Analise a Cidade e as Serras Anglo

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SISTEMA ANGLO DE ENSINO 93 ANGLO VESTIBULARES APRESENTAÇÃO Último romance de Eça de Queirós, publicado postumamente em 1901, A Cidade e as Serras é o desenvolvimento de um conto de sua autoria chamado A Civilização. Pertencendo à última fase da obra de Eça, esse romance apre- senta uma acentuada idealização da vida rural portuguesa, enten- dida como remédio para os males gerados pela civilização urbana do final do século XIX. A obra apresenta XVI capítulos, que, esquematicamente, podem ser divididos em dois blocos. O primeiro, constituído dos sete capítulos iniciais e parte do oitavo, passa-se em Paris e serve para caracterizar os requintes da civilização urbana. Nele, medi- ante o poder da ironia e do talento caricatural, Eça de Queirós vai compondo um quadro exasperante, em que o protagonista aos poucos se deixa vencer por um tédio irresistível e um pessimismo atroz. Jacinto tem cultura, prestígio e uma imensa fortuna, mas não é feliz. Da metade do oitavo capítulo ao último, o autor compõe o segundo bloco, que se contrapõe ao primeiro, sendo a sua antíte- se. Jacinto se regenera, torna-se ativo e entusiástico. O encontro com a natureza e a vida simples do meio rural proporciona-lhe a felicidade. Não deixa de haver humor, ironia e caricatura no idílio campestre de Jacinto, mas a arte de Eça, nesse segundo bloco, se compraz num estilo em que é notável a carga de lirismo, especial- mente nas descrições impressionistas da natureza. Como se verifica em A Ilustre Casa de Ramires, outra obra da última fase do autor, configura-se, em A Cidade e as Serras, a valorização de uma aristocracia rural degradada pela adoção de modelos de vida inautênticos, estrangeirados, que se regenera ao reencontrar-se com as raízes nacionais lusi- tanas, capazes de restituir a fibra empreendedora e infundir o espírito de generosidade humanitária. Como um todo, o romance A Cidade e as Serras pode ser visto como uma alegoria, isto é, uma metáfora desenvolvida numa narrativa de significado simbólico, segundo a qual a felicidade se encon- tra na vida simples e laboriosa do meio rural, e não no artificialismo enganoso da civilização urbana. ENREDO De Lisboa a Paris A história de Jacinto de Tormes começa bem antes de seu nascimento. Em Lisboa, nos idos de 1820, aproximadamente, seu avô, um gordíssimo e riquíssimo fidalgo, também chamado Jacinto, conhecido pela alcunha de D. Galião, escorregou numa casca de laranja e desabou em plena rua, sendo socorrido pelo infante D. Miguel, filho do rei D. João VI e herdeiro do trono. Desde então, o velho aris- tocrata dedicou um afeto sem limites ao príncipe, que o ajudara tão graciosamente. A CIDADE E AS SERRAS Eça de Queirós ANALISE DA OBRA JOSÉ DE PAULA RAMOS JR ´ Eça de Queirós

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AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOOÚltimo romance de Eça de Queirós, publicado postumamente

em 1901, A Cidade e as Serras é o desenvolvimento de um contode sua autoria chamado A Civilização.

Pertencendo à última fase da obra de Eça, esse romance apre-senta uma acentuada idealização da vida rural portuguesa, enten-dida como remédio para os males gerados pela civilização urbanado final do século XIX.

A obra apresenta XVI capítulos, que, esquematicamente,podem ser divididos em dois blocos. O primeiro, constituído dossete capítulos iniciais e parte do oitavo, passa-se em Paris e servepara caracterizar os requintes da civilização urbana. Nele, medi-ante o poder da ironia e do talento caricatural, Eça de Queirós vaicompondo um quadro exasperante, em que o protagonista aospoucos se deixa vencer por um tédio irresistível e um pessimismoatroz. Jacinto tem cultura, prestígio e uma imensa fortuna, mas nãoé feliz. Da metade do oitavo capítulo ao último, o autor compõe osegundo bloco, que se contrapõe ao primeiro, sendo a sua antíte-se. Jacinto se regenera, torna-se ativo e entusiástico. O encontrocom a natureza e a vida simples do meio rural proporciona-lhe afelicidade. Não deixa de haver humor, ironia e caricatura no idíliocampestre de Jacinto, mas a arte de Eça, nesse segundo bloco, secompraz num estilo em que é notável a carga de lirismo, especial-mente nas descrições impressionistas da natureza.

Como se verifica em A Ilustre Casa de Ramires, outra obra da última fase do autor, configura-se,em A Cidade e as Serras, a valorização de uma aristocracia rural degradada pela adoção de modelosde vida inautênticos, estrangeirados, que se regenera ao reencontrar-se com as raízes nacionais lusi-tanas, capazes de restituir a fibra empreendedora e infundir o espírito de generosidade humanitária.

Como um todo, o romance A Cidade e as Serras pode ser visto como uma alegoria, isto é, umametáfora desenvolvida numa narrativa de significado simbólico, segundo a qual a felicidade se encon-tra na vida simples e laboriosa do meio rural, e não no artificialismo enganoso da civilização urbana.

EENNRREEDDOO

DDee LLiissbbooaa aa PPaarriissA história de Jacinto de Tormes começa bem antes de seu nascimento. Em Lisboa, nos idos de

1820, aproximadamente, seu avô, um gordíssimo e riquíssimo fidalgo, também chamado Jacinto,conhecido pela alcunha de D. Galião, escorregou numa casca de laranja e desabou em plena rua, sendosocorrido pelo infante D. Miguel, filho do rei D. João VI e herdeiro do trono. Desde então, o velho aris-tocrata dedicou um afeto sem limites ao príncipe, que o ajudara tão graciosamente.

AA CCIIDDAADDEE EE AASS SSEERRRRAASSEça de Queirós

ANALISE DA OBRA JOSÉ DE PAULA RAMOS JR´

Eça de Queirós

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Em 1828, D. Miguel foi aclamado rei, aboliu aConstituição e restabeleceu o absolutismo no país.Seu irmão, D. Pedro, que abdicara o trono do Brasil,desembarcou em Portugal com um pequeno exércitoe, com apoio dos liberais, deflagrou a guerra civil de1832-34, que terminou com a vitória sobre os abso-lutistas. D. Miguel partiu para o exílio; Jacinto Galião,descontente com o desfecho adverso ao seu bem-amado rei, resolveu abandonar Portugal, partindocom a mulher, D. Angelina Fafes, o filho Cintinho epoucos criados para o desterro em Paris.

Na capital francesa, D. Galião adquiriu um lu-xuoso palacete, na Avenida dos Campos Elíseos, nú-mero 202, onde viveu regaladamente, até morrer de in-digestão. Sua viúva, D. Angelina, por comodismo per-maneceu em Paris, em vez de regressar a Portugal.

Cintinho foi crescendo fraco e doentio. Entre tossese sufocações, padecia de insônia freqüente, sempreperambulando à noite pelo palacete, a ponto de oscriados apelidarem-no Sombra. No outono de 1851,começou a cuspir sangue. Em vez de buscar climasmais salubres, como recomendava o médico, Cin-tinho resolveu ficar, pois estava apaixonado por Tere-sinha Velho, filha do desembargador Nunes Velho,amigo de família. Com ela se casou, mas morreupouco tempo depois, sem presenciar o nascimento dofilho, que veio ao mundo três meses após o faleci-mento do pai.

EEnnttuussiiaassttaa ddaa CCiivviilliizzaaççããooO menino também chamou-se Jacinto, mas, ao

contrário do progenitor, era um garoto extrema-mente saudável e vivaz. Nascido e criado em Paris,desde cedo revelara inteligência superior e forte per-sonalidade. Imensamente favorecido pela sorte, erachamado ”Príncipe da Grã-Ventura“ pelos amigos.

Já rapaz, Jacinto tornara-se um entusiasta do pro-gresso. Costumava dizer que o homem só é superior-mente feliz quando é superiormente civilizado. Suaidéia de civilização implicava o acúmulo erudito detodas as concepções adquiridas pela inteligência hu-mana, desde a Grécia antiga, aliado à utilização detodos os mecanismos inventados para potencializar odomínio do homem sobre a natureza. Assim, Jacintopassou a orientar sua vida segundo a fórmula:

Segundo Jacinto, a civilização era produto da ci-dade; somente nela o homem poderia afirmar suasuperioridade de ser pensante. A natureza, ao con-trário, inspirava-lhe horror; nela, ele sentia a anulaçãodo intelecto e a redução do homem à bestialidade.

Por uma conclusão bem natural, a idéia de civiliza-ção, para Jacinto, não se separava da imagem de cida-de, de uma enorme cidade, com todos os seus vastos

órgãos funcionando poderosamente. Nem este meusupercivilizado amigo compreendia que longe de ar-mazéns servidos por três mil caixeiros; e de mercadosonde se despejam os vergéis e lezírias1 de trinta pro-víncias; e de bancos em que retine o ouro universal; ede fábricas fumegando com ânsia, inventando comânsia; e de bibliotecas abarrotadas, a estalar, com apapelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cor-tadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, defios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes;e da fila atroante de ônibus, “tramways”, carroças, ve-locípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de doismilhões de uma vaga humanidade, fervilhando, a ofe-gar, através da polícia, na busca dura do pão ou sob ailusão do gozo — o homem do século XIX pudessesaborear, plenamente, a delícia de viver! [...]

Ao contrário, no campo, entre a inconsciência e aimpassibilidade da natureza, ele tremia com o terror dasua fragilidade e da sua solidão. Estava aí como perdidonum mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum silva-do encolheria os espinhos para que ele passasse; se ge-messe com fome, nenhuma árvore, por mais carregada,lhe estenderia o seu fruto na ponta compassiva dumramo. Depois, em meio da natureza, ele assistia à súbitae humilhante inutilização de todas as suas faculdadessuperiores. De que servia, entre plantas e bichos — serum gênio ou ser um santo? As searas não compreen-dem as Geórgicas2; e fora necessário o socorro ansiosode Deus, e a inversão de todas as leis naturais, e um vio-lento milagre para que o lobo de Agúbio não devorasseS. Francisco de Assis, que lhe sorria e lhe estendia osbraços e lhe chamava “meu irmão lobo!”. Toda a inte-lectualidade, nos campos, se esteriliza, e só resta a bes-tialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do Animalduas únicas funções se mantêm vivas, a nutritiva e a pro-criadora. Isolada, sem ocupação, entre focinhos e raízesque não cessam de sugar e de pastar, sufocando no cáli-do bafo da universal fecundação, a sua pobre alma todase engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fa-gulhazinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobreum naco de matéria; e nessa matéria dois instintos sur-diam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar.Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu ser tão no-bremente composto só restava um estômago e por bai-xo um “falus”! A alma? Sumida sob a besta. E necessita-va correr, reentrar na cidade, mergulhar nas ondas lus-trais da civilização, para largar nelas a crosta vegetativa,e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e jacíntico!3suma ciência × suma potência = suma felicidade

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1 Terrenos ribeirinhos. No texto, é metonímia de produtos agrí-colas.

2 Obra de Virgílio (séc. I a.C.), grande poeta da Antiguidaderomana, sobre os trabalhos agrícolas.

3 QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. Belo Horizonte, VillaRica, 1994. pp. 13-14. Nas demais citações da obra, sempredesta edição, apresentaremos apenas a numeração da páginaem que o texto se encontra, logo após sua transcrição.

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José Fernandes, narrador do romance, amigomais próximo de Jacinto, após alguns anos de estu-dos em Paris, teve de voltar a Portugal. Seu tio AfonsoFernandes, numa carta, lamentava que o peso de seussetenta anos e os males hemorroidais o impediam decuidar de sua propriedade rural, em Guiães, na regiãodo Douro, que ficava vizinha à casa senhorial dosJacintos, nas serras de Tormes. O velho tio ordenavaao sobrinho que voltasse ao lar, a fim de assumir agerência da propriedade. Zé Fernandes, então, aban-donou o curso de Direito e partiu para Portugal. Vol-tando à vida de aldeia, passava seus dias entre os cui-dados com a terra e o carinho da tia Vicência, que, empouco tempo, ficou viúva.

DDeessaassttrreess mmeeccâânniiccooss ee sseennttiimmeennttaaiissPor sete anos os amigos não se viram, até que, por

volta de 1887, Zé Fernandes, em viagem a Paris, reen-contra Jacinto. Na Avenida dos Campos Elíseos, nú-mero 202, o antigo palacete fora transformado numasíntese do mundo moderno, dotado de uma bibliote-ca com 30 mil volumes, que concentrava todo o saberproduzido pelo homem, e de toda espécie de máqui-nas e equipamentos de que a tecnologia era capazpara o conforto da vida. Nunca o 202, como era conhe-cido o palacete, fora tão magnífico, com o brilho da ele-tricidade, o conforto de elevadores, a parafernália detelefones, fonógrafos e telégrafos e o requinte de uten-sílios, máquinas e engenhocas de toda espécie.

Fase urbana de Jacinto de Tormes: pesca do peixeno poço do elevador…

Zé Fernandes, convidado por Jacinto, hospedou-seno 202. Participando do cotidiano daquela micrópolisultra-sofisticada, pôde testemunhar a falibilidadeexasperante dos prodígios tecnológicos. Eram canosque rompiam, inundando uma ala do palacete, paneselétricas e até mesmo o emperramento do ascensor depratos, que comprometeu um jantar de gala oferecidoao grão-duque Casimiro, amigo de Jacinto.

Nesse jantar, Zé Fernandes pôde observar maisde perto um resumo da alta sociedade parisiense: acondessa de Trèves, com sua lisonja fácil, ocupava-sede alimentar a vaidade de cada um, toda ela era umasublime falsidade; o conde de Trèves e seu comborço,o banqueiro judeu Efraim, tentavam convencer Jacintoa tornar-se acionista de uma mirabolante Companhiadas Esmeraldas da Birmânia, garantindo a segurançado empreendimento com um argumento estapafúr-dio, que denunciava tratar-se de uma negociata: —Esmeraldas! Está claro que há esmeraldas!... Há sem-pre esmeraldas desde que haja acionistas!; um psicólo-go cabotino alardeava seu profundo conhecimento daalma feminina, expresso em seu último romance, en-quanto o irônico diretor do jornal Boulevard, o duquede Marizac, divertia-se apontando um erro no roman-ce, que comprometia a credibilidade do autor; Dornan,celebrado poeta neoplatônico e místico, ouvia umahistória picante e, impassível, declarava: — Há me-lhor, há infinitamente melhor... Todos aqui conhecemMadame Noredal. Madame Noredal tem umas imen-sas nádegas...; Madame de Oriol, Madame Verghane,a princesa De Carman rivalizavam na elegância sedu-tora de trajes e modos; esses todos juntaram-se aosdemais convidados na arte da bajulação, quando che-gou o grão-duque Casimiro. Este, irmão de um impe-rador, do alto de sua majestade, interessava-se apenasem cançonetas obscenas e nos prazeres culinários eetílicos.

Três dias após essa festa, Jacinto recebeu uma cor-respondência de Portugal, com a informação de quesua propriedade nas serras de Tormes havia sidomuito castigada por uma terrível tempestade, que so-terrara uma capelinha do século XVI e o cemitério con-tíguo, onde jaziam vários ancestrais do fidalgo. Estetelegrafa a Silvério, seu administrador em Tormes, or-denando a reedificação da igrejinha e o resgate dasossadas, para o que não se poupariam despesas.

Jacinto, aborrecido com os desastres mecânicos,promove uma grande reforma no 202. Enquanto isso,Zé Fernandes conhece Madame Colombe, de quem setorna amante. Assim ele se pronuncia sobre o caso:

Durante sete furiosas semanas perdi a consciênciade minha personalidade de Zé Fernandes — Fernan-des de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigura-va ser um pedaço de cera que se derretia, com horren-da delícia, num forno rubro e rugidor; ora me pareciaser uma faminta fogueira onde flamejava, estalava e seconsumia um molho de galhos secos. Desses dias de

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sublime sordidez só conservo a impressão de umaalcova forrada de cretones sujos, de uma bata de lã decor lilás, com “soutaches” negros, de vagas garrafas decerveja no mármore de um lavatório, de um corpo tis-nado que rangia e tinha cabelos no peito. [...] Do sólido,decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restavauma carcaça errando através de um sonho, com asgâmbias4 moles e a baba a escorrer.

Depois, uma tarde, trepando com a costumadagula a escada da Rua do Hélder, encontrei a porta fe-chada — e arrancado da ombreira aquele cartão de“Madame Colombe” que eu lia sempre tão devota-mente e que era a sua tabuleta... Tudo no meu sertremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquela eraa porta do mundo que ante mim se fechara! Para alémestavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela. E euficara sozinho, naquele patamar do não-ser, fora daporta que se fechara, único ser fora do mundo! Roleipelos degraus, com o fragor e a incoerência de umapedra, até o cubículo da porteira e do seu homem quejogavam as cartas em ditosa pachorra, como se tãopavoroso abalo não tivesse desmantelado o universo!

— Madame Colombe?A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:— Já não mora... Abalou esta manhã, para outra

terra, com outra porca! (pp. 59-60)

TTééddiioo ee PPeessssiimmiissmmooCurado de sua infecção sentimental, Zé Fernan-

des retomou a camaradagem com o amigo Jacinto,que, ultimamente, dava sinais de grande melancolia.Grilo, o velho criado negro, dizia: Sua Excelência so-fre de fartura. De fato, os confortos proporcionadospelo progresso mecânico, toda erudição acumuladana vasta biblioteca, os apelos da sociedade elegante,nada satisfazia o Príncipe da Grã-Ventura, que setransfomara num homem taciturno, triste e asfixiadopor um tédio medonho. E essa disposição de espíri-to era refletida pela decadência física de Jacinto, quedefinhava visivelmente.

Para distrair o amigo, Zé Fernandes o leva a umpasseio a Montmartre, nos arredores de Paris, paraconhecerem a Basílica do Sacré-Coeur. A edificaçãonão os interessou muito, no entanto, a visão da cidadede Paris, do alto, causou-lhes profunda impressão. ZéFernandes faz uma longa reflexão sobre a cidade, con-siderando como toda a sua grandeza se apagava, vistade cima. Jacinto, observa: — Sim, é talvez tudo umailusão... E a cidade a maior ilusão!

Animado com a própria eloqüência, Zé Fer-nandes prosseguiu seu discurso, aduzindo que na ci-dade findava toda liberdade moral do ser humano:

Cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, ecada necessidade o arremessa para uma dependên-cia: pobre e subalterno, a sua vida é um constante so-licitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superiorcomo um Jacinto, a sociedade logo o enreda em tra-dições, preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos,serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou deum quartel [...].

Se ao menos essa ilusão da cidade tornasse feliz atotalidade dos seres que a mantêm... Mas não! Só umaestreita e reluzente casta goza na cidade os gozos es-peciais que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, sónela sofre, e com sofrimentos especiais que só nelaexistem! [...] Aí jaz, espalhada pela cidade, como estercovil que fecunda a cidade. [...] Ei-la agora coberta demoradas em que eles não se abrigam; armazenada deestofos, com que eles se não agasalham; abarrotada dealimentos, com que eles se não saciam! [...] A tua civili-zação reclama insaciavelmente regalos e pompas, quesó obterá, nesta amarga desarmonia social, se o Capitalder ao Trabalho, por cada arquejante esforço, uma mi-galha ratinhada. Irremediável, é, pois, que incessante-mente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada mi-séria é a condição do esplendor sereno da cidade. [...]Há andrajos em trapeiras — para que as belas mada-mas de Oriol, resplandecentes de sedas e rendas, su-bam, em doce ondulação, a escadaria da Ópera. Hámãos regeladas que se estendem, e beiços sumidosque agradecem o dom magnânimo de um “sou”5 —para que os Efrains tenham dez milhões no Banco deFrança, se aqueçam à chama rica da lenha aromáti-ca, e surtam de colares de safiras as suas concubinas,netas dos duques de Atenas. E um povo chora defome, e da fome dos seus pequeninos — para que osJacintos, em janeiro, debiquem, bocejando, sobre pra-tos de Saxe, morangos gelados em Champagne eavivados de um fio de éter! (pp. 67-69)

Quando ambos se preparavam para voltar a casa,Jacinto é chamado por Maurício de Mayolle, umamigo que não via há anos. Trava-se uma conversa,em que Zé Fernandes pôde observar como as doutri-nas filosóficas e estéticas eram experimentadas porcertas rodas elegantes como modas passageiras.Renanismo, hartmannismo, nietzschianismo, tolstois-mo etc. eram substituídas umas pelas outras, numaatitude de puro diletantismo.

Os sinais de enfado de Jacinto começaram a seacentuar mais; tanto que os próprios encontros comsua amante, a fina Madame de Oriol, tornaram-seum peso. Para aliviá-lo, Jacinto rogava que o amigoZé Fernandes o acompanhasse nas visitas vesperti-nas. Quanto a Madame de Oriol:

Ela só sabia chalrar sobre a sua pessoa, que era oresumo da sua classe, e sobre a sua existência, que

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4 Pernas, do italiano gamba. 5 Moeda de pouco valor.

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era o resumo do seu Paris; e a sua existência, desde ca-sada, consistira em ornar com suprema ciência o seulindo corpo; entrar com perfeição numa sala e irradiar;remexer em estofos e conferenciar pensativamentecom o grande costureiro; rolar pelo “Bois”6 pousadana sua vitória como uma imagem de cera; decotar ebranquear o colo; debicar uma perna de galinhola emmesas de luxo; fender turbas ricas em bailes espes-sos; adormecer com a vaidade esfalfada; percorrer demanhã, tomando chocolate, os “ecos” e as “festas” do“Figaro”7; e de vez em quando murmurar para o ma-rido — “Ah, és tu?...” (pp. 76-77)

Em uma dessas visitas, na escadaria do jardimda casa, os amigos encontram o marido de Mada-me de Oriol, que saía emocionado. Passa-se uma ce-na constrangedora.

— Visita lá em cima? Vai achar a Joana em péssi-ma disposição... Tivemos uma cena, e tremenda.

Deu outro puxão desesperado à luva cor de pa-lha, já esgarçada:

— Estamos separados, cada um vive como lheapetece; é excelente! Mas em tudo há medida eforma... Ela tem o meu nome, não posso consentirque em Paris, com conhecimento de todo o Paris,seja amante do trintanário. Amantes da nossa roda,vá! Um lacaio, não!... Se quer dormir com os criadosque emigre para o fundo da província, para a suacasa de Corbelle. E lá até com os animais!... Foi o queeu lhe disse! Ficou como uma fera. (pp. 78-79)

Zé Fernandes parte para uma viagem de algu-mas semanas pelas cidades da Europa. De volta aParis, encontra o amigo mais melancólico ainda. Eletornara-se adepto da filosofia pessimista, passandoseus dias na leitura do Eclesiastes bíblico e dasobras de Schopenhauer. Aos trinta e quatro anos deidade, Jacinto, apesar de todo conforto, de toda ri-queza e de todo prestígio que gozava na sociedadeparisiense, sentia a vida como um peso esmagador,que o fazia sucumbir.

AA CCaammiinnhhoo ddaass SSeerrrraassNuma manhã de fim de inverno, Jacinto sur-

preende Zé Fernandes com a resolução de ir a Tor-mes para a inauguração da igrejinha, que ficarapronta, e para o traslado e sepultamento das ossadasancestrais. Os preparativos para a viagem toma-ram três meses. Jacinto despachou para Tormes vá-rias caixas com móveis, livros, tapetes e objetos ca-pazes de fazer do solar rústico da serra, edificadoem 1410, um simulacro do 202.

Em abril, com a primavera, Zé Fernandes e oamigo Jacinto, que nunca estivera em seu país, par-tiram para as serras portuguesas. A viagem foi tu-multuada. Na baldeação do trem, em Medina, na Es-panha, perderam-se os criados, com todas as baga-gens. Assim, os dois amigos chegaram à estação deTormes apenas com as roupas do corpo. Para piorara situação, ninguém os aguardava; e eles tiveram queseguir para a propriedade de Jacinto em dois ani-mais emprestados, uma égua e um burro.

No caminho, Jacinto se encanta com a paisa-gem, mas ao chegar à sede da quinta (propriedaderural), nova decepção aguardava os amigos. Ovelho solar senhorial tinha um aspecto lúgubre, asobras ordenadas corriam muito lentamente e ascaixas despachadas de Paris haviam sido extravia-das para Alba de Tormes, na Espanha, como depoisse soube.

Zé Fernandes, então, propôs que Jacinto fossecom ele, no dia seguinte, para sua quinta em Guiães;mas o amigo, furioso com o contratempo, decidirarumar para Lisboa. O jantar simples e farto, que lhesfoi servido pelos empregados de Tormes, de típicaculinária serrana, foi muito elogiado pelos fidalgos.Jacinto, que há anos sofria de inapetência, comeu comenorme prazer. Cansados da viagem, ambos dormi-ram em camas improvisadas sobre o chão de pedra.No dia seguinte, Zé Fernandes partiu para sua pro-priedade, de onde enviou a Jacinto alguma roupa,objetos de asseio e livros.

Passada uma semana, Zé Fernandes recebeu asbagagens que se haviam extraviado em Medina. Te-legrafando a Lisboa, onde pensava estar Jacinto,para acusar o recebimento das malas, não obteveresposta. Mais quatro semanas se passaram, até ZéFernandes descobrir que o amigo não saíra de Tor-mes, desde a chegada. Num domingo, rumou paralá, encontrando o velho solar em obras e, emboraainda muito despojado, em condições mais higiêni-cas e habitáveis. Zé Fernandes surpreende-se comJacinto, revigorado pelo ar e pela comida saudávelda serra. Era outro homem. Recobrara a alegria deviver. E o motivo da transformação fora a descobertada natureza e da vida campestre.

Na tarde desse dia, os amigos foram passear pe-la quinta.

Era com delícias, com um consolado sentimentode estabilidade recuperada, que [Jacinto] enterravaos grossos sapatos nas terras moles, como no seuelemento natural e paterno: sem razão, deixava ostrilhos fáceis, para se embrenhar através de arbustosemaranhados, e receber na face a carícia das folhastenras; sobre os outeiros, parava, imóvel, retendo osmeus gestos e quase o meu hálito, para se embeber desilêncio e de paz; e duas vezes o surpreendi atento esorrindo à beira dum regatinho palreiro, como se lheescutasse a confidência...

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6 Bosque, em francês. Trata-se do famoso Bosque de Bolonha,em Paris.

7 Jornal parisiense.

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Depois filosofava, sem descontinuar, com o en-tusiasmo dum convertido, ávido de converter:

— Como a inteligência aqui se liberta, hem? E co-mo tudo é animado duma vida forte e profunda...!Dizes tu agora, Zé Fernandes, que não há aqui pen-samento...

— Eu?! Eu não digo nada, Jacinto...— Pois é uma maneira de refletir muito estreita e

muito grosseira...— Ora essa! Mas eu...— Não, não percebes. A vida não se limita a pen-

sar, meu caro doutor...— Que não sou!— A vida é essencialmente vontade e movimen-

to: e naquele pedaço de terra, plantado de milho, vaitodo um mundo de impulsos, de forças que se reve-lam, e que atingem a sua expressão suprema, que é aforma. Não, essa tua filosofia está ainda extrema-mente grosseira...

— Irra! mas eu não...—E depois, menino, que inesgotável, que mira-

culosa diversidade de formas... E todas belas!Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu

reparasse com reverência. Na natureza nunca eudescobriria um contorno feio ou repetido! Nuncaduas folhas de hera, que, na verdura ou recorte, seassemelhassem! Na cidade, pelo contrário, cada casarepete servilmente a outra casa; todas as faces repro-duzem a mesma indiferença ou a mesma inquie-tação; as idéias têm todas o mesmo valor, o mesmocunho, a mesma forma, como as libras; e até o quehá mais pessoal e íntimo, a ilusão, é em todos idênti-ca, e todos a respiram, e todos se perdem nela comono mesmo nevoeiro... A mesmice — eis o horror dascidades! (pp. 125-126)

Jacinto pensava ficar em Tormes no máximodois meses, até a inauguração da igrejinha e tras-ladamento dos restos dos antepassados. No entanto,foi alongando sua estada, cada vez mais entusiasma-do com sua quinta, para a qual tinha grandes planos.

Após as primeiras semanas contemplativas, Ja-cinto começou a manifestar desejo de ação. Inex-periente nos trabalhos rurais, o fidalgo sonhavatransformar sua rústica serra numa propriedademoderna, aproveitando os largos espaços inativoscom um imenso prado, onde se criaria gado de raça,para fabricação de queijos finos. Para realizaçãodisso, do modo sofisticado que Jacinto pensava, serianecessário um vultoso investimento, que elevaria oscustos de produção a ponto de trazer enorme pre-juízo. O administrador de Tormes, Silvério, opu-nha-se aos sonhos mirabolantes do patrão, argumen-tando que, se ele quisesse gastar tanto dinheiro,que o fizesse em outras propriedades que possuía,espalhadas por Portugal, em que as terras eram dequalidade superior.

Mas, infelizmente para a quietação do Silvério, Ja-cinto lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes na suarude serra. Era realmente como se o tivessem plantadode estaca naquele antiquíssimo chão, de onde brotara asua raça, e o antiquíssimo humo8 refluísse e o pene-trasse todo, e o andasse transformando num Jacintorural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão,como as árvores que ele tanto amava.

E depois, o que o prendia à serra era o ter nelaencontrado o que na cidade, apesar da sua sociabili-dade, não encontrara nunca, — dias tão cheios, tãodeliciosamente ocupados, de um tão saboroso inte-resse, que sempre penetrava neles, como numa festaou numa glória. (p. 139)

Contudo, os planos de Jacinto ficavam no pa-pel, devido à resistência respeitosa do adminis-trador Silvério, que sempre dava um bom motivopara não se iniciarem as reformas.

Quando Jacinto ralhava com Zé Fernandes, por-que este não se enlevava com os encantos da natu-reza, o amigo advertia:

— Meu filho, olha que eu não passo de um pe-queno proprietário. Para mim não se trata de saberse a terra é linda, mas se a terra é boa. Olha o quediz a Bíblia! “Trabalharás a quinta com o suor do teurosto!” E não diz “contemplarás a quinta com o enle-vo da tua imaginação!” (p. 142)

Com o passar do tempo, Jacinto foi se familia-rizando com os trabalhos rurais, sentindo prazer emconversar com os camponeses. Numa manhã dechuva tempestuosa, porém, ao abrigar-se na casa deum empregado seu, ficou chocado com a miséria queencontrou. Informado das condições precárias dostrabalhadores, que desconhecia, ordenou ao admi-nistrador Silvério a construção de habitações de-centes para todos e a revisão de contratos de traba-lho, no intuito de melhorar a renda dos empregados.

A quinta de Tormes torna-se um imenso can-teiro de obras. Jacinto, além de habitações aos tra-balhadores, estava determinado a construir uma es-cola, uma creche para os bebês, uma biblioteca e ainstalar uma farmácia, que atenderia toda região. Apopularidade do fidalgo torna-se enorme, sendoreconhecido como um grande benfeitor dos pobres.João Torrado, um velho ermitão, figura folclórica,meio adivinho, afirmava a todos que Jacinto era D.Sebastião (sebastianismo), que voltara.

HHaappppyy EEnnddJacinto, indo a Guiães, por ocasião do aniver-

sário de Zé Fernandes, hospedou-se na casa dele econheceu, finalmente, a tia do amigo, Vicência, queficou encantada de sua pessoa. Na festa, Jacinto foi

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8 Matéria orgânica de grande importância para a constituiçãoe regeneração do solo.

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apresentado à sociedade da região, que o recebeucom reservas cerimoniosas, pois corria o boato deque o fidalgo de Tormes fora a Portugal para cons-pirar a favor do absolutismo, levando consigo, dis-farçado de lacaio, o filho do banido D. Miguel. Aosaber disso, quando foram embora os convidados,Jacinto mostrou-se surpreso, mas considerou: Vouter aqui bons amigos, quando verificarem que nãosou miguelista. Na verdade, Jacinto era simpatizantedo socialismo, como afirmou à tia Vicência. Como aboa senhora ignorava o que era, Zé Fernandes expli-cou que socialista era ser pelos pobres.

Jacinto conhece uma prima de Zé Fernandes,Joaninha, por quem se apaixona e com quem se ca-sa. Passados cinco anos, o casal vivia feliz com seusdois filhos, Terezinha e Jacintinho. A paternidade de-ra a Jacinto senso de responsabilidade e disciplina,tornando-o um proprietário muito cioso do equilíbrioentre despesas e receitas; os sonhos quiméricos sedissiparam, dando lugar a um sólido conhecimentodas coisas rurais, que ele aplicava, zelosamente, emtodas as suas prósperas propriedades, e não apenasna de Tormes.

Com a perspectiva do nascimento de Terezinha,Jacinto estabeleceu equilíbrio entre o culto à civi-lização e o fanatismo pela simplicidade. Ele mandarabuscar as caixas mandadas de Paris e extraviadaspara Alba de Tormes, mas a maior parte foi arma-zenada nos sótãos; de seus conteúdos, aproveita-ram-se apenas cortinas, tapetes e alguma mobília,de modo que a simplicidade do velho solar foi pre-servada. Mandara, também, instalar telefones emsua casa, na do sogro, do médico e do amigo Zé Fer-nandes, que começou a temer uma recaída de Ja-cinto naquela ânsia de progresso dos tempos de Pa-ris, mas isso não se confirmou. De fato, Jacinto con-quistara a paz de espírito, capaz de aproveitar do pro-gresso apenas o que realmente fosse útil, sem desco-medimento.

Muitas vezes, Jacinto manifestava o desejo de le-var mulher e filhos a Paris, para que conhecessem agrande metrópole, mas como a viagem era sempreadiada, Zé Fernandes, que os acompanharia, deci-diu ir só. Lá chegando, reencontrou velhos conheci-dos, que continuavam a mesma existência de frivoli-dade e inautenticidade. Desencantado, despediu-seda cidade, disposto a não mais voltar, regressando aPortugal. Ao descer na estação, a família de Jacinto oaguardava. Festivamente, tomaram o rumo do solarde Tormes, enquanto Zé Fernandes refletia:

E na verdade me parecia que por aqueles cami-nhos, através da natureza campestre e mansa, — omeu príncipe, atrigueirado nas soalheiras e nos ven-tos da serra, a minha prima Joaninha, tão doce erisonha mãe, os dois primeiros representantes dasua abençoada tribo, e eu, — tão longe de amargu-radas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo

eterno, e de eterna solidez, com a alma contente, eDeus contente de nós, serenamente e seguramentesubíamos — para o Castelo da Grã-Ventura! (p.192)

AANNÁÁLLIISSEE DDAA OOBBRRAA

FFooccoo NNaarrrraattiivvooO foco narrativo de A Cidade e as Serras é centra-

do na primeira pessoa. O narrador, Zé Fernandes,embora seja personagem importante do romance,não é protagonista. Trata-se de um narrador tes-temunha, que observa de perto os acontecimentosque relata. Ele não sabe tudo sobre a história, co-mo os narradores oniscientes; seu conhecimentodos fatos limita-se àquilo que presencia, ou ao queindiretamente lhe é dado saber. Quanto às perso-nagens com que se relaciona, só as conhece peloque manifestam; se há discordância entre o que de-claram e seus pensamentos e sentimentos mais ínti-mos, o narrador não é capaz de saber com certeza.

O leitor conhece indireta e parcialmente fatos epessoas, uma vez que são apresentados mediante ofiltro da subjetividade. Assim, o retrato das perso-nagens depende da sensibilidade, capacidade deobservação e disposição afetiva do narrador; a apre-sentação dos fatos resulta da seleção e combinação,empreendida pelo narrador, dos elementos que osconstituem, aos quais ele teve acesso direta ou indi-retamente; os juízos de valor formulados decorremdos valores assumidos pelo narrador.

Embora não se possa confundir autor (Eça deQueirós) e narrador (Zé Fernandes), o primeiro se valedo segundo para passar a tese que está na base daobra, a da superioridade da vida rural sobre acivilização urbana e desumanização do homemnas grandes cidades.

PPeerrssoonnaaggeennssZé Fernandes reserva às personagens secun-

dárias um espaço muito modesto na narrativa; sãocoadjuvantes que intervêm episodicamente, quandopenetram no raio de ação do protagonista Jacinto,ou do próprio Zé Fernandes. Por esse motivo, suascaracterizações são muito esquemáticas; o narradornão as acompanha ou analisa, a não ser quandosuas ações interessam para configurar as reaçõesde Jacinto, de modo a modular sua personalidade,ou definir sua trajetória.

Essas personagens secundárias não são propria-mente indivíduos; são generalizações, que ilustramtipos humanos, isto é, modelos gerais de comporta-mento ou personalidade. Eça de Queirós, através donarrador, caracteriza-as com pinceladas grossas,usando o método da caricatura, de que é mestre.Freqüentemente, apresentam traços ridículos, quedenunciam a intenção satírica e crítica do autor.

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A única personagem mais desenvolvida, fora oprotagonista, é a do próprio narrador Zé Fernandes,que não é um simples coadjuvante, como as demais,mas um deuteragonista, isto é, a segunda persona-gem em importância, que forma um par com o pro-tagonista. Na verdade, Zé Fernandes é uma espécie deduplo de Jacinto, um seu complemento; juntos, cons-tituem uma totalidade, em que o caráter impulsivo dosegundo é contrabalançado pelo perfil mais compas-sivo do primeiro. É como se fossem uma atualização,embora em escala e sentido diferentes, da duplainesquecível de Cervantes: Sancho Pança (Zé Fernan-des) e D. Quixote (Jacinto), em que o primeiro encarnao espírito realista, e o segundo, o idealista.

Zé Fernandes representa o fidalgo culto, viajadoe perfeitamente identificado com suas raízes ruraislusitanas, conformação que lhe dá a força de umcaráter bem centrado em si. Espírito prático e benig-no, tendo como principal característica psicológica otemperamento afetuoso e compreensivo, constituiuma espécie de personificação da amizade.

Num elucidativo ensaio9, Alvaro Santos SimõesJunior demonstra como Zé Fernandes é a persona-gem mais complexa do romance, dotado que é deum caráter energético, nuançado pela ironia, malíciae, em alguns momentos, até mesmo pelo cinismo.

Jacinto é o protagonista. Sua genealogia, modode vida, aspecto físico, suas idéias e sentimentos,seus estados psicológicos e sua trajetória de Paris aTormes, sempre no limite da narrativa em primeirapessoa, são apresentados minuciosamente ao leitor.

Jacinto representa a elite portuguesa ultracivi-lizada, que se desenraizou do solo e da cultura lusi-tana. Cidadão do mundo, identificado com o espíritodo progresso mecânico do século XIX, ele passa asofrer uma terrível crise existencial, desencadeada,exatamente, por esse espírito insaciável de novi-dades, que nunca tem repouso ou sossego. Refémda insatisfação, sua alma se estiola num tédio pro-fundo, que o encaminha para o pessimismo filosófico.Somente o reencontro das raízes nacionais e fami-liares, na simplicidade da vida rural serrana de Tor-mes, restitui-lhe a paz e alegria de viver.

A trajetória existencial de Jacinto é marcada portrês momentos. Inicialmente, ele nega o campo, queconsidera como imagem do embrutecimento espiri-tual e bestificação do homem, afirmando a cidade co-mo imagem-síntese do progresso e da civilização;num segundo momento, seu tédio e desencanto davida urbana desencadeia o movimento inverso denegação da cidade, como imagem da hipocrisia eaviltamento, e afirmação do campo, como imagem

da regeneração das virtudes autênticas do homem;finalmente, dá-se a síntese dialética, em que cidadee campo se reconciliam, sob a hegemonia do segun-do: Jacinto realiza o equilíbrio dos dois termos, ad-mitindo certas conquistas da civilização, de formamoderada, para melhor aproveitar os benefícios su-periores da natureza, sendo que esta se cristalizacomo a verdadeira fonte de felicidade e paz.

O nome do protagonista contém em si mesmo atrajetória de sua vida, pela evocação do mito quelhe é implícito. Jacinto é nome de uma personagemda mitologia grega. Jovem de notável beleza, eraamado pelo deus Apolo. Um dia em que se diverti-am com exercícios atléticos, o disco lançado porApolo foi desviado pelo vento, atingindo Jacinto ematando-o. Apolo, para imortalizar o amigo, trans-formou-o na flor que recebeu seu nome. Apolo, deusda cultura e civilização, amava o Jacinto mítico, as-sim como a cidade de Paris, símbolo da cultura ecivilização, amava o Jacinto moderno; Apolo, apesarde seu amor, provocou a morte do amigo, assimcomo Paris provocava o definhamento de seu pre-dileto; Apolo restituiu vida ao amigo plantando-o naterra e metamorfoseando-o em flor; Paris restituiuJacinto às suas origens rurais, completamente des-pojado dos bens da civilização — ele chega a Tor-mes somente com a roupa do corpo —, para ressus-citar pleno de energia para a vida.

TTeemmppooA Cidade e as Serras compreende uma narrativa

que se inicia em torno de 1820, estendendo-se atécerca de 1893. O relato segue a cronologia linear-mente, mas não de forma contínua; há alguns blo-cos de tempo bem definidos, entre os quais se inter-põem períodos mais ou menos longos.

O primeiro bloco abrange o período que vai de1820, aproximadamente — quando D. Galião, avôde Jacinto, é socorrido de uma queda, numa rua deLisboa, pelo infante D. Miguel —, até fins de 1853 einício de 1854, quando, respectivamente, morre opai de Jacinto e este nasce, em Paris. Este primeirobloco é apresentado de forma muito sintética, atra-vés da técnica do sumário narrativo. O segundobloco, situado na segunda metade dos anos 1870,apresenta o protagonista em sua juventude, entusias-mado pelo progresso e pela civilização urbana, naépoca em que conhece o amigo Zé Fernandes e esta-belece com ele estreita camaradagem. Este bloco,que se encerra em 1880 com a partida de Zé Fer-nandes para a aldeia de Guiães, após alguns anosde estudo em Paris, também se apresenta na formade sumário narrativo. Esses dois blocos iniciais en-contram-se no primeiro capítulo do romance.

O terceiro bloco, que vai do capítulo II ao VII,compreende o período de um ano que se estende

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9 SIMÕES Jr., Alvaro S. “A Cidade e as Serras: a palinódia de Eçade Queirós — um estudo do foco narrativo”, In: Miscelânea.Universidade Estadual Paulista, Assis, 1993.

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de fevereiro de 1887 a fevereiro de 1888. Aqui o méto-do narrativo é mais analítico; se, no primeiro esegundo blocos, predomina a técnica do sumário, noterceiro, prevalece a da cena, em que os aconteci-mentos são expostos detidamente, com minúcia dedetalhes. A narrativa dramatiza os fatos selecionadospelo narrador, que apresenta o cotidiano sufocantede Jacinto, em meio a suas obrigações sociais. Osepisódios narrados têm a função de compor umaimagem da vida urbana, em que o protagonista acabasucumbindo ao tédio e pessimismo.

O quarto bloco é composto pelos capítulos de VIIIa XIV, em que se mantém o método predominante dacena. A ação se concentra, a exemplo do terceirobloco, na dramatização de episódios que transcorremno período de um ano, desde a partida de Jacinto eZé Fernandes, de Paris para Tormes, em abril de1888, até maio de 1889, quando Jacinto se casa comJoaninha. Aqui, a narrativa se concentra na apresen-tação de Jacinto convertido ao meio rural, entusias-mado com a vida simples e laboriosa de sua quinta,havendo reconquistado a alegria de viver.

O último bloco temporal, composto dos capítu-los XV e XVI, retoma a primazia do método de su-mário narrativo, para concluir o romance com aapresentação da felicidade familiar de Jacinto, comsua mulher e filhos.

EEssppaaççooO elemento espacial é decisivo na estruturação de

A Cidade e as Serras. O romance é nitidamente construído a partir de uma relação opositiva, que seapresenta desde o título. De um lado, o meio urba-no; de outro, o meio rural. Mais, essa oposição bási-ca se desdobra, ao longo da narrativa, na forma deum jogo dialético de afirmação e negação de cadaum dos termos.

Na perspectiva do espaço, a obra divide-se emduas partes, mediadas por uma terceira, que servede transição entre elas. A primeira é constituída pe-los capítulos de I a VII; a segunda, pelos capítulosde IX a XVI, sendo o capítulo VIII de transição.Observe-se o equilíbrio quase perfeito entre as par-tes: sete capítulos, a primeira; oito, a segunda; como de transição no meio. Se considerarmos que amaior parte deste último se identifica com o espí-rito da primeira parte, então, a impressão de equi-líbrio se acentua, pois teríamos a obra organizadaem dois blocos iguais de oito capítulos.

No primeiro bloco, genericamente, a cidade seapresenta investida de valores positivos, enquanto ocampo se caracteriza negativamente. A cidade,nesse caso, representa o mundo da cultura e civili-zação, o espaço privilegiado do progresso científico etecnológico, que é visto como responsável pela hu-manização do homem. O campo, ao contrário, é o

domínio da natureza e da selvageria, que degrada ohomem, reduzindo-o à condição de bestialidade.

No segundo bloco, invertem-se as relações. A ci-dade é carregada de negatividade, apresentando-secomo espaço de aviltamento do homem. O progres-so é visto como ilusão, uma vez que constitui privi-légio de poucos, ao preço da exploração de muitos.O luxo da elite minoritária decorre da condição mi-serável da maioria desfavorecida. Além disso, a pro-fusão de bens materiais e espirituais, na cidade,provoca uma espécie de anulação de seus valoresespecíficos, uma vez que tendem à padronizaçãoniveladora. Como diz Jacinto:

Na cidade, pelo contrário, cada casa repete servil-mente a outra casa; todas as faces reproduzem a mes-ma indiferença ou inquietação; as idéias têm todas omesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, comoas libras; e até o que há mais pessoal e íntimo, a ilusão,é em todos idêntica, e todos a respiram, e todos seperdem nela como no mesmo nevoeiro... A mesmice— eis o horror das cidades! (p. 126)

Nessa fala de Jacinto ecoa aquela formulação deMarx segundo a qual, na sociedade capitalista, to-dos os valores se reduzem a um só, ou, em outros ter-mos, o valor de uso dos bens materiais e espirituais,que é múltiplo, reduz-se a um único valor, de troca.

Por outro lado, essa redução, esse nivelamento,produz um efeito perverso. Uma vez que o desejo denovidade, típico da civilização moderna, nunca é saci-ado, pois tudo é o mesmo, a própria elite, beneficiá-ria do progresso, torna-se presa de um terrível mal —o tédio, que conduz ao pessimismo e ao desencantoda vida.

Enquanto a cidade é assim criticada, o campo évisto idilicamente. A natureza se apresenta comoespaço de libertação da inteligência e ressurreiçãopara a vida autêntica. Trata-se de uma idealizaçãoda vida rural, conforme a tradição clássica, desdeHesíodo (século VIII a.C.), Virgílio (século I a.C.), atéos poetas árcades do século XVIII, segundo a qual avida campestre é fonte de paz e felicidade. De Vir-gílio, por sinal, são os versos citados no capítulo IXde A Cidade e as Serras, ligeiramente modificadospor Eça de Queirós para se adaptarem à situação doprotagonista: Fortunate Jacinthe! Hic, interava nota /Et fontes sacros, frigus captabis opacum...10 (Afor-tunado Jacinto! Aqui, em meio a terras conhecidas /E fontes sacras, colherás sombra e frescor), que oautor traduz livremente por: Afortunado Jacinto, naverdade! Agora, entre campos que são teus e águasque te são sagradas, colhes enfim a sombra e a paz!

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10 Os versos originais de Virgílio dizem: Fortunate senex, hicinter flumina nota / et fontis sacros frigus captabis opacum.(Afortunado velho, aqui entre rios conhecidos / e sacrasfontes, colherás sombra e frescor). Bucólicas, I, versos 50 e 51.

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É fato que, no romance, essas relações todas nãosão tão esquemáticas como as apresentamos. Na ver-dade, nos capítulos de I a VIII, prevalece o elogio dacidade, cuja superioridade se celebra. No entanto, ZéFernandes, por exemplo, levanta sérias objeções aoentusiasmo irrestrito de Jacinto pela urbanidade. Poroutro lado, nos capítulos de IX a XVI, predomina aapologia da natureza, apresentada como superior àcidade. Mas, aqui também, o ímpeto idealizador deJacinto é temperado com as ponderações realistas deZé Fernandes sobre a natureza (— Meu filho, olhaque eu não passo de um pequeno proprietário. Paramim não se trata de saber se a terra é linda, mas se aterra é boa.), ou com a revelação da existência demiséria entre os camponeses.

Outra consideração relevante sobre o espaço,nessa obra, diz respeito à moradia do protagonistaem Paris, o “202”. O prodigioso palacete apresenta-secomo um microcosmo da civilização urbana. Todoseu luxo e conforto, toda parafernália mecânica, todaerudição acumulada em sua biblioteca de trinta milvolumes impressionam, à primeira vista, pela magni-ficência. Uma observação mais detida, contudo, im-põe outra imagem — de ineficiência, inutilidade eopressão. As panes mecânicas e elétricas transtornama vida cotidiana; os livros não se abrem; a casa temuma atmosfera pesada, como de estufa, em que Ja-cinto definha solitário. No último capítulo, quando ZéFernandes visita Paris pela derradeira vez, o “202”despovoado cristaliza-se como imagem de um museudas ilusões equivocadas de uma época de equívocos:

E então, passeando através das salas, realmenteme pareceu que percorria um museu de antigüi-dades; e que mais tarde outros homens, com umacompreensão mais pura e exata da vida e da felici-dade, percorreriam, como eu, longas salas, atulha-das com os instrumentos da super-civilização, e, co-mo eu, encolheriam desdenhosamente os ombrosante a grande ilusão que findara, agora para sempreinútil, arrumada como um lixo histórico, guardadodebaixo da lona. (pp. 187-188)

EEssttiillooNa perspectiva da escola literária, A Cidade e as

Serras mescla tendências estilísticas comuns na lite-ratura da segunda metade do século XIX: Rea-lismo, Naturalismo e Impressionismo.

Do Realismo, o romance empresta, principal-mente, o eessppíírriittoo ccrrííttiiccoo, com que Eça de Queiróscastiga o francesismo da elite rural portuguesa deseu tempo. Esta, segundo se depreende da leituraatenta da obra, seduzida pelo estilo de vida diletanteparisiense, seria responsável pelo abandono em quese encontravam as propriedades agrárias.

Do Naturalismo, A Cidade e as Serras aproveitao gênero do romance de tese, inventado por essa

tendência, para defender a superioridade da vidarural sobre a urbana. Outras características desseestilo, freqüentes na obra, apresentam-se no rebai-xamento de personagens à condição de animali-dade (zoomorfismo) e na exibição de elementossórdidos ou desagradáveis (estética do feio). Ob-servem-se as expressões negritadas, no exemploselecionado, em que o narrador Zé Fernandes re-produz o delírio que sofreu, quando se embriagoupor ter sido abandonado pela amante.

Era ela! Era a Madame Colombe, que esfuziarada chama da vela, e saltara sobre o meu leito, e de-sabotoara o meu colete, e arrombara as minhas cos-telas, e toda ela, com as saias sujas, mergulharadentro do meu peito, e abocara o meu coração, echupava a sorvos lentos, como na Rua do Hélder, osangue do meu coração! Então, certo da morte, ga-nindo pela tia Vicência, pendi do leito para mergu-lhar na minha sepultura, que, através da névoa fina,eu distinguia sobre o tapete — redondinha, vidrada,de porcelana e com asa. E, sobre a minha sepultura,que tão irreverentemente se assemelhava ao meuvaso, vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vo-mitei a lagosta. Depois, num esforço ultra-humano,com um rugido, sentindo que, não somente toda aentranha, mas a alma se esvaziava toda, vomiteiMadame Colombe! (p. 61)

A técnica impressionista manifesta-se especial-mente nas descrições da natureza campestre, emque a captação dos fatos exteriores pelas sensaçõesé apresentada conforme a percepção imediata deles,sem intervenção de análise racional. Observe-se, notexto selecionado como exemplo, o emprego dosverbos rolar, desabar, subir e embeber, destacadosem negrito. No primeiro caso, o narrador, que se en-contra num trem em movimento, em vez de dizer queas rodas deste rolavam sobre os trilhos, transmite aoleitor a sensação pessoal imediata de estar ele a ro-lar; no segundo, o rápido deslocamento do olhar donarrador, de alto a baixo, cria a impressão de que ospenhascos desabam; no terceiro, ocorre um movi-mento inverso, quando o olhar percorre velozmenteo terreno de topografia ascendente, as oliveiras plan-tadas nele transmitem a sensação fugaz de estarem asubir pela encosta.

Rolávamos na vertente de uma serra, sobre pe-nhascos que desabavam até largos socalcos cultiva-dos de vinhedo. Embaixo, numa esplanada, bran-quejava uma casa nobre, de opulento repouso, com acapelinha muito caiada entre um laranjal maduro.Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebravacontra as rochas, descia, com a vela cheia, um barcolento carregado de pipas. Para além, outros socalcos,de um verde pálido de resedá, com oliveiras apou-cadas pela amplidão dos montes, subiam até outraspenedias que se embebiam, todas brancas e assoa-lhadas, na fina abundância do azul. (p. 101)

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Do ponto de vista do estilo pessoal, observam-senesse último romance de Eça de Queirós as mes-mas características que sempre o distinguiram co-mo prosador. Dentre elas, destacam-se a ironia, quepercorre cada página da narrativa, o humor, o gran-de talento na composição de caricaturas, o usoexpressivo do adjetivo e do advérbio. Alémdessas, merecem menção especial a paródia e osenso de contraste.

A paródia consiste na referência irônica a obrasconsagradas, literárias ou de outra espécie, de modoa estabelecer uma relação de intertextualidade, cujoefeito de sentido é, geralmente, jocoso. Entre asmais relevantes para A Cidade e as Serras estão oEclesiastes bíblico, as obras do filósofo pessimistaSchopenhauer, D. Quixote, de Cervantes, as Bucó-licas e as Geórgicas, de Virgílio.

O senso de contraste, que é o princípio estrutu-rador do romance, ocorre em vários níveis: na ma-croestrutura do romance (contraposição entre cida-de e campo; cultura e natureza), na representação dasrelações socioeconômicas (contradição entre capitale trabalho, riqueza e miséria), na caracterização psi-cológica das personagens (pessimismo e otimismode Jacinto; idealismo de Jacinto e realismo de Zé Fer-nandes; frivolidade da Joana — Madame de Oriol— parisiense, amante infiel, versus autenticidade daJoana serrana, esposa e mãe dedicada, etc.) e noplano da composição lingüística (articulação de ex-pressões finas e delicadas com observações gros-seiras).

EEXXEERRCCÍÍCCIIOOSS1. Justifique o apelido de Príncipe da Grã-Ventura

atribuído pelos amigos ao protagonista de ACidade e as Serras.

2. Explique a ambigüidade do emprego do apelidoreferido na questão anterior, pelo narrador ZéFernandes, na situação de tédio, desencanto epessimismo de Jacinto.

3. Descreva sumariamente a estrutura bipartida deA Cidade e as Serras.

4. Que tipo de relação se estabelece entre as duaspartes da narrativa do romance em questão?Explique por quê.

5. Identifique o foco narrativo de A Cidade e as Ser-ras, explicando as conseqüências dessa escolhapara a narrativa e caracterização de personagens.

6. Como se classificam as personagens de A Cida-de e as Serras, do ponto de vista de suas caracte-rizações?

7. Por que se pode afirmar que A Cidade e as Ser-ras é um romance de espaço?

8. Por que o romance A Cidade e as Serras pode servisto como uma alegoria?

9. Do ponto de vista da escola literária, como clas-sificar A Cidade e as Serras?

10. Cite algumas características do estilo pessoal deEça de Queirós, presentes em A Cidade e asSerras.

11. Justifique a identificação do texto transcrito a se-guir com a corrente literária do Naturalismo.

É uma bela moça, mas uma bruta... Não há alimais poesia, nem mais sensibilidade, nemmesmo mais beleza do que numa linda vaca tu-rina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Tra-balha bem, digere bem, concebe bem. Para issoa fez a natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. Omarido todavia não parece contente, porque adesanca. Também é um belo bruto... Não, meufilho, a serra é maravilhosa e muito grato lheestou... Mas temos aqui a fêmea em toda a suaanimalidade e o macho em todo o seu egoísmo...(p. 124)

12. Leia o texto transcrito a seguir e identifique acorrente estilística a que se filia. Justifique suaresposta.

Numa dessas manhãs — justamente na vés-pera do meu regresso a Guiães, — o tempo, queandara pela serra tão alegre, num inalterado risode luz rutilante, todo vestido de azul e ouro fa-zendo poeira pelos caminhos, e alegrando toda anatureza, desde os pássaros até os regatos, su-bitamente, com uma daquelas mudanças quetornam o seu temperamento tão semelhante ao dohomem, apareceu triste, carrancudo, todo em-brulhado no seu manto cinzento, com uma tris-teza tão pesada e contagiosa que toda a serraentristeceu. E não houve mais pássaro que can-tasse, e os arroios fugiram para debaixo das er-vas, com um lento murmúrio de choro.

RREESSPPOOSSTTAASS1. Esse apelido justifica-se pelos dotes naturais e

espirituais que os amigos reconheciam em Ja-cinto: saudável, enérgico, inteligente, rico e do-tado de uma sorte extraordinária.

2. Na situação depressiva do protagonista, quandoZé Fernandes chama Jacinto meu príncipe, oapelido pode ser entendido de duas maneiras:dada a amizade que os une, o epíteto tem o valorde expressão afetuosa; por outro lado, ele as-sume um valor irônico, uma vez que o príncipeda grã-ventura, na verdade, padecia grande infe-licidade.

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Page 12: Analise a Cidade e as Serras Anglo

3. O romance se estrutura em duas partes iguaisem extensão e contrapostas quanto ao sentido. Aprimeira, constituída dos oito primeiros capítu-los, mostra o protagonista identificado com acivilização urbana e infeliz; a segunda, que ocu-pa os oito capítulos restantes, apresenta Jacin-to identificado com a natureza e feliz.

4. Entre as duas partes de A Cidade e as Serras,estabelece-se uma relação de antítese, uma vezque a segunda se contrapõe à primeira de for-ma opositiva.

5. Eça de Queirós valeu-se do foco narrativo emprimeira pessoa, com narrador-testemunha, istoé, o narrador participa dos acontecimentos rela-tados por ele, não como protagonista, mas co-mo observador privilegiado. Como tal, seu rela-to limita-se àquilo que presencia, não sendocapaz de conhecer, da vida interior das persona-gens, mais do que elas dão a saber. As opiniõesdo narrador, a respeito de fatos e pessoas, sãomarcadas por sua subjetividade.

6. Geralmente, as personagens dessa obra são pla-nas, típicas e caricatas, não apresentam densi-dade psicológica, limitando-se a representar es-quematicamente generalizações de tipos hu-manos ou sociais. Mesmo o protagonista, em-bora mais desenvolvido em sua constituiçãomoral, padece de esquematismo em sua carac-terização. A única personagem mais complexa éZé Fernandes, uma vez que, sendo o próprionarrador, está em condição de oferecer um pa-norama mais rico de sua intimidade.

7. Porque o elemento espacial é decisivo na estrutu-ração desse romance, o que se pode observar des-de o título da obra.

8. A Cidade e as Serras pode ser visto como umaalegoria na medida em que se trata de uma nar-rativa metafórica de significado simbólico.

9. A Cidade e as Serras é um romance realista, quemescla as tendências estilísticas do Realismopropriamente dito, do Impressionismo e do Na-turalismo.

10. As principais características do estilo queiro-siano, presentes em A Cidade e as Serras, são aironia, o humor, o caricaturismo, o uso expressi-vo de certas categorias gramaticais, como osadjetivos e advérbios, a paródia, a intertextuali-dade e o senso de contraste.

11. A característica mais notável do Naturalismo,presente no texto, consiste no zoomorfismo, istoé, no rebaixamento de seres humanos à escalaanimal.

12. Trata-se da corrente estilística chamada Im-pressionismo, em que os objetos exteriores sãoapresentados de acordo com as sensações eemoções provocadas na subjetividade do obser-vador. É o que ocorre no texto em questão, quan-do elementos da natureza adquirem atributoshumanos (prosopopéia) na visão do narrador.

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