Andamento
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A N D A M E N T O
Susumu Yamaguchi
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A caminho do Caminho
A primeira prova do Caminho apanhou-nos ainda antes de seu incio, sem
qualquer aviso prvio ou sinal, na forma de um enjoo na travessia dos Pireneus, da
Espanha para a Frana. O taxista dissera que em geral os peregrinos iniciavam o
caminho em Roncesvalles, e que apenas os valentes, faziam-no em Saint-Jean-Pied-
de-Port. Embora ele se referisse ao trajeto a p, compreendramos visceralmente a
sua afirmativa. Assim, enquanto eu tentava me recompor, sentado ao p de uma
placa que nomeava o Caminho de Santiago como Chemin de Saint Jacques / Jondoni
Jakobe Bidea, Idair, menos abalado, saa procura do albergue para carimbar nossas
credenciais de peregrinos.
O motorista acordou sua esposa Maria por telefone e avisou que estava
saindo para Saint-Jean-Pied-de-Port. A resposta soou sonolenta, voz grave de quem
quer continuar dormindo. Senti-me incomodado, como se invadisse logo cedo a
intimidade de um quarto desconhecido quando a penumbra ainda abraava um ar
no tocado pela primeira viso do dia. O uruguaio Hector morava h vinte anos na
Espanha, mas ainda se recusava a comer carne de cavalos, hbito desta regio.
Chegou a tentar uma vez, mas no conseguiu engolir. Para ns como se fosse um
amigo, um animal quase sagrado explicou, como que nos convocando a uma
solidariedade sul-americana. Disse que conhecera So Paulo h muito tempo, na
poca em que participava da corrida ciclstica 9 de Julho, da qual foi campeo uma
vez. E aqui, no deixou de elogiar a persistncia dos brasileiros: sorrindo, contou
que um dia fora chamado para buscar um casal perto de Roncesvalles. Os ps da
mulher estavam dilacerados pelas botas novas. Ele os havia levado recentemente
para Saint-Jean-Pied-de-Port, e sentiu um grande desconforto por reencontr-los
naquelas circunstncias, em to pouco tempo. A moa estava realmente em uma
situao de dar pena, e ento ele se colocou disposio para lev-los a passeios
por Pamplona e regio: que os brasileiros haviam desistido do caminho, mas no
da lua de mel!
A uma indagao, disse que a cidade era reivindicada pelo Pas Basco, mas
que havia ainda muita ambiguidade quanto questo; e que, dependendo das
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convenincias, seus habitantes eram ora espanhis, ora bascos, principalmente
quando se tratava de subvenes ou tributos em relao ao governo central de
Madrid. De qualquer modo, exceto pela carne de cavalos, Hector parecia estar
muito bem adaptado a tudo isso. At mesmo um telefonema de seu filho,
agradecendo-lhe por haver carregado de crditos o seu celular, parecia confirmar
sua plena integrao a um pas dentro de outro pas, mesmo tendo ele vindo de
outro distante pas. Aparentemente orgulhoso pela retribuio do filho sua
ateno, apenas lhe disse, afetuosamente, que isso era um bom motivo para no se
fazer gastos sem propsitos. Atualmente, praticava corridas de trens com ces.
Travessia do Yukon, no Alaska? Ele apenas sorriu, sonhador.
Havamos combinado com ele na noite anterior que sairamos s sete horas
da manh para Saint-Jean-Pied-de-Port. Dissera que a corrida sairia por volta de
setenta euros ( 70,00), o que realmente se confirmou na chegada [cmbio abril
2002: 1,00 US$ 0,92 R$ 2,16]. Devia haver linhas de nibus saindo de Pamplona a
preos bem menores, mas no chegamos a verificar.
O caf da manh que tomamos enquanto aguardvamos sua chegada,
consistindo basicamente de comidas adocicadas como croissant (po) e magdalena
(bolo), certamente fora decisivo para nosso mal-estar na viagem. Ainda teramos
muito que aprender no caminho sobre o qu e quando comer.
O termmetro do carro indicava uma temperatura externa de 4C negativos
quando estvamos perto de Roncesvalles. Preferi no acreditar e fiquei olhando os
primeiros peregrinos que passavam, inclusive uma mulher que seguia puxando um
carrinho com a bagagem. Na gelada manh l de fora, entre hlitos de frio, em
pequenos grupos ou sozinhos, aos poucos, eles saam para o caminho.
Ento, eles existiam mesmo!...
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1 dia 17/04/2002, quarta-feira
SAINT-JEAN-PIED-DE-PORT RONCESVALLES 24,9 km (FRANA) (ESPANHA)
Assim, por volta de 9h, j refeitos do enjoo, passamos pela Porta de Espanha
e iniciamos o caminho pela rota de Napoleo. Diferentemente deste, que seguiu
com seu exrcito pelo alto da serra por questes estratgicas, os franceses atuais
preferiam a comodidade do asfalto pelo vale do rio Petit Nive. Tambm invadiam o
pas vizinho, porm com objetivos mais modestos que os do pequeno megalmano
imperial: apenas abastecer seus carros com gasolina mais barata. Bela manh, belos
campos, qual um final de semana, caminhando leve pela Serra da Mantiqueira,
fazendo os primeiros ensaios como peregrinos. Pequenos grupos seguiam pela
estradinha asfaltada. Um francs passava com o carro e voltava a p, seguidas
vezes. Explicou que j havia feito a peregrinao. Agora, era a vez da esposa. Ele a
acompanharia at o alto dos Pireneus; depois, ela seguiria s. Estava radiante por
ela e como se agora, atravs dela, ele mesmo estivesse novamente a caminho de
Santiago!
No alto dos Pireneus, pouca neve. Um jovem caminhava lendo um livro que
no conseguimos identificar. Aparentemente fazia duas viagens ao mesmo tempo.
Mas no se perderia nessa simultaneidade de caminhos? Porm, quem perdeu o
caminho fomos ns, distrados pela conversa. Seguimos a fronteira e acabamos
voltando para o asfalto. Um francs mostrou-nos, em um mapa, exatamente o
ponto onde deveramos passar para a Espanha. Voltamos e l estava: em meio a um
pouco de neve j lamacenta, uma escadinha para pular a cerca!
J na Pennsula Ibrica, em outra poca considerada uma terra santa a ser
reconquistada pelos fiis cristos aos infiis mouros, caminhamos sem maiores
dificuldades. Ao descer por uma forte ladeira em meio a uma mata encontramos os
primeiros peregrinos na contramo, talvez voltando desde Santiago. Nossa primeira
parada em Roncesvalles, aonde chegamos depois de 17h, foi, naturalmente, em um
bar. Apenas depois que fizemos o reconhecimento do lugar onde passaramos a
primeira noite no caminho.
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Aps o banho, e antes da missa que precedeu o jantar, tivemos os primeiros
contatos com os peregrinos instalados no albergue da Colegiata de Roncesvalles.
ramos cerca de cinquenta os presentes missa, na qual recebemos uma bno
especial para que a peregrinao seguisse sempre pelo bom caminho. Caa uma leve
garoa quando samos da catedral, o que foi saudado por todos como mais uma
bno dos cus.
Fazendo as honras de nossa mesa, o primeiro brasileiro que encontramos no
caminho serviu a bebida aos quatro peregrinos: o jovem alemo Wolfgang, Idair, eu
e o prprio Roberto. Gacho, aposentado, ia iniciar o caminho a partir dali. At que
chegasse a Santiago no se barbearia, coisa indita em sua vida. A filha cobrara-lhe
uma foto do barbudo desconhecido. Afvel, saboreava de modo tranquilo o vinho,
apesar da ansiedade pelo primeiro passo. Menu do peregrino, servido ao preo de
6,00: sopa de paino, truta, batatas fritas, po, vinho, gua e sorvete. Encerrado o
apressado mas agradvel jantar, atravessamos o ptio com muito frio e recolhemo-
nos em cima do horrio limite de 22h. Ao deixar a mesa, uma leve dor nas pernas era
testemunha da alegria pela primeira jornada cumprida. O albergue no cobrava pelo
pernoite, apenas aceitava donativos. Deixamos 5,00 cada um.
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2 dia 18/04/2002, quinta-feira
RONCESVALLES LA TRINIDAD DE ARRE 38 km
Roberto j estava quase pronto quando comeamos a arrumar as nossas
mochilas. Escuro ainda, bastante frio, ele era um dos primeiros a sair. Despedimo-
nos como quem continuaria a se encontrar pelo caminho. Tomaramos o caf da
manh apenas a trs quilmetros adiante, em Burguete. Nesse local, o clrigo do
sculo XII Aymeric Picaud, em seu Liber peregrinationis de acordo com o Gua
Prctica del Peregrino: El Camino de Santiago, de Milln Bravo Lozano situou a
batalha em que morreram Rolando e vinte mil cristos, juntamente com outros
vinte mil mouros. J o historiador britnico Richard Fletcher escreve em seu livro Em
Busca de El Cid:
O encontro mais famoso ocorreu em 778, quando Carlos, filho de Pepino mais tarde conhecido como Carlos Magno voltava de uma campanha militar na Espanha. A retaguarda de seu exrcito, comandada por Rolando, foi emboscada pelos bascos, no Passo de Roncesvalles, e aniquilada. Embora sendo uma derrota de pouco significado militar, ela foi lembrada por longo tempo, reunindo em torno de si acrscimos lendrios, que acabaram por receber forma literria no maior de todos os picos do francs antigo, a Cano de Rolando.
Na Colegiata, um pequeno monumento lembrava os 1.200 anos da Batalha de Roncesvalles.
Caminhvamos por trilhas bem conservadas, com calamento de pedriscos
em alguns trechos, que serpenteavam por entre a vegetao que recomeava a
brotar para mais uma temporada. Algumas vrzeas estavam cobertas com
pequenas flores, amarelas e brancas, sobre um tapete verde. Tulipas brilhavam em
alguns cantos de viso. Fomos observando, nas pequenas e delicadas cidades por
onde passvamos, diversas sinalizaes pblicas bilngues, em espanhol e em basco.
Em Saint-Jean-Pied-de-Port, havia uma Espaako Kalea e por aqui, Nagusia Kalea.
Kalea (em basco) / Calle (em espanhol) significavam Rua; e Nagusia / Mayor / Maior.
Havia tambm nomes de casas comerciais apenas em basco. O caminho de Santiago
penetrava na Espanha pela parte francesa do Pas Basco e prosseguia atravs dele,
at deixar a provncia de Navarra.
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Segundo o jornal Folha de So Paulo,
Os ancestrais bascos viviam na regio desde 8.000 a. C. Desde ento, eles se mantm como uma etnia parte, com pouca influncia das ocupaes romanas posteriores. Anexada pelo reino de Castilla entre os sculos XIII e XV, a regio adquire, a partir de 1979, o estatuto de Comunidade Autnoma, com Parlamento prprio. A oposio mais radical ao governo de Madrid feita pelo grupo terrorista ETA (Euskadi Ta Azkatasuna Pas Basco e Liberdade), que luta pela formao de um pas basco independente, com partes da Espanha e da Frana. O Batasuna (Unidade, em basco), partido de esquerda e reconhecido pela populao basca como brao poltico do ETA, foi colocado na ilegalidade sob a acusao de cumplicidade e identidade com o movimento terrorista. O Pas Basco ocupa uma rea de 20.644 km e tem uma populao de 2,9 milhes; suas principais cidades so Bilbao, San Sebastin, Pamplona e Biarritz; o idioma o basco, sem parentesco conhecido com outras lnguas europeias.
Ento, estvamos no Pas Basco. A primeira ideia que ocorria, condicionada
pelo noticirio, era quanto segurana. Poderamos encontrar problemas pela
frente? Ou estaramos protegidos pela vieira de Santiago, historicamente, um salvo-
conduto de peregrinos de todos os tempos? Ou tudo se resumiria a simplesmente
no entendermos nada do que diziam em basco? Um peregrino aconselhou-me a
caminhar com um cajado, que serviria, entre outras coisas, para me proteger... de
ces! Eu disse-lhe que preferia tentar uma conversa com eles, caso se mostrassem
inamistosos. Existia a mstica do cajado do peregrino, independentemente de seu
discutvel uso como arma. Quase todos andavam com um, alguns uma simples vara,
outros muito trabalhados, leves ou pesados, bonitos ou no; ou ainda, os prticos e
levssimos bastes de esqui.
Ao atingirmos o alto de Erro paramos para comer um chocolate, estimulados
pela prpria subida e tambm pela viso de um imenso po que um casal carregava,
pendurado nas mochilas, metade para cada um. Chegando a La Trinidad de Arre, o
hospedeiro do refgio paroquial exigia que todos tirassem as botas entrada.
Apenas a Idair, j caminhando de sandlias, foi permitido entrar como estava. Enfim,
um verdadeiro peregrino! Pernoite cobrado: 5,00.
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3 dia 19/04/2002, sexta-feira
LA TRINIDAD DE ARRE PUENTE LA REINA 28,1 km
Cruzamos o rio Arga pela ponte de Magdalena, contornamos uma imensa
muralha e entramos em Pamplona pela Porta de Frana. Estivramos aqui trs dias
antes, vindos de So Paulo e Madrid, mas apenas com tempo contado para jantar e
pernoitar. Percorremos na ocasio algumas estreitas ruas e ficamos imaginando
como seria correr por ali frente dos touros, na festa de San Fermn. Os nicos
refgios possveis eram os batentes de entrada das casas, com portas recuadas
apenas o suficiente para nelas colar as costas e encolher, desesperadamente, a
barriga. Mas quela hora da noite as ruas estavam quase desertas, silenciosas, assim
como nesta manh em que as atravessvamos bem cedo, ainda sonolentas. Os
primeiros raios de sol iluminavam belssimos jardins e parques; uma peregrina
seguia em quase nosso passo e destino; profuses de cores revelavam delicadas
flores orvalhadas; e uma bela jovem passava e nos cumprimentava com um breve
sorriso, reforando ainda mais a sensao de que ficamos devendo um tempo
imensurvel a esta bela cidade.
A cerca de doze quilmetros de Pamplona, o caminho ultrapassava uma
serra em cuja crista havia dezenas de torres de gerao de energia elica. Algumas
esculturas assinalavam o ponto onde o caminho das estrelas cruzava o caminho dos
ventos, ou seja, o encontro do milenar caminho que acompanhava a Via Lctea com
a marcha dos modernos moinhos de vento de Dom Quixote. Fizemos um pequeno
lanche sob um imenso cu azul, onde inmeros avies formavam um emaranhado
de vias lcteas com seus jatos brancos. Um ciclista da Galcia, que fizera o caminho a
p por duas vezes, estimava chegar a Santiago em nove dias. Do alto da Serra do
Perdo olhamos, pela ltima vez, os Pireneus ao longe, bem para l de Pamplona. E
quando olhamos para o outro lado, para onde o ciclista apontava em direo sua
terra distante, para muito alm daquele horizonte difuso, sentimos ento a vastido
do mundo ainda a percorrer.
Em Puente la Reina, hospedamo-nos em um albergue anexo a um hotel. A
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entrada era a mesma, mas as recepes, distintas. O albergue ficava no subsolo,
mas as instalaes eram modernas e com tudo muito limpo e organizado, inclusive
uma sala de estar com mquinas de lavar e secar roupas, utilizveis a 3,00. Os
dormitrios, com dois beliches cada, eram separados por cortinas vazadas em
madeira e batizados com nomes como Alice Bailey, Paul Brunton e Paulo Coelho.
No percorri toda a galeria de notveis, mas imaginava que houvesse tambm
nomes como Gurdjieff, Gandhi, Helena Blavatsky, Saint-Germain e outros, cuja
simples meno poderia confortar o peregrino sedento. Mas para que ele no se
perdesse nessa ecltica profuso de viagens havia a presena de um dstico
eclesistico, sempre a lembr-lo de onde devia colocar os ps: y desde aqu todos los
caminos se hacen uno (e a partir daqui todos os caminhos se tornam um).
O preo de 6,00 pelo pernoite no era muito diferente do cobrado pelo
albergue anterior. Alm disso, a comodidade de no ter que caminhar at o centro
da cidade fez com que optssemos por jantar no restaurante do hotel, cujo menu
do peregrino seria servido a partir de 21h, a 9,00. No albergue, o peregrino
encontrava uma acomodao mais acessvel; e no hotel, noites de maior conforto. A
combinao hotel-restaurante-albergue atendia a uma ampla variedade de clientes,
peregrinos ou no. Entretanto, era no albergue que encontrvamos uma jovem que
nos recebia com muita simpatia na recepo, orientava-nos com notvel delicadeza
na instalao e ainda nos servia, incansvel, o tardio jantar. A alegria pela presena
acolhedora de Susana ficou inteiramente por nossa conta.
mesa, travamos um contato maior com os italianos Giulio, Emilio e Aldo, a
quem j havamos visto fugazmente na missa em Roncesvalles e no refgio de La
Trinidad de Arre. Giulio havia trabalhado por um breve tempo no Brasil, h uns
quinze anos, com a CESP, no interior de So Paulo e ainda falava bem o portugus.
Havamos iniciado o caminho na mesma data e percorrido, durante trs dias, as
mesmas etapas sem qualquer combinao. Acontecimento mais que suficiente para
compartilharmos uma pequena garrafa de grapa. Quantos de ns ainda nos vamos,
aps a partida em Basse Navarre? Sade! E desses peregrinos do incio do caminho,
quantos de ns ainda nos veramos, at a chegada em Santiago de Compostela?
Salute!
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4 dia 20/04/2002, sbado
PUENTE LA REINA ESTELLA 22,1 km
Em Puente la Reina, Pepe falava enquanto espervamos a mquina lavar as
roupas. Falava da neve que encontraram no alto dos Pireneus, do quanto brincaram
l e do quanto fotografaram, usando um filme inteiro no primeiro dia. Falava de
livros que tratavam do caminho. Falava das dificuldades para se montar o estojo de
primeiros socorros. Falava do peso excessivo das mochilas, das blusas de frio que
iriam despachar, do joelho que comeara a doer. E enquanto aguardvamos a
mquina seguinte secar as roupas, Pepe ainda falava. Somente percebemos, um
tanto maravilhados, a extenso do entusiasmo de Pepe quando Eliane, sua esposa,
disse que ele no era de falar muito.
Cruzamos novamente o rio Arga, desta vez, pela famosa ponte medieval,
para sair da cidade. Um alemo disse ter lido um livro de um brasileiro, de quem no
se lembrava bem o nome. Perguntamos se era Paulo Coelho: era. Falamos de um
amigo que faria uma excurso pelo rio Danbio. Ele no sabia que rio era esse.
Soubemos, posteriormente, que o Danbio famoso chamava-se Donau, no original.
Idair entendeu-se com esse peregrino em vneto e mais uma pequena salada de
lnguas.
Dois peregrinos suos que havamos conhecido em Roncesvalles, um deles
equatoriano de nascimento, formavam uma combinao interessante: de um lado o
suo legtimo, pele clara, atltico, bem composto em seu conjunto bermuda/colete
cqui, sempre com caneta e guia nas mos a conferir, rigorosamente, se a realidade
estava conforme a descrio; de outro, o latino gordote, uma falha nos dentes,
vestido de uma forma um tanto desleixada, expansivo, intrprete e, possivelmente,
guia em tempo integral do outro. Idair concluiu que o primeiro dever voltar a seu
pas, aps percorrer todo o caminho, tendo aprendido do espanhol apenas as
palavras vino e cerveza. Oxal, tambm o buen camino!
Uma pausa para um descanso na praa de um pequeno povoado. Havia uma
dezena de peregrinos espalhados, alguns tomando lanches; uns chegavam, outros
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partiam. A cidade parecia estar deserta de nativos. O silncio era quebrado apenas
pelos prprios caminhantes e pelo correr da gua da fonte. Vimos, em algum lugar,
uma fonte cuja gua corria apenas quando se acionava uma torneira, que fechava
automaticamente. Uma famlia apareceu. Duas crianas correram para um balano,
cuja rea era, aparentemente, recoberta por um tipo especial de piso, usado no
Brasil somente em pistas de atletismo de alto nvel. Os pais sentaram-se em um
banco e conversaram indolentemente. E assim como apareceram, desapareceram
todos. E ento, no calor da tarde de um sbado sonolento, em algum lugar do
interior da Espanha, os peregrinos ficavam, novamente, entregues ao prprio
caminho.
Pepe e Eliane eram de Itatiba (SP). Ele nasceu na Espanha e foi para o Brasil
aos dois anos de idade. Contaram que haviam caminhado um pouco com uma jovem
brasileira que s se hospedava em hotis, pois estava acostumada com televisor e
privacidade, e que iniciava a jornada somente por volta de 10h. Em Estella, ela
acabou por ficar no albergue, de onde teria que sair at 8h da manh seguinte, sem
TV, e tendo que ir dormir antes de 22h, em companhia de muitas pessoas. Albergue
municipal, cobrado: 3,00.
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5 dia 21/04/2002, domingo
ESTELLA LOS ARCOS 21,3 km
Outra jornada curta. Por ser domingo, a fonte de Irache, que jorrava vinho,
estava fechada. Uma famlia de peregrinos: o pai americano, a me francesa e a
filha, de quatro anos, em um carrinho. Por vezes, ela caminhava. Outra famlia,
francesa: um casal de idade e uma senhora de mais idade ainda. Perguntei a ele a
idade dela Madame? Como eu, 74 anos! Um jovem japons carregava, alm de
tudo o que era necessrio em uma mochila de peregrino, dicionrios, guias, arroz,
ovos, hashi e dizia que ficava muito cansado!
E todos estavam a caminho de Santiago, como outros milhares de peregrinos
naquele exato momento. Como a jovem sua que viera pelo caminho Aragons,
que tinha incio em Puerto de Somport, a uma altitude mais elevada nos Pireneus,
mais para leste. Era um caminho mais longo, mais solitrio e mais belo, segundo
opinio geral, e que se juntava ao Real Caminho Francs pouco antes de Puente la
Reina, onde havia um monumento ao peregrino.
... e a correr, o campnio partiu / como um raio, na estrada sumiu... Sempre
que ouvia esta cano [Corao Materno, de Vicente Celestino] eu imaginava uma
estrada atravessando suaves colinas por onde o campnio, depois de desaparecer
atrs de uma primeira elevao, reaparecia subindo a prxima em louca desabalada.
E era por uma estradinha assim que caminhvamos. Ela existia, ento!... Desde
sempre, e a qualquer momento, poderamos encontrar a jovem desfalecida e mais
adiante, o campnio, cado com uma perna quebrada. A separ-los, um corao
materno; a uni-los, alm da paixo, apenas uma longa estrada de terra. E era por ela
que seguamos devagar, pois no tnhamos amadas a nos esperar de volta exigindo,
quem sabe, relquias de Santiago como uma prova de nossa dedicao.
Mas... isto uma amndoa! exclamou a mocinha do bar, assim que
examinou o que lhe mostrvamos. Em seguida, levantou para ns um olhar que no
conseguimos decifrar. E olhou, desamparada, para um cliente local que tambm
estava junto ao balco. Assim como a amada que pedia, docemente, ao campnio o
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corao de sua me, sentimos que ela tambm esperava, naturalmente, que ns
conhecssemos uma amndoa ainda verde. Tempos depois, encontramos um
homem que derrubava algumas coisas secas de uma rvore. Amndoas da estao
passada, esclareceu-nos ele. Entusiasmados, derrubamos tambm. E ao quebrar,
ansiosos, a casca reconhecemos, com um grande alvio, finalmente, a amndoa!...
Ufa!... o mundo voltava a fazer sentido!
Em Los Arcos, ficamos em um albergue privado anexo a uma padaria, onde
um casal tomava conta de tudo. Eles foram criticados pela hospedeira do albergue
municipal, uma belga voluntria, por reorientarem o trajeto para que o caminho
passasse em frente ao seu estabelecimento. E tambm, por informarem aos
cansados peregrinos, incorretamente, que o refgio pblico ainda ficava muito
longe dali. Pernoite cobrado: 6,00.
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6 dia 22/04/2002, segunda-feira
LOS ARCOS LOGROO 27,9 km
O jantar de domingo foi quase como que em famlia. Em uma das mesas
organizadas pela hospedeira do albergue estvamos um casal italiano e uma amiga,
a jovem sua, Idair e eu. Para comear, uma pequena dificuldade: onde havia um
saca-rolhas? A jovem sua no titubeou: abriu a garrafa de vinho usando um
canivete com saca-rolhas suo, naturalmente. As italianas falavam com grande
entusiasmo de um produto brasileiro que chamavam de cuore di palma. Queriam
saber detalhes da maravilhosa e inigualvel iguaria. Idair, que havia entendido o que
elas queriam dizer, falou-lhes do palmito, de sua extrao predatria, da devastao
das palmeiras, da ameaa de sua extino e tambm de seu atual replantio. Diante
desta exposio elas declararam, enfaticamente, que no mais o consumiriam.
Mas... isto um palmito! pensei, ao me dar conta de qual era o objeto de
desejo das italianas. Embora parodiando, a minha primeira reao fora semelhante
da moa das amndoas. Onde quer que estejamos trazemos o nosso conhecido
mundo e acreditamos que ele seja evidente, por si s, a todos. No s acreditamos,
mas queremos. E no s queremos, mas exigimos. Educadamente, se possvel.
Idair agora andava cerca de dois quilos mais leve: despachara parte da
bagagem para o correio de Santiago. A jovem brasileira parecia ter-se adaptado
rapidamente ao esquema de albergues. Essa vida de estar em um lugar diferente a
cada momento, de dormir em um beliche diferente, em um alojamento diferente,
com pessoas diferentes a cada noite, comeava a mexer bastante com nossa rigidez
de hbitos e com a noo das coisas todas em seus devidos lugares e tempos.
Comevamos a ser, basicamente, movimentos.
Havamos encontrado essa jovem em Azqueta, em companhia de Pepe e
Eliane. Tinham acabado de sair da casa de Pablito, um personagem conhecido no
caminho por presentear os peregrinos com cajados de sua confeco, alm de
auxili-los de vrias maneiras. A jovem tinha sido atendida por ele por causa de uma
dor no joelho. Ela contou que encontraram em sua casa dois suos que estavam
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com as mochilas abarrotadas de mantimentos, pois tinham sido informados de que
muita coisa no se achava no caminho. Aconselhados por Pablito, deixaram l parte
de sua cesta bsica. Quando dissemos que um deles havia nascido no Equador, ela
exclamou: Bem que achei estranho, um suo com uma cara to latina! Para no ter
que recusar a oferta de um cajado, Idair e eu nem passamos na casa de Pablito, e
seguimos todos juntos por algum tempo. Separamo-nos aps passar pela Fonte dos
Mouros, nas proximidades de Villamayor de Monjardn. Ao conseguir sacar dinheiro
em um banco em Los Arcos, aps uma complicada operao no sanitrio de um bar
para retirar o carto magntico escondido sob a roupa neura de brasileiros de
cidade grande ela exclamou, to contente quanto aliviada: Agora, sim, posso
tomar uma coca-cola pelo caminho!
Posteriormente essa jovem brasileira, cujo nome eu no soube, passaria a ser
o centro de uma longa discusso epistolar com os italianos Giulio, Emilio e Aldo. Eles
haviam conhecido uma jovem brasileira de nome Helena, de quem, alm da alegria e
simpatia com as quais ficaram encantados, nada sabiam. Buscando na memria
descries e impresses fugidias de algum que apenas encontramos de passagem,
finalmente conclumos que Helena e a jovem brasileira poderiam ser a mesma
pessoa. No satisfeitos, decretamos que elas deveriam ser uma s. Oficialmente,
no havia como comprovarmos esta crena. Havia a vontade, apenas. Porm, ns
tnhamos o caminho por testemunha. E para ns, peregrinos, era o que bastava!
Deixamos a provncia de Navarra e entramos na de La Rioja. A partir de
Pamplona caminhvamos atravs de extensos campos de trigo e cevada; e tambm,
em meio a cultivos de uva e aspargo. Este ltimo era muito presente nos cardpios
dos restaurantes. Em geral eles apresentavam um menu do peregrino, que consistia
em uma relao de primeiro prato, segundo prato e sobremesa, para escolher um
de cada. Para o 1 prato havia saladas, vagem, gro-de-bico, macarro, lentilha, sopa,
etc.; em seguida vinha o 2, com carnes variadas, embutidos diversos, omeletes
(tortillas), pescados, etc.; e a sobremesa, com pudim, iogurte, sorvete, etc. Inclua
ainda uma garrafa de vinho, gua e po. Os preos em geral variavam de 7,00 a
9,00, ou ainda mais. Mas, de qualquer modo, como se comia na Espanha!
O albergue pblico de Logroo era grande e moderno, com disponibilidade
de internet e pernoite a 3,00. Pepe e Eliane chegaram mais tarde e, aps o banho,
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rememoravam o dia enquanto ele escrevia bastante. Anotaes para um livro? Idair
e eu os observvamos do alto de uma sacada que dominava todo o ptio. Pelas
respectivas localizaes no teriam como ouvir nossos comentrios, mas nesse
exato momento eles voltaram o olhar para cima e acenaram para ns. Com um
joelho inchado Pepe havia decidido, estoicamente, no mais misturar vinhos com
anti-inflamatrios. Se a ameaa continuidade de seu caminho no fosse uma
possibilidade to concreta, poderamos at imaginar que ele deixaria de tomar o
segundo ou passaria a tom-los separadamente, tal a sua vontade em prosseguir
rumo a Santiago.
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7 dia 23/04/2002, tera-feira
LOGROO AZOFRA 34,8 km
Deixamos Logroo muito cedo por grandes avenidas, ainda sem maiores
movimentos. Aps os bairros e a periferia industrial, passamos por um grande
banhado chamado Pantano de la Grajera. Ali, algumas pessoas faziam sua corrida
matinal tendo como percurso o asfalto por onde seguia o caminho. Prximo a
Pamplona, tambm vimos pessoas fazendo suas caminhadas dirias em trechos do
caminho. Haveria algo de especial nisso? Certamente eram apenas timos lugares
para corrida ou caminhada, sem nada de muito etreo ou mstico. Eventualmente,
ainda existia o inconveniente de um congestionamento de peregrinos na pista.
Tambm ali, em um dos vrios bancos que ladeavam o caminho, cruzamos
com Pepe e Eliane ocupados em passar um creme protetor. O amanhecer sugeria
um dia de pleno sol, mais um belo dia para se caminhar. No entanto a expresso de
Pepe, olhando em direo aos primeiros raios de sol, passou-nos uma impresso de
certa apreenso mesclada a uma dose de confiana, temperada, porm, com uma
pitada de resignao. Desejando-nos mutuamente um buen camino, despedimo-nos
e seguimos adiante.
Caminhamos, h dias, em altitudes que variavam entre 400m e 500m, com
bastante calor pela tarde. Um descanso no gramado sombreado s margens do rio
Njerilla, em Njera, aps mais um farto almoo, foi um grande momento! nossa
esquerda, a bela Serra da Demanda. Naquela direo ficava San Milln de la Cogolla,
onde foram encontrados os primeiros escritos em lngua castelhana.
Em Azofra, encontramos o refgio paroquial lotado. Propuseram-nos a
alternativa de dormir em colchonetes no cho, o que, educadamente, declinamos.
Talvez como uma tentativa de seduo, citaram-nos nomes de vrios brasileiros que
teriam assinado o livro do refgio, entre eles Baby Consuelo e, pelo que entendi,
Srgio Reis. Optamos por ir para o albergue privado apesar das advertncias, por
parte da inconformada hospedeira, de que o responsvel por aquele local era um
demnio. E ela dizia, seguindo-nos at a rua, que s iramos perceber isso no dia
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seguinte, ao acordarmos! Ficamos imaginando: ser que estaramos prestes a
encontrar nosso vaticinado demnio no caminho? Ou chegamos a considerar
teramos acabado de encontr-lo? Ou tudo isso seria apenas mais uma disputa pela
preferncia dos peregrinos, como em Los Arcos?
Roland, o demnio em questo, era um belga que percorrera o caminho de
Santiago por uma dzia de vezes, uma das quais saindo de seu pas. A cada vez que
chegava a Santiago e pensava em retornar vida normal, sentia as entranhas se
retorcerem e retomava o caminho. E ainda continuava no caminho, agora cuidando
de um albergue, lavando e cozinhando. E falando bastante. Conseguia manter
conversas simultneas com vrios peregrinos, cada qual em seu idioma, enquanto
provava um tempero aqui, abaixava o fogo ali e servia um prato acol.
Quando Paulo Coelho esteve em trechos do caminho no ltimo vero,
acompanhado por uma equipe de TV japonesa, ele lhe disse: Paulo, voc um
grande mentiroso! E este teria respondido: , mas ganho muito dinheiro com isso!
Contou tambm do brasileiro que morreu nos Pireneus no incio deste ano, cujo
corpo s foi localizado com o degelo. Falou do desespero da esposa que percorria o
caminho sua procura, indo e voltando, e do que lhe dissera uma vidente quando
ela j no tinha mais a quem recorrer: Fugiu com uma loura! E em vez dos
tradicionais carimbos dos albergues, ele colocava a sua impresso digital na
credencial dos peregrinos. Preo do pernoite, com roupa lavada: 6,00.
Ele tinha feito uma recomendao para que, sempre que fosse possvel, no
caminhssemos pelo fino acostamento das rodovias. E apresentava uma descrio
convincente dos acidentes com peregrinos: Dez mil pedaos!... Fgado, rins, mochila,
ossos, crebro, corao, sangue... dez mil pedaos!... No andar de cima apresentava,
com evidente orgulho, uma pequena sala especialmente reservada para repouso e
pensamentos, coisas imprescindveis no caminho, segundo dizia.
Uma peregrina nrdica declarava, entre colheradas e longas pausas, estar
desencantada com Paulo Coelho. Respeitamos sua dor.
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8 dia 24/04/2002, quarta-feira
AZOFRA BELORADO 37,5 km
O madrileno Miguel fazia o caminho pela terceira vez e andava, em mdia,
cerca de cinquenta quilmetros por dia. Levava um cronmetro que acionava a cada
parada ou retomada. Pretendia fazer todo o caminho em quinze dias. Em Santo
Domingo de la Calzada, prximo catedral com o Sepulcro Santo, sempre passava
em um convento para comprar uma espcie de bolinho de chuva com creme, to
delicioso quanto enjoativo, medida que se comia, cada vez mais! Dizia que os
adultos no aceitavam esse modo moderno de alimentao, motivo pelo qual as
grandes redes de lanchonetes concentravam-se em cidades maiores, onde havia
muito mais jovens. Talvez isto explicasse, em parte, o fato de no encontrarmos, a
ponto de reparar, muitas pessoas gordas por onde passamos.
Na sada da cidade, cruzamos o rio Oja pela ponte construda pelo santo de
casa. Mais frente, beira do caminho, passamos pela Cruz dos Valentes. O que
significava isto, assim, de repente? Ser que dos valentes de que falava Hector, uns
duzentos quilmetros atrs, restou apenas uma cruz? Ou ser que eles seguiram
adiante, penetrando mais alm nessa imensido, agora transmutados em insanos?
Bem, de qualquer modo, deixamos La Rioja, dos extensos parreirais, e entramos na
provncia de Burgos, onde reapareciam os infindveis campos de trigo e cevada.
Um francs mostrou-se muito espantado quando eu disse que era brasileiro.
Foi minha vez de me espantar com seu espanto. Ento, de repente, percebi a minha
situao: eu, ali, at prova em contrrio, era um japons; e Idair, um alemo,
embora brasileiro, gacho e descendente de italianos. Os alemes passavam e
saudavam-no em alemo ou coisa parecida. Sim, ramos um alemo e um japons,
embora fssemos tambm, secretamente, dois brasileiros, e todos a caminho de
Santiago! Bem, assim como todo mundo, do mundo todo. Em Belorado, albergue
privado, o mais caro at aqui: 7,00.
Ao passarmos por uma vila no meio da tarde, Miguel, deitado em um banco
sob uma rvore na praa, terminava seu descanso. Acordados ali, ramos apenas os
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trs, pelo que pudemos perceber. Subitamente um caminho chegou, parou e
buzinou com estardalhao. Um homem e uma mulher desceram e abriram a lateral
do ba, que logo foi transformado em uma banca completa de secos e molhados,
frutas e legumes. E tudo voltou ao espesso silncio de instantes atrs. Ficamos
olhando, expectantes, sentindo o tempo escorrer como que por uma ampulheta
deformada. Idair murmurou: De qual janela voc acha que sair o primeiro tiro?
Percorri lentamente o olhar pelas janelas visveis, invisveis interiores, e conseguia
apenas imaginar penumbras, calor e silncio. Aqui fora, apenas luminosidade, calor
e silncio. At o tempo seguia mais devagar, como que em respeito ao calor. O
silncio foi novamente suspenso pela partida do caminho. Idair saiu em seguida.
Dizendo apenas que as pernas doam, Miguel passou por mim e seguiu. Por sua vez
o calor no ia embora, continuava. E no calor da praa daquele pueblo, ficamos o
silncio e eu. Depois, apenas o silncio.
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9 dia 25/04/2002, quinta-feira
BELORADO BURGOS 51,6 km
A jornada deste dia cobriu cerca de quatro quilmetros a menos que o
indicado acima, que a distncia at o albergue, na sada de Burgos. Paramos
entrada da cidade, j depois de 20h, bastante cansados e ficamos em um hostal
(hotel mais barato), a 33,00 o apartamento duplo. Apelamos para um pedido de
pizza por telefone, sem coragem para caminhar mais. Mas ainda tivemos foras
para concluir que as nossas eram bem melhores!
Algumas horas antes havamos feito um substancial almoo em vez de tomar
a famosa sopa de alho de San Juan de Ortega. Ao lado do restaurante, a igreja em
reformas atraa um grande grupo de peregrinos franceses. O que sobrou do jamn,
chorizo, morcilla, salchichn e huevo no prato de Idair, juntamente com um pedao
de po, demos para um cachorrinho que estava amarrado perto da fonte. Devorou
tudo num instante, e ficamos imaginando se ele teria feito o mesmo se fosse a to
decantada sopa de alho! Segui adiante enquanto Idair se deitava em um banco sob
uma rvore para se recuperar da dura refrega no restaurante. Mais tarde, aps
ultrapassar uma serra perto de onde foram encontrados restos do Homem de
Atapuerca, considerado por alguns como o vestgio mais antigo do Homo sapiens na
Europa, entrei em um bar num povoado j prximo a Burgos. Ali esperei, confiante
em que Idair j estava me alcanando e que deveria entrar naquele bar. No deu
outra!... Algumas caras tradies no caminho pareciam ser mantidas infalivelmente
por todos os peregrinos.
Talvez o olhar desamparado em um rosto quase imberbe tenha sido decisivo
para que ele fosse adotado. Assim, o jovem brasileiro transformou-se em mascote
de uma legio estrangeira de peregrinos. Seu caminho e sofrimento tiveram incio
ao mesmo tempo, subindo os Pireneus. Gordinho e fumante, pensou em desistir.
Aps um demorado descanso, resolveu seguir mais um pouco. Mais um descanso,
mais um pouco. E assim foi, desafiando. At o momento em que pensou que fosse
morrer. Deitou-se, esperando. Mas no morreu, contrariando at mesmo suas
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expectativas. Dobrou a serra, dobrou os Pireneus. O cigarro ficara pelo caminho.
Aquele que desceu a montanha j no era mais o que subira, embora ele, por certo,
ainda no soubesse disso. Continuou a sofrer pelo caminho, todos os dias. E agora,
olhando para pessoas com o triplo de sua idade, exclamava, perplexo: Mas, para
que tanta pressa?...
Os brasileiros estavam no caminho. Tnhamos encontrado, em mdia, quase
um por dia. Sem contar os que no eram identificados, que iam deixando sinais por
onde passavam. A hospedeira em Los Arcos soube que Idair era brasileiro pela
marca da camiseta que usava. Em um bar, onde havia um varal com cdulas de
vrios pases, vimos uma recm-lanada nota de dois reais. Ainda viramos a saber
de um brasileiro e uma brasileira que eram hospedeiros no caminho, em Ventosa e
Burgos. Quando ultrapassamos um pequeno grupo, cumprimentando de passagem,
ouvimos, s costas, uma voz feminina: Esse hola parece de brasileiro! Sim, claro! Ali
ramos todos brasileiros, at onde a vista alcanava!
minha frente, logo pela manh, caminhavam vrias pessoas, uma das quais
um peregrino bem gordo. Seguia devagar, com dois bastes de esqui a marcar-lhe
os passos. medida que as pessoas o ultrapassavam, ele as cumprimentava
alegremente, erguendo os bastes at o alto e fazendo seguidas e exageradas
vnias. Quando cheguei a seu lado, sua postura no foi diferente. Apenas a minha
reao que diferiu da dos demais peregrinos: condi (quando olho), fiquei
chocado! No apenas pelo inesperado nariz de palhao que fazia saltar frente,
esticando o elstico ao saudar. que reconhecera nele o holands tranquilo, com
quem estivera conversando no bar na noite anterior. Dissera que por causa do
excesso de peso fazia apenas pequenos trechos a cada dia. Embora esse fato
pudesse parecer uma coisa negativa, o longo tempo que levaria para chegar a
Santiago era para ele uma preciosidade, pois assim podia sentir em toda a extenso
a grandiosidade do caminho. E ficara a olhar, pensativo, talvez para Santiago, talvez
para mais alm.
Perplexo, segui adiante. Procurava um nexo entre este caminhante do dia e
aquele contemplativo da noite. O adereo de palhao poderia ter sido utilizado, de
incio, apenas como um protetor solar para o nariz. A reao das pessoas que
poderia ter levado, gradualmente, a uma modificao do significado do objeto. Ao
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contrapor-se aos peregrinos durante o dia tanto fsica quanto, digamos,
existencialmente, ele talvez fizesse a sua real peregrinao durante o repouso,
como intura Roland. E como teria sido seu encontro com um caminhante como
Miguel, se que o caminho, generosamente, permitiu algo assim? Teriam se olhado
mutuamente e, por meio dos reflexos de um espelho deformador e revelador,
conseguido ver seus respectivos caminhos e propsitos? Do alto de um pequeno
morro, antes de comear a descer, olhei para trs: l vinha ele, l embaixo, passo a
passo, lentamente, saudando alegremente, determinado a chegar um dia a Santiago
de Compostela. Buen camino, companheiro!
O joelho direito incomodou um pouco pela manh, mas depois ficou bom.
Havia comeado a doer na vspera do incio do caminho, ainda no aeroporto de
Madrid, sem qualquer motivo aparente e perturbou por dois dias. Depois, a dor
pulou para o joelho esquerdo por um dia e sumiu. O tornozelo esquerdo doeu um
pouco no segundo dia, mas j quase no incomodava. Com o passar dos dias as
dores iam se revezando e se ajeitando. Nenhuma bolha nos ps, por enquanto.
Havia uma barriga no meio do caminho. Para se visitar uma capela no alto de
um morro, havia a opo de um percurso adicional. Idair disse que poderamos
receber uma indulgncia, caso fizssemos o desvio. Perguntei como era isso. Disse
que, conforme um livro que havia lido, e segundo entendi, no princpio no existia o
Purgatrio. Ao morrer, cada um ia para o Cu ou para o Inferno, sem escalas. Em
algum momento da Idade Mdia fez-se a luz e o Purgatrio foi criado. Com isso,
aqueles que tivessem dvidas quanto ao seu futuro poderiam, preventivamente,
praticar atos meritrios pelos quais receberiam indulgncias. Estas teriam peso
decisivo na hora da transferncia, do Purgatrio para o destino eterno. A criao do
Purgatrio resultou em um incremento extraordinrio na doao de bens para a
Igreja, em troca de indulgncias. Aps algumas consideraes, conclumos que
ainda no havamos praticado nenhum ato meritrio no caminho. E naquele calor
olhamos, novamente, para a capela, l no alto do morro. Entreolhamo-nos: ficamos
sem as indulgncias.
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10 dia 26/04/2002, sexta-feira
BURGOS HONTANAS 29 km
Os quatro quilmetros que faltaram no dia anterior se somavam aos vinte e
nove desta jornada.
Ainda pela manh, em Burgos, a viso de um homem vestido com jeans e de
tnis, encostado em uma parede de uma rua estreita e deserta, transportou-me,
instantaneamente, para a cidade de Arequipa, no Peru. Uma tarde de domingo, um
homem vestido com jeans e de tnis, encostado em uma parede de uma rua estreita
e deserta. De repente, ele passou correndo pela outra calada e parou na prxima
esquina. Olhei para trs e vi, na outra esquina, aparecer outro homem. Entre eles,
no meio da quadra, na rua deserta, apenas eu. O providencial aparecimento de um
txi tirou-me daquela situao que comeava a me deixar apreensivo. Um amigo j
havia sido assaltado na vspera. Na delegacia, o policial descreveu antecipadamente
a cena que teria ocorrido. Diante da confirmao, ele exclamou, como que aliviado,
a nos tranquilizar: Ah, esses so conhecidos! Sim!... velhos conhecidos! Desde
ento, ao recordar aquela cidade que Mario Vargas Llosa tanto amava, plantada
junto ao belo vulco Misti, ela sempre me aparecia como A cidade dos Ladres, sem
qualquer referncia ao seu livro A Cidade e os Cachorros. Porm, no devia ser esse o
caso aqui no caminho de Santiago, onde atravessvamos cidades, tneis, pontes e
extensos pramos sem a menor preocupao quanto segurana. Teria sido,
certamente, apenas uma associao momentnea de imagens de mundos e tempos
distantes. Queria acreditar nisso, mesmo porque no poderia contar com um
providencial aparecimento de um heri como El Cid, de txi ou a cavalo. Por certo,
ele no deixaria seu repouso na catedral gtica de Burgos, logo adiante, apenas
para vir em socorro de um peregrino de um futuro longnquo.
Em Rab de las Calzadas, a hospedeira Mariv preparou-nos um providencial
e belo lanche. Nada cobrou, o albergue apenas aceitava donativos. Ao contrrio de
Roland, ela era daqui mesmo e nunca fizera o caminho, mas tambm se dedicava a
acolher e a alimentar os peregrinos. Existiam pessoas que estavam a caminho de
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Santiago e havia aquelas que estavam no caminho. No se confundiam, embora
umas pudessem ser as outras em algum momento da vida. Os peregrinos que se
entregavam aos cuidados dessas pessoas aproximavam-se um pouco mais do
caminho. Por outro lado, essas mesmas pessoas tornavam-se um pouco mais parte
do caminho a cada peregrino. Mariv, por certo, no sentiria necessidade de, um dia,
pr-se a caminho de Santiago.
Por algum motivo, estvamos no caminho. Embora aparentemente iguais,
cada novo dia trazia a sua prpria magia. Inicivamos a jornada animados, dispostos
a enfrentar o desconhecido. Seguamos bem atentos a todos os detalhes, que
comeavam a ganhar nitidez com o alvorecer pleno. Os primeiros raios de sol
mostravam-nos toda a beleza do dia que nos aguardava. Aps algumas horas, a luz
solar j batia bem mais de cima. Parecia achatar todas as coisas, suavizando os
ngulos que antes, como agulhas, mantinham-nos bem despertos. Aos poucos, sem
perceber, entrvamos em um estado em que o mundo exterior j quase no nos
alcanava. As perspectivas tornavam-se alongadas e prosseguamos como que
deslizando naquela paisagem harmoniosa, sem salincias contundentes. E assim
seguamos, sem sobressaltos, com nossa percepo misturada a tudo. E tudo
parecia permear nossa calma, e deixvamos de ser apenas aquele um que
caminhava. ramos, agora, tudo. E quando sentamos que aquilo que nos aquecia e
animava, aos poucos, se desmanchava e tornava-se visvel, percebamos que o sol j
estava bem nossa frente, que estvamos chegando ao destino, que o dia ia
chegando ao final. Passageiros circunstanciais deste planeta, agradecamos por
mais um de seus dias. Agora, s amanh. Sim, amanh seria um novo dia. E uma
nova magia.
Continuava o calor. Emilio e Aldo contavam que havia neve no ano anterior,
quando passaram por aqui nesta mesma poca. Aqui, conhecemos Jos Lus e
Fernando, espanhis de vila que, no ano passado, fizeram o caminho Aragons at
Puente la Reina. Dali retomaram, neste ano, para chegarem a Santiago. Muitos
espanhis faziam o caminho por etapas, alguns levando vrios anos para chegar l.
No livro de registros do albergue de Puente la Reina havia um testemunho de uma
jovem de nove anos de idade, de nome Ana, em que ela dizia que havia caminhado
com seus pais, de Cizur at ali. E contava tambm que tinha gostado muito e se
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cansado bastante; e que no ano que vem voltaria para continuar a peregrinao. E
terminava seu recado desejando um buen camino a todos. Duas brasileiras diziam
que encontraram aqui o primeiro banho quente, e tambm que conheceram um
alemo que teve a mochila roubada perto de Pamplona. O caminho era o mesmo;
nossas histrias, bem diferentes. Albergue cobrado: 3,00.
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11 dia 27/04/2002, sbado
HONTANAS FRMISTA 34,6 km
Iniciamos a jornada cautelosos mas animados com o inesperado e bem-vindo
frio da manh. Idair andava s voltas com bolhas que ameaavam latejar; eu, com o
tornozelo esquerdo um pouco inchado. E com o aparecimento de minha primeira
bolha, surgia a primeira dvida: chegaramos a p a Santiago?
Peregrinos costumavam chegar a seus destinos andando. Ou, pelo menos,
esperava-se que assim fosse. Talvez por isso mesmo um francs tenha nos chamado
de os verdadeiros peregrinos, ontem, quando chegamos a Hontanas. Ele integrava
um grupo de turistas franceses que fazia uma excurso para Santiago dentro de um
confortvel nibus. O programa previa breves paradas em locais com vestgios da
histria do caminho, tais como runas de conventos e de antigos hospitais de
peregrinos. Era o caso aqui de Hontanas, para onde voltavam de uma pequena
caminhada quando os alcanamos entrada da vila. E j estavam de partida, pois
ainda teriam alguns outros locais para visitar antes de pernoitar em Len. Quando vi
no mapa onde ficava essa cidade, fiquei embasbacado: ainda levaramos uns quatro
ou cinco dias para chegar l! E quando chegssemos a Len eles j teriam passado
por Santiago e talvez at estivessem de volta a suas casas. Esse nosso encontro
aconteceu de passagem, mas era como se fosse uma colagem de histrias de outros
tempos, de outros personagens, de outros caminhos, de outros mundos.
Trigais esparramavam-se em volta do nico morro ali presente, em cujo topo
estavam as runas do castelo de Castrojeriz. A caminhada pela planura, em sua
direo, lembrou-me o morro do Almejado no final dos gerais, na travessia da
Chapada Diamantina, na Bahia. Ento, de repente, a suspeita, a absurda ideia: ser
que na Idade Mdia existiam tambm cores e movimentos, como neste momento?
Eu sempre a havia imaginado em cmera lenta e cinzenta, um tempo em que tudo
se arrastava num mundo sem cor. Este vento que agora abria o tempo fazia o azul
do cu e o verde-trigo da terra brilharem sem parar. Um dia qualquer, visto do alto
daquele castelo, poderia ter sido exatamente assim? Tudo isto aqui estaria l? Tal dia
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da Idade Mdia, certamente, s no teria a nossa presena.
Em Castrojeriz, o dono do bar trocou imediatamente a fita de som ao saber
que ramos dois brasileiros. Como quem procurava demonstrar conhecimentos e
intimidade com o que era de nossa terra, perguntou-nos se ramos da capital de
So Paulo ou de alguma cidade da regio do ABC. Msica Popular Brasileira no ar,
um jornal de So Paulo na parede, um broche com nossa bandeira no peito da
garonete. Mas o que era aquilo? Aonde viemos parar? Porm, logo descobrimos a
razo de tanta ateno: em um lugar de honra na parede havia uma foto do patro
abraado com Paulo Coelho, tirada em frente ao bar. E com que sorriso!
pau, pedra, o fim do caminho... A voz de Elis Regina surgiu ali, naquele
fim de mundo, exatamente como sempre me alcanava nas interminveis horas
espera de mais uma carona nas estradas de Minas, em direo Bahia [guas de
Maro, de Tom Jobim]. um belo horizonte, uma febre ter... Uma febre de
outros sculos. O paraso de ento era outro, os caminhos eram outros, outros os
sonhos, outros os viajantes. E um mundo que estava diludo em nvoas h quase
trs dcadas voltou, inesperadamente, concentrado em uma msica. Ento, os
tempos de uma vida em movimento estavam de volta!... E em que pesem todas as
evidncias em contrrio, a viagem no havia terminado. Sim, claro: pau, pedra,
mas no havia mais o fim do caminho!
Deixamos a provncia de Burgos e entramos na de Palencia com muito calor.
Em Itero de la Vega, uma moa de uma venda nos segredou: aqui so nove meses
de inverno e trs de inferno! Eu no tinha nem coragem de me imaginar aqui no
vero. Em Frmista, ficamos no albergue municipal, muito bom, a 3,00. Da janela
do dormitrio, j escuro, tentamos fotografar a imponente igreja de San Martn de
Frmista, do sculo XI. Logo mais j estvamos dormindo, cansados, sem a mnima
ideia de como sairia aquela fotografia.
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12 dia 28/04/2002, domingo
FRMISTA CALZADILLA DE LA CUEZA 36,4 km
Atingimos metade dos cerca de um milho de passos estimados por Idair at
Santiago de Compostela. Chegaramos ao sonho milionrio, finalmente, ao primeiro
milho? O dia amanheceu nublado, limpou depois de 10h e soprou um vento frio que
ficou quente tarde.
Ao amanhecer, vrios pares de olhos miravam-no atravs do espelho. Mas,
apesar da presso exercida por aqueles olhares acabados de despertar, espera
para lavar o rosto e escovar os dentes, o ciclista francs tinha os olhos apenas para
a sua imagem. Com leves meneios de cabea certificava-se de que o creme estava
bem passado no rosto e, calmamente, prosseguia. Transformava o banheiro do
albergue em um camarim particular, aprontando-se para o espetculo de mais um
dia no caminho. Quando se dava por satisfeito com aquele creme, passava para o
pote seguinte, em metdico ritual. Observei que ele era o mesmo com quem Idair,
na noite anterior, quase se desentendera ao se preparar para o banho. Lembrei-me
do que dissera uma hospedeira, dias atrs, com a experincia de quem lidava com
peregrinos de todas as partes do mundo: Certamente, nem todos os franceses so
antipticos; mas, seguramente, quase todos o so!
Aps Carrin de los Condes percorremos um trecho reto e plano por mais de
doze quilmetros, com forte vento frontal. Era como estar, de corpo presente,
naqueles pesadelos em que caminhamos por horas e horas e no conseguimos sair
do lugar. E quando j acreditvamos que aquele mundo no tinha mais fim vimos
aparecer, subitamente, exatamente do meio do nada, uma igreja, a partir de sua
torre. Ento, nossa alma se rejubilou e agradecemos sinceramente pela sua eterna
presena em todo o caminho, onde ela, invariavelmente, parecia ser muito maior
que seus povoados.
Depois que o ciclista francs desapareceu na estrada voltei a ateno para
aquele outro, o que nos chamara de verdadeiros peregrinos. A maneira como ele o
tinha dito a seus companheiros parecia demonstrar deferncia e ao mesmo tempo
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certo desconforto por seu conforto no nibus. Claro estava que, embora indo para
Santiago, ele no se via como um peregrino. Talvez esse peregrino constasse do
programa da viagem como uma atrao a mais, podendo ser visto em seu habitat
em alguns trechos do caminho. Talvez por isso ele tenha nos visto assim. Mas quem
seriam os verdadeiros peregrinos, se que se podia dizer algo assim? No, prezado
senhor: ramos apenas peregrinos, dentre tantos outros, a caminho de Santiago.
Nessa aridez, em que atravessvamos crregos chamados Pozo Amargo e Rio
Seco, agarrvamo-nos promessa de matas quando chegssemos Galcia. Na
primeira metade do caminho, se elas um dia existiram, j no estavam mais por ali.
De Pamplona para c restaram apenas campos de cultivo, reflorestamentos tmidos
e capoeiras. Nada que lembrasse a exuberncia de uma diversidade. E na solido de
uma tarde que parecia mais vazia que a de um domingo sem futebol, um pastor de
ovelhas aproximou-se quando paramos em uma rea de descanso, que continha
uma mesa e dois bancos de concreto, no meio do vazio. Procurava um pouco de
companhia humana, algo mais que balidos em meio a um vento interminvel. Dizia
que, embora no sendo um peregrino, tambm caminhava bastante, todas as horas
do dia, todos os dias da vida. Era conduzido pelos animais que andavam por muitos
lugares em busca de comida, de um pouco de capim que estivesse mais apetitoso.
No reclamava, pois sabia que eles conheciam o que deviam procurar. Quando iam
para longe, mais longe era a volta para casa. Via muitos peregrinos passando,
caminhando para l. Alguns poucos faziam o caminho ao contrrio. Mas sempre em
uma nica e mesma reta, no eram como as ovelhas que andavam em crculos e iam
conhecendo todos os lugares em volta. O mundo que existia ao lado do caminho
pouco importava para os peregrinos, que tinham um sonho marcado em um lugar
marcado. As ovelhas, no. Elas tinham um objetivo que era a comida, mas o lugar
podia ser o mundo inteiro, uma pastagem sem fim! E quem poderia ser mais livre,
neste mundo de Deus? As indagaes do pastor viajavam pelo vento sem limites.
Quando nos voltamos para olhar na direo dos ventos, vimos apenas um silncio
tremulante seguindo atrs de suas palavras.
Se o vento reinava no descampado l fora, dentro do bar havia apenas um ar
paralisado, cheio de fumaa de cigarros e de cheiros misturados com os de bebidas
afins. No final de tarde de domingo os homens se reuniam para beber, fumar e
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jogar. Para ns que vnhamos de um dia inteiro de ventos aquilo parecia uma
bonana momentnea. Mulheres e crianas pequenas tambm frequentavam os
bares e restaurantes no perodo da noite. Apenas as crianas pareciam no fumar
ativamente. Giulio perguntou ao homem do bar quem havia vencido a corrida
daquele dia. Antes de qualquer resposta, Emilio j declarava: Ferrari, claro!...
Depois, voltamos para o vento e deste para o albergue privado, onde pagamos
4,00 pelo pernoite.
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13 dia 29/04/2002, segunda-feira
CALZADILLA DE LA CUEZA EL BURGO RANEROS 40,2 km
Deixamos a provncia de Palencia e entramos em Len ao nos aproximarmos
de Sahagn. Aumentavam as pichaes de Len Solo, pelo visto, uma reivindicao
de desmembramento da Comunidad de Castilla y Len, mas sem a fora de uma
identidade cultural prpria, como a dos bascos. Para ns soava incompreensvel
uma miscelnea de nomes como Principado, Pas, Regin, Comunidad Autnoma,
tudo isso dentro de um mesmo pas, tal como o conhecemos, e que tinha como
idiomas o espanhol, o catalo, o basco e o galego, sendo que o primeiro o oficial
em todo o pas e os outros so tambm oficiais em suas respectivas regies.
Minha bolha comeava a reabsorver por si, sem necessidade de perfurao.
Idair decidiu passar em uma clnica em Sahagn que prometia aliviar os ps dos
peregrinos, conforme anncios colocados em alguns albergues anteriores. Mas,
infelizmente, o especialista no estava, tinha viajado para Londres, estava para l do
Canal da Mancha. Nada havia a fazer, assim como no sbado, em Castrojeriz,
quando o posto da rede pblica de sade estava fechado. O caminho parecia indicar
que devamos prosseguir assim mesmo.
Alm de postos e clnicas existiam pessoas ao longo do caminho que se
dispunham a aliviar as sofridas pernas dos peregrinos com massagens, preparados
caseiros e energizaes. Em um bar havia um homem e uma mulher sentados de
frente um para o outro. Olhos fechados, concentrados, ela com um joelho mostra,
silncio total no ambiente. Em algumas mesas, alguns peregrinos observavam. No
balco, ningum para atender. Como no tnhamos ideia de quanto tempo aquilo ia
demorar, samos para procurar lanche em outro lugar. Como aquele comerciante
perdia-nos como clientes, desejamos que ele ao menos fosse bem sucedido em sua
tentativa de ajudar uma peregrina necessitada de cuidados. Tais pessoas estavam
em muitos lugares, at mesmo em precrias barracas montadas sombra de uma
rvore, em alguma curva do caminho. Como atestado da eficcia de seus prstimos
exibiam fotografias e cartas de agradecimento de peregrinos de todo o planeta. E
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havia aquelas que se ofereciam para ajudar os peregrinos em sua busca, qualquer
que fosse ela. Aps meticulosa anlise da carga, aconselhavam o desapego a coisas
desnecessrias, absolutamente inteis no caminho. O agradecido peregrino, ento,
refazia a sua mochila e prosseguia mais leve e por que no? mais feliz!
Quem certamente carregava uma mochila bem mais leve que a habitual era
um jovem calado que encontrei em um albergue. Pensei que ele fosse um espanhol,
o que pareceu de certo modo agrad-lo, pois isso lhe indicava que conseguia falar
bem o idioma de seus pais cubanos, embora tivesse nascido nos Estados Unidos.
Tornou-se bem mais aberto. Contou que chegara a ter vrios amigos brasileiros,
descendentes de japoneses, em Tquio, onde estivera durante alguns anos. Estava
sendo transferido para a Amrica, e aproveitava o tempo de folga para peregrinar.
O caminho de Santiago era apenas uma etapa de uma viagem que o levava de um
lado para o outro do mundo. E por fim revelou ser integrante da US Navy, a marinha
de guerra norte-americana.
Idair achava que estabeleceria um recorde pessoal de tempo sem andar de
carro; eu, seguramente, o de ficar sem comer arroz. Chegamos tarde e encontramos
o refgio lotado. O hospedeiro disse que poderamos nos instalar no salo se
tivssemos um isolante trmico ou um colchonete, o que no era o caso. Ficamos
em um hostal em frente, pagando 30,00. Da janela do quarto abria-se uma vista
panormica de filme do velho oeste, com uma pradaria marrom sem fim. A mulher
encarregada da hospedagem era tambm responsvel pela cozinha do restaurante.
Sentimos, atravs dela, toda a extraordinria fora das palavras ao descrever os
alimentos. Auxiliada no s pelos olhos, mas pelas mos, braos e tambm pelo
robusto corpo ela apresentava maravilhosas e detalhadas descries das opes
que tnhamos para o jantar. Antegozvamos, com volpia, tal gape. A longa espera
apenas fazia com que imaginssemos os toques mgicos que ela estaria dando na
comida, o que tornava nossa expectativa ainda maior. A refeio que finalmente
nos foi servida realmente trazia impregnada, em cada um de seus detalhes, as suas
timas vibraes. E havia ainda a sobremesa, que ela ofereceu sedutoramente aps
retirar meticulosamente todos os pratos e talheres. Porm, bem mais que o sabor
trivial do jantar daquela prometida noite recordamos, durante longo tempo e vastos
quilmetros, o brilho dos olhos daquela alquimista do prazer de comer!
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14 dia 30/04/2002, tera-feira
EL BURGO RANEROS LEN 37,1 km
Sequncia de longas jornadas. nossa direita, longe ao norte, a Cordilheira
Cantbrica, a nica manifestao visvel no horizonte de um plano sem fim. amos
acompanhando, distncia, uma linha frrea que no sabamos de onde vinha e que
seguia conosco para oeste. Comecei a viajar com a imagem de Ana Pacha, a Ana-
No de Agustin Gomez-Arcos, que seguia a p pelas estradas de ferro do pas, desde
a Andaluca at o norte, em busca do filho que lhe restava, prisioneiro poltico havia
trinta anos. Seu marido e dois outros filhos tinham sido mortos durante a guerra
civil espanhola: ficara sem Pedro, sem Jos, sem Joo. Para seu sobrevivente, dito o
menino, levava um po de amndoas, untado de azeite, com gosto de anis e bastante
acar (um bolo, diria ela). Ao cruzar os trilhos, antes de Mansilla de las Mulas, olhei
para os dois lados sem pontas, mas no vi Ana-No. Ah, no, claro estava que no!...
Ela seguia em direo ao norte, no em busca do sepulcro de mais um apstolo,
mas de Jesus, o seu ltimo filho.
Apesar da crena geral de que a mochila ia pesando cada vez mais, a minha
parecia pesar menos nos ltimos dias: s esperava no estar esquecendo coisas
pelo caminho. Pesava por volta de sete quilos, variando com a gua e a comida de
momento. Podia parecer pouco, mas era como se um dia algum acordasse sete
quilos mais pesado e passasse, a partir daquele instante, a caminhar por muitas
horas durante muitos dias. Desequilibrava bastante. E pelo que pude observar em
centenas de peregrinos a minha devia ser uma das menores e talvez das mais leves.
Alguns apontavam para minha mochila e exclamavam: mochila pequea!, ou small
bag!, ou ainda, petit sac dos! Porm, para eventual prxima vez, acho que seria
bom fazer alguns treinos com variaes de peso e tempo. Quanto aos calados,
muitos carregavam dois outros pares, geralmente um de tnis para alternar e
chinelos para o banho. Idair caminhava apenas de sandlias; eu, apenas de tnis; e a
quase totalidade dos peregrinos, de botas. Lavvamos diariamente as roupas, o que
nos permitiria caminhar apenas com mais um conjunto para troca, mas trazamos
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dois outros. Tinha sido mais por desconhecimento do que por precauo, soubemos
durante o caminho.
Costumvamos caminhar, aps os primeiros dias, cada qual em seu ritmo.
Encontrvamo-nos em bares, restaurantes ou mesmo nos albergues, ao final do dia.
Fazamos tambm longos percursos e jornadas inteiras caminhando juntos. Em uma
ocasio vislumbrei, ao longe, um ponto ao lado da estrada. Ao me aproximar,
percebi que era Idair. Estava sentado, concentrado, escrevendo em um bloco de
notas. Muitas vezes, o caminhar solitrio proporcionava-nos momentos que de
alguma forma queramos capturar, mesmo que tudo aquilo pudesse parecer uma
insanidade total. Ou, sbita e terrivelmente, o contrrio. Passei direto e segui. L
adiante, olhei para trs: o vulto, novamente quase um ponto, continuava l. Talvez
ele continuasse a planar por sobre aqueles moinhos de vento transformados em
gigantes. Ou, quem sabe, at um pouco mais alm. Conseguiria ele transmitir aos
outros, agora ou depois, uma ideia ou mesmo uma plida imagem de sua viagem?
Talvez ele tentasse, talvez por senti-la to aambarcante quanto cristalina. Mas esta
jornada, por solitria, devia permitir apenas a cada um, por si, fazer a sua. Por onde
ele andava agora, nunca saberamos. Ele apenas parecia estar ali, do lado de fora de
si mesmo, ao lado dessa estrada. A estrada tambm parecia estar ali, por onde
pareciam caminhar os corpos que ns tnhamos. Sim, ns temos o corpo! assim
comeava Edgar Cayce as suas leituras de vidas. Por meio desse corpo, e s assim,
ele alcanava o esprito em suas muitas moradas atravs dos tempos. Podia, assim,
acompanhar suas diversas manifestaes, nos diversos corpos. De maneira similar,
esta longa estrada por onde caminhavam os corpos de milhares de peregrinos podia
levar-nos, medida que prosseguamos, subitamente, ao prprio Caminho. Sim,
devamos estar a caminho do Caminho, embora eu apenas parecesse estar aqui,
parado, olhando para Idair, que apenas parecia estar sentado beira da estrada,
que apenas parecia no ter fim.
Pelo que pudemos observar desde a entrada, Len parecia ser uma cidade
grande e moderna. Apesar disso sem muito estresse, a julgar por um cartaz de uma
loja que anunciava, de modo eloquente, a proeza de trocar as quatro rodas de um
carro em menos de uma hora! Chegamos bastante cansados ao albergue municipal,
que felizmente era muito reconfortante. Com instalaes modernas, notadamente
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os banheiros, acolhia democraticamente peregrinos de Santiago e alberguistas do
Hostelling International, o Albergue da Juventude. Nas portas dos aposentos, em
belos cartazes, os seus respectivos smbolos: a vieira de Santiago e a cabana com o
pinheirinho. Pernoite para peregrinos: 3,00. Encontramos novamente os trs
italianos, que proclamavam animadamente: Amanh, ao Hospital!
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15 dia 01/05/2002, quarta-feira
LEN HOSPITAL DE RBIGO 35,7 km
Amanheceu muito frio e com vento forte: cara de chuva, diziam alguns no
albergue. Mas acabou sendo uma boa jornada a de hoje, em que eu caminhava com
gosto e comeava a pensar na possibilidade de seguir at Finisterre, aps chegar a
Santiago, o que levaria mais uns trs ou quatro dias, e depois tomar o caminho
Portugus. Iria pensando nisso enquanto caminhava.
O bilhete, em ingls, dizia para tomar cuidado com cobras, at onde entendi.
Escrito com letra firme e clara, estava pendurado, a meio metro do cho, nos ramos
finos de um galho cado no caminho. A estrada de terra, larga, aberta dos lados,
duas poas de gua, o galho, o bilhete e eu. De cima, uma calidez solar. Onde, a
serpente? Fiquei parado, sentindo uma incongruncia entre o plcido arranjo dos
elementos ali dispostos e a periculosidade de uma cobra. Imaginei que para o autor
do esmerado bilhete havia apenas uma cobra no meio do caminho. Mais tarde, ao
comentar com Idair, ele confirmou que o bilhete, na realidade, dizia que a pessoa
havia sido picada por uma cobra.
Apareciam montanhas frente e, aps duas semanas, cumes nevados. Esse
frio devia aumentar nos prximos dias, ao subirmos a uma altitude de 1.500m,
deixando a planura dos 800m. Idair e os italianos estavam no albergue municipal,
moderno e afastado do centro. Desde Puente la Reina, tem sido sempre uma alegria
encontrarmos Giulio, Emilio e Aldo em vrios finais de jornada. Cheguei mais tarde e
fui direto para o refgio paroquial, onde tomei o primeiro banho gelado, a 3,00 o
pernoite. Enquanto aguardvamos a hora de jantar, falvamos. Jos Lus falava-me
dos reinos antigos, da Catalua, Aragn, Navarra, Castilla, Len, Asturias, Galicia, que
existiam quando ainda no havia uma nao espanhola. E falava tambm do final da
Reconquista, quando o ltimo sulto de Granada entregou as chaves da cidade aos
Reis Catlicos e retirou seus exrcitos da pennsula ibrica, encerrando uma longa
dominao moura de vrios sculos.
A Moura finalmente apareceu! eu disse para Idair, no jantar encontrei-a
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ainda h pouco, quando vinha para c! Havamos brincado, em vrios momentos do
caminho, com a possibilidade de encontrarmos a Moura. No incio, dizamos: Ela
est montada, deve andar l na frente, pois aqui, certamente, j teriam comido seu
cavalo! Os peregrinos a p tinham prioridade, nos albergues, sobre os que faziam o
caminho de bicicleta. A cavalo? Atualmente eram raros os cavaleiros, mas existiam
alguns refgios com estrutura para receber os animais. Coisa que, naturalmente,
no era problema na poca do rei Carlos Magno, ocasio em que a Moura percorria
o caminho de Santiago fazendo curas com ervas. Seu esprito estava hoje presente
entre ns, manifestado como a pessoa conhecida por Shirley MacLaine, conforme
esta contava em seu livro O Caminho: uma jornada do esprito.
A nossa Moura chegou, cumprimentou-nos e sentou-se a uma mesa prxima
a um grande televisor na parede do restaurante, de onde emanavam belas imagens
de um estdio de futebol lotado, onde torcedores agitavam, sem cessar, bandeiras
e lenos brancos em repdio exploso de dois carros-bombas em Madrid, algumas
horas antes.
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16 dia 02/05/2002, quinta-feira
HOSPITAL DE RBIGO RABANAL DEL CAMINO 36,8 km
Amanheceu bastante frio e sem ventos. A trilha da manh foi muito bela,
passando por capoeiras e subindo as primeiras colinas. Perto de Astorga, a primeira
ameaa de chuva, j com bastante vento frio. Chuviscava quando sa do correio; o
termmetro de rua marcava 8 C ao meio-dia. Aproveitei e parei para tomar um ch
quente e um lanche.
Eu no costumava passar por agncias do correio por ser difcil conciliar
horrios e roteiros por ruas das grandes cidades; nos pequenos povoados no havia
atendimentos, apenas as caixas de postagem nas praas. Uma tarde, estvamos
sentados em um banco de alguma vila e vimos quando uma moa colocou alguns
envelopes em uma dessas caixas amarelas. Ainda no estava escuro, e o final de
mais um dia de caminhada dava um aspecto sentimental a esse gesto calmo da
peregrina. Onde, e quem receberia cada uma dessas cartas? A partir do instante em
que ela abriu as mos para que os envelopes cassem no fundo da caixa, por que
mundos sua mensagem viajaria at que outras mos as de uma pessoa com quem
ela estivera em ntimo contato ao escrever se abrissem para receb-la? E por que
teria ela escolhido essa forma secular de contato se tem disposio telefones e
internet? Poderamos imaginar que ela assim o fizera simplesmente porque estava
caminhando, uma forma milenar de encontro. Ou poderamos tentar imaginar a
expresso de uma pessoa destinatria no exato momento de abrir o envelope. De
qualquer modo, uma mensagem estava indo para uma casa atravs de uma pessoa
que estava no meio do caminho, dizendo coisas l do mundo. A partir daquele
instante, acreditei nas caixas amarelas: comprei muitos selos e, mesmo nas ocasies
em que no iria postar, meu olhar buscava-as em todas as povoaes. Elas passaram
a ser, juntamente com as sempre vistas setas amarelas do caminho, as indicaes
para meu encontro com pessoas e objetivos ainda muito distantes.
A tarde transcorreu com muito vento frontal e gelado, e chuviscos breves
repetidas vezes. Aproximvamo-nos dos pontos mais altos do caminho ao mesmo
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tempo em que chegava uma frente fria forte, que podia trazer neve e durar vrios
dias. Quando finalmente cheguei Idair e os italianos, banho tomado e descansando
nos sacos de dormir, se perguntavam se eu no me teria perdido pelo caminho.
Hendrik, um jovem que vnhamos encontrando durante alguns dias, atrasara-se no
caminho por causa de uma mulher, segundo o testemunho dos italianos. Estvamos
no Refgio Gaucelmo, excelente: velha casa paroquial reconstruda pela Confraria
de Santiago (Confraternity of Saint James), da Inglaterra, e operado pessoalmente
por seus membros e voluntrios. Nada era cobrado, sequer o belo caf da manh,
onde cada um se servia e deixava louas e talheres lavados para o prximo. Deixei
5,00.
Emilio e Aldo, peregrinando pela segunda vez, conduziam Giulio em suas
primcias no caminho. Este deixava por conta dos veteranos o planejamento das
estratgias para a jornada de cada dia seguinte, elaborado em demorados conclios,
condizentes com o esprito da peregrinao. Habitualmente, partiam bem cedo e
caminhavam em ritmo forte, acostumados que estavam a caminhadas semanais nas
montanhas do norte da Itlia. Nem mesmo um eventual atraso de quase uma hora,
causado por uma porta trancada de um albergue, conseguia abalar a disposio e o
humor desses madrugadores. Vencida mais uma etapa aguardavam, algumas vezes,
a abertura dos albergues no perodo da tarde. Depois do banho, descansavam e
aguardavam o to suspirado e merecido jantar. Durante o dia, protegiam-se do sol
utilizando belssimos lenos de seda; de noite, mediante uma mgica particular,
transformavam-nos em vistosos guardanapos. A mesa desses italianos era sempre
uma festa, uma verdadeira celebrao! Salute! Ficamos tentando imaginar como
seria um eventual encontro deles com aquela cozinheira de El Burgo Raneros!
Os albergues no caminho possuam, normalmente, beliches em aposentos
mistos, espaosos, talvez nem tanto. Em alguns os banheiros eram tambm mistos,
mas a maioria separava homens e mulheres. Lembrava-me de que em Roncesvalles,
ao sair do boxe de banho, deparei-me com uma jovem que escovava os dentes junto
ao lavatrio. Surpreso, coloquei os culos para certificar-me de que era realmente
uma mulher que ali estava. Nem havia imaginado que os banheiros ali pudessem ser
mistos. Dissipada a minha dvida, vi que ela continuava calmamente em seu afazer.
Ento, ainda de culos, comecei a enxugar-me aps aquele belo banho ao final do
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primeiro dia no caminho: nem to depressa que pudesse aparentar nervosismo e
nem to devagar que pudesse sugerir alguma exibio.
Existiam ainda cozinhas equipadas, tanques de lavar roupas, alguns j com
mquinas lavadoras e secadoras movidas a moedas. Alguns cobravam o pernoite,
outros possuam apenas discretas caixinhas para contribuies voluntrias. Havia
peregrinos que faziam lanches ou que cozinhavam nos albergues; outros iam aos,
normalmente, poucos ou nico restaurante em cada povoado. De uma forma ou de
outra, eram os momentos em que, aps mais uma jornada em que andavam um
tanto dispersos, os peregrinos tornavam-se mais gregrios, embalados por vinhos,
comidas e muita conversa, nos mais diferentes idiomas e gesticulaes.
Dessa forma, soubemos que a nossa Moura era, de fato, uma jovem indiana
nascida em Goa uma possesso portuguesa encravada na costa ocidental da ndia
tinha sobrenome Silva e por nome Ruieta, me indiana de fala inglesa, entendia
alguma coisa de portugus mas falava apenas o Ingls, e vivia na Califrnia. Por fim,
ela perguntou-me se eu fazia meditao.
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17 dia 03/05/2002, sexta-feira
RABANAL DEL CAMINO PONFERRADA 32,7 km
Idair decidiu acelerar o passo para terminar logo a peregrinao. Partiu cedo,
e j devia estar muito frente, mais a oeste, mais prximo do mar, do fim da terra,
de Finisterre. Ainda o vi no comeo da tarde aps ultrapassar os Montes de Len
ou penso t-lo visto. Mas como ele pretendia chegar ainda a Cacabelos, uns quinze
quilmetros adiante de Ponferrada, no devia ser ele, ali, quela hora. Peregrino
brasileiro! Mas, quem quer que fosse, no me poderia mais ouvir, caminhando l na
frente de modo apressado.
O dia amanheceu gelado e com geada logo sada da vila, que aumentava
medida que o caminho subia. A partir de Foncebadn, a 1.440m, havia neve. Nessa
vila abandonada viviam somente uma velha bruxa e seus ferozes ces negros, que,
pelo milagre da multiplicao dos relatos, assombravam a imaginao de peregrinos
de todo o mundo. De tudo aquilo que havia antecipado, o que eu nunca imaginara
era uma estrada asfaltada passando ali ao lado. Esse inesperado fato aliviou a minha
expectativa de alguma maneira, apesar do forte nevoeiro que encobria tudo. Fui a
um bar, em uma rua lateral: estava fechado. Voltando sobre cada passo pude ver,
atravs da nvoa, dois carros, um trator e a sempre benquista caixa amarela do
correio: sinais inequvocos de um renascimento da vila? Se isto se confirmasse, o
que aconteceria com a bruxa e os temveis ces? Essa vila, ansiosamente aguardada
durante todo o caminho, acabaria por perder todo o seu encanto?
Ao passar pela Cruz de Ferro, a 1.505m de altitude, o vento gelado acabou
por travar minha mquina, cujas pilhas s voltaram a funcionar algumas horas mais
tarde, muitos graus menos frio e a 900m mais abaixo, j em Ponferrada, quando
consegui fotografar o seu castelo templrio.
Foi bem possvel que tivesse sido por causa de meu bon de abas cadas, tipo
legionrio. Ou, talvez, por meu gesto ao ajeit-lo aps colocar a mochila s costas,
pronto para partir. Um sorriso e um brilho em seu olhar, fugazes, precederam a
primeira nota do assobio. O espanhol sentado prximo mesa em que eu havia
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terminado de lanchar observava-me atentamente, enquanto prosseguia com a
melodia. Reconheci-a. Sorri e assobiei tambm, acompanhando-o. Seus amigos, que
ainda faziam pedidos junto ao balco, aproximaram-se e tambm entraram na roda,
amplificando o alcance daquela orquestra. O som cresceu e tomou conta de todo o
espao confinado. Ento, naquele apertado bar de um pequeno povoado, sem que
uma s palavra fosse pronunciada, algumas pessoas, dentre as quais um completo
desconhecido, exerceram, por um momento, uma real comunicao e uma virtual
aproximao, s tornadas possveis atravs de uma memria em comum.
Se um transeunte, naquele preciso instante, olhasse atravs dos vidros para
dentro daquele bar, veria apenas um pequeno grupo comemorando alguma coisa
qualquer, a julgar pelas suas gesticulaes e caretas. Ele poderia considerar que
estavam demasiado alegres, embora, estranhamente, nenhum deles portasse um
copo de bebida. Poderia achar que estava assistindo a um filme de cinema mudo no
qual entrara no meio da exibio, pois no ouvia e no entendia nada. Bem que
poderia simplesmente virar-se e ir embora. Afinal, no pagara nada por aquela
apresentao sem som e sem legendas. Porm, se ele assim o fizesse, no poderia
ver que eu me dirigiria para a porta, desapareceria de cena e reapareceria na rua,
exatamente sua esquerda, passaria por trs de suas costas isso se ele no
girasse em torno de si, acompanhando-me com o olhar e seguiria em direo a
Ponferrada. E no perceberia, sobretudo, que eu ainda continuaria a assobiar, como
trilha sonora para uma trilha cannica, a melodia do filme A Ponte do Rio Kwai.
Os italianos, como de hbito, j estavam instalados confortavelmente. Passei
a cham-los de Os Trs Ferraris, tanto pelo desempenho quanto por serem da cidade
de Monza. Fernando, com a perna um pouco inchada, veio de txi de El Acebo e foi
atendido no hospital. Disse que poderia andar sem muito peso e sem muita pressa.
Albergue muito bom, contribuio voluntria deixei 5,00.
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18 dia 04/05/2002, sbado
PONFERRADA VEGA DE VALCARCE 41,3 km
Jornada difcil, a de hoje! No s pela distncia, mas tambm porque grande
parte do trecho seguia pelo acostamento muito estreito de uma rodovia. Lembrava-
me, a cada caminho que passava, das imagens sugeridas pelas palavras de Roland.
Horrvel! O que aliviava a via tenebrosa por escassos momentos era a presena de
belssimas flores de papoulas, mirades de pontos vermelhos saltando de um fundo
verde, em alguns trechos ao longo do rio Valcarce. O caminho apresentava-se a
cada peregrino como ele o sentia. Idair disse, posteriormente, que esse trecho foi
um dos mais belos, em que ele seguia, por vezes, at mesmo cantarolando. Mas,
para mim, a provao resultou de uma vacilao de minha parte. Em Villafranca del
Bierzo, havia duas opes a seguir: a Pereje, por estrada; e a Pradela, pela serra,
encontrando-se os caminhos em Trabadelo, mais adiante. No sabia deste ltimo
detalhe, e acabei por seguir a orientao de uma senhora de idade que insistiu,
quase implorou, para que eu fosse pelo caminho da estrada. Por vezes, pensei no
que poderia ter ocorrido se tivesse tomado o outro caminho. Mas no havia como
saber, mesmo que um dia eu voltasse l e tomasse o caminho da serra.
As pessoas que encontramos no caminho, em geral, tratavam os peregrinos
com carinho, orientavam com boa vontade e sempre desejavam um buen camino.
Em Logroo, um comerciante agachou-se em um espao apertado, passou por uma
abertura no balco e levou-nos at a rua apenas para indicar uma loja que ficava,
praticamente, ao lado de onde estvamos. Ou aquele outro, em Njera, que insistiu
em acompanhar-me para mostrar o albergue, embora soubesse que eu no ficaria
l. Disse que tinha um tempo de sobra para me dedicar, pois ainda estava cedo para
o jogo dirio de domins no clube dos aposentados. Em Camponaraya, um senhor
gritou alguma coisa quando eu passava junto ao seu jardim. Disse que contava
todos os peregrinos, e que eu era o quinto daquele dia. Mais tarde, estalou a dvida:
e os peregrinos que passavam durante a sua siesta (cochilo de algumas horas aps o
almoo)? Parei, com grande vontade de voltar e lhe perguntar. Porm, imaginei-o a
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afirmar categoricamente: Ah, mas esses no existem! Segui, sentindo uma sbita
afeio por aquele conferente de Deus que tinha acabado de confirmar a minha
existncia. Idair desenvolveu uma tcnica para retribuir tamanho zelo, que consistia
em se apresentar com um ar desorientado a um grupo de idosos e perguntar pelo
caminho. Prontamente, vrias pessoas comeavam a falar e a gesticular ao mesmo
tempo, o que provocava uma grande algazarra que renovava o ar secular que os
envolvia. E quando viam que o peregrino seguia pelo bom caminho, elas ficavam
felizes, em plenitude, por terem salvado mais um peregrino perdido! Sua Majestade
que nos perdoasse, mas peregrino em terras de Espanha tambm era rei!
A canela direita comeou a doer de leve entre Cacabelos e Villafranca del
Bierzo, tal como a esquerda no segundo dia do caminho. Ambos os casos ocorreram
em dias seguintes a subidas e descidas muito fortes. Falta de alongamentos? De
descansos? Provvel. A esquerda estava praticamente boa, e eu esperava que a
direita seguisse o mesmo caminho.
Entrei em um bar em Pereje e alegrei-me com a presena de Fernando.
Conseguira andar bem at Cacabelos, de onde viera de txi, e tomava um vinho
enquanto aguardava a chegada de Jos Lus, que seguia andando muito bem. Eu
disse a ele que no deviam existir peregrinos pobres, pelo que pudera ver at ali. Ele
confirmou, acrescentando que pobres poderiam conseguir alojamentos, mas teriam
que jejuar durante o caminho todo, exceto por um ou outro hospedeiro que os
alimentasse. E eles no teriam condies de adquirir equipamentos da mais recente
tecnologia, como vesturios e calados impermeveis que respiram de dentro para
fora, com protetores contra radiaes solares, mochilas, leves sacos de dormir e
toda uma parafernlia que nos fazia peregrinar como se estivssemos passeando.
Claro que sempre existia a possibilidade de enfrentarmos alguns problemas fsicos,
mas estes eram perfeitamente contornveis atravs do telefone celular para pedir
socorro. Outras dificuldades eram resolvidas pelos cartes de crdito. Ao contrrio
dos atuais, o antigo peregrino era um despojado: espiritualmente, amparava-se na
sua f e nos desejos de remisso; materialmente, possua apenas tnica e cajado,
uma cabaa para gua e talvez um bornal para uma comida pouca. A vieira de
Santiago fazia a ligao entre esses mundos. Os pousos eram distantes, os relentos,
habituais e os perigos, muitos. A chegada a Santiago de Compostela, nosso objetivo
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final, aps o que poderamos nos restabel