Analética e o pensamento de fronteira: Reflexões sobre … · Resumo Longe de prender-se ......
Transcript of Analética e o pensamento de fronteira: Reflexões sobre … · Resumo Longe de prender-se ......
Analética e o pensamento de fronteira: Reflexões sobre os aspectos fundamentais
da decolonialidade
Jean Michel Daros Hack*
Resumo
Longe de prender-se a um dogmatismo metodológico, o presente trabalho trata-se
de um esforço por buscar “pôr à mesa” elementos do pensamento decolonial sob uma ótica
marxista. Buscar-se-á, vislumbrar a realização ou o fio material de onde os discursos e as
ideologias advém para se chegar a um ponto reflexivo crucial de transformação social. São
das relações/experiências materiais dos indivíduos entre si e com a natureza que se
constrói a história, subjetividade e seus significados. É a partir de tais premissas que segue
um desenrolar crítico ao eurocentrismo, a colonialidade, ao capitalismo e a ortodoxia
epistemológica – que vislumbrou um processo de libertação do pensamento hegemônico e
que ganhou “novos tons” especialmente após o colapso do bloco comunista e da onda
neoliberal dos anos 1990. Entretanto, a fagulha que impulsionou o pensamento crítico
decolonial ou o pensamento crítico marxista, é a mesma que alavanca essa pretensa
contribuição crítica a estas epistemes, em um esforço dialético que tratará de examinar uma
leitura comparativa de elementos da decolonialidade e das formulações marxianas. Não é
questão de situar-se na fronteira, mas sim, de realizar um trabalho dialético, dinâmico; indo
das minúcias à totalidade; das contradições “da reprodução do mesmo” à alteridade”.
Palavras-chave: decolonialidade, epistemologia, alteridade
Introdução: pensando a periferia global
A deconialidadesurge como uma opção política, epistêmica e que não tem por razão
a agenda do desenvolvimento liberal, tampouco as promessas envolta na narrativa do
comunismo. A decolonialidade, portanto, é uma chave latino-americana para interpretar o
mundo, uma terceira via “que não resulta de uma combinação das existentes, mas consiste
* Graduando em Ciência Política e Sociologia na Universidade Federal da Integração Latino-Americana
(UNILA), membro colaborador do Nucleo de Pesquisa de Política Externa Latino-Americana (NUEPLA).
em desprender-se delas”1. As contribuições de Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Walter
Mignolo, em especial – dentre outros nomes – tomam partido não pela emancipação
burguesa ou marxista, mas por uma concepção de libertação latino-americana da matriz
colonial de poder, uma proposta de pensar a história e a realidade sob a perspectiva latino-
americana; de entender o mundo a partir da alteridade. Isso consiste em levar em conta a
“otredad del pueblo” e romper com o muro que oprime a periferia, como afirma Dussel
(1995): “es necesario primero destruir una máquina para construir una nueva y la filosofía
latinoamericana, por mucho tiempo todavía, tiene que ser destrucción del muro para que
por la brecha pueda pasar un proceso histórico”.
Levando em conta a ferramenta analítica que pensa desde essa alteridade,
propondo-se ir além dos horizontes da “totalidade do ser”, e a coexistência histórica de
distintas “ecumenes2” até a expansão da modernidade, também se pode sinalizar uma
observação a considerar determinações gerais abstratas, que, a partir dos processos
históricos globais, se transportam mais ou menos a todas as formas de sociedade3, isto é,
abstrações gerais do concreto que de forma alguma deve excluir a alteridade em suas
considerações.
Todavia, como planteava Karl Marx na Contribuição à crítica da Economia Política:
“O concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do
diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como
resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e,
portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX, 2008). Nesse
sentido, o comum parece vir a ser a história das contradições globais que se erguem por
sobre a história das contradições locais. Sendo assim, as questões postas pela
decolonialidade – fundadas nas noções de alteridade e no método analético – considerando
a supremacia global do capital, este trabalho se propõe a questionar quais são os
horizontes que essa Epistemologia do Sul por excelência apresenta para a América Latina,
a partir de reflexões críticas sobre tal proposta epistemológica e seus possíveis efeitos na
práxis latino-americana.
Assim, as linhas que se seguem tratam de realizar um pequeno apanhado de
1MIGNOLO, Walter. Desafios Decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, 2017. 2“No hay sino la expansión de "lo mismo", habiéndose avasallado la exterioridad de todas las otras culturas
u hombres que, hasta este momento, eran ecumenes externas, coexistentes”. (DUSSEL, 1995, p. 147) 3MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia Política. Expressão Popular, 2008.
categorias decoloniais – principalmente das concepções de Walter Mignolo edificadas
sobre a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel. Se trata de uma breve reflexão sobre as
bases interpretativas e categóricas tratadas pela decolonialidade, tais como
desprendimento epistemológico; epistemologia fronteiriça, a própria matriz da
colonialidade.
1. Dussel e a Filosofia da Libertação
Para o exercício que esse trabalho propõe, segue-se necessária uma
contextualização da estrutura do pensamento decolonial de Mignolo. Essa contextualização
está dividida em alguns pontos que julguei como “chaves” para uma aproximação de tal
articulação epistemológica. Assim sendo, logo ficará claro o quanto do pensamento de
Mignolo está ligado aos de Enrique Dussel. Com esse olhar, as seguintes linhas trarão uma
pequena síntese de alguns aspectos da Filosofia da Libertação, sob a qual está assentado
grande parte do núcleo argumentativo de Mignolo e, a partir disso, serão desenvolvidas
algumas das categorias mais importantes trabalhadas pelo intelectual argentino: o
pensamento fronteiriço, desprendimento epistêmico e colonialidade do poder.
A compreensão da Filosofia da Libertação desenvolvida por Enrique Dussel passa
por alguns pontos analíticos de destaque que, a priori, podem causar a impressão de ser
uma explanação um tanto quanto abstrata do “ser” e da “ontologia” filosófica, entretanto, no
desenvolvimento do raciocínio ficarão claras as partes inicialmente demasiadas obscuras
desse pensamento. De maneira geral, pode-se dizer que a Filosofia da Libertação concorre
para duas categorias fundamentais: a emergência da alteridade e o método analético.
1.2 A crítica da totalidade e a emergência da alteridade
Em a “Introdução à Filosofia da Libertação” (1995), Dussel esboça uma alternativa
metodológica, um caminho que ele mesmo deixa claro, não é o único, mas uma
possibilidade do pensar.
A discussão do método Filosofia da Libertação passa pela tentativa de se chegar
sempre ao fundamento de uma época; um exercício de se conceber o fundamentalmente
ontológico, essencial do ser. Sem essa concepção se torna impossível compreender uma
determinada época e passa, indubitavelmente pela compreensão do fundamental do ser4
em suas particularidades, haja vista que diferentes culturas de diferentes épocas e lugares
“aplicam” diferentes significados/sentidos a diferentes entes/coisas do mundo.
Assim, a premissa inicial de onde parte a Filosofia da Libertação de Dussel é a de
que – definindo aqui de uma maneira bem sintética – que todo ser é portador de uma dada
compreensão de mundo e que essa compreensão, inicialmente, é delimitada pelos
horizontes da cotidianidade, ou compreensão do “eu no mundo” (de Heidegger e Husserl).
Em outras palavras, essa compreensão é atribuição de sentido ao mundo fundamentada
no “ser” com relação a esse mundo, uma espécie de concepção de uma totalidade5.
Essa totalidade – ou concepção de totalidade – indica que detrás de um ente está
fundamentado todo um projeto humano. Como afirma Dussel, “si tengo como fundamento
primero el ‘estaren-la-riqueza’, todo lo que esté en mi derredor lo consideraré sólo desde
allí”6. A compreensão existencial cotidiana que envolve o ser é a que lhe aparece como
importante, àquela que está por detrás do fundamento de um projeto humano, relativo à
uma determinada época; de um todo "ontológico, que se refiere al fundamento o al proyecto
de existencia del hombre, de una comunidad, de una época histórica y aun de la humanidad
como historia de todos los proyectos" (DUSSEL, 1995), como mais a frente o filósofo vai
expor não apenas como um “poder-ser” mas como um “compreender poder-ser”7,
carregado de sentidos dotados de valores8, mediação do projeto existencial humano, que
gera o interesse e, portanto, meio para a práxis (prática) constante do ser no mundo,
4DUSSEL, Enrique. "Introducción a la Filosofia de la Liberación", 1995 5"(...) De esta manera, el sol y todo en una cultura tiene un cierto sentido que se funda en el ser; una cierta
relación al fundamento originario desde el que se descubre el sentido de todos los entes que habitan el mundo. Para los griegos el fundamento era divino ("desde siempre" retornaba sobre sí mismo); mientras que para nosotros el fundamento ya no es eterno, no es divino, tampoco retorna eternamente sobre sí. Ha cambiado el sentido del ser, porque entre los griegos y nosotros está el medievo, está la modernidad y después, sólo después, viene América Latina". (DUSSEL, Enrique. "Introducción a la Filosofia de la Liberación", 1995).
6Ibd. p. 92. 7Ibd. p. 93. 8"No interpreto sino lo que es posibilidad "para" el proyecto existencial, y todo lo demás pasa desapercibido.
Esta es la fundamentación ontológica de la cuestión del interés. El interés es poner el foco de la conciencia o la atención sobre algo. Y, ¿por qué tengo interés en esto? Porque tiene valor. ¿Por qué algo tiene valor? Porque es una mediación para el proyecto. Es decir, es un medio, y de allí la palabra mediación, que hoy se usa con tanta frecuencia: lo que es medio en un proceso. (...) Por ejemplo, si la madera es "para" darme calor, al afirmar, esto, la estoy interpretando como leña; es decir que el "para" de algo, su finalidad, es el como que interpreto. Las mediaciones, las posibilidades, son las que estoy interpretando y valorando cotidianamente, porque son posibilidad "para el proyecto". Lo que no se integra al proyecto no me "interesa", no le presto "atención" no lo interpreto, no tiene valor. (Ibd. . p. 102-14).
compreendido por este9. Portanto, os entes, as coisas – como possibilidades valiosas – que
estão inseridas no mundo que abarca a existência do ser são compreendidas dentro da
totalidade desse mundo, daí a concepção de ontologia10.
Nesse momento, podemos nos encaminhar para o entendimento de Dussel quanto
a alteridade. Se para o compreender do ser, o horizonte da totalidade do mundo capturada
por este, onde se atribui valor (e significado) às coisas, aos entes, de acordo com projetos
existenciais, surge o questionamento: onde estaria a agência do Outro? Qual a
representação deste no mundo da totalidade? Aqui, Dussel começa a sua crítica às
correntes filosóficas eurocêntricas que, segundo ele, não conseguem romper com a
reprodução das relações de dominação justamente por não romperem com a ideia de
totalidade. Em outras palavras, no pensamento eurocêntrico não há lugar para pensar o
Outro como “algo mais além do meu mundo”, pelo contrário, se faz o exercício de inseri-lo
em uma concepção de mundo totalizada, apontando-o como “bárbaro”, “primitivo”, o “não-
ser”.
A lógica da totalidade, segundo Dussel, afirma que “el no ser no es, y de este modo
le permite al guerrero de la totalidad (griega o moderna), conquistador de América y de
todas las naciones que hoy llamamos subdesarrolladas, ir a la conquista del no-ser. Esta
lógica considera que los americanos no son hombres, no-son, y por ello, justamente, se les
hará el regalo de recibir el ser; al darles el ser se les dará la civilización y todo lo que está
vigente en lo que vamos a llamar después el "centro" (Europa, Estados Unidos, Rusia)”11 .
O Outro, então, “não é”. O que se encontra além da totalidade, que surge como um
questionamento externo desse horizonte totalizante, surge como esse não-ser, como
nada12.
Entendo a totalidade como a “lógica da imoralidade13” (que nega o Outro), Dussel
propõe a “lógica da alteridade”, que não tenta integrar o Outro em qualquer concepção de
totalidade, mas, pelo contrário, através do “cara-a-cara”, reconhece o Outro como outro.
Assim, por fim, nos cabe observar que Dussel coloca os povos periféricos ainda como parte
9Ibd. p. 106-107. 10Ibd. p. 109. 11Ibd. p. 128. 12Lo extramuros es lo bárbaro, la negatividad; la libertad del Otro es extra-muros, es negada. Quiere decir,
entonces, que solamente es afirmada en la totalidad como luz y como sentido. Y bien, esa luz, ese mundo y esa totalidad que muestra todo como fenómeno será la negación del Otro, será una ontología inmoral. (DUSSEL, 1995, p. 121)
13Ibd. p. 125
de uma totalidade dominadora justamente por não estarem “en el cara-a-cara” que escuta
o Outro. O paradoxo do dominador é fazer da totalidade algo natural e divino, faz dela
eterna e, portanto, insuperável, pois que, caso fosse superada, a dominação seria posta
em “xeque” – “porque si fuera superado moriría” 14.
A proposta da Filosofia da Libertação é, portanto, uma proposição de rompimento
com a dominação e com a negação do Outro – da “otredad” do povo, do eurocentrismo, da
lógica da totalidade. Além da libertação da América Latina o pensamento de Dussel se
coloca numa perspectiva a libertar os opressores de sua própria matriz de dominação; mais
ainda, a Europa só pode se libertar caso a alteridade venha interpelá-la. Dussel afirma
“nuestra filosofía irrumpe en Europa y le proclama: "Ustedes, con su ego cogito, nos han
totalizado como cosas dentro de su mundo; cuando nos respeten como otros, entonces,
solo entonces, ustedes mismos podrán ser libres". Dessa maneira prossegue, “no se va a
encontrar en Europa la salida de Europa, sino que son los oprimidos los que mostrarán
dicha salida. Seremos nosotros las naciones pobres. ¿Por qué? Porque las naciones
pobres son el futuro de la historia15 . Para tal empreitada é necessário meter-se no
pensamento europeu para “destruí-lo16” e construir um novo processo histórico a partir da
filosofia libertadora latino-americana.
Por fim, para Dussel, o “ethos da dominação” é um ethos que tem sua gênese no
ódio ao Outro, pela negação desse outro. Portanto, não prevê a libertação do Outro, pois
que o coloca como incapaz, “no confía en su palabra; cualquier cosa que diga el Otro, que
es el pobre, el pueblo, la tiene como inculta, como nada y por lo tanto no espera su
liberación. Esperar su liberación es firmar su certificado de muerte, porque es aprobar un
nuevo sistema. Es decir, es odio, es desconfianza y desesperanza del Otro”17. Assim, de
uma maneira sintética, podemos dizer que a Filosofia da Libertação propõe-se ver o Outro
como Outro, sem negá-lo ou reduzi-lo, mas sim, perceber a partir de uma ética libertadora
(seja a moralidade da práxis ou uma pedagogia libertadora) a agência do Outro para além
da totalidade existencial, seja cotidiana, seja epistêmica.
14Ibd. p. 136. 15Ibd. p. 138 16Ibd. p. 140. 17Ibd. p. 165.
1.3 O método analético
No método ontológico-dialético, a filosofia tenta chegar ao fundamento do mundo,
mesmo que seja potencial (futuro), porém, segundo Dussel, se detém perante o outro, como
“um rosto de mistério e liberdade, de história dis-tinta”. Assim, para a ele, a identidade se
diferencia nos entes, entretanto, tanto a identidade como a diferença são modos de
totalidade. A proposta é o uso de “distinto” ao invés de diferente, uma vez que o distinto é
aquele que nunca habitou a comunidade, que sempre será o Outro. E porque Dussel propõe
enfaticamente essa preservação do Outro como externo, fora da totalidade? O filósofo
argentino explica que na totalidade “não há história”. O que ocorre é sempre um retorno
para as mesmas categorias, dos mesmos fatos18. Dessa maneira, se o Outro é
compreendido como distinto, existe história, existe crise e contradição e “su palabra es ana-
lógica, en el sentido de que su lógos irrumpe interpelante desde más allá de mi
comprensión; viene a mi encuentro”19.
Portanto, a compreensão desse Outro além dos horizontes da totalidade passa pelo
método analético. Essa compreensão passa pela interpretação do Outro, exterior ao mundo
do sujeito – fundamentos, projeto existencial –, escapa do alcance histórico deste, pois o
Outro é outra história. A única maneira de interpretar essa história, então, seria a posteriori,
sob a crença na palavra do Outro20.
O filósofo latino-americano deve conhecer, em primeiro lugar o que é a sua
totalidade, perceber o viés ideológico dos sistemas de pensamento que lhe chegaram
desde os centros e negá-los. Só assim, ele pode chegar ao segundo passo que é, no
18"La totalidad es "lo mismo" y la estructura de la totalidad aunque sea analizada por el método estructuralista
no deja de ser por ello dominadora. El estructuralismo es el último estertor del pensamiento europeo, por el cual aún se nos esquematiza dentro del mundo europeo. Lo que voy a proponer es desestructurante o, si quieren, anti-estructuralista, porque es anti-totalidad opresora.
Como esa totalidad estructurada es "lo mismo", el único movimiento que le queda "es el eterno retorno de lo mismo" (Nietzsche). Vale decir: ¿qué otro movimiento le queda, sino repetirse?: la flor llega a ser fruto, se hace semilla y la semilla vuelve a comenzar el ciclo. Por eso el único movimiento que puede tener "lo mismo" (y esto es sostenido desde los griegos hasta Hegel y Nietzsche y aún hasta Heidegger que lo llama "la reiteración") es retorno. El retorno no se hace sobre el futuro nuevo, sino sobre el pasado; pero el pasado es "lo mismo" si hay eterno retorno. En este caso, si yo estoy en el presente, lo que yo haré en el futuro es pasado de mi presente; y lo que yo hice (que era mi pasado) es el futuro de lo que haré. No hay pasado, ni hay futuro, hay eterno devenir de "lo mismo". Esta repetición, ya lo verán ustedes, será el fundamento de la dominación de la mujer, de la dominación del hijo y de la dominación del hermano, es decir, de lo que en su momento será la alienación erótica, pedagógica y política, todas ellas cumpliéndose en América latina". Ibd. p. 121.
19Idb. p. 233. 20Ibd. p. 237.
silêncio, poder ouvir a voz do Outro, que vem da exterioridade da totalidade. “El filósofo, en
América latina, debe comenzar por ser discípulo del pueblo oprimido latinoamericano. En
la medida en que se compromete, aprenderá a pensar verdaderamente”. Desse modo, o
filósofo chega ao âmbito do Outro, pelo compromisso da palavra, do escutar e passa a
conviver com o Outro em seu mundo (o fim da negação deste, da dominação deste). Só
então, o filósofo pode retornar a sua totalidade – e retorna como crítico21.
Um último exemplo cabe ainda nessa explicação. O Outro é sempre o dominado, o
negado pela totalidade do dominador; portanto, a função do filósofo latino-americano é a
destruição dos grilhões do dominador, tem a função de ouvir o Outro analéticamente para
poder criticar essa totalidade e pensar a "ordem nova"22.
2. A colonialidade do poder e a gramática decolonial
Definidos os dois pontos-chave do pensamento de Dussel com os quais Mignolo
dialoga em seu trabalho, podemos nos deter na contextualização das categorias analíticas
decoloniais do nosso pensador argentino.
O primeiro ponto a se tratar no pensamento de Mignolo é a ideia de colonialidade.
No texto "Desafios Decoloniais hoje", o autor define a colonialidade como uma matriz ou
padrão de poder colonial, sendo está um complexo de relações que estão sob a retórica da
modernidade (ideia de salvação, progresso, felicidade, etc)23. Em "Desobediência
Epistêmica", Mignolo explica ainda que a colonialidade do poder é atravessada por
atividades e controles específicos dos mais diversos aspectos da vida, como a colonialidade
do saber, da maneira de ver, de fazer, do pensar e do ouvir, “en suma, la colonialidad del
poder remite a la compleja matriz o patrón de poder sustentado en dos pilares: el conocer
(epistemologia), entender o comprender (hermeneutica) y el sentir (aethesis)”24.
Dessa modo, a dominação do centro sobre a periferia, passa de maneira
fundamental pela legitimação empreendida pela colonialidade. Mignolo propõe a
decolonialidade como uma resposta necessária “tanto às falácias e ficções das promessas
21Ibd. p. 240 22DUSSEL, 1974, p. 79-81 23MIGNOLO, Walter. Desafios Decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, 2017. 24MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémíca : retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad,
gramática de la descolonialidad. - 1 ª ed.- Buenos Aíres: Del Signo, 2010.
de progresso e desenvolvimento que a modernidade contempla, como à violência da
colonialidade” (MIGNOLO, 2017). Essa resposta se dá a partir do entendimento que a
economia e a autoridade política dependem das bases do conhecer, compreender e sentir
coloniais. Em última instância, a colonialidade pode ser compreendida como uma rede de
crenças sobre as quais se atua e se racionaliza a ação do colonizado em proveito do
colonizador25.
Para Mignolo, a destruição da colonialidade não pode ser imaginada como uma
revolução global, pois esta estaria assentada sobre a própria lógica que sustenta a
colonialidade: a totalidade. A totalidade é entendida aqui como totalitária, universal, quando
a realidade é composta por uma heterogeneidade histórico-cultural que destrói a ideia linear
imperial – eurocêntrica. Ela é pluriversal. Então, o pensar decolonial deve ser pautado no
desprendimento epistêmico, levando em conta outras formas de conhecer26. E como isso
pode acontecer? A partir do método analético e da epistemologia de fronteira.
3. Pensamento fronteiriço
Outro aspecto central no pensamento decolonial é a ideia de pensamento fronteiriço.
Tal concepção parte justamente da noção de “Outro”, da alteridade. Vemos aqui, outra vez,
a convergência entre as categorias trabalhadas por Mignolo e Dussel. “Pensar habitando a
fronteira moderna/colonial, sendo consciente dessa situação, é a condição necessária do
pensar fronteiriço descolonial” (MIGNOLO, 2017). O pensar fronteiriço, sendo condição
necessária à decolonialidade, segundo Mignolo, tem sua genealogia em diferentes frentes,
desde Frantz Fanon à Enrique Dussel; Edward Said à Conferência de Bandung (1955),
onde o “Terceiro Mundo” se coloca em uma posição de fronteira, como uma terceira via;
optando – os decoloniais – pela sensibilidade de mundo, em detrimento da visão de mundo,
privilegiada na epistemologia ocidental.
Nesse sentindo, discutindo sobre os desafios decoloniais, Mignolo tece os
parâmetros que diferem a pensar decolonial dos esquemas da modernidade e da pós-
modernidade. Para ele, a grande diferença se encontra no fato de que a epistemologia
ocidental representada nessas duas categorias de análise (modernidade e pós-
25Ibd. p. 12. 26Ibd. p. 17.
modernidade) incorrem no mesmo erro: têm a pretensão totalizante de tornar um
conhecimento provinciano em um conhecimento global, ontológico. Isso, segundo Mignolo,
assim como também são as opções epistêmicas pelas modernidades subalternas,
alternativas ou periféricas, implicam em uma negação ou na tentativa de impedimento do
desenvolvimento do pensamento fronteiriço e da opção decolonial27.
Em outras palavras, a epistemologia fronteiriça é o desprendimento epistemológico.
Não se trata da emancipação, mas da libertação – nos termos de Dussel – da matriz colonial
eurocêntrica. De acordo com a perspectiva analética e a epistemologia de fronteira, o
desprendimento epistemológico é um pensar desde a alteridade, um destruir a dominação
colonial dos saberes coloniais; uma negação – interpelação – das narrativas ontológicas
modernas. Assim, Mignolo afirma que o desprendimento pressupõe um pensamento
fronteiriço no sentido de que o pensamento ocidental, fundacional da modernidade, é
inevitável – e aqui podemos ver outra vez a relação com Dussel no que diz respeito de
pensar a totalidade ocidental por dentro, ouvir o outro, e tornar-se crítico “exterior-interior”
dessa totalidade –, entretanto, limitada e perigosa28. A decolonialidade, portanto, consiste
em mudar os termos e não apenas o conteúdo da conversa (MIGNOLO, 2017).
4. Crítica ao marxismo
Walter Mignolo tece sua crítica ao marxismo no sentido, como já fora exposto acima,
em que compreende que este estaria envolto na ideia da totalidade. Mignolo afirma que o
marxismo não oferece ferramentes para pensar (n)a exterioridade, pois se trata de uma
invenção europeia que surgiu para enfrentar o capitalismo na Europa. O pensamento
marxista resultaria limitado no mundo não-moderno porque se mantém dentro da matriz
colonial do poder que cria exterioridades no espaço e no tempo (bárbaros, primitivos e
subdesenvolvidos) e, pela mesma razão, só serviria de “ajuda limitada a quem imigra do
mundo não-europeu a Europa e Estados Unidos. Pensar (n)a exterioridade exige uma
epistemologia fronteiriça” (MIGNOLO, 2017, p. 29).
27MIGNOLO, 2017. p. 26. 28MIGNOLO, 2010, p. 29.
Mignolo segue discorrendo no sentido de que a decolonialidade é justamente a
insubmissão epistêmica aos processos de discussão da realidade ocidentais. Sendo a
decolonialidade a "terceira via", ele atribuí o processo histórico de descolonização durante
a Guerra Fria à perspectivas decoloniais, refutando o comunismo – marxismo – de tal
processo histórico.
A sociedade política que emerge mundialmente (e inclui todo projeto de libertação
da colonialidade do saber, do poder e do ser), inclui tanto as lutas dos imigrantes
que rechaçam ser assimilados e promovem a descolonização, como a Via
Campesina, organização alimentar mundial para a soberania alimentar, estas e
tantas outras continuam o legado da Conferência de Bandung, já não a nível do
Estado, mas precisamente da sociedade política auto-organizada. Se a
descolonização, durante a Guerra Fria, não foi nem comunista nem capitalista, a
princípios do século XXI não é nem reocidentalização nem desocidentalização, mas
decolonialidade. A decolonialidade requer desobediência epistêmica, porque o
pensamento fronteiriço é por definição pensar na exterioridade, nos espaços e
tempos que a auto-narrativa da modernidade inventou como seu exterior para
legitimar sua própria lógica de colonialidade (MIGNOLO, 2017, p. 30).
Melhor fundamentada, mas ainda sobre a temática da totalidade excludente, Enrique
Dussel coloca em termo a análise de Marx da totalidade social capitalista europeia –
deixando fora o horizonte do Outro – em outras palavras, Marx teria desconsiderado o papel
das colônias em sua análise do ser explicado por meio da categoria do trabalho.
Al fin la ontología dialéctica sigue rigiendo y el proceso dialéctico es formalmente,
como para Hegel, el despliegue creciente con salto cualitativo (porque cuantitativo)
del ser, ahora como trabajo. Desde Descartes hasta Hegel el ser se confundió con
el pensar; en Feuerbach con lo sensible o la sensibilidad; en Marx el ser es la
laboriosidad o el trabajo como tal. Con esto hemos superado la religiosidad etérea
de Schelling, pero hemos perdido la exterioridad al ser: la libertad del otro que puede
revelar desde más allá, que puede trabajar desde más allá de la totalidad burguesa,
por ejemplo desde Latinoamérica, Africa, China, India. Marx ha dado un inmenso
paso que permite implementar al proceso concreto creciente de los pueblos, pero
no logra superar ni la totalidad como categoría última ni el país o la nación como
horizonte de su análisis (de hecho, y aunque en sus último años fue vislumbrando
la realidad del tercer mundo). Es verdad que habló de «la división internacional del
trabajo» pero no llegó a pensar dialécticamente la totalidad como un mercado
mundial, y por ello no pudo concluir igualmente la plusvalía del nivel colonial. Tales
hechos le hubieran exigido una corrección del método mismo, ya que la exterioridad
histórica de las colonias, no como colonias sino como culturas dis-tintas a la
europea, le hubiera exigido contar con el momento exterior del sistema capitalista
para comprender el despliegue de la nueva totalidad analógica que se está hoy
constituyendo en el mundo. (DUSSEL, 1974, p.147-148).
5. Pontos para reflexão: “Tudo que é sólido evapora no ar”
Alguns pontos dessa crítica decolonial ao marxismo merecem uma atenção
diferenciada. Entre elas, iremos nos deter nesse esboço na crítica à concepção de
totalidade no pensamento, que atribui ao marxismo uma reprodução do eurocentrismo; e
na afirmativa de Mignolo que coloca as lutas libertação colonial como processos que não
foram nem capitalistas, nem comunistas. Um terceiro ponto que será tratado é o próprio
entendimento de Mignolo sobre a sustentação da matriz colonial.
Totalidade
Primeiramente, se faz necessário ressaltar que o método materialista histórico não
está assentada em uma explicação meramente economicista, monocausalista. José Paulo
Netto em uma obra didática, “Introdução ao método de Marx”, explica que
“Tal concepção reducionista, que nada tem a ver com o pensamento de Marx, é
compartilhada também por muitos dos adversários teóricos de Marx. Weber, por
exemplo, criticou, na "concepção materialista da história", as explicações
"monocausalistas" dos processos sociais, isto é, explicações que pretendiam
esclarecer tudo a partir de uma única causa (ou "fator"); a crítica é procedente se
relacionada a teorias efetivamente "monocausalistas", mas é inteiramente inepta se
referida a Marx, uma vez que, como realçou um de seus mais qualificados
estudiosos, "é o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas
econômicas na explicação da história que distingue de forma decisiva o marxismo
da ciência burguesa" (Lukács, 1974, p. 14)”. (PAULO NETO, 2011, p. 14).
O debate que Marx faz está centrado na compreensão da sociedade burguesa.
Estas, dadas as particularidades, com o processo de colonização, não são exclusividade
europeia, em outras palavras, hoje vemos um capital que, apesar de ter uma manifestação
primeira na Europa, toma outras bandeiras (China, Japão, Rússia, Brasil, Arábia Saudita,
etc.), entretanto, em sua categoria mais simples, isto é, o trabalho, ainda temos um padrão
não confrontado pelas revoluções nacionais: a propriedade privada dos meios de produção
e a apropriação da mais-valia, trocando em miúdos, o modo de produção capitalista. Assim,
“o concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do
diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como
resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e,
portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX, 2008). A
totalidade em Marx não pode ser interpretado como algo excludente, homogêneo ou
restrito. Evidentemente que uma leitura ortodoxa, não crítica do pensamento de Marx
implica em anacronismos e subserviência às doutrinas eurocêntricas. Nesse caso, faz-se
necessário compreender que Marx escreve desde a sua “totalidade” - para usar Dussel –
mas seus mecanismos de análise, que servem para a análise da estrutura da sociedade
burguesa, servem como ferramentas excepcionais na atualidade e em outras regiões.
Como exemplo, podemos citar os extraordinários trabalhos de José Carlos Mariátegui
(Peru), Ruy Mauro Marini (Brasil), Oscar Creydt (Paraguai), entre tantos outros que
souberam utilizar as ferramentas do pensamento marxista para explicar a realidade, que
sendo outro ainda é parte de um todo concreto, dialético, síntese de muitas determinações,
unidade do diverso. Trabalhando com o colonizado (Outro) que só é colonizado por que
existe um colonizador.
Em “Peles Negras, Máscaras Brancas”, Frantz Fanon (eminente pensador Pós-
Colonial) afirma que a inferiorização do negro (do Outro) passa por um processo de
dominação econômica e depois pela inferiorização racial:
No entanto, permanece que a verdadeira desalienação do negro implica numa
súbita tinada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo
de inferioridade após um duplo processo: inicialmente econômico; em seguida pela
interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade (FANON, 2008,
p. 28)
Fanon, como menciona o próprio Mignolo, afirma que o processo de libertação é
necessidade de descolonizar não apenas o colonizado, mas também o colonizador – uma
vez que é com este último que reside o controle da economia e da política mundial – em
outras palavras, um movimento que não pode ser definido em outros termos que não
dialéticos.
Revoluções no Terceiro Mundo e imperialismo
Pois bem, Mignolo afirma que a descolonização, durante a Guerra Fria, não foi nem
comunista nem capitalista. Por mais que os elementos que compuseram as lutas de
independência desses países foram carregados de elementos locais – e o não-alinhamento
do Terceiro Mundo vem a confirmar isso – os processos de independência das nações
africanas e asiáticas após a Segunda Guerra Mundial tiveram importante claramente a
infusão elementos capitalistas e comunistas. Basta nos atermos aos processos de
independência e revolução em países como Coreia do Norte, Vietnã, Angola, Nicarágua
(do lado comunista); Líbia, Índia, e a maior parte dos países africanos (que tão logo se
tornaram independentes, se “integraram” ao mundo capitalista – alinhados politicamente ou
não). Por fim, podemos citar nomes como Fidel Castro, Che Guevara, Ho-Chi-Min ou Mao
Tse-Tung que participaram ou ao menos tiveram influência nos movimentos insurgentes em
todo o mundo29. Dessa maneira, nos parece um tanto quanto “ufanismo decolonial” a
maneira como Mignolo trata os processos de descolonização em seu texto “Desafios
Decoloniais hoje”.
Podemos ver também, nesse sentido, que se por um lado as ideias marxistas-
leninistas influenciaram a resistência dos povos colonizados, por outro, temos um processo
de manutenção do imperialismo desde os centros para a periferia. István Mézáros faz uma
observação importante do comportamento imperialista no século XXI e suas contradições:
“O imperialismo, por sua vez, e o concomitante necessário do impulso incansável
do capital em direção ao monopólio, e as diferentes fases do imperialismo
corporificam e afetam de modo mais ou menos direto as mudanças da evolução
histórica atual Com relação à fase presente do imperialismo, dois aspectos
intimamente relacionados têm importância fundamental. O primeiro é ser a
29ver. Hobsbawn, A ERA DOS EXTREMOS, 1995: Capítulo 15, “Terceiro Mundo e Revolução”
tendência material e econômica mais recente do capital a integração global que,
entretanto, não pode ser assegurada no plano político, por ter sido em grande parte
articulada ao longo da história sob a forma de uma multiplicidade de Estados
nacionais divididos e antagonicamente opostos. Sob este aspecto, nem mesmo as
mais violentas colisões imperialistas do passado seriam capazes de produzir um
resultado duradouro. O segundo aspecto do problema, que também é o outro lado
da mesma moeda, é que, apesar de todos os esforços visando a completa
dominação, o capital foi incapaz de produzir o estado do sistema do capital como
tal. Esta continua a ser a mais grave das complicações, apesar de toda a conversa
sobre "globalização". O imperialismo hegemônico global dominado pelos Estados
Unidos é uma tentativa condenada de se impor a todos os outros estados
recalcitrantes como o Estado "internacional" do sistema do capital como tal.
(MÉZÁROS, 2003, p. 6).
A exportação de capitais, que Lênin já descrevia em “Imperialismo: o estágio superior
do capitalismo”, que provocou a transformação que o capitalismo experimentou no final do
século XIX e início do século XX, fez com que as grandes potências viessem a conflagração
na Primeira Guerra Mundial. Entretanto, a análise de Lênin permanece atual no que diz
respeito a confluência do capital produtivo com o capital financeiro30 (influenciando
diretamente o Estado) em outras palavras, o controle exercido pelos bancos da economia
mundial, devido a concentração de capital aumenta a cada nova crise internacional. Esses
bancos são majoritariamente dos países centrais e, quando não são, têm grande parte de
seu capital controlado por eles31 - tornando, por exemplo, áreas como a Teoria Marxista da
Dependência necessárias para compreender o papel da subordinação e exploração dos
povos latino-americanos. E assim, podemos passar ao nosso terceiro e último tópico.
Matriz colonial sustentada no conhecer e compreender
Em "Desobediência Epistêmica", Mignolo afirma que a colonialidade do poder é
30"A união pessoal dos bancos com a indústria completa-se com a união pessoal de umas e outras sociedades
com o governo. “Lugares nos conselhosde administração - escreve Jeidels - são confiados voluntariamentea personalidades dc renome, bem como a antigos funcionários do Estado, os quais podem facilitar (ll) em grau considerável as relações com as autoridades... No conselho de administração de um banco importante encontramos geralmente algum membro do Parlamento ou da vereação de Berlim" (LÊNIN, 2008, P. 42)
31"O que caracterizava o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre concorrência, era a
exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação del capital" (Ibd. p. 61).
permeada por certos mecanismos de controle específicos. Uma delas, é a colonialidade do
saber. Esta se trata, em suma, do poder que remete “a la compleja matriz o patrón de poder
sustentado en dos pilares: el conocer (epistemologia), entender o comprender
(hermeneutica) y el sentir (aethesis)”.
Podemos encarar esses pilares – que Mignolo afirma sustentar a matriz colonial –
como saberes eurocêntricos permeados em seu âmago por ideologia. Marx afirma em “A
Ideologia Alemã”:
“A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas
de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de
autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem desenvolvimento; mas
os homens, ao desenvolverem sua produção e seus intercâmbios materiais,
transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu
pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência
como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos
próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua
consciência”. (MARX, 2007, p. 91)
Dessa maneira, por mais que a ideologia possua materialização (em ações,
instituições e saberes, por exemplo), ela é, em última instância, sustentada pelo modo como
os humanos lidam materialmente com o mundo. Lembrando que não é a ideia que define a
realidade, mas é a partir da realidade concreta é que se define a ideia (apreensão de
significados). Então, a manutenção de um modo de produção capitalista implica na
manutenção da hegemonia dos saberes eurocêntricos, da colonialidade do poder. O
rompimento com essa lógica passa pela via revolucionária. E a revolução não pode ser de
outra maneira, senão dialética: econômica e cultural.
O capitalismo com suas crises acentua cada vez mais as contradições internacionais
e locais. Não se trata de tão somente de uma violência simbólica ou de uma dominação
financeira, mas o imperialismo, como estágio do capitalismo, se atualiza e aliena; mata e
age perversamente em todos os cantos do globo. Mézáros traz alguns aspectos desse
recorrido histórico do capitalismo:
“A história do imperialismo mostra três fases distintas: 1. O primeiro imperialismo
colonial moderno construtor de impérios, criado pela expansão de alguns países
europeus em algumas partes facilmente penetráveis do mundo; 2. Imperialismo
"redistributivista" antagonisticamente contestado pelas principais potências em
favor de suas empresas quase-monopolistas, chamado por Lênin de "estágio
supremo do capitalismo", que envolvia um pequeno número de contendores, e
alguns pequenos sobreviventes do passado, agarrados aos restos da antiga riqueza
que chegou ao fim logo após o final da Segunda Guerra Mundial; e 3. Imperialismo
global hegemônico, em que os Estados Unidos são a força dominante, prenunciado
pela versão de Roosevelt da "Política de Porta Aberta", com sua fingida igualdade
democrática, que se tornou bem pronunciada com a eclosão da crise estrutural do
sistema do capital - apesar de ter se consolidado pouco depois do final da Segunda
Guerra Mundial - que trouxe o imperativo de constituir uma estrutura de comando
abrangente do capital sob um "governo global" presidido pelo país globalmente
dominante. Os que tiveram a ilusão de que o "neocolonialismo" do pós-guerra havia
criado um sistema estável, em que a dominação política e militar havia sido
substituída pela dominação econômica direta, tenderam a atribuir um peso
excessivo à permanência do poder dos antigos senhores imperialistas depois da
dissolução formal de seus impérios, subestimando ao mesmo tempo as aspirações
exclusivistas de dominação hegemônica global dos Estados Unidos e as causas
que lhes davam sustentação”. (MÉZAROS, 2003, p. 33)
Portanto, a práxis de libertação latino-americana não deve negar a narrativa
marxista, muito pelo contrário, o que se deve ser refutado – com veemência – são os
dogmatismos e as reproduções ideológicas do ethos burguês, branco, heterossexual,
machista e eurocêntrico. O que deve ser negado não é a dialética, o materialismo histórico,
mas sim, o capital. Não existe libertação da América Latina ou dos povos subalternos de
qualquer parte do mundo sem o rompimento com a opressão material e ideológica do
capital. Assim, toda disputa pelos significados locais, se não for acompanhada por uma
ação direta no modo como sujeitos se relacionam com a natureza, em outras palavras, se
não houver uma ressignificação do trabalho, todo intento de liberación, ainda que
sustentado discursivamente de maneira sólida, estará fadado a desmanchar-se no ar.
Bibliografia ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença, 1970. ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Editora Ática, 1988. DUSSEL, Enrique. Introducción a la Filosofia de la Liberación. Bogotá: Editorial Nueva América, 1995.
DUSSEL, Enrique. Método para una Filosofia de la Liberación: Superación analéctica de la dialéctica hegeliana. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1974.
FANON, Frantz. Peles Negras, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA: 2008.
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 2ª Ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. 4ª Ed. - São Paulo: Centauro, 2008. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª ed. - São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. ________. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998. MÉZÁROS, István. O Século XXI: socialismo ou bárbarie? São Paulo: Boitempo, 2003. MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémíca : retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad, gramática de la descolonIalidad. - 1 ª ed.- Buenos Aíres: Del Signo, 2010.
________. Desafios Decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, 2017.