividades de leitura, discutiremos algumas

categorias do processo de escolarização da leitura que podem atravancar a

formação do leitor para, por fim, analisar a atividade proposta por uma professora do

7º (sétimo) ano do Ensino Fundamental de uma escola do campo.

ATIVIDADES PARA O ENSINO DA LEITURA

As atividades de ensino de leitura, geralmente, estão centradas nas

habilidades mecânicas de decodificação da escrita, deixando em segundo plano a

interação verbal. Ao que parece, são momentos em que se cumpre uma obrigação,

sem interesse ou função, em que há um claro distanciamento dos usos sociais da

leitura, o que faz com que as atividades sejam de cunho puramente escolar com

objetivos claramente voltados para a avaliação e reduzida a momentos de exercícios

como listas de questões, exposição oral em voz alta, fichas de leitura ou a famosa

“prova do livro”.

É comum que as atividades limitem-se a uma interpretação dos aspectos

literais do texto, explícitos em sua superficialidade. Solicita-se a localização de

informações em um determinado local, ignorando, assim, o processo de construção

dos sentidos. As atividades propostas não levam em conta que a compreensão é o

“produto final” do processo de compreender:

Anais do SIDIALE

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265

Uma vez que compreender é um processo construtivo, no qual os leitores buscam fazer o sentido do texto, ele acontece durante a leitura e continua muito tempo depois, enquanto o leitor reconsidera e reconstrói o que foi compreendido; assim, a compreensão pode ser modificada no curso de sua verificação. […] O que alguém sabe após uma leitura é o produto daquilo que esse alguém sabia antes mais o quão bem ele leu o texto. (GOODMAN, 33-34)

Diante disso a leitura na escola acaba por ser superficial e que não

está ambientada enquanto processo. O texto é concebido como algo acabado do

qual se extrai uma voz incontestável, decodificável e finito. É fato que a

decodificação faz parte do processo de leitura, o código é imprescindível para a

compreensão, mas como aponta Barthes (2004, p.41),

Acumulando as decodificações, já que a leitura é, de direito, infinita, tirando a trava do sentido, pondo a leitura em roda livre (o que é sua vocação estrutural), o leitor é tomado por uma inversão dialética: finalmente ele não decodifica, ele sobrecodifica; não decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: ele é essa travessia.

Cada leitura é, portanto, um processo de expansão daquilo que foi dito

anteriormente. O texto passa a ter uma perspectiva de que o outro irá expandi-lo,

passa a ser um objeto de desconstrução e não existe mais a leitura “total”, uma vez

que é impossível esgotar todas as possibilidades do texto. Enfim, o texto é uma

pauta através da qual construiremos a leitura, há sempre uma perversão da

estrutura do texto (BARTHES, 2004).

A falta de propósito para as atividades de leitura é um outro fator que deve

ser levado em conta. O caráter meramente escolarizado da leitura faz com que ela

perca sua dimensão social, ou seja, a leitura que está presente no mundo não é a

mesma que está presente em sala de aula, cria-se um distanciamento ao

desvincular o texto das práticas sociais, assumindo a leitura em uma perspectiva

autônoma, desconectada das interações entre os sujeitos na sociedade.

Um outro aspecto relacionado às atividades de leitura que merece uma

atenção especial é a fragmentação dos textos. A formação do leitor se dá por meio

do contato com diferentes gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003), contudo, ao serem

didatizados, os gêneros literários sofrem uma fragmentação que impede o

desenvolvimento de uma leitura mais longilínea, menos fragmentada. O problema

Anais do SIDIALE

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266

reside no fato de que a quantidade de fragmentos propostos nas atividades

escolares acabam não criando um efeito consistente na formação do leitor.

Há ainda outra questão que cabe ser problematizada: o caráter

historiográfico das atividades de leitura no Ensino Médio. Até o ensino fundamental a

leitura é trabalhada de forma que os aspectos históricos e/ou biográficos do autor

não são levados em conta, porém no Ensino Médio ocorre uma ruptura e uma

abordagem histórica passa a ser central nas aulas em que a literatura é o objeto de

ensino (COLOMER, 2007). O texto literário passa a ser apenas uma ferramenta para

acesso às características da época e seu caráter estético é quase totalmente

ignorado; a literatura - que poderia desenvolver a sensibilidade, torna-nos mais

compreensivos, reflexivos, críticos e abertos para novos olhares e possibilidades

diante da nossa condição humana (CÂNDIDO, 1995) - é silenciada e distanciada de

nós.

O tempo – ou a falta dele – dedicado (ou não) às atividades de leitura em

sala de aula são determinantes para a formação do leitor. Embora os documentos e

pesquisas apontem para a necessidade em se inserir os gêneros literários e não

literários em sala de aula, na prática, estes são utilizados como pretexto para o

ensino da gramática e da escrita, não há tempo destinado para os livros em sala de

aula. Silva (1986), a propósito do tempo destinado à leitura, evidencia, através de

depoimentos de alunos e professores, que a leitura é excluída das práticas em sala

de aula e, quando ocorrem, são sempre com vistas a cumprir uma determinada

atividade.

A ESCOLARIZAÇÃO DA LEITURA

A supervalorização da escola enquanto agência de formação de leitores

permite-nos pensar em um processo de escolarização da leitura. Com isso

queremos dizer que a leitura está bastante enraizada ao que se faz na escola, ou

seja, ao processo de institucionalização da leitura, que acaba exercendo influência

nas práticas de leitura que ocorrem fora da escola como, por exemplo, o prestígio de

algumas obras em detrimento à outras, ou até mesmo a necessidade em se produzir

algo após a leitura.

A escolarização da leitura permite elaborar categorias que mostram como

esse processo tem prejudicado a formação do leitor e feito com que o texto seja

Anais do SIDIALE

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267

encarado em sala de aula como algo unívoco. A primeira das categorias é o

distanciamento entre a leitura e o sujeito.

A escola leva o aluno a pensar que o texto é algo distante das práticas

sociais, não o leva a perceber que a todo momento estamos interagindo por meio da

linguagem e que ela é mediada por diversos gêneros. Nesta categoria cabe falar

também do distanciamento que se cria entre o sujeito e a Literatura pois, ao

historicizar o ensino da literatura no ensino médio, a escola faz com que o indivíduo

não crie uma identificação com o que lê.

O fato de a escola não considerar o contexto no qual está inserido o sujeito

da aprendizagem também ocasiona distanciamento, pois a leitura depende não

apenas do contexto linguístico, mas do contexto extralinguístico de sua produção e

circulação, Orlandi (1987, p.203) afirma que “não se tem procurado modificar as

condições de produção do aluno: ou ele já tem as tais condições (como as tem o

leitor ideal que é o padrão) ou ele é obrigado a decorar, imitar, repetir”, ou seja, o

ensino tem se baseado em uma postura arbitrária em relação ao aluno. O contexto

nos leva a uma outra categoria: a construção da leitura em meios iletrados.

De acordo com Petit (2009, p.22) “a leitura é uma arte que se transmite mais

do que se ensina”, essa afirmação vai ao encontro do extenso estudo etnográfico

realizado por HEATH (1982) em três comunidades distintas no sudeste dos Estados

Unidos: Tracktown, uma comunidade negra de operários, vindos recentemente da

zona rual; Roadville, uma comunidade branca de operários; e Mainstown,

representando a cultura mainstream de classe média, voltada para a escola.

A pesquisa buscava investigar o desenvolvimento da linguagem das

crianças quando elas estavam em casa em interação com os familiares, os meios de

construção de sentidos a partir dos livros e relacioná-los com a realidade, processo

este que é encarado como natural pela escola e pelos professores, enquanto, na

verdade, são comportamentos aprendidos, como comer ou sentar, por exemplo

(HEATH, 1982).

De forma mais condensada, pode-se dizer que a pesquisa de Heath (1982)

permite inferir que cada comunidade tem suas práticas discursivas e suas práticas

de letramento, com diferentes modos de aquisição e desenvolvimento da linguagem,

sem necessariamente seguir o modelo dominante reproduzido pela escola; são as

características particulares da cada comunidade que irão influir no desenvolvimento

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T E X T O S C O M P L E T O S

268

do letramento escolar das crianças: quanto maior for a proximidade entre o

letramento praticado no lar e o letramento praticado na escola, mais facilidade terá o

indivíduo em lidar com os modos de interação postulados pelo ambiente escolar.

Entretanto, essas questões não são consideradas pela escola. A avaliação

da aprendizagem dos alunos é feita de modo homogêneo, sem considerar a

heterogeneidade de experiências e os modos de fazer sentido das crianças, o que

leva ao fracasso e crescente exclusão social dos grupos minoritários. Através da

pedagogia culturalmente sensível (ERICKSON,1987), atenta aos saberes e cultura

que os alunos trazem de casa, tais danos poderiam ser evitados. Um fato

inquestionável é que as crianças de meios iletrados trazem de casa um bom

repertório oral e isso deveria ser levado em conta pela escola, por exemplo, através

da realização um trabalho com gêneros orais para uma posterior introdução à cultura

letrada.

Estamos inseridos em uma sociedade grafocêntrica em que a “linguagem

constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (Gnerre,

1998, p.22). O domínio da escrita não tem sido encarado como complementar às

práticas orais, mas como superior, em que características como raciocínio lógico;

pensamento científico; abstração, objetividade, descontextualização, analiticidade

etc., são conferidas à escrita, sustentando uma perspectiva dicotômica. Entretanto,

os letramentos estão contextualizados em práticas nas quais a escrita está presente,

mas não supera ou tem prioridade sobre as práticas orais, podendo-se dizer que a

linguagem oral é o contexto para a linguagem escrita, ou seja, uma modalidade de

linguagem não exclui a outra, mas complementam-se (MARINHO, 2003).

Outro aspecto a ser observado é a excessiva preocupação com a escrita e

a pouca atenção que se dá para o desenvolvimento da leitura” (KATO, 1999, p.6).

Essa supervalorização da escrita em detrimento à leitura, ou seja, essa visão

dicotômica que se estabelece entre os dois processos é algo incoerente com a

proposta escolar em uma perspectiva do Letramento, uma vez que essas

habilidades, embora possuam processos distintos, relacionam-se significativamente,

portanto, merecem preocupação igualitária (KATO, 1999).

A terceira categoria está relacionada ao ensino crítico da leitura. Diretamente

relacionada a ideologia, a leitura está intrinsecamente ligada ao caráter sociocultural

e às estruturas de poder na sociedade e, portanto, as práticas de ensino não podem

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T E X T O S C O M P L E T O S

269

basear-se em uma suposta neutralidade dos textos. Freire (2001) afirma que “a

leitura do mundo precede a leitura da palavra” e critica o mito da neutralidade que

leva a negação da natureza política do processo educativo.

As práticas do professor devem centrar-se na leitura enquanto mediadora

das relações sociais em diferentes contextos, partindo do conhecimento prévio e

ampliando o repertório do educando. É a leitura que garante a possibilidade de o

indivíduo agir socialmente, exercer sua cidadania, ser capaz de se posicionar

criticamente diante dos discursos e é por isso que essa postura crítica do professor

em relação ao ensino é tão importante.

Os Procedimentos de ensino, outra categoria relacionada ao ensino da

leitura, diz respeito ao modo que professor e alunos estão engajados nos eventos de

leitura em sala de aula, ou seja, se o agir docente possibilita a participação dos

alunos na construção dos sentidos do texto ou se há apenas instruções por parte do

professor, reforçando uma relação de hierarquia, autoridade e controle.

Quando apenas transmite conteúdos, o professor está negando ao aluno a

chance de que ele construa criticidade e desenvolva uma postura reflexiva a qual

poderá, inclusive, aplicar em outras leituras, de texto e de mundo. Na visão de Paulo

Freire (1987), o professor deve estar a serviço da libertação, o que nos leva a um

pensamento fundamental para o autor: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a

si mesmo, os homens educam-se entre si, mediatizados pelo mundo”. O professor

aprende com o aluno e o aluno aprende com o professor. A relação é horizontal e

de autoridade, mas não autoritária, e sim problematizadora, sempre partindo do

diálogo.

ANÁLISE DA ATIVIDADE DE LEITURA

A atividade proposta pela professa para uma turma de 7º (sétimo) ano do

Ensino Fundamental de uma escola do campo consiste em uma lista de questões

referentes ao poema “Cidadezinha”, do autor Mário Quintana:

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T E X T O S C O M P L E T O S

270

ATIVIDADE DE LEITURA “CIDADEZINHA”

Cidadezinha (Mario Quintana)

Cidadezinha cheia de graça...

Tão pequenina que até causa dó...

Com seus burricos a pastar na praça... Sua igrejinha de uma torre só...

Nuvens que vêm, nuvens e asas, Não param nunca, nem um segundo... E fica a torre, sobre as velhas casas,

Fica cismando como é vasto o mundo! Eu que de longe venho perdido, Sem pouso fixo (a triste sina!),

Ah quem me dera ter lá nascido! Lá toda a vida poder morar!

Cidadezinha... Tão pequenina Que toda cabe num só olhar!

Atividade

Conhecendo o texto Nas questõe 1 e 2, assinale a opção que melhor explique o significado que a palavra sublinhada tem no texto. 1) “Cidadezinha cheia de graça...” a- ( ) divertimento b- ( )festa c- ( ) encanto 2) “Fica cismando como é vasto o mundo.” a- ( ) pensando b- ( ) declarando c- ( ) desconfiando 3) Retire da primeira estrofe do poema dois versos que retratam o ambiente da cidadezinha. 4) Copie do texto os versos que comprovam que o poeta não nasceu naquela cidadezinha. 5) Por qual motivo podemos afirmar que o texto “Cidadezinha” trata-se de uma descrição? 6) Transforme em superlativos:

pequenina

perdido 7) Cite três substantivos. 8) Cite três adjetivos.

Como é possível verificar na leitura da atividade, as questões destinam-se à

localização de informações gramaticais no texto (“cite três substantivos”, “cite três

adjetivos”), bem como na significação de palavras isoladas, como solicitado nos

exercícios 1 e 2. Os exercícios 3 e 4 também restringem-se à localização de

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T E X T O S C O M P L E T O S

271

informações. Podemos afirmar que a atividade fica restrita à decodificação da

superfície do texto, não chegando à leitura das entrelinhas, do seu nível discursivo.

O texto que serve de base para as questões é um poema que se propõe a

descrever uma cidadezinha, bucólica e pequena, como o próprio título sugere. A

descrição tem um tom apreciativo e de valoração positiva do lugar, com vocabulário

simples e que possibilitaria uma rica discussão sobre as semelhanças que o lugar

descrito mantém com o contexto no qual os alunos estão inseridos, haja visto que a

escola fica em um pequeno distrito no Norte do Paraná.

Permitir aos alunos a exposição das leituras construídas por eles os levaria a

uma maior aproximação da linguagem, no entanto, foi dado ao poema, por meio da

atividade, um caráter meramente didático e que contempla apenas os aspectos

estruturais da língua, reproduzindo, assim, o que Street (2014) chamou de

letramento autônomo.

Ao não estimular a construção de sentidos e ao validar apenas as aspecto

microestruturais do texto o aprendizado da leitura fica comprometido, uma vez que

as leituras possíveis levantadas pelos alunos não têm espaço, uma vez que só a voz

do autor e da professora é validada, não proporcionando um evento de leitura

formativo e relacionado às experiências de vida do leitor, levando ao “círculo vicioso

do silencio” (FREIRE, 1982).

PARA (NÃO) CONCLUIR

As questões levantadas nesse artigo permitiram compreender porque a

escola tem pouca influência no desenvolvimento do gosto pela leitura, uma vez que

a escolarização acaba por criar os distanciamentos os quais categorizamos no

tópico três. O não reconhecimento da identidade do aluno e do contexto no qual está

inserido faz com que os sentidos que ele é capaz de construir não sejam legitimados

pela escola.

Além das dificuldades já apontadas neste trabalho, outras constatações são

relevantes e prejudicam a formação de leitores, a saber, a falta de familiaridade de

muitos professores com o acervo, bem como formação inicial e continuada

precárias, o que impede que ele perceba as ideologias subjacentes aos textos e não

disponha de estratégias para a leitura das entrelinhas. Há também um

descompromisso dos professores de outras disciplinas com o ensino da leitura e

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T E X T O S C O M P L E T O S

272

uma acomodação de uma grande parte dos professores que ocupam-se apenas em

cumprir o conteúdo do livro didático, que nem sempre atende à complexa

heterogeneidade de contextos do nosso país.

As práticas de ensino de leitura não possibilitam a discussão sobre os

sentidos do texto, sobre interpretações alternativas, ou sobre como a própria

professora chega a sua conclusão sobre os sentidos. O que parece é que o objetivo

é obter o controle e a autoridade sobre os sentidos do texto e não problematizá-los.

Não há finitude quando falamos em leitura. Todas as considerações são

sempre um ponto de partida para o ensino, para a formação do leitor, para as

inúmeras possibilidades para um outro tempo: o tempo de ler. Quando lemos,

rompemos com a lógica dominante e imposta que faz com que nos adaptemos ao

tempo do outro. A escola precisa ajustar seu relógio ao tempo da leitura, enquanto

processo, construção e desconstrução de si, dos outros e do mundo.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARTHES, R. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CÂNDIDO, A. O direito à literatura. In. Vários escritos, 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global editora, 2007. ERICKSON, F. Transformation and school succes: the politics and culture of educational achievement. Anthropology & Education Quarterly. v. 18 (4), 1987. p. 335-56. FREIRE, P. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 2001. ______ . Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. ; GUIMARÃES, S. Sobre Educação (Diálogos). Rio de Janeiro : Paz é Terra, 1982. GOODMAN, K. Unidade na leitura – um modelo psicolinguístico. Letras de hoje. Porto Alegre, v.26, p. 9-31, dezembro 1991.

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273

GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1991. HEATH, S. B. What no bedtime story means. Narrative skills at home and school. Language in Society, 11(2): 49-76, 1982. KATO, Mary. O aprendizado da leitura. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MARINHO, Marildes. Letramento: a criação de um neologismo e a construção de um conceito. In. MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (Org.) Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: UFMG, 2010. ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1987. PETIT, M. A arte de ler ou como resistir à adversidade. Tradução de Arthur Bueno e Camila Boldrini. São Paulo: Editora 34, 2009. ______ . Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora 34, 2008. SILVA, L. L. M. da. A escolarização do leitor: a didática da destruição da leitura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.

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274

Uma análise estilística de músicas da MPB: o

desvio estilístico e sua expressividade

A stylistic analysis of mpb music: diversion stylistic and its expressiveness

Nathalia de Souza Toncovitch (UENP/CCP – G)

Gabriela Pepis Belinelli (UENP/CCP-G)

Lívia Maria Turra Bassetto (UENP/CCP – PQ)

RESUMO: Esta pesquisa é fruto de um trabalho desenvolvido na disciplina de Estilística da Língua Portuguesa, no segundo ano do programa de graduação em Letras Português/Inglês da Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus de Cornélio Procópio. Este trabalho tem como objetivo a análise estilística de músicas da MPB, considerando as ambiguidades propostas pelos desvios estilísticos presentes nas músicas, destacando-se a sua importância expressiva para a totalidade poética da representação em questão. A escolha das músicas foi pautada, em sua maioria, além da segregação do estilo MPB, pelas temáticas consonantes e pela distinção entre os períodos de produção. Visando transparecer as possibilidades que este estilo musical suporta, foram selecionadas as músicas Cor de marte, do duo tocantinense ANAVITORIA, que, pelos arranjos musicais, é considerado como um representante da “MPB contemporânea”; Estrela, Estrela, do gaúcho Vítor Ramil; Estrela, do consagrado Oswaldo Montenegro; e, distinta da temática astronômica, Como Nossos Pais, composição de Belchior, interpretada por Elis Regina, com o intuito de refletir sobre as canções de protestos, próprias do período da Ditadura Militar Brasileira. Para isso, recorre-se à teoria estilística, atentando especificamente para os conceitos de desvio estilístico e expressividade, de modo a destacar, de modo geral, características do gênero musical em questão. PALAVRAS-CHAVE: Análise Estilística. Desvio Estilístico. Canções da MPB.

O DESVIO ESTILÍSTICO

Dentro da estilística há uma concepção que defende que o falante ou autor

obtém possibilidades de certos “lapsos” em relação à norma vigente em função da

manifestação de certa expressividade, e, com isso, é capaz de criar certos territórios

sensoriais no interlocutor, além de oportunizar uma ambivalência de sentidos com

uma tendência significativa. Entretanto, para estes lapsos serem considerados

desvio estilístico, o agente locutor deve ter plena consciência da ambiguidade a ser

criada, ao contrário, essa inconstância pode ser considerada erro gramatical. Norma

vigente, aqui salientada, não se refere à gramática normativa com suas sanções que

objetivam a utilização da norma culta, mas sim à variante estilística, que,

consagrada, já não causa certo estranhamento, ou seja, passou a ter o status de

linguagem comum.

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T E X T O S C O M P L E T O S

275

Os desvios sempre estiveram presentes em diversos textos, principalmente nos

literários, revelando uma dedicação em embelezar a obra para entrar em

consonância com a preocupação estética de expressar o belo e possibilitar o

estranhamento e o prazer estético através das ambiguidades expressas. A partir do

estudo desses desvios, surgiu a necessidade de classificá-los, denominando como

figuras esses fatores de ornamentação textual. Todavia, o que passou a ser

praticado, principalmente pela área da Retórica, foi a simples aplicação de

nomenclaturas para diferenciar tais desvios, sem a preocupação com a

compreensão do seu poder evocatório dentro de uma sentença.

È inócuo reconhecer uma figura, se não se descobre seu potencial significativo. A interpretação dos aspectos conotativos, a compreensão dos traços evocatórios, o rendimento que o desvio gera como instaurador da função poética tem maior validade que o esforço vão e estúpido da memorização. (MONTEIRO, p.62, 2005)

A mera denominação de uma figura transparece um conhecimento

descontextualizado. Por exemplo, não há uma aplicação prática no simples ato de

reconhecer que aliteração é a metábole que caracteriza a repetição de sons

consonantais em determinada frase, sendo que o sujeito não é capaz de refletir

sobre os significados e sentidos que essa sonoridade oferece a ele e ao discurso.

FIGURAS OU METÁBOLES

Observando que os desvios significativos em uma sentença são denominados

figuras ou metáboles, cabe aqui acentuar que o propósito de estudo da Estilística é

observar como esses elementos aludem múltiplos sentidos e quais são as possíveis

interpretações causadas pelos mesmos. Considerando a pluralidade dos elementos

estruturais de manifestação da língua, percebe-se que as metáboles se diferenciam

de acordo com o plano discursivo no qual se encontram – plano de conteúdo e plano

de expressão-, ressaltando que o contexto é um aspecto extremamente importante

na capacidade evocatória, pois estando as figuras isoladas, não apresentam

eficiência significativa.

O esquema é bastante coerente. Se as metáboles aparecem no discurso que, por sua vez, é elaborado com os elementos da língua, torna-se evidente que elas se diferenciam em função dos planos estruturais em que incidem. (MONTEIRO, p.63, 2005)

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276

As metáboles de expressão subdividem-se em Metaplasmos; referentes ao

nível da morfologia; e as Metataxes, desvios ocorridos na organização sintática;

ademais, as figuras de conteúdo se ramificam em Metassememas; pertencentes ao

nível da semântica; e em metalogismos, próprios do campo lógico. Para exemplificar

esses fenômenos, esse trabalho se apropriará de certas letras de músicas

pertencentes ao movimento da MPB (Música Popular Brasileira), com o intuito de

associar os sentidos que essas metáboles proporcionam com a intenção do

compositor e o contexto social ao qual estas produções se encontram.

METAPLASMOS: ALTERAÇÕES MORFOLÓGICAS

Como já foi citado anteriormente, metaplasmos são as alterações que ocorrem

nas estruturas dos lexemas. Cabe aqui ressaltar que metaplasmo é um conceito que

se refere não somente às modificações que as palavras sofreram ao decorrer do

desenvolvimento linguístico temporal de certo sistema. Nesse caso, trataremos de

metaplasmos como um fenômeno que possibilita certos desvios estilísticos com uma

vasta função significativa. Segue um exemplo, no seguinte trecho da música

Astronauta lírico, do Vítor Ramil:

Vou viajar com você essa noite Conhecer a cidade magnífica Velha cidade supernova Vagando no teu passo sideral. (Vítor Ramil)

O campo semântico da música alude a elementos de conteúdo astronômico,

dessa forma, o interlocutor poderia estranhar a palavra “passo” estando mais

familiarizado com o termo “espaço sideral”. À vista disso, é notável a presença de

uma Aférese na transformação da palavra “espaço” em “passo”, pois esse é o

metaplasmo que ocorre ao se suprimir um fonema ou sílaba no início de um

vocábulo. A mudança apresentada pode remeter ao enunciatário uma ideia de

movimentação, justamente por passo aludir ao ato de se movimentar ou andar, com

isso cria-se a concepção de que o eu-lírico planeja sair com a amada e explorar

suas características com o intuito de conhecê-la melhor.

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277

METATAXES: AS TRANSFIGURAÇÕES SINTÁTICAS

As metataxes são caracterizadas como as rupturas que ocorrem no plano

sintático das sentenças. O autor chama a atenção para a possibilidade de se

confundir desvio estilístico com a escolha entre variantes linguísticas.

A dificuldade maior reside em saber quando nesse nível ocorre uma ruptura ou quando se trata apenas de uma escolha entre duas ou mais variantes. De qualquer forma, o que fixa o valor do desvio é a sua expressividade e é esse aspecto que o legitima. (MONTEIRO, p. 80, 2005)

Para ilustrar essa concepção é citado como exemplo um trecho da música Cor

de Marte, composição de Anavitória, em contraposição à música Estrela, Estrela,

também de Vítor Ramil.

[...]Todos teus sentidos Que afetam os meus Que querem te ter Que tu me escreveu E mais uma vez. (ANAVITORIA)

Neste fragmento da música Cor de Marte, nota-se o equívoco da conjugação

verbal da segunda pessoa do singular na frase “Que tu me escreveu”, sendo a forma

considerada como correta pela gramática normativa “Que tu me escreveste”.

Entretanto, não se pode considerar como desvio estilístico este trecho da música,

pois, na verdade, é aqui refletida a variante linguística da compositora. O mesmo

fato ocorre na seguinte passagem da música de Vítor Ramil:

É bom saber Que és parte de mim Assim como és Parte das manhãs. (Vitor Ramíl)

Apesar de ocorrer a elipse do sujeito neste segmento, é possível discernir a

pessoa do discurso no qual o verbo está conjugado através da desinência número

pessoal do verbo “és”. De acordo com as sanções da gramática normativa, esta é a

forma correta de se conjugar a segunda pessoa do singular (tu), em contraposição

ao que ocorre na música de Anavitoria. Todavia, considerando que Vítor Ramil é de

origem gaúcha – região em que a utilização do tu de forma correta é consagrada

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278

pelos costumes linguísticos – é de se esperar que este aspecto seja reproduzido em

suas músicas. Antagonicamente, Ana Claro Caetano, compositora das músicas do

duo Anavitoria, é de origem tocantinense, estado em que o emprego do “tu” na

língua falada não é legitimado pelos aspectos históricos. Provavelmente, o acesso

que a cantora teve com essa partícula linguista se efetivou por meio da mídia,

principalmente a de entretenimento, canal comunicativo que não têm compromisso

com a expressão da norma culta. Cabe aqui ressaltar que, sendo a música um texto

com caráter literário, a compositora pode-se valer da questão de licença poética para

pensar suas criações, além disto, é significativo salientar que a letra perderia

completamente a sua finalidade (expressar o subjetivo do eu lírico) se a sua

produção fosse marcada por preocupações em respeitar a norma a culta.

Ademais, não se pode ignorar a questão da elipse do sujeito, supracitada, que,

por ser uma figura da linguagem pode ser confundida com desvio estilístico.

Conquanto, para ser considerada como um elemento expressivo deve-se levar em

consideração o sistema linguístico no qual incide. Por exemplo, na língua

portuguesa, devido à presença das desinências verbais, a supressão do sujeito não

gera ambiguidades. Em contraposição, na língua inglesa, sistema em que os verbos

não apresentam terminações significativas, o sujeito apresenta uma importante

função para gerar sentido na sentença, dessa forma, a elipse da pessoa do discurso,

em textos literários, gera um efeito de sentido de acordo com as intenções do autor.

Ainda referindo-se às rupturas sintáticas que ocorrem nas músicas aqui

estabelecidas, cabe aqui enfatizar o hipérbato, que é a figura que marca o

desarranjo da ordem sintática considerada como adequada pela gramática

normativa, sendo a organização da sentença de acordo com a ordem sintática

preestabelecida um elemento que impossibilita a difusão de ambiguidades. Para

melhor ilustrar essa concepção destaca-se uma passagem da música Cor de Marte,

Anavitória, em que a ordem sintática convencional (sujeito + verbo + complemento +

adjuntos) se encontra distorcida.

Me beija Que eu gosto da sua textura Do seu gosto frutado Sorriso colado [...]. (ANAVITORIA)

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

279

No trecho acima, o fragmento “Me beija que eu gosto da sua textura” exibe o

sujeito (eu) no intermédio da sentença, sendo o “me”, pronome pessoal do caso

oblíquo, o responsável por iniciar a frase, exercendo uma função que não

corresponde a sua usual. É notável, também, a ruptura gramatical em que o

pronome pessoal do caso oblíquo está anteposto ao verbo, em que o correto seria

“beija-me”. Considerando essa questão sintática, é de suma relevância destacar que

a ordem proposta pelo autor ao intercalar as palavras é extremamente significativa,

pois as palavras antepostas, normalmente, transmitem uma ideia que deve ser

ressaltada em relação às outras. No caso exemplificado acima, percebe-se a

intenção de destacar o ato de “beijar” em função das outras ideias da sentença.

Outro exemplo ocorre na música Estrela, de Oswaldo Montenegro, em que a estrofe

inicial é construída puramente por hipérbatos:

Pela marca que nos deixa A ausência do som que emana das estrelas Pela falta que nos faz A nossa própria luz a nos orientar. (OSWALDO MONTENEGRO)

O sujeito da oração em questão é “A ausência do som”, que está logo após do

complemento que é “pela marca que nos deixa”, aludindo assim, um hipérbato.

SUBSTITUIÇÕES SEMÂNTICAS

Além dos fenômenos já apresentados, iniciam-se nesse tópico as

considerações sobre as transferências semânticas ocorridas nas músicas

selecionadas e qual é o seu efeito significativo sobre a totalidade poética. A

alternância de um semema por outro, que possibilita uma substituição de um

significado por outro, é denominado “metassememas”.

É possível observar que as metáboles com maiores incidências neste plano

são as metonímias e as metáforas. A metonímia é caracterizada pela substituição de

um lexema por outro quando houver uma relação de sentido entre os dois

vocábulos, sendo esse vínculo estabelecido por determinada dependência. A

metáfora, por sua vez, é fruto de uma substituição de termos, porém esta não é

influenciada por certa subordinação, como ocorre na metonímia, o que se verifica, na

verdade, é certa semelhança sutil entre tais lexemas. No trecho a seguir, retirado da

música Como Nossos Pais, composição de Belchior e interpretado por Elis Regina, é

perceptível a presença de uma metonímia:

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Não quero lhe falar meu grande amor Das coisas que aprendi nos discos Quero lhe contar como eu vivi E tudo que aconteceu comigo [...] (BELCHIOR)

No fragmento “[...] das coisas que aprendi nos discos [...]” o termo “disco” é

uma metonímia, pois está remetendo, significativamente, à ideia de música, uma vez

que disco é o suporte físico que transporta a melodia. Se analisado com um teor

estritamente denotativo, a sentença não faria sentido, uma vez que, se

considerarmos o caráter material do disco, nota-se que este não transporta nenhuma

informação. Essa transferência semântica é significativa pelo fato de representar

uma época, pois, devido aos desenvolvimentos tecnológicos, formularam-se novos

alicerces físicos para a disseminação do conteúdo musical, sendo o disco um

aspecto próprio de um momento histórico, momento este que a música foi um

importante veículo de expressão social. Ainda considerando a composição de

Belchior, outra metonímia é retratada na seguinte passagem:

Por isso cuidado meu bem Há perigo na esquina Eles venceram o sinal Está fechado para nós Que somos jovens... (BELCHIOR).

A metonímia presente na passagem supracitada refere-se ao termo “sinal”,

representando o semáforo, que é responsável por sinalizar aos carros o momento de

parar, entretanto, essa sinalização se comporta como certo tipo de sanção, e, ao

utilizar essa transferência semântica, o autor busca aludir ao fato de que os jovens

realmente estão submetidos às condenações caso ultrapassem e contestem a

organização do sistema vigente. Outra passagem que apresenta essa figura de

substituição semântica é a subsequente:

Para abraçar o seu irmão E beijar sua menina, na rua É que se fez o seu braço O seu lábio e a sua voz... (BELCHIOR)

Os membros que constituem o corpo do ser humano, como “braço” e “lábio”

remetem à totalidade humana, como se dissesse que as pessoas foram feitas para

amarem umas as outras, através do carinho transmitido pelo contato corporal. Por

outro lado, a voz aponta a questão de liberdade de expressão, pois na Ditadura

Anais do SIDIALE

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281

Militar Brasileira as “vozes” dos indivíduos que se portaram contra o Regime foram

suprimidas. Outra passagem que é de extrema relevância e que traz uma figura que

influencia uma interpretação extremamente significativa é a seguinte:

Viver é melhor que sonhar E eu sei que o amor é uma coisa boa Mas também sei Que qualquer canto é menor do que a vida De qualquer pessoa (BELCHIOR)

Nesta passagem, a comparação exercida entre o canto e a vida remete a

barbárie ocorrida nesse período ditatorial em que as pessoas eram assassinadas ao

se posicionarem contra o sistema vigente. Ou seja, não há nada que justifique o

atentado à vida de alguém. Outra espécie de metonímia é sinalizada no trecho da

música Cor de Marte, de Anavitoria.

Me passeia Que eu gosto de arrepiar Sob suas digitais É impossível calar. (ANAVITÓRIA).

A palavra “digitais”, neste caso, é considerada metonímia em razão do seu

intuito de representar o ato de tocar. Ao optar pela utilização deste termo, a música,

com um tom extremamente romântico, se torna mais expressiva em função da

alusão de que esse toque seria mais minucioso e carinhoso, representando a

vontade que o amante tem em explorar sua amada da forma mais completa

possível.

Ademais, ao analisar a música Estrela,Estrela, de Vítor Ramil, é possível

notar, na seguinte estrofe, a metábole semântica responsável por atribuir

características humanas a elementos inanimados, denominada de personificação.

Estrela, Estrela Como ser assim Tão só, tão só E nunca sofrer. (VÍTOR RAMIL)

A personificação é ai recorrente quando o autor atribui às estrelas, sentimentos

próprios da psique humana, como o fato de sofrer pela solidão. Essa passagem é

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

282

significativa, pois induz ao interlocutor a emotividade ao refletir sobre o isolamento

emocional, situação esta que todo ser humano já viveu ou sentiu.

O DUPLO RELACIONAMENTO

Sabe-se que existe uma infinidade de elementos para compor uma frase, e a

escolha desses elementos trata-se de uma questão estilística, visto que alguns

vocábulos geram resultados mais agradáveis, pelo ritmo e sonoridade, por

concentrarem um maior poder de visualização, por excitarem a capacidade

imaginativa, ou por abrir conotações que outros termos não conseguiriam

estabelecer. Essa escolha se efetua no eixo paradigmático (substituição e escolha

dos termos) e no eixo sintagmático (arranjo e composição dos termos), e a

expressividade é gerada a partir dessa escolha que, sintonizada ao contexto,

surpreende e encanta. Tal expressividade pode ser exemplificada no trecho da

música Cor de Marte, de Anavitória:

“Me passeia Que eu gosto de arrepiar Sob suas digitais” (COR DE MARTE, Anavitória).

Nesta estrofe, os termos “Me passeia” e “digitais” aludem ao ato de tocar,

sendo que a modificação destas palavras por sinônimos não trariam o mesmo efeito

significativo que buscou-se representar.

Também é possível perceber a expressividade no trecho da música Estrelas,

de Oswaldo Montenegro: “Eu conheço inteira sua fantasia / E é como se fosse pouca

/ E a tua alegria não fosse bastar”, na qual a escolha da palavra “alegria” – ao invés

de outras palavras semanticamente iguais – ocasiona rima com a palavra “fantasia”.

AS DIFERENÇAS NOS SIGNIFICADOS IGUAIS

Os vocábulos relacionados aos mesmos referentes possuem empregos e

valores específicos, em função de determinados contextos, para estabelecerem

conotações. Como afirma Monteiro (2005):

[...] as referências podem ser iguais, os conceitos ou objetos designados podem não diferir, porém as conotações divergem, e isto é o quanto basta para que não se empreguem indistintamente os sinônimos (MONTEIRO, 2005, p. 104).

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

283

Na situação seguinte, percebe-se a descrição de uma palavra que contém duas

possibilidades de significação, porém sua grafia se mantém idêntica nos dois

contextos de utilização. O fator que fixa a distinção, nesse caso, é a situação de

elocução e a relação com os outros lexemas. Esses vocábulos são denominados

como palavras homônimas. No exemplo abaixo, o termo homônimo é “fita”, que pode

ser considerado com um verbo que alude o ato de olhar, ou como o substantivo

referente ao utensílio ornamental, utilizado para amarrar ou colar outros objetos. De

acordo com o contexto, é notável que a passagem se refere ao verbo, e a escolha é

significativa pelo fato de que “fitar” cria um sentido mais poético do que o verbo

“olhar”.

Me fita Que eu gosto de me enxergar Por dentro do teu olho É tão bonito de lá (COR DE MARTE, Anavitória).

A SINTAXE AFETIVA E A LÓGICA

Ao considerar que as sentenças se constituem através do relacionamento

sintagmático, é importante salientar que a combinação dos termos apresentam duas

modalidades de realização: a coordenação e a subordinação.

As relações de coordenação são consideradas paratáticas, e implicam uma

linguagem expressiva e afetiva, destinada à transmissão de estados emocionais,

relacionando-se com a conotação, aludindo um tom sentimental. Já as relações de

subordinação são determinadas como hipotáticas, implicando uma linguagem lógica

e objetiva, com caráter puramente informativo, que se identifica à característica

denotativa de alguns discursos. Sendo assim, pode-se afirmar que todas as músicas

elencadas nesta análise encaixam-se nas relações de coordenação, devido ao

caráter poético que apresentam.

AS (CON)SEQUÊNCIAS ASSOCIATIVAS Com o intuito de propor um incremento do teor afetivo, é possível reforçar a

expressão de uma ideia através do emprego de palavras dispostas numa sequência

gradativa, de modo que cada novo termo intensifique o anterior. Para isso, os

elementos da sequência devem aparecer do menos para o mais intensivo. No trecho

“Me prova, me enxerga, me sinta, me cheira / E se deixa em mim”, da música de

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

284

Anavitória, pode-se perceber claramente essa intenção: as palavras são dispostas

em sequência e, por fim, o trecho “se deixa em mim” ganha maior ênfase, pois

remete à consequência final dos outros atos citados anteriormente.

A ARTICULAÇÃO RÍTMICA

A escolha entre períodos curtos ou longos também parte de uma motivação

estilística. Os períodos curtos estão relacionados à linguagem afetiva, carregada de

espontaneidade e coloquialismo, ao passo que os períodos longos são hipotáticos e

contém menor afetividade, apresentando uma linguagem denotativa. Na música de

Anavitória, por tratar-se de uma linguagem puramente afetiva, os períodos são mais

curtos e remetem ao coloquialismo e a uma linguagem mais simples. Em

contraposição, a música de Oswaldo Montenegro contém uma linguagem mais

rebuscada e os períodos são mais longos.

REFERÊNCIAS MONTEIRO, José Lemos. A Estilística: manual de análise e criação do estilo literário. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. COMO NOSSOS PAIS. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/elis-regina/como-nossos-pais.html Acesso em: 19 jun. 2017. COR DE MARTE. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/search.php?q=cor%20de%20marte Acesso em: 19 jun. 2017. ESTRELA, ESTRELA. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/vitor-ramil/estrela-estrela.html Acesso em: 19 jun. 2017. ESTRELAS. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/oswaldo-montenegro/estrelas.html Acesso em: 19 jun. 2017.

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285

Uma proposta de trabalho com o gênero

“Artigo de Opinião” no 9º do Ensino

Fundamental

A proposal of work with the genre "Opinion Article" in 9th grade

Jane Fernanda de Godoy Garcia (PG)

RESUMO: O estudo do tema Produção Textual remete-nos, de pronto, a uma série de problemas que lhe são inerentes. Entre estes “problemas” podemos listar alguns, como: os alunos não sabem escrever, falta-lhes repertório, não conseguem desenvolver uma ideia de forma clara, não escrevem com coerência nem coesão, não sabem se expressar, não dominam a modalidade escrita, entre outras que ouvimos nos corredores de uma escola ou entre os professores. Por essas razões, a pesquisa que venho desenvolvendo enquanto aluna do ProfLetras na UNESP/Assis, é sobre “O trabalho com o gênero artigo de opinião no 9º ano do ensino fundamental”, que está sendo desenvolvida desde 2016. O objetivo geral deste trabalho é descrever as etapas da minha pesquisa enquanto aluna do mestrado no programa ProflLetras, apontar o que já foi realizado, o que falta realizar e fazer uma breve análise do que já foi desenvolvido. O trabalho desenvolvido respalda-se nos fundamentos da linguística textual, tendo o texto como objeto de trabalho. Também parte da definição de Mikhail Bakhtin, sobre gêneros discursivos. No desenrolar da pesquisa, proponho uma abordagem sociointeracionista, respaldada nos trabalhos de BRONCKART (2009) o qual remete aos trabalhos de VYGOTSKY. As atividades foram realizadas na forma de Sequencias Didáticas e aplicadas no 9ª ano A e B, em uma escola pertencente à Rede Estadual de Assis/SP, com base nos trabalhos de DOLZ, NOVERRAZ, & SCHNEUWLY, (2004). A escolha pelo gênero artigo de opinião se deve ao fato desse pertencer à tipologia argumentativa, por ser o gênero que é mais trabalhado no 9º ano e também por ser o gênero solicitado no exame do SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de SP). Pretendo apontar e analisar alguns dos principais desvios encontrados nos textos que os alunos produziram. PALAVRAS-CHAVE: Gênero discursivo. Sequência didática. Produção textual. Interacionismo sociodiscursivo.

INTRODUÇÃO

Neste artigo pretendo apresentar o trabalho que venho desenvolvendo

enquanto aluna de mestrado no programa ProfLetras, junto à Faculdade de Ciências

e Letras de Assis – UNESP. O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma

sequência didática42 cujo produto final é a produção escrita de um artigo de opinião,

42

Para DOLZ, Joaquim NOVERRAZ, Michèle SCHNEUWLY, Bernard, “uma ‘sequência didática’ é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. Atualmente, o material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo (caderno do professor e caderno do aluno) trabalha com sequências didáticas.

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

286

no 9º A e B na Escola Estadual “Professora Léa Rosa Melo Andreghetti” na cidade

de Assis/SP. A sequência didática foi desenvolvida com as referidas salas de aula

no ano de 2016, procurando utilizar-se de uma abordagem mais interacionista,

considerando esta como resultado da interação entre “professor – aluno - objeto de

conhecimento – realidade”. Aplicada a atividade, analisarei os resultados

encontrados. Este projeto nasceu da dificuldade apontada pelos alunos, no decorrer

de longa experiência docente com atividades de produção escrita, pois diziam eles

não conseguir escrever devido a vários fatores: insegurança, falta de repertório,

desconhecimento ou falta de familiaridade com o gênero, falta de conhecimento dos

recursos coesivos, entre outros.

O trabalho desenvolvido com os alunos respaldou-se na concepção

interacional (dialógica) da língua: alunos (sujeitos) são atores e construtores sociais,

ativos que se constroem e são construídos dialogicamente. Assim, a concepção de

linguagem também segue essa linha teórica, “a linguagem como forma de

interação”. (KOCH, 2010, p.10-11)

O gênero artigo de opinião é definido “como um gênero discursivo no qual se

busca convencer o outro sobre determinada ideia, influenciando-o e transformando

seus valores por meio de argumentação a favor de uma posição, e de refutação de

possíveis opiniões divergentes”. (BRÄKLING, apud KÖCHE, 2014, p. 33). A escolha

do gênero “Artigo de Opinião” se deve ao fato de ele ser o gênero priorizado no

material dos alunos do 9º ano (Caderno do Aluno)43 e também por pertencer à

tipologia argumentativa.

Ao tratar propriamente da sequência didática, os alunos realizaram um estudo

dirigido acerca do que é uma questão controversa. Em seguida foi listado alguns

temas polêmicos para que pudessem escolher um, assistiram a dois debates sobre

dois temas escolhidos: Aborto e Redução da maioridade penal. Com base nesses

temas, os discentes realizaram um debate, respondendo se eram contra ou a favor

da proposição do Aborto ou da Redução da maioridade penal, explicando o porquê

dessa concordância ou discordância. Também tiveram aula expositiva sobre o que é

um artigo de opinião e como este se estrutura; realizaram a leitura de um artigo de

opinião que serviria como modelo para depois escreverem o seu.

43

Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo, edição 2014-2017.

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287

Posteriormente as essas aulas, os alunos deveriam escolher, em grupo, um

entre os temas polêmicos listados na lousa (Redução da maioridade penal,

Legalização do aborto no Brasil, Gravidez na adolescência, Legalização da

maconha, Casamento entre homossexuais, Violência contra a mulher, A principal

função do ensino médio, Afastamento da presidente Dilma Rousseff). Após a

escolha, realizariam uma atividade extraclasse: deveriam entrevistar pessoas de

diferentes raças, credos e idade nas vizinhanças da escola para colher opiniões

sobre os temas escolhidos.

Coletadas as opiniões, deveriam escrever, em sala de aula, um relatório sobre

a atividade realizada fora da escola. Em seguida, realizaram uma pesquisa na

internet para colher mais informações sobre o tema que escolheram. Apoiados

nessas informações (o repertório), cada um deveria produzir seu artigo de opinião,

na sala de aula.

A sequência didática desenvolvida possibilitou aos alunos contato com diversos

tipos de produção oral e escrita para desenvolver o gênero selecionado: realizando

debate regrado (oral); escrevendo parágrafos argumentativos sobre os temas

trabalhados; fazendo entrevistas (oral/escrita); relatórios escritos e, por fim, artigo de

opinião (escrita).

Estabelecido o corpus do trabalho desenvolvido (produção escrita de relatórios

e artigo de opinião), ao final do trabalho propomos analisar os problemas

encontrados nos textos, com base nos trabalhos desenvolvidos por PÉCORA (1992)

e PEREIRA (1990).

A proposta de trabalho justifica-se pela necessidade de recorrer a enunciados

concretos, que fazem parte da vida dos alunos e têm um significado real para sua

vida. Os debates e as entrevistas serviram de exemplo para que os alunos

buscassem informações e argumentos sobre o assunto escolhido, exercitando-se na

língua, e passassem a ter condições e conteúdos para poderem escrever seus

artigos. As atividades levaram os alunos a expressar seus pontos de vista e dar voz

as suas ideias.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os gêneros discursivos já vêm sendo trabalhados em sala de aula há algum

tempo. O que alavancou a mudança do trabalho com leitura e produção textual com

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

288

base nos gêneros do discurso foi a implementação dos Parâmetros Curriculares

Nacionais. Antes, o trabalho de leitura e escrita era realizado fundamentado nas

tipologias textuais: narração, descrição e dissertação. Muito se perdeu porque essas

três tipológicas não abrangiam outras tantas presentes na língua materna.

As tipologias passaram a ser: narrativa, descritiva, argumentativa, injuntiva e

expositiva. Os gêneros discursivos representam, por sua vez, um número incontável,

pois nascem devido à necessidade comunicativa do ser humano.

A teoria sobre gêneros discursivos respalda-se em Mikhail Bakhtin. Este divide

os gêneros do discurso em primários e secundários. Os primários abrangem os

gêneros mais simples como os diálogos do cotidiano, os enunciados reais alheios,

as cartas, por exemplo. Os secundários são os mais complexos como o discurso

científico, a pesquisa científica, os romances, entres outros. (2011, p. 263)

O autor ressalta ainda que o discurso só pode existir de fato “na forma de

enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso” (2011, p.

265). Uma das críticas apontadas pelos PCN’s (1998, p. 18) ao ensino tradicional

situa-se justamente nesse ponto: desconsideram-se a realidade e os interesses dos

alunos. Sendo assim, a primeira atividade realizada em sala de aula com os alunos,

antes que se propusesse a escrita do artigo de opinião, consistiu em levantar temas

polêmicos da atualidade, temas que despertaram o interesse dos alunos e os

motivaram a escrever.

A teoria sobre interacionismo sociodiscursivo (ISD) de BRONCKART (2009) vai

de encontro com a teoria dos gêneros discursivos. O autor remete aos trabalhos de

Vygotsky, porém ressalta que a unidade verbal considerada por Vygotsky era a

palavra, e que deveria ser considerado os gêneros do discurso, porque os gêneros

correspondem a atividade e ações, a unidades verbais. Uma psicologia interacionista

deveria primeiro integrar a dimensão discursiva da linguagem.

Bronckart (2009, p.30-31) afirma que para atingir os objetivos específicos que

Vygotysky desejava seria necessário que a psicologia saísse de si mesma ou

rejeitasse os postulados epistemológicos e as restrições metodológicas do

positivismo.

O objetivo do ISD é “considerar as ações humanas em suas dimensões sociais

e discursivas constituintes” (BRONCKART, 2009, p. 30/31).

Anais do SIDIALE

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289

Segundo o autor “O quadro interacionista-social leva a analisar as condutas

humanas como ações significantes, ou como <ações situadas> cujas propriedades

estruturais e funcionais são, antes de mais nada, um produto da socialização.”

Ao tratar a produção textual dessa forma, estaremos considerando a proposta

de atividade (sequência didática) como uma atividade significativa, considerando a

entrevista que fizeram e a coleta de informações e o produto final (escrita do artigo

de opinião) como o resultado da interação realizada: aluno, objeto de estudo,

interação social, texto.

Com relação à produção escrita dos alunos utilizaremos os trabalhos

realizados por PÉCORA (1992) e PEREIRA (1990).

Alcir Pécora, em seu livro “Problemas de redação” (1992), faz um levantamento

de 13 problemas encontrados em redações de candidatos ao vestibular para o

CESCEM (1976) cujo tema era “Nenhum homem é uma ilha” e o gênero solicitado

era uma redação dissertativa. Outra parte do corpus resultou de uma turma do curso

de “Práticas de Produção Escrita” de responsabilidade do autor, no decorrer dos

anos de 1978 a 1980, do ciclo básico do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da

UNICAMP.

Os problemas encontrados pelo autor foram agrupados nos seguintes itens: 1)

Problemas de acentuação; 2) Problemas de pontuação; 3) Problemas de ortografia;

4) Problemas de norma culta; 5) Problemas de emprego lexical; 6) Problemas de

incompletude associativa; 7) Problemas de emprego de relatores; 8) Problemas de

emprego de anafóricos; 9) Problemas de redundância; 10) Problemas de noções

confusas; 11) Problemas de emprego de noções de totalidade indeterminada; 12)

Problemas de emprego de noções semiformalizadas; 13) Problemas de lugar-

comum.

Semelhante trabalho foi desenvolvido por Rony Farto Pereira, em sua tese de

doutorado, intitulada “Contribuição para o estudo de problemas de redação”, (1990).

O autor trabalhou com um corpus de 20 redações escolhidas aleatoriamente de

candidatos ao vestibular da VUNESP de 1988, cujo tema proposto fora “ Por um

Brasil sem Pixotes”, 20 textos, escolhidos também ao acaso, produzidos por alunos

da Escola Estadual de 1º e 2º graus “Diva Figueiredo da Silveira”, no município de

Paraguaçu Paulista/SP, com o mesmo tema do referido vestibular de 1988, e mais

20 textos escolhidos, de forma eventual, entre os alunos do primeiro ano do curso de

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

290

graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, UNESP, na

mesma situação de produção dos vestibulandos e com o mesmo tema.

Com 60 redações, Pereira (1990, p. 43) agrupou em nove os problemas

encontrados nos textos: 1) Grafia; 2) Acentuação gráfica; 3) Concordância; 4)

Pontuação; 5) Repetição; 6) Impropriedade léxica; 7) Ambiguidade; 8) Contradição;

9) Desconexão.

Com base nesses autores, estabelecemos um quadro com os critérios de

correção que utilizaremos para o trabalho com o gênero artigo de opinião:

CRITÉRIOS PRODUÇÃO VALOR

1) Atende ao tema e ao gênero?

2) Adequa-se ao contexto de produção:

A questão discutida é mesmo controversa e de relevância social?

O aluno se posicionou diante do tema?

3) Estrutura do texto

Presença de uma contextualização adequada da questão polêmica. (INTRODUÇÃO)

Uso de argumentos para defender a posição assumida. (DESENVOLVIMENTO)

Presença de uma conclusão adequada.

4) Marcas linguísticas:

Uso da norma padrão;

Ortografia;

Acentuação gráfica;

Pontuação adequada;

Concordância (nominal e verbal)

5) Coerência: (analisar a presença ou ausência de):

Repetição;

Redundância;

Impropriedade lexical;

Noções indeterminadas;

Partes desconectadas.

Critérios para correção – GENERO ARTIGO DE OPINIÃO

Para atingir nosso objetivo final que é a produção escrita de um artigo de

opinião, utilizaremos como ferramenta de trabalho uma sequência didática, que

proporciona aos alunos uma série de atividades em torno de um gênero textual, com

base nos trabalhos dos autores DOLZ, NOVERRAZ, & SCHNEUWLY (2004).

Anais do SIDIALE

T E X T O S C O M P L E T O S

291

ESTABELECIMENTO DO CORPUS

No 9º A havia 32 alunos matriculados. Em vista disso os 13 relatórios

produzidos representam 40% e os 08 artigos, 25% do total da sala. Considerando-se

que 12 alunos não frequentavam as aulas regularmente, ultrapassando o limite de

faltas, a porcentagem de textos produzidos eleva-se para 65% e 40%

respectivamente.

Na sala do 9ºB, havia 33 alunos matriculados. Segue-se daí que os 10

relatórios produzidos representam 30% do total, e os 14 artigos, 42%. Se

considerarmos que desses 33 alunos, 07 não frequentavam as aulas regularmente,

e que a frequência às aulas deveria ser de, no mínimo, 75%, índice que por alguns

não foi atingido, o número real de alunos cai para 26. Sendo assim, a porcentagem

dos relatórios sobe para 38% e para 54% o índice dos artigos.

A sala do 9º A, no geral, era morosa em participar das atividades solicitadas; os

alunos que se envolviam ativamente representavam menos que 50% do total, e isso

fazia que a sala era apática tanto nas aulas expositivas quanto nas atividades

solicitadas. Os alunos que participavam das aulas e se dedicavam às atividades

eram sempre os mesmos. Dessa forma, as aulas e os conteúdos ministrados não

surtiam muito efeito, uma vez que era reduzido o envolvimento dos alunos.

Podemos, no entanto, dizer que os alunos não eram indisciplinados, mas isso não

consideramos como algo positivo, porquanto a ausência de indisciplina era antes

consequência da apatia do que do bom espírito dos alunos.

Embora a sala do 9º A tivesse esse perfil, consideramos que os alunos

obedeceram sem dificuldade à sequência de atividades realizadas, principalmente

com relação às entrevistas. Com respeito a isso uma aluna anotou em seu relatório

que a atividade extraclasse foi realizada com sucesso justamente por ser uma

atividade fora da sala de aula, algo que raramente acontecia na escola e que caiu no

agrado dos alunos.

No debate sobre o tema “A legalização do aborto no Brasil”, nesta sala, os 16

alunos que responderam à pergunta se declararam contrários ao aborto, e 05 foram

os que responderam ser, em certos casos, a favor, mas no geral contra. Esses

deram, como justificativa o aborto, nos seguintes casos: estupro, doenças, risco de

vida para mãe, a gravidez indesejada, a não-aceitação da gravidez pela família ou

pelo pai da criança.

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292

O 9º B era mais participativo que o 9º A. O número de alunos que participavam

e entregavam os trabalhos era maior, respondiam mais às perguntas, eram mais

comprometidos com as atividades propostas e frequentavam as aulas.

Na sala do 9ºB, o debate realizado contemplou os dois temas dos vídeos a que

assistiram: Legalização do Aborto e Redução da Maioridade Penal; 16 alunos

estavam presentes, 15 responderam à primeira pergunta referente ao tema em

debate, 01 não respondeu e apenas 01 disse ser favorável ao aborto dando como

justificativa a liberdade que cada pessoa tem para tomar suas decisões. Com

relação ao segundo tema, Redução da Maioridade Penal, trabalhado no mesmo dia,

15 responderam, 02 se abstiveram de responder (um foi o mesmo que não

respondeu sobre o 1º tema), 13 responderam ser favoráveis à diminuição da

maioridade penal no Brasil, 02 declararam-se contrários, um dizendo que a pessoa

que vende drogas não deve ser presa, o outro dizendo que o menor já cumpre pena

na Fundação Casa; e outro, que foi contra e a favor, disse ser favorável à diminuição

da maioridade penal quando se trata de crimes hediondos, mas, em caso de crimes

considerados menos graves, só deveria constar na ficha criminal o nome do

indivíduo.

TEMA

ANO A FAVOR CONTRA INDECISO ABSTENÇÃO

Legalização do aborto

9º A= 16 alunos 9º B = 16 alunos

00 01

16 14

05 00 01

Redução da maioridade penal

9º A = não realizou 9º B=15 alunos

----- 13

------ 02

------- ------- 02

Resultado do debate nas salas de aula

O debate promovido nas aulas subsequentes teve bom resultado. Para alguns

o discurso é mais fácil que a escrita. Também levamos em consideração o fato de

que os alunos não têm tantos problemas para se expressarem, já que estão, a todo

momento, reivindicando direitos ou expondo seus pontos de vista.

Para a realização da entrevista foram levantados oito temas: Redução da

Maioridade Penal, Legalização do Aborto no Brasil, Gravidez na adolescência,

Legalização da maconha, Casamento entre homossexuais, Violência contra a

mulher, A principal função do Ensino Médio, Afastamento da presidente Dilma

Rousseff.

Anais do SIDIALE

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293

As entrevistas foram realizadas na Avenida David Passarinho e nas

vizinhanças da escola, assim como os debates, foram sugeridas também, para que

os alunos pudessem ampliar seus conhecimentos, porquanto nessas entrevistas

eles tiveram contato com várias pessoas de diferentes idades e profissões.

A sala do 9º A entrevistou um total de 50 pessoas, enquanto o 9º B entrevistou

37 sobre os seguintes temas:

TEMAS ANO TOTAL ANO TOTAL

1) Redução da maioridade penal 9ª A 03 9º B 00

2) Legalização do aborto no Brasil

9ª A 10 9º B 13

3) Gravidez na adolescência 9ª A 06 9º B 00

4) Legalização da maconha 9ª A 14 9º B 21

5) Casamento entre homossexuais

9ª A 03 9º B 03

6) Violência contra a mulher 9ª A 00 9º B 00

7) A principal função do ensino médio

9ª A 03 9º B 00

8) Afastamento da presidente Dilma Rousseff

9ª A 11 9º B 00

Total de entrevistas realizadas pelos alunos

A entrevista realizada não fará parte da constituição do corpus da pesquisa,

porém os alunos poderiam utilizar em seus textos os argumentos que os

entrevistados utilizaram para defender seus pontos de vistas, bem como poderiam

descartá-los ou até mesmo pensar em contra argumentos para refutar os

argumentos que os entrevistados defenderam nos textos que iriam produzir em sala

de aula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De forma geral, a sequência didática desenvolvida foi bem desenvolvida pelos

alunos. As etapas da sequência foram seguidas conforme a descrição realizada

acima. A parte do trabalho desenvolvido fora da sala de aula, a entrevista, foi a parte

que mais agradou os alunos, justamente por ser uma atividade diferenciada e

também por ter sido realizada fora do ambiente escolar, com pessoas de faixa etária

variadas, grau de escolaridade diverso, crenças e opiniões divergentes das que os

alunos apontaram no momento que realizaram o debate em sala de aula.

Anais do SIDIALE

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294

A próxima etapa da pesquisa realizada será a análise dos textos escritos pelos

alunos, tanto os relatórios quanto os artigos de opinião, objeto de estudo que não

será abordado nesse artigo, pois esta etapa ainda não foi concluída. A tabela

apresentada acima (critérios de correção) servirá como modelo a ser seguido do que

deverá ser analisado no artigo de opinião que escreveram, analisando a presença ou

não de cada item exposto na tabela.

Supomos que a sequência didática descrita possa ser utilizada em outros

anos/séries que trabalhem com o gênero artigo de opinião ou até mesmo que possa

ser utilizada por outros professores, embora tenhamos a consciência de que o

trabalho desenvolvido com os alunos dos 9º anos possa ser realizado com outras

séries/anos adaptando a sequência de acordo com a realidade de cada sala e de

cada escola, bem como de acordo com a correspondência ou não dos alunos.

Sabemos também que atividades de produção escrita subjaz outras como a

leitura, a reescrita, o entendimento de que o texto é um processo e não um produto

acabado. Esses itens devem ser trabalhados pelos docentes em sala de aula, de tal

forma que o alunado entenda todo os processos que envolve a produção escrita

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal: prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra;. - 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais : terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1998.

____________. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC/SEF, 1998.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo sociodiscursivo. Trad. sob a direção de Anna Rachel Machado, Péricles Cunha. 2ª ed. São Paulo: Educ, 2009.

DOLZ, Joaquim NOVERRAZ, Michèle SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: Gêneros orais e escritos na escola. Ed. Mercado das Letras, 2004. Disponível em < https://pt.scribd.com/doc/54472148/DOLZ-NOVERRAZ-SCHNEUWLY>

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295

GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem.3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995

KOCH, Ingedore Villaça.; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. – 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2010.

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Variação linguística no nível sintático: análise

de recorrência em anúncios publicitários

Linguistic variation in the syntactic level: analysis of recurrence in advertisements

Eduardo Sae Bonoto (UENP/CJ - G)

Vera Maria Ramos Pinto (UENP/CJ - PQ)

RESUMO: Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa Variação e Mudança Linguística em Anúncios Publicitários, apresentado ao Programa de Iniciação Científica Voluntária (PIC-V), vinculado ao Grupo de Pesquisa Leitura e Ensino, do Centro de Letras, Comunicação e Artes da UENP/CJ. Apresentamos aqui resultado parcial dessa pesquisa que tem como objetivo estudar e refletir sobre a heterogeneidade da língua portuguesa e as contribuições das discussões sociolinguísticas para o ensino de Língua Portuguesa. Neste estudo, discutiremos os fenômenos de variação e mudança linguística a partir do gênero anúncio publicitário, gênero discursivo/textual do cotidiano, que usa diversos recursos da linguagem para atingir seu público-alvo. As características desse gênero possibilitam estudo e análise da heterogeneidade da língua portuguesa e os fenômenos de variação e mudança linguística do Português Brasileiro. A partir da importância da abordagem dos fenômenos de variação linguística, abordamos, de maneira específica, neste trabalho, a análise da variação linguística nas mensagens publicitárias de revistas semanais e mensais e de sites especializados em publicidade, de várias décadas, a fim de observar a recorrência da variação no nível da sintaxe, dando ênfase ao uso do pronome desempenhando função sintática de objeto. O embasamento teórico principal, para a realização da pesquisa, é pautado em: Labov (1972), nos estudos de Tarallo (2001), Camacho (1998, 2011), Monteiro (2002), Bortoni-Ricardo (2004, 2005, 2008), Bagno (2007, 2009), Coelho et al (2010), dentre outros. PALAVRAS-CHAVE: Anúncios publicitários. Variação linguística. Sociolinguística. Sintaxe.

INTRODUÇÃO

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa reconhecem

que o ensino de Língua Materna nas escolas deve ir além do ensino exclusivo de

conteúdos gramaticais e abordar também a face social da linguagem. Segundo o

documento, a heterogeneidade linguística do português brasileiro está associada à

própria variedade das configurações sociais do país, que são refletidas também por

meio da linguagem, tendo em vista que, por meio de elementos linguísticos

específicos em todos os níveis da língua, é possível, por exemplo, identificar o grupo

social ao qual determinado falante pertence.

Dessa forma, a valoração social atribuída às diferentes variedades da língua

está articulada de maneira direta à notoriedade que os grupos sociais que a utilizam

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recebem no contexto social. Assim, quanto menor o prestígio social de determinado

grupo, mais fortes serão os estigmas associados a seu modo de falar. A escola,

nesse contexto, possui o papel fundamental de desconstruir determinados

julgamentos sem embasamento científico a respeito dessas variantes

estigmatizadas, acolhendo de maneira adequada seus falantes e reconhecendo a

legitimidade e a contribuição das diferentes formas de falar para o funcionamento

pleno da língua.

A partir deste enfoque, os PCN de Língua Portuguesa consideram que a

escola tem fracassado na missão de desenvolver as habilidades de leitura e escrita,

“[...] por não conseguir garantir o uso eficaz da linguagem, condição para que os

alunos possam continuar a progredir até, pelo menos, o final da oitava série.”

(BRASIL, 1998, p.19). Hoje, nono ano de ensino fundamental.

Dessa forma, o documento reconhece que tal deficiência perpassa

exatamente pelo fato de a escola desconsiderar os antecedentes culturais e

linguísticos do educando, fato que, segundo Bortoni-Ricardo (2005, p.15), é uma das

consequências desastrosas do ensino da norma padrão à grande parte da

população que tem como língua materna variedades populares da língua, pois

contribui para desenvolver, nesse educando, um sentimento de insegurança em

relação à variante que utiliza, uma baixa autoestima linguística e um distanciamento

entre o aluno e as aulas de língua portuguesa.

Para Soares (2006), essa deficiência reside no fato de que o sistema

educacional difunde sua mensagem através da linguagem legitimada,

desconsiderando a heterogeneidade linguística presente na escola e fora dela. Essa

linguagem, ensinada na escola, é a das classes dominantes, adquirida pela

interação do seu grupo social, enquanto as camadas populares adquirem, por

familiarização, outra linguagem, fortemente deslegitimada no ambiente escolar.

Nesse sentido, este trabalho tem como um de seus objetivos discutir a

relevância da abordagem da variação linguística em sala de aula por meio do

trabalho com os gêneros do discurso. Sabe-se que a comunicação humana é

organizada a partir dos gêneros e que a diversidade de situações comunicativas que

caracteriza a interação entre os sujeitos pressupõe o uso de infinitos modelos de

utilização da linguagem, dentre os quais aqueles que abordam também variantes

estigmatizadas e/ou em desacordo com a norma padrão.

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Para isso, utilizamos como exemplo o gênero anúncio publicitário, no qual se

empregam com frequência formas linguísticas que contradizem a gramática

normativa, possibilitando uma discussão ampla a respeito das prescrições

gramaticais e favorecendo a legitimação dessas formas de falar, comumente alvos

de preconceito linguístico e social, os quais, conforme sugerem os Parâmetros

Curriculares Nacionais, cabe à escola combater.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A concepção social da linguagem adotada neste trabalho pauta-se nas teorias

de William Labov, sociolinguista americano que buscou demonstrar por meio de

pesquisas as maneiras através das quais os aspectos sociais podem interferir na

língua de um povo. A concepção laboviana de linguagem vai de encontro a teorias

anteriores, postuladas por Saussure e Chomsky, visto que esses autores

desconsideram aspectos extralinguísticos em seus estudos.

Em Saussure, Labov posiciona-se contrário à diferenciação que se cria entre

langue e parole, uma vez que, para o sociolinguista, língua e fala são fatores

indissociáveis. O paradoxo saussuriano apontado por Labov leva-nos a questionar a

dicotomia língua/fala: Saussure toma como objeto de estudo a langue, abstrata, e

ignora a parole, concreta e individual. No entanto, se a linguagem humana é usada

na interação social, só é possível estudar a langue levando em conta a fala dos

indivíduos, a parole.

Em Chomsky, Labov critica, entre outros fatores, o caráter abstrato conferido

ao conceito de língua, que implica também no apagamento da heterogeneidade

linguística e na idealização de seus falantes, proposta que mais uma vez insiste em

ignorar a relevância dos aspectos sociais para o funcionamento e evolução de uma

língua.

De acordo com o teórico, o desenvolvimento das línguas está diretamente

ligado às pressões sociais que nela imperam. Labov defende que as alterações em

um idioma surgem a partir de processos em que o sistema linguístico interage com

as características fisiológicas ou psicológicas dos falantes, e que, com o passar do

tempo, essas alterações passam a receber significado e desempenhar um papel na

língua (LABOV, 2008, p. 20, 43). A partir do momento em que se atribui significado

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social e torna-se possível notar certa regularidade em determinado aspecto

fonológico, sintático ou referente a qualquer nível linguístico, pode-se dizer que

ocorre aí um caso de variação, passível de sistematizações.

Em consonância com a premissa de que a língua está sujeita a variação

motivada por fatores externos, Bortoni-Ricardo (2005) afirma que a estratificação

social é claramente indicada pelo comportamento linguístico, pois os grupos sociais

são diferenciados e reconhecidos pelo uso da língua. Em sociedades como o Brasil,

em que a distribuição desigual de renda perdura, perpetua-se também a injusta

distribuição de bens culturais, dentre eles, das formas valorizadas de falar.

(BORTONI-RICARDO, 2005).

O objetivo do ensino de língua portuguesa, a partir dessas discussões, não é

o de ensinar o aluno a forma “certa” de falar, tendo em vista que, ao considerar a

linguagem como meio de interação, a dicotomia certo/errado fundamentada

unicamente em prescrições gramaticais torna-se insuficiente para medir a

apropriação do registro em determinadas situações de fala.

Nesse sentido, cabe à escola desenvolver no aluno a habilidade de adequar

seu registro de maneira a atender plenamente aos requisitos sociocomunicativos das

mais diversas esferas e práticas sociais por meio da reflexão das características do

contexto de comunicação. Falar bem é falar adequadamente, é produzir o efeito

pretendido. (BRASIL, 1998, p. 32). Desse modo, propõe-se que, na escola, e

especificamente na sala de aula, sejam ampliadas as situações de interação verbal,

levando em consideração as diversas possibilidades de uso da língua. Conforme

Barbosa et al (2015),

Tudo indica que um trabalho pautado nessa perspectiva pode apresentar resultados muito mais positivos para a educação linguística dos alunos, conduzindo-os para a conquista de sua autonomia, incluindo os falantes de variedades desprestigiadas nas práticas sociais valorizadas, propiciando, enfim, a todos a inserção nas culturas de letramento, marca principal da sociedade contemporânea

Por meio dos PCN da Língua Portuguesa, observamos que é preciso

considerar as variedades da língua presente na escola, cabendo a ela promover a

sua ampliação de forma que, progressivamente, durante os oito anos de ensino

fundamental, cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam

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socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas

mais variadas situações (BRASIL, 1998, p. 23).

Pautando-se em Bakhtin, Barroso et al (2014, p. 74) afirmam que é através da

linguagem que o homem tem o poder de transformar a realidade na qual se insere e

se impor perante o mundo. Tendo isso em mente, configura-se como objetivo dos

professores de língua materna, portanto, a formação de cidadãos linguisticamente

autônomos e capazes de interagir nos mais diversos meios sociais e situações

comunicativas.

Temos ainda hoje, no entanto, uma realidade bastante diferente em grande

parte das escolas brasileiras. Influenciadas pelas concepções de linguagem

adotadas pelos professores de língua portuguesa do século passado, muitos

professores de português ainda centralizam sua prática no conhecimento

unicamente gramatical e metalinguístico com fim em si mesmo, sustentando a ideia

equivocada e ultrapassada de que o conhecimento da norma padrão resulta por si

só um bom uso da língua. Sabemos que essa ideia não corresponde mais aos ideais

de ensino de língua portuguesa, uma vez que ensinar a gramática normativa de

maneira acrítica e desvinculada da realidade social na qual a linguagem se insere

não é suficiente para a formação de um falante que saiba lançar mão dos recursos

linguísticos adequados à situação comunicativa. (Barroso et al, 2014, p. 74-75)

A gramática normativa que rege a norma padrão da língua diz respeito a um

conjunto artificial de regras, criado sob bases arbitrárias, reacionárias e

ideologicamente excludentes. Prova disso é o comum estranhamento do falante

comum ao se deparar com determinadas construções sintáticas cristalizadas na

norma padrão, como a mesóclise, por exemplo.

Em sala de aula, esse estranhamento é responsável por provocar certa

resistência por parte dos alunos em se envolverem com propostas de trabalho que

abordam unicamente a norma padrão e ignoram a rica heterogeneidade linguística

existente no Brasil. Nesse sentido, a sociolinguística funciona como uma poderosa

ferramenta de trabalho pelos professores de português, tendo em vista que a

abordagem das variedades não cultas do português brasileiro reforça e valoriza a

identidade linguística dos alunos, dando-lhes a percepção de que, ao contrário do

que são levados a crer em um ensino tradicional da língua, são falantes

competentes de seu próprio idioma.

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Para que a valorização da linguagem do aluno e a legitimação das variantes

populares aconteçam na escola, propõe-se como recurso didático o trabalho com

uma grande variedade de gêneros textuais que fazem uso tanto da linguagem formal

quanto da linguagem informal. Em relação aos gêneros, Bakhtin indica que todos os

campos da atividade humana reúnem práticas sociais mediadas pela linguagem

através dos gêneros textuais. Barbosa e Rojo (2015, p. 16) definem gênero “como

entidades que funcionam em nossa vida cotidiana ou pública, para nos comunicar e

para interagir com as outras pessoas”. A concepção de linguagem como meio de

interação verbal sustenta também a teoria sociointeracionista do conhecimento

postulada por Vygostky, para quem o uso da linguagem possibilita o

desenvolvimento da aprendizagem e da consciência humana. (PIRES, 2011, p. 90)

Entretanto, sabemos que muitos livros didáticos, apesar de trazerem diversos

gêneros para o trabalho com a Língua Portuguesa, não exploram, com adequação, a

proposta da variação linguística no contexto escolar. A respeito do trabalho com

gêneros discursivos/textual, para a abordagem da variação linguística, Marcuschi

(2008, p. 256) assinala que “(...) o estudo dos gêneros textuais é uma fértil área

interdisciplinar, com atenção especial para o funcionamento da língua e para as

atividades culturais e sociais”.

Isto posto, podemos considerar que, ao trabalhar com os gêneros, os

professores têm a oportunidade de utilizar materiais que contenham aspectos

culturais e sociais reais, tendo em vista que essa abordagem reflete o que a língua

vem sendo atualmente - versátil, dinâmica e de complexidade variável.

Dessa forma, os gêneros tornam-se um auxílio para abordar os fenômenos

linguísticos existentes, além de possibilitar o trabalho e investigação da língua em

suas variações no âmbito social real, desmistificando a estigmatização existente

contra as variantes linguísticas em desacordo com a norma padrão e demonstrando

que essas formas desempenham um importante papel na construção de sentido dos

enunciados, como é o caso do gênero anúncio publicitário.

METODOLOGIA

O projeto foi realizado a partir da pesquisa teórica e a pesquisa de textos

publicitários em revistas de circulação mensal e semanal, atuais e do século

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passado, a saber: Revista Cruzeiro, Revista Veja, Revista Claudia, Revista Caras,

dentre outras.

Para a pesquisa teórica, foi utilizada bibliografia da área, a exemplo dos

estudos de Labov ([1972]2008), Bortoni-Ricardo (2004, 2005), Bagno (2007) Coelho

et all (2015) e artigos de periódicos disponibilizados na Internet sobre variação e

mudança linguística, variação linguística em anúncios publicitários, variação

linguística e ensino.

A pesquisa teve como base o estudo da tradição gramatical por meio de

Cipro Neto e Infante (2008).

Como o objeto de estudo neste trabalho é o texto publicitário, a pesquisa

pode ser inserida no paradigma interpretativista, e o método de pesquisa, o

qualitativo.

Desse modo, procuramos analisar os processos que envolvem a linguagem,

ação e interação social entre aquele que emite a mensagem e o que a recebe e

descrever, por meio dos anúncios publicitários, e os principais fatores de ocorrência

das variedades linguísticas utilizadas nas mensagens, a fim de estudar conceitos

básicos da Sociolinguística e verificar a recorrência de variação linguística em nível

sintático no corpus da pesquisa.

RESULTADOS

Neste trabalho, apresentamos uma amostra dos dados coletados e uma

análise sobre o uso de pronomes exercendo a função sintática de objeto direto a

partir dos anúncios publicitários encontrados no decorrer da pesquisa.

A tradição gramatical define os pronomes pessoais como aqueles que

substituem as pessoas gramaticais e que, portanto, têm função substantiva. De

acordo com Cipro Neto e Infante (2008), a categorização dos pronomes pessoais é

feita em dois subgrupos: os pronomes pessoais retos e oblíquos.

Segundo os autores, a escolha por uma ou outra categoria de pronomes deve

ser feita tomando como base a função sintática que a palavra desempenha na frase,

conforme se discute na citação abaixo:

São do caso reto os pronomes pessoais que nas orações desempenham a função de sujeito ou predicativo do sujeito. [...] São do caso oblíquo os pronomes pessoais que, nas orações, desempenham a função de

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complemento verbal (objeto direto ou indireto) ou complemento nominal. (CIPRO NETO e INFANTE, 2008, p. 280-281)

Fica claro, com base na citação acima, que os pronomes retos “não devem ser

usados como complementos verbais” tendo em vista que essas formas “não são

aceitas no padrão formal da língua” (CIPRO NETO e INFANTE, 2010, p. 280). Dessa

forma, as construções sintáticas que aplicam os pronomes na função sintática de

objeto devem fazer uso dos pronomes pessoais do caso oblíquo (me, te, o, a, se, lhe

e seus equivalentes no plural ou formas contraídas no caso dos pronomes átonos),

como se observa no exemplo do anúncio a seguir:

Figura 1: Anúncio Banco do Brasil. Revista Veja, dezembro de 1997.

No enunciado acima, temos o pronome oblíquo lo retomando a expressão

“ano novo”, na função sintática de objeto direto do verbo esperar, seguindo de

maneira adequada o que prescreve o tradicionalismo gramatical.

No entanto, a fluidez da evolução linguística é maior e mais rápida que a

norma padrão estabelecida pela gramática normativa. Mesmo tendo certas

construções reprovadas pelo prescritivismo tradicional, a linguagem humana

obedece a inúmeros fatores internalizados e utilizados intuitivamente pelos falantes

de uma língua, que não se submetem, na fala espontânea, ao que prescrevem os

livros de gramática, criando espaço para inovações na língua que funcionam como

uma forma de transformá-la no decorrer do tempo.

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Prova disso são os enunciados abaixo, que, apesar do que determina o

prescritivismo gramatical, trazem os pronomes pessoais ele e ela na função sintática

de objeto direto:

Figura 2. Anúncio Revista Nova. Revista Veja,

junho de 1982.

Figura 3. Anúncio Kildare. Revista Playboy, junho de 1995.

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Figura 4. Anúncio Credicard. Revista Veja, junho de 2000.

Figura 5: Anúncio Skol. Revista Veja, março de 2002.

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1. Crise econômica: não deixe ela abalar seu relacionamento. 2. Às vezes, a gente só lembra de tirar um Kildare dos pés quando já está quase na hora de botar ele de novo. 3. Claro que vou, se eu não pegar ele dando bola para aquela sirigaita de novo. 4. Se uma mulher maravilhosa olha para um cara lá longe, gesticula 200 vezes convidando ele pra sair e ele não entende, ele é:

Os exemplos acima, de 1982 a 2002, demonstram que o uso de pronomes pessoais

do caso reto na função sintática de objeto direto configura-se como um exemplo

legitimado pelo uso dos falantes. O fenômeno é ainda mais antigo, estando presente em

textos literários do século XIV, como os trechos a seguir, expostos por Bagno (2009, p.

151):

1. Os cardeaes, outrossim, privaram elle d’algum direito, se o no papado tinha. 2. Traziam quatro honrados senhores um panno d’ouro tendido em haste, que cobria elle e o cavalo. 3.Perdi ela, que ffoy a rren milhor das que Deus fez, [...]

Isto posto, torna-se evidente que o uso dessa variável é sistemático e recorrente

pelos falantes da língua portuguesa nos mais diferentes contextos, estando presente

desde o português arcaico até aos gêneros orais ou escritos próximos da fala, como é o

caso do gênero anúncio publicitário.

A legitimidade linguística de formas consideradas incorretas de acordo com a

gramática está relacionada de maneira clara a fatores sociais e políticos. Não há nada

nas variantes não padrão, como a vista acima, que permita classificá-las como inferiores

ao que se tem nos livros de gramática. A norma padrão, nesse sentido, é apenas uma

entre as inúmeras formas de falar, que têm inerente ao seu prestígio ou estigma o

prestígio ou estigma que o grupo social que as adotam têm dentro do contexto social.

Com base nessas discussões, pode-se dizer que é fundamental que o professor de

língua portuguesa tenha conhecimento claro de que a gramática normativa é insuficiente

para explicar os fenômenos linguísticos existentes no português brasileiro

contemporâneo. Assim, o ensino de português deve refletir a importância da diversidade

relacionada a fatores linguísticos e extralinguísticos para a linguagem, abordando toda a

complexidade da língua, a qual não cabe em sua totalidade unicamente nos livros de

gramática.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho com os gêneros textuais contribui significativamente para o tratamento

da variação linguística, visto que compõem o cotidiano dos alunos e apresentam variação

em vários níveis, como o sintático, oportunizando atividades instigantes para serem

trabalhadas em sala de aula.

Por meio do gênero anúncio publicitário, é possível analisar materiais que

contemplam aspectos culturais e sociais reais, tornando-nos possível estudar e investigar

a língua em suas variedades no âmbito social real e observarmos singularidade e

especificidade no uso da língua, logo de variação, que pode estar associada a vários

fatores, como tempo, região, faixa etária, gênero, status social, escolarização.

Acreditamos que esse estudo poderá contribuir para a nossa formação docente

inicial, por possibilitar a união da teoria de conceitos fundamentais da Sociolinguística à

prática de análise da língua, propiciando-nos uma educação sociolinguística mais

consciente acerca das diferentes variedades linguísticas existentes em nosso país.

Com uma formação consistente, poderemos atuar de forma menos preconceituosa

nas escolas, promovendo respeito às diferentes formas de interação social. Sem deixar,

contudo, de abordarmos a norma padrão e seu prestígio na sociedade.

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