Análise da Representação do Budismo Mahayana na Classificação Decimal Universal

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CAROLINA MARQUES PAULA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DO BUDISMO MAHAYANA NA CLASSIFICAÇÃO DECIMAL UNIVERSAL RIO DE JANEIRO 2009

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Anal i sa a representação do Budi smo Mahayana na Cl assi fi cação Deci mal Uni versal , observando se há coerênci a entre a representação da reli gi ão no si stema e a própri a estrutura do Budi smo. Uti l iza como método de aval i ação a fundamentaçã o teóri ca, que trata da ori gem e defi ni ção da reli gi ão, passa por uma breve co mpreensão do pensa mento fi l osófi co i ndi ano, até tratar do Budi s mo evi denci ando sua ori gem, doutri na e a di ssemi nação fora da Índi a. Identi fi ca os pontos i ncoerentes e sugere a apli cação de recursos do própri o si stema para adequar essa representação e torná-l a efi ci ente no uso de bi bli otecas que possua m esse ti po de acerv

Transcript of Análise da Representação do Budismo Mahayana na Classificação Decimal Universal

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CAROLINA MARQUES PAULA

ANLISE DA REPRESENTAO DO BUDISMO MAHAYANA NA CLASSIFICAO DECIMAL UNIVERSAL

RIO DE JANEIRO 2009 1

CAROLINA MARQUES PAULA

ANLISE DA REPRESENTAO DO BUDIMO MAHAYANA NA CLASSIFICAO DECIMAL UNIVERSAL

Trabalho de concluso de curso apresentado Escola de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Bacharel em Biblioteconomia

Orientador: Profa. MS. Maria Teresa Wiltgen Tavares da Costa Fontoura.

Rio de Janeiro 2009 2

P2819

Paula, Carolina Marques. Anlise da representao do Budismo Mahayana na Classificao Decimal Universal / Carolina Marques Paula. 2009. 99 f. ; 30 cm. Trabalho de Concluso de Curso (Graduao Biblioteconomia)Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Bibliografia: f. . em

1. Classificao Decimal Universal: Budismo Mahayana. 2. Religio - fundamentos. 3. ndia pensamento filosfico 3. Classificao: fundamentos. I. Ttulo. CDU 025.45CDU:242

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CAROLINA MARQUES PAULA

ANLISE DA REPRESENTAO DO BUDISMO MAHAYANA NA CLASSIFICAO DECIMAL UNIVERSAL

Trabalho de Concluso de Curso apresentado Escola de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial obteno do grau de Bacharel em Biblioteconomia

Aprovado em

de 2009.

BANCA EXAMINADORA

Prof MS Maria Teresa W iltgen Ta vares da Costa Fontoura Orientadora Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Prof. Maria Tereza Reis Mendes Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Prof. DR. Marcos Lus Cavalcante de Miranda Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 4

Dedico esse trabalho a todos que contriburam para sua realizao e se dispuseram a compartilhar o seu conhecimento e sabedoria, o seu tempo e sua ateno no esclarecimento das dvidas que surgiam.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer um ato de reconhecimento a ajuda recebida, e, no meu caso, obtive contribuies valiosssimas que no poderia deixar de mencionar:. Primeiramente ele ir aos meus familiares, minha me, sempre paciente, me incentivando a ser persistente nos meus objetivos; e ao meu pai, j falecido, cuja lembrana acolhedora. minha orientadora Maria Teresa Fontoura, que dentre tantos temas que apresentei para que ela me orientasse teve o cuidado sutil de apoiar aquele com o qual eu me sentiria mai vontade e, porque no dizer, feliz em realiz-lo. Obrigada por sua pacincia e compreenso. Jamais vou esquece-la. As Mestras do Templo Zu Lai, em especial Mestra Miao Shang e Miao You, que me receberam to amistosamente e contriburam muito para a realizao deste trabalho, pois sem a orientao delas dificilmente eu me sentiria segura para avanar no captulo sobre o Budismo. Agradeo tambm ao Prof. Moacyr, tambm do Templo Zu Lai e que foi fundamental na elucidao de algumas dvidas persistentes a histria de formao do Budismo. Obrigada ao Venervel Mestre Hsing Yn que proporcionou a entrada do Budismo Ch'an no Brasil, e desta forma pude ter contato com esses ensinamentos fantsticos. Obrigada ao Merlin, meu cachorro, por proporcionar os momentos de alegria que eu tanto precisava, nesse perodo de trmino desse trabalho. Creio que se no tivesse vindo para a minha famlia minha cabea explodiria de tanta tenso. Porm, agora no corro mais esse risco. Por fim, agradeo a todos os meus colegas que contriburam com indicaes de livros para complementar e enriquecer este trabalho; a meus antepassados e a todos os seres sensveis que buscam sua prpria libertao. Reservo este espao para transferir os mritos alcanados com esse trabalho a todos os seres sensveis, para que vivamos em plena ateno.

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RESUMO

Analisa

a

representao

do

Budismo

Mahayana

na

Classificao

Decimal Universal, observando se h coerncia entre a representao da religio no sistema e a prpria estrutura do Budismo. Utili za como mtodo de avaliao a fundamenta o terica, que trata da origem e definio da religio, passa por uma breve co mpreenso do

pensa mento filosfico indiano, at tratar do Budismo evidenciando sua origem, doutrina e a disseminao fora da ndia. Iden tifica os pontos incoerentes e sugere a aplicao de recursos do prprio sistema para adequar essa representao e torn -la eficiente no uso de bibliotecas que possua m esse tipo de acervo. Palavras-chave: Classificao Decimal Universal: Budismo Mahayana, Religio: fundamentos; ndia Pensamento filosfico; Classificao: fundamentos.

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ABSTRACT It analyzes the represen tation of Mahayana Buddhism in to Universal Decimal Classification, watching there is consistency between the religion representation in decimal syste m and the real structure of Buddhism present in the sources looked. Used as method for e valuation the theoretical sources that deal the o rigin a nd definition of religion, to understanding Indian philosophy to deal, in fact, origin and doctrine Buddhist and its spread outside India. It identifies inconsistence in the syste m representation and suggest th e application of syste m resources itself to adapt this representation and beco me it efficient for specialize library use. Key word: Universal Decimal Classification: Mahayana Buddhism;

Religion: basis; India: philosophical thought; Classification: basis

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SUMRIO

Parte 1 1 2 2.1 2.1.1 2.1.2 2.1.3 2.2 2.2.1 2.2.2 2.2.3 2.2.4 2.3 2.4 3 3.1 3.2 4 4.1 4.2 4.3 4.3.1 4.3.2 4.3.3 4.4 4.5 Parte 2 5 5.1 5.1.1 5.2 5.2.1 5.2.2 5.3 5.3.1 5.3.2 5.3.3 6 6.1 6.2

FUNDAMENTOS PARA COMPREENDER O BUDISMO INTRODUO RELIGIO A problemtica da origem da religio Teoria psicolgica Teoria sociolgica Teorias de origem segundo um filsofo indiano A problemtica da definio de religio Definies funcional e substantiva Definies monottica e polittica Definies baseadas no mtodo classificatrio Definies baseadas no estudo do termo na linguagem A compreenso de religio para este estudo Novos movimentos religiosos INTEGRAO DA FILOSOFIA E DA RELIGIO NA NDIA Sistemas filosficos Escolas no-vdicas BUDISMO O incio e o fundador Doutrina: pontos principais Os conclios e a formao das escolas de pensamento Escolas formadas aps a primeira cisma O Mahayana Budismo Tntrico] A Expanso do Budismo Budismo: questes fundamentas A REPRESENTAO CONHECIMENTO E ORGANIZAO DO 11 12 13 14 15 16 18 18 19 21 21 22 25 30 32 33 35 36 38 44 45 48 50 50 52

A REPRESENTAO 54 Formas de representao 55 Conceitos 55 Categorizao 57 Estrutura 58 Categorizao do Budismo 59 Classificao 64 Classificao Sistemtica 66 Teoria da Classificao 66 Estrutura 67 CLASSIFICAO DECIMAL UNIVERSAL: o sistema 70 analisado Origem 71 Estrutura 73 9

6.3 6.4 6.4.1 6.4.1.1 6.4.1.2 6.4.2 6.4.3 7

A ordenao vertical e a horizontal Anlise do Budismo Mahayana na CDU Anlise do Budismo num mbito geral Divises principais Auxiliares especiais Representao do Budismo Mahayana O Budismo relacionado a outras classes CONSIDERAES FINAIS Referncia Glossrio Anexos

75 76 78 78 83 85 88 90 92 96 99

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1 INTRODUO

A Classificao Decimal Universal (2007), na recm-lanada segunda edio, apresenta mudanas significativas no desenvolvimento da Classe 2 (Religio) principalmente no que se refere aquelas no crists. Segundo Vanda Broughton (2000, p. 2, traduo nossa), nos sistemas disponveis, visvel a tendncia a desenvolver apenas uma das tradies, e afirma que A grande dificuldade na construo de uma classificao para a literatura religiosa de evitar a tendenciosidade (real ou aparente) em direo a uma religio. [...]. A segunda edio da Classificao Decimal Universal buscou o equilbrio no desenvolvimento dos conceitos das tradies religiosas existentes o que permitiu, segundo Broughton (2000, p. 2) [...] corrigir sua evidente tendncia Catlica Romana. Sendo assim, prope-se a anlise da representao de uma religio nocrist, que teve sua representatividade limitada na primeira edio deste mesmo sistema: o Budismo. Observe-se que no se trata de uma anlise comparativa entre as edies, mas sim o exame crtico das facetas e categorias selecionadas para compor a classe Budismo 24 nesta nova edio, com enfoque no desenvolvimento do Budismo Mahyna. Para elaborar uma anlise consistente mostrou-se necessrio buscar subsdios que ajudassem a compreender primeiramente o que se considera religio, como se pode defini-las e determinar suas caractersticas. Posteriormente, verificouse que no basta, quando se trata de uma religio indiana, conhec-las segundo a viso de estudiosos Ocidentais e recorre-se aos textos do filsofo Vivekananda (1931) para iniciar um entendimento do pensamento oriental, mais precisamente indiano, j que a religio analisada teve sua origem neste pas. Observa-se que o contexto histrico das invases indianas determinara o desenvolvimento das chamadas escolas filosficas no-vdicas, dentre elas o Budismo. Por fim, apresentam-se sinteticamente os conceitos fundamentais do Budismo, com base nos textos conservados pelas escolas Thervda e Mahyna, e da prpria prtica vivenciada pela autora deste trabalho, que permitiram a estruturao da religio de forma a avaliar se estava representada no sistema de classificao, pelo menos, com suas caractersticas mais gerais. Sem o aparato terico torna-se difcil iniciar um trabalho desta natureza sem cometer inconsistncias que afetaro a prpria compreenso da religio por parte 12

daqueles que tiverem um contato inicial com o sistema, alm da organizao e recuperao da literatura disponvel sobre o tema ficar evidentemente prejudicada. Por isso, este trabalho dedica-se a orientar, dentro do Budismo, as possibilidades no sistema, quando alguns fatores importantes no esto l representados, e esta orientao est fundamentada na bibliografia especializada.

2 RELIGIO

Em algum momento as pessoas, certamente, so surpreendidas com pensamentos a respeito de sua prpria existncia, o mistrio da morte, ou se determinadas situaes enfrentadas so ou no obras de foras desconhecidas. De fato, dar alguns minutos de ateno ao inexplicvel parte natural de nossa reflexo mental. Os meios e instrumentos utilizados na busca por respostas so muitos, alguns aproveitados pelas diversas instncias do conhecimento, outros refutados por tantas outras instncias. Isso se deve, talvez, pelo fato desta busca ser lgica; em algum momento termos esperana de alcan-lo, de decifrar as questes veladas, e existe um argumento favorvel: ao longo da histria muitos fenmenos puderam ser compreendidos e revelados. Atualmente, pode-se dizer que existem trs caminhos para buscar respostas s questes existenciais: o filosfico, o cientfico e o da religio. No se sabe se algum dia ser possvel determinar qual desses encontrar a soluo para estes questionamentos, mas neste trabalho proponho conhecermos as caractersticas de um desses caminhos: o da religio. Antes de aprofundar o tema, importante compreender qual o fator que separa o pensar filosfico metafsico do pensar religioso, j que so muito prximos em seus questionamentos e so influenciados mutuamente ao longo da histria. Por exemplo, a religio mandesta teve grande influncia nas tradies filosficas gregas na antiguidade, e posteriormente, a teologia crist contribuiu com os fundamentos da metafsica moderna (FAROUKI, 1995, p. 51-52). A metafsica, assim como a religio, baseia a investigao dos fenmenos no porque: porque existe? porque cessa a existncia? A formulao das perguntas busca unicamente compreender a existncia do ser e o prprio ser. Essa caracterstica de pensamento representativa da metafsica ocidental, que se divide em dois tipos (FAROUKI, 1995, p. 21): 13

[...] uns, segundo a tradio clssica, baseiam toda a investigao metafsica na questo do ser (Berkeley, Espinosa, Hegel); outros, numa tradio em que a investigao metafsica se confunde com a reflexo sobre a capacidade de conhecer, constroem as suas teorias a partir de uma posio mais subjetiva e existencial (Hume, Kant, Camus).

Se o conjunto bsico de perguntas levantadas por ambos os grupos de pensamento (filsofos metafsicos e religiosos) so os mesmos, onde se encontra o marco diferencial? Certamente, o mtodo utilizado para reflexo ser o ponto caracterstico (e divisrio) do modo de compreenso buscado por esses grupos. A dvida, para o metafsico, a expresso do ser pensante e ser o mtodo essencial de reflexo para que ele busque suas respostas. J o religioso trabalha com a certeza e no questionar as respostas dadas para suas perguntas, desde que sinta que elas so coerentes com aquilo que acredita; a crena um fator importante neste caso. Porm, se vier a questionar, buscar respostas que se tornaro novamente inquestionveis, como se observa na maioria dos movimentos religiosos novos. Logo, os mtodos utilizados, de fato, estabelecem as diferenas, isto , a dvida e a crena so as linhas divisrias. (FAROUKI, 1995, p. 20) Observando a religio intumos quais suas possveis caractersticas, podendo at mesmo arriscar a citao de algumas como a crena, o sagrado, o desenvolvimento espiritual do ser, e seu carter universal. Porm, estabelecer a definio de religio, envolver questes como a juno do pensar ocidental e oriental, a busca por um elemento comum a todas as expresses religiosas, e a compreenso de sua origem. 2.1 A problemtica da origem da religio

O momento em que se manifestou a primeira idia ou expresso religiosa ainda no foi determinado. Essa incerteza d margem a elaborao de diversas teorias de origem, cada qual apoiada em uma determinada compreenso do que seja religio. provvel que a divergncia terica seja um reflexo da indefinio do conceito de religio. Embora diversas alguns estudiosos agruparam essas teorias de acordo com seus princpios constitutivos, como Deji Ayegboyin (2009) - especialista em religies africanas -, que as dividiu em teorias psicolgica e sociolgica, 14

utilizadas como fonte para o desenvolvimento deste texto. Tambm ser apresentada a contribuio do filsofo hindu Vivekananda (1931), que prope uma nova teoria para a origem das religies.

2.1.1 Teoria Psicolgica

Em geral, para estes estudiosos os primeiros seres humanos criaram deuses ou seres sobrenaturais como resultado da ignorncia, medo e ansiedade em relao ocorrncia dos fenmenos naturais. (AYEGBOYIN, 2009, p. 501-502) Dentro deste grupo temos: Teorias Intelectuais o ser humano ao observar fenmenos naturais, incluindo o nascimento e a morte, busca explicao para compreender porque no consegue control-los. Concluem ento que foras sobrenaturais so detentoras desse controle. Teoria do Animismo o termo animismo foi apresentado por Tylor (apud AYEGBOYIN, 2009, p. 501) em seu livro Primitive Culture. Para este estudioso, a crena do ser humano na existncia de espritos e deuses surgiram de experincias ocorridas durante estados alterados de conscincia, como em sonhos, vises, doenas e morte. A partir dessas experincias o ser humano conclui a existncia da alma presente na matria. Teoria Magicoreligious Frazer (apud AYEGBOYIN, 2009. p. 501) desenvolveu a associao entre magia e religio na enciclopdia The Golden Bough: A Study in Magic Religion. Argumenta que sua teoria precedente ao Animismo e que o desenvolvimento intelectual do ser divide-se em trs estgios: magia, religio e cincia. Logo, os primeiros seres humanos mais desenvolvidos buscavam solucionar suas incertezas (quanto aos fenmenos naturais) atravs da magia, isto , por meio de rituais. Ao descobrir que o fator mgico no era o nico responsvel pelos fenmenos ou por sua prpria prosperidade, passaram a crer em seres sobrenaturais, que Frazer apresenta como uma evoluo ao estgio da religio.

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Teoria Emocional Neste caso, os estudiosos argumentam que as crenas religiosas surgiram das emoes. Novamente o medo e a ansiedade so elementos iniciais para o desenvolvimento da crena em seres sobrenaturais, porm logo so substitudos pela confiana quando um indivduo obtm uma graa. O emocional tambm apontado por Freud em sua teoria psicanaltica para o surgimento da religio. Para ele a religio pode ser definida de trs formas: como uma expresso da neurose do indivduo (surgida do sentimento de culpa e represso); como uma iluso (pois a idia de Deus seria a figura paterna ampliada infinitamente); e poderia ser uma criao dos primeiros seres humanos que buscaram personificar os fenmenos naturais para buscar proteo daquilo que no compreendiam. A explicao de Freud foi fortemente rejeitada por historiadores e antroplogos, pois afirmaram se tratar apenas de especulao filosfica sem utilizao de mtodos empricos para sua comprovao.

2.1.2 Teoria Sociolgica

A religio vista como um produto de fatores sociais, criado e mantido por interesses polticos e prprios da organizao social. Segundo GARRDEN (2008, p. 18) essa explicao conhecida como modelo reducionista. Ayegboyin (2009, p. 502-503) apresenta a teoria sociolgica segundo duas aplicaes sociais: como Culto da sociedade e como o pio do povo. Culto da sociedade mile Durkheim (apud AYEGBOYIN, 2009, p. 502) o representante mais conhecido desta escola e argumenta que a religio essencialmente uma instituio social. Definiu trs caractersticas para demonstrar o carter social da religio: A religio passada de gerao para gerao; aceita e acreditada por todas as sociedades, especialmente sociedade inicialmente estabelecida; compulsria, isto , quase ningum pode deixar de participar dos ritos religiosos coletivos.

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pio do Povo com base na interpretao marxista, a religio seria um reflexo da organizao social, j que teria surgido quando a sociedade encontrava-se no estgio de desenvolvimento de suas regras sociais. Marx contestava que estas regras eram anti-revolucionrias. Ele analisou as regras sociais da poca e sua relao com a religio, apresentando os seguintes argumentos (MARX apud AYEGBOYIN, 2009, p. 503, traduo nossa).:Primeiro, Marx considerava que os ricos e nobres acreditavam em Deus por razes econmicas. Eles tiravam vantagem da religio para manter seu status quo. Segundo, para Marx, a religio usada pela classe exploradora como ferramenta de defesa da explorao e das regras exploratrias. Terceiro, a religio manipulada de forma a manter a classe trabalhadora letrgica, por isso chamada de pio do povo. Quarto [...] a religio, devido a letargia que causa a classe trabalhadora, afasta os mesmos do esforo revolucionrio contra a explorao e por uma sociedade mais justa. Quinto, a classe trabalhadora ou o proletariado acreditam em Deus por causa de presses econmicas [...].

2.1.3 Teorias de origem segundo a viso de um filsofo indiano

O filsofo hindu Swami Vivekananda (1931) em seu livro Estudo da Religio mostra as teorias predominantes no incio do sc. XX quanto origem da religio, e apresenta uma nova baseada na busca pelo desenvolvimento espiritual do ser. Observa-se que mesmo entre as teorias j apresentadas, (como a crena em espritos de Tylor), a interpretao de Vivekananda difere dos estudiosos ocidentais, talvez uma amostra sutil do pensar filosfico indiano em relao ao ocidental. O filsofo apresenta trs teorias descrevendo-as da seguinte forma: uma [...] a theoria que attribue religio a origem no culto dos espiritos; a outra theoria se baseia na evoluo do Infinito.[...]; j a terceira tem como base a busca por um estado transcendente do ser. (VIVEKANANDA,1931, p. 26)

a) Teoria do Culto dos Espritos A idia religiosa teria surgido com a prtica do culto aos antepassados. Para manter a lembrana dos parentes mortos o ser humano desenvolveu a crena em 17

uma existncia ps-morte, e a partir da formulao que cada sociedade construiu a respeito dessa ps-morte seriam determinados os rituais necessrios para a entrada do Homem nessa nova existncia. O filsofo afirma que,[...]. Estudando as antigas religies dos Egypcios, Babylonios, Chinezes e algumas raas da Amrica e de outras partes, achamos claramente reconhecveis os traos desse culto dos antepassados, como principio da religio. (VIVEKANANDA, 1931, p. 27)

b) Teoria do Culto s Foras da Natureza (ou Animismo) Vivekananda aponta essa teoria como a mais defendida pelos cientistas de sua poca e que estes fundamentavam-se na literatura ria, uma das etnias mais antigas da ndia, para comprov-la. Porm o filsofo contesta a fonte dessa teoria, pois afirma que [...]. No Rig Veda Samhita, o livro mais antigo da raa Arya, nada se l a esse respeito. Scientistas modernos julgam que encontram ali o culto da natureza [...]. E completa declarando que a base dessa teoria encontra-se no desenvolvimento da mitologia grega e dos escandinavos que cultuavam

personificaes criadas com base nas foras da natureza (VIVEKANANDA, 1931, p. 28-29)

c) Teoria do Esforo para Transcender as Limitaes dos Sentidos Esse o nome dado teoria apresentada por Vivekananda que a considera como grmen da religio. Para ele o vislumbre de religio veio por meio dos sonhos ou estados de interao do ser com o inconsciente. O filsofo diz que o enfoque apresentado pelas demais teorias como compreender o ps-morte e as foras naturais, assim como a existncia ou no de uma alma so apenas expresses da vontade do Homem de transcender os sentidos e muitos buscaram esse objetivo (VIVEKANANDA, 1931, p. 32).[...] Em todas as religies organizadas, seus fundadores, prophetas e mensageiros, como se affirma, entraram em estados mentaes que no so viglia nem somno, e nestes estados se encontraram em face duma nova serie de factos, relativos ao que se chama reino espiritual. Conheceram nestes estados cousas muito mais intensamente do que ns conhecemos factos ao redor de ns no estado de viglia.[...] Estes homens declararam

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que tinham conhecido, -- sentido, se se pode usar desta paralvra em relao ao sobre-sensual, -certos factos, e descreveram destes factos para delles se conservar a memria [...].

Atualmente, segundo Garrden, Victor e Notaker (2008, p. 18), predomina a idia de que os elementos psicolgicos e sociais contriburam para a formao da religio, mas que esta possui uma estrutura independente. Este modo de pensar originou a organizao dos ramos da cincia da religio, dentre eles: a psicologia da religio, a sociologia da religio, a filosofia da religio e a fenomenologia da religio.

2.2 A problemtica da definio de religio: mtodos utilizados

Observa-se que boa parte das tentativas para definir religio partiu de estudos sobre a etimologia da palavra e o seu uso ao longo da histria. Deles originaram-se as descries de como seriam as expresses religiosas ao longo da histria e o que poderia caracteriz-las. Porm, Gregory D. Alles (2005, p. 7702) ao analisar a palavra originria do termo religion (em ingls) podendo estender essa anlise ao termo religio em portugus aponta que a raz da palavra poderia ser do verbo religare (atar, unir) ou relegere (analisar ou repassar novamente); mas no possvel identificar qual destes, de fato, a originou. Por isso, a anlise etimolgica no pode servir como base para uma definio. A etimologia de religio sustentou parte das teorias de origem da religio, descritas em 2.1, mas causam divergncias entre os pesquisadores, que acabam no decifrando a idia essencial comum a todas as expresses religiosas. Tendo em vista tais dificuldades, durante a segunda metade do sculo XX, estudiosos discutiram sucessivamente sobre a forma adequada para conceitualizar religio, o que deu origem aos mtodos reconhecidos no estudo da religio, apresentados a seguir. (ALLES, 2005, p. 7703)

2.2.1 Definies Funcional e Substantiva

Spiro (apud ALLES, 2005. p. 7703) introduziu o mtodo da definio funcional e substantiva. No mtodo da definio funcional os definientes (plural da palavra latina definiens, que significa o que define, isto , as relaes conceituais que 19

estabeleceram as caractersticas para estabelecer a definio) descrevem o que a religio faz. Neste sentido, a descrio destaca a interao religio e sociedade, incluindo prticas patriticas como religio. J a definio substantiva contm apenas definientes que referem-se a propriedades que compem a religio. Como exemplo pode-se citar: Definio dada por Spiro religio [...] como uma instituio consistindo de interaes postuladas culturalmente com seres sobre-humanos postulados culturalmente. (SPIRO apud ALLES, 2005, p. 7703) Definio dada por Schlesinger (1995, p. 2189) [...] Religio a forma concreta, visvel e social de relacionamento pessoal e comunitrio do homem com Deus. Conjunto sistemtico de ritos, costumes, atos e palavras culturais, relaes humanas, patrimnio escriturstico sapiental. No caso concreto, significa a religio um todo de homens fiis mesma crena, dados a idnticos atos de culto e concordes no procedimento moral. [...]. Definio dada por VIVEKANANDA (1931, p. 121) [...] A Religio a realizao; no palavras, nem doutrina, nem theorias, por mais bellas que sejam. Ella significa ser e tornar-se, ou vir a ser; no consiste no acto de ouvir e reconhecer, mas no facto de transformar-se a alma inteira no que ela cr. Isto a religio.

2.2.2 Definies Monottica e Polittica

Baseados em Wittgenstein (apud ALLES, 2005, p. 7703), alguns estudiosos discutiram a possibilidade de utilizar o mtodo polittico ao invs do monottico 1 para estabelecer uma definio para religio. Esses mtodos tm aplicaes em diversas reas do conhecimento alm da filosofia (por exemplo a psiquiatria e biologia) e sua aplicao define a formao de grupos (de indivduos, objetos, casos, e itens em geral) que possuam caractersticas comuns. No mtodo monottico [...] os conceitos integrantes da classe compartilham um conjunto de atributos que so1

Termos traduzidos do ingls Monothetic e Politetic, adotados por dicionrios de filosofia. Neste trabalho utilizouse o dicionrio de MORA(2004).Ver referncia.

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condio necessria e suficiente para manter-se como integrante do grupo; j no mtodo polittico [...] os membros deste grupo possuem um grande nmero de atributos, porm nenhum deles compartilhado por todos os membros, com a exceo do atributo pertencer a esse grupo. Portanto nenhum atributo condio necessria ou suficiente para tornar um objeto integrante do grupo. No mbito da religio, o mtodo polittico mostra-se mais flexvel, pois ao invs de uma nica propriedade, considera-se um conjunto dessas propriedades selecionadas por um especialista reconhecido e que a valida para torn-la um membro da chamada classe religio. (ALLES, 2005, p. 7703, traduo nossa). Como exemplo, tem-se as definies de religio baseadas em seus componentes expressivos, como apresentados por:

King (2005, p. 7696-7700), que discute a diferena do pensar ocidental e oriental como impedimento para elaborao de uma definio universal de religio, e procurou definir caractersticas que representassem a expresso religiosa englobando esses dois plos: 1) Tradicionalismo; 2) Mitos e smbolos; 3) Conceito de Salvao; 4) Lugares e Objetos Sagrados; 5) Aes Sagradas (rituais); 6) Livros Sagrados; 7) Comunidade Sagrada; 8) Experincia Sagrada;

Garrden, Victor e Notaker (2005, p. 21-40) buscaram definir religio analisando quatro ngulos da expresso religiosa: 1) Crena; 2) Cerimnia; 3) Organizao; 4) Experincia.

William Alston (apud ALLES, p. 7703, traduo nossa) apresenta as caractersticas da prtica religiosa: (1) Crena em seres sobrenaturais [deuses]. (2) Uma distino entre objetos sagrados e profanos. (3) Atos ritualsticos focados em objetos sagrados. (4) Crena em um cdigo moral sancionado pelos deuses. (5) Sentimentos caracteristicamente religiosos. (6) Preces e outras formas de comunicao com os deuses. (7) Uma viso global, ou um retrato geral do mundo como um todo e o lugar de sua individualidade. (8) Uma mais ou menos total organizao da prpria vida baseada na sua viso de mundo. (9) Um grupo social provavelmente unidos acima de tudo. 21

2.2.3 Definies baseadas no Mtodo Classificatrio

Neste caso aplicam-se os mtodos classificatrios utilizados primeiramente nas cincias biolgicas com o objetivo de organizar as descobertas naturais. Isto , identificar caractersticas e agrup-las em uma classe chamada religio, utilizando a natureza classificatria inerente ao ser humano. ALLES (2005, p.7703, traduo nossa) questiona esse mtodo dizendo que [...] religio no uma taxon num sistema exaustivo e hierrquico com categorias mutuamente exclusivas. (Um morcego [pode ser] considerado um pssaro ou mamfero, mas se ns decidimos que Confucionismo no uma religio, qual ser sua alternativa taxonmica?). A religio, para ele, assim como os produtos provenientes de uma cultura no possuem estabilidade suficiente para serem definidos segundo uma estrutura rgida e seletiva.

2.2.4 Definies baseadas no estudo do termo na linguagem

Segundo Alles, alguns estudiosos buscam definir religio atravs do mtodo da estipulao (stipulatively) determinando o que um termo significa, ou descrevendo como uma comunidade lingstica utiliza determinada palavra (lexically). Neste caso, ALLES (2005, p. 7704), recomenda a observao de alguns pontos fundamentais para o desenvolvimento de definies com este mtodo:[...] as definies devem conhecer vrios critrios formais. Eles devem ter uma extenso apropriada. [...]. Eles devem ser claros. Elas devem evitar a sinonmia [no exemplo utilizado pelo autor ele utilizou a palavra sacred e holy]. E devem ser adequados aos propsitos para os quais foram formulados.

2.3 A compreenso de religio para este estudo

Os esforos empregados para determinar uma definio para religio que contemple todas as expresses religiosas existentes ainda no renderam frutos. Num primeiro momento, esse insucesso deve-se a impossibilidade de reconhecer

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uma essncia nica a todas as religies. Para alguns estudiosos, isto significa harmonizar a compreenso de existncia e realidade que tem o Ocidente e o Oriente. Segundo Winston L. King (2005, p. 7692), o pensamento Ocidental quanto existncia do ser que este se distancia do divino, existe uma separao entre o divino e o grupo; j no Oriente o ser busca tornar-se uno com o divino, o grupo faz parte do divino e um dia retornar a essa realidade. Tem-se ento a representao do Ocidente dicotmico e o Oriente uno. Em concordncia, o filsofo brasileiro Huberto Rohden (2008, p. 21) tambm destaca as diferenas da viso Ocidental e Oriental, mas em relao percepo da realidade:O homem ocidental est habituado a identificar a Realidade com os fatos, ao passo que para o oriental os fatos so simples reflexos fortuitos e secundrios da realidade, assim como os reflexos de um objeto no so esse objeto e este existiria sem aqueles. [...] Para o ocidental, o mundo externo, [...] a prpria realidade, primria, talvez nica. No caso em que haja alguma outra realidade, no perceptvel pelos sentidos nem concebvel pelo intelecto, ela , para ele, uma realidade de segunda mo, [...], de cuja existncia no pode o homem ter certeza cientfica [...] Para o oriental, porm, nenhum ato de f necessrio para admitir uma realidade invisvel, que , para ele, o objeto da intuio espiritual, e lhe d plena certeza.[..].

J para outros estudiosos, como Vivekananda (1931, p. 128), a compreenso Ocidente versus Oriente, no mbito da religio, no procedente, pois todas as grandes religies teriam surgido no mesmo ambiente geogrfico e compartilhariam da mesma essncia filosfica.Havemos de lembrar que todas as grandes religies do mundo [incluindo o cristianismo] teve sua origem no paiz entre os rios Ganges e Euphrates. Nenhuma grande religio surgiu na Europa, nenhuma na Amrica; todas as religies so de origem asitica.

Logo, com base em sua teoria de origem (ver 2.1.3) os aspectos ambiental e contextual permitiriam o compartilhamento de um mesmo ideal por todas as 23

expresses religiosas; essa essncia apresentada pelo filsofo Vivekananda (1931, p. 34-35):[...] Ninguem de ns tem visto um Ideal Ser Humano [o homem perfeito], e comtudo, sem este ideal no podemos progredir. Portanto, de todas as differentes religies se deduz este facto nico: que h uma Ideal Unidade Abstracta, que se nos apresenta em forma duma Pessoa, ou como um Ser Impessoal, ou uma Lei, ou uma Presena, ou uma Essncia. Ns nos esforamos sempre para nos elvar cada vez mais, afim de nos approximarmos deste ideal.

Embora mtodos sejam empregados, origens determinadas e caractersticas apontadas como essencial e comum a todas as expresses religiosas, ainda no se chegou a um consenso quanto aceitao e adoo de qualquer uma delas de forma universal. Frente a tantas incertezas, Alles (2005, p. 7704) aconselha ser mais coerente buscar uma definio que seja pertinente ao projeto a qual ela servir. E qual, dentre as tantas definies existentes, servir para este trabalho? Utilizando como base os textos aqui mencionados (ver 2.2.2), observa-se a citao de alguns elementos comuns expresso religiosa, dentre eles a tradio, a crena e a experincia religiosas. A tradio aplicada religio, refora a idia de fonte de sabedoria, transmitida e preservada em oposio ao rumor e ao que forjado (fashion); sua relativa antiguidade inspira confiana em seus autores e nos responsveis por sua transmisso, reforando a crena nas prticas e instituies ligadas a essas tradies sagradas. (VALLIERE, 2005, p. 9267) Por sua vez, a experincia, relacionada a resoluo das questes religiosas por meio de sua prtica, est intimamente ligada a um estado transcendente experimentado. No sculo XX, a experincia religiosa frequentemente vem sendo compreendida de trs formas distintas: como um aspecto de uma tradio ou da religio em geral; descrita como o mago da religio em geral; como fonte da sabedoria ou certeza religiosa (neste caso, a experincia realizada pelos fundadores de uma determinada religio). (TAVES, 2005, p. 7736) Por fim tem-se a crena, que a aceitao do intelecto a uma determinada doutrina religiosa como resposta a indagaes do ser quanto existncia, divindades e o sentido da vida. (GARRDER; VICTOR; NOTAKER, 2003, p. 21)

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A partir da identificao destes pontos essenciais, pode-se iniciar a escolha de uma definio que contemple no apenas as caractersticas apresentadas, mas principalmente que esteja diretamente relacionada com pensamento filosfico ao qual est atrelado o objeto de estudo em questo, o Budismo. Para tanto preciso conhecer seus atributos principais e se este considerado uma religio. Dentro da linha mestra desse trabalho, o Budismo apresenta caractersticas consideradas comuns s expresses religiosas, e, portanto, pode ser considerado como uma religio. Observe-se a apresentao concisa do Budismo a seguir elaborada como experincia de prtica religiosa e estudos pessoais. O Budismo foi fundado h mais de 2.500 anos na ndia pelo ento prncipe Siddharta Gautama, considerado o Buda histrico, que passou a ser chamado, aps alcanar o estado Iluminado (Experincia), de akyamuni, O Tathghata, o perfeitamente iluminado. Relutou inicialmente a falar dessa experincia transcendental, mas por fim, decidiu disseminar esse conhecimento. Organizou uma comunidade de monges (sangha), que, aps seu falecimento (parinirvna) manteve seus ensinamentos e os transmitiu a outras sociedades (entre o Oriente Mdio e o Extremo Oriente) integrando-se, muitas vezes, as expresses religiosas j existentes nessas localidades, complementando-as (Tradio) . No h culto a um deus ou deuses, nem a crena em um ser criador, j que a nica certeza quanto a realidade a sujeio de todo ser a lei de causa e efeito (carma) a qual todos os seres sem exceo (incluindo Deus ou deuses) esto submetidos (Doutrina). Est fundamentada nas Trs Jias: o Buda - um estado de evoluo do ser humano-, o Darma - os ensinamentos transmitidos -, e a Sangha - a comunidade de monges e leigos. Tendo em vista que o Budismo apresenta os elementos componentes (frequentemente citados) por aqueles que buscam definir religio, pode-se considera-la de fato como uma expresso religiosa tradicional. Neste caso, dentre os textos analisados, o filsofo Vivekananda (1931, p. 121) apresenta uma definio que contempla o aspecto transcendente da viso indiana a respeito do que se compreende como religio, e que aplica-se perfeitamente a todas aquelas que surgiram neste pas, como o Budismo. Sendo assim, esta ser a escolhida para este trabalho:[...] A Religio a realizao; no palavras, nem doutrina, nem theorias, por mais bellas que sejam. Ella significa ser e tornar-se, ou vir a ser;

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no consiste no acto de ouvir e reconhecer, mas no facto de transformar-se a alma inteira no que ela cr. Isto a religio.

2.4 Os Novos Movimentos Religiosos

A expresso novos movimentos religiosos foi proposta por Eileen Barker e vem sendo adotada em substituio aos termos seita e culto devido ao uso depreciativo dos mesmos na contemporaneidade, principalmente pelo movimento anticulto (anticult moviment), o que gera preconceitos e aes repressivas aos grupos que assim so denominados. Sendo assim, determinar as caractersticas destes movimentos religiosos possibilita compreender o prprio termo religio e at que ponto estes movimentos evoluem para tornar-se uma tradio religiosa aceita pela ampla sociedade. Para tanto, ser utilizado como base para o desenvolvimento deste tpico o artigo de Massimo Introvigne (2005), titulado Cults and Sects, no qual apresentado um estudo cronolgico das definies de seita e culto e em que momento seu uso foi desvinculado de sua concepo original. Aqui se trata tambm do movimento anticulto exemplificando-o com o livro de Benard Fillaire (1997), jornalista e escritor de As Seitas, livro no qual ele analisa esses novos movimentos na Frana e expressa sua averso a eles, sejam religiosos ou no. Alguns estudiosos buscam na etimologia os fundamentos para compreender os movimentos religiosos novos e assim poder caracteriz-los. A palavra seita deriva de secta-ae (HOUAISS, 2001) que, assim como religare ou relegere, no oferece uma definio pontual e livre de ambigidades; pode significar cortada, como citado por Shlesinger (1997, p. 2326) o que d margem a compreend-las a partir de uma ruptura ou separao de algo maior; e tambm como sistema de vida, modo de proceder (HOUAISS, 2001), trazendo o uso sociolgico deste termo. A etimologia, neste caso, no deve servir como base para qualquer interpretao a cerca dos movimentos novos devido s possveis controvrsias na aplicao destes termos. Outros pesquisadores buscam na sociologia da religio o uso dado aos termos seita e culto para compreend-los e caracteriz-los. Introvigne (2005) estabelece uma anlise temporal (do incio ao fim sculo XX) para apresentar o que se entendia como seitas e cultos em nvel sociolgico e como nos anos 70, com o surgimento da mdia televisiva, ocorreu a desestruturao e depreciao do significado destes termos. 26

Antes da II Guerra Mundial prevalecia a distino entre seitas, cultos e religies apresentada por Ernest Troeltsch (apud INTROVIGNE, 2005, p. 2084, traduo nossa), telogo e socilogo alemo, que denominava Igreja, Seitas e Misticismo. Para ele, Igrejas so grupos bem integrados na ampla sociedade. Uma marca tpica dessa integrao seria o nascimento de membros cujos pais j so freqentadores destas igrejas, o que os torna nascidos nestas igrejas ao invs de convertidos. J as Seitas seriam como um movimento religioso onde muitos membros so a primeira gerao de convertidos e so tipicamente hostis ou indiferentes ampla sociedade. E que o Misticismo seria um movimento menos estruturados e organizado, e sobrevive como uma parte da experincia individual. Com base no pensamento de Troeltsch, J. Milton Yinger (apud INTROVIGNE, 2005, p. 2084, traduo nossa), entre 1940 e 1950, reconheceu estes movimentos religiosos como estgios para alcanar o status de religio, e, redefinindo o escrito por Troeltsch, re-nomeou os termos como igreja universal, seitas estabelecidas, seitas e cultos. O culto seria o primeiro estgio, considerado como [...] pequenos grupos de crentes dividindo uma experincia religiosa, mas [que] ainda no esto em uma estrutura organizada. Quando estes desaparecem, eventualmente podem tornar-se seitas (o segundo estgio), que so definidas como [...] organizaes religiosas em sua maioria constituda pela primeira gerao de convertidos e existentes num significante grau de tenso com a ampla sociedade. Caso esse grupo seja constitudo pela segunda ou terceira gerao de convertidos, eles passam para o terceiro estgio, o de seita estabelecida, que seria um estgio transitrio entre seita e igreja universal, j que para Yinger a seita s o deixa de ser quando incorpora o universalismo, isto , quando passa a ter objetivo universal e no se restringe a organizar um grupo limitado de seguidores. O ltimo estgio o chamado Igreja Universal que so igrejas no sentido completo da palavra, tendo alcanado seu objetivo universal na prtica e no apenas na teoria. At o momento o conceito de seita esteve intimamente atrelado ao Cristianismo, tanto foi assim que o termo Igreja podia ser considerado como sinnimo de religio. Aps a II Guerra Mundial, segundo Introvigne, a mdia descrevia qualquer expresso religiosa no-crist (Hindusmo, Budismo, etc.) como seita, o que levou a tentativa de redefinir novamente o termo, buscando dissoci-lo do Cristianismo. Seguindo esta nova percepo, o socilogo Bryan R. Wilson (apud

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INTROVIGNE 2005, p.2084) reconhece que o determinante que diferencia a Igreja das Seitas o objetivo perseguido por elas. Para ele,[...] Uma seita, ao contrrio de uma Igreja, no aspira ser reconhecida pelo Estado como uma instituio nem como parte de um tecido organizacional da sociedade. Por outro lado, eles querem muito mudar a vida de seus membros, e ocasionalmente afirmaro que essa mudana vai resultar na mudana da prpria sociedade. Estes objetivos podem ser perseguidos dentro ou fora do cristianismo.

Por fim, na dcada de 80 foi apresentado o que Introvigne considerou como a ltima [...] declarao sociolgica influente a respeito do que pode ser considerado Igreja, Seita e Culto, elaborados por Rodney Stark e William Sims Bainbridge. Os estudiosos definem Igreja (Church) como um grupo religioso que aceita e coopera com o [ambiente] da sociedade dominante [...]. Enquanto que a Seita seria [..] um grupo religioso numa situao de tenso ou hostilidade em relao a essa tendncia social dominante, isto considerado um desvio. Os cultos, por sua vez, so considerados um desvio de uma tradio maior, porm sem estrutura organizacional estabelecida. (STARK; BAINBRIDGE apud INTROVIGNE, 2005, p. 2085) At ento todas as definies propostas no mbito da sociologia para distinguir religio, cultos e seitas eram utilizadas de forma neutra, evidenciando processos no estabelecimento de uma expresso religiosa. Segundo Introvigne o uso destes termos comeou a ser distorcido de sua idia original na dcada de 70, quando a mdia passou a us-los para identificar instituies perigosas ou criminosas mascaradas como religiosas. A partir da, historiadores e socilogos optaram pelo uso do termo novos movimentos religiosos, o que, de certa forma, acentuou a compreenso de seitas e cultos como uma forma pejorativa de chamar esses movimentos. As prticas nocivas e ilcitas associadas aos novos movimentos religiosos pela mdia foi o suficiente para reforar a tese de controle da mente e lavagem cerebral apontadas pelo movimento anticulto (anticult moviment) como aes prprias destes grupos. A teoria de lavagem cerebral relacionada aos novos movimentos religiosos era defendida pela psicloga Margaret Thaler Singer (19212003), professora adjunta da Universidade da Califrnia que se empenhou em

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participar

de

aes

anticulto,

utilizando

o

mtodo

da2

desprogramao

(desprogramming). (INTROVIGNE, 2005, p. 2085, traduo nossa ):[...] ela, de certo modo inventou uma nova profisso, como uma psicloga a servio dos tribunais e iniciativas anticulto. Baseada nos argumentos de lavagem cerebral, vigilantes privados iniciaram o seqestro de membros adultos, dos novos movimentos religiosos, em nome de seus familiares, submetendo-os a uma espcie de counterbrainwashing [revertimento de lavagem cerebral] que eles chamam de deprogramming [desprogramao] [...]. As grandes organizaes do movimento anticulto na Amrica do Norte, como o Cult Awareness Network, eram frequentemente acusadas de encaminhar famlias para deprogrammers [desprogramadores], embora os tribunais fossem a princpio tolerantes a essa prtica.

Na Amrica do Norte a teoria de lavagem cerebral perdeu foras na dcada de 90, mas ampliou seu poder de influncia na Europa, sendo citada em relatrios parlamentares [..] e [..] resultou numa controversa emenda ao cdigo criminal francs em 2001. (INTROVIGNE, 2005, p. 2085). Alis, o pensamento anticulto pode ser exemplificado com o livro de Fillaire, j comentado no incio deste tpico, no qual apresenta uma definio para seitas e descreve minuciosamente a metodologia utilizada por elas, obviamente envolvendo tcnicas de controle da mente. O autor apresenta o movimento sectrio (seja ele religioso ou no) com base na observao das aes desses grupos na Frana e sua infrao a Constituio deste mesmo pas. Para ele a manipulao mental nas seitas um mtodo evidente e atinge indivduos em situaes de risco, isto , com problemas emocionais e/ou financeiros, suscetveis a abordagem dessas organizaes (FILLAIRE, 1997, p. 6).[...] chamaremos de seita um grupo qualquer, sem levar em conta sua ideologia, sua doutrina, sua crena, no qual se pratique a manipulao mental que conduza destruio da pessoa no plano psquico (algumas vezes fsico, muitas vezes financeiro), de sua famlia, das pessoas que a cercam e da sociedade, com o objetivo de lev-la a aderir sem restries e a participar de uma obra que fere os direitos do homem e do cidado.

2

Optou-se por manter alguns termos no idioma original, para que a compreenso de seu significado possa ser assimilada o mais prximo do original.

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A metodologia utilizada pelas seitas para atrair seguidores analisada e dividida em trs movimentos: a seduo, a destruio e a reconstruo. Na etapa da seduo, o sincretismo religioso e o chamado trs pilares (o guru, um grupo e uma doutrina) so os instrumentos de manipulao utilizados. A destruio o enfraquecimento fsico do indivduo submetido a regras da vida sectria, como jejuns e sono irregular, alm da ruptura com laos familiares. E, por fim, tem-se a reconstruo, que se d com a tomada de conscincia do indivduo que passa a confrontar a ideologia que segue com o que faz a sociedade em geral, originando um dilema: se permanece fiel doutrina ou se abandona a seita. Fillaire (1997, p. 14) afirma que [...]. No se entra para uma seita, mas se tragado por um movimento cujas estruturas manipuladoras so cuidadosamente preparadas [...]. Todo o conjunto de argumentos apresentados para delimitar as expresses religiosas, agrupando-as de forma restritiva mostra-se ineficaz, at o momento, j que a compreenso de sua representatividade variada, sofrendo a influncia da subjetividade de cada pesquisador que opta por trabalhar neste campo. A percepo mais significativa desses movimentos religiosos que eles no iniciam na crena da ampla sociedade, e sim que ao longo do tempo que vai alcanando notoriedade at tornar-se influente no tramite social. As religies tradicionais j foram movimentos religiosos novos, com ideologias em sua grande parte voltadas para o aspecto moral, divergentes a poca quando surgiram. Como expresso do pensamento, pode-se observar esses novos movimentos da realizao do pensamento individual, importante na evoluo do ser.[...] Estou contente que seitas existam, e smente desejo que vo se multiplicando-se cada vez mais. Porque? Simplesmente porque, se vs e eu e todos os que aqui esto presentes, pensssemos exactamente os mesmos pensamentos, no haveria pensamentos para pensarmos. Sabemos que duas ou mais foras ho de vir em coliso, para produzir movimento. a contenda de pensamento, a differenciao de pensamento, o que desperta pensamento [...]. [...] enquanto a humanidade pensar, haver seitas. Variao o signal da vida, e h de haver variao. Eu desejo que as seitas vo multiplicando-se tanto que por fim haja tantas, quantos seres humanos, e cada pessoa ter ento seu prprio methodo, seu methodo individual de pensar na religio. (VIVEKANANDA, 1931, p. 131-132)

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3 INTEGRAO DA FILOSOFIA E RELIGIO NA NDIA

Como j comentado no incio do captulo 2, o pensamento filosfico metafsico e religioso so prximos medida que busca compreender a realidade e existncia do ser, e o ponto divergente o questionamento, a dvida. Na ndia antiga, filosofia e religio apresentam-se de forma integrada no permitindo, num primeiro momento, estabelecer delimitaes a essas reas de pensamentos. Nas palavras de Zimmer (2008, p. 51),[...] a filosofia da ndia est to estreitamente ligada religio, aos sacramentos, s iniciaes e s formas da prtica litrgica, como a filosofia ocidental moderna est para as cincias naturais e seus mtodos de investigao.

Na construo do pensar filosfico indiano, o guru e o discpulo so entidades importantes, j que para alcanar o objetivo primordial (a libertao) ser necessria a interao entre eles; a sabedoria no alcanada individualmente ou isoladamente. Longe disso, preciso ter o auxlio de um Guru j experimentado, que encontrou a respostas aos questionamentos metafsicos atravs de sua prpria prtica; ele buscou e encontrou um caminho. Observa-se que ao contrrio da filosofia metafsica do Ocidente, que se baseia na dvida, nos questionamentos para compreender a realidade e encontrar uma verdade, o filsofo indiano consciente de que esta verdade est dentro de si, ele precisa concentrar esforos em busca de mtodos que o faa retornar a essa verdade. Sendo assim, a relao GuruDiscpulo, na ndia antiga, composta pela credibilidade sabedoria do Mestre, com a f e devoo nesta sabedoria pelo aluno.O discpulo que tem em suas entranhas a verdade anelada, - [...] submete-se sem reservas ao seu guru, prestando-lhe reverncia como encarnao do saber divino que lhe ser ministrado, pois o mestre portavoz da sabedoria superior e possuidor de uma arte especial. O discpulo, em seu culto religioso, deve devotar-se divindade que preside a arte especial e sabedoria que ser, dali em diante, o princpio normativo de sua trajetria. Deve compartilhar a moradia de seu mestre durante anos, serv-lo em sua casa e ajud-lo no trabalho, seja seu ofcio de sacerdote, mago, asceta, mdico ou oleiro. As tcnicas necessitam ser aprendidas pela

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prtica constante, enquanto a teoria ensinada por meio da instruo oral, suplementada por um estudo completo dos manuais bsicos. [...] (ZIMMER, 2008, p. 50)

Apenas ser possvel alcanar o aperfeioamento daquilo que ensinado atravs da prtica, do exerccio. A prtica o auxlio que indicar como chegar ao objetivo primordial e est intimamente ligada ao culto e prticas religiosas que reforaro a f do discpulo nos ensinamentos do Mestre, e envolve: [...] recluso monstica, o ascetismo, a meditao, a orao, os exerccios de yoga e as horas dirias dedicadas ao culto. [...]. (ZIMMER, ano, p. 51) O pensamento a cerca das questes metafsicas (ser, realidade, natureza, etc.) recebem classificaes diversas no sistema indiano, j que no h, segundo Zimmer (2008, p. 38), uma palavra em snscrito capaz de agrup-los, como temos a palavra filosofia. A primeira e mais importante classificao refere-se as quatro metas de vida na esfera humana, detalhadas a seguir: A primeira chama-se Artha3, e refere-se s posses materiais. Abrange a economia, poltica, as tcnicas de sobrevivncia utilizadas para esquivar-se das mazelas humanas (como inveja e esprito competitivo, violncia para citar alguns deles); alm dos objetos do uso cotidiano que permitem a realizar virtuosamente as obrigaes da vida. A literatura que trata deste tema geralmente apresenta-se como fbulas. Depois se tem Kma, que est relacionada ao prazer e amor. Zimmer (ano, p. 40) aponta que a origem desta literatura era principalmente amenizar possveis frustraes na vida conjugal devido ao sistema de casamentos arranjados. Por isso mesmo, essas obras eram compostas no apenas de tcnicas (como o Kama-Sutra, que chegou aos nossos dias), mas tambm trazia noes sobre a psicologia do amor, o que se compreendia por amor, a expresso das emoes, alm de tcnicas de dana, canto e arte dramtica. A terceira meta o Darma, que abrange as questes morais e religiosas. Nessa literatura encontram-se as doutrinas religiosas, ritualsticas e normas sociais descritas em tempos imemoriais das trs castas principais: os brmanes (sacerdotes), os katriyas (nobre) e vaiya (mercador, agricultor).

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Artha: [...] conota, [...], a obteno de riquezas e prosperidade, vantagem, lucro e fortuns mundanas[...]. (ZIMMER, ano, p.38)

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Por fim, a quarta meta, Moka, a libertao espiritual, libertao da ignorncia e paixes, prprias do estado ilusrio da mente. Essa parte concentra a

maior parte da literatura dedicada a investigaes, pensamentos e ensinamentos indianos. (ZIMMER, 2008, p. 38-42)

3.1 Sistemas Filosficos

Os sistemas filosficos indianos dividem-se em dois grupos: os vdicos (de carter ortodoxo), tambm chamados de clssicos, e os no-vdicos (de carter heterodoxo). Em linhas gerais os sistemas clssicos (Samkhya e o Yoga, a Mimamsa e o Vedanta, o Vaisesika e o Nyaya) foram assim agrupados por reconhecerem a autoridade dos Vedas, embora expressem pontos de vista divergentes entre si sobre determinados ensinamentos. Os heterodoxos, Budismo, Jainismo e a Escola Mundana no aceitavam o pensamento vdico, incluindo a diviso da sociedade em castas. (HUAI-CHIN, ano, p. 12) A no aceitao dos Vedas pelas escolas heterodoxas tem como base no apenas questes de carter filosfico, mas principalmente social e relacionado diretamente s invases sofridas pela ndia ao longo de sua histria, em destaque a invaso ria, que trouxe consigo a filosofia vdica e o estabelecimento de normas religiosas e sociais prprias. Este fato perceptvel quando pesquisa-se, entre as poucas evidncias existentes, a origem familiar dos fundadores das escolas chamadas heterodoxas (como o Budismo e o Jainismo, por exemplo). Ambos pertenciam casta dos nobres (ksatriyas), porm sem parentesco com os rias. Zimmer (2008, p. 163) diz que embora a invaso tenha ocorrido, ela no conseguiu avanar por todo o territrio indiano, o que permitiu que a nobreza pr-ariana se mantivesse no poder e cultivasse os costumes nativos. A escola jainista, por exemplo, seria a mais antiga de todas, j cultuada no perodo anterior a invaso.[...], a histria da filosofia indiana caracteriza-se, em grande parte, por uma srie de aes recprocas entre o estilo de pensamento e de experincia espiritual dos invasores vdicos-arianos e os dos primitivos drvidas, no rias. Os brmanes foram os principais representantes do primeiro estilo, enquanto o outro foi conservado, e finalmente imposto, pelas casas reais sobreviventes da populao indiana nativa, pr-aria, de cor escura. [...]

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A civilizao indiana antiga (pr-ria), que em ingls chamada de Indus Valley Civilisation ou Harappa Civilisation, descrita por Rudy Harderwijk (2006) como agrcola e culturalmente desenvolvida, cuja prtica de meditao e yoga j eram evidenciadas. Entre os sculos de 1800 e 1500 AEC teria ocorrido a invaso. Os arianos so caracterizados como uma sociedade dominada por guerreiros e comerciantes de alguma parte da Europa Oriental; e trouxeram consigo as escrituras conhecidas como os Vedas, norteadoras dos valores morais e sociais adotados por essa sociedade. Harderwijk (2006) apresenta um quadro comparativo entre as duas civilizaes, que ilustra claramente o impacto causado pela invaso nos costumes da Civilizao Hindu. Este quadro est reproduzido abaixo:

Ilustrao 1 Fonte: http://viewonbuddhism.org/pre_buddhism_history.html

3.2 Escolas no-vdicas

Neste tpico so apresentas, de forma resumida, as caractersticas das escolas de pensamento no-vdicas, sendo que o Budismo, incluso neste grupo, ser descrito detalhadamente no captulo 3. a) Escola Mundana Segundo Huai-Chin (2002, p. 22-23), os pensadores desta escola

acreditavam que apenas os quatro elementos (terra, gua, fogo e ar) podem ser considerados reais no mundo, sendo todo o resto apenas agregados da juno destes elementos, incluindo no apenas as formas, mas at mesmo os sentimentos e pensamentos. Desta forma, eles no acreditavam na autoridade religiosa, nem 34

mesmo em outros mundos ou na possibilidade de renascer e pregavam que as sensaes e desejos deveriam ser satisfeitos para o alcance da felicidade. No foi citado um fundador ou pensador proeminente desta escola.

b) Jainismo Vardhamana Mahavira visto, por alguns estudiosos como o fundador do Jainismo, porm, para os jainistas, ele considerado apenas um dos Tirthamkara (traduzido como Autores da Travessia do Rio) na evoluo desta linhagem. Os Tirthamkara so aqueles que alcanaram um estado de libertao que transcende a esfera do divino, como o conhecemos, do firmamento. Zimmer (ano, p. 143) descreve que eles [...] esto alm do acontecer csmico assim como dos problemas biogrficos: so transcendentes, livres de temporalidade, oniscientes, desprovidos de ao e esto absolutamente em paz. [...]. Huai-Chin (2002, p. 24) apresenta a teoria Jaina das sete verdades que so vida, o no-vivo, vazamento, vnculo, controle, imobilidade pacfica e libertao; e como compreendida a lei do carma por esta escola. O carma visto como uma matria rarefeita e permeia todas as atividades relacionadas vida. O carma visto como um vazamento, pois seu fluxo mantm os seres no plano da existncia. A nica forma de elimin-lo seria adquirir controle dessas aes liberatrias de carma e entrar num estgio de imobilidade. Somente desta forma se alcana a libertao. Os princpios do Jainismo so apresentados por Harderwijk (2006, traduo nossa):Ahimsa: no-violncia, uma conseqncia da f no Karma Anekantvad: mltiplos pontos de vista Apirigraham: Abandono da vida material Satya: renncia da vida secular

4 O BUDISMO

Aps caracterizar e definir religio, de acordo com os objetivos deste trabalho, e conhecer contextualmente a formao do pensamento filosfico indiano, neste captulo so apresentados o desenvolvimento do Budismo abrangendo o perodo

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que vai de sua origem formao das escolas de pensamento, com detalhamento da ramificao conhecida como Mahyna, e os pontos principais da doutrina. A filosofia e religio na ndia antiga eram complementares e formadoras do comportamento social na regio (ver cap. 2). O Budismo considerado pelos estudiosos como parte das escolas no-vdicas (assim como o Jainismo, e as chamadas Escolas Mundanas), e de fato, alguns stras, que chegaram a contemporaneidade mostram crticas a alguns ensinamentos provenientes do bramanismo. A dialtica contnua estabelecida na filosofia indiana era expressa pelos discursos e debates a cerca das doutrinas e prticas defendidas por cada escola de pensamento (ZIMMER, 2008, p. 163). O movimento filosfico-religioso que hoje se conhece por Budismo surgiu a partir da experincia transcendente (ver tpico 2.2.2) vivenciada pelo prncipe Siddhrta, que, se utilizando de mtodos de prtica j conhecidos da cultura indiana, como a meditao, alcanou o total domnio mental que o permitiu acessar um nvel de compreenso (insight) profundo a cerca do ser e da realidade em que vive. Ele atingiu o estado de liberdade to almejado pela filosofia indiana. Os estudiosos discutem quanto autenticidade das fontes que confirmariam o perodo, poca e vivncia do Buda histrico. Um grupo defende que o relato de vida do Buda, como apresentado pelos textos em snscrito, seria um mito orientado, ou seja, o fundador considerado um mito solar; sua vida teria sido descrita de forma a reforar a doutrina empregada. Outro, com base nos textos em pali, defende que ao retirar todo o aspecto alegrico das escrituras seria possvel descobrir como, de fato, foi vivncia do Buda; este tipo de anlise chamado filologia orientada. (REYNOLDS; HALLISEY, 2005, p. 1061) Porm, neste trabalho no so apresentados detalhamentos a cerca desses diferentes pontos de vista, pois o maior interesse a compreenso da formao do Budismo ao longo de sua histria, o que permite estrutur-lo com vistas a uma organizao categrica. As fontes principais para desenvolvimento deste captulo so as literaturas das escolas budistas tradicionais (como a escola Thervda; Chan ramificao Lin Ching -; e Karma Kagyu ramificao Karma Theksum Chokhorling -) com textos j traduzidos para o portugus4, artigos presentes na Encyclopedia of Religion e Encyclopedia of Buddhism ambas as publicaes da

4

Todas essas escolas budistas possuem representaes na cidade do Rio de Janeiro.

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editora Macmillan, alm de conversas informais com as monjas do Templo Zu Lai (representante do Chan no Brasil). importante destacar que a descrio apresentada de carter sinttico no buscando o detalhamento exaustivo do tema, mas sim os pontos considerados principais a serem abordados para a elaborao da anlise proposta neste trabalho.

4.1 O incio e o fundador

A religio hoje chamada de Budismo foi iniciada a partir da experincia transcendente vivenciada por Siddhrta Gautama (Siddhattha Gotama, em pali), o prncipe da casta dos katrya, que ao ter contato com as manifestaes do sofrimento (como morte, doena, e as incertezas trazidas pela existncia), as quais todos os seres so suscetveis, decidiu buscar respostas que o ajudassem a compreend-las e solucion-las (COHEN, 2008, p. 35).Estou acossado pelo nascimento, envelhecimento e morte, pela tristeza, lamentao, dor angstia e desespero, sou acossado pelo sofrimento, subjugado pelo sofrimento. Talvez um fim dessa inteira massa de sofrimento possa ser avistado?

Gautama decidiu ento renunciar ao seu lar, esposa, filho e a sucesso de um reino e partir em busca de um entendimento para seus questionamentos. A idade e as circunstncias em que deixou o palcio divergem, mas fontes em pali admitem que este episdio tenha ocorrido aos 29 anos, com seu filho j concebido. Ele uniu-se a um grupo de ascetas e buscou dentre eles os mais proeminentes, para que pudessem lhe ensinar o mtodo de sua realizao5. Encontrou Ajara Kalama, que lhe ensinou a meditao iogue com a qual alcanou um estado mental chamado de a regio da percepo e no-percepo. (SILVA; ROMENKO, 2005, p.14) Posteriormente, procurou por Uddaka Ramaputta, e com ele conseguiu atingir estados ainda mais elevados de concentrao durante a meditao. Porm esses ensinamentos no o conduziram diretamente ao objetivo almejado. Decidiu, ento, buscar por si prprio o modo que o conduziria s respostas e solues pretendidas.5

Neste caso vemos a relao Guru-Discpulo, prtica filosfica indiana, em plena realizao. Gautama estava em busca de um guru respeitvel que o ensinasse o que j havia realizado por si mesmo.

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Praticou por seis anos o ascetismo de forma austera, que envolvia a prtica de autoflagelao, mtodos populares na poca. Entretanto, essas prticas debilitaram seu corpo, que ficou desnutrido, fraco para dar continuidade a sua busca. Recuperou-se aps ter conscincia de que tais procedimentos no eram eficientes e seria preciso um corpo sadio para alcanar a iluminao (COHEN, 2008, p. 38). Disse ele: [...] Eu por essa severa austeridade, no alcancei o poder sobre-humano, os excelentes conhecimentos e viso condizente com os nobres. [...]. Por fim, Gautama sentou-se aos ps da rvore asvattha (fcus religiosus, tambm chamada rvore Bodhi) e entrou em estado de meditao profunda como descreve Cohen (2008, p.38):[...]. Ento os textos contam, na primeira viglia da noite ele direcionou sua mente concentrada rememorao das suas vidas anteriores [...]. Gradualmente desdobraram-se [...] suas experincias em muitos

nascimentos passados, e at durante muitos ons csmicos; na viglia noturna do meio ele desenvolveu o olho divino [...] que lhe permitia ver seres falecendo e renascendo de acordo com seus carmas, seus feitos; e na ltima viglia da noite ele penetrou nas mais profundas verdades as existncia, as leis mais bsicas da realidade e extinguiu todos os cancros morais [...].

Desta forma Gautama alcanou o estado de Buda, o Perfeitamente Iluminado. Considera-se Buda como um estgio no desenvolvimento espiritual, pois se trata, na tradio religiosa indiana, de um ttulo para aqueles que encontraram a libertao do ciclo de renascimentos, um dos objetivos primordiais expressos pelo pensamento filosfico indiano. O Mestre Jainista, contemporneo de Gautama, Mahvra, tambm era chamado Buda. (REYNOLDS e HALISEY, 2005, p. 1060). Aps alcanar este estado, Gautama passou a ser chamado de akyamuni, Tathagtha entre outros honorficos. Aps a Iluminao, com base nos textos em pali, o Buda teria relutado em transmitir o que havia experienciado, pois tinha conscincia de que no era algo de fcil assimilao. Porm, segundo essas mesmas fontes, um deus chamado Brahma Sahapati o convenceu a mudar de idia (COHEN, ano, p.39).Este Darma [...] por mim alcanado profundo, difcil de ver, difcil de entender, tranqilo, enlevado, est alm do escopo do raciocnio, sutil e

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experimentvel pelo inteligente. Esta gerao, porm, dada ao prazer daquilo pelo qual tem apego. No entanto, para uma gerao [assim apegada] esta matria difcil de ver, [...]. E assim, se eu fosse ensinar o darma e os outros no fossem [...] me entender, isto seria para mim um aborrecimento, isso seria para mim um desgosto [...]. E ento, discpulos, eu, atendendo s splicas do Brahma e por compaixo dos seres, escrutei o mundo com o olho de um iluminado. [...] eu vi seres com pouca poeira nos olhos e com muita poeira nos olhos, de faculdades aguadas e de faculdades embotadas, [...] fceis de serem instrudos e difcil de serem instrudos [...] Existem, portanto, seres com pouca poeira nos olhos que, por no ouvir o darma decaem, estes tornar-se-o conhecedores da verdade.

O Buda viveu aproximadamente at os 80 anos e dedicou mais da metade deste perodo ensinando o darma. Organizou uma sangha, que s aceitou a incorporao da figura feminina algum tempo depois de sua formao. Seu parinirvana aconteceu, segundo Cohen (2008, p. 40), em Kusinara, e suas relquias foram distribudas entre oito grupos, que as depositaram em Stpas.

4.2 Doutrina: pontos principais Os ensinamentos enunciados por akyamuni, aps o momento de sua Iluminao, so chamados as Quatro Nobres Verdades, o fundamento bsico do Budismo. Antes de prosseguir na descrio deste importante ensinamento, destacase a organizao dos mesmos, por parte dos estudiosos, em perodos conhecidos como giro da roda do darma. O primeiro perodo de ensinamentos denominado como o primeiro giro da roda do darma (ou o giro explicativo da roda do darma), sendo, neste caso, darma o prprio ensinamento proferido pelo Buda. Nesta poca ele apresentou as Quatro Nobres Verdades (o sofrimento, sua causa, sua cessao e o caminho para cess-lo) (HSING YN, 2006, p. 33)O sofrimento isso: sua natureza opressiva. A causa do sofrimento esta: sua natureza o apego, a obstinao, a acumulao. A cessao do sofrimento isto: sua natureza a compreenso ou despertar. O caminho para a cessao do sofrimento este: sua natureza o aperfeioamento.

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O segundo giro da roda do darma, tambm conhecido como giro persuasivo da roda do darma, o perodo em que o Buda convence seus discpulos a compreender profundamente essas verdades e utilizar-se da prtica para extinguir o sofrimento. (HSING YN, 2006, p. 33).Isto sofrimento, vocs devem compreend-lo. Esta a causa do sofrimento, vocs devem elimin-la. Esta a cessao do sofrimento, vocs devem despertar para ela. Este o caminho rumo cessao do sofrimento, vocs devem pratic-lo.

Por fim, o terceiro giro da roda do darma, tambm chamado de o giro comprovado da roda do darma, o momento em que o Buda convida seus discpulos a colocarem prova seus ensinamentos atravs da prtica. A comprovao vem atravs da prpria experincia do Buda, que se utiliza como exemplo de realizao da compreenso dessas nobres verdades, que est ao alcance de qualquer pessoa (HSING YN , 2006, p. 34).[...] Isto sofrimento: eu o conheo. Esta a causa do sofrimento: eu j a eliminei. Esta a cessao do sofrimento, j despertei para ela. Este o caminho que leva a cessao do sofrimento, j o pratiquei.

As Quatro Nobres Verdades ensinadas pelo Buda so: A verdade da existncia do sofrimento A verdade da causa ou origem do sofrimento A verdade da cessao do sofrimento O caminho que conduz extino do sofrimento

Todos os demais ensinamentos (por exemplo, vazio, impermanncia, no-eu, gnese condicionada) transmitidos pelo Buda aos seus discpulos esto intimamente relacionados a essas mximas e visam seu esclarecimento.

a) A verdade da existncia do sofrimento. Segundo Silva e Romenko (2005, p. 35), o sofrimento (tambm chamado insatisfao) ocorre [...] devido desarmonia entre o eu pessoal condicionado e o mundo real no-condicionado. Quando se assume a existncia de uma 40

individualidade, uma personalidade, a qual se acredita ser nica e imutvel, contradiz-se a realidade impermanente 6 e mutvel natural a todas as coisas e a todos os seres. Esse posicionamento frente realidade gera o sofrimento ou insatisfao. Pode-se considerar o sofrimento sob trs aspectos: o fsico, o psicolgico e o filosfico, sendo este ltimo relacionado noo de ser, indivduo ou eu, j mencionado. Relacionar a noo de individualidade com sofrimento (ou insatisfao) exemplifica a resistncia em se admitir a impermanncia presente na realidade. O ser humano compreende sua existncia como um fruto imutvel e estende essa compreenso ao plano metafsico da existncia. O Buda, por sua vez, no nega a existncia das formas ou dos seres e das caractersticas de cada um, mas compreende que nenhuma forma existe por si s: elas sempre so compostas por elementos agregados, que por sua vez tambm so assim compostos

sucessivamente numa cadeia infinita. Quando se fala dos elementos que compem a formao de um ser, o Buda apresenta-os em grupos de Cinco Agregados, tambm chamados Skandhas (SILVA e ROMENKO, 2005, p.43): Matria (corporalidade) Sensaes Percepes Formaes Mentais Conscincia

Todos esses elementos combinados, em maior ou menor escala, compem a realidade como a conhecemos.

b) A verdade da causa ou origem do sofrimento Aps compreender o que insatisfao, busca-se sua motivao ou causa. A conscincia de individualidade e personalidade traz desejos que alimentam o estado ilusrio da existncia de um eu. O desejo por si s no pode, segundo Silva e Romenko (2005, p. 55), ser considerado a causa principal, ou a causa primeira originria do sofrimento, j que a prpria existncia do desejo est condicionada a6

Os estgios como infncia, juventude, velhice e a prpria morte so representaes do carter impermanente da prpria natureza do ser.

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outros elementos, como a sensao e o contato; mas de qualquer forma ele considerado como a causa principal da insatisfao. O desejo apresentado sob trs formas: Desejo dos prazeres dos sentidos (kama-tanha) Desejo de auto-preservao, ou seja, existir e vir-a-ser (bhava-tanha) Desejo de no-existncia, auto-aniquilao (vibhana-tanha)

O desejo e as aes executadas visando sua realizao ativam a Lei de Causa e Efeito, a qual todos os seres esto condicionados. Neste caso, a inteno (carma) empregada para a realizao da vontade influencia diretamente no efeito que esta ter; e este efeito atemporal, podendo perpassar existncias, o que embasa a teoria do renascimento budista. Nas palavras de Silva e Romenko (2005, p. 58-59):A palavra carma (pali: kamma) significa literalmente ato ou ao. Mas na teoria budista, carma tem um sentido especfico: expressa unicamente a ao volitiva, boa ou m, consciente ou inconsciente. [...] No Budismo, a teoria do carma uma teoria de causas e efeitos, de ao e de reao. Pela volio, o homem age com o corpo, a palavra e a mente. Os desejos geram aes; as aes produzem resultados; os resultados trazem novos desejos, e assim sucessivamente. Este processo de causa e efeito, ao e reao exprime uma lei natural que nada tem a ver com a idia de uma justia retributiva (no h o conceito de pecado). o simples resultado da prpria natureza do ato, vinculado sua prpria lei de causa e efeito, o que fcil de ser compreendido.

c) A verdade da cessao do sofrimento Nesta verdade, o Buda afirmar a existncia de um estado em que o sofrimento ou insatisfao, e todas as suas causas, no existem; o Nirvna. A cessao do sofrimento a interrupo do ciclo iniciado pelo desejo e continuado pela busca de sua satisfao. Logo, alcanar o Nirvna compreende conhecer a causa, perceber seu surgimento e elimin-la. O desejo em si no ser extinto, mas a percepo do incio deste processo permitir que ele no seja plenamente realizado. (SILVA e ROMENKO, 2005, p. 66)

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[...]. Deve-se notar que a mera cessao do sofrimento, ou mera destruio do desejo no o Nirvana. Se assim fosse, equivaleria aniquilao, porm nada aniquilado. O fogo se apaga porque no h mais combustvel para aliment-lo. a aniquilao da iluso do eu pessoal de separatividade, do total dos apegos, afeies para consigo mesmo, apetites de sede de desejo que envolve e suporta essa iluso; so todos destrudos juntamente com a ignorncia, o dio, a ambio, a luxria e o mal que os acompanha. Eles morrem por falta do nutrimento que os sustentava para nunca mais retornar.

Complementa-se esta parte com a fonte citada pelo 44 Patriarca do Budismo Chan, HSING YN, que oferece um significado para Nirvna:[...] O Abhidharma-mahavibhasa Shastra diz que nirvana significa a extino de todas as impurezas, a aniquilao dos trs fogos (cobia, ira, ignorncia), o apaziguamento total dos trs aspectos da percepo ilusria (forma, rgos da percepo e conscincia perceptiva) e a libertao de todos os nveis de existncia ilusrios. [...].

d) O caminho que conduz extino do sofrimento Nesta verdade, o Buda indica o caminho que leva cessao do sofrimento, ou insatisfao, conhecido como Caminho do Meio. SILVA e ROMENKO (2005, p.75) citam uma passagem do stra Anguttara Nikaya (6-55), a respeito de um discpulo do Buda, chamado Sona, que no conseguia realizar a Iluminao, embora fosse bastante dedicado na prtica a esse propsito. Mestre, estou fazendo exerccios severssimos. Dentre todos os discpulos, no h quem me iguale em zelo. Por que, ento, no consigo realizar a Iluminao? Talvez seja melhor que eu volte para casa. Tenho bens que me permitem levar uma vida feliz. No melhor que eu abandone este caminho e volte ao mundo? Sona, antes de seres monge, eras um exmio harpista, no? Bem, eu tinha certa habilidade com esse instrumento. Ento responde: quando as cordas da harpa esto muito tensas, obtmse um bom som? No, mestre. Quando as cordas esto frouxas, obtm-se um bom som? Tambm no, mestre. Ento, como fazes para obter bom som?

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As cordas no devem estar nem tensas, nem frouxas demais. O mesmo se d com a prtica do Dharma, Sona. A aplicao demasiada traz inquietao mente, e a despreocupao traz negligncia. necessrio seguir o Caminho Mdio entre esses dois extremos. Desde ento, Sona passou a exercitar-se segundo tais instrues, realizando, por fim, a Iluminao.

O Caminho do Meio visa evitar dois extremos: o primeiro, o da autoindulgncia, conforto, prazer fsico que traz apego s paixes ( prprio dos indivduos que procuram a felicidade atravs dos prazeres dos sentidos); o segundo o da autotortura, automortificao ou sofrimento fsico que traz perturbao mente [...]. (SILVA e ROMENKO, 2005, p. 75). Buscando o equilbrio, possvel realizar o caminho descrito pelo Buda, chamado de Caminho ctuplo:

1 Palavra Correta (linguagem pura, suave, amvel, no-ofensiva e no-mentirosa) 2 Ao Correta (conduta honrada, pacfica, no-destruio de vidas, idias ou pensamentos alheios) 3 Meio de Vida Correto (conquistas de bens materiais e espirituais prprios e ajuda aos demais nessa conquista; no comercializar ou compartilhar bens nocivos a outras vidas, como armas e bebidas alcolicas) 4 Esforo Correto (envolve a prtica da meditao, para alcanar pensamentos sadios e bons) 5 Plena Ateno Correta (conservao do estado mental alcanado e manuteno de todas as aes dos outros 7 caminhos). 6 Concentrao Correta 7 Pensamento Correto (pensar com sabedoria, equanimidade e contemplao) 8 Correta Compreenso (entendimento da realidade como ela )

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4.3 Os conclios e a formao das escolas7 de pensamento

Collete Cox em seu artigo Mainstream Buddhist Schools, destaca quatro momentos importantes no desenvolvimento do budismo indiano que so : a vida do Buda; os conclios, ou a recitao comunitria; a primeira diviso; e a fragmentao da comunidade monstica aps a primeira diviso (COX, 2004, p. 501). A criao dos conclios objetivava, inicialmente, reunir, organizar e registrar os ensinamentos do Buda, conservados at ento por meio da recitao deles de mestre para discpulo. Segundo Zimmer (2008, p. 353), o primeiro conclio realizado foi uma proposta do monge Kasyapa frente reao controversa de alguns membros da sangha, aps a morte de seu mestre. O conclio aconteceu em Rajagrha, e pretendia estabelecer a doutrina e a disciplina monstica, de acordo com as palavras do prprio Buda. Quando concluda esta etapa, que teve durao aproximada de sete meses, interveio o monge Purna (conhecido como O Ancio), que no aceitou as resolues ali firmadas. Embora tenha mostrado sua insatisfao, neste momento ainda no se configurou nenhum movimento de separao da comunidade. Zimmer (2008) considera o conclio de Vaisali como o segundo a ocorrer. Para COX (2004) e BAREAU (2005), este teria sido o primeiro conclio a ocorrer. Porm os estudiosos concordam que este conclio aconteceu, aproximadamente, cem anos aps a morte do Buda; e as fontes consultadas por COX (2004, p. 502) [...] sugerem que este conclio foi convocado em resposta a discordncias sobre certas regras de disciplinas monsticas [...]. A diviso na comunidade monstica ainda no teria ocorrido neste momento. Para Zimmer (2008, p. 354) e BAREAU (2005, p. 1193), nesta ocasio ocorreu a diviso e os motivos para realizao dos conclios variam: para o primeiro, ele fora convocado [...] com a finalidade de condenar dez prticas herticas dos monges daquela vizinhana [...] e os que foram condenados, reuniram-se em um conclio prprio, que recebeu o nome de o grande veculo (mahasanghi); j para o segundo, os motivos seriam as discordncias7

Os termos escola e seita adotados neste trabalho tm como base as definies apresentadas por BAREAU (2005). Porm, o termo indiano ao qual essa traduo se refere Nikya, que originalmente significa grupo. Segundo BAREAU (2005, p. 1193) "De acordo com alguns eminentes estudiosos, ns podemos distinguir "seitas" de "escolas budistas. Seitas, segundo sua interpretao, surgiam a partir de srias dissenses sobre questes referentes disciplina monstica. Cada dissenso resultava no rompimento da comunidade, uma samghabheda, ou cisma [...]. Em contraste, as escolas eram diferenciadas por divergncias de opinio em pontos doutrinais, mas sua dissenso nessa matria nunca aumentou a cisma j existente ou alimentou a hostilidade entre as escolas.

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quanto a natureza do Arhat [...] que, [...], segundo algumas autoridades, conservavam imperfeies embora eles tivessem alcanado o nirvna neste mundo. Outras fontes, atribudas a traduo de peregrinos chineses, Xuanzang e Yijing, datadas do sculo VII apontam as discusses sobre as regras monsticas como causa das divises na comunidade, enquanto que algumas fontes budistas do norte da ndia, datadas do sculo II da Era Comum (EC) dizem que a diviso ocorreu no conclio realizado em Pataliputra, durante a metade do terceiro sculo antes da Era Comum (AEC). A razo para a realizao deste conclio eram as discordncias em relao doutrina, mais especificamente cinco pontos caractersticos do estado de Arhat. Embora existam divergncias entre os locais de realizao dos conclios e o que ocorrera de fato neles, observa-se que h concordncia entre os estudiosos quanto cisma no corpo monstico budista, e que ela foi motivada por discordncias quanto a compreenso do que fora ensinado. Alis, Bareau (2005, p. 1193) aponta trs causas possveis para que o budismo no tenha conseguido manter sua sangha unida sob os mesmos parmetros: Durante cinco sculos os ensinamentos do Buda foram preservados apenas pela transmisso oral, que se dava em dialetos diversos; Em comparao ao Cristianismo, observa-se a falta de uma autoridade reconhecida por todas as dissidncias na hierarquia budista, como, por exemplo, o Papa, que reconhecido como lder supremo do catolicismo; O Buda no utilizava um mtodo uniforme para transmitir seus ensinamentos, mas procurava mold-los capacidade de compreenso do seu interlocutor, o que poderia ter gerado divergncias quanto ao entendimento de certos pontos, no apenas da disciplina monstica, mas da prpria doutrina.

4.3.1 Escolas formadas aps a primeira cisma

A

cisma

ocorrida

originou

dois

grupos

distintos:

Mahsamghika

e

Sthavirvda. Para Radhakrishnan (apud ZIMMER, 2008, p. 354), as discordncias no se encontravam apenas no mbito da disciplina monstica; tratava-se da compreenso da doutrina, principalmente no que diz respeito prpria obteno do estado bdico.

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[...] Os Sthavira (os Ancios, isto , aqueles que convocaram o Conclio de Vaisali) defendiam que o estado bdico era uma qualidade que podia ser alcanada por uma severa observncia das regras do Vinaya (a lei cannica tradicional). Os progressistas sustentavam que era uma qualidade inata de todo ser humano e que, com um desenvolvimento adequado, seu possuidor seria capaz de se elevar condio de um tathagata. [...].

Dentre as duas ramificaes formadas a escola Mahsamghika (progressista) dispunha de um cnone compilado segundo o que eles afirmavam terem sido ensinamentos transmitidos pelo prprio Buda, mas que no foram incorporados no cnone do primeiro conclio. A escola Sthavirvda (ortodoxa), por sua vez, fora a que manteve o cnone aprovado no primeiro conclio. As discusses e discordncias entre elas existiam, mas a boa convivncia, ensinada veementemente pelo prprio Buda, que no era a favor de divises na sangha, contribuiu para que a convivncia fosse pacfica. (COX, 2004, p. 503) Os grupos formados inicialmente tambm sofreram divises baseadas em divergncias baseadas, principalmente, na prtica da disciplina monstica. Dentro da escola Mahsamgika formaram-se, inicialmente, trs grandes grupos (BAREAU, 2005, p. 1194): Gokulika, Ekavyavaharika, Caitika.

Mahasamghika

Gokulika (escola)

Ekavyavaharika (escola)

Caitika (escola)

Bahusrutiyas (seita)

Prajnaptinadins (seita)

Purvasailas (seita)

Aparasailas (seita)

Rajagirikas (seita)

Sidaharthikas (seita)

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O grupo conhecido como Sthavirvda conseguiu manter-se unido at o incio do sculo trs AEC, at que surgiram discordncias em relao doutrina do NoEu, por parte do grupo que passou a chamar-se Vatsiputrias. Resumidamente, a doutrina trata da compreenso da existncia condicionada do ser e de todas as coisas que compem a realidade (ver em 3.2.a). Neste caso, toda a matria, mesmo reduzida a sua menor forma, composta de elementos agregados, o que impediria a admisso de uma individualidade nica e imutvel de qualquer forma (sejam elas vivas ou inanimadas). Mas os Vatsiputrias admitiam a existncia da individualidade, de um eu que perpassasse continuamente as existncias at chegar ao estado de Buda. As divises da escola Sthavirvda esto representadas abaixo:

Sthaviravada

Vaisiputriyas

Sarvastivada

Vibhajyavada

Dharmottariya s

Bhadrayaniyas

Sannagarikas

Sammatiyas

Mahasasakas

Dharmaguptal as

Sautrantikas

Theravada

No sc. VII, o registro das escolas e seitas ainda existentes foram feitos pelos peregrinos chineses Xuanzang e Yijing, que relataram a existncia das seguintes escolas:Sthaviravada Mahasamghikas

Kasyapiyas

Sarvastivada

Vibhajyavada Lokottaravada Theravada

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4.3.2 O Mahyna O surgimento do Budismo Mahyna foco de muitas discusses, pois de forma geral, as fontes a respeito do perodo inicial desta ramificao na ndia so poucas. Boa parte das afirmaes que podem ser feitas tem como base os registros dos peregrinos chineses. Chopen (2004), em seu artigo Mahyna, traz a questo da problemtica quanto origem do Mahyna e apresenta algumas das teorias j defendidas. Para este tpico foram selecionadas quatro dessas teorias:

a) Teoria do Modelo Linear Segundo esta teoria, o Budismo Mahyna considerado um movimento subseqente ao chamado Hinayna8, que viria a ser extinto com a evoluo daquela escola. Chopen (2004, p. 492) refuta essa teoria, argumentando que:[...] O surgimento do Mahayana foi muito mais complicado do que o modelo linear calcula, e o Budismo original ou Hinayana, ou como chamado agora talvez corretamente mainstream buddhism, no apenas persistiu como prosperou muito tempo depois do incio da era comum.

b) A evidncia do Mahyna fora dos textos Boa parte dos textos reconhecidos como pertencentes escola Mahyna esto preservados nas tradues chinesas e disseminados para o Japo, os dois maiores representantes dessa ramificao. Um dos textos atribudo a Lokaksema o Sukhavativyuha-stra, e fontes datam que sua traduo foi feita no final do sculo II da EC, o que leva a crer que a composio deste texto tenha ocorrido no incio da EC. Porm, Chopen (2004, p. 493) afirma que quando se busca por evidncias do Budismo Mahyna nesta poca, como artefatos arqueolgicos, artsticos ou at mesmo escrituras litrgicas, nada foi encontrado at o momento. c) O Mahyna e o budismo monstico no perodo mdio Embora alguns estudiosos denominem de perodo do Mahyna o tempo transcorrido do incio da EC at o sculo V, as fontes indianas desta poca, que

8

Chamado veiculo menor. Essa nomenclatura considerada pelos estudiosos contemporneos como inadequada e pejorativa, optando-se por chama-lo de Escola dos Ancios; pelo nome da escola remanescente do Hinayana, a Theravada; ou por mainstream buddhism (a tendncia dominante do Budismo).

49

relacionam o nome de grupos e escolas e suas prticas e atividades monsticas, no fazem qualquer referncia ao Mahyna, mas sim ao chamado Budismo Hinayana (como os Sarvastivdas e Mahsamghikas). Em contrapartida existem tradues chinesas que tratam dos ideais e prticas Mahyna e so atribudas a esse perodo inicial. Chopen (2005, p. 493-494) mantm a argumentao de no existirem evidncias na ndia que comprovem a existncia do Mahyna neste perodo, por isso essa teoria no vlida. Outras teorias so apresentadas e o autor sustenta que h a possibilidade do Mahyna ser um movimento surgido na comunidade monstica e ser restrito a ela, convivendo Hinayna e Mahyna num mesmo mosteiro, o que reflete o carter tolerante de ambas vertentes do Budismo. O aspecto devocional do Budismo Mahyna (como culto aos Budas e Bodhisattvas) teria surgido fora da ndia, j que prprios sutras Mahayana no abordam essa questo em profundidade. Para Dumoulin (2005, p. 28), de fato, o movimento Mahyna surgira nos mosteiros, mas seu aspecto devocional teria sofrido influencia do Ocidente, no perodo do imprio de Alexandre a Augusto, j que a ndia manteve contato com estes governos (ZIMMER, 2005, p. 39). Os textos fundamentais da escola9 Mahyna so atribudos ao filsofo Ngrjuna (sculo II EC), que apresenta textos (astras) com interpretaes filosficas (e por vezes metafsicas) principalmente sobre o Nirvna. Posteriormente, Asanga (325 EC) e Vasubandhu (325 EC) tambm desenvolveram suas teorias, mas sempre com base nos escritos de Ngrjuna. Dois grandes sistemas filosficos contriburam para a formao das propostas filosficas do Mahyna, sendo eles: a escola Madhyamika (Caminho do Meio) e a escola Vijnanavada (Doutina da concincia) tambm conhecida como Yogcra (Caminho na Ioga). (DUMOULIN, 2005, p. 34) A escola Madhyamika busca traar o caminho do meio e estabelece prticas e interpretaes com base nas teorias do no-eu, vazio e interdependncia. A doutrina da escola Vijnanavada, ou Yogcra, baseia-se nas interpretaes de Asanga e Vasubandhu, que afirmam no existir coisa alguma fora da conscincia. A mente um elemento importante no alcance do Nirvana e deve-se utilizar o seu potencial para alcan-lo. (DUMOULIN, 2005, p. 34-35)

9

Termo introduzido por Bhavaviveka (525 EC) para sistematizar os textos interpretativos dos pensadores

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O cnone Mahyna composto por stras, astras (comentrios) e tantras do budismo esotrico, alm de stras que mencionam a Terra Pura do Buda Amitbha. A escola Madhyamika desenvolveu-se principalmente na China, Japo, j a escola Yogcra, no Himalaia, e Tibet.

4.3.3 O Budismo Tntrico

A escola Tntrica tambm conhecida como Vajrayana (ou veculo do Diamante). Wayman (2005, p. 1229) diz que esta forma de budismo parece ter se originado na ndia Oriental, e foi transmitido em crculos secretos at o sculo II da EC. Entre o terceiro e oitavo sculo os cultos e escrituras mantiveram a disseminao restrita (de mestre para discpulo), mas no sculo nono, um rei de nome Indrabhuti de Uddiyana converteu-se ao budismo e foi iniciado nos mistrios do Vajrayana. Os textos mais relevantes so os Tantras e Mantras (discurso mgico), cuja primeira evidncia aparecem em stras Mahyna, com o ttulo de dharani. O Tibet, sem dvidas, tornou-se o maior representante do Budismo tntrico, assim como o detentor de uma representativa quantidade de textos atribudos a essa ramificao do Budismo. 4.4 A expanso do Budismo Considera-se que no reinado de Asoka o budismo tornou-se [...] uma religio amplamente propagada, prspera e popular. [...] devido aos esforos do governante em sua sustentabilidade e disseminao. (ZIMMER, 2008, p. 355)Conta-se que o rei A