Andamento

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Relatos e histórias da viagem pelo Caminho de Santiago, realizado pelo andarilho e cronista joanopolense Susumu Yamaguchi. Neste belo texto, caminhos de vida se cruzam, contados em palavras, culturas, histórias e ambientes, trilhados pela fé!E-mail de contato do autor: [email protected]

Transcript of Andamento

  • A N D A M E N T O

    Susumu Yamaguchi

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    A caminho do Caminho

    A primeira prova do Caminho apanhou-nos ainda antes de seu incio, sem

    qualquer aviso prvio ou sinal, na forma de um enjoo na travessia dos Pireneus, da

    Espanha para a Frana. O taxista dissera que em geral os peregrinos iniciavam o

    caminho em Roncesvalles, e que apenas os valentes, faziam-no em Saint-Jean-Pied-

    de-Port. Embora ele se referisse ao trajeto a p, compreendramos visceralmente a

    sua afirmativa. Assim, enquanto eu tentava me recompor, sentado ao p de uma

    placa que nomeava o Caminho de Santiago como Chemin de Saint Jacques / Jondoni

    Jakobe Bidea, Idair, menos abalado, saa procura do albergue para carimbar nossas

    credenciais de peregrinos.

    O motorista acordou sua esposa Maria por telefone e avisou que estava

    saindo para Saint-Jean-Pied-de-Port. A resposta soou sonolenta, voz grave de quem

    quer continuar dormindo. Senti-me incomodado, como se invadisse logo cedo a

    intimidade de um quarto desconhecido quando a penumbra ainda abraava um ar

    no tocado pela primeira viso do dia. O uruguaio Hector morava h vinte anos na

    Espanha, mas ainda se recusava a comer carne de cavalos, hbito desta regio.

    Chegou a tentar uma vez, mas no conseguiu engolir. Para ns como se fosse um

    amigo, um animal quase sagrado explicou, como que nos convocando a uma

    solidariedade sul-americana. Disse que conhecera So Paulo h muito tempo, na

    poca em que participava da corrida ciclstica 9 de Julho, da qual foi campeo uma

    vez. E aqui, no deixou de elogiar a persistncia dos brasileiros: sorrindo, contou

    que um dia fora chamado para buscar um casal perto de Roncesvalles. Os ps da

    mulher estavam dilacerados pelas botas novas. Ele os havia levado recentemente

    para Saint-Jean-Pied-de-Port, e sentiu um grande desconforto por reencontr-los

    naquelas circunstncias, em to pouco tempo. A moa estava realmente em uma

    situao de dar pena, e ento ele se colocou disposio para lev-los a passeios

    por Pamplona e regio: que os brasileiros haviam desistido do caminho, mas no

    da lua de mel!

    A uma indagao, disse que a cidade era reivindicada pelo Pas Basco, mas

    que havia ainda muita ambiguidade quanto questo; e que, dependendo das

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    convenincias, seus habitantes eram ora espanhis, ora bascos, principalmente

    quando se tratava de subvenes ou tributos em relao ao governo central de

    Madrid. De qualquer modo, exceto pela carne de cavalos, Hector parecia estar

    muito bem adaptado a tudo isso. At mesmo um telefonema de seu filho,

    agradecendo-lhe por haver carregado de crditos o seu celular, parecia confirmar

    sua plena integrao a um pas dentro de outro pas, mesmo tendo ele vindo de

    outro distante pas. Aparentemente orgulhoso pela retribuio do filho sua

    ateno, apenas lhe disse, afetuosamente, que isso era um bom motivo para no se

    fazer gastos sem propsitos. Atualmente, praticava corridas de trens com ces.

    Travessia do Yukon, no Alaska? Ele apenas sorriu, sonhador.

    Havamos combinado com ele na noite anterior que sairamos s sete horas

    da manh para Saint-Jean-Pied-de-Port. Dissera que a corrida sairia por volta de

    setenta euros ( 70,00), o que realmente se confirmou na chegada [cmbio abril

    2002: 1,00 US$ 0,92 R$ 2,16]. Devia haver linhas de nibus saindo de Pamplona a

    preos bem menores, mas no chegamos a verificar.

    O caf da manh que tomamos enquanto aguardvamos sua chegada,

    consistindo basicamente de comidas adocicadas como croissant (po) e magdalena

    (bolo), certamente fora decisivo para nosso mal-estar na viagem. Ainda teramos

    muito que aprender no caminho sobre o qu e quando comer.

    O termmetro do carro indicava uma temperatura externa de 4C negativos

    quando estvamos perto de Roncesvalles. Preferi no acreditar e fiquei olhando os

    primeiros peregrinos que passavam, inclusive uma mulher que seguia puxando um

    carrinho com a bagagem. Na gelada manh l de fora, entre hlitos de frio, em

    pequenos grupos ou sozinhos, aos poucos, eles saam para o caminho.

    Ento, eles existiam mesmo!...

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    1 dia 17/04/2002, quarta-feira

    SAINT-JEAN-PIED-DE-PORT RONCESVALLES 24,9 km (FRANA) (ESPANHA)

    Assim, por volta de 9h, j refeitos do enjoo, passamos pela Porta de Espanha

    e iniciamos o caminho pela rota de Napoleo. Diferentemente deste, que seguiu

    com seu exrcito pelo alto da serra por questes estratgicas, os franceses atuais

    preferiam a comodidade do asfalto pelo vale do rio Petit Nive. Tambm invadiam o

    pas vizinho, porm com objetivos mais modestos que os do pequeno megalmano

    imperial: apenas abastecer seus carros com gasolina mais barata. Bela manh, belos

    campos, qual um final de semana, caminhando leve pela Serra da Mantiqueira,

    fazendo os primeiros ensaios como peregrinos. Pequenos grupos seguiam pela

    estradinha asfaltada. Um francs passava com o carro e voltava a p, seguidas

    vezes. Explicou que j havia feito a peregrinao. Agora, era a vez da esposa. Ele a

    acompanharia at o alto dos Pireneus; depois, ela seguiria s. Estava radiante por

    ela e como se agora, atravs dela, ele mesmo estivesse novamente a caminho de

    Santiago!

    No alto dos Pireneus, pouca neve. Um jovem caminhava lendo um livro que

    no conseguimos identificar. Aparentemente fazia duas viagens ao mesmo tempo.

    Mas no se perderia nessa simultaneidade de caminhos? Porm, quem perdeu o

    caminho fomos ns, distrados pela conversa. Seguimos a fronteira e acabamos

    voltando para o asfalto. Um francs mostrou-nos, em um mapa, exatamente o

    ponto onde deveramos passar para a Espanha. Voltamos e l estava: em meio a um

    pouco de neve j lamacenta, uma escadinha para pular a cerca!

    J na Pennsula Ibrica, em outra poca considerada uma terra santa a ser

    reconquistada pelos fiis cristos aos infiis mouros, caminhamos sem maiores

    dificuldades. Ao descer por uma forte ladeira em meio a uma mata encontramos os

    primeiros peregrinos na contramo, talvez voltando desde Santiago. Nossa primeira

    parada em Roncesvalles, aonde chegamos depois de 17h, foi, naturalmente, em um

    bar. Apenas depois que fizemos o reconhecimento do lugar onde passaramos a

    primeira noite no caminho.

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    Aps o banho, e antes da missa que precedeu o jantar, tivemos os primeiros

    contatos com os peregrinos instalados no albergue da Colegiata de Roncesvalles.

    ramos cerca de cinquenta os presentes missa, na qual recebemos uma bno

    especial para que a peregrinao seguisse sempre pelo bom caminho. Caa uma leve

    garoa quando samos da catedral, o que foi saudado por todos como mais uma

    bno dos cus.

    Fazendo as honras de nossa mesa, o primeiro brasileiro que encontramos no

    caminho serviu a bebida aos quatro peregrinos: o jovem alemo Wolfgang, Idair, eu

    e o prprio Roberto. Gacho, aposentado, ia iniciar o caminho a partir dali. At que

    chegasse a Santiago no se barbearia, coisa indita em sua vida. A filha cobrara-lhe

    uma foto do barbudo desconhecido. Afvel, saboreava de modo tranquilo o vinho,

    apesar da ansiedade pelo primeiro passo. Menu do peregrino, servido ao preo de

    6,00: sopa de paino, truta, batatas fritas, po, vinho, gua e sorvete. Encerrado o

    apressado mas agradvel jantar, atravessamos o ptio com muito frio e recolhemo-

    nos em cima do horrio limite de 22h. Ao deixar a mesa, uma leve dor nas pernas era

    testemunha da alegria pela primeira jornada cumprida. O albergue no cobrava pelo

    pernoite, apenas aceitava donativos. Deixamos 5,00 cada um.

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    2 dia 18/04/2002, quinta-feira

    RONCESVALLES LA TRINIDAD DE ARRE 38 km

    Roberto j estava quase pronto quando comeamos a arrumar as nossas

    mochilas. Escuro ainda, bastante frio, ele era um dos primeiros a sair. Despedimo-

    nos como quem continuaria a se encontrar pelo caminho. Tomaramos o caf da

    manh apenas a trs quilmetros adiante, em Burguete. Nesse local, o clrigo do

    sculo XII Aymeric Picaud, em seu Liber peregrinationis de acordo com o Gua

    Prctica del Peregrino: El Camino de Santiago, de Milln Bravo Lozano situou a

    batalha em que morreram Rolando e vinte mil cristos, juntamente com outros

    vinte mil mouros. J o historiador britnico Richard Fletcher escreve em seu livro Em

    Busca de El Cid:

    O encontro mais famoso ocorreu em 778, quando Carlos, filho de Pepino mais tarde conhecido como Carlos Magno voltava de uma campanha militar na Espanha. A retaguarda de seu exrcito, comandada por Rolando, foi emboscada pelos bascos, no Passo de Roncesvalles, e aniquilada. Embora sendo uma derrota de pouco significado militar, ela foi lembrada por longo tempo, reunindo em torno de si acrscimos lendrios, que acabaram por receber forma literria no maior de todos os picos do francs antigo, a Cano de Rolando.

    Na Colegiata, um pequeno monumento lembrava os 1.200 anos da Batalha de Roncesvalles.

    Caminhvamos por trilhas bem conservadas, com calamento de pedriscos

    em alguns trechos, que serpenteavam por entre a vegetao que recomeava a

    brotar para mais uma temporada. Algumas vrzeas estavam cobertas com

    pequenas flores, amarelas e brancas, sobre um tapete verde. Tulipas brilhavam em

    alguns cantos de viso. Fomos observando, nas pequenas e delicadas cidades por

    onde passvamos, diversas sinalizaes pblicas bilngues, em espanhol e em basco.

    Em Saint-Jean-Pied-de-Port, havia uma Espaako Kalea e por aqui, Nagusia Kalea.

    Kalea (em basco) / Calle (em espanhol) significavam Rua; e Nagusia / Mayor / Maior.

    Havia tambm nomes de casas comerciais apenas em basco. O caminho de Santiago

    penetrava na Espanha pela parte francesa do Pas Basco e prosseguia atravs dele,

    at deixar a provncia de Navarra.

  • 7

    Segundo o jornal Folha de So Paulo,

    Os ancestrais bascos viviam na regio desde 8.000 a. C. Desde ento, eles se mantm como uma etnia parte, com pouca influncia das ocupaes romanas posteriores. Anexada pelo reino de Castilla entre os sculos XIII e XV, a regio adquire, a partir de 1979, o estatuto de Comunidade Autnoma, com Parlamento prprio. A oposio mais radical ao governo de Madrid feita pelo grupo terrorista ETA (Euskadi Ta Azkatasuna Pas Basco e Liberdade), que luta pela formao de um pas basco independente, com partes da Espanha e da Frana. O Batasuna (Unidade, em basco), partido de esquerda e reconhecido pela populao basca como brao poltico do ETA, foi colocado na ilegalidade sob a acusao de cumplicidade e identidade com o movimento terrorista. O Pas Basco ocupa uma rea de 20.644 km e tem uma populao de 2,9 milhes; suas principais cidades so Bilbao, San Sebastin, Pamplona e Biarritz; o idioma o basco, sem parentesco conhecido com outras lnguas europeias.

    Ento, estvamos no Pas Basco. A primeira ideia que ocorria, condicionada

    pelo noticirio, era quanto segurana. Poderamos encontrar problemas pela

    frente? Ou estaramos protegidos pela vieira de Santiago, historicamente, um salvo-

    conduto de peregrinos de todos os tempos? Ou tudo se resumiria a simplesmente

    no entendermos nada do que diziam em basco? Um peregrino aconselhou-me a

    caminhar com um cajado, que serviria, entre outras coisas, para me proteger... de

    ces! Eu disse-lhe que preferia tentar uma conversa com eles, caso se mostrassem

    inamistosos. Existia a mstica do cajado do peregrino, independentemente de seu

    discutvel uso como arma. Quase todos andavam com um, alguns uma simples vara,

    outros muito trabalhados, leves ou pesados, bonitos ou no; ou ainda, os prticos e

    levssimos bastes de esqui.

    Ao atingirmos o alto de Erro paramos para comer um chocolate, estimulados

    pela prpria subida e tambm pela viso de um imenso po que um casal carregava,

    pendurado nas mochilas, metade para cada um. Chegando a La Trinidad de Arre, o

    hospedeiro do refgio paroquial exigia que todos tirassem as botas entrada.

    Apenas a Idair, j caminhando de sandlias, foi permitido entrar como estava. Enfim,

    um verdadeiro peregrino! Pernoite cobrado: 5,00.

  • 8

    3 dia 19/04/2002, sexta-feira

    LA TRINIDAD DE ARRE PUENTE LA REINA 28,1 km

    Cruzamos o rio Arga pela ponte de Magdalena, contornamos uma imensa

    muralha e entramos em Pamplona pela Porta de Frana. Estivramos aqui trs dias

    antes, vindos de So Paulo e Madrid, mas apenas com tempo contado para jantar e

    pernoitar. Percorremos na ocasio algumas estreitas ruas e ficamos imaginando

    como seria correr por ali frente dos touros, na festa de San Fermn. Os nicos

    refgios possveis eram os batentes de entrada das casas, com portas recuadas

    apenas o suficiente para nelas colar as costas e encolher, desesperadamente, a

    barriga. Mas quela hora da noite as ruas estavam quase desertas, silenciosas, assim

    como nesta manh em que as atravessvamos bem cedo, ainda sonolentas. Os

    primeiros raios de sol iluminavam belssimos jardins e parques; uma peregrina

    seguia em quase nosso passo e destino; profuses de cores revelavam delicadas

    flores orvalhadas; e uma bela jovem passava e nos cumprimentava com um breve

    sorriso, reforando ainda mais a sensao de que ficamos devendo um tempo

    imensurvel a esta bela cidade.

    A cerca de doze quilmetros de Pamplona, o caminho ultrapassava uma

    serra em cuja crista havia dezenas de torres de gerao de energia elica. Algumas

    esculturas assinalavam o ponto onde o caminho das estrelas cruzava o caminho dos

    ventos, ou seja, o encontro do milenar caminho que acompanhava a Via Lctea com

    a marcha dos modernos moinhos de vento de Dom Quixote. Fizemos um pequeno

    lanche sob um imenso cu azul, onde inmeros avies formavam um emaranhado

    de vias lcteas com seus jatos brancos. Um ciclista da Galcia, que fizera o caminho a

    p por duas vezes, estimava chegar a Santiago em nove dias. Do alto da Serra do

    Perdo olhamos, pela ltima vez, os Pireneus ao longe, bem para l de Pamplona. E

    quando olhamos para o outro lado, para onde o ciclista apontava em direo sua

    terra distante, para muito alm daquele horizonte difuso, sentimos ento a vastido

    do mundo ainda a percorrer.

    Em Puente la Reina, hospedamo-nos em um albergue anexo a um hotel. A

  • 9

    entrada era a mesma, mas as recepes, distintas. O albergue ficava no subsolo,

    mas as instalaes eram modernas e com tudo muito limpo e organizado, inclusive

    uma sala de estar com mquinas de lavar e secar roupas, utilizveis a 3,00. Os

    dormitrios, com dois beliches cada, eram separados por cortinas vazadas em

    madeira e batizados com nomes como Alice Bailey, Paul Brunton e Paulo Coelho.

    No percorri toda a galeria de notveis, mas imaginava que houvesse tambm

    nomes como Gurdjieff, Gandhi, Helena Blavatsky, Saint-Germain e outros, cuja

    simples meno poderia confortar o peregrino sedento. Mas para que ele no se

    perdesse nessa ecltica profuso de viagens havia a presena de um dstico

    eclesistico, sempre a lembr-lo de onde devia colocar os ps: y desde aqu todos los

    caminos se hacen uno (e a partir daqui todos os caminhos se tornam um).

    O preo de 6,00 pelo pernoite no era muito diferente do cobrado pelo

    albergue anterior. Alm disso, a comodidade de no ter que caminhar at o centro

    da cidade fez com que optssemos por jantar no restaurante do hotel, cujo menu

    do peregrino seria servido a partir de 21h, a 9,00. No albergue, o peregrino

    encontrava uma acomodao mais acessvel; e no hotel, noites de maior conforto. A

    combinao hotel-restaurante-albergue atendia a uma ampla variedade de clientes,

    peregrinos ou no. Entretanto, era no albergue que encontrvamos uma jovem que

    nos recebia com muita simpatia na recepo, orientava-nos com notvel delicadeza

    na instalao e ainda nos servia, incansvel, o tardio jantar. A alegria pela presena

    acolhedora de Susana ficou inteiramente por nossa conta.

    mesa, travamos um contato maior com os italianos Giulio, Emilio e Aldo, a

    quem j havamos visto fugazmente na missa em Roncesvalles e no refgio de La

    Trinidad de Arre. Giulio havia trabalhado por um breve tempo no Brasil, h uns

    quinze anos, com a CESP, no interior de So Paulo e ainda falava bem o portugus.

    Havamos iniciado o caminho na mesma data e percorrido, durante trs dias, as

    mesmas etapas sem qualquer combinao. Acontecimento mais que suficiente para

    compartilharmos uma pequena garrafa de grapa. Quantos de ns ainda nos vamos,

    aps a partida em Basse Navarre? Sade! E desses peregrinos do incio do caminho,

    quantos de ns ainda nos veramos, at a chegada em Santiago de Compostela?

    Salute!

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    4 dia 20/04/2002, sbado

    PUENTE LA REINA ESTELLA 22,1 km

    Em Puente la Reina, Pepe falava enquanto espervamos a mquina lavar as

    roupas. Falava da neve que encontraram no alto dos Pireneus, do quanto brincaram

    l e do quanto fotografaram, usando um filme inteiro no primeiro dia. Falava de

    livros que tratavam do caminho. Falava das dificuldades para se montar o estojo de

    primeiros socorros. Falava do peso excessivo das mochilas, das blusas de frio que

    iriam despachar, do joelho que comeara a doer. E enquanto aguardvamos a

    mquina seguinte secar as roupas, Pepe ainda falava. Somente percebemos, um

    tanto maravilhados, a extenso do entusiasmo de Pepe quando Eliane, sua esposa,

    disse que ele no era de falar muito.

    Cruzamos novamente o rio Arga, desta vez, pela famosa ponte medieval,

    para sair da cidade. Um alemo disse ter lido um livro de um brasileiro, de quem no

    se lembrava bem o nome. Perguntamos se era Paulo Coelho: era. Falamos de um

    amigo que faria uma excurso pelo rio Danbio. Ele no sabia que rio era esse.

    Soubemos, posteriormente, que o Danbio famoso chamava-se Donau, no original.

    Idair entendeu-se com esse peregrino em vneto e mais uma pequena salada de

    lnguas.

    Dois peregrinos suos que havamos conhecido em Roncesvalles, um deles

    equatoriano de nascimento, formavam uma combinao interessante: de um lado o

    suo legtimo, pele clara, atltico, bem composto em seu conjunto bermuda/colete

    cqui, sempre com caneta e guia nas mos a conferir, rigorosamente, se a realidade

    estava conforme a descrio; de outro, o latino gordote, uma falha nos dentes,

    vestido de uma forma um tanto desleixada, expansivo, intrprete e, possivelmente,

    guia em tempo integral do outro. Idair concluiu que o primeiro dever voltar a seu

    pas, aps percorrer todo o caminho, tendo aprendido do espanhol apenas as

    palavras vino e cerveza. Oxal, tambm o buen camino!

    Uma pausa para um descanso na praa de um pequeno povoado. Havia uma

    dezena de peregrinos espalhados, alguns tomando lanches; uns chegavam, outros

  • 11

    partiam. A cidade parecia estar deserta de nativos. O silncio era quebrado apenas

    pelos prprios caminhantes e pelo correr da gua da fonte. Vimos, em algum lugar,

    uma fonte cuja gua corria apenas quando se acionava uma torneira, que fechava

    automaticamente. Uma famlia apareceu. Duas crianas correram para um balano,

    cuja rea era, aparentemente, recoberta por um tipo especial de piso, usado no

    Brasil somente em pistas de atletismo de alto nvel. Os pais sentaram-se em um

    banco e conversaram indolentemente. E assim como apareceram, desapareceram

    todos. E ento, no calor da tarde de um sbado sonolento, em algum lugar do

    interior da Espanha, os peregrinos ficavam, novamente, entregues ao prprio

    caminho.

    Pepe e Eliane eram de Itatiba (SP). Ele nasceu na Espanha e foi para o Brasil

    aos dois anos de idade. Contaram que haviam caminhado um pouco com uma jovem

    brasileira que s se hospedava em hotis, pois estava acostumada com televisor e

    privacidade, e que iniciava a jornada somente por volta de 10h. Em Estella, ela

    acabou por ficar no albergue, de onde teria que sair at 8h da manh seguinte, sem

    TV, e tendo que ir dormir antes de 22h, em companhia de muitas pessoas. Albergue

    municipal, cobrado: 3,00.

  • 12

    5 dia 21/04/2002, domingo

    ESTELLA LOS ARCOS 21,3 km

    Outra jornada curta. Por ser domingo, a fonte de Irache, que jorrava vinho,

    estava fechada. Uma famlia de peregrinos: o pai americano, a me francesa e a

    filha, de quatro anos, em um carrinho. Por vezes, ela caminhava. Outra famlia,

    francesa: um casal de idade e uma senhora de mais idade ainda. Perguntei a ele a

    idade dela Madame? Como eu, 74 anos! Um jovem japons carregava, alm de

    tudo o que era necessrio em uma mochila de peregrino, dicionrios, guias, arroz,

    ovos, hashi e dizia que ficava muito cansado!

    E todos estavam a caminho de Santiago, como outros milhares de peregrinos

    naquele exato momento. Como a jovem sua que viera pelo caminho Aragons,

    que tinha incio em Puerto de Somport, a uma altitude mais elevada nos Pireneus,

    mais para leste. Era um caminho mais longo, mais solitrio e mais belo, segundo

    opinio geral, e que se juntava ao Real Caminho Francs pouco antes de Puente la

    Reina, onde havia um monumento ao peregrino.

    ... e a correr, o campnio partiu / como um raio, na estrada sumiu... Sempre

    que ouvia esta cano [Corao Materno, de Vicente Celestino] eu imaginava uma

    estrada atravessando suaves colinas por onde o campnio, depois de desaparecer

    atrs de uma primeira elevao, reaparecia subindo a prxima em louca desabalada.

    E era por uma estradinha assim que caminhvamos. Ela existia, ento!... Desde

    sempre, e a qualquer momento, poderamos encontrar a jovem desfalecida e mais

    adiante, o campnio, cado com uma perna quebrada. A separ-los, um corao

    materno; a uni-los, alm da paixo, apenas uma longa estrada de terra. E era por ela

    que seguamos devagar, pois no tnhamos amadas a nos esperar de volta exigindo,

    quem sabe, relquias de Santiago como uma prova de nossa dedicao.

    Mas... isto uma amndoa! exclamou a mocinha do bar, assim que

    examinou o que lhe mostrvamos. Em seguida, levantou para ns um olhar que no

    conseguimos decifrar. E olhou, desamparada, para um cliente local que tambm

    estava junto ao balco. Assim como a amada que pedia, docemente, ao campnio o

  • 13

    corao de sua me, sentimos que ela tambm esperava, naturalmente, que ns

    conhecssemos uma amndoa ainda verde. Tempos depois, encontramos um

    homem que derrubava algumas coisas secas de uma rvore. Amndoas da estao

    passada, esclareceu-nos ele. Entusiasmados, derrubamos tambm. E ao quebrar,

    ansiosos, a casca reconhecemos, com um grande alvio, finalmente, a amndoa!...

    Ufa!... o mundo voltava a fazer sentido!

    Em Los Arcos, ficamos em um albergue privado anexo a uma padaria, onde

    um casal tomava conta de tudo. Eles foram criticados pela hospedeira do albergue

    municipal, uma belga voluntria, por reorientarem o trajeto para que o caminho

    passasse em frente ao seu estabelecimento. E tambm, por informarem aos

    cansados peregrinos, incorretamente, que o refgio pblico ainda ficava muito

    longe dali. Pernoite cobrado: 6,00.

  • 14

    6 dia 22/04/2002, segunda-feira

    LOS ARCOS LOGROO 27,9 km

    O jantar de domingo foi quase como que em famlia. Em uma das mesas

    organizadas pela hospedeira do albergue estvamos um casal italiano e uma amiga,

    a jovem sua, Idair e eu. Para comear, uma pequena dificuldade: onde havia um

    saca-rolhas? A jovem sua no titubeou: abriu a garrafa de vinho usando um

    canivete com saca-rolhas suo, naturalmente. As italianas falavam com grande

    entusiasmo de um produto brasileiro que chamavam de cuore di palma. Queriam

    saber detalhes da maravilhosa e inigualvel iguaria. Idair, que havia entendido o que

    elas queriam dizer, falou-lhes do palmito, de sua extrao predatria, da devastao

    das palmeiras, da ameaa de sua extino e tambm de seu atual replantio. Diante

    desta exposio elas declararam, enfaticamente, que no mais o consumiriam.

    Mas... isto um palmito! pensei, ao me dar conta de qual era o objeto de

    desejo das italianas. Embora parodiando, a minha primeira reao fora semelhante

    da moa das amndoas. Onde quer que estejamos trazemos o nosso conhecido

    mundo e acreditamos que ele seja evidente, por si s, a todos. No s acreditamos,

    mas queremos. E no s queremos, mas exigimos. Educadamente, se possvel.

    Idair agora andava cerca de dois quilos mais leve: despachara parte da

    bagagem para o correio de Santiago. A jovem brasileira parecia ter-se adaptado

    rapidamente ao esquema de albergues. Essa vida de estar em um lugar diferente a

    cada momento, de dormir em um beliche diferente, em um alojamento diferente,

    com pessoas diferentes a cada noite, comeava a mexer bastante com nossa rigidez

    de hbitos e com a noo das coisas todas em seus devidos lugares e tempos.

    Comevamos a ser, basicamente, movimentos.

    Havamos encontrado essa jovem em Azqueta, em companhia de Pepe e

    Eliane. Tinham acabado de sair da casa de Pablito, um personagem conhecido no

    caminho por presentear os peregrinos com cajados de sua confeco, alm de

    auxili-los de vrias maneiras. A jovem tinha sido atendida por ele por causa de uma

    dor no joelho. Ela contou que encontraram em sua casa dois suos que estavam

  • 15

    com as mochilas abarrotadas de mantimentos, pois tinham sido informados de que

    muita coisa no se achava no caminho. Aconselhados por Pablito, deixaram l parte

    de sua cesta bsica. Quando dissemos que um deles havia nascido no Equador, ela

    exclamou: Bem que achei estranho, um suo com uma cara to latina! Para no ter

    que recusar a oferta de um cajado, Idair e eu nem passamos na casa de Pablito, e

    seguimos todos juntos por algum tempo. Separamo-nos aps passar pela Fonte dos

    Mouros, nas proximidades de Villamayor de Monjardn. Ao conseguir sacar dinheiro

    em um banco em Los Arcos, aps uma complicada operao no sanitrio de um bar

    para retirar o carto magntico escondido sob a roupa neura de brasileiros de

    cidade grande ela exclamou, to contente quanto aliviada: Agora, sim, posso

    tomar uma coca-cola pelo caminho!

    Posteriormente essa jovem brasileira, cujo nome eu no soube, passaria a ser

    o centro de uma longa discusso epistolar com os italianos Giulio, Emilio e Aldo. Eles

    haviam conhecido uma jovem brasileira de nome Helena, de quem, alm da alegria e

    simpatia com as quais ficaram encantados, nada sabiam. Buscando na memria

    descries e impresses fugidias de algum que apenas encontramos de passagem,

    finalmente conclumos que Helena e a jovem brasileira poderiam ser a mesma

    pessoa. No satisfeitos, decretamos que elas deveriam ser uma s. Oficialmente,

    no havia como comprovarmos esta crena. Havia a vontade, apenas. Porm, ns

    tnhamos o caminho por testemunha. E para ns, peregrinos, era o que bastava!

    Deixamos a provncia de Navarra e entramos na de La Rioja. A partir de

    Pamplona caminhvamos atravs de extensos campos de trigo e cevada; e tambm,

    em meio a cultivos de uva e aspargo. Este ltimo era muito presente nos cardpios

    dos restaurantes. Em geral eles apresentavam um menu do peregrino, que consistia

    em uma relao de primeiro prato, segundo prato e sobremesa, para escolher um

    de cada. Para o 1 prato havia saladas, vagem, gro-de-bico, macarro, lentilha, sopa,

    etc.; em seguida vinha o 2, com carnes variadas, embutidos diversos, omeletes

    (tortillas), pescados, etc.; e a sobremesa, com pudim, iogurte, sorvete, etc. Inclua

    ainda uma garrafa de vinho, gua e po. Os preos em geral variavam de 7,00 a

    9,00, ou ainda mais. Mas, de qualquer modo, como se comia na Espanha!

    O albergue pblico de Logroo era grande e moderno, com disponibilidade

    de internet e pernoite a 3,00. Pepe e Eliane chegaram mais tarde e, aps o banho,

  • 16

    rememoravam o dia enquanto ele escrevia bastante. Anotaes para um livro? Idair

    e eu os observvamos do alto de uma sacada que dominava todo o ptio. Pelas

    respectivas localizaes no teriam como ouvir nossos comentrios, mas nesse

    exato momento eles voltaram o olhar para cima e acenaram para ns. Com um

    joelho inchado Pepe havia decidido, estoicamente, no mais misturar vinhos com

    anti-inflamatrios. Se a ameaa continuidade de seu caminho no fosse uma

    possibilidade to concreta, poderamos at imaginar que ele deixaria de tomar o

    segundo ou passaria a tom-los separadamente, tal a sua vontade em prosseguir

    rumo a Santiago.

  • 17

    7 dia 23/04/2002, tera-feira

    LOGROO AZOFRA 34,8 km

    Deixamos Logroo muito cedo por grandes avenidas, ainda sem maiores

    movimentos. Aps os bairros e a periferia industrial, passamos por um grande

    banhado chamado Pantano de la Grajera. Ali, algumas pessoas faziam sua corrida

    matinal tendo como percurso o asfalto por onde seguia o caminho. Prximo a

    Pamplona, tambm vimos pessoas fazendo suas caminhadas dirias em trechos do

    caminho. Haveria algo de especial nisso? Certamente eram apenas timos lugares

    para corrida ou caminhada, sem nada de muito etreo ou mstico. Eventualmente,

    ainda existia o inconveniente de um congestionamento de peregrinos na pista.

    Tambm ali, em um dos vrios bancos que ladeavam o caminho, cruzamos

    com Pepe e Eliane ocupados em passar um creme protetor. O amanhecer sugeria

    um dia de pleno sol, mais um belo dia para se caminhar. No entanto a expresso de

    Pepe, olhando em direo aos primeiros raios de sol, passou-nos uma impresso de

    certa apreenso mesclada a uma dose de confiana, temperada, porm, com uma

    pitada de resignao. Desejando-nos mutuamente um buen camino, despedimo-nos

    e seguimos adiante.

    Caminhamos, h dias, em altitudes que variavam entre 400m e 500m, com

    bastante calor pela tarde. Um descanso no gramado sombreado s margens do rio

    Njerilla, em Njera, aps mais um farto almoo, foi um grande momento! nossa

    esquerda, a bela Serra da Demanda. Naquela direo ficava San Milln de la Cogolla,

    onde foram encontrados os primeiros escritos em lngua castelhana.

    Em Azofra, encontramos o refgio paroquial lotado. Propuseram-nos a

    alternativa de dormir em colchonetes no cho, o que, educadamente, declinamos.

    Talvez como uma tentativa de seduo, citaram-nos nomes de vrios brasileiros que

    teriam assinado o livro do refgio, entre eles Baby Consuelo e, pelo que entendi,

    Srgio Reis. Optamos por ir para o albergue privado apesar das advertncias, por

    parte da inconformada hospedeira, de que o responsvel por aquele local era um

    demnio. E ela dizia, seguindo-nos at a rua, que s iramos perceber isso no dia

  • 18

    seguinte, ao acordarmos! Ficamos imaginando: ser que estaramos prestes a

    encontrar nosso vaticinado demnio no caminho? Ou chegamos a considerar

    teramos acabado de encontr-lo? Ou tudo isso seria apenas mais uma disputa pela

    preferncia dos peregrinos, como em Los Arcos?

    Roland, o demnio em questo, era um belga que percorrera o caminho de

    Santiago por uma dzia de vezes, uma das quais saindo de seu pas. A cada vez que

    chegava a Santiago e pensava em retornar vida normal, sentia as entranhas se

    retorcerem e retomava o caminho. E ainda continuava no caminho, agora cuidando

    de um albergue, lavando e cozinhando. E falando bastante. Conseguia manter

    conversas simultneas com vrios peregrinos, cada qual em seu idioma, enquanto

    provava um tempero aqui, abaixava o fogo ali e servia um prato acol.

    Quando Paulo Coelho esteve em trechos do caminho no ltimo vero,

    acompanhado por uma equipe de TV japonesa, ele lhe disse: Paulo, voc um

    grande mentiroso! E este teria respondido: , mas ganho muito dinheiro com isso!

    Contou tambm do brasileiro que morreu nos Pireneus no incio deste ano, cujo

    corpo s foi localizado com o degelo. Falou do desespero da esposa que percorria o

    caminho sua procura, indo e voltando, e do que lhe dissera uma vidente quando

    ela j no tinha mais a quem recorrer: Fugiu com uma loura! E em vez dos

    tradicionais carimbos dos albergues, ele colocava a sua impresso digital na

    credencial dos peregrinos. Preo do pernoite, com roupa lavada: 6,00.

    Ele tinha feito uma recomendao para que, sempre que fosse possvel, no

    caminhssemos pelo fino acostamento das rodovias. E apresentava uma descrio

    convincente dos acidentes com peregrinos: Dez mil pedaos!... Fgado, rins, mochila,

    ossos, crebro, corao, sangue... dez mil pedaos!... No andar de cima apresentava,

    com evidente orgulho, uma pequena sala especialmente reservada para repouso e

    pensamentos, coisas imprescindveis no caminho, segundo dizia.

    Uma peregrina nrdica declarava, entre colheradas e longas pausas, estar

    desencantada com Paulo Coelho. Respeitamos sua dor.

  • 19

    8 dia 24/04/2002, quarta-feira

    AZOFRA BELORADO 37,5 km

    O madrileno Miguel fazia o caminho pela terceira vez e andava, em mdia,

    cerca de cinquenta quilmetros por dia. Levava um cronmetro que acionava a cada

    parada ou retomada. Pretendia fazer todo o caminho em quinze dias. Em Santo

    Domingo de la Calzada, prximo catedral com o Sepulcro Santo, sempre passava

    em um convento para comprar uma espcie de bolinho de chuva com creme, to

    delicioso quanto enjoativo, medida que se comia, cada vez mais! Dizia que os

    adultos no aceitavam esse modo moderno de alimentao, motivo pelo qual as

    grandes redes de lanchonetes concentravam-se em cidades maiores, onde havia

    muito mais jovens. Talvez isto explicasse, em parte, o fato de no encontrarmos, a

    ponto de reparar, muitas pessoas gordas por onde passamos.

    Na sada da cidade, cruzamos o rio Oja pela ponte construda pelo santo de

    casa. Mais frente, beira do caminho, passamos pela Cruz dos Valentes. O que

    significava isto, assim, de repente? Ser que dos valentes de que falava Hector, uns

    duzentos quilmetros atrs, restou apenas uma cruz? Ou ser que eles seguiram

    adiante, penetrando mais alm nessa imensido, agora transmutados em insanos?

    Bem, de qualquer modo, deixamos La Rioja, dos extensos parreirais, e entramos na

    provncia de Burgos, onde reapareciam os infindveis campos de trigo e cevada.

    Um francs mostrou-se muito espantado quando eu disse que era brasileiro.

    Foi minha vez de me espantar com seu espanto. Ento, de repente, percebi a minha

    situao: eu, ali, at prova em contrrio, era um japons; e Idair, um alemo,

    embora brasileiro, gacho e descendente de italianos. Os alemes passavam e

    saudavam-no em alemo ou coisa parecida. Sim, ramos um alemo e um japons,

    embora fssemos tambm, secretamente, dois brasileiros, e todos a caminho de

    Santiago! Bem, assim como todo mundo, do mundo todo. Em Belorado, albergue

    privado, o mais caro at aqui: 7,00.

    Ao passarmos por uma vila no meio da tarde, Miguel, deitado em um banco

    sob uma rvore na praa, terminava seu descanso. Acordados ali, ramos apenas os

  • 20

    trs, pelo que pudemos perceber. Subitamente um caminho chegou, parou e

    buzinou com estardalhao. Um homem e uma mulher desceram e abriram a lateral

    do ba, que logo foi transformado em uma banca completa de secos e molhados,

    frutas e legumes. E tudo voltou ao espesso silncio de instantes atrs. Ficamos

    olhando, expectantes, sentindo o tempo escorrer como que por uma ampulheta

    deformada. Idair murmurou: De qual janela voc acha que sair o primeiro tiro?

    Percorri lentamente o olhar pelas janelas visveis, invisveis interiores, e conseguia

    apenas imaginar penumbras, calor e silncio. Aqui fora, apenas luminosidade, calor

    e silncio. At o tempo seguia mais devagar, como que em respeito ao calor. O

    silncio foi novamente suspenso pela partida do caminho. Idair saiu em seguida.

    Dizendo apenas que as pernas doam, Miguel passou por mim e seguiu. Por sua vez

    o calor no ia embora, continuava. E no calor da praa daquele pueblo, ficamos o

    silncio e eu. Depois, apenas o silncio.

  • 21

    9 dia 25/04/2002, quinta-feira

    BELORADO BURGOS 51,6 km

    A jornada deste dia cobriu cerca de quatro quilmetros a menos que o

    indicado acima, que a distncia at o albergue, na sada de Burgos. Paramos

    entrada da cidade, j depois de 20h, bastante cansados e ficamos em um hostal

    (hotel mais barato), a 33,00 o apartamento duplo. Apelamos para um pedido de

    pizza por telefone, sem coragem para caminhar mais. Mas ainda tivemos foras

    para concluir que as nossas eram bem melhores!

    Algumas horas antes havamos feito um substancial almoo em vez de tomar

    a famosa sopa de alho de San Juan de Ortega. Ao lado do restaurante, a igreja em

    reformas atraa um grande grupo de peregrinos franceses. O que sobrou do jamn,

    chorizo, morcilla, salchichn e huevo no prato de Idair, juntamente com um pedao

    de po, demos para um cachorrinho que estava amarrado perto da fonte. Devorou

    tudo num instante, e ficamos imaginando se ele teria feito o mesmo se fosse a to

    decantada sopa de alho! Segui adiante enquanto Idair se deitava em um banco sob

    uma rvore para se recuperar da dura refrega no restaurante. Mais tarde, aps

    ultrapassar uma serra perto de onde foram encontrados restos do Homem de

    Atapuerca, considerado por alguns como o vestgio mais antigo do Homo sapiens na

    Europa, entrei em um bar num povoado j prximo a Burgos. Ali esperei, confiante

    em que Idair j estava me alcanando e que deveria entrar naquele bar. No deu

    outra!... Algumas caras tradies no caminho pareciam ser mantidas infalivelmente

    por todos os peregrinos.

    Talvez o olhar desamparado em um rosto quase imberbe tenha sido decisivo

    para que ele fosse adotado. Assim, o jovem brasileiro transformou-se em mascote

    de uma legio estrangeira de peregrinos. Seu caminho e sofrimento tiveram incio

    ao mesmo tempo, subindo os Pireneus. Gordinho e fumante, pensou em desistir.

    Aps um demorado descanso, resolveu seguir mais um pouco. Mais um descanso,

    mais um pouco. E assim foi, desafiando. At o momento em que pensou que fosse

    morrer. Deitou-se, esperando. Mas no morreu, contrariando at mesmo suas

  • 22

    expectativas. Dobrou a serra, dobrou os Pireneus. O cigarro ficara pelo caminho.

    Aquele que desceu a montanha j no era mais o que subira, embora ele, por certo,

    ainda no soubesse disso. Continuou a sofrer pelo caminho, todos os dias. E agora,

    olhando para pessoas com o triplo de sua idade, exclamava, perplexo: Mas, para

    que tanta pressa?...

    Os brasileiros estavam no caminho. Tnhamos encontrado, em mdia, quase

    um por dia. Sem contar os que no eram identificados, que iam deixando sinais por

    onde passavam. A hospedeira em Los Arcos soube que Idair era brasileiro pela

    marca da camiseta que usava. Em um bar, onde havia um varal com cdulas de

    vrios pases, vimos uma recm-lanada nota de dois reais. Ainda viramos a saber

    de um brasileiro e uma brasileira que eram hospedeiros no caminho, em Ventosa e

    Burgos. Quando ultrapassamos um pequeno grupo, cumprimentando de passagem,

    ouvimos, s costas, uma voz feminina: Esse hola parece de brasileiro! Sim, claro! Ali

    ramos todos brasileiros, at onde a vista alcanava!

    minha frente, logo pela manh, caminhavam vrias pessoas, uma das quais

    um peregrino bem gordo. Seguia devagar, com dois bastes de esqui a marcar-lhe

    os passos. medida que as pessoas o ultrapassavam, ele as cumprimentava

    alegremente, erguendo os bastes at o alto e fazendo seguidas e exageradas

    vnias. Quando cheguei a seu lado, sua postura no foi diferente. Apenas a minha

    reao que diferiu da dos demais peregrinos: condi (quando olho), fiquei

    chocado! No apenas pelo inesperado nariz de palhao que fazia saltar frente,

    esticando o elstico ao saudar. que reconhecera nele o holands tranquilo, com

    quem estivera conversando no bar na noite anterior. Dissera que por causa do

    excesso de peso fazia apenas pequenos trechos a cada dia. Embora esse fato

    pudesse parecer uma coisa negativa, o longo tempo que levaria para chegar a

    Santiago era para ele uma preciosidade, pois assim podia sentir em toda a extenso

    a grandiosidade do caminho. E ficara a olhar, pensativo, talvez para Santiago, talvez

    para mais alm.

    Perplexo, segui adiante. Procurava um nexo entre este caminhante do dia e

    aquele contemplativo da noite. O adereo de palhao poderia ter sido utilizado, de

    incio, apenas como um protetor solar para o nariz. A reao das pessoas que

    poderia ter levado, gradualmente, a uma modificao do significado do objeto. Ao

  • 23

    contrapor-se aos peregrinos durante o dia tanto fsica quanto, digamos,

    existencialmente, ele talvez fizesse a sua real peregrinao durante o repouso,

    como intura Roland. E como teria sido seu encontro com um caminhante como

    Miguel, se que o caminho, generosamente, permitiu algo assim? Teriam se olhado

    mutuamente e, por meio dos reflexos de um espelho deformador e revelador,

    conseguido ver seus respectivos caminhos e propsitos? Do alto de um pequeno

    morro, antes de comear a descer, olhei para trs: l vinha ele, l embaixo, passo a

    passo, lentamente, saudando alegremente, determinado a chegar um dia a Santiago

    de Compostela. Buen camino, companheiro!

    O joelho direito incomodou um pouco pela manh, mas depois ficou bom.

    Havia comeado a doer na vspera do incio do caminho, ainda no aeroporto de

    Madrid, sem qualquer motivo aparente e perturbou por dois dias. Depois, a dor

    pulou para o joelho esquerdo por um dia e sumiu. O tornozelo esquerdo doeu um

    pouco no segundo dia, mas j quase no incomodava. Com o passar dos dias as

    dores iam se revezando e se ajeitando. Nenhuma bolha nos ps, por enquanto.

    Havia uma barriga no meio do caminho. Para se visitar uma capela no alto de

    um morro, havia a opo de um percurso adicional. Idair disse que poderamos

    receber uma indulgncia, caso fizssemos o desvio. Perguntei como era isso. Disse

    que, conforme um livro que havia lido, e segundo entendi, no princpio no existia o

    Purgatrio. Ao morrer, cada um ia para o Cu ou para o Inferno, sem escalas. Em

    algum momento da Idade Mdia fez-se a luz e o Purgatrio foi criado. Com isso,

    aqueles que tivessem dvidas quanto ao seu futuro poderiam, preventivamente,

    praticar atos meritrios pelos quais receberiam indulgncias. Estas teriam peso

    decisivo na hora da transferncia, do Purgatrio para o destino eterno. A criao do

    Purgatrio resultou em um incremento extraordinrio na doao de bens para a

    Igreja, em troca de indulgncias. Aps algumas consideraes, conclumos que

    ainda no havamos praticado nenhum ato meritrio no caminho. E naquele calor

    olhamos, novamente, para a capela, l no alto do morro. Entreolhamo-nos: ficamos

    sem as indulgncias.

  • 24

    10 dia 26/04/2002, sexta-feira

    BURGOS HONTANAS 29 km

    Os quatro quilmetros que faltaram no dia anterior se somavam aos vinte e

    nove desta jornada.

    Ainda pela manh, em Burgos, a viso de um homem vestido com jeans e de

    tnis, encostado em uma parede de uma rua estreita e deserta, transportou-me,

    instantaneamente, para a cidade de Arequipa, no Peru. Uma tarde de domingo, um

    homem vestido com jeans e de tnis, encostado em uma parede de uma rua estreita

    e deserta. De repente, ele passou correndo pela outra calada e parou na prxima

    esquina. Olhei para trs e vi, na outra esquina, aparecer outro homem. Entre eles,

    no meio da quadra, na rua deserta, apenas eu. O providencial aparecimento de um

    txi tirou-me daquela situao que comeava a me deixar apreensivo. Um amigo j

    havia sido assaltado na vspera. Na delegacia, o policial descreveu antecipadamente

    a cena que teria ocorrido. Diante da confirmao, ele exclamou, como que aliviado,

    a nos tranquilizar: Ah, esses so conhecidos! Sim!... velhos conhecidos! Desde

    ento, ao recordar aquela cidade que Mario Vargas Llosa tanto amava, plantada

    junto ao belo vulco Misti, ela sempre me aparecia como A cidade dos Ladres, sem

    qualquer referncia ao seu livro A Cidade e os Cachorros. Porm, no devia ser esse o

    caso aqui no caminho de Santiago, onde atravessvamos cidades, tneis, pontes e

    extensos pramos sem a menor preocupao quanto segurana. Teria sido,

    certamente, apenas uma associao momentnea de imagens de mundos e tempos

    distantes. Queria acreditar nisso, mesmo porque no poderia contar com um

    providencial aparecimento de um heri como El Cid, de txi ou a cavalo. Por certo,

    ele no deixaria seu repouso na catedral gtica de Burgos, logo adiante, apenas

    para vir em socorro de um peregrino de um futuro longnquo.

    Em Rab de las Calzadas, a hospedeira Mariv preparou-nos um providencial

    e belo lanche. Nada cobrou, o albergue apenas aceitava donativos. Ao contrrio de

    Roland, ela era daqui mesmo e nunca fizera o caminho, mas tambm se dedicava a

    acolher e a alimentar os peregrinos. Existiam pessoas que estavam a caminho de

  • 25

    Santiago e havia aquelas que estavam no caminho. No se confundiam, embora

    umas pudessem ser as outras em algum momento da vida. Os peregrinos que se

    entregavam aos cuidados dessas pessoas aproximavam-se um pouco mais do

    caminho. Por outro lado, essas mesmas pessoas tornavam-se um pouco mais parte

    do caminho a cada peregrino. Mariv, por certo, no sentiria necessidade de, um dia,

    pr-se a caminho de Santiago.

    Por algum motivo, estvamos no caminho. Embora aparentemente iguais,

    cada novo dia trazia a sua prpria magia. Inicivamos a jornada animados, dispostos

    a enfrentar o desconhecido. Seguamos bem atentos a todos os detalhes, que

    comeavam a ganhar nitidez com o alvorecer pleno. Os primeiros raios de sol

    mostravam-nos toda a beleza do dia que nos aguardava. Aps algumas horas, a luz

    solar j batia bem mais de cima. Parecia achatar todas as coisas, suavizando os

    ngulos que antes, como agulhas, mantinham-nos bem despertos. Aos poucos, sem

    perceber, entrvamos em um estado em que o mundo exterior j quase no nos

    alcanava. As perspectivas tornavam-se alongadas e prosseguamos como que

    deslizando naquela paisagem harmoniosa, sem salincias contundentes. E assim

    seguamos, sem sobressaltos, com nossa percepo misturada a tudo. E tudo

    parecia permear nossa calma, e deixvamos de ser apenas aquele um que

    caminhava. ramos, agora, tudo. E quando sentamos que aquilo que nos aquecia e

    animava, aos poucos, se desmanchava e tornava-se visvel, percebamos que o sol j

    estava bem nossa frente, que estvamos chegando ao destino, que o dia ia

    chegando ao final. Passageiros circunstanciais deste planeta, agradecamos por

    mais um de seus dias. Agora, s amanh. Sim, amanh seria um novo dia. E uma

    nova magia.

    Continuava o calor. Emilio e Aldo contavam que havia neve no ano anterior,

    quando passaram por aqui nesta mesma poca. Aqui, conhecemos Jos Lus e

    Fernando, espanhis de vila que, no ano passado, fizeram o caminho Aragons at

    Puente la Reina. Dali retomaram, neste ano, para chegarem a Santiago. Muitos

    espanhis faziam o caminho por etapas, alguns levando vrios anos para chegar l.

    No livro de registros do albergue de Puente la Reina havia um testemunho de uma

    jovem de nove anos de idade, de nome Ana, em que ela dizia que havia caminhado

    com seus pais, de Cizur at ali. E contava tambm que tinha gostado muito e se

  • 26

    cansado bastante; e que no ano que vem voltaria para continuar a peregrinao. E

    terminava seu recado desejando um buen camino a todos. Duas brasileiras diziam

    que encontraram aqui o primeiro banho quente, e tambm que conheceram um

    alemo que teve a mochila roubada perto de Pamplona. O caminho era o mesmo;

    nossas histrias, bem diferentes. Albergue cobrado: 3,00.

  • 27

    11 dia 27/04/2002, sbado

    HONTANAS FRMISTA 34,6 km

    Iniciamos a jornada cautelosos mas animados com o inesperado e bem-vindo

    frio da manh. Idair andava s voltas com bolhas que ameaavam latejar; eu, com o

    tornozelo esquerdo um pouco inchado. E com o aparecimento de minha primeira

    bolha, surgia a primeira dvida: chegaramos a p a Santiago?

    Peregrinos costumavam chegar a seus destinos andando. Ou, pelo menos,

    esperava-se que assim fosse. Talvez por isso mesmo um francs tenha nos chamado

    de os verdadeiros peregrinos, ontem, quando chegamos a Hontanas. Ele integrava

    um grupo de turistas franceses que fazia uma excurso para Santiago dentro de um

    confortvel nibus. O programa previa breves paradas em locais com vestgios da

    histria do caminho, tais como runas de conventos e de antigos hospitais de

    peregrinos. Era o caso aqui de Hontanas, para onde voltavam de uma pequena

    caminhada quando os alcanamos entrada da vila. E j estavam de partida, pois

    ainda teriam alguns outros locais para visitar antes de pernoitar em Len. Quando vi

    no mapa onde ficava essa cidade, fiquei embasbacado: ainda levaramos uns quatro

    ou cinco dias para chegar l! E quando chegssemos a Len eles j teriam passado

    por Santiago e talvez at estivessem de volta a suas casas. Esse nosso encontro

    aconteceu de passagem, mas era como se fosse uma colagem de histrias de outros

    tempos, de outros personagens, de outros caminhos, de outros mundos.

    Trigais esparramavam-se em volta do nico morro ali presente, em cujo topo

    estavam as runas do castelo de Castrojeriz. A caminhada pela planura, em sua

    direo, lembrou-me o morro do Almejado no final dos gerais, na travessia da

    Chapada Diamantina, na Bahia. Ento, de repente, a suspeita, a absurda ideia: ser

    que na Idade Mdia existiam tambm cores e movimentos, como neste momento?

    Eu sempre a havia imaginado em cmera lenta e cinzenta, um tempo em que tudo

    se arrastava num mundo sem cor. Este vento que agora abria o tempo fazia o azul

    do cu e o verde-trigo da terra brilharem sem parar. Um dia qualquer, visto do alto

    daquele castelo, poderia ter sido exatamente assim? Tudo isto aqui estaria l? Tal dia

  • 28

    da Idade Mdia, certamente, s no teria a nossa presena.

    Em Castrojeriz, o dono do bar trocou imediatamente a fita de som ao saber

    que ramos dois brasileiros. Como quem procurava demonstrar conhecimentos e

    intimidade com o que era de nossa terra, perguntou-nos se ramos da capital de

    So Paulo ou de alguma cidade da regio do ABC. Msica Popular Brasileira no ar,

    um jornal de So Paulo na parede, um broche com nossa bandeira no peito da

    garonete. Mas o que era aquilo? Aonde viemos parar? Porm, logo descobrimos a

    razo de tanta ateno: em um lugar de honra na parede havia uma foto do patro

    abraado com Paulo Coelho, tirada em frente ao bar. E com que sorriso!

    pau, pedra, o fim do caminho... A voz de Elis Regina surgiu ali, naquele

    fim de mundo, exatamente como sempre me alcanava nas interminveis horas

    espera de mais uma carona nas estradas de Minas, em direo Bahia [guas de

    Maro, de Tom Jobim]. um belo horizonte, uma febre ter... Uma febre de

    outros sculos. O paraso de ento era outro, os caminhos eram outros, outros os

    sonhos, outros os viajantes. E um mundo que estava diludo em nvoas h quase

    trs dcadas voltou, inesperadamente, concentrado em uma msica. Ento, os

    tempos de uma vida em movimento estavam de volta!... E em que pesem todas as

    evidncias em contrrio, a viagem no havia terminado. Sim, claro: pau, pedra,

    mas no havia mais o fim do caminho!

    Deixamos a provncia de Burgos e entramos na de Palencia com muito calor.

    Em Itero de la Vega, uma moa de uma venda nos segredou: aqui so nove meses

    de inverno e trs de inferno! Eu no tinha nem coragem de me imaginar aqui no

    vero. Em Frmista, ficamos no albergue municipal, muito bom, a 3,00. Da janela

    do dormitrio, j escuro, tentamos fotografar a imponente igreja de San Martn de

    Frmista, do sculo XI. Logo mais j estvamos dormindo, cansados, sem a mnima

    ideia de como sairia aquela fotografia.

  • 29

    12 dia 28/04/2002, domingo

    FRMISTA CALZADILLA DE LA CUEZA 36,4 km

    Atingimos metade dos cerca de um milho de passos estimados por Idair at

    Santiago de Compostela. Chegaramos ao sonho milionrio, finalmente, ao primeiro

    milho? O dia amanheceu nublado, limpou depois de 10h e soprou um vento frio que

    ficou quente tarde.

    Ao amanhecer, vrios pares de olhos miravam-no atravs do espelho. Mas,

    apesar da presso exercida por aqueles olhares acabados de despertar, espera

    para lavar o rosto e escovar os dentes, o ciclista francs tinha os olhos apenas para

    a sua imagem. Com leves meneios de cabea certificava-se de que o creme estava

    bem passado no rosto e, calmamente, prosseguia. Transformava o banheiro do

    albergue em um camarim particular, aprontando-se para o espetculo de mais um

    dia no caminho. Quando se dava por satisfeito com aquele creme, passava para o

    pote seguinte, em metdico ritual. Observei que ele era o mesmo com quem Idair,

    na noite anterior, quase se desentendera ao se preparar para o banho. Lembrei-me

    do que dissera uma hospedeira, dias atrs, com a experincia de quem lidava com

    peregrinos de todas as partes do mundo: Certamente, nem todos os franceses so

    antipticos; mas, seguramente, quase todos o so!

    Aps Carrin de los Condes percorremos um trecho reto e plano por mais de

    doze quilmetros, com forte vento frontal. Era como estar, de corpo presente,

    naqueles pesadelos em que caminhamos por horas e horas e no conseguimos sair

    do lugar. E quando j acreditvamos que aquele mundo no tinha mais fim vimos

    aparecer, subitamente, exatamente do meio do nada, uma igreja, a partir de sua

    torre. Ento, nossa alma se rejubilou e agradecemos sinceramente pela sua eterna

    presena em todo o caminho, onde ela, invariavelmente, parecia ser muito maior

    que seus povoados.

    Depois que o ciclista francs desapareceu na estrada voltei a ateno para

    aquele outro, o que nos chamara de verdadeiros peregrinos. A maneira como ele o

    tinha dito a seus companheiros parecia demonstrar deferncia e ao mesmo tempo

  • 30

    certo desconforto por seu conforto no nibus. Claro estava que, embora indo para

    Santiago, ele no se via como um peregrino. Talvez esse peregrino constasse do

    programa da viagem como uma atrao a mais, podendo ser visto em seu habitat

    em alguns trechos do caminho. Talvez por isso ele tenha nos visto assim. Mas quem

    seriam os verdadeiros peregrinos, se que se podia dizer algo assim? No, prezado

    senhor: ramos apenas peregrinos, dentre tantos outros, a caminho de Santiago.

    Nessa aridez, em que atravessvamos crregos chamados Pozo Amargo e Rio

    Seco, agarrvamo-nos promessa de matas quando chegssemos Galcia. Na

    primeira metade do caminho, se elas um dia existiram, j no estavam mais por ali.

    De Pamplona para c restaram apenas campos de cultivo, reflorestamentos tmidos

    e capoeiras. Nada que lembrasse a exuberncia de uma diversidade. E na solido de

    uma tarde que parecia mais vazia que a de um domingo sem futebol, um pastor de

    ovelhas aproximou-se quando paramos em uma rea de descanso, que continha

    uma mesa e dois bancos de concreto, no meio do vazio. Procurava um pouco de

    companhia humana, algo mais que balidos em meio a um vento interminvel. Dizia

    que, embora no sendo um peregrino, tambm caminhava bastante, todas as horas

    do dia, todos os dias da vida. Era conduzido pelos animais que andavam por muitos

    lugares em busca de comida, de um pouco de capim que estivesse mais apetitoso.

    No reclamava, pois sabia que eles conheciam o que deviam procurar. Quando iam

    para longe, mais longe era a volta para casa. Via muitos peregrinos passando,

    caminhando para l. Alguns poucos faziam o caminho ao contrrio. Mas sempre em

    uma nica e mesma reta, no eram como as ovelhas que andavam em crculos e iam

    conhecendo todos os lugares em volta. O mundo que existia ao lado do caminho

    pouco importava para os peregrinos, que tinham um sonho marcado em um lugar

    marcado. As ovelhas, no. Elas tinham um objetivo que era a comida, mas o lugar

    podia ser o mundo inteiro, uma pastagem sem fim! E quem poderia ser mais livre,

    neste mundo de Deus? As indagaes do pastor viajavam pelo vento sem limites.

    Quando nos voltamos para olhar na direo dos ventos, vimos apenas um silncio

    tremulante seguindo atrs de suas palavras.

    Se o vento reinava no descampado l fora, dentro do bar havia apenas um ar

    paralisado, cheio de fumaa de cigarros e de cheiros misturados com os de bebidas

    afins. No final de tarde de domingo os homens se reuniam para beber, fumar e

  • 31

    jogar. Para ns que vnhamos de um dia inteiro de ventos aquilo parecia uma

    bonana momentnea. Mulheres e crianas pequenas tambm frequentavam os

    bares e restaurantes no perodo da noite. Apenas as crianas pareciam no fumar

    ativamente. Giulio perguntou ao homem do bar quem havia vencido a corrida

    daquele dia. Antes de qualquer resposta, Emilio j declarava: Ferrari, claro!...

    Depois, voltamos para o vento e deste para o albergue privado, onde pagamos

    4,00 pelo pernoite.

  • 32

    13 dia 29/04/2002, segunda-feira

    CALZADILLA DE LA CUEZA EL BURGO RANEROS 40,2 km

    Deixamos a provncia de Palencia e entramos em Len ao nos aproximarmos

    de Sahagn. Aumentavam as pichaes de Len Solo, pelo visto, uma reivindicao

    de desmembramento da Comunidad de Castilla y Len, mas sem a fora de uma

    identidade cultural prpria, como a dos bascos. Para ns soava incompreensvel

    uma miscelnea de nomes como Principado, Pas, Regin, Comunidad Autnoma,

    tudo isso dentro de um mesmo pas, tal como o conhecemos, e que tinha como

    idiomas o espanhol, o catalo, o basco e o galego, sendo que o primeiro o oficial

    em todo o pas e os outros so tambm oficiais em suas respectivas regies.

    Minha bolha comeava a reabsorver por si, sem necessidade de perfurao.

    Idair decidiu passar em uma clnica em Sahagn que prometia aliviar os ps dos

    peregrinos, conforme anncios colocados em alguns albergues anteriores. Mas,

    infelizmente, o especialista no estava, tinha viajado para Londres, estava para l do

    Canal da Mancha. Nada havia a fazer, assim como no sbado, em Castrojeriz,

    quando o posto da rede pblica de sade estava fechado. O caminho parecia indicar

    que devamos prosseguir assim mesmo.

    Alm de postos e clnicas existiam pessoas ao longo do caminho que se

    dispunham a aliviar as sofridas pernas dos peregrinos com massagens, preparados

    caseiros e energizaes. Em um bar havia um homem e uma mulher sentados de

    frente um para o outro. Olhos fechados, concentrados, ela com um joelho mostra,

    silncio total no ambiente. Em algumas mesas, alguns peregrinos observavam. No

    balco, ningum para atender. Como no tnhamos ideia de quanto tempo aquilo ia

    demorar, samos para procurar lanche em outro lugar. Como aquele comerciante

    perdia-nos como clientes, desejamos que ele ao menos fosse bem sucedido em sua

    tentativa de ajudar uma peregrina necessitada de cuidados. Tais pessoas estavam

    em muitos lugares, at mesmo em precrias barracas montadas sombra de uma

    rvore, em alguma curva do caminho. Como atestado da eficcia de seus prstimos

    exibiam fotografias e cartas de agradecimento de peregrinos de todo o planeta. E

  • 33

    havia aquelas que se ofereciam para ajudar os peregrinos em sua busca, qualquer

    que fosse ela. Aps meticulosa anlise da carga, aconselhavam o desapego a coisas

    desnecessrias, absolutamente inteis no caminho. O agradecido peregrino, ento,

    refazia a sua mochila e prosseguia mais leve e por que no? mais feliz!

    Quem certamente carregava uma mochila bem mais leve que a habitual era

    um jovem calado que encontrei em um albergue. Pensei que ele fosse um espanhol,

    o que pareceu de certo modo agrad-lo, pois isso lhe indicava que conseguia falar

    bem o idioma de seus pais cubanos, embora tivesse nascido nos Estados Unidos.

    Tornou-se bem mais aberto. Contou que chegara a ter vrios amigos brasileiros,

    descendentes de japoneses, em Tquio, onde estivera durante alguns anos. Estava

    sendo transferido para a Amrica, e aproveitava o tempo de folga para peregrinar.

    O caminho de Santiago era apenas uma etapa de uma viagem que o levava de um

    lado para o outro do mundo. E por fim revelou ser integrante da US Navy, a marinha

    de guerra norte-americana.

    Idair achava que estabeleceria um recorde pessoal de tempo sem andar de

    carro; eu, seguramente, o de ficar sem comer arroz. Chegamos tarde e encontramos

    o refgio lotado. O hospedeiro disse que poderamos nos instalar no salo se

    tivssemos um isolante trmico ou um colchonete, o que no era o caso. Ficamos

    em um hostal em frente, pagando 30,00. Da janela do quarto abria-se uma vista

    panormica de filme do velho oeste, com uma pradaria marrom sem fim. A mulher

    encarregada da hospedagem era tambm responsvel pela cozinha do restaurante.

    Sentimos, atravs dela, toda a extraordinria fora das palavras ao descrever os

    alimentos. Auxiliada no s pelos olhos, mas pelas mos, braos e tambm pelo

    robusto corpo ela apresentava maravilhosas e detalhadas descries das opes

    que tnhamos para o jantar. Antegozvamos, com volpia, tal gape. A longa espera

    apenas fazia com que imaginssemos os toques mgicos que ela estaria dando na

    comida, o que tornava nossa expectativa ainda maior. A refeio que finalmente

    nos foi servida realmente trazia impregnada, em cada um de seus detalhes, as suas

    timas vibraes. E havia ainda a sobremesa, que ela ofereceu sedutoramente aps

    retirar meticulosamente todos os pratos e talheres. Porm, bem mais que o sabor

    trivial do jantar daquela prometida noite recordamos, durante longo tempo e vastos

    quilmetros, o brilho dos olhos daquela alquimista do prazer de comer!

  • 34

    14 dia 30/04/2002, tera-feira

    EL BURGO RANEROS LEN 37,1 km

    Sequncia de longas jornadas. nossa direita, longe ao norte, a Cordilheira

    Cantbrica, a nica manifestao visvel no horizonte de um plano sem fim. amos

    acompanhando, distncia, uma linha frrea que no sabamos de onde vinha e que

    seguia conosco para oeste. Comecei a viajar com a imagem de Ana Pacha, a Ana-

    No de Agustin Gomez-Arcos, que seguia a p pelas estradas de ferro do pas, desde

    a Andaluca at o norte, em busca do filho que lhe restava, prisioneiro poltico havia

    trinta anos. Seu marido e dois outros filhos tinham sido mortos durante a guerra

    civil espanhola: ficara sem Pedro, sem Jos, sem Joo. Para seu sobrevivente, dito o

    menino, levava um po de amndoas, untado de azeite, com gosto de anis e bastante

    acar (um bolo, diria ela). Ao cruzar os trilhos, antes de Mansilla de las Mulas, olhei

    para os dois lados sem pontas, mas no vi Ana-No. Ah, no, claro estava que no!...

    Ela seguia em direo ao norte, no em busca do sepulcro de mais um apstolo,

    mas de Jesus, o seu ltimo filho.

    Apesar da crena geral de que a mochila ia pesando cada vez mais, a minha

    parecia pesar menos nos ltimos dias: s esperava no estar esquecendo coisas

    pelo caminho. Pesava por volta de sete quilos, variando com a gua e a comida de

    momento. Podia parecer pouco, mas era como se um dia algum acordasse sete

    quilos mais pesado e passasse, a partir daquele instante, a caminhar por muitas

    horas durante muitos dias. Desequilibrava bastante. E pelo que pude observar em

    centenas de peregrinos a minha devia ser uma das menores e talvez das mais leves.

    Alguns apontavam para minha mochila e exclamavam: mochila pequea!, ou small

    bag!, ou ainda, petit sac dos! Porm, para eventual prxima vez, acho que seria

    bom fazer alguns treinos com variaes de peso e tempo. Quanto aos calados,

    muitos carregavam dois outros pares, geralmente um de tnis para alternar e

    chinelos para o banho. Idair caminhava apenas de sandlias; eu, apenas de tnis; e a

    quase totalidade dos peregrinos, de botas. Lavvamos diariamente as roupas, o que

    nos permitiria caminhar apenas com mais um conjunto para troca, mas trazamos

  • 35

    dois outros. Tinha sido mais por desconhecimento do que por precauo, soubemos

    durante o caminho.

    Costumvamos caminhar, aps os primeiros dias, cada qual em seu ritmo.

    Encontrvamo-nos em bares, restaurantes ou mesmo nos albergues, ao final do dia.

    Fazamos tambm longos percursos e jornadas inteiras caminhando juntos. Em uma

    ocasio vislumbrei, ao longe, um ponto ao lado da estrada. Ao me aproximar,

    percebi que era Idair. Estava sentado, concentrado, escrevendo em um bloco de

    notas. Muitas vezes, o caminhar solitrio proporcionava-nos momentos que de

    alguma forma queramos capturar, mesmo que tudo aquilo pudesse parecer uma

    insanidade total. Ou, sbita e terrivelmente, o contrrio. Passei direto e segui. L

    adiante, olhei para trs: o vulto, novamente quase um ponto, continuava l. Talvez

    ele continuasse a planar por sobre aqueles moinhos de vento transformados em

    gigantes. Ou, quem sabe, at um pouco mais alm. Conseguiria ele transmitir aos

    outros, agora ou depois, uma ideia ou mesmo uma plida imagem de sua viagem?

    Talvez ele tentasse, talvez por senti-la to aambarcante quanto cristalina. Mas esta

    jornada, por solitria, devia permitir apenas a cada um, por si, fazer a sua. Por onde

    ele andava agora, nunca saberamos. Ele apenas parecia estar ali, do lado de fora de

    si mesmo, ao lado dessa estrada. A estrada tambm parecia estar ali, por onde

    pareciam caminhar os corpos que ns tnhamos. Sim, ns temos o corpo! assim

    comeava Edgar Cayce as suas leituras de vidas. Por meio desse corpo, e s assim,

    ele alcanava o esprito em suas muitas moradas atravs dos tempos. Podia, assim,

    acompanhar suas diversas manifestaes, nos diversos corpos. De maneira similar,

    esta longa estrada por onde caminhavam os corpos de milhares de peregrinos podia

    levar-nos, medida que prosseguamos, subitamente, ao prprio Caminho. Sim,

    devamos estar a caminho do Caminho, embora eu apenas parecesse estar aqui,

    parado, olhando para Idair, que apenas parecia estar sentado beira da estrada,

    que apenas parecia no ter fim.

    Pelo que pudemos observar desde a entrada, Len parecia ser uma cidade

    grande e moderna. Apesar disso sem muito estresse, a julgar por um cartaz de uma

    loja que anunciava, de modo eloquente, a proeza de trocar as quatro rodas de um

    carro em menos de uma hora! Chegamos bastante cansados ao albergue municipal,

    que felizmente era muito reconfortante. Com instalaes modernas, notadamente

  • 36

    os banheiros, acolhia democraticamente peregrinos de Santiago e alberguistas do

    Hostelling International, o Albergue da Juventude. Nas portas dos aposentos, em

    belos cartazes, os seus respectivos smbolos: a vieira de Santiago e a cabana com o

    pinheirinho. Pernoite para peregrinos: 3,00. Encontramos novamente os trs

    italianos, que proclamavam animadamente: Amanh, ao Hospital!

  • 37

    15 dia 01/05/2002, quarta-feira

    LEN HOSPITAL DE RBIGO 35,7 km

    Amanheceu muito frio e com vento forte: cara de chuva, diziam alguns no

    albergue. Mas acabou sendo uma boa jornada a de hoje, em que eu caminhava com

    gosto e comeava a pensar na possibilidade de seguir at Finisterre, aps chegar a

    Santiago, o que levaria mais uns trs ou quatro dias, e depois tomar o caminho

    Portugus. Iria pensando nisso enquanto caminhava.

    O bilhete, em ingls, dizia para tomar cuidado com cobras, at onde entendi.

    Escrito com letra firme e clara, estava pendurado, a meio metro do cho, nos ramos

    finos de um galho cado no caminho. A estrada de terra, larga, aberta dos lados,

    duas poas de gua, o galho, o bilhete e eu. De cima, uma calidez solar. Onde, a

    serpente? Fiquei parado, sentindo uma incongruncia entre o plcido arranjo dos

    elementos ali dispostos e a periculosidade de uma cobra. Imaginei que para o autor

    do esmerado bilhete havia apenas uma cobra no meio do caminho. Mais tarde, ao

    comentar com Idair, ele confirmou que o bilhete, na realidade, dizia que a pessoa

    havia sido picada por uma cobra.

    Apareciam montanhas frente e, aps duas semanas, cumes nevados. Esse

    frio devia aumentar nos prximos dias, ao subirmos a uma altitude de 1.500m,

    deixando a planura dos 800m. Idair e os italianos estavam no albergue municipal,

    moderno e afastado do centro. Desde Puente la Reina, tem sido sempre uma alegria

    encontrarmos Giulio, Emilio e Aldo em vrios finais de jornada. Cheguei mais tarde e

    fui direto para o refgio paroquial, onde tomei o primeiro banho gelado, a 3,00 o

    pernoite. Enquanto aguardvamos a hora de jantar, falvamos. Jos Lus falava-me

    dos reinos antigos, da Catalua, Aragn, Navarra, Castilla, Len, Asturias, Galicia, que

    existiam quando ainda no havia uma nao espanhola. E falava tambm do final da

    Reconquista, quando o ltimo sulto de Granada entregou as chaves da cidade aos

    Reis Catlicos e retirou seus exrcitos da pennsula ibrica, encerrando uma longa

    dominao moura de vrios sculos.

    A Moura finalmente apareceu! eu disse para Idair, no jantar encontrei-a

  • 38

    ainda h pouco, quando vinha para c! Havamos brincado, em vrios momentos do

    caminho, com a possibilidade de encontrarmos a Moura. No incio, dizamos: Ela

    est montada, deve andar l na frente, pois aqui, certamente, j teriam comido seu

    cavalo! Os peregrinos a p tinham prioridade, nos albergues, sobre os que faziam o

    caminho de bicicleta. A cavalo? Atualmente eram raros os cavaleiros, mas existiam

    alguns refgios com estrutura para receber os animais. Coisa que, naturalmente,

    no era problema na poca do rei Carlos Magno, ocasio em que a Moura percorria

    o caminho de Santiago fazendo curas com ervas. Seu esprito estava hoje presente

    entre ns, manifestado como a pessoa conhecida por Shirley MacLaine, conforme

    esta contava em seu livro O Caminho: uma jornada do esprito.

    A nossa Moura chegou, cumprimentou-nos e sentou-se a uma mesa prxima

    a um grande televisor na parede do restaurante, de onde emanavam belas imagens

    de um estdio de futebol lotado, onde torcedores agitavam, sem cessar, bandeiras

    e lenos brancos em repdio exploso de dois carros-bombas em Madrid, algumas

    horas antes.

  • 39

    16 dia 02/05/2002, quinta-feira

    HOSPITAL DE RBIGO RABANAL DEL CAMINO 36,8 km

    Amanheceu bastante frio e sem ventos. A trilha da manh foi muito bela,

    passando por capoeiras e subindo as primeiras colinas. Perto de Astorga, a primeira

    ameaa de chuva, j com bastante vento frio. Chuviscava quando sa do correio; o

    termmetro de rua marcava 8 C ao meio-dia. Aproveitei e parei para tomar um ch

    quente e um lanche.

    Eu no costumava passar por agncias do correio por ser difcil conciliar

    horrios e roteiros por ruas das grandes cidades; nos pequenos povoados no havia

    atendimentos, apenas as caixas de postagem nas praas. Uma tarde, estvamos

    sentados em um banco de alguma vila e vimos quando uma moa colocou alguns

    envelopes em uma dessas caixas amarelas. Ainda no estava escuro, e o final de

    mais um dia de caminhada dava um aspecto sentimental a esse gesto calmo da

    peregrina. Onde, e quem receberia cada uma dessas cartas? A partir do instante em

    que ela abriu as mos para que os envelopes cassem no fundo da caixa, por que

    mundos sua mensagem viajaria at que outras mos as de uma pessoa com quem

    ela estivera em ntimo contato ao escrever se abrissem para receb-la? E por que

    teria ela escolhido essa forma secular de contato se tem disposio telefones e

    internet? Poderamos imaginar que ela assim o fizera simplesmente porque estava

    caminhando, uma forma milenar de encontro. Ou poderamos tentar imaginar a

    expresso de uma pessoa destinatria no exato momento de abrir o envelope. De

    qualquer modo, uma mensagem estava indo para uma casa atravs de uma pessoa

    que estava no meio do caminho, dizendo coisas l do mundo. A partir daquele

    instante, acreditei nas caixas amarelas: comprei muitos selos e, mesmo nas ocasies

    em que no iria postar, meu olhar buscava-as em todas as povoaes. Elas passaram

    a ser, juntamente com as sempre vistas setas amarelas do caminho, as indicaes

    para meu encontro com pessoas e objetivos ainda muito distantes.

    A tarde transcorreu com muito vento frontal e gelado, e chuviscos breves

    repetidas vezes. Aproximvamo-nos dos pontos mais altos do caminho ao mesmo

  • 40

    tempo em que chegava uma frente fria forte, que podia trazer neve e durar vrios

    dias. Quando finalmente cheguei Idair e os italianos, banho tomado e descansando

    nos sacos de dormir, se perguntavam se eu no me teria perdido pelo caminho.

    Hendrik, um jovem que vnhamos encontrando durante alguns dias, atrasara-se no

    caminho por causa de uma mulher, segundo o testemunho dos italianos. Estvamos

    no Refgio Gaucelmo, excelente: velha casa paroquial reconstruda pela Confraria

    de Santiago (Confraternity of Saint James), da Inglaterra, e operado pessoalmente

    por seus membros e voluntrios. Nada era cobrado, sequer o belo caf da manh,

    onde cada um se servia e deixava louas e talheres lavados para o prximo. Deixei

    5,00.

    Emilio e Aldo, peregrinando pela segunda vez, conduziam Giulio em suas

    primcias no caminho. Este deixava por conta dos veteranos o planejamento das

    estratgias para a jornada de cada dia seguinte, elaborado em demorados conclios,

    condizentes com o esprito da peregrinao. Habitualmente, partiam bem cedo e

    caminhavam em ritmo forte, acostumados que estavam a caminhadas semanais nas

    montanhas do norte da Itlia. Nem mesmo um eventual atraso de quase uma hora,

    causado por uma porta trancada de um albergue, conseguia abalar a disposio e o

    humor desses madrugadores. Vencida mais uma etapa aguardavam, algumas vezes,

    a abertura dos albergues no perodo da tarde. Depois do banho, descansavam e

    aguardavam o to suspirado e merecido jantar. Durante o dia, protegiam-se do sol

    utilizando belssimos lenos de seda; de noite, mediante uma mgica particular,

    transformavam-nos em vistosos guardanapos. A mesa desses italianos era sempre

    uma festa, uma verdadeira celebrao! Salute! Ficamos tentando imaginar como

    seria um eventual encontro deles com aquela cozinheira de El Burgo Raneros!

    Os albergues no caminho possuam, normalmente, beliches em aposentos

    mistos, espaosos, talvez nem tanto. Em alguns os banheiros eram tambm mistos,

    mas a maioria separava homens e mulheres. Lembrava-me de que em Roncesvalles,

    ao sair do boxe de banho, deparei-me com uma jovem que escovava os dentes junto

    ao lavatrio. Surpreso, coloquei os culos para certificar-me de que era realmente

    uma mulher que ali estava. Nem havia imaginado que os banheiros ali pudessem ser

    mistos. Dissipada a minha dvida, vi que ela continuava calmamente em seu afazer.

    Ento, ainda de culos, comecei a enxugar-me aps aquele belo banho ao final do

  • 41

    primeiro dia no caminho: nem to depressa que pudesse aparentar nervosismo e

    nem to devagar que pudesse sugerir alguma exibio.

    Existiam ainda cozinhas equipadas, tanques de lavar roupas, alguns j com

    mquinas lavadoras e secadoras movidas a moedas. Alguns cobravam o pernoite,

    outros possuam apenas discretas caixinhas para contribuies voluntrias. Havia

    peregrinos que faziam lanches ou que cozinhavam nos albergues; outros iam aos,

    normalmente, poucos ou nico restaurante em cada povoado. De uma forma ou de

    outra, eram os momentos em que, aps mais uma jornada em que andavam um

    tanto dispersos, os peregrinos tornavam-se mais gregrios, embalados por vinhos,

    comidas e muita conversa, nos mais diferentes idiomas e gesticulaes.

    Dessa forma, soubemos que a nossa Moura era, de fato, uma jovem indiana

    nascida em Goa uma possesso portuguesa encravada na costa ocidental da ndia

    tinha sobrenome Silva e por nome Ruieta, me indiana de fala inglesa, entendia

    alguma coisa de portugus mas falava apenas o Ingls, e vivia na Califrnia. Por fim,

    ela perguntou-me se eu fazia meditao.

  • 42

    17 dia 03/05/2002, sexta-feira

    RABANAL DEL CAMINO PONFERRADA 32,7 km

    Idair decidiu acelerar o passo para terminar logo a peregrinao. Partiu cedo,

    e j devia estar muito frente, mais a oeste, mais prximo do mar, do fim da terra,

    de Finisterre. Ainda o vi no comeo da tarde aps ultrapassar os Montes de Len

    ou penso t-lo visto. Mas como ele pretendia chegar ainda a Cacabelos, uns quinze

    quilmetros adiante de Ponferrada, no devia ser ele, ali, quela hora. Peregrino

    brasileiro! Mas, quem quer que fosse, no me poderia mais ouvir, caminhando l na

    frente de modo apressado.

    O dia amanheceu gelado e com geada logo sada da vila, que aumentava

    medida que o caminho subia. A partir de Foncebadn, a 1.440m, havia neve. Nessa

    vila abandonada viviam somente uma velha bruxa e seus ferozes ces negros, que,

    pelo milagre da multiplicao dos relatos, assombravam a imaginao de peregrinos

    de todo o mundo. De tudo aquilo que havia antecipado, o que eu nunca imaginara

    era uma estrada asfaltada passando ali ao lado. Esse inesperado fato aliviou a minha

    expectativa de alguma maneira, apesar do forte nevoeiro que encobria tudo. Fui a

    um bar, em uma rua lateral: estava fechado. Voltando sobre cada passo pude ver,

    atravs da nvoa, dois carros, um trator e a sempre benquista caixa amarela do

    correio: sinais inequvocos de um renascimento da vila? Se isto se confirmasse, o

    que aconteceria com a bruxa e os temveis ces? Essa vila, ansiosamente aguardada

    durante todo o caminho, acabaria por perder todo o seu encanto?

    Ao passar pela Cruz de Ferro, a 1.505m de altitude, o vento gelado acabou

    por travar minha mquina, cujas pilhas s voltaram a funcionar algumas horas mais

    tarde, muitos graus menos frio e a 900m mais abaixo, j em Ponferrada, quando

    consegui fotografar o seu castelo templrio.

    Foi bem possvel que tivesse sido por causa de meu bon de abas cadas, tipo

    legionrio. Ou, talvez, por meu gesto ao ajeit-lo aps colocar a mochila s costas,

    pronto para partir. Um sorriso e um brilho em seu olhar, fugazes, precederam a

    primeira nota do assobio. O espanhol sentado prximo mesa em que eu havia

  • 43

    terminado de lanchar observava-me atentamente, enquanto prosseguia com a

    melodia. Reconheci-a. Sorri e assobiei tambm, acompanhando-o. Seus amigos, que

    ainda faziam pedidos junto ao balco, aproximaram-se e tambm entraram na roda,

    amplificando o alcance daquela orquestra. O som cresceu e tomou conta de todo o

    espao confinado. Ento, naquele apertado bar de um pequeno povoado, sem que

    uma s palavra fosse pronunciada, algumas pessoas, dentre as quais um completo

    desconhecido, exerceram, por um momento, uma real comunicao e uma virtual

    aproximao, s tornadas possveis atravs de uma memria em comum.

    Se um transeunte, naquele preciso instante, olhasse atravs dos vidros para

    dentro daquele bar, veria apenas um pequeno grupo comemorando alguma coisa

    qualquer, a julgar pelas suas gesticulaes e caretas. Ele poderia considerar que

    estavam demasiado alegres, embora, estranhamente, nenhum deles portasse um

    copo de bebida. Poderia achar que estava assistindo a um filme de cinema mudo no

    qual entrara no meio da exibio, pois no ouvia e no entendia nada. Bem que

    poderia simplesmente virar-se e ir embora. Afinal, no pagara nada por aquela

    apresentao sem som e sem legendas. Porm, se ele assim o fizesse, no poderia

    ver que eu me dirigiria para a porta, desapareceria de cena e reapareceria na rua,

    exatamente sua esquerda, passaria por trs de suas costas isso se ele no

    girasse em torno de si, acompanhando-me com o olhar e seguiria em direo a

    Ponferrada. E no perceberia, sobretudo, que eu ainda continuaria a assobiar, como

    trilha sonora para uma trilha cannica, a melodia do filme A Ponte do Rio Kwai.

    Os italianos, como de hbito, j estavam instalados confortavelmente. Passei

    a cham-los de Os Trs Ferraris, tanto pelo desempenho quanto por serem da cidade

    de Monza. Fernando, com a perna um pouco inchada, veio de txi de El Acebo e foi

    atendido no hospital. Disse que poderia andar sem muito peso e sem muita pressa.

    Albergue muito bom, contribuio voluntria deixei 5,00.

  • 44

    18 dia 04/05/2002, sbado

    PONFERRADA VEGA DE VALCARCE 41,3 km

    Jornada difcil, a de hoje! No s pela distncia, mas tambm porque grande

    parte do trecho seguia pelo acostamento muito estreito de uma rodovia. Lembrava-

    me, a cada caminho que passava, das imagens sugeridas pelas palavras de Roland.

    Horrvel! O que aliviava a via tenebrosa por escassos momentos era a presena de

    belssimas flores de papoulas, mirades de pontos vermelhos saltando de um fundo

    verde, em alguns trechos ao longo do rio Valcarce. O caminho apresentava-se a

    cada peregrino como ele o sentia. Idair disse, posteriormente, que esse trecho foi

    um dos mais belos, em que ele seguia, por vezes, at mesmo cantarolando. Mas,

    para mim, a provao resultou de uma vacilao de minha parte. Em Villafranca del

    Bierzo, havia duas opes a seguir: a Pereje, por estrada; e a Pradela, pela serra,

    encontrando-se os caminhos em Trabadelo, mais adiante. No sabia deste ltimo

    detalhe, e acabei por seguir a orientao de uma senhora de idade que insistiu,

    quase implorou, para que eu fosse pelo caminho da estrada. Por vezes, pensei no

    que poderia ter ocorrido se tivesse tomado o outro caminho. Mas no havia como

    saber, mesmo que um dia eu voltasse l e tomasse o caminho da serra.

    As pessoas que encontramos no caminho, em geral, tratavam os peregrinos

    com carinho, orientavam com boa vontade e sempre desejavam um buen camino.

    Em Logroo, um comerciante agachou-se em um espao apertado, passou por uma

    abertura no balco e levou-nos at a rua apenas para indicar uma loja que ficava,

    praticamente, ao lado de onde estvamos. Ou aquele outro, em Njera, que insistiu

    em acompanhar-me para mostrar o albergue, embora soubesse que eu no ficaria

    l. Disse que tinha um tempo de sobra para me dedicar, pois ainda estava cedo para

    o jogo dirio de domins no clube dos aposentados. Em Camponaraya, um senhor

    gritou alguma coisa quando eu passava junto ao seu jardim. Disse que contava

    todos os peregrinos, e que eu era o quinto daquele dia. Mais tarde, estalou a dvida:

    e os peregrinos que passavam durante a sua siesta (cochilo de algumas horas aps o

    almoo)? Parei, com grande vontade de voltar e lhe perguntar. Porm, imaginei-o a

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    afirmar categoricamente: Ah, mas esses no existem! Segui, sentindo uma sbita

    afeio por aquele conferente de Deus que tinha acabado de confirmar a minha

    existncia. Idair desenvolveu uma tcnica para retribuir tamanho zelo, que consistia

    em se apresentar com um ar desorientado a um grupo de idosos e perguntar pelo

    caminho. Prontamente, vrias pessoas comeavam a falar e a gesticular ao mesmo

    tempo, o que provocava uma grande algazarra que renovava o ar secular que os

    envolvia. E quando viam que o peregrino seguia pelo bom caminho, elas ficavam

    felizes, em plenitude, por terem salvado mais um peregrino perdido! Sua Majestade

    que nos perdoasse, mas peregrino em terras de Espanha tambm era rei!

    A canela direita comeou a doer de leve entre Cacabelos e Villafranca del

    Bierzo, tal como a esquerda no segundo dia do caminho. Ambos os casos ocorreram

    em dias seguintes a subidas e descidas muito fortes. Falta de alongamentos? De

    descansos? Provvel. A esquerda estava praticamente boa, e eu esperava que a

    direita seguisse o mesmo caminho.

    Entrei em um bar em Pereje e alegrei-me com a presena de Fernando.

    Conseguira andar bem at Cacabelos, de onde viera de txi, e tomava um vinho

    enquanto aguardava a chegada de Jos Lus, que seguia andando muito bem. Eu

    disse a ele que no deviam existir peregrinos pobres, pelo que pudera ver at ali. Ele

    confirmou, acrescentando que pobres poderiam conseguir alojamentos, mas teriam

    que jejuar durante o caminho todo, exceto por um ou outro hospedeiro que os

    alimentasse. E eles no teriam condies de adquirir equipamentos da mais recente

    tecnologia, como vesturios e calados impermeveis que respiram de dentro para

    fora, com protetores contra radiaes solares, mochilas, leves sacos de dormir e

    toda uma parafernlia que nos fazia peregrinar como se estivssemos passeando.

    Claro que sempre existia a possibilidade de enfrentarmos alguns problemas fsicos,

    mas estes eram perfeitamente contornveis atravs do telefone celular para pedir

    socorro. Outras dificuldades eram resolvidas pelos cartes de crdito. Ao contrrio

    dos atuais, o antigo peregrino era um despojado: espiritualmente, amparava-se na

    sua f e nos desejos de remisso; materialmente, possua apenas tnica e cajado,

    uma cabaa para gua e talvez um bornal para uma comida pouca. A vieira de

    Santiago fazia a ligao entre esses mundos. Os pousos eram distantes, os relentos,

    habituais e os perigos, muitos. A chegada a Santiago de Compostela, nosso objetivo

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    final, aps o que poderamos nos restabel