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Andanças entre currais, dádivas e políticas públicas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
FLÁVIA MARIA SILVA VIEIRA
Andanças entre currais, dádivas e políticas públicas:
O Programa Brasil Quilombola na comunidade Negros do Riacho em Currais Novos-RN
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do título de mestre.
Orientadora: Profª Drª Julie A. Cavignac
Natal
Maio de 2015
FLÁVIA MARIA SILVA VIEIRA
Andanças entre currais, dádivas e políticas públicas:
O Programa Brasil Quilombola na comunidade Negros do Riacho em Currais Novos-RN
Trabalho apresentado à Banca de defesa de mestrado pelo Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________
Profª. Drª Julie A. Cavignac (Orientadora)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Edmilson Lopes Junior - UFRN
_____________________________________________________________
Profª Drª Thais Fernanda Salves de Brito - UFRB
Às famílias do Riacho, em especial às crianças.
Para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco.
para um negro
a cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
o coração
Adão Ventura
Agradecimentos
Gratidão ao universo por me abraçar com o bem e com pessoas tão amáveis.
À minha mãe, meu pai e meus irmãos pela dedicação e cuidado. Pelo caminho de amor compartilhado por nós. Serei eternamente grata e feliz em tê-los ao meu lado.
À Julie pela orientação, compreensão e estímulo. Grata por tudo.
À minha Tia Fabíola por ter sempre os braços abertos, a meu Tio Fábio e Vó Maria pelos mimos, almoços, cafés e cocadas em Currais Novos.
A Raphael Fernandes por ser um presente em minha vida, pela companhia, amor e inspiração. Grata pelos momentos de luz, alegria e bem-querer.
À Fátima Fernandes e família por serem também meu esteio.
Aos amigos de Maceió pela força e carinho emanados.
À Fatima Dantas, amiga de casa, de dissertação, de cafezinho, de viagem e de Seridó.
À querida Carmen Rivera, pelos passeios e sorrisos na cidade do sol.
À Rita, amiga com quem dividi boa parte das manhãs e tardes na universidade.
À todas as famílias do Riacho pela oportunidade de conhece-los, por me receberem em suas casas, pela atenção, pelo acolhimento e pela disposição em contribuir com a pesquisa. Grata à Pretinha, José, Aparecida, Paulo, Seu João, Maria Anunciada e Minel, que no decorrer deste trabalho permitiram que eu conhecesse um pouco mais da comunidade através dos seus relatos, das suas histórias de vida e de suas visões de mundo.
Aos servidores municipais e demais entrevistados que compartilharam suas experiências de vida e trabalho, contribuindo assim para a realização desta pesquisa.
A Otânio e Jeferson pela atenção e gentileza.
À CAPES por financiar a pesquisa
Aos professores convidados para a banca, Edmilson Lopes e Thaís Brito.
A todos que encontrei durante este trabalho e que são parte dele de alguma forma.
Às alegrias e pelejas vividas que guardarei nos escritos e no coração.
Às andanças entre mar e sertão que tanto me inspiram.
A tudo, gratidão!
Índice de Ilustrações
FIGURA 1 - Matéria do Jornal “Diário de Natal”, maio de 1988........................... 24
FIGURA 2 - Matéria do Jornal “Diário de Natal”, maio de 1988 ............................ 25
FIGURA 3 - Mapa do município de Currais Novos .................................................. 28
FIGURA 4 - Cartaz alusivo ao centenário da Abolição. Secretaria de Educação e
Cultura do município de Currais Novos ............................................
36
FIGURA 5 - Propriedades vizinhas à comunidade Negros do Riacho .................... 39
FIGURA 6 - Maria Anunciada e sua produção de louças ........................................ 43
FIGURA 7 - Pretinha produzindo peça de barro ..................................................... 43
FIGURA 8 - Croqui da comunidade Negros do Riacho ........................................... 45
FIGURA 9 - Placa localizada na estrada que leva à propriedade de Gomes ........... 92
FIGURA 10 - Associação de Desenvolvimento Comunitário dos Negros do Riacho . 97
FIGURA 11 - Animais e lixo a céu aberto próximo às residências da comunidade ... 99
FIGURA 12 - Lixo descartado pelos moradores ........................................................ 99
FIGURA 13 - Casa de taipa construída por Seu João para uma de suas filhas........... 101
FIGURA 14 - Criação de animais ............................................................................... 105
FIGURA 15 - Roçado de Seu Zé Pereira..................................................................... 106
FIGURA 16 - Pretinha e suas peças de barro ........................................................... 108
FIGURA 17 - Crianças da comunidade voltando da escola São Francisco de Assis ... 111
FIGURA 18 - Casas na comunidade no período eleitoral de 2012 ........................... 137
FIGURA 19 - Placa sinalizando o caminho da comunidade Negros do Riacho com
adesivos de campanha política de 2014 .............................................
138
QUADRO 1 - Comitê gestor do Programa Brasil Quilombola ................................. 51
QUADRO 2 - Base legal para a implementação de políticas públicas para
quilombolas .......................................................................................
54
QUADRO 3 - Sistemas ou subprocessos da implementação de políticas públicas 72
QUADRO 4 - Relação de famílias e quantidade de pessoas por unidade
habitacional na comunidade Negros do Riacho .................................
84
QUADRO 5 - Eixos temáticos do Programa Brasil Quilombola ............................... 86
GRÁFICO 1 - Dados sobre infraestrutura e qualidade de vida na comunidade
Negros do Riacho ............................................................................... 96
GRÁFICO 2 - Renda familiar per capita na comunidade Negros do Riacho............... 118
Resumo
Neste trabalho são discutidas questões que dizem respeito às políticas públicas voltadas para quilombolas a partir da avaliação do Programa Brasil Quilombola na Comunidade Negros do Riacho, localizada na zona rural do município de Currais Novos-RN. A comunidade é conhecida pelas dificuldades socioeconômicas que enfrenta ao longo de pelo menos cem anos de permanência no território. Observamos as relações de troca, reciprocidade e hierarquia que se revelam nas práticas sociais nos microespaços locais e em nível mais amplo da política nacional para quilombolas. Com o objetivo de compreender de que forma as ações são efetivadas localmente, procuramos responder por que algumas demandas são atendidas em detrimento de outras e como se estruturam estas prioridades na agenda política do município. A precariedade ainda se faz presente no cotidiano dos moradores do Riacho e o acesso às ações do Programa não tem sido completamente viabilizado apesar da existência de demandas históricas. Assim, através da observação das práticas cotidianas dos quilombolas e dos agentes implementadores, iremos descrever o processo que envolve a efetivação de políticas públicas nesta comunidade e questionar o modelo de intervenção da administração pública municipal na promoção de políticas para quilombos.
Palavras-chave: políticas públicas, dádivas, reciprocidade, quilombolas.
Sumário
Introdução ...........................................................................................................
9
Cap. 1 – A princesa do Seridó no país dos quilombolas ..................................... 15
1.1 - A “negritude potiguar”, um processo político ............................................. 16
1.2 - Fazendas, escravos e liberdade ................................................................... 28
1.3 - Uma longa estrada de idas e vindas ............................................................ 38
Cap. 2 – Políticas públicas para quilombolas? .................................................... 55
2.1 - O início do Programa Brasil Quilombola ...................................................... 56
2.2 - Aportes para uma avaliação das políticas públicas na comunidade ............ 63
2.3 - Reciprocidade, hierarquia e poder .............................................................. 74
Cap. 3 – As dádivas, os currais e as políticas públicas ........................................ 82
3.1 – Política quilombola em Currais Novos ......................................................... 83
3.2 – Um drama no Riacho ................................................................................... 122
3.3 - Um cenário possível ..................................................................................... 147
Passam as políticas, ficam os quilombos ............................................................
156
Referências bibliográficas ................................................................................... 161
Anexos ................................................................................................................. 166
9
Introdução
Em todo o Brasil, mais de duas mil comunidades foram reconhecidas pela Fundação
Cultural Palmares (FCP) entre os anos de 2004 e 2013. Estima-se que existem 3.900
comunidades, presentes no meio rural ou nas cidades. Estas comunidades representam
parte significativa da história e diversidade cultural do país e são depositárias da herança de
um passado que remete a tempos de dominação e exploração de povos africanos de várias
etnias e nações, escravizados a serviço de um sistema econômico perverso. A presença
histórica destes grupos é a prova da resistência secular à uma série de imposições, violência,
intolerância, e dificuldades causadas pelas desigualdades sócio-raciais que marcam a história
dos países que passaram pelo sistema colonial escravista. Medidas reparatórias foram
implementadas, em particular nos anos 2000, tendo como foco as comunidades
quilombolas. No Rio Grande do Norte, foram certificadas vinte e duas comunidades
remanescentes de quilombo até o ano de 2015. Entre elas, a comunidade Negros do Riacho,
localizada na zona rural do município de Currais Novos.
Ao pensar na trajetória de vida dos moradores da comunidade, visualizamos
“caminhos” simbolicamente trilhados entre os espaços da comunidade e da zona urbana do
município de Currais Novos, “a rua”. As estradas percorridas revelam aspectos de uma
distância física e simbólica entre estes dois universos que em determinados momentos
também se entrecruzam. Quando situamos historicamente as “andanças” da comunidade
Negros do Riacho, remetemo-nos às condições sócio-econômicas e culturais do grupo que
figuram no imaginário dos curraisnovenses como um conjunto de elementos característicos
da comunidade e de suas práticas. São imagens associadas à mendicância, ao roubo, ao ócio,
entre outros atributos pejorativos. Estas representações assinalam uma condição social
situada historicamente e refletida como natural nas relações interpessoais, extrapolando
esta esfera para atuar também nas relações entre o Estado e a comunidade no que tange ao
acesso às políticas públicas. O caminho de 12 km percorrido pela comunidade até a rua
carrega um valor que ultrapassa o sentido físico, pois são estradas que revelam aspectos
simbólicos e materiais sobre as relações entre estes espaços e sujeitos, visto que é a
principal referência de acesso entre os universos rural e urbano. As andanças referidas no
título representam o caminho trilhado pelos moradores rumo à cidade em busca de meios
10
de sobrevivência, mas também sinaliza outros aspectos vivenciados neste trânsito. As idas e
vindas, os avanços e retrocessos são a bagagem histórica que este percurso proporciona.
Nas “veredas” desta estrada são construídas práticas sociais e representações que
constituem direta ou indiretamente as relações entre a comunidade e “a rua” , assim como,
os jogos de interesse travados com o poder público, que são o objeto de estudo neste
trabalho.
As políticas públicas voltadas para comunidades tradicionais e quilombolas começam
a fazer parte da agenda política do país e ganhar notoriedade a partir do Governo Lula
(2003), quando muitas comunidades iniciam um processo de reconhecimento público,
autoafirmação de suas identidades e passam a acessar tais políticas. Na comunidade Negros
do Riacho, o impacto sentido sobre este processo se deu justamente quando o debate no
Brasil se acalorava e as ações referentes à população negra repercutiam em todo o cenário
nacional. Em 2005 é fundada a Associação de Desenvolvimento Comunitário dos Negros do
Riacho (ADCNR) impulsionada por um conjunto de fatores simultâneos, entre eles o cenário
político propício e a intervenção do Governo do Estado. É no ano seguinte, em 2006, que a
comunidade obtém o reconhecimento oficial como quilombola pela Fundação Cultural
Palmares, uma denominação carregada de novidades e expectativas, tendo em vista a
conjuntura social e política do país. Apesar do termo “quilombola” aparecer como novo, tem
sido incorporado às relações da comunidade com os gestores públicos como um dispositivo
de legitimação para o acesso a determinados espaços políticos e políticas públicas.
A partir da avaliação do processo de implementação do Programa Brasil Quilombola,
dez anos depois de sua criação, discutiremos questões sobre quilombos, políticas públicas e
avaliação de políticas públicas na Comunidade Negros do Riacho, localizada na zona rural do
município de Currais Novos-RN. Com o mapeamento das ações desenvolvidas na
comunidade e a observação da relação entre agentes envolvidos em âmbito local,
analisamos como se deu a efetivação do Programa e como são construídas e reconstruídas
as “arenas sociais” em torno deste processo. Visto que as ações desenvolvidas pelos agentes
do Estado remetem-se a valores e representações construídas historicamente, tanto de um
ponto de vista do legado das populações africanas no Brasil quanto ao que se refere à
comunidade estudada, as relações entre os sujeitos envolvidos devem ser observadas para
11
que se possa compreender como se organizam as prioridades do atendimento (ou não) das
demandas do grupo a ser beneficiado. Considerando que as relações são construídas a partir
de interesses envolvidos num circuito de “reciprocidades hierarquizadas” (LANNA, 1995) em
que as ações institucionais são associadas à “dádivas” (MAUSS, 2001) concedidas pelo poder
público, o objetivo deste trabalho é compreender como os atores sociais envolvidos
participam deste processo, como pensam a sua atuação e como são desenvolvidas as
respectivas ações e quais os resultados destas.
Embora que, historicamente, as comunidades quilombolas tenham sido desprezadas
pela sociedade e pelo Estado, elas vêm experimentando certa visibilidade desde o início do
século XXI. A formação de comunidades remanescentes de quilombos nas áreas semi-áridas
nos coloca diante de uma realidade bastante singular sobre a presença do negro nesta
região, o que nos leva a questionar a história local. A realidade da comunidade Negros do
Riacho e suas particularidades nos instigam na busca de um aprofundamento sobre seu
legado sociocultural, suas tradições, os conflitos inerentes ao processo de construção das
alteridades e a repercussão destes aspectos nos contextos em que o grupo se insere. Há de
se observar que, no contexto brasileiro, as desigualdades raciais continuam sendo
predominantemente dissimuladas e as relações sociais aparecem como pouco conflitivas.
Apesar dos avanços na criação de políticas e leis, o racismo e as desigualdades étnico-raciais
ainda são tratados por parcela da sociedade como um problema estritamente de classe.
O processo de transformações sócio-políticas que se inicia na década de 1980 com a
organização dos movimentos negros avança no momento de abertura democrática do país,
visando a redução das desigualdades sociais entre a população negra. Com as
movimentações políticas ligadas ao centenário da Abolição e as lutas por mudanças efetivas
para a situação social dos negros no Brasil, abre-se um espaço para discutir a questão racial
na Constituição de 1988. Na década de 1990, a pauta de reivindicações dos movimentos
negros se estrutura em torno de uma cobrança mais incisiva sobre os direitos e as demandas
políticas voltadas para o fim da discriminação racial. O cenário de lutas e encaminhamentos,
no século XXI, configura-se em uma agenda política para a construção e a implementação de
políticas reparatórias e ações afirmativas visando modificar a situação de exclusão da
população negra no país. É neste contexto que as identidades quilombolas emergem dando
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visibilidade às demandas das comunidades e denunciando a situação histórica de descaso do
Estado com estes grupos.
A partir de 2004, o número de certificações de comunidades quilombolas cresce
expressivamente. O Programa Brasil Quilombola surge no mesmo ano, num cenário político
com ênfase no combate ao racismo. Para este fim, é criada a Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em 2003. O Programa é formulado com o intuito de
contemplar demandas das comunidades quilombolas integrando em sua proposta
programas e ações voltadas para a implementação de políticas públicas em diversas áreas.
Contada mais de uma década do lançamento do Programa, tem-se um momento propício
para observar a atuação dos gestores e as instituições executoras de tais ações e analisar de
que forma as pessoas da comunidade Negros do Riacho têm participado deste processo.
No primeiro capítulo, é traçado um panorama da questão quilombola no Brasil. A
proposta é observar especificamente a presença negra em Currais Novos, situando neste
contexto a discussão recorrente na historiografia sobre a escravidão no estado do Rio
Grande do Norte. Ao ser mostrada por autores clássicos, a escravidão no estado aparece
como um fenômeno de menores proporções, e por isso diferenciada em relação aos seus
desdobramentos sociais, culturais e econômicos. Este debate sobre o período escravista
ocasiona a reprodução de ideias já formadas e aumenta a invisibilidade das comunidades
negras potiguares, além de gerar desconhecimento sobre suas demandas. Observamos
como se organizam estes discursos no contexto da efetivação das políticas públicas
localmente. Este capítulo pretende, ainda, trazer mais informações sobre a história do
município de Currais Novos, que se firma como uma das cidades mais desenvolvidas da
região do Seridó potiguar. Abordaremos a questão quilombola no município que situa em
seu território uma das comunidades quilombolas mais emblemáticas para a história da
presença negra no estado, a comunidade Negros do Riacho. Desta forma, apresentamos o
contexto local de uma discussão que amplia-se em todo o país no que se refere aos desafios
para o enfrentamento das desigualdades, a redução da discriminação e a promoção de
políticas para as comunidades negras.
No segundo capítulo, encontram-se as principais referências teóricas e
metodológicas que usamos neste trabalho como aportes para uma avaliação do Programa
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Brasil Quilombola na comunidade pesquisada. Inicialmente é apresentado o contexto de
criação de políticas públicas para a população negra no país, ressaltando o momento de
surgimento do Programa, em que o cenário político brasileiro é agitado pelas principais
bandeiras de luta dos movimentos negros. A atuação do Estado passa por reconfigurações
sobre as formas de intervenção no quadro das desigualdades étnicas e raciais no Brasil. Aqui,
expõe-se a perspectiva voltada para uma análise empírica e de tipo qualitativo da pesquisa
de avaliação de processos de implementação de políticas específicas e os modelos teóricos
da literatura sobre avaliação de políticas públicas. Utilizaremos alguns referenciais da
antropologia política, considerando fundamental a avaliação destes processos e o
entendimento das relações entre a comunidade, os gestores públicos e os mecanismos
locais da implementação de políticas públicas. Construiremos a partir dos conceitos de
“reciprocidade” e “hierarquia”, os argumentos para uma compreensão dos interesses e das
relações sociais e políticas que constituem as arenas sociais envolvidas neste processo; tal
análise pode nos dizer muito sobre os rumos das políticas públicas na comunidade Negros
do Riacho.
O terceiro e último capítulo trata dos resultados da pesquisa de campo e da análise
dos dados coletados, articulando os referenciais apresentados no capítulo anterior. A
pesquisa foi desenvolvida a partir das metodologias qualitativas e quantitativas. Na pesquisa
de campo utilizamos entrevistas semi-estruturadas e questionários, considerando a
observação dos espaços e dos agentes envolvidos nas ações do Programa Brasil Quilombola.
As entrevistas foram feitas com membros da comunidade, gestores e servidores públicos da
Secretaria Municipal de Educação; Secretaria Municipal de Saúde; Secretaria Municipal do
Trabalho, Habitação e Assistência Social (SEMTHAS); Secretaria Municipal de Agricultura,
Abastecimento e Meio Ambiente; Emater; Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais e Aposentados na Agricultura Familiar; e integrantes do Movimento Negro local.
Observamos as principais políticas implementadas, seguindo os eixos temáticos do Programa
Brasil Quilombola e o Guia de Políticas Públicas para Comunidades Quilombolas lançado em
2013 pela SEPPIR. As políticas vigentes: o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida (rural),
ações na Educação, Saúde e PRONAF são ações que foram observadas nesta pesquisa.
Abordamos também as intervenções que aconteceram na comunidade na década de 1990
através da Ordem Franciscana Secular e entre os anos de 2005 e 2007 com a atuação do
14
Projeto Dignidade. Porém, existem várias outras demandas que não foram atendidas e que
estão diretamente ligadas à organização política da comunidade e às decisões da gestão
municipal. As relações de reciprocidade e as subjetividades que compõem as estratégias de
implementação ou não implementação de políticas públicas na comunidade Negros do
Riacho precisam ser observadas detalhadamente para um entendimento mais profundo
sobre a situação social do grupo. O desencadeamento das ações voltadas para a comunidade
está intimamente relacionado à proposta de ação do governo e à estrutura de poder local.
Por isso mesmo, as especificidades históricas e as relações de trocas que se estabelecem nos
círculos de reciprocidade envolvidos são elementos fundamentais para compreender o
desfecho destas ações.
As desigualdades sociais que estão vinculadas às questões raciais têm características
peculiares no Brasil. Ainda que se tenha avançado neste debate, continua difícil introduzir a
discussão sobre “raça” e “etnia” nas problemáticas sociais do país e na construção das
políticas públicas. No contexto atual, quando pensamos sobre a trajetória da criação de
políticas para reparar a dívida histórica com a população negra, fica evidente que as
mudanças avançam lentamente e sofrem com os entraves burocráticos e o racismo
institucional. É o caso da morosidade com que vêm sendo solucionadas as demandas
específicas das comunidades quilombolas em nível nacional. Os primeiros estudos realizados
por Luiz Assunção na comunidade Negros do Riacho nos anos de 1980 já apontavam a
urgência de medidas efetivas para a sustentabilidade material e imaterial do grupo. A
constatação feita mais de vinte anos depois é de que ainda há muito o que se pesquisar e
debater sobre a presença negra e a construção de políticas públicas para comunidades
quilombolas em Currais Novos e na região do Seridó. A permanência secular no mesmo
território demonstra, de certo modo, a coesão em assegurar a posse da terra que representa
a subsistência e a importância cultural do grupo. O fato de ter sido formado um contingente
de comunidades remanescentes de quilombo na área do sertão potiguar é um ponto
interessante de estudo, pois além de representar um modelo de resistência em meio a uma
sociedade baseada em padrões sociais e culturais hierarquizados, trata também de um
enfrentamento a todas as adversidades que a região do semi-árido apresenta
historicamente. Assim, se fazem urgentes medidas efetivas que viabilizem políticas de
reconhecimento e empoderamento destas comunidades.
15
Capítulo 1
A Princesa do Seridó no país dos quilombolas
Currais Novos é conhecido por ser um dos municípios do Seridó potiguar que mais se
destacaram em desenvolvimento econômico. Dos currais de gado do século XIX à mineração,
a cidade passou por períodos de crescimento que lhe deu a denominação de “Princesa do
Seridó”. A população negra esteve presente desde o início da formação socioeconômica
local garantindo a mão-de-obra escrava na pecuária, nos campos de algodão e mais tarde
configurando-se num contingente de “trabalhadores livres” em uma sociedade estratificada
e etnocêntrica. Destes, muitos se agruparam em comunidades nas zonas rurais do
município, outros foram absorvidos pela dinâmica da cidade. As versões da historiografia
tradicional que dizem respeito à uma diminuta presença afro-brasileira no Rio Grande do
Norte serve a um ideal elitizado de sociedade e cultura que se sustentou na invisibilidade da
diversidade difundida nestas perspectivas da história. As comunidades negras formadas em
meio à paisagem da Serra de Santana em Currais Novos são depositárias de um passado que
remete à escravidão e resistência referenciadas pelas memórias no território ocupado. Em
2006, em meio à discussão no cenário político nacional sobre o acesso das comunidades às
políticas públicas, os Negros do Riacho são certificados como quilombolas pela Fundação
Cultural Palmares (FCP). O termo “quilombo” aparece como uma novidade na vida dos
moradores do Riacho quando o seu significado passa a fazer sentido associado a direitos. O
Programa Brasil Quilombola foi criado em 2004 como um instrumento político para
reafirmar a legitimidade dos direitos das comunidades e respaldar institucionalmente a
criação e efetivação de políticas públicas para este segmento. Apesar do aparato legal que
regulamenta as ações do Estado em relação aos grupos quilombolas, muitos serviços
públicos não chegam a ser acessados por estes. Entre avanços e retrocessos observados na
trajetória das ações na comunidade Negros do Riacho, questionamos neste capítulo quais
são as bases históricas e sociopolíticas que fundamentam a intervenção do poder público
local e como se situa o município de Currais Novos diante do cenário nacional da política
quilombola.
16
1 – A negritude potiguar, um processo político
É recorrente na historiografia potiguar, a escravidão figurar como um fenômeno de
menor escala comparado a outros estados. Devido a fatores inerentes ao desenvolvimento
econômico local, o Rio Grande do Norte não se equiparou a estados como Pernambuco,
Bahía ou Maranhão em quantidade de negros e negras trazidos para o trabalho escravo.
Porém, os moldes das relações escravistas se fizeram presentes onde quer que houvessem
escravos e senhores. As problemáticas sociais e étnico-raciais decorrentes do processo
escravista e pós-escravista também são resquícios dos contextos coloniais, permanecendo
até a atualidade.
Sobre a presença do negro no sertão durante o período escravocrata, existem
algumas versões que sustentam a tese de que homens e mulheres africanas ou
afrodescendentes que vieram em condição de escravos para esta região estabeleceram
relações de trabalho diferenciadas de outras regiões, visto que a atividade que mais se
desenvolveu nestas áreas do Brasil foi a pecuária e esta absorveu menos mão-de-obra
escrava negra do que outras regiões onde a agricultura foi a principal atividade econômica.
Como mostra os registros de cronistas como Saint-Hilaire1, no sertão nordestino existiram
peculiaridades que implicaram neste menor número de negros trabalhando na criação do
gado durante o período escravista por ter característica extensiva, diferente do Sul do Brasil,
os proprietários não gostavam de confiar as funções de vaqueiro aos escravos, visto que
seria inviável a vigilância dos cativos. Outra explicação seria a falta de capital, sendo então a
carência de mão de obra suprida por indígenas para baratear os custos da produção
(Versiani; Vergolino, 2003). Há ainda, em Moura (1972,) outra elucidação para este fato que
diz que a presença do elemento negro no sertão nordestino não estaria fundamentalmente
associada ao trabalho escravo, mas sim à fuga deste e à formação de quilombos. Para
Cascudo (1984), o elemento escravo não figurou na história econômica do Rio Grande do
Norte como componente indispensável, o que, segundo o autor, justificava o reduzido
número da mão-de-obra escrava no estado e as relações fraternais entre servos e senhores
nas fazendas de gado do sertão. A mesma ideia está presente na leitura de outros autores
1 Saint Hilaire apud Versiani e Vergolino (2003).
17
locais (Medeiros, 1973; Lamartine, 1980) sobre a escravidão no estado e sobre as
especificidades da região do sertão.
Do negro escravo, no Estado, ficaram poucas tradições. No brinquedo infantil a espingarda de talo de bananeira. Da carícia, o cafuné mais difundido em todo o nordeste. De crendices e superstições das que viveram nos canaviais, ficou o canjerê, feitiço, a cousa-feita, mas desconheceram o padê, Exu, Xangô, águas de Iemanjá, que surgiram após a década de 1950, produtos de importação made in Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco. O ambiente canavieiro facilitou a superstição dessa natureza mais acentuadamente que nas fazendas de gado, com escravaria reduzida (Medeiros, 1973, p. 229).
A versão de Medeiros (1973), Lamartine (1980), Cascudo (1984) sobre a escravidão e
o legado da presença afro-brasileira no Rio Grande do Norte e especificamente na região do
sertão servem a um ideal elitizado de sociedade e cultura que se sustentou na invisibilidade
da diversidade difundida nestas perspectivas da história. Recentes estudos sobre aspectos
da diversidade étnica no Rio Grande do Norte vêm salientando a necessidade de recompor a
história das populações negras, indígenas e caboclas que tiveram um papel negligenciado
nos registros históricos, mas que se fazem tão presentes na cultura potiguar apesar das
lacunas observadas nas versões tradicionais. Cavignac (2011) atribui esta realidade de
invisibilidade da presença negra e indígena a discursos de uma elite local interessada em
apresentar padrões homogêneos que, consequentemente, negam a complexidade étnica
que envolve as diferentes culturas que participaram do processo de formação da sociedade
potiguar.
“a situação das populações envolvidas no processo colonial é movediça e
muito mais complexa do que podemos imaginar. No sertão, verificamos
que o número de escravos varia em função das secas e das mudanças
ocorridas na economia local” (CAVIGNAC, 2011, p. 232).
A historiografia tradicional do Rio Grande do Norte mostra uma marcante valorização
da cultura dominante, representada pelos patriarcas locais. Os próprios historiadores,
muitas vezes ligados consanguineamente à estas figuras, tratam de enaltecer os
colonizadores e fundadores das cidades (Macedo, 2014), situando-os como personagens
principais no processo de povoamento e de produção econômica. Deste modo, ocultam
partes da história relacionadas ao trabalho escravo e as relações dele decorrentes.
18
Grupos que poderíamos chamar de “minoritários” como índios, africanos, crioulos, mestiços, ciganos e cristãos-novos aparecem com pouca frequência nas obras dos autores citados (...) Essa literatura, pois, acabou reproduzindo o sentimento de superioridade tão caro ao Ocidente, espelhando o paradigma eurocêntrico de história, ou dizendo em outras palavras, uma maneira eurocentrada de perceber o processo histórico e, via de regra, a própria realidade (Macedo, 2014, p. 262).
Ocorre que os historiadores pouco trataram da presença negra e das relações que
permearam a formação econômica, social e cultural neste período de expansão da
sociedade potiguar. Como mostra Cavignac (2011), a história da escravidão no Rio Grande do
Norte “é uma história em pedaços”. A autora desenvolve uma perspectiva crítica sobre as
lacunas existentes nos estudos sobre a presença negra e indígena no Rio Grande do Norte,
com ênfase nas regiões do sertão. Em meio à estas lacunas, emergem histórias orais com
elementos da cultura popular e da tradição que revelam aspectos da cultura negra e/ou
indígena arraigados à sociedade potiguar, contraditoriamente ao discurso corrente tão
disseminado no Rio Grande do Norte (Cavignac, 2011). O fato é que formaram-se
comunidades negras e caboclas entre as Serras de Santana. Em Currais Novos são duas:
Negros do Riacho e Queimadas2. Ainda na região do Seridó, no município vizinho, Lagoa
Nova, está a comunidade Macambira; em Parelhas, a comunidade Boa Vista, Poço Branco e
São Sebastião; Os Pretos do Bom Sucesso em Jardim do Seridó; Família dos Higinos,
conhecida como os Negros do Saco em Acari; Furna da Onça, Rio do Peixe e Bonsucesso em
Caicó; Negros do Boinho em Cerro-Corá; Boa Vista e Negros do Barcão em Ipueira (Assunção,
2006, p. 6). Estas comunidades mantêm, uma coesão pautada em laços de parentesco que
remontam quase sempre a um referencial estreitamente ligado à fuga da escravidão ou à
reminiscências de um passado escravista, seja negro ou indígena.
No Rio Grande do Norte, são oficialmente reconhecidas pela Fundação Palmares
vinte e duas comunidades quilombolas. Uma delas, em setembro de 2014, recebeu o título
de propriedade coletiva do território emitido pelo INCRA3. Atualmente, seguem em
tramitação os processos de solicitação de titulação do território de quatro comunidades
2 Comunidade negra situada na zona rural de Currais Novos na localidade do Totoró. O grupo não possui a
certificação da Fundação Palmares como comunidade quilombola. 3 A comunidade Jatobá, no município de Patu, recebeu o título de posse do território em setembro de 2014.
19
quilombolas no estado4. A questão quilombola no Brasil vem ganhando notoriedade a partir
da emergência da discussão política sobre a problemática racial e estabelece novos rumos e
estratégias no início deste século XXI. A necessidade de criação de mecanismos para
combater as desigualdades raciais e recompor a situação social do negro como ator histórico
vem trazendo discussões no campo das ciências sociais sobre o que é ser quilombola, sobre
os direitos e demandas políticas e sociais advindas da condição de desigualdade que atinge a
população negra.
O termo “quilombo” assumiu, ao longo do tempo, diversas caracterizações em
diferentes momentos da história e continua sendo um conceito que ultrapassa definições
pré-estabelecidas. A noção sobre o que é ser quilombola tem enveredado por debates na
antropologia, na formulação de políticas públicas e nas comunidades. Atualmente, é preciso
recontextualizar o sentido do termo nos processos dinâmicos da sociedade, em que são
constantemente ressignificadas a cultura, as identidades e as relações sociais. A realidade
nos mostra que “falar dos quilombos e dos quilombolas no cenário político atual é, portanto,
falar de uma luta política e, consequentemente, uma reflexão científica em processo de
construção” (Leite, 2000:1). É falar da construção de uma identidade em outro contexto
social, da luta pelo reconhecimento do território, pelos direitos básicos dos cidadãos e do
enfrentamento de conflitos étnico-raciais. A questão da identidade é colocada nos debates
públicos, nos textos de leis e decretos que dizem respeito à identificação e ao
autorreconhecimento das comunidades quilombolas, que por sua vez, também vem
agregando novas perspectivas sobre estes procedimentos. Na constituição de 1988, o termo
remanescente de quilombo ainda aparece como estritamente ligado a uma realidade de
fuga de um sistema escravista, ou seja, à comunidades que ascendiam de antigos
agrupamentos quilombolas.
“(...) a representação do termo quilombo estava ainda ancorada em Palmares e em
seu grande herói Zumbi – tratava-se, portanto, muito mais de um estereótipo do
que de uma leitura empírica da realidade destas populações” (BRANDÃO; DALT;
GOUVEIA, 2010, p. 79).
Esta representação estanque e estereotipada de quilombo como uma unidade de
negros escravos fugitivos das grandes fazendas que se aquilombaram, muitas vezes ofusca a
4 Acauã (Poço Branco), Boa Vista dos Negros (Parelhas), Capoeiras (Macaíba), Macambira (Lagoa Nova), Boa
Vista dos Negros (Parelhas). Fonte: incra.gov.br (dados do site atualizados em 14.09.2014).
20
dinâmica da realidade das comunidades negras atuais, tornando distante da compreensão
da sociedade e dos próprios gestores a existência de novos arranjos e novas situações de
resistência. A ressemantização do termo vem desmistificar a presença destas comunidades e
sua participação na sociedade. Porém, a complexidade que envolve o processo entre o auto-
reconhecimento da comunidade, os laudos antropológicos e a legitimação por parte do
poder público abre um leque de questões teórico-metodológicas sobre como trabalhar neste
contexto a identidade étnica. No documento que apresenta as diretrizes do Programa Brasil
Quilombola, “identidade étnica” está expressa como
(...) base para sua forma de organização, de sua relação com os demais grupos e de
sua ação política. A maneira pela qual os grupos sociais definem a própria
identidade é resultado de uma confluência de fatores, escolhidos por eles mesmos:
de uma ancestralidade comum, formas de organização política e social, a
elementos lingüísticos e religiosos (Brasil, 2004, p. 10).
Visto desta forma, as identidades étnicas são compostas por conjuntos de elementos
que dizem respeito à coesão do grupo enquanto grupo, geralmente está associada à
ancestralidade, mas não se limita às características pré-fixadas, mas sim às características
que cada grupo mantém em determinado contexto e assume enquanto coletividade. Esta
mudança na forma de ver as identidades constitui-se como uma demanda da própria
atualidade que por muitas vezes confronta-se com os referenciais teóricos clássicos sobre
“etnicidade”, que já não cabem nas análises deste novo cenário. Como relata, Paulo, um dos
moradores da comunidade, o termo apresenta-se a partir da relação com os de fora e vai
sendo introduzido gradativamente no cotidiano do grupo.
Primeiro aqui não era quilombo, né? Aí os alemães5 disseram:
─ Vocês são quilombo!
Aí a gente perguntou:
─ O que é quilombo? Que a gente não sabe o que é um quilombo!
Aí a primeira presidente foi Teresa, ela teve a oportunidade, foi pra Natal. De Natal foi pra Brasília. Quando chegou lá, trouxe o título do quilombo. Aí em 2006 foi que a gente reconheceu que era quilombo.
5 Os Alemães a que Paulo se refere são os Freis franciscanos que estiveram presentes na comunidade no final
do anos de 1980 e início de 1990 e idealizaram um projeto assistencial de cunho caritativo religioso que por meio de doações da Alemanha e em parceria com a Prefeitura de Currais Novos realizaram ações como a construção das primeiras casas de alvenaria no Riacho.
21
(Paulo, morador da comunidade Negros do Riacho. Entrevista concedida
em novembro de 2013).
O termo quilombo aparece como uma novidade na vida dos moradores do Riacho
quando o seu significado passa a fazer sentido associado aos direitos da comunidade. Em
2006, em meio à discussão no cenário político nacional sobre o acesso das comunidades
quilombolas às políticas públicas, os Negros do Riacho recebem o certificado de
reconhecimento como quilombola pela Fundação Cultural Palmares.
A nomenclatura, trazida por agentes externos, passa por um processo de
incorporação aos discursos dos moradores enquanto mecanismo de visibilidade para o
acesso às políticas públicas. As identidades quilombolas se fazem e refazem no presente,
associadas a posicionamentos políticos em que são reafirmadas a ligação simbólica e
material com o território ocupado através da resistência, reprodução de modos de vida e
práticas culturais históricas. De um modo geral, as identidades étnicas brasileiras são
revestidas por uma lógica racista que constituiu a formação social do Brasil, sendo
legitimada em vários momentos pelo Estado, visto que os afrodescendentes foram
historicamente discriminados e colocados em situação de descaso. Segundo Barth,
quando se definem como grupos adscritos e exclusivos, a natureza da continuidade das unidades étnicas são evidentes: dependem da conservação de um limite. Os aspectos culturais que indicam este limite podem variar, do mesmo modo que podem ser transformadas as características culturais dos membros. Além disso, a forma de organização do grupo pode variar; não obstante, os elementos que sustentam a dicotomia entre membros e estranhos nos permitem também investigar a forma e o conteúdo cultural que se modificam (Barth, 1976, p. 15). Tradução nossa.
A concepção de que a identidade é relacional e se constrói através do “outro”, ou
seja, da diferença, dos contrastes, pressupõe a relação entre identidade e subjetividade.
Assim, os Negros do Riacho ao se colocarem como quilombolas assumem uma postura
identitária que pode variar dentro de contextos específicos, pois ao mesmo tempo emergem
outras subjetividades que introduzem novas concepções sobre a participação do negro na
sociedade; essas têm a ver com as relações de poder estabelecidas e, sobretudo, com as
condições objetivas relacionadas à existência do grupo.
22
Compreendido a partir de situações de fricção étnica, os posicionamentos do grupo
enquanto “quilombola” envolve níveis de hierarquia presentes na sociedade e tende a
contrariar a visão dominante que historicamente marginalizou a presença negra ao longo
dos anos. Sendo assim, pensar a construção das identidades é pensar em um jogo de poder
e interesses. Nas relações entre os grupos, podemos perceber a tensão contida nas
incompreensões mutuas entre os sujeitos, relatadas na fala de Paulo, morador da
comunidade e ex-presidente da ADCNR:
(...) fui pra Currais Novos um dia desses, aí o cara [o recepcionista do hospital] perguntou assim: ─ Rapaz, você tá doente de que?
Eu disse: ─ Rapaz, doente do coração.
Ele disse: ─ Como é seu nome?
Aí eu disse duas vezes. Nas três, ele disse:
─ Como é seu nome?
Eu disse: ─ Não, eu sou quilombo.
Trancou-se. Aí pronto. Desse tempo pra cá nós somos quilombo. Só fica chato aqui [dizer que] eu moro no Sítio Bonsucesso. Não era pra ser sítio Bonsucesso era pra ser “Eu sou quilombo”. Não tem um menino desses aqui, registrado por quilombo. Era pra ser “eu moro no quilombo”. Mas é “eu moro no Sítio Bonsucesso”. O Bonsucesso é grande. O Bonsucesso é ali na frente, é atrás, né? Era pra ser “eu moro no quilombo”. Todo mundo já sabe onde é o quilombo. Eu fico chato só por isso, né? (...) Só eu mesmo me reconheço como quilombo. Eu tenho orgulho porque eu sou quilombola.
(Paulo, morador da comunidade. Entrevista concedida em novembro de 2013). Colchetes nossos.
Neste caso, o diálogo narrado por Paulo mostra que assumir uma postura enquanto
quilombola é impor-se como sujeito de direto, diante de barreiras simbólicas que atuam no
cotidiano dos moradores como no caso do acesso a serviços públicos básicos. Ao reconhecer
o poder da coletividade na desconstrução de elementos de manutenção da discriminação,
Paulo afirma a importância em reforçar a identidade associada ao território quilombola, que
segundo ele, ainda não tem o devido reconhecimento. Assim, a incorporação de um discurso
pautado numa “identidade quilombola” se insere na realidade da comunidade conforme as
situações se impõem aos sujeitos. Compreender estes discursos a partir de conjunturas
23
específicas corresponde à ideia de Hall que insiste sobre a importância de uma
contextualização das identidades étnicas:
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas (HALL, 2012,
p. 109).
A construção das identidades pode ser vista então como um processo que,
dependendo do contexto histórico e político, pode assumir dinâmicas variadas. A discussão
sobre as alteridades no país ganha visibilidade em meio à ebulição das políticas públicas
voltadas para a população negra no século XXI que desde a década de 1980 vêm tomando
forma com a mobilização dos movimentos sociais em torno da legitimação dos direitos
quilombolas.
No Rio Grande do Norte, no ano de 1988, com a passagem do centenário da abolição
da escravatura observa-se um discurso permeado pela noção de “democracia racial”
paralelamente aos depoimentos de denúncia do descaso sofrido pelas comunidades negras.
As posturas contraditórias apontadas nos veículos de informação da época refletem a cena
social e política marcadamente em conflito a respeito de como tratar a questão racial
brasileira. O que fazer com as demandas da população negra que cada vez mais se
posicionava em busca de soluções para os problemas das desigualdades raciais? A data
simbolicamente incorporada pelos grupos do Movimento Negro do país como uma data de
reflexão e protesto foi mostrada pela imprensa local, ora como data comemorativa, ora
como forma de questionamento de uma dita “democracia racial”, ao mesmo tempo em que
apontam uma visão estereotipada e uniforme sobre a realidade das comunidades e seus
moradores.
Os cem anos de Abolição da Escravatura serão comemorados pela Secretaria Municipal de Cultura, a partir das 20h, na orla marítima com a programação ‘Axé, Natal’, reunindo grupos de danças e shows musicais, concentrado na Praça dos Heróis” (Jornal Diário de Natal, maio de 1988).
A comunidade Negros do Riacho junto com a comunidade Capoeira dos Negros,
localizada em Macaíba, são retratadas neste artigo do Jornal Diário de Natal como
24
“descaracterizadas”. Na década de 1980, esta é a concepção difundida na sociedade
potiguar sobre as comunidades negras do estado, sem maiores reflexões sobre a situação
social destes grupos, como mostra o texto abaixo.
A reportagem do DIÁRIO DE NATAL escolheu duas comunidades negras para mostrar sua descaracterização: Riacho, no município de Currais Novos, no Seridó, e Capoeira dos Negros, na vizinha Macaíba. (...) As diferenças são poucas de uma comunidade para outra. No horizonte da roça, a perspectiva “de se acabar tudo” (Jornal Diário de Natal, maio de 1988).
A exposição da miséria traz à tona as dificuldades socioeconômicas vividas por estes
grupos, mas não questiona o descaso do poder público. Pelo contrário, reforça a
estigmatização/homogeneização das populações afro-brasileiras e dos quilombolas.
FIGURA 1 – Crianças da comunidade Negros do Riacho. Matéria do Jornal Diário de Natal, maio de 1988.
Fonte: Acervo particular de Dorinha Nascimento.
25
FIGURA 2 – Matéria do Jornal Diário de Natal, maio de 1988. Fonte: Acervo particular de Dorinha Nascimento.
As ideias veiculadas na imprensa local em datas emblemáticas, como o centenário da
Abolição, não são acompanhadas da divulgação da postura do poder público em relação à
resolução destas desigualdades, o que repercute na manutenção da situação de abandono e
no apagamento da agência política dos sujeitos. Após mais de cento e vinte e cinco anos de
Abolição, a situação das comunidades ainda é crítica. Apresentam sinais de precariedade em
várias dimensões da vida social. As desigualdades estruturais das populações quilombolas e
as dificuldades no acesso às políticas públicas são resultantes do processo colonial e da
negação histórica da presença negra no estado.
Mesmo sendo predominantemente marcadas pela invisibilidade social e cultural, as
comunidades negras atravessam séculos através da resistência em seus territórios. O
período que marca a emergência de políticas públicas para a população negra no Brasil, no
início do século XXI, traz um debate no meio acadêmico e na sociedade local e sinaliza a
necessidade de revisão da história da presença das populações autóctones no Rio Grande do
Norte. A conjuntura nacional introduz novas possibilidades, ainda que incipientes, para a
participação da população negra. A partir de indivíduos que passam a perceberem-se como
sujeitos de direito e responsáveis também pelas tomadas de decisão na proposição de ações
afirmativas, observa-se outra face de um processo político que perpassa o reconhecimento
das identidades étnicas até então negligenciadas.
Por outro lado, os discursos e as ações militantes que insistem sobre uma negritude ou uma indianidade genérica reconduzem, inconscientemente,
26
uma visão construída pelas elites, pois partem do pressuposto implícito de que, entre os diferentes grupos locais, existiria uma homogeneidade cultural fundada numa unidade biológica (Cavignac, 2011, p. 206).
Esta visão cria tipos homogêneos dentro da diversidade que são reproduzidos em
discursos como o citado anteriormente no artigo do Diário de Natal. A noção de
“descaracterização” se relaciona com padrões idealizados de cultura e exclui a percepção da
dinâmica das identidades.
As comunidades negras do Rio Grande do Norte passam a ter acesso às políticas para
quilombolas a partir do reconhecimento dos primeiros grupos remanescentes de quilombo
pela Fundação Cultural Palmares. Durante a gestão de Vilma de Faria (2005-2008), o
Governo do Estado traça um plano para implementar “ações afirmativas”, o que resultou no
Projeto Dignidade (2005-2007)6. O projeto teve como alvo de atuação, a comunidade Negros
do Riacho em Currais Novos. A ideia inicial seria criar um “laboratório social”, a partir da
experiência que serviria de modelo para a implementação de políticas para quilombolas no
estado. A gestão adotou um discurso de promoção da igualdade racial bastante difundido na
mídia local com o objetivo de legitimar as ações governamentais cuja proposta pautava-se
na “inovação” e na “inclusão” das comunidades negras, ciganas e indígenas. Em 2007, foi
lançado o Plano Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que seguiu as
resoluções da 1ª Conferência Estadual de Promoção da Igualdade Racial realizada em Natal
no ano de 2005. As ações realizadas na comunidade Negros do Riacho foram citadas no
discurso da governadora como uma amostra para os futuros planos de atuação da gestão.
Vamos levar ações de cidadania e obras de infra-estrutura para todas estas áreas, a exemplo do que fizemos na comunidade Negros do Riacho, em Currais Novos, onde erradicamos as casas de taipa e incentivamos projetos de geração de emprego e renda, informou a governadora Vilma de Faria7.
É interessante pensar quais critérios foram usados para a escolha da comunidade
como modelo. Que tipo de prioridades e interesses estão inseridos num projeto como este?
6 C.f. Medeiros (2008). Ver neste trabalho as página 63 e 72.
7 Fala de Vilma de Faria durante o lançamento do Plano Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Fonte: http://www.seppir.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2007/08/MySQLNoticia.2007-12-
27.0627/?searchterm=diagn%C3%B3stico
27
Medeiros (2008) faz uma análise do Projeto a partir da observação do uso das imagens da
comunidade na mídia local como propaganda e publicidade do Governo do Estado. A autora
atenta para a superexposição de imagens dos moradores sem a devida responsabilidade
com a veiculação destas. Ressalta, ainda, a falta de diálogo das esferas governamentais com
a comunidade para a construção das ações, resultando na condução das ações de forma
arbitrária e na descontinuidade do Projeto.
Ao introduzir a discussão sobre as ações do Programa Brasil Quilombola na
comunidade Negros do Riacho, propomos um debate inicial sobre como está situada a
“negritude potiguar” e qual é a representação dos discursos e práticas históricas referentes à
esta categoria no estado. A negritude potiguar como um processo político assume diversas
conotações e desenha-se conforme interesses de grupos específicos: movimentos sociais;
comunidades quilombolas e poder público. As representações sociais impregnadas no
inconsciente coletivo podem interferir localmente na construção de estratégias políticas e de
políticas públicas visando a comunidade Negros do Riacho em Currais Novos. Trazemos estes
aspectos no decorrer deste trabalho quando observamos a formação da sociedade currais-
novense, os espaços ocupados pela população negra historicamente e a percepção sobre as
políticas para quilombolas em âmbito local.
28
1.2 – Fazendas, Escravos e liberdade
Currais Novos é um município do estado do Rio Grande do Norte, situado na região
central-potiguar, na microrregião do Seridó, mais precisamente na porção leste,
denominada de Seridó Oriental. Faz divisa com os municípios de Acari e São Vicente a Oeste,
Lagoa Nova e Cerro Corá ao Norte, São Tomé e Campo Redondo ao Leste e com o os
municípios Picuí e Frei Martinho, situados no estado da Paraíba, ao Sul. Distancia-se 180 km
da capital do estado, Natal. Possui uma área de 864.349 km2 e população de 44.710
habitantes8. O município situa-se no polígono das secas, caracterizado pelo clima semiárido,
devido aos longos períodos de estiagem.
FIGURA 3 – Mapa do município de Currais Novos9
8População estimada em 2014 a partir do censo de 2010. Fonte: http://www.cidades.ibge.gov.br
9 Fonte: Autora. Mapa do município de Currais Novos com a localização dos municípios vizinhos e as duas
principais comunidades negras do município: A comunidade Negros do Riacho e a comunidade Queimadas, esta última também conhecida como “Negros do Ludugero”, situa-se na localidade Totoró, na zona rural de Currais Novos. A comunidade Queimadas não é certificada pela Fundação Palmares. Situamos também a comunidade Macambira, no município de Lagoa Nova, certificada como quilombola desde 2005.
29
É um dos municípios do Rio Grande do Norte que, historicamente, mais sofre com a
escassez de chuvas. Conforme Lamartine (1980), “na região do Seridó “os invernos são
escassos e irregulares, detendo o posto de Currais Novos a menor média do Estado: 398.3
mm/anuais contra 1450.2 da cidade do Natal” (p. 107). A vegetação típica do município é a
caatinga, composta por uma rica diversidade de espécies da fauna e da flora, que tem sido
gradativamente destruída com o crescimento da cidade e a devastação das matas para
diversos fins. Os invernos e as secas são as estações características do clima semi-árido,
porém os longos períodos de estiagem tem preocupado cada vez mais a população currais-
novense que sofre com a problemática do abastecimento de água e suas consequências.
Currais Novos apresenta-se como parte de uma cenário histórico controverso e
carregado de nuances no que diz respeito à presença negra. A historiografia do município,
seguindo a linha da tradicional História Potiguar, silencia a presença do negro e repete o
discurso sobre uma harmonia presente nas relações sociais entre os proprietários de terras e
seus escravos sem atentar para as relações desiguais e os conflitos embutidos nestas. No
livro A História de Currais Novos (2009), no capítulo intitulado “A escravidão em Currais
Novos”, o autor Quintino Filho afirma que é provável que os primeiros escravos tenham
vindo para Currais Novos em função do desbravamento dos Riachos do Maxinaré (atual
Riacho Currais Novos) e Juazeiro, mais ou menos em 1720, e constitui-se como “organismo
social” a partir da chegada dos primeiros Lopes Galvão. O autor reconhece que, “falta-nos
registros históricos abundantes sobre a história local da escravidão. Todavia dispomos de
elementos que a ela dizem respeito” (p.53). Estes elementos são observados sob um ponto
de vista da história dominante local. Ao trazer registros sobre compra e venda de escravos
pelos primeiros fazendeiros; registros de alforria; e alguns detalhes sobre o movimento
abolicionista em Currais Novos, Quintino Filho se apropria também da ideia sobre as
relações harmoniosas entre senhores e escravos no sertão, desenvolvidas inicialmente por
renomados historiadores do estado.
A escravidão ocorreu em Currais Novos, como de modo geral nestes sertões, em um clima de paz e de relativa compreensão humana, o que em grande parte se deve ao espírito de religiosidade de senhores e de escravos. Os casos de crueldade são relativamente poucos (Quintino Filho, 2009, p. 53).
30
A visão predominante sobre as relações amistosas entre senhor e escravo
reproduziu-se na história local. Lamartine (1980) reafirma o caráter das relações da época.
dizem os homens que escreveram a história que em 1679 eram doadas as datas de terra do Acauã, no Acari (José Augusto ─ Seridó). É de se crer que, pisado no rastro do homem, vinha o gado, para garantir a posse. Poucos escravos, já que o vaqueiro era um parente menos remediado ou um mestiço. Branco, mestiço ou negro o vaqueiro acudia a uma fazenda e tomando os couros, “sinhô” e vaqueiro partilhavam os trabalhos de campo. A parição crescia de ano para ano e currais eram assentados em novos logradouros (p. 53).
Os principais registros de posse de escravos encontram-se em documentos de
compra e venda, nascimento, casamento, óbitos, entre outros acontecimentos registrados
em cartório e nos livros paroquiais. Sendo notável a presença de uma quantidade
considerável de escravos nos inventários dos proprietários e criadores de gado que
povoaram o Seridó potiguar, fica evidente a participação da mão de obra negra na economia
local, fundamental na produção. Como já dito, as versões da história da escravidão nestas
áreas têm aparecido como sendo de menor escala, muitas vezes associadas ao pastoreio do
gado como uma atividade lúdica, com maior liberdade, sendo dispensado aos escravos dos
sertões, um melhor tratamento em relação aos dos engenhos do litoral (Cascudo, 1984). Ao
sobrepor uma visão romantizada do vaqueiro às relações escravistas, perde-se de vista a
complexidade da divisão do trabalho do período escravocrata no sertão. O vaqueiro torna-se
uma figura emblemática na história do Seridó e aparece nos registros, associado ao seu
patrão, como um companheiro que compartilhava o dia-a-dia de trabalho e a vida nas
fazendas. As contradições sobre os aspectos das relações entre senhores e escravos,
observados principalmente a partir das fontes cartoriais (Cavignac, 2011; Macedo, 2004;
Pereira, 2011) servem para ressaltar a complexidade destas relações.
através das entrelinhas dos documentos citados podemos ter uma idéia de como se moldaram as relações de solidariedade patrão/escravo. Tais relações chegaram ao ponto deste último, em alguns casos, comprar a sua própria liberdade, com pecúlio acumulado por muitos anos - ou, ainda, emprestar dinheiro ao seu amo. Essa atipicidade do escravismo no Seridó reveste-se de especial importância para que as teses propostas pelas versões clássicas da historiografia brasileira sejam revistas e se produza, com base em novas abordagens, a ainda por se fazer História Social da Escravidão no Seridó (Macedo, 2004, p. 15).
31
Consta no inventário de D. Adriana de Holanda Vasconcelos, viúva de Cipriano Lopes
Galvão, conhecido como o primeiro povoador do município de Currais Novos, o número de
vinte e quatro escravos, dentre eles, havia cinco africanos (Lima, 1988: 76 apud Cavignac,
2011; Quintino Filho, 2009). A região do Totoró10 é marcada historicamente pelo início do
povoamento e a fundação do município de Currais Novos, quando por volta de 1750,
Cipriano Lopes Galvão e sua esposa Adriana de Holanda Vasconcelos, vieram de Igarassu-PE,
adquiriram a sesmaria do Totoró e lá se estabeleceram formando família e dando início ao
ciclo pecuarista que viria a se desenvolver cada vez mais e ser um fator determinante para o
crescimento econômico local. O primogênito do casal, o Capitão-Mor Galvão deu sequência
à criação de gado na região e tornou-se um renomado proprietário de terras e homem de
influência política na região. Conhecido como o fundador da cidade, foi responsável pela
construção da capela de Nossa Sra. Santana, em 1808, que seria o marco do início da
povoação de Currais Novos que mais tarde tornaria-se, respectivamente, distrito de paz, vila
e depois município em 1891 (Quintino Filho, 2009; Souza, 2008). O Capitão-Mor Galvão
deixou registrado em seu inventário, a posse de vinte e três escravos (Quintino Filho, 2009).
Em seu testamento, deixou por escrito a posse de 20 escravos residentes em suas terras e
mais 3 negros forros, que lá continuaram trabalhando após “libertos” . Entre estes estava o
escravo Lásaro que compraria sua alforria após a morte do Capitão-Mor (Pereira, 2011;
Quintino Filho, 2009) e como homem livre se tornaria mais tarde proprietário das terras que
deram origem à comunidade quilombola Macambira11, na Serra de Santana. Os documentos
evidenciam que houve um considerável trânsito de escravos entre os séculos XVIII e XIX nas
terras seridoenses. Fato este, citado por Quintino Filho sobre a “locomoção de escravos”:
Às vezes um ex-escravo transferia-se voluntariamente, de um município para outro. Ou um escravo era transferido, mediante venda. Vejamos os dois casos: 1º) Anastácia Martins dos Santos. Em Acari foi escrava do Major Pires com a 1ª esposa, Porfíria. Do Acari foi para a Serra de Santana. Desceu para a casa de Moisés de Oliveira Galvão e Auta Bezerra de Araújo, então na Marcação, em 1904. Esteve com Maria Galvão Chacon, na cidade. Já doente, levaram-na para o Saco dos Veados onde na casa grande da fazenda, em um quarto que lhe fizera Moisés, morreu em 1941, com 100 anos ou mais.
(...)
10
Região onde iniciou-se o povoamento do município de Currais Novos. Localiza-se na zona rural do município a 12km do centro da cidade. 11
Ver Pereira (2011).
32
Florência. Vendida por 500$000, para a cozinha. Também esteve com Zumba até a Abolição. Voltou para Currais Novos. Tinha o olho furado com um garfo. Em Currais Novos morou com o Cel. Cipriano Lopes, do Cipó, e com Seu Galvão, quando este já era viúvo (Quintino Filho, 2009, p. 58-60).
Nas proximidades do sítio dos Negros do Riacho, “Manoel Pires de Albuquerque
Galvão, vulgo Neco Pires da Serrota Preta, possuía três escravos: Idalina, casada com José, e
Joana. Idalina era cabocla. Joana, sarará. Veio do brejo da Paraíba” (Quintino Filho, 1980, p.
56). É provável que, depois de libertos, os escravos destas localidades tenham se agrupado
pelas redondezas do Riacho. Com a alforria, muitos escravos migraram para outras
localidades da região, espalhando-se principalmente nas zonas rurais ou continuaram nas
mesmas fazendas, trabalhando para seus ex-donos, ou nas proximidades destas trabalhando
como “meeiros” 12 para os proprietários de terra da região.
Estes contingentes de homens livres continuou, no entanto, inter-ligados a seus antigos patrões tanto pela reconfiguração – e não extinção - do modelo de dominação patriarcal (Weber, 1999), passando do trabalho escravo ao da sobre-exploração do trabalho (quando ex-escravos passam a trabalhar como foreiros em terras alheias em sistemas de pagamento de uso com parte da produção); quanto por compadrio (...) (Pereira, 2011, 130).
Ou seja, os resquícios da escravidão se sustentaram devido à própria estrutura
política e social que continuava a se basear na exploração da força de trabalho dos ex-
escravos. Os modelos de relações baseadas no compadrio como as relações de trabalho
passam a regular a ordem social através da manutenção das forças políticas locais. Na região
do Seridó, os municípios de Currais Novos, assim como Acari e Caicó, apresentaram-se desde
sempre como referências econômicas devido ao desenvolvimento inicial no ramo da
pecuária. Os currais erguidos nas fazendas de Currais Novos desde as aquisições das
primeiras datas de terra e do início do povoamento no século XVIII, seguidos pelo ciclo do
algodão no Seridó e mais tarde pelo advento das minas e da extração da “scheelita” no
12 Segundo Celso Furtado (1998), o meeiro “trabalha sob a forma de participação em produtos, é pago em
produto natural. Produz para comer. O excedente que é comercializado beneficia o dono da terra. A parte do trabalhador é só para ele sobreviver, é um salário de subsistência. Nessa estrutura social tão particular, o ponto fraco é o pobrezinho que está lá embaixo, é o morador, o meeiro que produz comida para sobreviver e criar um excedente para o dono da terra. Quando acontece uma seca, toda a estrutura sofre, mas o peso maior é suportado pelos que estão mais embaixo. A seca, na verdade, é o colapso da produção agrícola. E esse colapso se traduz em fome” (p. 22).
33
século XX fez com que o município se estabelecesse como um dos centros mais
desenvolvidos da região. Currais Novos passa a ser chamada de “Princesa do Seridó” ou
“Terra da Xelita” por ostentar uma condição de polo comercial e bem sucedido
principalmente no ramo da mineração que corresponde aos anos de 1940 ao final dos anos
de 1980.
Com a ascensão da mineração, os antigos donos de currais passam a interagir com a
extração de minérios e assim perpetuar o poderio local das tradicionais famílias na economia
e na política do município. A cidade teve seus períodos áureos, principalmente através das
minas, com o crescimento econômico e desenvolvimento do centro urbano, somados à
concentração de poder e riqueza nas mãos de uma elite que prezou pelo acúmulo de capital,
exploração da mão-de-obra e por uma estética da cidade associada a um padrão
europeizado, o que resultará num espaço de divisões sociais bem delimitados. Como
apontado em Queiroz (2002), em virtude da reorganização da cidade, os currais que
situavam-se na região central e serviam de ponto de apoio para quem passava pela cidade,
foram deslocados para áreas mais afastadas, remodelando assim, a paisagem da cidade e
também deslocando as pessoas que exerciam atividades relacionadas à pecuária para outros
espaços mais afastados do centro. O renomado empresário da mineração currais novense,
Tomaz Salustino investiu na infraestrutura da cidade com vistas a torna-la um ícone na
região do Seridó.
Tomaz Salustino, abriu e construiu estradas. Deu a Currais Novos uma infra-estrutura grandiosa, para uma cidade do interior - estação de rádio, teatro, hotel (sem comparação no Estado, em termos de luxo naquele período) - e promoveu o plano diretor da cidade. Ergueu, nas proximidades da sua mina, uma minicidade para seus operários, com escola, quadra de esporte, creche, posto de saúde e uma igreja, ornada com material vindo da França (Queiroz, 2002, p. 41).
A reurbanização da cidade reatualizou as características da população nos aspectos
de estratificação social. Os ex-escravos ou descendentes destes que por ventura moravam
ou desempenhavam alguma atividade no centro da cidade são famílias ainda distintas no
presente pela ligação com o passado através da cor da pele ou pelos sobrenomes.
No perímetro urbano, depois e antes da abolição, os escravos desempenharam diversos ofícios, desde marceneiros, lavadeiras, engomadores, vendedores de lenha, botadores d’água, passando por outros serviços. Destes que emigraram para a cidade, ainda hoje, sabe-se
34
onde moram seus descendentes. “Os Diogo e os Felipe, moram por trás da AABB Velha, os do Ó, na Rua Baldômero Chacon, os Lucianos moram nas ruas Laurentino Bezerra e Silvio Bezerra” (Queiroz, 2002, p. 2).
De acordo com o censo do IBGE de 2010, da população residente em Currais Novos,
2.420 pessoas se declaram de cor preta, 18.394 pardas, 21.389 se declararam brancas, 422
se dizem amarelas e 27 indígenas. Somando-se pretos e pardos resultam em uma população
de 20.814 pessoas, ou seja, 48,8% da população é considerada como negra. Este contingente
é invisibilizado por um discurso de negação da presença negra no município. E o discurso
que faz do negro um elemento de desordem repete-se também associado à população
negra da cidade. População esta que encontra-se nos bairros da cidade, reconhecidos
popularmente como perigosos, relacionados à violência urbana. A mídia local reforça
diariamente o estereótipo destas comunidades periféricas tidas como marginais. Os
conjuntos habitacionais da COHAB e PROMORAR construídos na periferia da cidade,
respectivamente nas década de 1960 e 1980 serviram para a moradia da classe operária que
cresceu em torno da mineração e das pequenas fábricas que se estabeleceram na cidade. O
centro da cidade e seus casarões ao estilo europeu ficaram reservados à elite currais-
novense: os políticos, os empresários, e profissionais liberais. Ainda conserva-se este padrão
social, visto que a vida social do centro traduz o status elitista da cidade em relação a outros
bairros. Os bairros que estão literalmente às margens da cidade, Sílvio Bezerra de Melo,
conhecido como “Matador”, Santa Maria Gorete e PROMORAR são tidos por violentos e
ligados ao tráfico de drogas. A incidência de assassinatos de jovens é alta e a violência
policial constante.
A historiadora Dorinha Nascimento traz em sua fala sobre a presença negra no
município, a contraditória constatação baseada na visão local como de praxe. Primeiro
afirma que há pouco negros no município e, sob seu ponto de vista, as famílias negras da
cidade de Currais Novos, assim como as comunidades negras rurais demonstram uma
negação do fato de ser negro, baseado numa perspectiva em que todos são iguais e a cor da
pele ou a “raça” seriam elementares na identidade dos indivíduos ou grupos. Logo em
seguida reconhece a forte presença da cultura afro-brasileira a partir da constatação da
presença maciça dos terreiros de candomblé, principalmente no Bairro Santa Maria Gorete.
35
Eu acho o seguinte: Câmara Cascudo disse certo porque se você for lá no Riacho e disser que eles são negros. Você sai de lá. Eles não aceitam que são negros. Aceitam não. Então o que Câmara diz é certo. Eles são negros mas eles não querem ser negros. Eu lhe digo de certeza. Ninguém quer ser negro. Quando eu vou pra lá. As meninas dizem:
─ Ô Dorinha, a senhora ainda tá envolvida com esse negócio? Esses negócio de negro, essas coisas? É uma coisa só, um povo só. Tudinho aqui é a mesma coisa.
Mas elas não querem dizer que são negras do Riacho.
(Dorinha Nascimento, historiadora local e fundadora do Grupo Zumbi em Currais Novos. Entrevista concedida em março de 2015).
A fala de Dorinha pode ser compreendida como o resultado simbólico da difusão das
ideias sobre a refratária presença do negro no sertão. A representação inconsciente
provenientes dos discursos da História local tradicional e a negação da identidade étnica
reproduzida a partir de agentes externos aos grupos ou comunidades negras, engessam as
possibilidades de perceberem a autonomia dos sujeitos em relação a sua autoimagem e
percepção de suas identidades. No ano do centenário da Abolição, 1988, foi criado em
Currais Novos, o grupo Zumbi. Dorinha Nascimento e Joabel Rodrigues13, ambos
historiadores, fundaram em 20 de novembro de 1988 a associação. Segundo Dorinha, o
grupo tinha como objetivo desenvolver atividades que discutissem a questão do racismo, a
participação do negro na sociedade e a promoção dos direitos e da cultura negra. As
atividades concentraram-se, sobretudo, em ações relacionadas à cultura; à apresentação de
mostras de dança, exposições de artes plásticas; palestras em escolas; visitas de estudo à
comunidade Negros do Riacho, entre outras. Hoje o grupo tem como única representante, a
própria Dorinha Nascimento, que nos mostrou parte do acervo da associação. São matérias
jornalísticas, fotos, livro de atas de reuniões e a coleção de telas pintadas por Joabel
Rodrigues, retratando os santos do candomblé. As mesmas são expostas sempre que
solicitado por escolas ou em eventos relacionados à história afrobrasileira.
13
Joabel Rodrigues faleceu em setembro de 2014.
36
FIGURA 4 – Cartaz alusivo ao centenário da Abolição. Secretaria de Educação e Cultura do município
de Currais Novos. Fonte: Acervo particular de Dorinha Nascimento.
O cartaz acima faz alusão à passagem do centenário da Abolição inserida em um
discurso sobre a participação do negro no processo histórico. O material traz como plano de
fundo uma ilustração denominada de “Nossa Senhora dos Potes”, do artista plástico currais-
novense, João Antônio. O desenho faz referência à produção de potes de barro, um dos
símbolos culturais da comunidade Negros do Riacho. Na época citada, Dorinha Nascimento
era a secretária de educação do município e atuante no grupo Zumbi. Neste momento inicia-
se uma tentativa de trabalhar com a presença negra em Currais Novos com foco numa
“africanidade” que na visão dos agentes envolvidos precisava ser resgatada e
contextualizada na realidade local. A presença negra na cidade de Currais Novos apresenta
aspectos tão contraditórios em seus poucos registros, que exigem um trabalho minucioso
para que cheguemos a um entendimento mais coerente sobre a presença de negros e
negras em todos os períodos do desenvolvimento do município. É prudente partirmos da
reflexão sobre a negligência da literatura quanto à participação do negro e elementos da
cultura negra na história local.
37
Nos primeiros afro-brasileiros trazidos para o trabalho escravo; na Irmandade dos
Negros do Rosário14; na construção da cidade; nas comunidades negras rurais ou
quilombolas; nas famílias negras do município, nas periferias, nos terreiros de candomblé;
nas tradições culturais presentes no cotidiano da população; em todas estas expressões da
sociedade currais-novense, está a presença negra. É preciso investigar o que faz com que
sejam reproduzidos discursos de invisibilidade, que da dimensão simbólica passam a
materializar a diferença negativamente e segregar a população local. Trazemos aqui esta
breve referência aos aspectos de dissimulação da história negra em Currais Novos para
situar a condição de desigualdade no acesso da população negra aos espaços sociais e aos
bens públicos. Pretendemos, com isto, compreender como estas barreiras simbólicas se
firmam até a atualidade. Ao refletirem-se nas relações de hierarquia e reciprocidades
presentes na sociedade, estas barreiras estabelecem a conexão entre as bases do
preconceito racial em Currais Novos e a situação atual dos quilombolas e as políticas
públicas. A comunidade Negros do Riacho enfrenta ao longo dos anos, avanços e retrocessos
no que se refere às políticas públicas. São momentos específicos que devem ser investigados
a fim de captar os reais interesses contidos na efetivação de políticas voltadas para o grupo.
As percepções sobre a identidade quilombola e o papel dos agentes envolvidos neste
cenário são representadas em contextos marcados por uma lógica dominante que
intercambia-se com aspectos contrastantes das culturas envolvidas traduzidos na
complexidade das relações interétnicas em questão.
14 Das primeiras ruas da cidade de Currais Novos, uma delas faz referência direta à presença negra nos
primórdios do povoamento da vila de Currais Novos. A Rua do Rosário (Hoje Vivaldo Pereira) que recebeu este
nome em razão de ter situado a casa onde funcionava a sede da Irmandade dos Negros do Rosário de Currais
Novos, na casa nº 48. As outras ruas, que compunham o centro de Currais Novos eram a Rua do Comércio, Rua
Capitão Mor-Galvão e Rua 15 de novembro (Quintino filho, 2009, p. 67).
38
1.3 - Uma longa estrada de idas e vindas
Nosso contato inicial com moradores da comunidade Negros do Riacho deu-se no
final de 2012, na feira de Currais Novos, que acontece todas as segundas-feiras no centro da
cidade. Lá encontramos um grupo de pessoas da comunidade, mulheres e homens que vêm
do Riacho dos Angicos nos chamados carros “pau-de-arara”, onde cada um paga em média
oito reais por viagem. Enquanto um grupo de mulheres vendia bolo e café, o restante
parecia acompanhar. Uns aguardavam a oportunidade para pedir ajuda em dinheiro ou
doações para quem ali parasse, outros prestavam atenção ao movimento da feira.
Naquele momento, tive a oportunidade de conversar um pouco com aquele grupo,
que me falou sobre a comunidade, as dificuldades enfrentadas no dia-a-dia, a produção e a
venda escassa das louças de barro. Lá estavam Pretinha, uma das louceiras da comunidade,
seus filhos; e Minel, que se apresentou como poeta e cantador. Por minha vez, falei sobre a
intenção da pesquisa que pretendia desenvolver a partir do ano subsequente, 2013. Aquelas
pessoas se mostraram bastante solícitas, me convidando para conhecer suas casas na
comunidade. Marcamos então nosso segundo encontro, onde tive a oportunidade de
conhecê-los um pouco mais. A primeira visita aos Negros do Riacho aconteceu ainda no ano
de 2012.
Ao chegar na comunidade, procurei a casa de Pretinha, com quem tinha conversado
anteriormente na feira. Quando avistei sua casa, lá estava ela, sentada no chão fazendo
panelas de barro. Suas filhas, filho e netas ao redor conversavam e observavam o trabalho
feito pela matriarca. Neste mesmo dia procurei fazer contato com o presidente da ADCNR,
Paulo. Como Paulo não se encontrava na comunidade naquele momento, aproveitei para
observar o local, fazer outros contatos, coletar informações sobre a história da comunidade
e fazer também algumas fotografias15 para registrar aquele encontro.
A comunidade Negros do Riacho está situada na zona rural do município de Currais
Novos - RN, na localidade Bonsucesso, a 12km do centro da cidade. Seguindo a BR 226, no
sentido Natal após a primeira curva conhecida como “curva da Sussuarana”, avista-se a
grande panela de barro do lado esquerdo da pista. A panela sinaliza a estrada que nos leva
ao Riacho dos Angicos. A estrada tem alguns aclives, declives e muitas pedras. A vegetação
15
Ver anexos.
39
da caatinga compõe a paisagem do caminho e se metamorfoseia de acordo com os períodos
de chuva. A fauna se mostra de singular beleza, principalmente com seus pássaros, carcarás,
anuns, garças, gaviões, entre outros. Nos primeiros quilômetros temos a paisagem de um
vale com seu horizonte desenhado pela Serra de Santana, onde visualizamos o sítio Serrota
Preta e seus currais, atravessamos o caminho pela “parede” do açude da propriedade.
Depois de aproximadamente 6 km da panela da entrada, avistamos um campo de futebol e
as primeiras casas dos Negros do Riacho. A partir do início da comunidade, a estrada é
entrecortada por riachinhos que são formados pelos afluentes do rio São Bento em tempos
de inverno. Há várias propriedades ao redor da comunidade que cercam a área de 3,6
hectares de terra do Riacho. Segue um esboço da localização das propriedades vizinhas na
ilustração abaixo.
FIGURA 5 – Propriedades vizinhas à comunidade Negros do riacho16
Alguns destes proprietários são ligados às famílias de renome em Currais Novos, que
por sua vez associam-se à instituições políticas ou repartições públicas, como prefeitura,
16
Fonte: Autora
40
partidos políticos, cartório entre outros. A propriedade que avistamos do lado esquerdo da
estrada logo que chegamos à comunidade pertence a Damião, agricultor e comerciante.
Possui em suas terras, uma mercearia que atende as necessidades de insumos básicos da
comunidade. O próprio Damião afirma que vende os produtos a um preço mais alto do que o
normal. Segundo ele, é um custo que os moradores pagam por não terem que se deslocar
para a cidade em busca dos artigos. Além da mercearia e de sua casa, o sítio de Damião
abriga mais duas residências, nas quais vivem moradores da comunidade. Um de seus filhos
é casado com uma mulher do Riacho dos Angicos e vive com ela nesta propriedade. O outro
morador do Riacho vive só e trabalha para Damião na agricultura.
As relações com os proprietários vizinhos apresentam características relacionadas ao
trabalho e à terra. As relações de trabalho atualmente se limitam basicamente à prestação
de pequenos serviços a alguns proprietários vizinhos por parte dos homens do Riacho como
limpeza dos roçados, extração de lenha e pequenos serviços diários esporádicos. Como
informa um dos agentes implementadores entrevistados, a maioria dos proprietários
vizinhos não estabelecem contatos próximos com a comunidade e queixam-se de pequenos
furtos dos moradores em suas propriedades. Segundo o agente, entre a comunidade e os
donos de sítios vizinhos, a relação é “na base da peia”17. Sobre estas acusações de roubo,
Seu João, um dos moradores mais antigos da comunidade, entende como injustas, pois
argumenta que as circunstâncias que levam os moradores à praticar pequenos furtos são
diretamente ligadas à necessidade e isso não é generalizado como no passado. São casos
isolados.
Porque a lei se eu matar um, não passo um dia de cadeia e chego e me aposento, né? Aí quem vai roubar um coco, uma melancia pra dar de comer a dez filhos ou vinte pega um ano de processo. Pra que? Não podia não!
(...)
─ Diga lá ao major que os meninos18 não vão mais não! (Seu João, morador da comunidade. Entrevista concedida em abril de 2015)
17
Expressão se refere à repressão por meio da violência física. Segundo o servidor, os proprietários vizinhos tem um convívio um tanto problemático com a comunidade devido à algumas ocorrências de furtos praticados pelos quilombolas. Por isso, se utilizam da força no intuito de conter qualquer perturbação em suas propriedades. 18
Jovens processados por roubo de peixe e agressão física no Sítio de Rita Saldanha. Ver página 89.
41
Ainda que exista a persistência na reprodução de estereótipos relacionadas à prática
de roubos, os membros da comunidade vivenciam desde tempos remotos a luta pela
sobrevivência a partir do trabalho com a cerâmica; a extração de lenha; produção de carvão;
e a mendicância. Buscam ao seu modo, melhorias e reconhecimento perante a sociedade.
Segundo relatos dos moradores e registros etnográficos feitos na comunidade (Assunção,
2009; Silva, 2009; Queiroz, 2002) os Negros do Riacho descendem de Trajano Lopes,
conhecido por Trajano Passarinho, ex-escravo que veio para o Riacho no século XIX e passou
a morar e constituir família nas terras onde hoje vive a comunidade. Vieram alguns negros e
caboclos de outras localidades que não se sabe ao certo a origem, mas que foram se
misturando e assim a comunidade foi crescendo19. Os relatos sobre a vinda de Trajano
Passarinho para o Riacho dos Angicos entrecruza-se com versões de moradores antigos das
áreas vizinhas e moradores da comunidade. Cada relato apresenta suas variações, mas
referem-se a fragmentos de histórias que os mais antigos repassaram por gerações e se
refazem na memória dos moradores como uma referência ao marco de surgimento da
comunidade atrelado à uma ancestralidade comum. A respeito de como se retocam estas
memórias associadas à identidade quilombola na atualidade, Seu João, nos conta que
Trajano Passarinho, “veio quilombola, veio da África”.
A mãe de minha mãe alcançou Trajano Passarinho (...) a minha vó era Joana Caboclo. Ele veio da África. Ele veio quilombola, veio da África. Eu não sei de que jeito acharam ele lá, ninguém disse como ele veio. Eu acho que ele veio de helicóptero. (...) Veio sozinho, a mulher dele ficou lá. Mas com quinze dias seu Elias tomou conta. Seu Elias tinha sessenta vaqueiros, tinha muito gado de leite. Aí soltava o gado de noite, pra comer... Quando dava duas horas, uma hora, chegava os vaqueiros pra ir buscar o gado na mata (...) aí chegou lá na frente avistou um nego véio bem pretinho atrepado num pé de pau com mais de 20 léguas de mata. Ele tava no meio da mata. Aí o vaqueiro voltou pra trás e disse:
─ Rapaz, lá naquele sete palmo acolá tem uma pessoa ali atrepada num pau. E ele tá gritando. (...) Soltaram de noite, do helicóptero.
Aí seu Elias tinha um bisaco, botou.
Aí disse: ─ lá está ele lá!
19
Ver Assunção (2009). O autor constrói as árvores genealógicas das primeiras famílias do Riacho a partir de trabalho etnográfico realizado na década de 1980.
42
Aí quebraram a vara. Meia légua de mata à cima. Aí trouxeram ele. Levaram ele lá pra Seu Elias. Mas ele não tinha nada nas mãos não. Aguentava não. Passava muito bicho (...)
Quando chegou lá, era velho, era gente demais. Os mais velhos correram tudo (...)
[Trajano Passarinho]: ─ Eu não sei de onde foi que eu vim (...)
[Trajano Passarinho]: ─ Foi um avião que deixou eu aqui.
[Fazendeiro]: ─ O senhor é casado?
[Trajano Passarinho] ─ Sou casado.
[Fazendeiro]: ─ Eita... Aí, onde é que vamos botar esse lugar?
(...) Vamos botar os Negros do Riacho
(...)
Agora aqui é a comunidade os Negros do Riacho.
A mulher dele veio de África. Veio de lá, aí ela tava grávida, um macho e uma fêmea. Aí foi dividindo. (...)
Olhe aí as cor... mas nós somos humanos.
(Seu João, morador da comunidade. Entrevista concedida em fevereiro de 2015)
A versão de Seu João ressalta a procedência africana de Trajano Passarinho e de sua
esposa e agrega a noção de “quilombola” como fator de legitimidade em sua narrativa sobre
a origem da comunidade. A incorporação desta característica reafirma, através dos discursos
dos moradores, a coesão do grupo, o que repercute nas delimitações entre os “quilombolas”
e “os outros”, inclusive diferenciando-os de outros grupos negros locais que não se
reconhecem nem são reconhecidos como tal, como é o caso da comunidade das Queimadas.
As relações estabelecidas entre os recentemente denominados “quilombolas” e a
população urbana de Currais Novos por muito tempo foi marcada por relações comerciais
em dia de feira. A tradição da fabricação das louças de barro, em especial os potes, para
vender na feira semanal de Currais Novos às segundas-feiras tornou-se uma marca
registrada da presença do grupo na cidade.
43
FIGURA 6 – Maria Anunciada e sua produção de louças Fonte: Autora. Foto tirada em março de 2015.
Atualmente, são seis pessoas que desenvolvem a produção das peças de barro: Ana,
Pretinha, Maria Anunciada (Nininha), Zé Pereira (Veinha), Aparecida e Doiva. São quatro
fornos particulares em que são feitas a queima das peças, que apesar das raras vendas
continuam sendo um símbolo do grupo.
FIGURA 7 – Pretinha produzindo peça de barro.
Fonte: Autora. Foto tirada em outubro de 2012
44
Marca registrada também são os estereótipos sobre os moradores do Riacho, que ainda
fazem parte do imaginário da população de Currais Novos. Na “rua”, como chamam a zona
urbana, os negros têm a fama de serem brigões, bêbados, e preguiçosos, além de mendigos,
pois a mendicância sempre foi um costume ou uma “tática” (Andrade e Silva, 2006), e ainda
é recorrente. A maioria dos moradores complementa a baixa renda da família com os
programas do governo como Bolsa Família e as aposentadorias recebidas pelos familiares
idosos. Há famílias que vivem somente destes rendimentos. A atividade mais comum é a
venda do carvão produzido pela maior parte dos homens da comunidade. São 35 famílias
que compõem a comunidade, sendo 205 pessoas no total, entre crianças, jovens, adultos e
idosos.
45
FIGURA 8 – Croqui da Comunidade Negros do Riacho20
Das 43 casas de alvenaria construídas através dos projetos sociais de habitação, duas
foram demolidas, 4 estão anexadas à outras e duas estão na propriedade de Damião. Há
algumas construções de taipa, que foram feitas pelos próprios moradores para suprir a
necessidade habitacional das famílias como a casa da filha de Seu João. Há também,
construções de taipa para outras finalidades, como a casinha do jogo de dominó e uma outra
20 Fonte: Autora, 2015. O mapa da comunidade foi elaborado a partir da observação do espaço da comunidade
durante pesquisa de campo e teve auxílio de José Oliveira e Raphael Fernandes.
46
que serve como dispensa, anexa à casa da família de Marluce e José. Há somente uma
destas construções antigas que não foi demolida durante a construção das novas casas,
onde hoje funciona a cozinha da residência de Seu João e Dona Fátima, sua esposa. O
morador diz que a casa deve ter “uns trezentos anos” e que “ninguém derruba não”.
Percebemos que as casas de taipa representam um valor ancestral da comunidade presente
na memória daqueles que construíram e viveram nelas, porém relacionado ainda aos seus
modos de vida no presente. As construções artesanais de barro estão ligadas ao cotidiano da
comunidade, às práticas relacionadas ao trabalho doméstico e à produção da louça. Maria
Anunciada, louceira na comunidade há quarenta anos, conta que houve uma parada na
produção das peças com a construção das casas de alvenaria. Precisou de um tempo para
que as pessoas se adaptassem à nova estrutura. As pessoas costumavam produzir as peças
dentro das antigas casas de taipa. Segundo a artesã, é incômodo fazer as peças nas atuais
casas,
porque desgraça o cimento que já tá desgraçado. Se botar o negócio, aí fica aquele mela mela (...) Ficou ruim porque não tinha aonde botar. Porque a pessoa só pode botar barro dentro de casa. A pessoa bota um potinho assim, aí bota um paninho em cima, cobre. (Maria Anunciada, moradora da comunidade e louceira. Entrevista concedida em março de 2015).
A arte do barro é uma prática centenária que provém dos primeiros moradores do
Riacho. As louceiras e o único louceiro do grupo falam com propriedade sobre as técnicas
utilizadas e sobre cada etapa da produção. Nota-se que a habilidade que estas pessoas
desenvolveram através do conhecimento repassado por gerações faz parte de um saber
representativo para toda a comunidade, ainda que inconscientemente. O fato de resistir
como um valor identitário e driblar as adversidades colocadas pela falta de incentivo e
desvalorização do trabalho faz com que a atividade permaneça atual na vida dos moradores
ainda que precariamente. Somente em 2005, com o Projeto Dignidade inicia-se uma
tentativa, por parte do Estado, em investir na produção das louças, mas sem sucesso pois a
proposta não atendia as expectativas da comunidade. Assim como em outras áreas, a prática
ceramista sofre com a falta de investimentos e incentivo. A história das políticas públicas na
comunidade tem início com o diagnóstico da situação social da comunidade feita pelo
47
Projeto de Ação Comunitária21 em 1985. Logo em seguida, a Ordem Franciscana Secular e
Ordem Terceira coordenada pelo Frei Alemão Fernando Schnitker junto com as Paróquias de
Santana e Imaculada Conceição coordenadas pelo Padre Welson, propõem parceria com a
prefeitura de Currais Novos para desenvolver ações na comunidade a partir do fim da
década de 1980 (Queiroz, 2002; Assunção, 2009; Silva, 2009). Estas ações tiveram em vista
uma espécie de reorganização social e cultural da comunidade, pautados pela ideia de
“humanização” e evangelização propostas pela Igreja Católica.
Na realização dessas atividades, os moradores do Riacho foram civilmente registrados e os religiosos fizeram casamentos e batismos, objetivando levar a cristandade oficial e o direito civil para a comunidade. A Igreja Católica desenvolveu no Riacho uma ação social e moral que visava, deliberadamente, reabilitar os pobres sujeitos da miséria física e do infortúnio de não viverem plenamente de acordo com os caminhos apontados pela moral cristã (Silva, 2009).
O ápice desta intervenção do poder público e da Igreja Católica na comunidade se
deu com a construção das 27 casas de alvenaria que, desde então, representam um marco
no que diz respeito às políticas públicas na comunidade. Segundo Queiroz (2002), estas
ações tiveram repercussão na cidade de Currais Novos suscitando juízos diversos sobre os
trabalhos desenvolvidos. As críticas à intervenção da Igreja se dividiam. Por parte dos
membros do movimento negro local, os integrantes do Grupo Zumbi, Dorinha Nascimento e
Joabel de Souza (Silva, 2009) achavam que a Igreja estaria modificando a cultura e as
práticas tradicionais dos moradores, intervindo em seus costumes. Já as crítica vindas de
outros setores da sociedade, inclusive da própria Igreja se colocavam contrárias às ações por
pensarem que os moradores não tinham merecimento de tais benefícios, por serem
considerados preguiçosos e vagabundos (Queiroz, 2002). Estes juízos de valor sobre os
Negros do Riacho sempre estiveram presentes na concepção de todo e qualquer tipo de
intervenção do poder público na comunidade. De um lado, uma visão que estigmatiza os
indivíduos do grupo através da reprodução de estereótipos. De outro lado, uma visão que
coloca a cultura da comunidade como algo estático e que deve ser resguardado e
permanecer intocado. Por vezes, estas visões se mesclam e aparecem nas falas dos
populares compondo um discurso afinado com uma idéia de estranhamento sobre possíveis 21
O Projeto de Ação Comunitária da Paróquia de Santana de Currais Novos, vinculado ao Programa de Assistência Educacional aos Municípios coordenado por Maria Dalva Caldas. Antecedeu as ações da Igreja na comunidade coordenadas pelo Frei Fernando Schnitker (Medeiros, 2008, p. 53)
48
transformações no modo de vida da comunidade. Uma senhora curraisnovense, residente na
Rua Antônio Eduardo Bezerra22 há 62 anos, fala sobre a presença dos Negros do Riacho na
feira, próximo à sua residência e as mudanças observadas por ela nos aspectos sociais do
grupo:
Todo dia eles vêm, todo dia eles tão aqui. Trabalhar que é bom, nada! Com Bolsa Família, né? Eles têm moto, têm Bolsa Família. É muito diferente de antigamente. Agora andam muito arrumados, as moças são tudo pintada. Quando eles vêm chegando tem gente que diz: “Lá vem o carro da coca-cola”, porque é tudo preto, né?23
Como mostra a citação acima, atualmente ainda há um estranhamento sobre
qualquer intervenção que modifique a condição social e cultural dos integrantes da
comunidade. Na fala da moradora da cidade, além da caracteriza-los depreciativamente, fica
evidente a concepção de que o Programa Bolsa Família está associado à uma mudança na
realidade social do grupo. Estas mudanças vão de encontro à visão naturalizada sobre os
Negros do Riacho como extremamente pobres e pedintes. O acesso dos quilombolas a seus
direitos e a aquisição de bens materiais que antes eram impensáveis para as suas condições
financeiras contrariam as pré-concepções da sociedade. Ao transcender os limites simbólicos
colocados ao grupo, os moradores do Riacho posicionam-se diante de um universo de
relações interétnicas hierarquizado, onde as disputas pelo poder constituem os arranjos da
sociedade, as demarcações dos laços de solidariedade e reciprocidades.
Há mais de 20 anos atrás, pensar uma outra realidade para o grupo provocou várias
tensões na sociedade curraisnovense. Segundo Paulo, ex-representante da ADCNR, o
trabalho da Igreja nos anos 1990 tem sua importância por ter sido a primeira ação que viria a
beneficiar a comunidade.
Foram primeiros os Alemães em 1993, eles fizeram essas casas aqui. Nós morava em casa de taipa. Se não fosse eles, nós morava em casa de taipa ainda. Não foi nem brasileiro, foi primeiro os alemães de fora, que os daqui não teve condições de olhar pra cá, certo? Por que como nós tem deputado, senador, governador do estado que não olha pra comunidade nossa, é o povo de fora quem olha, né? (Paulo, morador da comunidade. Entrevista concedida em novembro de 2013)
22
Rua que engloba parte da feira livre de Currais Novos. 23
Fala de moradora da cidade de Currais Novos.
49
A fala de Paulo é a expressão de que algo precisava ser feito na comunidade pois o
grupo precisava iniciar um diálogo com o poder público de alguma forma. Até então, havia
uma inércia total em relação à intervenção de políticas públicas no local. Diante da situação
de descaso e a necessidade da comunidade de acessar algum tipo de benefício, a obra das
casas foi concluída e oficialmente entregue aos moradores em 1994. Este processo
aconteceu a partir do contato, principalmente, entre os representantes da Igreja e os
moradores da comunidade. Segundo Queiroz (2002), este projeto foi desenvolvido em meio
a conflitos expressos tanto nas críticas da opinião pública como na desconfiança da
comunidade em relação à proposta do projeto; na falta de recursos suficientes; no impasse
sobre a atuação dos moradores como mão-de-obra na construção; nos interesses políticos
da prefeitura, entre outras tensões.
No período de 2005 a 2007, o grupo recebeu autoridades do Governo do Estado e do
Governo Federal em virtude da mobilização para o Projeto Dignidade e do reconhecimento
dos Negros do Riacho enquanto quilombolas, pela Fundação Palmares. Há que se destacar
que, nesta época, foi fundada a Associação Comunitária e a líder Teresa (hoje falecida), que
tinha notável representatividade para o grupo, era a principal responsável pela interlocução
com o poder público. Depois de Teresa, segundo os membros da comunidade, não houve
mais uma liderança tão expressiva que atuasse na resolução das demandas do grupo com
tanto afinco. “Quando era no tempo de Teresa era mais fácil, né? Tereza era uma guerreira
mais esperta. Quando ela queria uma coisa, enquanto ela não conseguia, ela não deixava de
correr atrás” 24, afirma um morador da comunidade. Entre os agentes implementadores que
conheceram Teresa também é aparente a posição de liderança que ela assumia. “Todo
mundo obedecia à ela, ela já foi pra Brasília lutar pela comunidade. Ela não tinha nenhum
estudo, ela não sabia falar bonito, mas ela tinha coragem”, diz a servidora do CRAS.
O Programa Brasil Quilombola foi criado como um instrumento político para
reafirmar a legitimidade dos direitos das comunidades quilombolas e respaldar
institucionalmente a criação e efetivação de políticas públicas para este segmento. Lançado
em 2004 pela SEPPIR, propõe consolidar o acesso destas comunidades às políticas de Estado.
Com o decreto 6.261/2007 foi instituída a Agenda Social Quilombola que reforça o
compromisso dos órgãos do Governo Federal em desenvolver ações integradas juntamente
24
Fala de morador da comunidade, membro da ADCNR. Entrevista concedida em outubro de 2014.
50
com os estados e municípios para a melhoria das condições e acesso destes grupos aos bens
e serviços públicos. Em 2014, ano em que o PBQ completa uma década da existência, o IPEA
e a SEPPIR, por meio do monitoramento dos indicadores de desigualdades raciais, lançaram
uma publicação sobre a situação social dos quilombolas por estados da federação. O estudo
traz os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada nos
anos de 2001 e 2012 a partir dos eixos: 1) Características das famílias; 2) Escolaridade;
trabalho e renda; e 3) Seguridade social. A partir dos quadros mostrados na pesquisa, a
SEPPIR reitera a necessidade de aperfeiçoar as políticas de promoção da igualdade racial e
reconhece que
apesar do evidente avanço nas condições de inserção econômica e social,
ainda persistem os diferenciais que colocam os negros em desvantagem,
comparativamente aos brancos, em todos os indicadores analisados. A
permanência das desigualdades raciais se deve às enormes desvantagens
acumuladas pelo segmento negro até o momento em que o país passa a
ampliar as oportunidades em vários campos da vida social, inclusive com a
adoção de ações afirmativas na educação. Às diferenças do ponto de
partida de cada grupo racial, soma-se a resiliência do racismo que, como
elemento estruturante das relações sociais no Brasil, opera no sentido de
amortecer o dinamismo do processo de inclusão social (IPEA, 2014, p.12).
A Secretaria destaca a importância de trazer a perspectiva racial para as políticas
gerais e setoriais para que se avance nos resultados das ações afirmativas no país. O
Programa Brasil Quilombola prevê a execução destas políticas setorizadas nas comunidades
quilombolas. Para isso, é necessário que haja uma efetiva articulação entre as esferas de
governo para que o Programa e suas ações sejam viabilizadas e atinjam seus devidos
objetivos. O comitê gestor do PBQ é composto por onze ministérios que visam atuar
conjuntamente na formulação, implementação e avaliação de programas, projetos e demais
ações que se inserem no âmbito das políticas para quilombolas no Brasil. Além dos
ministérios, outros órgãos e entidades também participam do processo em suas respectivas
esferas. É o caso das secretarias municipais e estaduais e as entidades relacionadas aos
movimentos sociais negros e representações e/ou associações quilombolas.
51
QUADRO 1 - Comitê gestor do Programa Brasil Quilombola25
1. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR)
2. Casa Civil da Presidência da República (CC/PR)
3. Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
4. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)
5. Ministério da Cultura (MinC) e Fundação Cultural Palmares (FCP)
6. Ministério das Cidades
7. Ministério da Educação (MEC) e Fundo Nacional da Educação (FNDE)
8. Ministério da Saúde (MS) e Fundação Nacional de Saúde (FUNASA)
9. Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
10. Ministério da Integração Nacional (MI)
11. Ministério de Minas e Energia (MME)
O papel dos municípios torna-se preponderante na aplicação de tais políticas, pois é a
esfera da gestão que atua na ponta da implementação das políticas junto às comunidades.
No entanto a articulação dos recursos e a destinação destes, bem como, a forma de
trabalhar as políticas públicas em cada localidade requer uma sistematização feita em torno
de prioridades e metas a serem alcançadas. Todo este processo envolve interesses políticos
que irão delinear a efetivação ou não das ações previstas pelo Programa. O documento
inicial do Programa destaca
(...) o papel de dois fatores nesse contexto que trabalham na última esfera de execução da política: o prefeito no campo da administração pública e os quilombolas como principais beneficiários. Nas localidades em que o gestor municipal for comprometido com os propósitos do Brasil Quilombola e os quilombolas demonstrarem um razoável grau de organização, certamente a obtenção dos resultados esperados se dará de forma mais consistente (Brasil, 2004, p.22).
Esta é uma constatação que vem sendo evidenciada, ao longo dos últimos dez anos,
no que se refere à aplicação das políticas do PBQ. Contudo, a obviedade nesta observação
não pode simplesmente se encerrar em si mesma sem que sejam destacados outros pontos
25 Fonte: SEPPIR - Guia de Políticas Públicas para Comunidades Quilombolas (2004).
52
que são igualmente relevantes para atingir os resultados almejados e, sobretudo, que
resultados são esperados. Visto que os dados sobre os avanços e mudanças nas
comunidades quilombolas ainda confirmam a existência de lacunas entre as propostas das
políticas, a execução das mesmas e as metas alcançadas, em decorrência de vários entraves
principalmente de ordem política. Existem outros interesses internos e/ou externos às
políticas públicas, que rondam a execução do Programa desde a sua formulação até a
implementação. Em todas as esferas envolvidas há responsabilidade sobre o processo como
um todo. As peculiaridades de cada município, de suas respectivas comunidades e sua
situação sócio-cultural precisam ser levadas em consideração pelos agentes
implementadores em todos os níveis de gestão para que a construção e a consolidação das
políticas públicas aconteçam de acordo com as realidades nas quais pretende-se intervir. As
características relacionadas ao Programa em Currais Novos e os interesses em questão é o
que tentaremos trazer neste trabalho para avaliarmos a atuação da gestão municipal na
comunidade Negros do Riacho.
A partir do principal referencial legal sobre os direitos dos povos quilombolas,
presente na Constituição de 1988, o art. 68 do ADCT, as comunidades passam a ter respaldo
jurídico para a promoção de políticas públicas referentes à titulação de seus territórios. É
previsto também nos artigos 215 e 216 o dever do Estado de garantir meios para a
preservação da cultura destes segmentos. Outros marcos legais que incluem especificidades
das comunidades quilombolas foram oficializados no decorrer destas últimas décadas.
Abaixo estão relacionados artigos da Constituição Federal e decretos presidenciais
que reforçam a legitimidade e reafirmam a necessidade de construção e ampliação de
políticas públicas para as comunidades quilombolas.
53
QUADRO 2 – BASE LEGAL PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
QUILOMBOLAS
Artigo 68/ADCT/CF
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Art. 215/CF
O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Art. 216/CF
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.
DECRETO Nº 5.051, DE 19 DE ABRIL DE 2004.
Promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais
DECRETO Nº 4.887 DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003
Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
DECRETO Nº 4.883 DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003
Art. 1o Fica transferida do Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário a competência relativa a
delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como a determinação de suas demarcações, estabelecida no inciso VI, alínea "c", do art. 27 da Lei n
o 10.683, de 28 de maio de 2003.
DECRETO Nº 4.886, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003.
Institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial - PNPIR e dá outras providências.
DECRETO Nº 6.261/2007 DE 20 DE NOVEMBRO DE 2007
Dispõe sobre a gestão integrada para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no âmbito do Programa Brasil Quilombola, e dá outras providências Art. 1
o As ações que constituem a Agenda Social Quilombola, implementada por meio do Programa Brasil Quilombola,
serão desenvolvidas de forma integrada pelos diversos órgãos do Governo Federal responsáveis pela execução de ações voltadas à melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a bens e serviços públicos das pessoas que vivem em comunidades de quilombos no Brasil, sob a coordenação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
DECRETO Nº 6.040 DE 7 DE FEVEREIRO DE 2007
Institui a Política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais.
LEI Nº 12.288, DE 20 DE JULHO DE 2010
Institui o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial - SINAPIR
Diante da base legal que dispõe sobre o papel do Estado no combate às
desigualdades raciais, as políticas públicas para comunidades quilombolas passam a fazer
parte da agenda política nacional e o Programa Brasil Quilombola, atualmente, compõe um
conjunto de medidas que visam pôr em prática a garantia destes direitos. Então o que
54
dificulta a efetivação destas medidas, já que as comunidades permanecem sofrendo com a
falta de acesso às políticas sociais básicas? Segundo a Fundação Cultural Palmares, até o ano
de 2015, foram certificadas 2.474 comunidades quilombolas. Um alto número de
comunidades vem acionando o Estado em favor do reconhecimento étnico e territorial.
Neste ano, foram reconhecidas 33 comunidades até o mês de fevereiro. Apesar do aparato
legal que regulamenta as ações do Estado em relação aos grupos quilombolas, muitos
serviços públicos não chegam a ser acessados por estes. Como pensar em reconhecimento
étnico se as necessidades básicas das comunidades ainda não foram reconhecidas e
superadas? Esta é uma das problemáticas a serem investigadas na comunidade Negros do
Riacho.
55
Capítulo 2
Políticas públicas para quilombolas?
Neste capítulo apresentamos um breve histórico sobre a trajetória de lutas contra a
discriminação e o preconceito sofridos pela população negra no Brasil e como se
configuraram as propostas de políticas de ação afirmativa ao longo das últimas décadas. O
final da década de 1980 torna-se um marco para as relações e movimentações sociais e
políticas no país. Foi em torno da luta antirracista travada entre Movimento Negro e Estado
que se organizaram importantes pautas para uma agenda política no Brasil que impulsionou
ações, intervenções e o planejamento de políticas públicas que desde então vêm sendo
construídas e delineadas conforme uma rede de interesses que envolve, de uma forma
geral, avanços e retrocessos para os movimentos sociais negros e para a população negra. O
Programa Brasil Quilombola surge em meio às mudanças políticas na conjuntura nacional
advindas da ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT) e a criação de novos espaços e
dispositivos legais para a construção de políticas específicas para quilombolas. Trazemos
aqui os referenciais teóricos e metodológicos que nortearam a pesquisa de avaliação do
Programa Brasil Quilombola na comunidade Negros do Riacho. A partir do conceito de
dádiva, refletimos sobre as relações que se constituem na efetivação de políticas públicas
para o grupo, tendo como referência os contextos políticos permeados por representações
simbólicas, reciprocidades e hierarquia entre a comunidade e a sociedade curraisnovense
em geral. Deste modo, expomos o quadro conceitual em que nos basearemos para
questionar os interesses em torno das políticas públicas para quilombolas no âmbito do
município de Currais Novos.
56
2.1. – Início do Programa Brasil Quilombola
O Programa criado em 2004 pela Secretaria de Politicas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), visa consolidar as políticas de Estado no tocante às áreas de quilombo,
atuando em conjunto com onze ministérios para a implementação de políticas públicas em
diversas áreas junto aos estados e municípios. Os principais objetivos do Programa estão
voltados para a garantia do acesso à terra; ações de saúde e educação; habitação;
recuperação ambiental; incentivo ao desenvolvimento local; pleno atendimento das famílias
quilombolas pelos programas sociais, como o Bolsa Família; e medidas de preservação e
promoção das manifestações culturais quilombolas. O último diagnóstico divulgado do
Programa, referente a janeiro de 2014, revela que 74,1% das 113 mil famílias quilombolas,
cadastradas no CadÚnico, possuem perfil de extrema pobreza, o que representa uma
situação problemática sobre a sustentabilidade das comunidades.
A efetivação de medidas visando a regularização das comunidades remanescentes de
Quilombo pode-se dizer que é recente. Ainda que conste na Constituição Federal de 1988,
no artigo 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), a prerrogativa para
que as comunidades tenham o reconhecimento e a titulação dos territórios concedida pelo
Estado, é somente em 2003, ano em que se institui a SEPPIR, que têm início a criação e
efetivação de dispositivos mais incisivos sobre a regulamentação das comunidades
quilombolas, como o decreto nº 4.887/2003 que trata da regularização fundiária de terras
de quilombos e define as responsabilidades dos órgãos governamentais. A reabertura
democrática do país e, mais à frente, a promulgação da Constituição de 1988, denominada
de Constituição cidadã, tiveram reflexos das atuações de segmentos organizados da
sociedade civil e movimentos sociais, entre eles os movimentos negros. O contexto político
do final da década de 1980 coincidiu com as comemorações pelo centenário da Abolição da
escravatura no Brasil. Em 1988, a idéia de liberdade do “povo negro” aparecia como o
principal emblema divulgado pelo Estado em clima de comemoração, mesmo após cem
anos, a população continuando a viver estratificadamente nos guetos e periferias, privados
de seus direitos e garantias previstas na Constituição cidadã.
57
Por outro lado, organizações do movimento negro, que já vinham inseridas numa
discussão com novas perspectivas sobre a participação das populações afrobrasileiras na
sociedade, manifestaram-se contra a posição passiva do Estado diante das situações de
discriminação racial enfrentadas pela população negra. Questões sobre a ideologia da
democracia racial, que há décadas vinha sendo reproduzida no plano político nacional
ganharam destaque neste momento.
A resposta dos movimentos negros transpareceu, por exemplo, via mobilização na Marcha contra a Farsa da Abolição, realizada no Rio de Janeiro em maio de 1988. Além dessa mobilização visível, aconteceram outras articulações não tão visíveis, mas que impulsionaram ações em todo o país. Exemplo dessas articulações foi a presença de militantes nos núcleos de partidos políticos, sindicatos, bem como nas coordenadorias, programas e conselhos da população negra que começavam a ser criados nesse momento, nos âmbitos municipal, estadual e federal (...) (RODRIGUES, 2010, p. 8).
O final da década de 1980 torna-se então um marco para as relações e
movimentações sociais e políticas no país. Foi em torno da luta antir-racista travada entre
movimento negro e Estado onde organizaram-se importantes pautas para uma agenda
política no Brasil que impulsionaram ações, intervenções e o planejamento de políticas
públicas que desde então vêm sendo construídas e delineadas conforme uma rede de
interesses que envolve, de uma forma geral, avanços e retrocessos para os movimentos
negros26 e para a população negra. E não sem menos contradições, pois apesar do salto
político sobre a participação popular na busca da democracia e de políticas públicas, os
segmentos organizados da sociedade, principalmente os partidos de esquerda, se dividiam
entre atuar em vias para uma mudança estrutural da sociedade ou aderir às políticas de ação
afirmativa. Aderir à uma lógica reformista sobre as mudanças sociais do país significava a
cooptação política por parte do Estado, tendo em vista que as ações afirmativas nos Estados
Unidos caminharam no sentido de uma política assimilacionista e não questionadora de um
sistema de poder e dominação baseado nas diferenças étnicas e raciais. A questão racial,
apesar de avançar no sentido de criar novos espaços para discussão, ações diretas e obter
novas conquistas no plano jurídico-legal mostrou-se, desde sempre, ser tratada de forma
fragmentada ou sobrepujada pela problemática relacionada à classe social. Estes
26
Refiro-me ao conjunto de movimentos sociais formados por militantes negros que encamparam a luta contra as desigualdades sócio-raciais sofridas pela população negra no Brasil, entre eles o mais emblemático, o Movimento Negro Unificado (MNU), que fundou várias frentes de luta estaduais no país.
58
desencontros e contradições, nos quais se esbarraram os movimentos negros, suscitaram
um grande impasse sobre como direcionar as propostas de mudança social que englobassem
as especificidades da população negra e como atuar neste sentido, visto que a realidade
social brasileira constitui-se de uma complexidade, que vai desde sua formação, atrelada às
relações fundamentadas em poder, dominação e exclusão de determinados segmentos
sociais, o que envolve aspectos de dominação simbólica e econômica ligados a interesses
tanto nos microespaços de poder como nos campos mais estruturais da sociedade.
No entanto, os setores mais engajados nos debates sobre mudança social no país na
época, os partidos de esquerda, não agregavam estas especificidades em suas pautas
principais. Surge então uma intrigante questão para a esquerda brasileira: como articular as
demandas de classe e raça? A princípio esta questão gerou inúmeros conflitos, novas
concepções e rupturas nas organizações partidárias, levando a formação de novas frentes de
luta e resistência negra. Soares (2012) ressalta que a militância negra esteve filiada a um
projeto de transformação da realidade social intrinsecamente ligada à participação de
militantes negros nos partidos de esquerda. Ao investigar o processo de politização da
questão racial no Brasil a partir do histórico do Partido dos Trabalhadores (PT) sobre as
mobilizações em torno da problemática racial e a construção de uma militância negra
petista, a autora coloca os dilemas enfrentados pelos militantes sobre a adesão às políticas
públicas de corte racial, em que muitos viam estas políticas como um retrocesso na
discussão sobre a mudança social centrada na luta de classes.
(...) a avaliação da militância é que essa centralidade levava ao silêncio sobre o papel do racismo no contexto da luta de classes, fazendo com que as discriminações, opressões e desigualdades raciais fossem subsumidas na perspectiva de classe. (...) À medida que o debate público sobre a questão racial foi sendo aprofundado a partir da perspectiva da cidadania, a militância negra petista teve que se confrontar com suas concepções ideológicas e com seu entendimento da politização da questão racial no Brasil (SOARES, 2012, p. 52-53).
É nos anos de 1990 em que o Estado vem reconhecer publicamente o papel
discriminatório que desempenhou ao longo dos anos e passa a legitimar ações que atendam
as prioridades da população negra. No momento em que o Estado assume o racismo
institucional, é previsto que assuma também a responsabilidade sobre as garantias básicas
para a igualdade de oportunidades e condições sócio-econômica entre brancos e negros. A
59
Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo pela Cidadania e pela Vida que aconteceu em
1995 como um grande ato em referência aos trezentos anos da morte de Zumbi dos
Palmares, trouxe novamente à tona as problemáticas que se abatiam sobre a população
negra. O ato de repercussão internacional obteve avanços qualitativos no debate sobre o
racismo no Brasil.
Em relação às diferenças com o contexto político anterior, cabe atentar para o seguinte: primeiro, a marcha origina um documento intitulado Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade, o qual foi um conjunto de reivindicações cujo ponto central era a ênfase nas políticas públicas para a população negra (...) (RODRIGUES, 2010, p. 8-9).
Diante desse contexto, é necessário evidenciar a situação social e as estatísticas
desiguais de acesso à educação, trabalho, renda, entre outros indicadores sociais sobre as
condições da população negra. Passa-se, então, a reivindicar ações afirmativas que possam
contemplar estas demandas. A partir daí, em 1995, é composto o Grupo de Trabalho
Interministerial com finalidade de desenvolver políticas públicas para a promoção da
igualdade racial. Em 2001, com a 3ª Conferência mundial contra o racismo, discriminação
racial, xenofobia, e formas correlatas de intolerância, realizada pela ONU, em Durban, na
África do Sul, da qual o Brasil sendo signatário, compromete o Estado brasileiro a criar
mecanismos para modificar o quadro de discriminação racial. Com o decreto n° 4.228/2002,
que institui na esfera da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações
Afirmativas, o Governo de Fernando Henrique Cardoso precisou se manifestar em relação ao
racismo de forma prática, trabalhando na formulação e implementação de políticas públicas
direcionadas para a população negra. As políticas de ações afirmativas configuram-se como
um conjunto de ações visando a inserção de determinados grupos discriminados
socialmente, portanto privados de oportunidades iguais aos demais em sua vida social. Tais
ações podem partir tanto do poder público como do poder privado, assim como de
associações ou organizações não governamentais. As ações afirmativas, através de
programas e metas estabelecidas têm como objetivo reverter o quadro social de
desigualdades sofridas por minorias subalternizadas ao longo dos séculos, como negros,
índios, mulheres, deficientes, homossexuais, entre outros. Os debates sobre as formas de
inserção de políticas públicas para a população negra tiveram de percorrer um longo
caminho para chegar a alguns consensos sobre a sua legitimidade na sociedade brasileira.
60
Nesse itinerário das políticas afirmativas no Brasil, começa-se a articular, no âmbito das
esferas governamentais, formas de inclusão para segmentos da sociedade historicamente
discriminados. As principais medidas, com notável repercussão na mídia e na sociedade em
geral, foram as reservas de cotas nas universidades federais, estaduais e centros
tecnológicos. As universidades pioneiras na inserção do sistema de cotas para
afrodescendentes desempenharam um papel fundamental nesse processo de visibilidade do
preconceito e discriminação do negro na sociedade, pautando as discussões sobre o acesso
desigual e permanência de estudantes negros no ensino superior. Além disso, governos
estaduais, municipais e instituições judiciárias começaram a implementar cotas para negros
em concursos públicos, o que também gerou grandes polêmicas na sociedade. As pesquisas
e diálogos frutíferos sobre o papel do negro na sociedade abriram espaços e possibilidades
de mudança social para a população negra brasileira.
É a partir do governo Lula em conjunto com a atuação dos movimentos negros e a
criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, órgão federal
encarregado de coordenar as políticas de promoção da igualdade racial, que inicia-se a
implementação de políticas públicas de corte racial no país. A SEPPIR cria o Programa Brasil
Quilombola em 12 de março de 2004 como política de Estado, visando implementar
programas e ações em parceria com outros órgãos governamentais em comunidades
quilombolas de todo o país (Brasil, 2004, p. 7). O programa contempla quatro eixos
temáticos, os quais definem suas ações: Regularização fundiária; infraestrutura e serviços;
desenvolvimento econômico e social; controle e participação social. Dentre as políticas
orientadas por estes eixos aparecem, em maioria, as políticas de princípios universais, que
são políticas referentes a direitos assegurados pela Constituição a todos os cidadãos
brasileiros. O acesso a tais políticas segue como pauta principal nas demandas de vários
segmentos sociais que historicamente não participam igualmente deste acesso como é o
caso das populações indígenas e comunidades negras. O Programa apresenta a importância
da regularização fundiária baseada no significado do território como sendo o principal
elemento entre as comunidades e a construção de identidades. Apesar desta ser a proposta
mais próxima das necessidades específicas das comunidades quilombolas, a intenção de
promover a regularização dos territórios quilombolas não é novidade na legislação brasileira.
No entanto, a importância do Programa trazer à tona esta particularidade respaldada no
61
artigo 68 da Constituição, retoma a relevância da propriedade da terra para as respectivas
comunidades quilombolas. Na prática, existem vários entraves políticos e burocráticos, que
além de impedirem a efetivação dos direitos constitucionais, envolve diversos conflitos que
historicamente fazem parte da problemática sobre a questão agrária no Brasil. No final dos
anos de 1970, ao analisar a questão agrária no Brasil, Caio Prado Junior observa que além do
problema da grande concentração da propriedade de terra, as condições de vida das
populações rurais e as maneiras como estas se apropriam e fazem uso da terra são postas
como questões secundária (1979, p. 19). As problemáticas relacionadas aos conflitos
agrários foram desde sempre percebidas no país com certa homogeneidade,
desconsiderando as especificidades das relações de trabalho, do uso e ocupação da terra. O
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) lança em 2013, o Plano Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PNDRSS), que apresenta uma proposta
inovadora sobre a agricultura familiar, incluindo as comunidades quilombolas, entre outros
segmentos étnicos, como principais beneficiários das políticas para o cultivo e uso
sustentável da terra. Apesar destes avanços na criação de dispositivos que legitimam a
implementação de políticas públicas para a agricultura familiar, pequenos agricultores rurais,
existe um imperativo que está intimamente ligado à estrutura política e econômica do país
que hierarquiza estas relações do mundo agrário e privilegia setores em expansão como é o
caso dos investimentos para o crescimento do agronegócio.
O Programa Brasil Quilombola segue as orientações do decreto 4.886/2004, que
regulamenta os princípios da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial:
transversalidade, gestão descentralizada e democrática. Estes princípios são apontados
como sendo o diferencial do programa em relação aos outros modelos anteriores de
implementação de políticas para quilombolas (Brasil, 2004, p. 21). É um programa que
abrange muitas ações, porém a articulação com os estados e municípios gestores das
políticas em âmbito local merecem uma maior atenção em termos de conexão entre a
proposta do Programa a nível nacional e a implementação das ações locais.
O texto de apresentação, lançado em 2004, traz suas propostas e estratégias de ação,
situando historicamente os aspectos sociais, culturais e econômicos da realidade das
comunidades quilombolas no Brasil. Ao contextualizar a questão racial na sociedade atual,
62
reafirma a necessidade de implementação de políticas públicas, considerando a diversidade
e as respectivas especificidades das demandas locais.
Nesta trajetória, rastreiam-se as imagens de uma equação pautada no desafio e na ousadia destinados à promoção da igualdade racial, a partir de programas e medidas de cunho político e administrativo, visando, coletivamente, a inclusão social, na certeza de que está se construindo o novo e produzindo, assim, coesão em torno de uma agenda nacional que estabeleça acordos para promover a cidadania numa longa e contínua caminhada (BRASIL, 2004, p.21)
Apesar da proposta do programa ser voltada para as comunidades quilombolas e
tratar do reconhecimento de populações historicamente marginalizadas na sociedade, seus
eixos de atuação, com exceção da regularização fundiária, não trazem políticas
necessariamente “novas” ou diferenciadas para as comunidades. Porém, o Programa
pressupõe que a partir de um trabalho articulado entre as esferas governamentais
juntamente com a participação das comunidades beneficiadas, estas políticas possam ser
implementadas com sucesso, atingindo suas metas. A comunidade Negros do Riacho
atualmente apresenta-se desmobilizada sobre a questão da regularização fundiária e no que
se refere aos demais eixos do Programa ainda existem lacunas nos diálogos entre as esferas
de governo e a comunidade. O Programa Brasil Quilombola ainda não foi devidamente
apresentado à comunidade. As lideranças atuais não acessaram a proposta do Programa
para que o mesmo seja divulgado entre os demais do grupo. A administração municipal não
articula o Programa às ações locais. Para uma melhor compreensão de como se dá a
dinâmica local em torno do PBQ, buscamos refletir sobre sua aplicação em Currais Novos a
partir da avaliação das ações locais, situando alguns referenciais da antropologia política
para pensar as relações envolvidas neste contexto.
63
2.2 - Aportes para uma avaliação das políticas públicas na comunidade
Os aspectos históricos presentes na formação da sociedade curraisnovense, nos
arranjos políticos locais, nas relações entre comunidade e poder público merecem uma
atenção neste trabalho, pois a efetivação de políticas públicas para quilombolas está
intimamente relacionada a estes elementos da estrutura de poder local. É importante
compreender as dinâmicas em torno das ações desenvolvidas na comunidade para captar
que tipos de interesse determinam as prioridades na agenda política do município a respeito
da resolução das demandas do grupo.
As pesquisas de avaliação de políticas públicas foram muito utilizadas nos anos de
1990 no Brasil a serviço do Estado para gerenciar programas e ações do governo. O esforço
em imprimir uma visão crítica sobre a avaliação de políticas públicas é uma constante desde
a década de 1980, porém ainda incipiente diante da repercussão e difusão destes
tradicionais modelos institucionalizados de avaliação que predominou não só no Brasil, mas
em diversos países da América Latina, junto com a tentativa de legitimar, direcionar e
gerenciar as ações governamentais num contexto de reforma do Estado na década de 1990.
Mesmo que essa concepção reconheça, ainda que implicitamente, o caráter inextricavelmente político da avaliação, podemos observar nos debates e nos estudos correlatos mais recentes a prevalência de um viés francamente normativo e/ou uma priorização dos aspectos mais técnicos da avaliação das políticas públicas, bem como uma ênfase em seu papel de instrumento gerencial (Faria, 2005, p. 98)
O autor demonstra, assim, que os modelos instrumentais de avaliação de políticas
públicas ainda hoje permanecem a serviço de uma lógica politico-administrativa do Estado. A
perspectiva de que a avaliação limita-se à uma etapa final do processo de formulação e
implementação de políticas públicas demonstra o quanto os resultados destas ações
representam em termos políticos para interesses das instituições que as gerenciam.
Os estudos sobre políticas públicas e metodologias de avaliação de políticas públicas
vêm passando por uma sistematização no campo da Ciência Política no Brasil. Apesar da
perspectiva “gerencialista”, associar as questões prioritárias do processo avaliativo aos
interesses do Estado, o que tem resultado num reduzido quadro de perspectivas teórico-
metodológicas que se distanciem desta visão, o prevalecente uso “instrumental” da
64
avaliação vem sendo criticado por autores que defendem a intervenção de um tipo de
avaliação que possibilite uma análise política de todas as etapas do processo, e não só dos
princípios que regem tal política pública ou programa.
Tendo em vista os meandros que permeiam estes processos faz-se necessário
analisar o contexto político em que estas políticas estão sendo formuladas e implementadas.
Figueiredo e Figueiredo (1986) explica que “é necessário estabelecer critérios de avaliação
que nos permitam dizer se e porque uma política é preferível à outra” (p. 108). Estes critérios
são perpassados por valores que, por sua vez, demandam uma avaliação política dos
contextos em que a ação está sendo implementada, assim como dos aspectos substanciais
da mesma. Para Faria (2005), os analistas da área da ciência política têm sido omissos sobre
a relevância deste tipo de avaliação e no tratamento analítico dado às questões políticas que
estão presentes nestes processos
Segundo Celina Souza (2006), nos Estados Unidos, os estudos sobre políticas públicas
concentraram-se principalmente na análise das ações do governo, ao contrário da Europa,
onde investiu-se nas teorias sobre o papel do Estado. A autora coloca como os “grandes pais
fundadores” dos estudos na área de políticas públicas, os autores H. Laswell, H. Simon, C.
Lindblom e D. Easton.
Lindblom (1959; 1979) questionou a ênfase no racionalismo de Laswell e Simon e propôs a incorporação de outras variáveis à formulação e à análise de políticas públicas, tais como as relações de poder e a integração entre as diferentes fases do processo decisório o que não teria necessariamente um fim ou um princípio. Daí por que as políticas públicas precisariam incorporar outros elementos à sua formulação e à sua análise além das questões de racionalidade, tais como o papel das eleições, das burocracias, dos partidos e dos grupos de interesse (Souza, 2006, p.24).
Se no Brasil, conforme Faria (2005), os modelos teóricos mais usados foram os da
academia norte-americana, situando as questões de ordem metodológica centrada nas
ações dos governos; os estudos, a nível nacional, seguiram também acompanhando a
passagem do uso das avaliações do tipo “top down” para o tipo “bottom up”27, onde abre-se
espaço para avaliações políticas do processo como um todo, levando em consideração todos
27
Os modelos top down, muito utilizados pela perspectiva gerencialista privilegiam a avaliação por uma ótica e interesses dos gestores da política, representando um modelo hierárquico de avaliação. Geralmente estas avaliações são feitas por instituições estatais. Já o tipo bottom up é um modelo mais focado na problemática a ser resolvida pela política pública em questão, e por isso leva em consideração todo o processo de implementação, incuindo a esfera dos beneficiários que são vistos como atores fundamentais do processo de avaliação (Faria, 2005; Souza, 2006).
65
os agentes envolvidos, principalmente os beneficiários. Como demonstra Souza (2006), a
trajetória de uma visão à outra tem favorecido as pesquisas sobre o entendimento dos
resultados através de uma ótica multilateral, ao invés de partir de uma perspectiva muitas
vezes limitada à explicação das etapas do ciclo da política sem perceber as redes
intercambiantes neste processo.
com a popularização das metodologias participativas de avaliação e com o crescente reconhecimento (e propaganda) da avaliação como instrumento de “empoderamento” dos beneficiários, a avaliação começou a levar em consideração, de maneira mais sistemática, as necessidades e as expectativas dos beneficiários dos programas (Faria, 2005, p. 104).
A preocupação imperativa sobre a eficácia, eficiência e a efetividade das políticas
públicas começa a dar espaço a um viés crítico sobre as ações e intervenções do Estado em
determinadas realidades. O desenvolvimento de pesquisas na área de avaliação de políticas
públicas, seguindo um linha acadêmica e independente dos parâmetros gerencialistas, surge
como forma de proporcionar uma melhor visibilidade sobre os diversos aspectos e usos das
avaliações de programas e ações executadas, seus processos e impactos nos cenários sociais
que se propõe intervir. Tendo em vista o ainda estreito arcabouço teórico e metodológico na
área da avaliação de políticas públicas no Brasil, ainda predominantemente marcado por
uma visão instrumental ou tecnicista, faz-se necessário pensar mais aprofundadamente
sobre os fundamentos que norteiam os estudos sobre a avaliação de políticas públicas.
Como bem coloca Sônia Draibe, “(...) no campo da análise de políticas públicas há pouco
consenso acerca dos conceitos básicos, o que obriga o analista a declarar, de início, as suas
preferências e escolhas (...)” (2001, p. 16). Levando em conta a grande quantidade de
conceitos, métodos e técnicas de pesquisa a respeito da avaliação de políticas públicas, que
muitas vezes tem denominações diferenciadas para os mesmos procedimentos conforme
aponta Costa e Castanhar (2003), é preciso definir qual metodologia se encaixa melhor ao
uso da avaliação a ser feita. O que este autor define como um “emaranhado conceitual”
tem aparecido persistentemente na literatura sobre avaliação de políticas públicas como
uma tentativa de guiar as pesquisas nesta sub área, apresentando sistematicamente
tipologias ou modelos analíticos, critérios, metodologias, entre outras tipificações que visam
balizar as pesquisas e legitimar um arcabouço teórico próprio para a avaliação de políticas
públicas.
66
O fato de nos depararmos com este emaranhado conceitual, nos obriga também a
um cuidado em escolher os referenciais teóricos e metodológicos a serem trabalhados. Se
este trabalho pretende avaliar um programa de políticas públicas, é pertinente que traga
critérios, modelos análiticos e metodologias desta sub área da Ciência Política que já está em
desenvolvimento há décadas no Brasil. Desta forma, escolhemos a metodologia que melhor
se adequa a problemática desta pesquisa. Abordamos conceitos, métodos e técnicas da
Antropologia, considerando que o diálogo em torno destas áreas deva ser profícuo. Para
compreender as sinuosidades englobadas neste contexto que remete-nos às identidades e
territórios quilombolas, subjetividades, trocas, interesses e conflitos, observamos o
processo de implementação do Programa Brasil Quilombola e as relações que fazem com
que as políticas ligadas ao programa sejam implementadas ou não. Há especificidades sobre
a implementação de políticas públicas para quilombolas que estão intimamente relacionadas
às discussões correntes na Antropologia. Através da pesquisa de campo, entrevistas com os
moradores e lideranças da comunidade, gestores e servidores públicos, agregamos dados
para discutir aspectos políticos e históricos contidos nas relações entre a comunidade
Negros do Riacho e os gestores ou agentes que atuam na implementação destas políticas em
âmbito local.
Quando Souza (2006) afirma que “os governos optam por determinadas ações”(p.22),
sendo por isso necessário entender como e porque são implementadas estas ações, fica
evidente a existência de disputas em torno de posicionamentos e interesses que colocam o
governo e os grupos envolvidos numa espécie de arena social. O conceito de “arena social”
aparece como um modelo de formulação e análise de política públicas (Souza, 2006). A
autora coloca que este é um dos modelos desenvolvidos para entendermos questões sobre
as ações do governo e sobre a repercussão destas na vida dos cidadãos beneficiados.
Quando em um dado contexto, por meio de indicadores ou do feedback entre população e
governo, percebe-se a existência de determinadas problemáticas, como eventos repetidos
do mesmo problema, falhas nas políticas em andamento ou nos resultados, os
“empreendedores” ou “decisores políticos” ficam cientes de que precisam atuar na solucão
destas demandas. Estes decisores passam a se organizar em torno da resolução das
demandas ou podem também ignora-las de acordo com seus interesses. Desta forma, os
67
“policy makers”28 (empreendedores do governo), podem inclinar-se em prestar mais
atenção à algumas problemáticas em detrimento de outras. Existem também o conceito de
“policy community”29 definido por Souza (2006) como comunidade de especialistas ou um
conjunto de empreendedores políticos que podem ser ligados ao governo ou a grupos de
atores sociais envolvidos com a tomada de decisões no processo de formulação da agenda
política a partir das problemáticas observadas numa realidade específica.
Esses empreendedores podem constituir, e em geral constituem, redes sociais. Redes envolvem contatos, vínculos e conexões que relacionam os agentes entre si e não se reduzem às propriedades dos agentes individuais. As instituições, a estrutura social e as características de indivíduos e grupos são cristalizações dos movimentos, trocas e “encontros” entre as entidades nas múltiplas e intercambiantes redes que se ligam ou que se superpõem. O foco está no conjunto de relações, vínculos e trocas entre entidades e indivíduos e não, nas suas características. Este método e referencial teórico partem do estudo de situações concretas para investigar a integração entre as estruturas presentes e as ações, estratégias, constrangimentos, identidades e valores. As redes constrangem as ações e as estratégias, mas também as constroem e reconstroem continuamente. A força deste modelo está na possibilidade de investigação dos padrões das relações entre indivíduos e grupos (Souza, 2006, p. 32-33).
Estas relações sociais e políticas estão circunscritas principalmente no fato de que a
implementação de políticas públicas é intrinsecamente ligada à proposta de ação do
governo e isso associa-se à questões ligadas a: processos eleitorais; organização dos grupos
demandatários de políticas públicas; e relação destes grupos com a estrutura de poder local.
Também é preciso analisar as especificidades históricas do grupo; os tipos de trocas que são
estabelecidas a partir destes vínculos, mas sobretudo, saber como o conjunto destes
elementos interfere na vida dos cidadãos e em sua autonomia enquanto sujeitos ativos na
sociedade.
As ações e programas incluídos no Programa Brasil Quilombola, segundo suas
diretrizes, são pautados por uma gestão democrática e descentralizada. Ao avaliar as
políticas implementadas na comunidade Negros do Riacho, levando em conta o ponto de
vista dos interessados, entendemos a implementação dessas medidas como parte de um
processo que se dá desde a proposta das políticas públicas, em sua formulação, execução,
acompanhamento e avaliação dos resultados de tais ações. Segundo Arretche (2001),
“Um programa, é, então, o resultado de uma combinação complexa de decisões de diversos agentes (...). Em princípio, as vontades, os interesses, as lealdades e as
28
Ver Souza (2006, p. 32) 29
Idem, ibidem
68
concepções ideológicas dos diversos agentes envolvidos em um programa público dificilmente serão inteiramente coincidentes. Portanto quanto mais complexo for um programa, maior será a variedade de interesses e concepções envolvidos em sua execução e, por consequência, mais fortes serão as tendências a não-convergência” (ARRETCHE, 2001, p. 47- 48).
Os diferentes agentes envolvidos no processo de implementação de políticas
públicas, neste caso estudado, os gestores locais, as comunidades quilombolas, as lideranças
e movimentos negros, os agentes mediadores, na maioria das vezes não estão articulados
entre si, nem com a proposta da formulação. Então, as discrepâncias em torno da
formulação e implementação de políticas de âmbito nacional podem ocorrer em função do
poder público local não atuar em consonância com os objetivos ou interesses dos
formuladores das políticas. Segundo Arretche (2001), a avaliação de uma dada política
pública não deve limitar-se em concluir pelo fracasso ou sucesso de um programa tendo
como elemento balizador o não alcance dos objetivos e metas propostas, e sim, procurar
compreender que razões podem ocasionar uma situação de distanciamento entre as
propostas dos formuladores e dos implementadores.
Para superar uma concepção ingênua da avaliação de políticas públicas, que conduziria necessariamente o avaliador a concluir pelo fracasso do programa sob análise, é prudente, sábio e necessário, então, admitir que a implementação modifica as políticas públicas (ARRETCHE, 2001, p. 46)
O processo é permeado por interesses ou posicionamentos políticos das partes
envolvidas desde a construção das diretrizes e objetivos até a implementação das políticas
públicas e sua avaliação. Seguindo esta lógica, não existe avaliação que seja isenta de
“valores e critérios políticos nela identificáveis” (Idem, 1998). Segundo Figueiredo e
Figueiredo (1986), a perspectiva política presente na avaliação de políticas públicas diz
respeito ao entendimento sobre os princípios que fundamentam a ação avaliada. São
critérios estabelecidos que dizem qual tipo de política é preferível para dada situação, por
que motivos esta política não está alcançando os objetivos esperados, ou as razões que
julgam uma política boa ou má. Segundo Frey (2000, p. 223,) o conceito de “policy arenas”
criado originalmente por Theodor Lowi, trata destes conflitos e consensos que organizam os
critérios que darão forma e efeitos às políticas implementadas, neste sentido as políticas
públicas podem ser consideradas como distributivas, redistributivas e regulatórias (Lowi,
69
1972 apud Frey, 2000; Silvério, 2009, p. 26). Apesar dessas classificações não serem
expressas correntemente pelos implementadores ou formuladores de políticas no Brasil, no
caso estudado aqui, as políticas podem ser definidas como sendo de princípio
redistributivista, pois em Silvério (2009),
A arena redistributiva intervém na estrutura econômica da sociedade criando mecanismos que diminuam as desigualdades sociais. Políticas sociais no campo da educação e saúde são exemplos de arenas redistributivas indiretas, pois influenciam em longo prazo a diminuição da desigualdade social. Programas sociais como renda mínima ou bolsa escola são exemplos de arenas redistributivas diretas, pois caracterizam transferência monetária direta para as pessoas mais pobres da sociedade (p. 26-27).
As políticas redistributivas são associadas neste contexto às políticas de ação
afirmativa que são políticas específicas formuladas para atender demandas de grupos que
passam por alguma defasagem em relação aos demais no acesso aos direitos básicos. Pode
decorrer de algum tipo de discriminação simbólica e/ou material no passado e/ou presente.
Quando criado o Grupo de de Trabalho Interministerial de valorização da população negra
em 1997, as ações afirmativas são propostas em caráter temporário para a reparação dos
danos históricos ou discriminação correlata sofridas pela população negra. Segundo dados
do IPEA de 2014 sobre a situação social da população negra por estado, as enormes
desigualdes sociais entre negros e brancos, ainda precisam ser superadas, visto que as
disparidades nos indicadores sociais, como emprego, renda, escolaridade, entre outros,
ainda se fazem significativas para o quadro de exclusão social dos negros no Brasil. A
temática da promoção de políticas de igualdade racial ganhou espaço no âmbito estatal e na
produção de trabalhos acadêmicos sobre as ações que contemplam este tipo de política. Em
pouco mais de duas décadas, que é o período em que estas políticas vêm alargando seu
espectro na sociedade, têm sido produzido estudos, para o amadurecimento de ideias e
propostas para o enfrentamento da problemática do racismo em todas as esferas.
O racismo institucional atua no nível das instituições sociais, dizendo respeito às formas como estas instituições sociais funcionam, seguindo as forças sociais reconhecidas como legítimas pela sociedade e, assim contribuindo para a naturalização e reprodução da hierarquia racial. Não se expressa por atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação, orientados por motivos raciais, mas, ao contrário, atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes grupos raciais (Jaccoud et al, 2009, p. 157)
70
O racismo institucional é uma prática ainda recorrente em espaços de
implementação de políticas públicas e por ser difícil mensurar este tipo de prática, ela
aparece às vezes dissimulada em meio à outras problemáticas que compõem os processos
dinâmicos nas arenas sociais e políticas.
(...) entre os anos de 2001-2007 realizou-se o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), que através de uma parceria entre poder público, organizações dos movimentos negros e agências internacionais buscou atuar favoravelmente na formulação e implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial (Rodrigues, 2010, p. 5).
O PCRI teve como estratégia, a criação de redes de apoio ao combate do racismo
institucional em todas as esferas governamentais. Alguns projetos pontuais lograram êxito
nas instâncias municipais. Porém os desafios que são apontados em avaliações sobre o
Programa diz respeito a questões ligadas a descentralização da política, a desarticulação e
falta de mobilização dos agentes implementadores das ações em torno da criação de
espaços que gerenciem estas demandas (Silva, 2009a, p. 167). Frey (2000) coloca que
diferentemente das políticas distributivistas que são mais consensuais, as políticas
redistributivistas são as principais arenas de conflitos pois é onde situam-se problemáticas
bastante polarizadas e às vezes invisbilizadas através de mecanismos que são reproduzidos
consciente e inconscientemente por setores do poder público e sociedade. É o caso do
racismo institucional que opera por meio de ações e processos nem sempre intencionais,
mas que garantem a não percepção de certas problemáticas específicas e a incapacidade de
soluciona-las, o que gera um grande ciclo de manutenção de desigualdades. A superação
destas práticas individuais ou coletivas que foram reconhecidas como há pouco mais de uma
década pelo Estado brasileiro esbarra em dificuldades por falta de articulação entre as
propostas de formulação e implementação de políticas de caráter redistributivista, uma vez
que as intituições não se situaram enquanto atores ativos para a transformação desta
realidade.
O Guia de Políticas Públicas para Comunidades Quilombolas lançado em 2013 pela
SEPPIR foi usado como quadro de referência sobre quais políticas implementadas na
comunidade Negros do Riacho estão situadas neste estudo. Este guia foi lançado com o
intuito de direcionar a implementação do Programa Brasil Quilombola de acordo com os
subprogramas e ações integradas. Nestas ações atuam em conjunto onze ministérios que
abrangem diversas áreas de gestão de políticas sociais. As relações entre a comunidade e os
71
gestores públicos no processo de implementação das políticas que constam no Programa
Brasil Quilombola é o objeto de avaliação desta pesquisa. A intervenção na comunidade por
meio das políticas pública colocam em jogo as prioridades da comunidade e da
administração pública. Estas prioridades são permeadas por interesses antagônicos ou
consensuais, relações de reciprocidade e subjetividades, compõem a arena social que
organizará as estratégias direcionando-as para a implementação ou não de políticas públicas
na comunidade Negros do Riacho. Visto que ainda existe uma grande lacuna sobre a inter-
relação dos contextos socio-políticos, as relações identitárias fragmentadas historicamente e
a implementação de políticas específicas que normalmente surtirão efeitos a longo prazo. A
problemática deste trabalho situa-se nas questões de como se organizam os processos de
implementação de políticas públicas neste contexto, o que faz com que algumas demandas
sejam atendidas em detrimento de outras e como se estruturam estas prioridades na
agenda política local.
Na literatura sobre avaliação de políticas públicas, as avaliações são classificadas
basicamente como de processo e de impacto (Figueiredo e Figueiredo, 1986; Draibe, 2001;
Costa e Castanhar, 2003). A presente pesquisa trata de uma avaliação de processo, pois
propõe a investigação sobre o processo de implementação do Programa Brasil Quilombola,
por entender que as políticas públicas referentes ao programa no município de Currais
Novos têm aspectos determinantes que se expressam principalmente no momento das
negociações, nas tomadas de decisão e nos jogos de interesses que são parte deste etapa do
ciclo das políticas. Segundo Costa e Castanhar
Essa modalidade de avaliação investiga de forma sistemática o desenvolvimento de programas sociais com o propósito de: medir a cobertura do programa social; estabelecer o grau em que está alcançando a população beneficiária; e, principalmente, acompanhar seus processos internos. Seu objetivo é detectar possíveis defeitos na elaboração dos procedimentos, identificar barreiras e obstáculos à sua implementação e gerar dados importantes para sua reprogramação, através do registro de eventos e de atividades (2003, p. 980)
Esta pesquisa visa compreender, sobretudo, sob que circunstâncias as políticas estão
sendo ou não implementadas, os tipo de políticas e quais os principais conflitos e interesses
em torno da realidade observada. É na etapa da implementação que podemos captar os
elementos para compreender como os agentes envolvidos percebem as problemáticas em
questão, quais os princípios que norteiam as decisões, bem como, quais são as resoluções da
72
agenda pública que serão postas em ação. A partir daí podemos investigar como estas
arenas sociais se fazem e se refazem no decorrer deste processo.
Ora, as pessoas ou os grupos de pessoas que animam as políticas, fazem-no segundo seus valores, seus interesses, suas opções, suas perspectivas, que não são consensuais, nem muito menos unânimes, como sabemos. Ao contrário, o campo onde florescem as políticas e programas pode ser pensado como um campo de força, de embates, de conflitos, que sucedem e se “resolvem” ao longo do tempo (Draibe, 2001, 26).
Este cenário de consensos e conflitos é marcado por posicionamentos que se
metamorfoseiam constantemente e são mediados por relações de poder que compõem a
dinâmica do jogo político que envolve questões de identidade, reciprocidades e patronagem
entre governo e os grupos beneficiados. Para Draibe (2001), ao reconstituir as principais
estratégias da implementação, é preciso identificar, além da dimensão temporal; os atores
estratégicos (os que participaram do processo, os que poderiam ter participado e os que
resistiram em participar), as matrizes de conflito e cooperação, e as parcerias e redes de
apoio. A autora salienta a importância de trabalhar na perspectiva de captar o que ela
denomina de anatomia do processo geral de implementação e com isto elabora um quadro
para suporte metodológico, indicando os principais sistemas e subprocessos da
implementação. Segue abaixo, o referido quadro:
QUADRO 3 - SISTEMAS OU SUBPROCESSOS DA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Sistema gerencial e decisório
Processos de divulgação e informação
Processos de seleção (de agentes implementadores e/ou de beneficiários)
Processos de capacitação (de agentes e/ou beneficiários)
Sistemas logísticos e operacionais (atividade-fim)
Financiamento e gasto
Provisão de recursos materiais
Processos de monitoramento e avaliação internos
Este quadro possibilita uma sistematização dos dados do programa de modo que
possamos identificar quais são as estratégias usadas para a implementação, considerando a
participação da comunidade neste processo e a partir daí avaliar as relações entre os
73
agentes que dinamizam este processo em âmbito local. Observamos estes subprocessos de
uma forma geral. Ao analisar as políticas implementadas a partir da concepção de que as
relações inseridas neste contexto são concebidas por redes de interesses e reciprocidades,
identificamos que as relações de poder inerentes a estes processos direcionam os rumos
destas políticas. Pretendemos trazer os conceitos de “dádiva” (Mauss, 2001; Lanna, 1995) e
“hierarquia” (Dumont, 1992; Lanna, 1995) para situar os momentos pontuais da mobilização
do poder público e da comunidade no que diz respeito às políticas para quilombolas.
74
2.3 - Reciprocidade, hierarquia e poder
Ao avaliar a implementação de políticas públicas na comunidade Negros do Riacho,
podemos perceber que nas relações que compõem as “arenas sociais” existem elementos
importantes a serem investigados para a compreensão das problemáticas referentes à
implementação de políticas públicas na comunidade Negros do Riacho. As referidas
problemáticas dizem respeito a aspectos das relações construídas entre a comunidade e a
“rua”, à tradição política local, e às relações internas da comunidade (relações de
parentesco, econômica, religiosa e política). A partir da observação destes elementos que
revelam práticas sociais nos microespaços locais juntamente com a observação de aspectos
mais estruturais da política para quilombolas no âmbito nacional, poderemos desenvolver
um entendimento sobre as nuances das relações que se estabelecem diante do processo de
implementação.
A relação entre o mundo rural e o urbano aparece muitas vezes marcada, tanto no
meio acadêmico como na vida cotidiana, por um distanciamento característico. Uma
dicotomia que atua na noção de que o mundo rural corresponde ao atraso e o urbano à
modernidade, como se esses dois universos fossem limitados a permanecerem estáveis,
imunes às dinâmicas sócio-históricas. Porém, a modernidade, que nesta visão, associa-se ao
mundo urbano, movimenta-se também em função da produção econômica, social e
simbólica do mundo rural fazendo com que estes contextos se intercambiem. As relações e
práticas sociais do contexto brasileiro desde sempre reproduzem as lógicas do mundo rural,
um dos principais cenários da formação do país. Para Garcia Jr. e Grynszpan,
“a especificidade dos padrões de domesticidade da grande lavoura marcou
de forma indelével as formas de reprodução correntes de amplos
contingentes populacionais, e consequentemente, a ‘psicologia íntima dos
brasileiros’” (2002, p. 313).
Como mostra o autor, os autores clássicos do pensamento social brasileiro, Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior se dedicaram aos estudos sobre as
implicações das relações do mundo colonial rural e a formação da sociedade moderna no
Brasil, observando como se organizaram as relações moldadas pelas representações de
75
padrões hierarquizados de relações e pensando como o Estado brasileiro se consolida
fundamentado, também, na lógica do patronato e do clientelismo. Garcia Jr. e Grynszpan
apontam que o “entendimento das modalidades do exercício de mando do passado permite
vislumbrar os desafios a serem enfrentados no presente para a adoção da convivência
política democrática” (2002, p. 315). Estes arranjos sociais reproduzidos historicamente
refletem, na estrutura politica do Estado, os modelos de reciprocidade que nas estruturas
locais se difundiram nas práticas coronelistas, clientelistas e mandonistas. Na obra clássica
“Coronelismo, enxada e voto” (1986), de Victor Nunes Leal, são discutidas as relações de
dominação no meio rural e o modelo de representação política baseado no clientelismo em
que a presença dos chefes locais é fundante nas relações entre poder local e o Estado. As
práticas coronelistas sempre gozaram de autoridade pública por constituírem-se como
principais mecanismos de manutenção do poder situacional através de alianças e relações
de cordialidade com os governos municipais. Produziu-se, assim um ciclo de dependência
hierarquizada entre trabalhadores, coronéis e gestão municipal, que tem como principal
objetivo garantir a preservação das gestões municipais que estão diretamente ligadas ao
governo Estadual.
Neste contexto, o voto, longe de se constituir em exercícios de vontade, surgiria antes como dádiva oferecida pelo poder, orientado necessariamente em determinada direção e absolutamente distante de qualquer possibilidade de oposição (Goldman e Santana, 1996, p. 15).
O processo eleitoral, no contexto estudado por Leal (1986), é fundamental para o
entendimento das relações que compõem a estrutura do poder municipal. Goldman e
Santana (1996) propõem que sejam observadas as motivações do voto, como são
agenciados os processos eleitorais e que fatores direcionam seus resultados. Os autores
analisam as eleições e o voto, considerando as multiplicidades que contemplam uma visão
ampliada da esfera política, visto que os processos de eleição são compostos também por
subjetividades e subjetivações. São as eleições municipais que ainda movimentam velhos
mecanismos de controle associados ao coronelismo. A figura do “Coronél” assume novas
conotações e dinâmicas na sociedade moderna, conservando aspectos análogos nas relações
entre grandes empresários ou proprietários e o Estado. O sistema de reciprocidade entre
estes segmentos do poder local e governo permanece na preservação de alianças políticas,
atuando nas trocas de favores, empregos, cargos públicos de confiança e junto às forças de
repressão, muitas vezes recorrendo à violência.
76
Para Dumont (1992), é a partir de um sistema de ideias e valores que se funda a
existência dos contrários e consequentemente as relações assimétricas ou simétricas entre
os elementos de um conjunto e o conjunto, ou entre as partes em relação ao todo, o que
pressupõe a hierarquia. O conceito de “reciprocidade hierárquica” desenvolvido por Lanna
(1995) corresponde a uma perspectiva com enfoque estruturalista que o autor utiliza para
compreender a vida social no Nordeste Brasileiro, investigando como as relações produzidas
nos microespaços sociais do cotidiano, pautadas em tradicionais relações de trocas
interpessoais, podem estabelecer uma ligação com as relações inseridas num universo mais
amplo como o do Estado. Ao trabalhar a noção de hierarquia a partir de Dumont, sobre as
estruturas rituais brasileiras, Lanna (1995) propõe estender esta análise para campos mais
difusos da sociedade, abordando as dimensões política e econômica sobre a hierarquia de
contextos “não-capitalistas” e capitalistas; em micro e macroespaços das esferas sociais.
Para Lanna (2009), a lógica de reciprocidade baseada em relações de compadrio e
patronagem nestes dois tipos de contextos são similares no Brasil, o que leva o autor a
propor uma “teoria geral da patronagem”. A teoria supõe que a categoria “patronagem”,
entendida como elemento presente nas relações sociais, desdobra-se do “domínio da casa”
para o “domínio da rua”. O autor afirma que a organização do Estado constitui-se
similarmente às estruturas locais, onde as relações de troca se reproduzem de forma
hierarquizada em realidades específicas como nas "relações entre um determinado
empregador e trabalhadores, um político e seus eleitores, um prefeito e a população do
município, e assim por diante” (Lanna, 1995:27). Analisando as relações entre níveis local e
estatal, o autor observa que existem relações análogas de trocas de dádivas em ambas as
estruturas, as quais vai denominar de “dívidas-dádivas” sugerindo uma “etnografia das
trocas” para captar o significado destas dádivas dentro de um contexto de reciprocidades.
Ao pensar sobre a vida social da comunidade Negros do Riacho, entendemos como
um ponto fundamental a ser colocado sobre as relações de reciprocidade vivenciadas com as
pessoas da rua, o fato de que ao se se deslocarem semanalmente para participar da feira da
cidade, com a venda de suas louças, os moradores também pediam esmolas, o que fez com
que esta prática se cristalizasse na imagem da comunidade construída no imaginário dos
curraisnovenses como um estigma social baseado na mendicância. O costume de “pedir”
ainda hoje é recorrente para alguns membros da comunidade. O conceito de “prestações
77
totais” de Mauss (1925), usado também por Lanna (1995) pressupõe três obrigações nos
rituais das trocas: a obrigação de dar, a obrigação de receber e a obrigação de retribuir. O
“pedir”, neste contexto, figura como mais um elemento das relações de troca, pois
representa um vínculo que remete a reciprocidade e hierarquia. A esmola aparece como
uma dádiva recebida e constitui uma das ações que permeia a rede social construída entre
as pessoas da comunidade e as pessoas da rua. O ato de pedir esboça a posição que o
morador do riacho se situa em um universo de relações mais interpessoais. Porém esta
posição ocupada, sendo socialmente concebida como inferior pela coletividade acarreta
ações assistencialistas vistas também como dádivas. Estas dádivas circulam como os
principais elos entre a comunidade e as pessoas da rua, incluindo os implementadores das
políticas que também estão inseridos neste universo cercado das representações simbólicas
sobre a comunidade e suas práticas do pedir. Ao analisar as prestações totais, Lanna traz a
semelhança entre a patronagem e o Estado, sobretudo em suas relações de reciprocidade e
hierarquia. A patronagem aparece como um fenômeno que estabelece trocas de dádivas
que se revertem em dívidas. Partindo da visão de como tem sido historicamente organizada
a estrutura política local do Estado, associado com uma espécie de patrão, com interesses
pessoais próprios e práticas de manipulação incorporadas à rotina da máquina estatal, é
indispensável compreender como esta instituição interage com a comunidade por meio
destas trocas. Dialogamos com as categorias de reciprocidade e hierarquia para auxiliar no
entendimento sobre a correlação entre as práticas da comunidade, fundadas no “pedir”, e a
noção de dádiva que aparece nestas relações de trocas históricas entre comunidade e “a
rua”, já tão emblemáticas no imaginário dos curraisnovenses.
A noção de dádiva, que esteve sempre presente nas viagens dos negros à cidade, em
busca de um complemento à renda extraída dos trabalhos com o barro ou carvão, amplia-se
para a reivindicação do acesso às políticas públicas e estende-se ao Estado como provedor
destas políticas públicas, que são os principais meios de subsistência da comunidade, e
relaciona-se com as políticas de transferências de renda e as políticas de seguridade social
para os idosos e agricultores.
Mesmo se a “teoria geral da patronagem” aplica-se à diversas realidades do
Nordeste assim como à estrutura do Estado brasileiro, podem existir ainda outras formas de
relações pautadas em modos diferentes de reciprocidade, estruturas em transformação ou
78
em construção. Porém, a nível da realidade que está sendo pesquisada, observa-se que
historicamente o poder local tem sido marcado predominantemente por relações
hierárquicas, muito fortes em sua estrutura municipal, não tendo alterado muito a lógica das
relações de poder com a população local. O governo do Estado do Rio Grande do Norte, há
anos, vem sendo representado por famílias tradicionais e exercendo uma política com
aspectos relacionados à patronagem, baseada no “voto de cabresto” e nas falsas promessas
políticas como elementos persuasivos. Estes elementos fazem parte do circuito de
reciprocidades que permanentemente estão presentes na vida social dos brasileiros. As
eleições, principalmente em nível local, são precedidas de uma grande movimentação de
trocas de “dádivas”. Cada representação política monta seus quadros e estratégias políticas
para aumentar o espectro de eleitores, assim organiza-se as práticas que movimentam os
chamados “currais eleitorais”. É neste momento que as relações se intensificam em torno
dos favores políticos e das barganhas eleitorais, muitos votos são trocados por cestas
básicas, dinheiro, entre outros artigos.
A noção de compadrio, inserida nas relações de patronagem, é vista neste sentido
como uma estrutura de trocas que é incorporada às práticas institucionais estatais e ao
mesmo tempo é uma prática fundante para as relações cotidianas.
(..) Não precisa ser efetivamente compadre, trata-se, como se pode dizer, de um modelo estrutural que organiza diferentes realidades empíricas. Mesmo o modelo da amizade tem relações óbvias com o compadrio. Assim como se fala da transformação entre as figuras de padrinho e patrão, devem-se incluir outras categorias como a de “amigos” e a de “xarás” (Lanna, 2009, p. 9)
É preciso entender até que ponto se verifica estas práticas de compadrio nas relações
internas da comunidade para entender como isto é vivenciado pelo grupo em sua vida
cotidiana e em que medida aparece também em suas dinâmicas sociais com outros atores,
no caso os relacionados à implementação de políticas públicas e com o Estado. A hipótese
que colocaremos incialmente é a de que a noção de patronagem, e consequentemente a
idéia de hierarquia, aparece para os membros da comunidade em suas relações internas de
forma inconstante, apesar de situarem-se num contexto onde isto é marcante. Então ao se
inserirem em um universo mais amplo de negociações e de relações hierarquizadas, eles
incorporam esta lógica, sendo que de maneira fluida e não estabelecem vínculos em torno
de ações contínuas voltadas para quilombolas. As relações entre a comunidade e o governo
79
se dão de forma contrastante por operarem através da dinâmica entre estruturas
diferenciadas de percepção da realidade política e social, o que resulta na falta de
perspectivas na construção de políticas públicas para a comunidade.
Segundo Leach (1982), a reciprocidade é um elemento presente em todas as relações
“pessoa à pessoa”, mas o que entra em jogo são as posições sociais ocupadas pelos
indivíduos e quais são seus direitos e deveres relacionados a outros indivíduos mediados por
uma estrutura de poder. Sendo assim, é importante compreender como se constrói estas
relações hierárquicas de poder e qual é sua representatividade nas escolhas individuais.
Diante de um contexto onde a lógica principal da sociedade está nestes circuitos de
reciprocidades hierarquizados, onde as dádivas exercem um papel social importante, quem
não segue esta lógica pode estar colocado a margem dos processos políticos e econômicos
da sociedade. Na perspectiva da patronagem, a dependência do sistema de troca de dádivas
é a base para a manutenção desta ordem que se funda numa dependência econômica e
simbólica. Segundo Bourdieu,
as diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais (Bourdieu, 1989, p. 11)
Para Bourdieu, a classe dominante cria estratégias para a reprodução de estruturas
hierarquizadas a partir da produção simbólica de mecanismos que legitimem estas
estruturas. As lutas entre estes segmentos sociais são travadas simbolicamente, muitas
vezes através da violência simbólica. Neste caso estudado, observa-se que as relações
institucionalizadas baseadas nas representações estereotipadas de determinado grupo social
favorecem a violência institucional, configurado em racismo institucional, que é também
uma violência simbólica e que se reflete claramente na vida material da comunidade. Para
Mauss (2001a), a sociedade se funda na circulação de bens que agregam as dimensões
material e simbólica. Ao pensar estas trocas como fato social total, o autor entende que
todos os acontecimentos sociais são movidos por uma dimensão subjetiva que norteia as
individualidades, mas ao mesmo tempo estas individualidades são livres para transgredir as
regras da coletividade e atuar em arranjos diversificados de reciprocidade.
Se para os antropólogos na linha do estruturalismo a presença de sistemas fixos de trocas é decisiva para explicar as sociedades tradicionais, para os sociólogos, simpatizantes de uma abordagem pós-estruturalista, interessa na teoria do dom
80
outra coisa, a saber: como a liberdade do indivíduo moderno subverte os sistemas de obrigação estabelecidos, para criar novos sistemas de reciprocidades ambivalentes e abertos. (Martins, 2008, p. 116)
A visão antiutilitarista do “dom” coloca a perspectiva de que as trocas feitas na
sociedade não estão limitadas a padrões fixos, pois as sociedades modernas ou tradicionais
apresentam dinâmicas que podem se diferenciar nestes aspectos de reciprocidade ou
mesmo reformular-se. Este modo de entender os circuitos do dom entre o interesse e o
desinteresse permite retirar a obrigatoriedade da reciprocidade, colocando a liberdade
individual como central nas práticas que envolvem as circulações de bens. Mas o fato de
pensar a dádiva como um fenômeno que não se limita às trocas utilitaristas, não subtrai o
utilitarismo que está presente em contextos históricos permeado por relações desiguais que
se reproduzem socialmente. Sendo assim, é necessário pensar as possibilidades de trocas
que envolvem várias dimensões (social, política, cultural, econômica, religiosa) conforme os
contextos e as leituras que são feitas da realidade trabalhando com as dinâmicas de poder
que circundam as relações sociais. Se as idéias e valores que constituem as práticas sociais
estão inseridas numa ideologia, a inversão destas oposições assimétricas representam uma
mudança de nível significativa para a estrutura social observada (Dumont,1992: 227).
Existem fatores que podem estar relacionados à modificação destas estruturas
hierarquizadas no caso estudado aqui. Entre eles, a proposta de descentralização nas
políticas públicas possibilita outras perspectivas para a implementação destas em âmbito
local. A partir do momento em que os beneficiários passam a conquistar espaços através de
uma organização pautada em posicionamentos mais incisivos. As comunidades podem
passar a atuar como atores principais neste processo, dando lugar a um modelo de
participação centrada em formas mais amplas de acesso à estas políticas. A partir da
observação dos aspectos relacionados à atuação do grupo e do poder público na efetivação
de políticas públicas para a comunidade poderemos compreender como se constroem as
perspectivas de mudança social na realidade local. Historicamente, os momentos pontuais
referentes à implementação de políticas públicas são permeados pelas relações de trocas. O
Programa Brasil Quilombola compreende ações que poderiam ser incorporadas a uma
agenda política local direcionada para as comunidades quilombolas do município e não o
são. Com isto, pretendemos problematizar o não alcance do Programa em nível local, tendo
em vista que a atuação do poder público esteve desde sempre associada à caridade, ao
81
assistencialismo e interesses eleitorais. É pertinente captar em que sentido estas relações
em torno das políticas públicas estabelecem reciprocidades e até que ponto as trocas de
dádivas são parte da manutenção da estrutura do poder local e em que isto repercute para o
reconhecimento étnico da comunidade Negros do Riacho.
82
Capítulo 3
As dádivas, os currais e as políticas públicas
Nesta parte do trabalho, descrevemos as principais ações da atual gestão municipal
desenvolvidas na comunidade Negros do Riacho e os agentes nelas envolvidos. Procuramos
identificar a relação entre as políticas implementadas e os eixos temáticos do Programa
Brasil Quilombola: Acesso à terra; Infraestrutura e qualidade de vida; Desenvolvimento local
e inclusão produtiva; e Direitos e cidadania. Importantes eventos de mobilização em torno
das políticas públicas para o grupo, como as iniciativas da Igreja Católica na década de 1990
e o Projeto Dignidade entre 2005 e 2007, são situados neste trabalho como pontuais na
história da intervenção do Estado no Riacho dos Angicos. Ao pensar o cenário que
compreende a efetivação de políticas públicas como um “drama social”, procuramos
entender as sutilezas presentes na atuação do poder público no que se refere às políticas
para quilombolas. A partir da observação do contexto sociopolítico local cercado por
interesses e expectativas que remetem à alianças e conflitos entre as partes envolvidas,
identificamos elementos que podem nos auxiliar na reflexão sobre as “dádivas” presentes
nas relações existentes entre comunidade e poder público. Assim, estabelecemos três tipos
de situações de reciprocidade que convergem para o drama social na comunidade Negros do
Riacho. Todas elas contextualizadas nos circuitos de trocas que permeiam as relações que
foram observadas durante a pesquisa: a mendicância; a efetivação das políticas públicas na
comunidade; e o processo eleitoral. Estas situações envolvem relações de assimetria que nos
levam a refletir sobre os rumos da política de reconhecimento étnico no município de
Currais Novos e nos fazem pensar em como agregar novas possibilidades de mudança para o
cenário em que se encontra a Comunidade Negros do Riacho.
83
3.1 – Política quilombola em Currais Novos
Por englobar várias políticas e ações ligadas a diversos ministérios, identificamos que
no município de Currais Novos vêm sendo implementadas ações na Comunidade Negros do
Riacho que correspondem ao Programa Brasil Quilombola, de forma indireta, uma vez que a
gestão municipal não articula o PBQ com as ações executadas na comunidade mas executa
algumas ações que fazem parte do espectro do Programa. Embora algumas políticas
implementadas sejam vinculadas aos ministérios que integram a gestão do PBQ, como o
Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério da
Saúde e Ministério da Educação, não há uma interlocução entre as esferas de governo para
gerir as ações conforme propõe o Programa a nível nacional. O fato de a administração
pública municipal não investir no fortalecimento do Programa localmente é um dado
analisado neste trabalho.
As políticas implementadas na comunidade tem início no final da década de 1980,
com a construção das primeiras casas de alvenaria. Desde então, traçamos neste trabalho as
principais ações desenvolvidas na comunidade, porém, atentaremos para o quadro atual de
políticas públicas e as relações entre os agentes que circundam o processo de
implementação das políticas atualmente vigentes na comunidade. Para mapear estas
políticas foram feitas visitas ao Sítio Riacho dos Angicos e entrevistas com membros da
comunidade Negros do Riacho, com as principais lideranças comunitárias, gestores e outros
servidores das seguintes secretarias municipais: 1) Secretaria Municipal de Educação; 2)
Secretaria Municipal de Saúde; 3) Secretaria Municipal de Trabalho, Habitação e Assistência
Social; e 4) Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente.
Obtivemos, através de entrevistas com servidores da EMATER e dirigentes do
Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e Aposentados na Agricultura Familiar
do Município de Currais Novos, informações acerca das solicitações, concessões de
benefícios trabalhistas e a relação da Comunidade com as instituições. Foram entrevistados
pessoas ligadas ao movimento negro local; professores e diretores das escolas que atendem
as demandas de crianças e jovens da comunidade na Escola e creche Municipal São
Francisco de Assis, Escola Municipal Humberto Gama e Escola Estadual Capitão Mor Galvão.
Foram ouvidos também os profissionais da equipe do CRAS, responsáveis pelo atendimento
à comunidade.
84
Entre 2013 e 2015 trabalhamos na pesquisa de campo. Na comunidade Negros do
Riacho, visitamos todas as residências para obter informações gerais sobre a quantidade de
famílias, dados sobre ocupação, trabalho, benefícios do governo e educação. Entre as 35
famílias, contabilizamos 205 pessoas residentes na comunidade, entre crianças, jovens,
adultos e idosos. Escolhemos 10 famílias para trabalharmos com a utilização de
questionários com perguntas abertas e fechadas a fim de coletar dados sobre a situação
socioeconômica dos moradores, questões sobre representatividade política e perspectivas
sobre o futuro da comunidade.
QUADRO 4 – Relação de famílias e quantidade de pessoas por unidade
habitacional na comunidade Negros do Riacho30
Donos da casa Demais residentes Pessoas por
domicílio
1) Tino e Salete 2 filhos (adultos)
2 netos (crianças) 6
2) Zé Pereira - 1
3) Mariano - 1
4) Sinval - 1
5) Valdelúcia e Minel 6 filhos (crianças) 8
6) Marluce e José 9 filhos (crianças e jovens) 11
7) Lucineide e Edmilson 2 filhos (crianças) 4
8) Maria das Vitórias e Antônio Clóvis 4 filhos (jovens) 6
9) Ana Maria Lopes (viúva) 5 filhos (jovens e adultos) 6
10) Daguia Lopes e Antônio Cledinaldo 8 filhos (crianças) 10
11) Luzia Lopes e Nélio Lopes 8 filhos (crianças) 10
12) João e Maria de Fátima 9 filhos (crianças e jovens) 11
13) Geraldo 6 filhos (adultos) 7
14) Silmara e Luiz Gonzaga 5 filhos (crianças)
4 irmãos de Silmara (jovens) 11
15) Damião Lopes - 1
16) Ana Luciene e Irivan Lopes 7 filhos (crianças e jovens) 9
17) Geraldo e Graça - 2
18) Gorete e Francisco Canindé 3 filhos (jovens) 5
30
A ordem numérica das famílias apresentada neste quadro corresponde à numeração das casas conforme croqui da comunidade na página 46 deste trabalho.
85
19) Doiva 2 filhos (jovens)
1 neta (crianças) 4
20) Mª do Carmo e Damião 7 filhos (crianças) 9
21) Mª do Socorro e Odilon 6 filhos (crianças) 8
22) Mª Anunciada e Oliveira Lopes 2 netas (crianças) 4
23) Cleide Lopes e Roberto Carlos 4 filhos (crianças) 6
24) Conceição e Franciélio 3 filhos (crianças) 5
25) Maria Valdineide e Antônio Lopes da Silva
5 filhos (crianças) 7
26) Aparecida e Paulo 5 filhos (jovens) 7
27) Francinete e Iramir Lopes 4 filhos (crianças e jovens) 6
28) Maria das Dores e José Amauri 6 filhos (crianças e jovens) 8
29) Graciene Lopes da Silva 1 filho (adulto) 2
30) Maria Daguia e Francisco de Assis 2 filhas (crianças) 5
31) Luzinete e Antônio - 2
32) Silvana e Bidé 7 filhos (crianças) 9
33) Cristina e Irineu 5 filhos (crianças e jovens) 7
34) Pretinha
1 filho (adulto)
Pai (idoso) 3
35) Bié e Ubaldo 1 filha (criança) 3
Total
205 pessoas
Identificamos algumas lideranças na comunidade, com as quais trabalhamos a partir
de entrevistas e mantivemos um maior contato durante a pesquisa. São elas: José, o
presidente da gestão atual da ADCNR desde 13 de maio de 2013; Paulo, o presidente da
gestão anterior; Pretinha, louceira e uma das moradoras mais antigas da comunidade e Seu
João, agricultor, carvoeiro e também um dos moradores mais antigos do local. As entrevistas
com os moradores e lideranças do Riacho, seguiram direcionadas para questões sobre as
principais demandas da comunidade; como estas demandas estariam sendo atendidas ou
não; qual a relação da comunidade com os agentes implementadores; e os principais
aspectos socioeconômicos, políticos e culturais da comunidade; as relações estabelecidas
com a cidade e de que forma as políticas públicas são acessadas pelos moradores. As
entrevistas feitas com os agentes implementadores foram estruturadas a partir de questões
86
pertinentes às ações específicas de cada secretaria; de que forma estas ações dialogam com
os eixos temáticos do PBQ; como se dá a intervenção destes agentes implementadores na
comunidade e quais os principais aspectos da relação entre estes e os principais
demandatários das políticas públicas, os quilombolas. Trabalhamos com dados quantitativos
e qualitativos. A análise quantitativa refere-se ao levantamento dos principais dados
numéricos sobre o acesso aos serviços e aos programas sociais do governo, a quantidade de
famílias beneficiadas, entre outros. Os dados qualitativos estão relacionados com os
aspectos sociais, políticos e históricos que transparecem no decorrer da implementação das
políticas na comunidade. A intenção da análise qualitativa é captar as nuances que
permeiam os discursos e as práticas inerentes ao processo, do qual fazem parte a execução
das ações municipais e o acesso da comunidade às políticas do PBQ.
Os eixos temáticos expostos no documento de apresentação do Programa Brasil
Quilombola (2004) e no Guia de Políticas Públicas para Quilombolas (2013) englobam
diversos programas e ações a serem trabalhadas nas comunidades. Partindo deste Guia,
observaremos como tem sido o acesso dos Negros do Riacho à estas políticas atualmente.
Segue abaixo, tabela com os quatro eixos temáticos do Programa e suas respectivas
atribuições.
QUADRO 5 - Eixos temáticos do Programa Brasil Quilombola
EIXO 1:
ACESSO À TERRA
CERTIFICAÇÃO REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
EIXO 2: INFRAESTRUTURA E QUALIDADE DE VIDA
PAC – FUNASA PROGRAMA LUZ PARA TODOS PROGRAMA NACIONAL DE HABITAÇÃO PROGRAMA ÁGUA PARA TODOS TARIFA SOCIAL
EIXO 3: DESENVOLVIMENTO LOCAL E INCLUSÃO
PRODUTIVA
DECLARAÇÃO DE APTIDÃO AO PRONAF-DAP PROGRAMA CISTERNAS SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS ASSISTÊNCIA TÉCNICA E INCLUSÃO RURAL QUILOMBOLA-ATER SELO QUILOMBOS DO BRASIL PROGRAMA BRASIL LOCAL – ECONOMIA SOLIDÁRIA
EIXO 4:
DIREITOS E CIDADANIA
PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO DO CAMPO PROGRAMA NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO-PNLD PROGRAMA DINHEIRO DIRETO NA ESCOLA-PDDE
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PROCAMPO EDUCAÇÃO QUILOMBOLA PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR-PNAE PROGRAMA NACIONAL DE ACESSO AO ENSINO TÉCNICO E
EMPREGO – PRONATEC PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA-PBF BUSCA ATIVA – CADÚNICO PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA - PSF PROGRAMA SAÚDE BUCAL – PSB TELECENTRO-BR RÁDIOS COMUNITÁRIAS DOCUMENTAÇÃO BÁSICA E REGISTRO CIVIL
Fonte: Guia de Políticas Públicas para Quilombolas – SEPPIR
No primeiro semestre de 2013, iniciamos um mapeamento das políticas públicas
existentes na comunidade. Neste momento, através da observação no local comunidade e
de entrevistas com membros da Associação dos Moradores e outras lideranças pudemos
levantar os primeiros dados referentes às ações realizadas pela prefeitura, as principais
demandas do grupo e problemáticas referentes às políticas públicas ali implementadas ou
não. Posteriormente, também iniciamos as entrevistas com os agentes implementadores
para um levantamento das políticas públicas que estão atualmente vigentes. Além dos dados
e fatos relatados nas entrevistas, os trabalhos acadêmicos realizados por outros
pesquisadores também serviram como fonte bibliográfica para esta avaliação do Programa
Brasil Quilombola na comunidade Negros do Riacho. São trabalhos que tratam direta ou
indiretamente da situação social dos quilombolas, onde os autores citam questões
referentes a determinados momentos de intervenção do poder público no local.
Algumas das intervenções são sempre rememoradas, pois tiveram notável
repercussão na vida dos moradores e por isso a importância em serem citadas nos trabalhos
realizados na comunidade. As principais ações, as quais me refiro, são: 1º) a construção das
casas de alvenaria em substituição das casas de taipa na década de 90, juntamente com
outras ações idealizadas pela Ordem Franciscana Secular, coordenada pelo Frei alemão
Fernando Schnitker em parceria com as Paróquias e a prefeitura de Currais Novos (Assunção,
2009; Silva, 2009; Queiroz, 2002); 2º) as ações do Projeto Dignidade que aconteceram na
comunidade entre os anos de 2005 e 2007 (Medeiros, 2008; Assunção, 2009). O projeto
englobou ações vinculadas ao PBQ e aliadas à proposta do Governo do Estado em parceria
88
com o munícipio de Currais Novos. O objetivo era transformar a comunidade escolhida,
Negros do Riacho, em um “laboratório social”. Lá seriam desenvolvidas as ações que,
supostamente, pautariam um modelo de políticas públicas para comunidades quilombolas
no estado do Rio Grande do Norte. Como tentaremos relacionar os aspectos mais
importantes sobre as intervenções municipais realizadas no Riacho dos Angicos, é
importante ressaltar como estas ações pontuais marcaram a história das políticas públicas
para os Negros do Riacho. Traremos mais detalhes sobre estas ações na segunda parte deste
capítulo.
3.1.1 – Acesso à terra
Em meados da década de 1960, os moradores do Riacho se viram em um impasse
sobre a posse das terras da comunidade. A oferta apresentada por um fazendeiro vizinho
provocou alvoroço entre os moradores. A cogitação sobre a venda das terras dividiu as
opiniões na comunidade causando grande confusão, o que acirrou a disputa interna
dividindo a comunidade em subgrupos identitários: os “negros” e os “caboclos” (Assunção,
2009). Os “negros” que possuíam o documento da terra queriam efetuar a venda e os
“caboclos” se recusavam terminantemente. Assunção afirma que este caso “tornou-se
célebre e politicamente significante na região” (p.43). Apesar desta venda não ter se
efetivado, outras partes da terra já vinham sendo apropriadas por meio de compras, trocas e
mesmo de forma indevida com o avanço de cercas feito autoritariamente pelos proprietários
de terra da região. Estes conflitos nem sempre aparentes se mostraram historicamente
como uma problemática latente.
A garantia da posse da terra é fundamental no processo de reconhecimento étnico
da comunidade. Porém, a regularização fundiária não aparece nas falas dos entrevistados
como uma prioridade para a comunidade e apesar de reconhecer que, no passado, grande
parcela da terra foi apropriada ou trocada pelos proprietários vizinhos. A comunidade foi
certificada pela Fundação Cultural Palmares em 2006. Os moradores demonstram não ter
preocupação, na atualidade, com a regularização da terra propriamente dita, visto que
sentem-se com uma certa autonomia sobre a mesma e supõem que não haverão maiores
89
problemas sobre esta questão. O fato de existir um documento do Incra31, em nome de um
ex-morador do Riacho, faz com que haja uma ideia de certeza da posse da comunidade
sobre a terra. Os conflitos internos entre os grupos dos negros e dos caboclos relacionados à
propriedade das terras do Riacho (Assunção, 2009) foram amenizados com o passar do
tempo e a permanência das famílias no local. Entretanto, os embates com os proprietários
vizinhos, que por vezes é silenciado, aparecem entre uma fala e outra. Segundo um dos ex-
presidentes da comunidade, os conflitos de terra são “problemas do passado (...) Existia um
problema antigamente com a venda das terras. Aqui eram 3 hectares no documento. Já
tomaram mais de 200 braças”32. Neste dia, como em outros que estive na comunidade a
realizar a pesquisa de campo, várias pessoas do grupo familiar e mesmo de outras
residências tomam parte da conversa e participam da entrevista. Ao indagar sobre o
interesse da comunidade em adquirir o título coletivo da terra, não tinha me dado conta que
havia, entre as pessoas que estavam ali, um vizinho que logo se prontificou em dizer que
“não tem necessidade de mexer com isso, deixa como está mesmo”. Os outros interagiam na
conversa no mesmo sentido, sem grandes intenções sobre a regularização e titulação da
terra. Estes conflitos se tornam latentes nas relações entre a comunidade e os donos dos
sítios vizinhos. Essa amenidade que aparece em alguns discursos dada às relações entre
fazendeiros vizinhos e comunidade, repercute numa espécie de senso comum em meio à
gestão municipal e a implementação de políticas públicas no local.
Segundo um dos servidores municipais entrevistados, o conflito de terras, muito
comum entre outras comunidades e proprietários vizinhos, não se verifica em Currais Novos.
Esta é uma das características colocadas por ele como um diferencial em relação à outras
comunidades.
Eu tô indo todo mês pra reunião no INCRA, eles lá se reúnem com todos os
representantes quilombolas (...) só não fui esse mês, mas o mês passado eu
fui, o mês retrasado eu fui. Então a gente já deu entrada na regularização
fundiária deles junto ao Incra, todos eles vão receber o título da terra. A
diferença que eu noto da comunidade da gente para as outras é a questão
de que o pessoal invade terras... conflitos com dono de terras. Então a
gente aqui não tem esse problema. Lá [no INCRA] eles tratam muito disso.
31
O documento da terra está registrado no Incra em nome de Damião Lopes, morador do Riacho já falecido. A área correspondente ao imóvel é de 3,6 hectares. O sítio é denominado no documento como Riacho dos Angicos. 32
Morador da comunidade e ex-representante da Associação de Desenvolvimento Comunitário dos Negros do Riacho. Entrevista concedida em outubro de 2014.
90
A questão dos grandes latifundiários... desses tipos de conflito. Esta
questão de alguém está no espaço e alguém reivindicar aquele espaço
como tá acontecendo em Lagoa Nova com a parte da eólica. Mas aqui não
tem. Tem conflitos entre eles, mas de dono de terras querer brigar por
aquele espaço que eles ocupam não existe isso aqui não. Sempre... é... todo
mundo sabe que aquela terra ali foi deles, ocupada por eles. Nunca
ninguém fez questão (Servidor municipal. Entrevista concedida em
novembro de 2014).
Em virtude do processo referente à solicitação de novas casas e reformas de casas
pelo Programa Minha Casa Minha Vida Rural desde 2013, foi encaminhado o requerimento
do título coletivo da terra em 2014 junto ao INCRA, conforme citado acima na fala do
servidor público. Este processo vem sendo acompanhado pelo Assistente Social responsável
pelo Setor de Habitação na SEMTHAS. Na última visita à secretaria, em janeiro de 2015, não
obtivemos maiores informações sobre o andamento deste processo. O representante da
comunidade, José, também não soube informar ao certo em que situação encontra-se o
trâmite da possível regularização fundiária das terras do Riacho. Pude observar que há um
discurso que neutraliza a amplitude dos conflitos de terra, que mesmo sendo negados em
determinadas falas, desde sempre foram recorrentes e ainda o são. Quando buscamos os
registros antigos sobre as demarcações das terras nas proximidades do Riacho dos Angicos,
ou mesmo relatos mais atuais, encontramos uma série de histórias sobre acordos,
negociações e alguns desentendimentos entre os proprietários vizinhos e a comunidade a
respeito do avanço de cercas. Segundo Silva (2009) o avanço das cercas nas áreas do Riacho
teve um intenso movimento, principalmente, na época em que a legislação do município de
Currais Novos passou a obrigar os proprietários a cercarem suas terras. Em 190533, esta
obrigatoriedade fez com que o ordenamento das terras acontecesse de forma desigual
devido aos proprietários de maior influência social e política se apossarem das terras da
Serra de Santana, que pela produtividade do solo e o bom clima, sempre foi muito visada
para o estabelecimento de grandes fazendas. Assim, os donos de terra que não tinham
recursos para cercar suas propriedades foram sofrendo grandes perdas com estes avanços
sobre seus territórios.
33
Conforme disposto no artigo 5º da Lei nº 31, aprovada em 21 de agosto de 1905 pela Intendência Municipal de Currais Novos, foi formada uma comissão com grandes proprietários de terras locais com a intenção de cercar as terras de da Serra de Santana (Silva, 2009, p. 57, 58).
91
Certamente que Trajano e sua família vendiam parcelas da terra barganhando ganhos imediatos e, por conseguinte, da manutenção das relações amenas com os proprietários da região. O fato é que depois da morte de Trajano, os terrenos continuavam diminuindo. Seus descendentes se desfaziam das propriedades por diversos motivos. Alguns desejavam se deslocar para outras áreas e acabavam negociando com estranhos as possessões herdadas; outros se desfaziam da terra em troca de gêneros alimentícios, dinheiro ou bebida alcoólica (Silva, 2009, p. 60-61).
Os moradores citam estas perdas sobre as terras que “os mais velhos deram com
medo deles [os proprietários vizinhos]”, fazendo menção a uma grande área que foi aos
poucos sendo subtraída. Seu João, um dos moradores mais antigos que nasceu e viveu toda
a vida na comunidade lembra que as terras de Trajano Passarinho se estendiam até a
Maniçoba34.
Mesmo se, na maioria das falas, a problemática da terra é posta como sendo uma
questão do passado, este morador narra uma situação vivenciada há pouco tempo atrás por
ele próprio. Quando perguntei se existe algum tipo de desentendimento em relação às
cercas, ele nos diz que certo dia percebeu quando um proprietário de terras vizinhas
mandou que seus trabalhadores avançassem a cerca, “comendo” um pedaço das terras que
compreendem parte das terras do Riacho, mas precisamente nas terras que estão junto à
residência deste morador. Ele conta que o proprietário citado deu um pedaço de terra alheia
(dos Negros do Riacho) para seus trabalhadores. O fato gerou a desavença que é relatada
abaixo
(...) quando foi um dia, eu esquentei a cabeça e disse: “Vou tirar tua terra hoje bicho nojento”. Aí tirei 90m de terra. Ele queria tomar todinha de fora a fora. Eu disse: “aqui não! Volta pra trás, bicho! Aqui tem eu. Você, você não pega daqui um quarto”. Ele é intrigado de eu, ele não fala comigo não por conta de terra. (...)Ele lá, tem uma bodega. Quando eu quero cana, eu mando o dinheiro. Ele queria deixar nós no meio da rua. Os nêgo besta entregaram [as terras]. (...) Aí quando foi um dia, eles vieram. Eu esquentei aqui a cabeça. Danei a vara! Eu dei em todos dois. Danei a vara pra riba! Eu disse: “Vai pra lá, dois cachorro ladrão!” Danei a vara. Ainda pegou em um, pegou no outro. Eles correram. Foram dar parte. Eu disse: “Vá dar parte, vá!”
(...) Aqui era bem maior. Essa terra ia lá dentro, na Maniçoba. Em frente. Minha fia, isso aqui tudo era aberto. Não tinha dono não. Se chegasse podia tirar um pedaço do tamanho que quisesse. Mas agora tem a lei, né? Com a lei, não... Você tem um pedaço de terra? tem que dar toda segurança àquela terra, né? (Morador da comunidade. Entrevista concedida em fevereiro de 2015)
34
Localidade do município de Currais Novos.
92
O morador relata que nessa situação teve que impor um limite para que não
houvesse mais invasões em suas terras. No caso, já chegando a um confronto mais incisivo,
com agressões físicas e verbais, o que demonstra que quando se trata de propriedade, as
relações entre os moradores do Riacho e seus vizinhos nem sempre são tão pacíficas e
amistosas. Durante a pesquisa de campo, ouvi relatos sobre pequenos furtos praticados
pelos moradores do Riacho nos sítios vizinhos, como ouvi também relatos de extermínio de
alguns animais do Riacho por parte de um determinado proprietário vizinho, pelo fato dos
animais atravessarem as cercas de sua propriedade. A autoridade de alguns proprietários
vizinhos se impõe através de cercas e placas sinalizando enfaticamente a divisão dos
espaços.
FIGURA 9 – Placa localizada na estrada que leva à propriedade de Gomes.
Em pesquisa realizada na comunidade, Queiroz (2002) faz referência aos embates
sobre a propriedade do Riacho.
A luta dos moradores do Riacho para manter sua minúscula área de terra de 3,6 hectares é uma constante. (...) Esta disputa é tão séria a ponto de recentemente ser preciso construir uma nova estrada para ligar o Riacho a Currais Novos porque um dos proprietários de terra, próximo à comunidade, ergueu uma cerca de arame farpado, fechando a estrada. A solução para tal impasse deu-se através da construção de uma nova estrada pela prefeitura, cortando toda extensão da terra da comunidade, abrindo espaço para o tráfego para a cidade (p. 52).
93
Em meio a outras problemáticas enfrentadas pelos moradores do Riacho, a questão
da fixação no território, da resistência e luta coletiva pela propriedade se faz presente nestas
observações esmiuçadoras da realidade local. Os desdobramentos das relações construídas
em meio à estas disputas também delineiam a rotina e a vida dos moradores no espaço que
ocupam. Existem visões diversas e contraditórias sobre a situação da Comunidade Negros do
Riacho e o acesso à terra. Uma delas é a do senso comum que perpassa a atuação dos
gestores públicos na comunidade e revela a negação dos conflitos sobre o quesito “terra”. A
outra é mais atenta ao processo histórico no qual está inserida a comunidade, uma visão
pautada na observação das práticas sociais entre quilombolas e fazendeiros relacionadas ao
território e à propriedade. As duas visões são percebidas nas falas dos quilombolas, quando
contraditoriamente eles negam os conflitos ao mesmo tempo em que apontam várias
situações de enfrentamentos cotidianos.
A Presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e Aposentados
na Agricultura Familiar do município de Currais Novos, quando lhe pergunto sobre os
conflitos nas terras do Riacho, ela relata que “hoje já não existe mais conflitos relevantes,
pois hoje já tem mais oportunidades”. Ela associa os conflitos agrários a outro tipo de
conflitos que envolvem pequenos furtos de frutas e animais cometidos pelos moradores do
Riacho nas propriedades vizinhas e que são constantemente citados pela população local e
pelos agentes implementadores que entrevistei.
Existe um caso de roubo que rendeu, inclusive, um processo criminal que resultou na
prisão de seis homens do Riacho. Consta no processo que estes homens foram enquadrados
no artigo 157, por roubar uma quantidade de peixes de um pescador que fazia sua pescaria
em um açude localizado na propriedade vizinha, da Sra. Rita Saldanha. Todos os seis foram
condenados a 6 anos e oito meses de prisão. Dois deles não cumpriram a pena; dois
conseguiram, com um tempo, pagar a fiança; um faleceu enquanto apenado; e um deles
cumpriu parte da pena em regime semi-aberto e hoje cumpre regime aberto. Todos os dias,
o jovem se desloca da comunidade para a delegacia da cidade para assinar a folha de
presença. A mãe dele conta que não concorda com o ato do filho nem dos outros, mas que
muitas famílias não tinham o que comer e, diante da necessidade, os peixes vieram em boa
hora. Mas não tardou para a polícia chegar e ninguém teve nem tempo de comer o peixe.
Um dos moradores disse que teve que derramar a panela toda de peixe por causa do
94
flagrante cheiro. Enfim, a famigerada “estória do peixe”, rende muitas conversas até hoje na
comunidade. Certo dia de festa da padroeira de Currais Novos de 2014, um desses rapazes
que nunca se apresentaram à polícia, foi pego na cidade e dizem os boatos na comunidade
que “a polícia deu-lhe uma surra grande”.
Este tipo de episódio toma proporções enormes na cidade e nos sítios do entorno e
reafirma a fama dos Negros do Riacho de serem brigões e ladrões, sem se levar em conta
todo o contexto. É assim que na fala da presidente do Sindicato dos Trabalhadores (as)
Rurais, em primeiro momento, os conflitos de terra associam-se à prática destes pequenos
furtos e aparecem como sendo causados pelos quilombolas por uma espécie de necessidade
ou falta de melhores oportunidades de vida. Quando reforço a pergunta e especifico os
problemas das cercas das terras, ela reconhece que houve sim estes avanços de cerca, mas
coloca em tempo passado. Nos tempos atuais diz não ter conhecimento sobre estas
situações, porém contradizendo-se confirma algumas ocorrências relatadas sobre pequenos
conflitos recentes acontecidos na comunidade. É perceptível como as irregularidades
cometidas pelos membros da comunidade tomam uma amplitude bem maior perante a
sociedade, o que os coloca como os principais agentes causadores da desordem, chegando a
ser motivo de condenação e prisão de indivíduos como ocorreu no “caso do peixe”. Práticas
históricas, como o avanço das cercas não são compreendidas como uma ilegalidade de fato,
um roubo, nem por parte dos cidadãos comuns, nem do Estado. Essas diferenciações entre
indivíduos caracterizadas pela condição sócio-racial servem para reforçar o lugar social
ocupado pela comunidade e estigmatiza-la. Se neste contexto estudado, esses conflitos não
são reconhecidos como impulsionadores para o processo de regularização fundiária, os
próximos passos para o efetivo direito à terra ficam também comprometidos.
3.1.2 - Infraestrutura e qualidade de vida
Sobre o segundo eixo temático “Infraestrutura e qualidade de vida”, fizemos um
levantamento sobre as principais políticas públicas e programas que se inserem neste tema
de acordo com o Guia de Políticas Públicas para Quilombolas. As ações contempladas neste
eixo compreendem o acesso aos direitos básicos de todos os cidadãos: Acesso à saúde e
educação de qualidade, acesso à água para consumo e produção, energia elétrica, respeito e
valorização cultural.
95
Para a SEPPIR, a consolidação deste eixo exige que haja
estreito diálogo com as comunidades, para que cada ação seja desenvolvida de acordo com a demanda e com os projetos de futuro das famílias quilombolas. É preciso que o Governo Federal, em parceria com governos estaduais e municipais respeitem as especificidades de cada uma das comunidades, valorizando seus processos de aprendizagem, de saúde alternativa, de uso da terra, dos meios de produção, dos modelos de comércio e de inclusão nas redes locais (Brasil, 2012, p. 24).
Ao iniciar a pesquisa junto às Secretarias Municipais de Currais Novos que atuam nas
áreas mencionadas, fica aparente a falta de interlocução entre o poder público municipal,
Governo do Estado do Rio Grande do Norte e Governo Federal no que se refere ao Programa
Brasil Quilombola. As Secretarias não apresentaram nenhum suporte específico para o
atendimento das demandas da comunidade. Abaixo, na fala do servidor fica demonstrada o
não conhecimento sobre o Programa Brasil Quilombola e a desorganização na captação dos
recursos para trabalhar com as comunidades quilombolas no Município.
Me falta tempo de buscar e de implementar, de criar projetos, ver como é que funciona essas políticas pra poder me conceituar direito, ver qual é o papel da gente enquanto técnico, enquanto gestão dentro da comunidade. Ver o que a gente vai poder levar pra lá, como, se tem recurso, se tem que ter contrapartida do município. Tudo isso a gente tem que ver porque, realmente, eu sou totalmente leigo em relação a essas políticas públicas pra quilombolas (Servidor da SEMTHAS. Entrevista concedida em setembro de 2014).
Sobre a participação e o incentivo da Prefeitura Município no tocante às ações
desenvolvidas na comunidade. O servidor afirma que
A prefeitura apoia. Agora é como eu digo, quando fala em fazer alguma coisa que precise de recurso próprio... O município já vem praticamente do FPM que foi bastante reduzido. Então a gente tem que cortar gastos. O prefeito, o gestor orienta muito que a gente procure parcerias com o governo federal. Alguma coisa que o governo federal disponibilize ou também orienta a gente fazer como a gente fez, concorrer a editais pela própria Associação [ADCNR] e a prefeitura disponibiliza de recursos humanos se for o caso (idem).
As poucas ações de iniciativa local desenvolvidas na comunidade são intermediadas,
geralmente, pela SEMTHAS. É a secretaria que mais interage com a comunidade por meio de
cadastros do Programa Bolsa Família e outros Programas do Governo Federal, como o Minha
Casa Minha Vida, os Benefícios de Prestação Continuada (BPC), e demais solicitações são
96
mediadas pelo setor de Assistência Social. A prefeitura municipal de Currais Novos,
historicamente, não tem tido uma participação efetiva na iniciativa de construção de
políticas públicas para a comunidade Negros do Riacho. As ações que partem do Governo
Federal não têm a devida atenção prioritária voltada para as comunidades quilombolas
locais, conforme previsto no Programa Brasil Quilombola. Segue abaixo, gráfico com as
principais ações deste eixo, realizadas na comunidade Negros do Riacho até 2013.
As obras de infraestrutura tiveram início no final da década de 1980, quando
(...) as paróquias de Santana e Imaculada Conceição, a Ordem Franciscana Secular e a Ordem Terceira, em conjunto com a Secretaria de Obras do município de Currais Novos, organizaram e desenvolveram um projeto de assistência que visava alterar as condições (e as formas) de vida dos moradores do Riacho. Os clérigos estiveram à frente na articulação das atividades, coordenadas pelo frei alemão Fernando Schnitker, representante da Ordem Franciscana Secular na Paraíba e no Rio Grande do Norte (a quem coube captar o auxílio material que tornaria viável as ações do projeto), e pelo padre Welson Rodrigues do Nascimento (responsável pelo desenvolvimento da obra e gestão dos recursos) (Silva, 2009, p. 157-158).
1994
1998
2002
2008
2013 2013
1980
1985
1990
1995
2000
2005
2010
2015
GRÁFICO 1 - Infraestrutura e qualidade de vida
97
As ações desenvolvidas por este projeto foram as primeiras intervenções de políticas
públicas realizadas na comunidade. Com recursos vindos da Alemanha, arrecadados por
meio de campanha filantrópica de iniciativa da Ordem Franciscana Secular juntamente com
recursos da Prefeitura de Currais Novos, foram construídas 27 casas de alvenaria em
substituição às antigas casas de taipa existentes na comunidade. As casas foram inauguradas
no ano de 1994. Além das casas, foram construídos pelo mesmo projeto o primeiro poço
artesiano e o centro de reuniões e celebrações (Silva, 2009), onde hoje funciona a
Associação de Desenvolvimento Comunitário dos Negros do Riacho (ADCNR).
FIGURA 10 – Associação de Desenvolvimento Comunitário dos Negros do Riacho.
Fonte: Autora. Foto tirada em outubro de 2013.
Há pouco mais de vinte e cinco anos, a comunidade começou a passar por mudanças
significativas em sua infraestrutura, principalmente porque a substituição das casas de taipa
reformulou a paisagem e modificou alguns aspectos da organização social e produtiva da
comunidade. Associa-se a este período, o início da diminuição da produção de louça, que
costumava ser produzida dentro da casa de taipa. Em 2005, a partir da atuação do Projeto
Dignidade, foram construídas e entregues mais 16 casas em substituição das casas de taipa
construídas pelos moradores a fim de acompanhar a demanda crescente de novas famílias
na comunidade. O Projeto Dignidade atuou nos anos de 2005 a 2007 na comunidade e teve
uma intervenção principalmente neste eixo de infraestrutura e qualidade de vida da
98
comunidade. O Projeto contemplou as seguintes ações: Sistema de abastecimento de água,
instalação de um dessalinizador na comunidade; Substituição de cata-vento; Reforma do
Centro Social; Construção de uma unidade de cerâmica para a produção coletiva artesanal;
Construção de uma arena para desenvolver atividades esportivas e culturais; Incentivo às
práticas do esporte como elemento de coesão e difusão de valores da comunidade; Oferta
de cursos para geração de renda; Assessoramento para formação da Associação de
Desenvolvimento Comunitário dos Negros do Riacho; Organização de grupos de
adolescentes e de mulheres, com ações que fomentam o fortalecimento da autoestima;
Emissão de documentos, tais como: registro de nascimento, CPF, título de eleitor e carteira
de identidade; Organização e difusão da realidade dos Negros do Riacho, através da
Exposição Fotográfica Retratos da Dignidade (Medeiros, 2008, p. 70).
A obra de abastecimento de água financiada pela FUNASA foi concluída em 2013,
teve um investimento de R$ 241.408,68, onde foi feita a perfuração de um novo poço, foi
construída uma nova caixa d’água e o abastecimento de água passou a ser encanado para as
residências. O secretário de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente, informou que
Com relação ao abastecimento de água, nós estamos monitorando o sistema de dessalinizador, que na verdade é sistema dessalinizador com distribuição de água encanada casa a casa. Só falta mesmo eles serem atendidos no que diz respeito ao saneamento básico, aliás, no tocante ao sistema de esgotamento sanitário. Então, com relação a isso eles estão necessitados (entrevista concedida em fevereiro de 2015).
Em nenhum momento foi feita a conexão com os recursos federais investidos na
obra. Com relação ao saneamento básico, não foi mencionado a expectativa para a
realização deste trabalho pela prefeitura. A coleta de lixo nas zonas rurais que também é
competência desta secretaria não é feita naquela comunidade. O secretário informou que
em algumas comunidades, mais próximas da zona urbana, é feita a coleta do lixo. Mas no
caso do Riacho dos Angicos, não existe uma coleta.
O lixo por lá, geralmente, é queimado. É uma prática que não é recomendada, mas na ausência de qualquer tipo de tratamento, ela é indicada. Não é o ideal, mas é a forma indicada para os casos mais excepcionais como no caso das comunidade rurais. Como não são atendidas [as comunidades], os moradores realizam essa prática para se livrar do lixo domiciliar. Tem comunidades que tem a coleta do lixo por causa do adensamento delas, a quantidade de pessoas. São as comunidades mais próximas da cidade. São três comunidades, aproxidamente, em que o lixo é coletado regularmente por conta do adensamento populacional (Secretário
99
de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente de Currais Novos. Entrevista concedida em fevereiro de 2015)
O lixo é descartado próximo às residências e pelos terrenos no entorno da
comunidade. Não há um local adequado para colocar o lixo produzido. Não foi feita
nenhuma solicitação a respeito desta coleta pela comunidade e também não houve
iniciativa do poder público para solucionar esta demanda.
FIGURA 11 – Animais e lixo a céu aberto próximo às residências da comunidade
Fonte: Autora. Foto tirada em outubro de 2012.
FIGURA 12 – Lixo descartado pelos moradores.
Fonte: Autora. Foto tirada em fevereiro de 2015.
100
A energia elétrica chegou às residências em 1998, via Associação do Serrote do Melo,
um sítio vizinho. Na época ainda não existia a Associação de Desenvolvimento Comunitário
dos Negros do Riacho (ADCNR). O alto valor da conta de luz é uma problemática constante
para os quilombolas do Riacho, pois a tarifa social que vem em forma de redução dos valores
nas contas da COSERN não atende as realidades das famílias, que reclamam por um
desconto mais justo. No entanto, ainda não foi tomada nenhuma medida para assegurar que
o desconto seja calculado conforme o previsto no Programa Tarifa Social. Nas residências
das famílias, as quais tivemos acesso, pude verificar que estas possuem poucos
eletrodomésticos e o questionamento sobre o valor das contas de energia pode ser,
realmente, algo a se apurar junto à COSERN. Também por meio da Associação do Serrote do
Melo, encaminharam-se os projetos das cisternas do Governo Federal, que segundo o
presidente da ADCNR começaram a ser construídas em 2002. Hoje, oito residências possuem
cisternas do Projeto Cisternas do Governo Federal.
Em 2013, as famílias iniciaram o cadastramento para a construção e reforma das
residências pelo Programa Minha Casa Minha Vida (Rural), que é implementado pelo Setor
de Habitação da SEMTHAS. Os moradores estão aguardando informações sobre o
andamento do processo. O responsável pelo Setor de Habitação diz que a verba não foi
repassada e por isso o andamento do projeto está parado. As famílias estão crescendo e já
existem novas habitações de taipa construídas na comunidade. O projeto de habitação prevê
a construção de 38 novas casas e reforma de 32 residências. Atualmente existem 40 casas
edificadas em alvenaria, sendo que quatro destas são anexadas à outras35 e duas casas
foram demolidas. Algumas famílias convivem em sistema de co-habitação, outras famílias já
migraram para outros sítios, para a cidade de Currais Novos, para Acari e também para
outros estados e por isso o suprimento desta demanda se faz urgente. O Programa de
Habitação Rural faz parte de um acordo entre a SEPPIR e a Caixa Econômica Federal, o
beneficiário entra com uma contrapartida de 4% do valor total do subsídio que pode ser
dividida em quatro parcelas a partir do primeiro ano do contrato. Os moradores
35
A casa de Paulo foi anexada à de Aparecida por motivo de união entre o casal. A casa de Doiva é anexa à da filha e formam uma só residência. A casa de Aldair, filho de Pretinha, também é uma extensão da casa de sua mãe formando também uma só residência. Há também, a casa que pertecia à Nivalda, hoje falecida. Sua casa foi anexada à casa de Maria do Carmo. Outras duas casas foram demolidas, a do pai de Silvana, que ficava ao lado da sua e a do avô de José, Luiz Preto. Há ainda as construções de taipa. Uma delas anexa à casa de Seu João, a residência de uma de suas filhas; outra próxima à ADCNR, que era onde os homens jogavam baralho; e outra anexa à residência de Marluce.
101
demonstram estar desacreditados sobre a construção das novas casas devido a demora no
encaminhamento do processo.
FIGURA 13 – Casa de taipa construída por Seu João para uma de suas filhas.
Fonte: Autora. Foto tirada em fevereiro de 2015.
Nos últimos dois anos, entre 2013 e 2015, as principais ações implementadas na
comunidade mediadas pela prefeitura foram: a obra de abastecimento de água (que ainda
não foi totalmente concluída) e a implementação em curso do Programa Minha Casa Minha
Vida. Como é mostrado no gráfico 1, ainda não existe um sistema de coleta de lixo no Sítio
Riacho dos Angicos. O lixo é jogado a céu aberto ou queimado. O saneamento básico
também não existe. A maioria das famílias ainda não fizeram a encanação e o esgotamento
de água na parte interna das residências. Geralmente as casas possuem somente uma
torneira que distribui a água para o uso das famílias. O dessalinizador ainda não está ativado
pois não tem ninguém para operar a máquina. A prefeitura sugeriu que alguém da
comunidade fizesse este trabalho. A comunidade sugeriu à prefeitura que a pessoa que
ficasse responsável por este serviço fosse remunerada para tal. Até agora não foi acordado
mais nada entre as partes e o dessalinizador está parado. A prefeitura, assim como a
102
associação comunitária, não demonstram uma organização sistematizada para solucionar as
demandas mais básicas da comunidade. As ações municipais continuam limitando-se à
políticas imediatistas para atender as demandas mais urgentes, como reparos na estrada de
acesso à comunidade quando este se torna impossível; conserto de bomba de água; ajuda
para a festa anual da comunidade. Recentemente, houve a confirmação do
encaminhamento de cestas básicas junto com o transporte para a comunidade através da
parceria entre o MDS, Fundação Cultural Palmares (FCP) e CONAB (Natal-RN). A SEMTHAS
informou que cederá o espaço para a embalagem dos alimentos, porém não se envolverá na
distribuição, seguindo as orientações da FCP sobre a entrega das cestas que deve ser
organizada pela ADCNR.
Conforme nos foi mostrado, a maioria das ações que acontecem na comunidade, e
estas são mais relacionadas à infraestrutura e aos programas de transferência de renda,
partem dos Programas do Governo Federal e são executadas com a participação do
município. Não há um direcionamento específico do poder público municipal para sanar os
problemas da comunidade. As lideranças que pude entrevistar durante a pesquisa alegam
um distanciamento do poder público e dificuldade em articular-se com a prefeitura em torno
de um projeto político mais amplo de melhorias para a comunidade. José, representante da
ADCNR, diz não ter um maior conhecimento sobre o funcionamento das políticas públicas e
os direitos dos quilombolas e por isso tem dificuldades em se organizar em prol de melhorias
para a comunidade, que por sua vez, segundo ele, não se mobiliza para este propósito. Há
um sentimento de descrença generalizado em relação às políticas públicas na comunidade.
3.1.3 – Desenvolvimento local e Inclusão produtiva
Considerar o desenvolvimento local de uma comunidade, bem como a inclusão
produtiva, requer um conhecimento profundo sobre a realidade em questão. O diálogo
entre poder público e a comunidade precisa estar articulado com as demandas do grupo a
ser beneficiado. O PBQ coloca este eixo como um propulsor de ações para autonomia e
sustentabilidade das comunidades quilombolas. O Guia de Políticas Públicas para
103
Quilombolas (2013) elenca as políticas a serem trabalhadas neste eixo36. Em âmbito
municipal poderiam ser desenvolvidas várias ações relacionadas a este tema, porém, no
momento, nenhum do Programas ou ações específicas estão sendo aplicados na
comunidade.
Como em toda a zona rural da região semi-árida, a estiagem tem prejudicado a
produção agrícola. A comunidade só veio receber um reforço no abastecimento de água em
2013 e as famílias não tem apoio técnico, nem social para investir na agricultura. Somente
poucas famílias cultivam pequenas plantações e criam alguns animais pequenos, mas sem
recursos para tal. As famílias não tem um acesso integral aos benefícios do PRONAF
(Programa Nacional de Agricultura Familiar). Existe um fator que tem corroborado para o
distanciamento entre o PRONAF e a realidade das famílias. A secretaria de Agricultura não
desenvolve projetos agrícolas na comunidade, pois afirma que os moradores não têm
interesse em trabalhar com agricultura. O gestor coloca que neste período de dois anos,
desde quando assumiu o cargo, as ações que beneficiaram a comunidade foram: o
abastecimento de água, já mencionado; e a doação de mudas para o projeto de uma área
verde onde está localizada a Escola São Francisco de Assis (no sítio vizinho), onde as crianças
quilombolas estudam. Existe um projeto para 2015 de perfuração de mais um poço
artesiano e estão aguardando a resposta de outro projeto que contempla a construção de
uma quadra poliesportiva com recursos do Ministério dos Esportes.
No que diz respeito à atividade produtiva, eles têm muito pouca tradição na
produção de subsistência, mesmo sendo subsistência. Eles não têm a
prática da produção voltada pra comercialização. Ou seja, Eles não fazem
parte, ou se fazem são muitos poucos os que fazem parte do PRONAF, os
que são “pronafianos”. São raros, os dessa comunidade (Secretário
Municipal de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente. Entrevista
concedida em fevereiro de 2015).
Esta visão da Secretaria sobre uma não viabilidade da agricultura familiar por motivos
específicos dos moradores do Riacho colabora para o distanciamento de novas perspectivas
sobre a produção na comunidade e diminui o acesso aos benefícios do PRONAF. Programas
como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e a ATER (Assistência Técnica Rural)
acabam não sendo acessados pelos quilombolas por um conjunto de fatores como
desinteresse e desinformação do poder público e da própria comunidade.
36
Ver quadro 5, p. 86.
104
Eles são muito dependentes do assistencialismo, certo? A verdade é que
eles esperam muito pelo assistencialismo governamental. Eles são pouco
afeitos às iniciativas próprias, né? E eles assim, têm uma cultura de pedir.
Eles pedem bastante. (...) O que eu percebo é isso. Eles não têm a iniciativa
de nos procurar pra se envolver em algum programa do governo estadual,
do governo federal, ou mesmo do governo municipal. Inclusive para
produzir. Eles têm como produzir. Assim... a gente tem muita informação
que eles praticam roubo nas comunidades vizinhas, nas lavouras nas
fruteiras do pessoal. Tanto na cultura permanente como na cultura
temporária e também em relação aos açudes. Eles roubam peixe. São as
informações que a gente tem (Secretário Municipal de Agricultura,
Abastecimento e Meio Ambiente. Entrevista concedida em fevereiro de
2015).
A gestão coloca o fator da não produtividade como sendo um aspecto inerente aos
Negros do Riacho e de iniciativa exclusiva da comunidade ou das famílias. Associa a prática
de pedir a um certo comodismo e distanciamento em relação ao trabalho. O incentivo e
inserção de políticas ligadas ao PRONAF aparecem deslocadas da realidade do Riacho e mais
uma vez são reforçados velhos estereótipos dos moradores como dependentes, pedintes e
ladrões. Na EMATER de Currais Novos, como em outras secretarias do município, não
encontramos uma sistematização dos dados por comunidade rural. Os cadastros dos
quilombolas não são classificados com nenhuma especificidade que os identifique como um
grupo quilombola. A informação que obtive na entidade é que alguns quilombolas tem a
Declaração de Aptidão ao PRONAF (DAP), mas não tive acesso a um número exato. Segundo
a EMATER, em média, 30 pessoas possuem DAP. Sendo que as pessoas na comunidade não
sabem o que é a DAP. Durante as entrevistas e aplicação dos questionários eles ficaram
confusos sobre o assunto. José informou que ninguém possui DAP na comunidade. A
EMATER é responsável pela emissão da DAP e opera na implementação dos benefícios
relacionados à agricultura familiar juntamente com a Secretaria de Agricultura e o Sindicato
Rural. Entrevistei o Assessor de Cultura da EMATER sobre a situação do Riacho e a
Agricultura Familiar. Perguntei se os Negros do Riacho são considerados agricultores. A
resposta foi “não”, “esta é uma resposta particular minha”, disse o assessor. Ele me relatou
algumas dificuldades que observa sobre a possível produção agrícola no Riacho dos Angicos.
Segundo ele, o fato da área ser pequena, em tabuleiros secos não propicia a agricultura.
Além disso, as pessoas da comunidade tem problemas com a organização de uma cultura
agrícola. Ao questiona-lo sobre de onde teria que partir a iniciativa para o aprimoramento
105
das políticas do PRONAF na comunidade, o servidor responde: “Deles, da comunidade”. Ao
mesmo tempo percebe a necessidade da atuação do poder público quando reconhece que
para sanar este problema, teria que haver um grande trabalho de base de conscientização e
capacitação técnica na comunidade. A sugestão para a inclusão da comunidade no PRONAF,
vislumbrada pelo servidor, é a possiblidade de haver a aquisição de uma nova área para
iniciar um projeto de incentivo à agricultura familiar na comunidade ou alguma espécie de
arrendamento ou aquisição de terras nas propriedades vizinhas para fins de cultivo. A
EMATER gerencia os benefícios de Crédito Rural e Garantia Safra, os quais são os únicos
acessados, através da entidade, pelos quilombolas com DAP. Porém, a atuação da EMATER
vai além do gerenciamento destes benefícios junto aos demais agricultores do município. Em
todo o município são 630 inscrições no Garantia Safra, recentemente foram construídas 20
barragens subterrâneas nas comunidades rurais; implementação de ações do PNAE e PAA;
treinamento e capacitação para a bovinocultura, caprinocultura, agroecologia, manejo de
pequenos animais, entre outras; e distribuição de sementes para plantio.
FIGURA 14 – Criação de animais
Fonte: Autora. Foto tirada em abril de 2015
106
A comunidade Negros do Riacho fica a margem do acesso a estes investimentos e
políticas públicas no momento em que naturaliza-se a condição de improdutividade da
comunidade como um fato deslocado de todo um processo de exclusão social histórica.
Algumas casas são cercadas para que se possa cultivar roçados e criar pequenos
animais. Isto demonstra que as famílias têm sim a intenção de plantar, já outras famílias não
conseguem cercar seus terrenos, pois dizem não ter condições para isto, e reclamam das
condições que não são favoráveis para a atividade agrícola. Tanto o clima seco, como a
criação de animais soltos na vizinhança são fatores relatados pelos moradores como não
propícios ao desenvolvimento da agricultura familiar no Riacho. Juntando isto à falta de
incentivo para este tipo de produção faz com que a improdutividade das terras seja uma
condição marcante na vida dos moradores. Mesmo com todas estas adversidades, neste
período do início de 2015 com as chuvas de março, conforme a tradição das populações
rurais sertanejas37, algumas famílias iniciaram a plantação de milho e feijão.
FIGURA 15 - Roçado de Seu Zé Pereira. Fonte: Autora. Foto tirada em março de 2015.
37
Em março, no dia 19, comemora-se o dia de São José. No sertão, o santo é considerado o santo que traz a chuva, iniciando o inverno tão esperado pelos sertanejos. Assim os agricultores demonstram devoção a este santo que é associado ao sucesso da lavoura.
107
Se tratando de desenvolvimento local e inclusão produtiva, se a comunidade não tem
tradição em agricultura por uma razão ou por outra, é uma questão a ser melhor examinada
para que sejam construídas alternativas neste sentido. Mas o fato é que existe a tradição em
outro tipo de atividade produtiva que é a produção das louças, esta sim é conhecida e sabida
por todos. No entanto também é sabido que a produção começou a declinar quando os
potes já não tinham tanta utilidade doméstica para os compradores como no passado.
Conta-nos Iralice Lopes, conhecida como Pretinha, que
Naquela época era uma vida boa, todo mundo queria barro. Todo mundo era apoiado na louça do barro. Hoje em dia não tem mais isso. Hoje em dia tudo é pressão, louça, coisa boa. Tudinho fazia barro. Deixou de fazer agora. Tudinho fazia. Tem uma nêga lá em cima, chamada Ana, que faz. (...) Mas não tem venda. Só é eu e ela que faz aqui e uma irmã minha que faz lá no Serrote do Melo. Faz também. Aí não tem venda, ninguém faz não. Pra fretar um carro, minha fia, é 150 reais. Um pote é 30 reais, 40 reais, um pote. Uma panela é 15 real. Aí não faz não que não tem venda pra fazer
(Pretinha. Entrevista concedida em novembro de 2013).
Perguntei se ela gostava de fazer esse trabalho e se pensava em voltar a fazer as
peças. Na época, em 2013, Pretinha não estava produzindo e vivia somente da
aposentadoria do pai. Hoje em dia, está aposentada e retomou a produção dos potes,
alguidares e panelas. É uma das poucas louceiras da comunidade que resiste com a
produção das peças. Ela responde:
Eu gosto de trabalhar. É o intento. Minha vida é o intento do barro que eu adoro fazer. Adoro alisar. Ave Maria... Essa semana, eu tava dizendo sozinha: ─ Eu vou fazer um jarro pra eu pintar pro natal pra botar na frente da minha casa. Eu acho bonito demais trabalhar no barro. As muié que me encomendava... Ave Maria...vinha de Natal, comprava muita louça a nós. Nós ficava tão feliz. Mas agora... cabô! Parou! Parou com a venda. Se tivesse um carro, eu queria. Aí eu fazia. Pra viajar Cerro Corá, Lagoa Nova, Campo Redondo. Ah que eu fazia... Mas pra Currais Novos, eu não boto não que não tem venda. (...) Nós tudinho nascemos os dentes fazendo barro. Agora esse povo novo que não se interessa em fazer barro... Nossa vida era barro, muié! Saía daqui pra Currais Novos na cabeça de pé [com o pote na cabeça a pé]. Vinte e quatro quilômetros todos os dias, quase todos os dias. Rodava três vezes na semana pedindo ajuda pra criar meus filhos (Pretinha. Entrevista concedida em novembro de 2013)
108
FIGURA 16 – Pretinha e suas peças de barro
Fonte: Autora. Foto tirada em abril de 2015.
Quando a comunidade foi reconhecida como quilombola em 2006, e houve a
participação do Projeto Dignidade, aconteceu uma intervenção de agentes do governo no
processo de produção das peças de barro com o intuito de “otimizar” o processo produtivo,
criando um novo espaço, novas ferramentas e inserindo uma lógica totalmente diferente da
tradicional, sem fazer conexão com as práticas já personalizadas das louceiras. A
comunidade sofreu mais uma vez com as ações vindas do governo sem interlocução com a
realidade local. É comum a referência a este saber local, da arte de trabalhar com o barro
principalmente nos projetos educativos das Escolas. Recentemente, iniciou-se na Escola São
Francisco de Assis o Projeto “Mãos no barro” 38. É um projeto coordenado por Raimundo
Melo desenvolvido em parceria com a Escola e tem o financiamento do Banco Itaú.
38
O Projeto Mãos no Barro teve início em 2014 na Escola São Francisco de Assis. É financiado pelo Prêmio Itaú Unicef e desenvolve atividades com a produção de artesanato de barro feitos pelas crianças da Escola. O Projeto tem parceria com Centro de Documentação e Comunicação Popular (CECOP), Secretaria Estadual de Educação e Cultura e das Associações Comunitárias dos Negros do Riacho e do Serrote do Melo. O Prêmio
109
Mesmo sendo, a cultura do barro no Riacho, uma tradição conhecida em todo o
município de Currais Novos, os investimentos e o estímulo à produção não acontece
efetivamente. A prefeitura não tem dado nenhum suporte específico para as artesãs. O
transporte para as peças chegarem ao destino de venda precisa ser fretado pelas próprias
louceiras e a produção só é feita a partir de encomendas por causa dos custos do
investimento. O selo “Quilombos do Brasil” que é uma das políticas que tem como objetivo
agregar valor e reconhecimento da cultura e identidade quilombola aos produtos feitos por
estes grupos, ainda não foi devidamente apresentado à comunidade. As artesãs do Riacho
ainda não têm conhecimento sobre o selo. A perspectiva da Economia Solidária, uma das
possibilidades expostas pelo PBQ como uma alternativa para o modo de produção
desenvolvido na comunidade, ainda não desperta a atenção do grupo para esta forma de
organização. A falta de informação e de estímulos coloca barreiras sobre a ampliação das
atividades produtivas já existentes na comunidade. O poder público tem o dever de criar
mecanismos para a valorização e incentivo da produção material e simbólica de forma que a
comunidade tenha autonomia sobre todo o processo que venha a fazer parte de sua
realidade e consiga aliar os saberes locais ao desenvolvimento social e econômico do grupo.
3.1.4 – Direitos e Cidadania
Neste eixo, entram os Programas Sociais do Governo Federal, considerados como
Políticas de Estado e que, por sua vez, fazem menção às comunidades tradicionais e
quilombolas como segmentos que devem ser priorizados no acesso a estes serviços. Existem
programas e ações citados no Guia de Políticas Públicas para Quilombolas que contemplam
o município de Currais Novos, porém não trabalham especificamente com a sistematização
das demandas e prioridades da comunidade. Na área da Educação podemos citar o
Programa Nacional de Educação do Campo, Programa Nacional do Livro Didático (PNLD),
Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), Procampo, Educação Quilombola, Programa
financiou também a mostra fotográfica Negros do Riacho que está exposta no espaço cedido pela Escola São Francisco de Assis, onde está sendo montado o Ponto de Memória Quilombola Negros do Riacho. Os projetos foram coordenados por Raimundo Melo, coordenador do Museu Nísia Floresta e articulador dos Pontos de Memória no RN.
110
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e
Emprego (PRONATEC).
A Secretaria Municipal de Educação do Município de Currais Novos possui um setor
responsável pela coordenação das escolas municipais localizadas nas zonas rurais do
município. Procuramos este setor em setembro de 2014 para informações sobre a Educação
Quilombola em Currais Novos. Lá se encontra uma pasta com os dados da Escola São
Francisco de Assis, que é a escola e creche que atende as crianças da educação infantil e
ensino fundamental. A escola é cadastrada no censo escolar, desde 2007, como escola
quilombola e recebe o repasse direto do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE). Iniciamos a entrevista com o pessoal do setor e em seguida com a diretora do
Centro Municipal de Ensino Rural Profª Rosângela da Silva39. A escola situa-se no Sítio
Serrote do Melo, a 3km da comunidade, onde as crianças vão em transporte escolar
municipal. A secretaria informou que o transporte para as crianças foi providenciado desde
2008, porém na comunidade nos informaram que somente em 2011, a prefeitura
providenciou uma van para transportar as crianças menores para a escola em decorrência de
um acidente fatal que ocorreu com o caminhão pau-de-arara que conduzia as crianças neste
trajeto. Uma criança de oito anos de idade faleceu neste acidente. Para os mais velhos, que
eram transportados para a cidade também em “carro pau de arara”, somente foi
providenciado um ônibus em 2012. A mãe da criança que veio a falecer no acidente, conta
que a prefeitura caracterizou o acidente como uma fatalidade e não assumiu a
responsabilidade do ocorrido. Na época, as outras crianças ficaram sem ir à escola, pois não
foi providenciado de imediato um outro transporte. Neste meio tempo, os pais das crianças
sob a ameaça de terem o benefício do Bolsa Família cortado, resolveram se mobilizar para
que um transporte escolar adequado fosse disponibilizado para as crianças da comunidade
retornassem à rotina escolar.
As servidoras do Centro Municipal de Ensino Rural informam que não existe
nenhuma parceria do Governo do Estado sobre a educação quilombola. O único
investimento específico que a escola recebe vem do FNDE. O material didático para a
educação quilombola começou a chegar em 2012, porém não chegaram novas remessas nos
39
O Centro Municipal de Ensino Rural Profª Rosângela da Silva é um setor da Secretaria Municipal de Educação de Currais Novos que coordena todas as escolas da zona rural do município.
111
anos posteriores. Em 2013, tem início o curso de especialização em “História e Cultura Afro-
brasileira e Africana” pela UFRN, no qual os professores da Escola São Francisco de Assis
estão matriculados. É cedo para saber como a formação dos professores vai incidir na
educação dos alunos, porém é um ponto positivo para que se avance no âmbito da educação
quilombola local. O fato é que a educação quilombola é carente em todos os níveis. O
principal fator de permanência das crianças na escola atualmente é o Bolsa Família. Esta é a
geração de crianças e jovens quilombolas do Riacho que estão começando a frequentar a
escola. Os pais destas crianças e jovens, que estão hoje em idade escolar, não frequentaram
regularmente a escola. A grande maioria abandonou os estudos nos primeiros contatos com
o sistema de ensino, não aprenderam a ler, nem escrever. A defasagem na educação é uma
problemática que não é exclusividade da comunidade Negros do Riacho, afeta toda a
população negra, porém comunidades negras rurais são ainda mais invisibilizadas no acesso
à uma educação de boa qualidade e condizente com suas peculiaridades.
Figura 17 – Crianças da comunidade voltando da escola municipal São Francisco de Assis.
Fonte: Autora. Foto tirada em abril de 2015.
112
O Ministério da Educação criou mecanismos para o acesso dos gestores locais às
políticas relacionadas à educação quilombola, como o Plano de Ações Articuladas (PAR), em
que os gestores informam suas demandas e recebem o apoio do ministério para desenvolver
ações específicas, no entanto, não fomos informados de nenhum projeto relacionado que
esteja acontecendo, nem que esteja previsto para acontecer nas escolas municipais que
atendem as crianças e jovens da comunidade quilombola.
Sobre a relação com os pais dos alunos, as servidoras relataram, em meio a risos, que
os pais procuram a secretaria geralmente para tratar de assuntos do Bolsa Família, quando
há o corte do benefício devido a baixa frequência dos filhos na escola. Percebemos que os
risos das servidoras têm a ver com a forma como os pais se dirigem ao setor, conforme a fala
de uma das servidoras “os pais de lá são muito assim, assistencialistas. Muitas vezes vem
atrás de benefício próprio para eles (...) Só entendem direitos. E deveres não. Eles chegam
aqui com muita autoridade quando cortam o bolsa família deles”. A servidora cita “eles” (os
quilombolas), de forma generalizada, mas na verdade se refere a casos isolados de cortes do
benefício devido à irregularidades na frequência de algumas crianças na escola. Segundo
uma das professoras, em entrevista concedida em 2013, a frequência costuma ser irregular,
pois
Devido à cultura deles, eles não se preocupam muito com a aprendizagem. Então a dificuldade que a gente tem aqui na escola é essa. A gente não tem muito o apoio dos pais em relação à aprendizagem, sabe? Isso aí fica complicado pra escola sozinha dar conta.
(Professora da Escola São Francisco de Assis. Entrevista concedida em novembro 2013)
A diretora relata que os professores revelam certa angústia em relação à
aprendizagem dos alunos quando procuram o setor para tratar de planejamento e parte
pedagógica. As servidoras presentes logo se inserem na conversa e colocam seus pontos de
vista sobre o aprendizado dos alunos. Em suas opiniões unânimes, esta dificuldade no
aprendizado tem a ver com a mistura parental. “Eles vão se juntando e formando. A família
deles tem mais dificuldades. Por ser da mesma linhagem, a mesma genética, né? 40”.
Entre as 35 famílias residentes na comunidade, somente uma pessoa concluiu o
ensino médio, e outras duas tem ensino médio incompleto. A frase que mais ouvi na
40
Fala de servidora do Centro Municipal de Ensino Rural em setembro de 2014.
113
comunidade sobre estudos foi: “eu estudei, mas não aprendi nada”. Houveram algumas
tentativas de formação de turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos) voltadas para os
moradores da comunidade, mas sem sucesso. Em 2005 houve uma iniciativa na Escola São
Francisco de Assis e em 2014, a Escola Municipal Humberto Gama abriu uma turma voltada
para os quilombolas. Em ambas as tentativas houve um alto número de evasões. A diretora
da Escola Humberto Gama relata que os quilombolas precisavam sempre de um estímulo a
mais para frequentar as aulas, como um jogo, um lanche, etc. “Quando não tinha nada, eles
não iam e com a evasão dos alunos, o custo do transporte entre a escola e a comunidade
ficou alto para a prefeitura”41. Este ano, alguns alunos estão cursando o ensino médio no
CEJA (Centro de Educação de Jovens e Adultos), localizado também na cidade. O Programa
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) ainda não contemplou
nenhum membro da comunidade. O município não fez a adesão à modalidade
PRONATEC/Brasil Sem Miséria que amplia o acesso ao Programa e atende melhor as
necessidades de jovens que desejam ter uma formação complementar, mas que estão com
algum tipo de defasagem no ensino. O que pude observar é que há uma grande evasão
destes alunos da comunidade no ensino médio. A escola Humberto Gama, de nível
fundamental, é a que possui o maior número de alunos da comunidade matriculados, uma
média de 30 alunos. Os motivos sobre a evasão neste nível de ensino precisam ser mais bem
investigados, mas uma característica que os próprios jovens informaram é que muitos
adolescentes costumam casar-se bem cedo e por isso largam os estudos para trabalhar. As
mulheres passam a serem donas de casa e os homens, em maioria passam a trabalhar na
produção de carvão.
No tocante às políticas na área da saúde, a comunidade é atendida por uma equipe
do PSF (Programa de Saúde da Família) composta por um médico, um técnico de
enfermagem e um agente de saúde. O atendimento antes feito na Escola São Francisco de
Assis, recentemente, passou a ser realizado no espaço da ADCNR. Ocorre quinzenalmente às
quintas-feiras, onde são distribuídas 10 fichas para atendimento clínico. Há também a
vacinação das crianças, que passa por um pré-agendamento para que seja feita no local.
Entrevistamos o coordenador da atenção básica da Secretaria de Saúde sobre a participação
da secretaria em relação à saúde quilombola no município.
41
Fala da Diretora da Escola Municipal Humberto Gama em março de 2015
114
A nossa interação com o pessoal quilombola, como a gente já tem a própria estratégia de saúde da família cadastrada como quilombola, nós temos uma atenção voltada especificamente para aquela comunidade. Mas assim, como eles são de zona rural e estão a alguns quilômetros de distância da cidade, aí a gente também faz o atendimento a algumas áreas adjacentes que estão próximas. Centraliza lá e faz o atendimento. Lá temos na equipe, o enfermeiro e o médico que fazem esses atendimentos que é prescrição de medicamentos, solicitação de exames e tudo o mais. E a questão do técnico de enfermagem que vai tá chegando pra se somar à equipe (...) também temos os agentes de saúde que também com o seu trabalho de fazer visitas não só aos quilombolas, mas para as adjacências também
(Coordenador da Atenção Básica da Secretraria Municipal de Saúde de Currais Novos. Entrevista concedida em agosto de 2014)
Desde 2008, está em vigor a Portaria nº 90/GM/MS do Departamento de Atenção à
Saúde do Ministério da Saúde que beneficia os municípios com equipes do Programa de
Saúde da Família (PSF) e Programa de Saúde Bucal (PSB) que atendem comunidades
quilombolas em seus territórios com o repasse de 50% sobre o recurso destinado ao
município. Sobre esta portaria, o coordenador afirma que não conhece integralmente o
documento.
Tudo o que ela diz, não tem como a gente saber. Mas o importante que a gente sabe é que ela vem a acrescentar esse valor por ser uma comunidade quilombola, assim, dos Negros do Riacho por questão cultural. Aí também já tem para a própria equipe aquela questão do difícil acesso que já é um acréscimo de incentivo pra que aquela equipe possa estar se deslocando até a comunidade (Coordenador da Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde de Currais Novos. Entrevista concedida em agosto de 2014).
A coordenação informa que o atendimento médico é feito uma vez por semana,
porém a comunidade nos repassa que o mesmo somente acontece a cada quinzena. Não há
atenção voltada para a Saúde Bucal na comunidade atualmente. Foi-nos relatadas
reclamações sobre o atendimento que funcionou até antes do período em que iniciamos a
pesquisa. Houve um caso grave de negligência do dentista que atuava no local. Os
moradores contam que o dentista realizou um procedimento de forma agressiva, pois
costurou a língua da paciente ao invés de pontear a gengiva como deveria ser o
procedimento odontológico normal. O caso teve repercussão na comunidade, porém na
secretaria não foi tomada nenhuma medida em relação ao erro do profissional. Desde então
a comunidade não tem cobertura do Programa de Saúde Bucal. Para este tipo de
115
atendimento ou de outras especialidades médicas é preciso procurar o hospital na cidade ou
a secretaria de Saúde do município.
Sobre capacitação e treinamento específico para a Saúde Quilombola, a única
ferramenta que a secretaria disponibiliza são os manuais de saúde do Ministério da Saúde. O
coordenador nos diz que não há uma especificidade para tal demanda, mas tem intenção de
buscar um suporte via Governo do Estado, pois no município, segundo ele, não existe
capacitação para a formação dos profissionais atuantes em área de quilombos.
Seu João, de 74 anos, morador do Riacho, diz que nunca foi a uma consulta médica,
que ele mesmo é seu próprio médico. “Eu, graças a Deus nunca fui ao médico não. Eu não
preciso de médico não. Eu mesmo me curo. (...) já fui mordido por cobra dez vezes, me curei.
Cachorro, uma vez, me curei. Raposa doida, me curei. Pra que esses remédio todinho?”42. Seu
João disse que aprendeu a curar com sua mãe, que era curandeira. Em casa, diz que é ele o
médico da família. “Tenho remédio pra tudo”, diz Seu João. Mesmo sendo seu próprio
médico, Seu João classifica o atendimento de saúde como “bom”, assim como os outros
moradores. Porém mesmo classificando o atendimento como bom, os moradores entendem
que deveria ter um posto de saúde adequado para a comunidade, pois o local não acomoda
bem a equipe médica, nem os pacientes. Não existe privacidade sobre o atendimento e as
fichas distribuídas são poucas para a demanda, além de não ter um atendimento pediátrico
específico. Sobre as consultas na cidade, os moradores sentem dificuldade para conseguirem
ser atendidos pelas especialidades através do SUS. Uma moradora relata que
É difícil demais. Saio daqui de uma hora da madrugada pra marcar uma consulta pra ir pra Natal e eu não tô conseguindo. Quando chego lá não tem mais vaga. O sistema abre de 8h. Saio daqui de 4h ou 3h da madrugada pra pegar uma ficha. Fico lá até 8 da manhã e perco a vaga. Não tem mais ficha. Aí pronto. Já vai fazer um ano que eu tô pra ir pra Natal e não consigo ir. Aí tudo é difícil. Nós, que mora em sítio, era pra ser uma coisa mais melhor, como eu falei pro rapaz. Quarta-feira passada eu fui. Pedi a ele chorando. Ói, chorando de joelho eu disse: ─ Me ajude porque eu tô aqui porque tô precisando. Se eu não tivesse precisando, eu não tava aqui. E você sabe que eu moro longe. Aqui de Currais Novos pra onde eu moro é 12km. Esse pessoal de Currais Novos mora em Currais Novos. Vocês deviam reconhecer quem mora no sítio. É mais dificuldade, vem de longe, vem de madrugada. Fique com a minha folha porque minhas condições não dá pra eu vir duas vezes, três vezes por semana porque é na segunda, na quarta e na sexta. Não tem condições porque o carro é oito reais. Fique com a minha
42
Fala de Seu João. Entrevista concedida em fevereiro de 2015.
116
folha. Eu dou o número do telefone, você me dá o seu e quando você marcar, você liga pra mim.
Ele disse: ─ Não dá não.
Aí, fui embora. Pronto, não consegui. Segunda-feira, eu vou de novo pra ver se eu consigo. Mas é muito difícil. Os vereadores, os prefeitos eram pra ver isso nas secretarias, nos postos, porque a dificuldade é muito grande. Mas não, não ajuda.
(moradora da comunidade. Entrevista concedida em outubro de 2014).
A moradora, quando se refere aos serviços de saúde, relata a precariedade de um
Sistema de Saúde que além de ser falho de uma forma geral por não ser compatível com as
demandas da população brasileira, discrimina populações de zonas rurais mais afastadas e,
principalmente, não atende as necessidades e particularidades das comunidades
quilombolas. Pelo menos 3 crianças e uma adolescente foram diagnosticados com anemia
falciforme. As pessoas que sofrem deste tipo de anemia precisam ser tratados em Natal, pois
não há um acompanhamento mais especializado no município. O diagnóstico do Programa
Brasil Quilombola publicado em 2012 constata que em junho de 2011, 1.117 municípios
brasileiros informaram a implantação de equipes de PSF e/ou PSB que atendem residentes
de assentamentos de reforma agrária e de remanescentes quilombolas. Segundo, o SCNES43,
nem todos estes municípios são contemplados com valor referente à Portaria nº 90 do
Ministério da Saúde, pois não seguem os critérios desta, se recebem o repasse é por outros
critérios. O diagnóstico sobre a saúde quilombola fala de uma “evolução em relação à saúde
da família e de saúde bucal em comunidades remanescentes dos quilombos nos últimos 4
anos (Brasil, 2012, p. 31) ”. Mas em que tipo de avaliação está pautado este diagnóstico? O
diagnóstico compreende números cadastrados no Ministério da Saúde sobre as equipes de
saúde cadastradas. Estes dados não revelam a situação da saúde dos quilombolas no Brasil,
pois não é mostrada nenhuma estatística sobre a qualidade do atendimento ou sobre saúde
dos usuários dos serviços nas comunidades. Apesar de reconhecer que existe um desafio a
ser superado sobre a saúde quilombola, não tem sido viabilizado o diálogo entre as esferas
para que seja revelada a real conjuntura das comunidades e assim serem criadas condições
de melhoria nesta área.
43 Sistema do DATASUS de cadastramento dos estabelecimentos de saúde, profissionais, infra-estrututura
existente, além da incorporação do módulo de cadastramento de equipes de saúde da família.
117
O Programa Bolsa Família é o programa de governo mais popular na comunidade e o
que contempla a maioria das famílias. Nas informações que obtive na SEMTHAS a partir do
Cadastro Único, consta que estão cadastradas 22 famílias no PBF de 2011 a 2015. Estes
foram os dados que o setor responsável pelo PBF na SENTHAS me repassou. No entanto,
segundo a secretaria, existem outras famílias cadastradas, mas que estão com benefício
inativo por diversos motivos como cadastro desatualizado e/ou não cumprimento das
condicionalidades colocadas pelo Programa. Estas famílias não tiveram como ser mapeadas,
pois a sistematização destes dados não é feita na SEMTHAS por comunidade. Não foi
identificado na secretaria um mecanismo no sistema que possa filtrar estes dados pela
identificação da comunidade como quilombola. O recadastramento aconteceu no mês de
março de 2015. A secretaria pretende abrir uma exceção para o
cadastramento/recadastramento das famílias da comunidade no próprio local devido à
dificuldade dos quilombolas em se deslocar para a cidade. Para isso, a SEMTHAS está
organizando um mutirão, que além do cadastro, pretende realizar na comunidade, um dia
de atividades socioeducativas pelo Projeto Estação Família44.
Assim, segundo a SEMTHAS, estes dados atualizados do PBF estarão disponibilizados
em abril de 2015. Porém muitos já fizeram o recadastramento deste ano e é possível que
ainda não seja desta vez que a secretaria vai conseguir repassar estes dados precisamente. A
partir destes dados gerados pela secretaria, são 22 famílias cadastradas e com o benefício
ativo na localidade Bonsucesso, o que compreende outros sítios além dos Negros do Riacho.
Estas famílias possuem renda per capita que varia de 8 a 50 reais por mês.
De acordo com pesquisa de campo realizada na comunidade, o número de famílias
beneficiadas pelo PBF, mostra-se maior do que os dados fornecidos pela SEMTHAS. São 30
famílias beneficiadas, o que corresponde a 83,3% num universo de 35 famílias. Estes dados
foram recolhidos através desta pesquisa em março de 2015. Ao falar sobre políticas públicas
e benefícios na comunidade Negros do Riacho, o PBF, aparece como um dos principais
complementos de renda familiar. Entre as 10 famílias que responderam o questionário
aplicado, 90% tem renda mensal per capita de até 150 reais, sendo as principais fontes de
renda, o PBF e o trabalho na carvoaria. Entre as 35 famílias, 19 homens, chefes de família,
44
Projeto itinerante promovido pela SEMTHAS. Atua nas comunidades rurais e urbanas desenvolvendo uma programação de atividades socioeducativas para as famílias.
118
disseram trabalhar fazendo carvão para vender na cidade, os outros trabalham na cidade em
outras atividades ou são aposentados.
As famílias que recebem o benefício citam a importância do PBF na realidade da
comunidade. Como mostra a fala a seguir:
Dilma é uma pessoa boa porque todo mês a comunidade aqui, todas as comunidades, todos os sítios do município tira “Bolsa Escola” que é uma ajuda. Se não fosse a “Bolsa Escola”? A maioria das comunidade que é mais pobre aqui, que é aqui em nós. Aqui no Serrote nunca ficaram de fome. A “Bolsa Escola”, a ajuda que ela dá, que o governo do Estado dá, é uma ajuda perfeita, minha fia. É bom demais. Não tenho o que dizer dela.
(...)
O que tem mais valor aqui é “Bolsa Escola”. O povo pedia esmola. A maioria do povo aqui, das mulher era mais pedir esmola. E agora pede, tem algumas que pede. Mas não é como era antigamente porque a “Bolsa Escola”, quando tira, vai fazer aquela feira. Já não vai pedir, né não? Passa uma semana, descansa as perna (...) quando se acaba, aí vai pedir. Mas a ajuda do “Bolsa Escola” sempre é bem-vinda.
(Moradora da comunidade, Entrevista concedida em outubro de 2014).
A moradora associa o benefício à bondade da Presidenta Dilma e coloca o Bolsa
Família como uma importante contribuição para a diminuição da pobreza e da mendicância
dos moradores do Riacho. O Programa está constantemente presente na fala das famílias e
condiciona algumas práticas da comunidade, justamente por ser parte fundamental da
renda familiar.
No relatório de gestão do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) de 2013,
consta que a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC) junto com a Secretaria
30%
60%
10%
GRÁFICO 2 - Renda familiar per capita na
Comunidade Negros do Riacho
Até 50 reais
de 51 a 150 reais
de 151 a 400 reais
119
Nacional de Assistência Social (SNAS) elaborou um planejamento para a execução de ações
voltadas para os grupos sociais de maior vulnerabilidade. Para isso, deu ênfase na
importância da correta identificação destes grupos no Cadastro Único. A proposta do MDS é
que a partir de treinamento e capacitação das gestões municipais para o aprimoramento da
Busca Ativa das famílias quilombolas, indígenas, ciganas, entre outros grupos, possa haver
uma intervenção mais efetiva das políticas públicas. O MDS informa que o objetivo da
ampliação da Busca Ativa é introduzir ações específicas para estes grupos a partir destes
dados. Todavia, as ações não estão articuladas com as especificidades das comunidades. No
setor responsável pelo PBF, ainda não existe uma sistematização dos dados referentes à
comunidade Negros do Riacho. Não foi possível obter uma relação dos beneficiários do PBF
a partir da identificação como quilombola nem na SEMTHAS, nem no CRAS. A coordenadora
do setor responsável pelo programa na SEMTHAS informa que não consegue filtrar os
cadastros da comunidade pela identificação quilombola. A metodologia de avaliação do MDS
baseia-se muito mais numa análise quantitativa dos dados. Há um foco na quantidade de
famílias beneficiadas e na variação anual destes números. Os dados do relatório aparecem
da seguinte forma: “As famílias quilombolas tiveram crescimento de 32%, passando de 81.140
em janeiro para 107.065 em dezembro de 2013, somando 85.702 famílias beneficiárias do PBF”
(Brasil, 2014, p. 47). O PBF prevê como condicionalidades para obtenção do benefício, o
cumprimento de alguns critérios que estão diretamente associados ao acesso às políticas
públicas nas áreas da saúde e educação, como vacinação, assistência à saúde da gestante e
frequência escolar das crianças e jovens. Porém as condições deste acesso e qualidade do
mesmo não é analisada pelo MDS. Nas secretarias de educação, Saúde e Assistência Social
pude perceber, a partir de alguns discursos dos agentes implementadores, como as
situações de corte do benefício é muitas vezes colocado como um dos principais motivos do
contato entre os moradores do Riacho e as secretarias. Estes contatos quase sempre são
envolvidos por tensões porque envolve a relação de descumprimento das condicionalidades
do PBF que é vista pelo poder público como sendo da responsabilidade exclusiva dos
beneficiários. Os contextos que permeiam o descumprimento destas obrigações são
desconsiderados em sua totalidade, focando na obrigação das famílias em garantir que seus
filhos sejam vacinados; frequentem regularmente a escola; ou que as mulheres gestantes
cumpram a agenda do Pré-Natal, sem levar em consideração os aspectos culturais, as
dificuldades de acesso, falta de informação, entre outros fatores. Desta forma verifica-se
120
que em âmbito municipal as políticas para as comunidades quilombolas situadas no
município de Currais Novos merecem uma maior atenção voltada para as necessidades da
comunidade e sobre como inserir novas perspectivas de intervenção do poder público e das
políticas públicas na realidade do grupo.
Pensando em uma “anatomia do processo geral de implementação” (Draibe, 2001),
tentamos situar os sistemas e subprocessos locais de implementação do PBQ em Currais
Novos. O sistema gerencial no âmbito da Prefeitura Municipal de Currais Novos delega às
Secretarias Municipais a gestão sobre a promoção de políticas de igualdade racial no
município. A maioria das Secretarias não tem suporte financeiro, nem técnico para gerir
estas ações específicas. Não existe uma iniciativa voltada para a captação de recursos para
investimentos específicos na comunidade. Os recursos voltados para Saúde e Educação
Quilombola, que são repassados respectivamente pelo Ministério da Saúde e pelo FNDE,
acabam sendo utilizados de forma ineficiente, pois não conseguem conectar-se com a
realidade local, não contemplando totalmente os objetivos da Política Nacional de Igualdade
Racial. As ações e intenções de ações do município em relação às comunidades quilombolas
locais não estão diretamente aliadas ao Programa Brasil Quilombola. Existe uma falta de
informação generalizada sobre os direitos das comunidades quilombolas no município de
Currais Novos. A Associação Comunitária não dialoga com outras entidades quilombolas e
não existe uma mobilização efetiva em torno da ampliação do acesso aos direitos da
comunidade. A comunidade enfrenta dificuldades em sua organização política e
representativa para a resolução das demandas referentes às políticas públicas. O contato
com o poder público tem sido limitado às poucas ações mediadas pela Secretaria de
Assistência Social. A falta de um diálogo mais amplo entre comunidade e poder público
sobre ações voltadas para quilombolas favorece que as ações aconteçam na comunidade de
cima para baixo, ou seja, de forma arbitrária, imediatista e sem fazer conexão com os
anseios e reais necessidades dos beneficiários. As políticas públicas relacionadas ao PBQ não
têm tido um real alcance sobre a Comunidade Negros do Riacho. As Secretarias Municipais
de Currais Novos que poderiam estar implementando estas ações não se articulam com a
proposta do Programa a nível nacional. As especificidades colocadas nas propostas dos
programas sociais contidos no PBQ que tratam das comunidades e grupos tradicionais não
são trabalhados localmente no município de Currais Novos. Por sua vez, a SEPPIR, secretaria
121
responsável pela coordenação do Programa no país não consegue uma interlocução, de fato,
com os Estados e Municípios para a divulgação, implementação e avaliação do PBQ.
Além das problemáticas que se impõem no plano macro da política nacional, existem
questões que esbarram no plano da política local que envolve relações históricas de poder
que marcaram as relações da Comunidade Negros do Riacho com o poder público e o acesso
às políticas públicas. Estes são os pontos que pretendemos discutir nas próximas partes
deste capítulo para trabalhar as especificidades que permeiam os caminhos e descaminhos
referentes às políticas voltadas para os Negros do Riacho na atualidade. Exposta a situação
das políticas públicas na comunidade, tentaremos compreender as práticas que estruturam
as relações entre comunidade e poder público no tocante à estas ações.
122
3.2 – Um drama no Riacho
Ao propormos uma avaliação do Programa Brasil Quilombola, entendemos que esta
pressupõe uma atenção voltada para os contextos sociopolíticos, nos quais se inserem as
ações do programa, os agentes implementadores e os beneficiários das políticas. A partir do
quadro de políticas públicas efetivadas na comunidade Negros do Riacho, são analisadas as
“arenas sociais” compostas em torno da proposição destas políticas. O conceito definido por
Souza (2006) como um modelo de análise de políticas públicas junto com referenciais da
Antropologia Política são nossa base teórica e metodológica para trabalhar com as
particularidades do contexto aqui exposto. Montero, Arruti e Pompa (2012) ao argumentar
sobre uma “Antropologia do Político”, afirmam que a maneira como os agentes mediadores
ritualizam e negociam categorias portadoras de identidades no âmbito da ação na esfera
pública é o foco que deve ser considerado para uma análise que articule cultura e política.
Pretendemos situar as relações de poder que envolvem estas arenas sociais em um
contexto permeado por um “drama social” (Turner, 2008) em que as políticas públicas
aparecem como centrais para compreender as sutilezas da atuação do poder público na
comunidade. Portanto, nesta parte do trabalho atentamos para as relações de
“reciprocidade” e “hierarquia” (Dumont, 1992; Lanna, 1995) observadas em campo, e
trazemos a discussão sobre os posicionamentos do grupo e do poder público municipal
diante da promoção de políticas públicas para quilombolas no município de Currais Novos a
partir do conceito de “dádiva” (Mauss, 1950; Lanna, 2009). Recorremos à observação dos
aspectos históricos, sociais e políticos que estão associados às relações estabelecidas entre
os integrantes da comunidade e a sociedade curraisnovense, o que repercute na atuação do
poder público municipal na construção de políticas para a comunidade. É relevante
compreender a implementação de políticas para quilombolas contextualizada num universo
de interesses e expectativas que remetem à alianças e conflitos entre as partes envolvidas,
comunidade e Estado. Verificamos que este campo é amplo e envolve várias esferas da vida
social, que vão das relações pessoais às relações institucionais.
A relação entre comunidade e Estado/Sociedade constitui-se pelo “englobamento do
contrário”, conceito definido por Louis Dumont como o princípio das relações hierárquicas.
Se a comunidade não entra no rol destas relações de reciprocidades que venham a
123
beneficiar o Estado conforme esperado e vice-versa, as prestações não completam um ciclo
de trocas que beneficiem ambas as partes. Sendo assim, estabelecemos três tipos de
situações de reciprocidade observadas neste trabalho e que convergem para o drama social
das políticas públicas na comunidade Negros do Riacho. Todas elas contextualizadas nos
circuitos de trocas que permeiam as relações que foram observadas durante a pesquisa.
Uma delas é a mendicância que compõe uma prática que inclui as três obrigações da dádiva
e neste contexto consideramos como uma relação de troca que envolve simetria e
assimetria ao mesmo tempo. O ritual do pedir caracteriza-se por relações hierarquizadas
pois nas trocas inerentes a este ato estão contidos valores simbólicos que recaem em outras
relações sociais e políticas que reafirmam a posição social dos indivíduos em níveis distintos.
Outra situação se encontra nas experiências de intervenção do Estado através de políticas
públicas na comunidade, representadas historicamente por uma relação de assimetria.
Observamos também um outro contexto que dinamiza as relações sociais na comunidade e
que se associam às intervenções do poder local. Nos processos eleitorais, o voto, engloba
elementos da dádiva em que verificamos aspectos de hierarquia e reciprocidades.
3.2.1 – A mendicância
Como colocado anteriormente, os integrantes da comunidade são historicamente
lembrados nos discursos dos indivíduos curraisnovenses através de estereótipos ligados ao
alcoolismo, ao ócio, ao roubo e sobretudo à mendicância. É um dos traços que aparecem nos
discursos populares que mais estigmatizam a comunidade Negros do Riacho. Pude perceber
isso durante a vivência no município de Currais Novos, mesmo em conversas informais com
pessoas da cidade no período em que estava a realizar a pesquisa. Como mostra a fala
abaixo, uma ideia de exotismo sobre os Negros do Riacho aparece impregnada no
inconsciente coletivo curraisnovense. Os integrantes da comunidade muitas vezes são vistos
como pessoas de costumes selvagens ou perigosos, associados à prática da mendicância.
Eu tenho tanta vontade de conhecer a comunidade lá, mas eu tenho medo. A minha professora disse que voltou de lá quase sem roupa. Eles pedem muito, começaram a pedir uma pulseira, uma coisa e outra. Quando ela deu fé, tava sem nada. Eu achava que era como naquele filme “Os deuses
124
devem estar loucos”. Mas eu tenho tanta roupa que não serve mais e eu queria muito levar pra eles lá. (Moradora da cidade de Currais Novos, março de 2015).
A outra fala que segue remete-se a um discurso, no qual é possível perceber que o
distanciamento entre moradores da cidade e quilombolas aos poucos se desfaz à medida
que um contato mais próximo é estabelecido com o grupo.
Eu tinha medo porque eu lembro que quando a gente era estudante, teve uma gincana no Jesus Menino que a gente arrecadou alimento pra ir deixar lá. Na época era aquela questão de casa de taipa, era bem diferente. Isso foi há uns quinze anos atrás e eu não fui, mas o pessoal da minha turma foi e disse que quando chegou lá que começou a entregar essas coisas, eles invadiram o carro e rasgaram e foi aquela coisa. Tiveram que sair às pressas de lá. (...) Então assim, essa imagem de como se eles fossem realmente uns animais, que eles podiam violentar a gente de alguma forma, de querer roubar. Eu tinha essa imagem. (...) E aquela velha questão que eles eram alcoólatras. Eu fiquei até surpreso que quando eu fui lá a primeira vez, só vi um senhor bêbado que é aquele logo da entrada. Que ele sempre tá. Parece até que ele cobra pedágio. Mas o restante da comunidade não. Não tem essa questão de álcool tão forte como eles dizem aqui na cidade não. E os novos hoje, da minha idade, eles tão procurando trabalho. (Agente implementador, entrevista concedida em setembro de 2014)
Nas duas falas citadas aparecem referências a um “pedir” característico da
mendicância. Ao mesmo tempo aparecem as práticas relacionadas ao ritual da dádiva, o que
repercute nos ato de “dar” e “receber”, decorrentes de uma imagem e condição social
histórica que acompanha os Negros do Riacho durante gerações. A dádiva se faz presente no
cerne das relações entre o Riacho e os outros. A noção de caridade carrega em si mesma a
ideia de “retribuição” divina decorrente do fato de ajudar ao próximo. Uma moradora da
comunidade fala sobre a prática de pedir esmolas das pessoas da comunidade.
Aqui não tem dinheiro, o que não aparece aqui é “real”. Chegando um bicho rico aqui, nós já tamo pedindo (risos) pra comprar um quilo de açúcar, um quilo de feijão. Ave Maria, chegando um carro, já tamo vendo acolá. Pra olhar quem é, quem não é. Mas não vem nada não. A raça negra tá pra trás. (Moradora da comunidade, entrevista concedida em novembro de 2013)
125
Embora fale sobre uma situação problemática da coletividade, a moradora expressa
um “ar de brincadeira” no cotidiano gesto de pedir. A mesma pessoa em outro momento,
cerca de um ano depois, ao falar sobre sua história de vida na prática da mendicância diz ter
superado esta fase, pois agora recebe sua aposentadoria e não precisa mais pedir.
Eu não gosto de dizer nada não porque eu já saí dessa má vida graças a Deus! É triste! essa má vida eu já passei. Mas agora eu não quero passar mais não. Tinha uns que davam, tinha aqueles que não davam. E ia vivendo até quando Deus quisesse. Eu agradecia muito a Deus quando chegava na casa de um filho de Deus que me ajudava. Aqueles que não davam eu rogava bem também. ─ Vou me embora. Xau. Eu dizia: ─ Xau, até outro dia. Hoje não tem, amanhã tem. Não podia agravar não porque eu andava pedindo. Pra pedir agora, não. Só se for um caso de precisão muito grande. Eu tenho meu dinheiro todo mês. (Moradora da comunidade, entrevista concedida em outubro de 2014).
A prática de “pedir” tem momentos distintos em tempo e espaço. Pessoas da
comunidade, em todas as gerações, pedem em determinadas circunstâncias. Sendo que
estas circunstâncias variam conforme as condições materiais e históricas do grupo. Para os
Negros do Riacho há várias faces na prática de pedir, o que amplia o significado deste ritual
para o grupo. São facetas do ato de mendigar que se relacionam à “estrutura” ou à
“antiestrutura”. Conforme Turner (2008), o conceito de “estrutura” compreende a dimensão
que engloba os códigos formais da sociedade, a obrigação e a coação. Já a antiestrutura está
atrelada aos aspectos criativos e dinâmicos da vida social. Assim, além de uma estratégia de
sobrevivência, “pedir” torna-se também subversão à medida que os indivíduos incorporam a
prática como alternativa para obtenção de seu sustento, diferentemente de uma visão geral,
externa à comunidade, que entende a mendicância de forma homogênea e relacionada a um
ato inferior. Os membros da comunidade incorporam a mendicância muito mais por uma
ótica dinâmica do que a partir de padrões previamente estabelecidos pela sociedade,
embora, em alguns momentos, também absorvam estes padrões em posicionamentos em
que apontam a negação do “pedir”. Segundo Andrade e Silva (2006), o ato de pedir expressa
126
a possibilidade de (re)atualização de práticas, a partir de novas conjunturas (p.3). Neste
raciocínio, o pedir não só é uma estratégia material de sobrevivência, mas um ato que
sustenta formas de relacionamento historicamente construídas entre o grupo e a “rua”. Esta
perspectiva diferenciada dos autores sobre a mendicância alia-se à um entendimento do
“não-trabalho” como uma das características da resistência aos padrões sociais pré-
estabelecidos.
A recusa ao trabalho aparece nos relatos antigos sobre a comunidade que remetem
às formas de vida dos moradores desde os tempos de Trajano Passarinho e sua esposa
Marcimina que vieram para o Riacho dos Angicos e não estabeleceram relações fixas de
trabalho com os proprietários vizinhos, passando a trabalhar na produção de cerâmica e
pedir esmolas (Silva, 2009, p. 39). O receio na construção de vínculos que remetem a algum
tipo de lembrança do passado de escravidão podem ter impulsionado estes tipos de recusa
que ainda nos tempos atuais podem surgir de forma residual em discursos sobre o trabalho
formal. Quando pergunto à Daguia, moradora do Riacho de 27 anos se ela já trabalhou na
cidade, ela responde que
Já, já trabalhei em casa de família, mas eles queriam me fazer de escrava. Não quero mais trabalhar na rua porque eu era humilhada. Queriam me pagar 100 reais pra fazer tudo, cuidar de criança e cuidar de casa.
(Daguia, moradora da comunidade. Entrevista concedida em fevereiro de 2015).
Noutra fala, demonstra-se aspectos das relações de trabalho que permearam desde
sempre a vida dos moradores da comunidade.
Eu trabalhei alugado até 20 anos. De lá pra cá eu não quis trabalhar alugado mais não. Eu tinha vinte anos, trabalhando alugado. Puxando enxada, arrancando pau. Aí quando deu vinte anos. Eu disse:
─ Eu não vou mais trabalhar alugado pra ninguém não, que eu não vou aguentar abuso de rico, que eu sou nojento. Aí não fui mais não. (...) A gente tem que aguentar abuso de rico? Só porque a gente é pobre? Mas a gente também deve ter moral. (...) Não vê os capitão? o povo não fala do capitão? que ele tem força. Não, às vezes nós tem força mais do que ele.
(Seu João, morador da comunidade. Entrevista concedida em abril de 2015)
127
As situações descritas pelos quilombolas revelam uma resistência, não ao trabalho
em si, mas às formas de submissão impostas aos moradores, que provavelmente estão
associadas à práticas racistas. Notamos este receio sobre alguns tipos de relações sociais e
quanto ao acesso a determinados espaços, apesar de não aparecer claramente nas falas, os
moradores sentem que são tratados com discriminação e evitam os contatos que lhes
pareçam desta natureza. Assim, algumas crianças e jovens revelam que não gostam da
escola na “rua”, que preferiam que houvesse uma escola na comunidade. Houve relatos de
mães que não queriam os filhos na escola “para não arrumarem confusão”. Estes conflitos
geralmente associados à atitudes de intolerância, mostram como é concebido o lugar social
da população negra.
A preferência pelo trabalho na tradicional produção das louças de barro também
expressa, de certa forma, a negação do trabalho formal e a reivindicação de uma dignidade,
colocada na fala de Pretinha. Ela informa como aprendeu a fazer as primeiras peças e qual o
significado do trabalho com o barro em sua vida.
Eu dizia:
─ Mãe, me ensina pelo amor de Deus, mãe! Eu não quero mais me empregar em casa de ninguém. Eu quero ser em mim mesma. Dependente de mim pra eu ter a minha vida.
Aí pai disse:
─ Eu ensino
(Pretinha. Entrevista concedida em novembro de 2013).
A arte do barro proporcionou por muito tempo uma autonomia das pessoas que
trabalhavam nela. Os potes, em especial, eram muito conhecidos e procurados em Currais
Novos e nos municípios circunvizinhos. O comércio das louças foi durante muito tempo a
principal referência cultural e econômica dos moradores da comunidade. Porém com a
queda nas vendas e a falta de perspectivas para uma reorganização da produção, a
mendicância tornou-se o centro das relações entre os Negros do Riacho e a cidade.
Na ideia de “vagabundagem”, expressa nos discursos da população da cidade está
presente o incômodo com as formas não-padronizadas de trabalho. Por esse ponto de vista,
as atividades feitas pela maioria das pessoas do grupo, como a fabricação das louças de
128
barro, as pequenas criações de animais e cultivo de pequenos roçados, o corte da lenha e a
carvoaria, o trabalho de dona-de-casa e os trabalhos esporádicos dos homens nas fazendas
vizinhas não são considerados. Ao mesmo tempo que há um desconhecimento sobre a
realidade cotidiana da comunidade por parte de setores da população curraisnovense,
alimenta-se uma visão homogênea sobre as formas de trabalho e de relações sociais a partir
de padrões específicos, hierarquicamente construídos. Assim, mantém-se os status de
“preguiçosos” e “vagabundos” atribuídos aos moradores da comunidade. Da mesma forma,
“pedir” situa-se como um ato que traduz para o restante da população de Currais Novos,
uma ideia de pobreza, que tem na esmola um símbolo característico das relações de troca.
As relações assimétricas aparecem também na efetivação de políticas públicas na
comunidade. No momento em que reproduz valores socialmente hierarquizados, o poder
público atua em consonância com interesses alheios às reais demandas da comunidade.
Tentamos compreender como a ideia de dádiva e reciprocidade transita entre o plano das
relações micro para o universo das relações institucionais a partir dos eventos relacionados
às políticas públicas na comunidade Negros do Riacho.
3.1.2 – As políticas públicas como dádivas
A esmola é o fruto de uma noção moral de dádiva e da fortuna, por um lado, e de uma noção do sacrifício, por outro. (...) Podemos mesmo datar da época da vitória dos ˂˂Pobres˃˃ em Jerusalém o momento em que nasceu a doutrina da caridade e da esmola que deu a volta ao mundo com o cristianismo e o islamismo (Mauss, 1950, p. 76-77). Grifo do autor.
Mauss trabalha secundariamente a ideia de esmola como dádiva, porém neste
trabalho situamos a esmola e o ato de pedir como fundamental para a nossa reflexão a
respeito dos desdobramentos da dádiva e o drama que envolve as relações entre
comunidade e poder público. Embora reconhecendo que o ato de pedir não é um ato
passivo, pois nele estão contidas formas de resistência e interesses que dinamizam os
contatos do grupo com as pessoas da “rua”, podemos observar aspectos que fazem com que
estas relações de troca se deem de forma hierarquizada. As relações de troca e
reciprocidade presentes nestas realidades estão inseridas num sistema de prestações totais.
129
Daí trazermos uma releitura das prestações totais de Mauss (1950) para entender as
relações de troca entre quilombolas e a sociedade em geral. Sobre as prestações e
contraprestações totais, Mauss afirma que
Elas revestiram quase sempre a forma do presente, da prenda oferecida generosamente mesmo quando nesse gesto que acompanha a transação, não há senão ficção, formalismo e mentira social, e quando há, no fundo, obrigação e interesse econômico (1950, p. 52).
Assim, o papel da mendicância na vida social do grupo e seus desdobramentos na
sociedade, de um modo geral, tem uma repercussão direta sobre a atuação do poder
público, representado pelo Estado, na comunidade. Em primeiro lugar, situamos a dádiva
nas relações entre o grupo e a sociedade no que envolve a mendicância. Em segundo lugar,
analisamos como a noção de dádiva situa-se na relação entre o poder público e a
comunidade.
Ao compreendermos a mendicância como ritual, percebemos que os indivíduos da
comunidade emergem para a sociedade curraisnovense como atores sociais a partir das
relações de reciprocidade, uma vez que o contato se dá no ato de “pedir”, que engloba
ritualmente as obrigações de “dar”, “receber” e “retribuir”. A sociedade, por ser pautada em
um modelo patriarcal, reproduz os laços fundados no paternalismo e passa a agregar de
forma desigual, grupos socialmente discriminados, inserindo-os em padrões e posições
hierarquizadas. Os Negros do Riacho transitam entre um momento e outro, de uma posição
de invisibilidade ao reconhecimento de sua condição como pessoas marginais, pobres e
pedintes. Inspirado nos estudos de Van Gennep em “The rites of passage (1960)”, Turner
(1974) desenvolve o conceito de “liminaridade” e discute a passagem entre “estado” e
“transição” que corresponde às três fases dos ritos de passagem: separação, margem e
agregação. As entidades liminares, segundo Turner, “não se situam aqui, nem lá. Estão no
meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e
cerimonial” (1974, p. 117). A liminaridade corresponde à margem, e é considerada pelo
atributo da invisibilidade social. A sociedade, assim como o Estado em nível local
tradicionalmente agrega de forma hierarquizada os segmentos sociais que estão nesta
margem, caracterizada pela liminaridade. Ao ser integrado pela sociedade,
O sujeito ritual, seja ele individual ou coletivo, permanece num estado relativamente estável mais uma vez, e em virtude disto tem direitos e obrigações perante os outros de tipo claramente definido e “estrutural”,
130
esperando-se que se comporte de acordo com certas normas costumeiras e padrões éticos, que vinculam os incubidos de uma posição social, num sistema de transposições” (idem, p. 116).
Tendo em vista que a comunidade enquanto coletividade muitas vezes não atende as
expectativas destes padrões e regras morais almejados pela sociedade, o grupo permanece
quase sempre num estado liminar. As relações de reciprocidade, neste caso, constituem-se
como conflituosas e assimétricas, uma vez que os símbolos que norteiam a dinâmica
presente nas relações entre comunidade e poder público são hierarquizados socialmente.
Estas práticas rituais se situam entre a mendicância e o assistencialismo. Conforme
observamos em algumas posturas dos gestores públicos durante a pesquisa de campo, os
Negros do Riacho são vistos como dependentes do poder público e, neste sentido, passivos
da intervenção paternalista do Estado.
Durante a pesquisa de campo, buscamos mapear os dados sobre o acesso às ações
municipais na comunidade e registrar os aspectos mais relevantes das relações construídas
nestes contextos. Segundo Souza (2006), a “arena social” em torno da implementação de
uma política pública constitui-se a partir da percepção de determinada problemática por
parte da população e dos empreendedores do governo (policy makers). Trazendo esta
formulação para o contexto estudado, entendemos que a primeira grande “arena social”
referente às políticas públicas para os Negros do Riacho evidencia-se no momento da
atuação da Ordem Franciscana Secular na comunidade a partir do final da década de 1980. A
partir daí, formam-se redes e vínculos para a construção das estratégias e ações em parceria
com a Prefeitura Municipal de Currais Novos na solução das demandas. É neste contexto que
se estreita a relação entre Estado e Negros do Riacho, é quando passam a estabelecer um
diálogo em torno das políticas públicas. Estes diálogos historicamente apresentam-se em
situações e momentos pontuais para o grupo. A forma como a comunidade e os agentes
implementadores percebem a problemática, as estratégias e as redes sociais constituídas
neste processo de ação da Igreja representam o início de um “drama social” (Turner, 2008)
que a comunidade vivencia no que diz respeito às políticas públicas.
Quando em 2004, por meio da SEPPIR, as políticas para comunidades quilombolas,
são lançadas e passam a ser implementadas de forma descentralizada a partir da criação do
Programa Brasil Quilombola, sucede um outro momento de intervenção do poder público na
Comunidade. No período de 2005 a 2007, o Projeto Dignidade dá início a uma série de ações
131
no Riacho dos Angicos. Junto como as ações da década de 1990, estas atuações se tornam
emblemáticas para o cenário de políticas públicas na comunidade. Quando começamos a
mapear as políticas públicas na comunidade, percebemos que estes realmente foram os
feitos de maior impacto social, sempre citados, principalmente com referências às casas de
alvenaria construídas. Em ambos os períodos citados foram construídas casas para suprir as
demandas habitacionais da comunidade.
Presentemente, a comunidade está prestes a passar por um outro momento
bastante significativo que resultará na reestruturação de seu espaço com a construção de
novas unidades habitacionais. Isto demonstra como vem se constituindo, a partir da política
de habitação, a principal rede de negociações entre a comunidade e o poder público
municipal. A construção de moradias no território tradicional mostra-se desde sempre como
um evento que mobiliza os agentes externos e os membros da comunidade, pois
representam a edificação de bens que repercutem materialmente e simbolicamente na vida
do grupo e nas relações estabelecidas com a sociedade e o Estado. Neste sentido, a
circulação destes bens, no caso as moradias, representam também a noção de dádiva
presente na vida dos moradores. As casas construídas nestes dois momentos enredam as
cenas de um drama em torno das políticas públicas na comunidade e trazem a ideia de
dádiva na relação entre os Negros do Riacho e o Estado.
Para Turner (2008) o drama social faz parte de um processo engendrado por
conflitos que são situados temporalmente e compreendem liminaridades que constituem a
dinâmica social. Pensando o drama como um processo ritual, entendemos que a relação
entre a comunidade Negros do Riacho e o poder público municipal se dá por meio de
processos temporais socioculturais e políticos que permeiam as intervenções na
comunidade em momentos epecíficos. Estes eventos relacionados à intervenção municipal
na comunidade, acarreta uma situação de liminaridade, visto que as trocas e as relações da
dádiva supõem um retorno. Este retorno é o pressuposto sacrificial da dádiva, em que
espera-se que a comunidade retribua a ação governamental conforme os padrões morais,
sociais e políticos. A obrigação de “retribuir” a dádiva concedida pelo poder público está
contida insconscientemente nos discursos dos agentes implementadores. Estes discursos se
reproduzem constantemente ao se referir aos episódios da não-adaptação da comunidade
aos modelos culturais e à reestruturação do espaço impostos pelo poder público a partir do
projeto Dignidade. Como é dito pela servidora da Emater “Olha eu não sei se você sabe, mas
132
lá na época que construiram as casas de alvenaria, construíram também um centro para eles
trabalharem com cerâmica, eles destruíram tudo. É muito complicado trabalhar com eles.” A
diretora do Centro Municipal de Ensino Rural também demonstra certa indignação com o
fato da Comunidade ter destruído o espaço. Os integrantes da comunidade colocam que a
Unidade de produção de cerâmica construída pelo Projeto Dignidade não agregou novas
perspectivas de trabalho para a comunidade, conforme previa o projeto. Houve muita
confusão em torno de quem iria trabalhar no espaço e de que forma seriam produzidas as
peças. A desorganização e os conflitos decorrentes da instalação do centro geraram a
destruição gradativa do mesmo pelos próprios moradores. O espaço projetado para o
funcionamento de um “Memorial” também foi destruído. Segundo Medeiros (2008),
A única casa que permaneceu erguida em taipa na comunidade deixada pelo governo, tinha o propósito de servir como memorial, no entanto não foi passada para os membros da comunidade sua importância e sua finalidade, fato este que resultou na destruição desse espaço por membros da comunidade (p. 80)
José, o atual líder comunitário, informa que a casa estava fadada a desmoronar, pois
a estrutura não suportaria o funcionamento de um memorial. As pessoas não entendiam
qual era o sentido daquele espaço e teve o agravante da necessidade da utilização da lenha
para cozinhar. Tudo isso fez com que o memorial fosse derrubado.
Atualmente, é notório que a articulação entre a ADCNR e a prefeitura tem sido
mediada quase sempre pela Assistência Social Municipal. Durante a pesquisa de campo, ao
procurar a Prefeitura Municipal na tentativa de marcar um horário para entrevistar o atual
prefeito de Currais Novos, sua secretária interroga sobre qual assunto quero tratar. Eu
explico e logo ela me responde que eu deveria procurar a SEMTHAS que é “quem toma
conta deles” (dos Negros do Riacho). Eu reitero que já venho mantendo contato com a
SEMTHAS, mas gostaria de falar com o prefeito diretamente. Ela me diz que eu volte em
outra ocasião, pois o prefeito não se encontrava no local. Mas mesmo assim, segundo a
servidora, seria mais indicado que eu me dirigisse à SEMTHAS para maiores informações
sobre a comunidade.
Foi comum ouvir esta indicação durante a pesquisa. A associação das demandas dos
Negros do Riacho com a Secretaria de Assistência Social é recorrente nos discursos dos
133
agentes do governo local. Desde o início percebemos que a relação com aquela secretaria
seria um dos pontos fundamentais para a pesquisa. Como já colocado neste trabalho, o
programa habitacional é uma das principais ações em curso na comunidade. O articulador da
política habitacional no município é o assistente social responsável pelo setor de habitação
da SEMTHAS. Este agente interage com a comunidade desde o início de 2013 quando houve
o cadastramento do programa. O representante da ADCNR, José, é quem acompanha o
andamento do processo junto ao setor.
Quando é pra mediar, José tem meu telefone pessoal.
─ Todo dia, José. Tudo o que precisar!
Pronto, queimou bomba, José liga pra mim aí eu passo pra agricultura. Porque, infelizmente, a gente sabe que é diferente quando é eles ligando e quando é uma pessoa da prefeitura ligando. A questão da atenção. (...) Tudo eles ligam pra mim e eu tento mediar com outras pessoas, isso daí eu faço. A maioria lá tem meu telefone pessoal, liga pra mim. De segunda à segunda eu atendo.
(Wilton Junior. Entrevista concedida em setembro de 2014).
Observamos que aspectos das relações interpessoais se aproximam das relações
institucionais visto que a comunidade passa a associar a ação à pessoa que está
coordenando, o agente implementador. Este agente, por sua vez, interage em consonância
com a experiência vivenciada com o grupo não só no âmbito político-institucional, mas
também a partir de seus dispositivos de memória, das referências socialmente construídas
consciente e inconscientemente sobre os Negros do Riacho e das relações pessoais. O
servidor afirma que
Já conhecia [a comunidade] de ouvir falar e porque eles iam muito na casa da minha vó fazer refeição. Mas ir lá, a primeira vez foi no ano passado. Quando eu fui lá pra fazer o cadastro da habitação. Era esse o meu intuito. Só que quando eu cheguei lá eu vi que a comunidade tava abandonada, eles tavam perdidos, não tinha ninguém pra orientar nada. Gente com o benefício bloqueado, gente que se enquadrava no Bolsa Família e nem sabia. Apesar de lá todo mundo ter direito a receber, mas tem gente assim, que não recebia. Então eu comecei a orientar (...) aí comecei a resolver esses pequenos problemas. Aí criou essa coisa que eu ajudo a comunidade, mas na realidade eu quis abraçar a causa por que eles estavam totalmente abandonados. Esses quatro anos que passaram, José mesmo diz, a gestão passada não deu apoio nenhum a eles.
(Wilton Junior. Entrevista concedida em setembro de 2014). Colchetes nossos.
134
Elencamos alguns agentes implementadores identificados como mais próximos da
comunidade por trabalharem ou terem trabalhado com o grupo em determinado momento.
São eles: Wilton Junior, Assistente Social responsável pelo setor de Habitação da SEMTHAS;
Estelita, Assistente Social do CRAS Fátima Bezerra (Atuou no Projeto Dignidade); e Roseane,
diretora da Escola Municipal, Humberto Gama, onde a maioria das crianças e jovens da
comunidade cursam o ensino fundamental. Ambos têm em comum, histórias ou vivências
que os aproximam da comunidade antes de assumirem os respectivos cargos municipais. Os
três citam o contato de suas famílias com as famílias da comunidade através da prática
caritativa e mesmo da convivência na zona rural próximo à comunidade. Roseane e Estelita
dizem guardar muitas lembranças da comunidade, pois viveram momentos da juventude nas
proximidades do Riacho. Wilton Junior lembra que sua vó ajudava à algumas mulheres da
comunidade com refeições e doações. Esta ligação entre passado e presente faz com que
estes agentes projetem em sua prática profissional, cada um ao seu modo, a sua
compreensão sobre os Negros do Riacho num contexto social cheio de simbolismos.
Eu lembro que na minha infância... Não tem o Bicho Papão, o Homem do Saco, não sei o que? Era o Neguinho do Riacho. “Venha pra casa, senão o Neguinho do Riacho vem te pegar”. Então assim, a própria sociedade não valoriza tudo de bom que tem na Comunidade Negros do Riacho. A sociedade não os conhece de fato. Eles são estereótipos que a sociedade encontrou e apontam realmente como preguiçosos, ladrões, vagabundos, que não querem nada, que querem tudo dado. Mas nunca ninguém chegou lá nem pra conhecer, aí só sabem julgar. (...) Não oferecem emprego, não oferecem uma oportunidade. Então querem que aquela realidade seja mudada por eles só.
(Estelita. Entrevista concedida em fevereiro de 2015).
Estes agentes implementadores, enquanto pessoas comuns, já enredavam também o
drama que faz parte da história das políticas públicas para quilombolas em Currais Novos.
Agora, em um outro momento, outro tempo e espaço, eles estão ligados à uma política
institucional em que as relações de reciprocidade se alargam para a esfera governamental.
(...) Eu lembro muito na minha infância que tinha isso. A única renda que eles tinham era realmente da venda de barro. Inclusive na minha casa, eles guardavam o barro porque a minha casa é ali na rua da feira. Então desde que eu era bem pequenininha eu convivo com eles, então eu nunca tive isso de medo deles. Eu sempre convivi muito. Eu era apaixonada por esse Projeto (Dignidade). Eu ia com gosto pra comunidade porque eu sempre fui
135
muito bem recebida porque eles lembravam de mim desde a minha infância desde dois anos de idade.
(Estelita. Entrevista concedida em fevereiro de 2015).
Percebe-se que a articulação entre as experiências do passado e presente refletem-se
na prática profissional dos agentes. A partir daí passa a haver uma conexão entre visões de
mundo que podem ser complementares ou não: a visão particular do agente implementador
sobre a realidade que o cerca e uma visão da administração pública local que opera por
meio das relações econômicas e políticas mais amplas, mas também incorpora moldes
tradicionais do poder local. Citamos estes exemplos para refletir sobre os contatos que são
estabelecidos com os agentes externos à comunidade nos contextos de implementação de
políticas. O que queremos mostrar com isso, é que os contatos entre a comunidade e o
poder público se dão de forma limitada e personalizada. Mesmo no discurso em que se diz
que a SEMTHAS é “quem cuida deles”, na prática, não é a secretaria e sim pessoas
específicas que por coordenar ou desenvolver ações sociais na zona rural, contemplam
também a comunidade. Ainda que esta atenção ao grupo não siga os princípios de uma
política afirmativa, é a partir da atuação destes agentes que abrem-se os poucos espaços de
diálogo entre comunidade e Estado. Por não haver uma proposta maior da administração
municipal em relação às políticas de promoção da igualdade racial em nível local, as políticas
ficam reduzidas ao assistencialismo.
O questionamento sobre o descaso na resolução das demandas da comunidade nos
levam a refletir sobre os interesses que cercam a efetivação de políticas que venham a
beneficiar os quilombolas em Currais Novos. Sobre as causas objetivas que fazem com que a
situação da comunidade permaneça sem uma perspectiva de mudança, entendemos que
esta é uma problemática estrutural que compreende redes de interesses e de trocas que
estão em constante movimento, mas que permanecem atreladas a um racismo institucional
que precisa ser desconstruído. Tentamos captar algumas das nuances a respeito das
relações construídas num cenário composto por alianças políticas nem sempre acessadas
pela pesquisa, mas que dizem respeito à representatividade e ao poder político local. Este
aspecto do campo mostra que os limites da observação de contextos políticos específicos
permeados por relações hierarquizadas ligadas à patronagem ainda representam barreiras
para o avanço da investigação antropológica e para a compreensão da realidade estudada.
136
Um dos elementos que observamos e que pensamos a partir da ideia de dádiva é o voto.
Veremos adiante como os processos eleitorais figuram no cenário das políticas públicas
desenvolvidas na comunidade.
3.1.3 – O voto como dádiva
O estado do Rio Grande do Norte, como outros estados do país, guarda resquícios de
uma formação política coronelista, representada até os dias atuais por famílias
tradicionalmente ligadas às práticas de patronagem e clientelismo, principalmente aparente
durante os processos eleitorais. Para Lanna (1995) o Estado reproduz relações que são
características dos contextos locais. Segundo o autor, a patronagem é um aspecto que tem
se mostrado presente nas relações de reciprocidade entre Estado e Sociedade. Assim, o
autor desenvolve a “teoria geral da patronagem”, na qual pressupõe que relações
hierárquicas presentes em contextos estatais se reportam aos microespaços do cotidiano.
Elementos de assimetria contidos na estrutura da patronagem estão presentes também na
estrutura de compadrio, onde o patrão e/ou padrinho podem exercer um papel
preponderante nas relações de trocas. Sobre as relações desiguais desencadeadas pela
patronagem incorporadas à esfera estatal, Lanna explica que
Patrão e padrinho estão na posição de maximizar o conteúdo material das prestações que recebem e na de minimizar o das que dão, assim como o Estado. É possível que resultem crises da manipulação excessiva dessas trocas. (...)Tem-se, então, no compadrio, na patronagem e na formação do Estado, um contexto sociológico onde uma estrutura (no sentido menos sociológico e mais abstrato, lévi-straussiano, da palavra) permite ampla manipulação das trocas (2009, p. 8).
Destas crises da manipulação excessiva nas relações de patronagem decorrem as
desigualdades presentes na “estrutura sacrificial do compadrio”. Segundo o autor, no Brasil,
o compadrio aparece muito mais de forma inconsciente do que consciente. Daí resulta ações
que estão, em primeiro lugar, ancoradas num universo de manipulação simbólicas da
realidade e produzem reciprocidades assimétricas. É por esta perspectiva que entendemos
137
como a reciprocidade é inerente aos processos político-eleitorais e atuam em seus redutos
de votos, conhecidos popularmente como “currais eleitorais”.
FIGURA 18 – Casas na comunidade no período eleitoral de 2012
Fonte: Autora. Foto tirada em outubro de 2012
Antes de iniciar a pesquisa, na primeira visita à comunidade, nos deparamos com um
ambiente pós-eleição. Muitas casas estavam com bandeirinhas nas cumeeiras,
representando uma das facções políticas que acabavam de disputar as eleições municipais
de 2012. No decorrer da pesquisa, ainda pudemos vivenciar outro período eleitoral na
comunidade, desta vez as eleições para governador, deputados, senadores e Presidência da
República em 2014. Neste momento pudemos observar a influência da política local durante
o processo eleitoral na comunidade, e verificar como estas forças político-partidárias
permanecem atuando no cenário das políticas públicas voltadas para os Negros do Riacho. O
Prefeito eleito em 2012, Vilton Cunha, havia sido vice-prefeito na gestão de José Lins (2005-
2008), período da atuação do Projeto Dignidade e do reconhecimento da comunidade como
Quilombola. Na gestão atual, não há uma proposta de trabalho voltada especificamente
138
para as comunidades quilombolas do município. A idéia que desenvolvemos é que o
trabalho do Projeto Dignidade teve dois objetivos: um “eleitoreiro” e outro “integrador”, em
que a comunidade passaria por um processo de “inclusão” pautado por uma perspectiva
dominante de cultura e ao mesmo tempo seria instrumento para a manutenção de uma
estrutura de poder local.
FIGURA 19 – Placa sinalizando o caminho da comunidade Negros do Riacho com adesivos de campanha
política. Estas placas foram colocadas durante o período do Projeto Dignidade e carregam o slogan do projeto.
Fonte: Autora. Foto tirada em outubro de 2014.
Depois do término do Projeto Dignidade em 2007, não houve mais investimentos na
comunidade. Somente na gestão atual tem início a obra de abastecimento de água
financiada pela FUNASA; e o Programa Minha Casa Minha Vida que ainda está em curso.
Como dito anteriormente, o projeto franciscano dos anos 1990 e o Projeto Dignidade,
ambos têm características caritativas e assistencialistas com objetivos políticos ligados ao
poder local. O Projeto Dignidade, por ser totalmente de iniciativa governamental, ainda hoje
repercute no campo político como barganha de votos para o grupo político atrelado ao
139
projeto na época. Na época da campanha eleitoral de 2014, ao perguntar sobre as
expectativas de candidatos mais votados na comunidade, uma moradora diz
Dilma e Márcia Maia, o povo aqui tão com elas, eu acho. Eu não conheço
ela não, mas o povo diz que ela é uma pessoa boa porque a mãe dela foi
muito boa, foi muito boa aqui na época. Ela já veio aqui umas duas ou três
vezes. E nós já sabe o jeito da mãe dela. Pode ser o mesmo gênio da mãe
dela pode puxar à ela também. A filha pode puxar à mãe. Aí nós se espelha
por ela. Pela mãe, que a filha seja boa também. Só por isso mesmo porque
ela nunca foi vice, prefeita, essas coisa ela nunca foi, é a primeira vez.
(Moradora da comunidade. Entrevista concedida em outubro de 2014)
Outro morador faz referência à atuação de Vilma de Faria ao citar a candidatura da
filha Márcia Maia.
Do poder dela e da mãe, da filha e da mãe. Ela ajudou muito aqui né? A gente reconhece o trabalho que ela fez quando era no poder dela. A gente vamos votar nela, né? Se ela for a candidata que vai trabalhar no poder lá e vir que a gente merece um retorno, é uma forma dela ter uma oportunidade, né? no Governo, Senadora...
(Morador da comunidade. Entrevista concedida em outubro de 2014).
Apenas dois candidatos fizeram campanha no ano de 2014 na comunidade, um deles
foi Márcia Maia, conforme conta uma outra moradora.
Márcia Maia veio aqui. Ela disse que ia melhorar a comunidade se ganhasse (...) Mas a mãe dela, uma vez ela ganhou e essas casa aqui não tinha não. Ela fez 15 casas. Foi 15? 15 casas ela fez. Ela fez as casas. Essas casa aqui foi ela quem fez, Márcia Maia. Aí ela disse que ia melhorar a comunidade. O leite ia vir. O leite não veio mais.
(Moradora da comunidade. Entrevista concedida em outubro de 2014).
Nas falas acima, os moradores associam e às vezes até confundem a candidata
Márcia Maia com sua mãe, Vilma de Faria, que já foi prefeita da cidade de Natal e na época
do Projeto Dignidade era governadora do Estado do Rio Grande do Norte. Márcia Maia, hoje
deputada estadual eleita em 2014, já assumiu o cargo de deputada estadual em outros dois
mandatos, quando licenciou-se para tomar posse como secretária de Estado na SETHAS/RN
(Secretaria Estadual do Trabalho, Habitação e Assistência Social). A deputada participou do
140
Projeto Dignidade como coordenadora e idealizadora em âmbito estadual. Em campanha na
comunidade, a candidata relembrou o governo da mãe. Falou sobre a sua atuação na
comunidade e do apoio na implementação de políticas públicas durante o Projeto Dignidade.
A deputada estadual representa para a comunidade uma força política local não só pelo fato
de ter participado do Projeto Dignidade e ser filha da governadora que atuou também junto
ao grupo durante a vigência do projeto, mas antes disso por ter sido uma das proprietárias
das fazendas de maior imponência da localidade próxima ao Riacho, o Sítio Serrota Preta,
hoje pertence ao seu ex-marido.
O prefeito em exercício na época do projeto Dignidade também costuma ser
lembrado como um bom prefeito e tem boa representatividade na comunidade até os dias
atuais. Os moradores demonstram em suas falas, um sentimento de gratidão com as figuras
políticas deste período, narram suas intervenções como atos de “bondade”. Ao mesmo
tempo apresentam uma descrença em relação à política de uma forma geral, o que
demonstra como os posicionamentos dos moradores se modificam de acordo com os
contatos, com as alianças e reciprocidades construídas a partir dos eventos relacionados às
ações de determinados agentes políticos na comunidade.
Aqui a campanha que a gente dava muito era daquele homem, Zé Lins. Ele ganhava muito. Agora quando foi esse ano ele saiu e não entrou mais. A gente não sabe em quem vai votar não. Até agora não chegou ninguém aqui. A eleição já é amanhã e até agora não chegou ninguém (...) Daqui pra lá a gente vai votar tudo em branco. Não chegou ninguém.
(Moradora da comunidade Negros do Riacho. Entrevista concedida em outubro de 2014)
O fato de o candidato construir um vínculo pessoal com as pessoas do grupo gera a
expectativa de reciprocidade. As ações do Projeto Dignidade e os agentes implementadores,
principalmente os políticos são tidos como os que fizeram algo pela comunidade e por isso
merecem o voto. A gestão de José Lins corresponde a este momento de bastante
movimentação na comunidade, tendo em vista o cenário nacional de visibilidade das
políticas de igualdade racial, o que repercutiu também localmente.
O voto aparece como um elo entre população e forças políticas locais. Marcos Lanna
em seu estudo sobre as práticas de compadrio, no município de São Bento-RN, relaciona a
141
prática política de barganhar votos através de promessas eleitoreiras com as trocas de
caráter sacrificial compreendidas também nas promessas feitas aos santos. Segundo Lanna
(2009), “há um modelo por trás das promessas aos santos, que também se revela nas
promessas políticas, aquelas feitas pelos políticos durante as eleições: a promessa de
retribuir o voto com sacrifício.” O voto configura-se como uma prestação também pela
forma agonística ou sacrificial que representa, visto que os políticos precisam se submeter
momentaneamente à população invertendo sua posição na hierarquia usual.
Para Dumont,
A hierarquia é bidimensional, não envolve apenas as entidades consideradas, mas também as situações correspondentes, e essa bidimensionalidade implica a inversão (...) não é bastante falar em diferentes “contextos” enquanto distinguidos por nós, pois eles estão previstos, inscritos ou subentendidos na própria ideologia. É preciso falar de diferentes “níveis” que são dados, hierarquizados ao mesmo tempo que as entidades correspondentes (1985, p. 260).
A inversão de que fala Dumont, surge nas práticas políticas citadas por Lanna a
respeito dos processos eleitorais.
Vê-se que há algo de excepcional nas prestações patronais e estatais, que, quase como milagres, acontecem infrequentemente. Esta excepcionalidade também marca o tempo da política. Mas marca este tempo ainda numa inversão: nele, as pessoas comuns assumem uma posição superior e os políticos, usualmente superiores, são obrigados a pedir, até suplicar votos. Todavia, que tipo de mendicância é esta, qual modelo ela segue? (Lanna, 2009, p. 13).
Nota-se que a “mendicância”, neste contexto, transita entre um polo e outro da
hierarquia social, dadas as particularidades em que o contexto ideológico permite e
direciona no drama social. Para Balandier, “o grande ator político comanda o real através do
imaginário” (1982, p. 6). Assim entendemos que mesmo com a inversão de papéis num dado
contexto, a hierarquia é mantida através da assimetria posta nas promessas não cumpridas
pelos políticos eleitos. O circuito ritual de troca de dádivas, neste caso, não compreende a
retribuição conforme promessa inicial. Na fala de Seu João está expresso o posicionamento
da prefeitura na década de 1990 em relação aos circuitos de troca que envolve o voto.
“Ninguém quis ajudar nas casas. Até o prefeito negou-se. Eu estava quando frei Fernando falou com o prefeito naquela ocasião para nos ajudar a
142
construir as casas. Aí ele respondeu que não ia ajudar nenhum negro, porque até peido de negro cega. Mas eu não fiquei calado não: ─ Seu Gilberto45, se peido de negro cega; só o olhar do branco também cega. Aí o frei disse: ─ Tenha calma, João. Fiquei calado não. Aí depois o homem mudou de idéia, acho que estava era bêbado, disse que ia ajudar os negrinhos porque eles sabiam assinar o nome e até já votavam”. (Seu João apud Queiroz, 1997:26). Grifo nosso.
A realidade social na qual estão inscritas, estas relações de reciprocidade não são
sempre dadas ou percebidas claramente nos discursos, mas com o contato e a investigação
durante a pesquisa pudemos captar algumas destas performances do jogo político local.
Como aparece no relato a seguir.
No dia da eleição, mãe foi pedir. Na época nós tava com necessidade e não tinha nada em casa. Aí mãe pegou o saco e foi pedir na rua. Aí, mãe na rua, na feira topou-se com um vereador. Mãe foi pedir uma ajuda a ele. Disse: ─ Eu tô precisando de uma ajuda e o senhor tá precisando de mim. Dá pra você me dá uma cesta básica? Ele disse: ─ Dá não. Aí mãe: ─ Como você não vai dá a cesta básica, eu não vou votar em você. Quando foi de tarde ela votou em outra pessoa que ajudou à ela. Quando saiu o resultado, ele perdeu por que não ajudou à mãe e nem mãe ajudou a ele. (Moradora da comunidade, entrevista concedida em outubro de 2014)
45
Gilberto Lins foi prefeito de Currais Novos no período de 1993 a 1996. É pai de José Lins, ex-prefeito de Currais Novos (2005-2008) pelo PSB. Eugênio Lins, o irmão de José Lins é o Secretário da SEMTHAS na gestão atual de Vilton Cunha (PR) e foi secretário de obras na gestão de José Lins.
143
Os moradores da comunidade incorporaram estas trocas de pequenos favores e
ainda permanecem ligados a estes mecanismos do processo eleitoral. Os questionamentos
sobre um retorno político mais amplo aparecem fragmentados em alguns discursos de
moradores, mas não ultrapassam esta situação para um enfrentamento das dificuldades de
forma efetiva e organizada. Por ser a lógica dos “currais eleitorais” ainda uma prática
predominante na realidade política brasileira, observamos que no contexto estudado, para
que as forças políticas locais alcancem seu objetivo eleitoreiro têm sido o bastante atuar na
manutenção da situação de dependência do grupo, simplesmente negligenciando suas
demandas. Consequentemente, este quadro de interesses políticos resulta na falta de
iniciativa local na promoção de políticas públicas para quilombolas em Currais Novos. Aliado
à outras práticas de manipulação, esta situação garante o circuito de trocas necessárias à
sustentação do poder local através do voto. Isto é o que interessa às forças locais neste
contexto. Como informa a servidora municipal, as práticas que caracterizam a ilegalidade
durante a campanha eleitoral são comuns nas eleições municipais no espaço do Riacho.
Eles eram muito comprados. A gente soube que na época da eleição, alguns
candidatos chegavam lá oferecendo cana, cesta básica... Embebedaram eles
pra eles não terem condições de vir votar. Aconteceram várias situações
como essa. Mas não existia aquela coisa de comprar, assim no sentido...
como é que eu posso dizer? Assim, eles compravam de uma forma suja!
Vamos dizer assim, embebedando, dando alguma coisa... furaram pneu de
carro pra eles não poderem vir [para a cidade votar].
(Agente implementadora. Entrevista concedida em fevereiro de 2015).
A partir destes relatos encontramos elementos que evidenciam a manipulação
contida nas relações referentes aos processos eleitorais e como os “currais eleitorais”
continuam presentes na realidade política local. As políticas públicas na comunidade se
inserem neste cenário político em que as representações simbólicas sobre os Negros do
Riacho atuam diretamente nas formas de intervenção do poder político local na
comunidade.
Para entender por que o Programa Brasil Quilombola não se articula com a agenda
do município de Currais Novos, nos interessa saber qual é o lugar ocupado pela comunidade
na efetivação de políticas públicas para o grupo, como este se posiciona diante da
144
legitimação e manutenção das tradicionais forças políticas locais, e além disso, qual é o
interesse do poder público em implementar políticas de reconhecimento na comunidade
Negros do Riacho. Partindo da concepção inicial que viemos desenvolvendo neste trabalho,
em que o Estado estabelece formas de reciprocidade com a sociedade constituídas como
“processos rituais” (TURNER, 1974), entendemos que as dádivas observadas neste contexto
se apresentam através da legitimação do poder político local pelo voto e de ações
esporádicas que partem do poder público municipal para a comunidade, no entanto, sem
uma proposta política de acesso ao conjunto das ações do PBQ. Podemos considerar que as
duas mais emblemáticas intervenções na comunidade (Projeto da Igreja Católica e Projeto
Dignidade) atingiram o objetivo “eleitoreiro”, mas no quesito “integrador” não alcançaram a
adesão massiva da comunidade, pois os moradores não seguiram as normas de conduta
sugeridas e não se adequaram aos padrões das políticas implantadas. Não visualizamos um
ponto de partida que aponte para um planejamento da prefeitura municipal voltado para a
criação de medidas que visem beneficiar a comunidade de forma efetiva. A expectativa por
parte da administração local e da sociedade de que o grupo assimilasse determinadas
formas de sociabilidade não foi compatível com o resultado obtido através da intervenção
do poder público na comunidade.
A hipótese inicial que apresentamos no segundo capítulo é que a ideia de hierarquia
presente internamente na comunidade aparece de forma inconstante visto que os laços de
solidariedade e as visões de mundo construídas pelo grupo tendem a ser diferenciadas dos
padrões sociais observados na cidade e da lógica política ligada ao Estado. Nos diferentes
campos da vida social, como o trabalho, a religião, a família verifica-se aspectos comuns aos
moradores do Riacho, mas que externamente são tidos como distintos dos moldes da
cidade. Para Dumont (1985), “toda relação de um elemento com o conjunto de que ele
participa introduz a hierarquia” (p. 229). Então, ao se inserirem num universo de relações
hierarquizadas, os Negros do Riacho são incorporados a esta lógica, sendo que o contato
com os da cidade se faz de forma fluida, sem estabelecer um diálogo permanente e
construtivo com o poder público e população local. As relações entre a comunidade e os
agentes do governo se dão de forma contrastante por operarem através da dinâmica entre
estruturas diferenciadas de percepção da realidade o que repercute na assimetria destas
relações. Além de aspectos relacionados à especificidades da organização social, cultural e
145
política do grupo, há também as especificidades das gestões que atuam no poder público e o
tratamento dado às questões relacionadas aos quilombolas.
Visto que os trâmites burocráticos e as relações com o poder público são tidos pela
comunidade como de difícil acesso, observamos que a não implementação do PBQ e as
consequências que isto acarreta para a comunidade, estão presentes aspectos de uma
violência simbólica no âmbito institucional. Como formulado em Lanna, o Estado não
gerencia bem os recursos públicos, o que decorre de uma “lógica privada”, em que são
beneficiados setores atrelados às conformidades estabelecidas por esta visão, enquanto
outros setores têm suas demandas negligenciadas.
ele [o Estado] redistribui preferencialmente aos ricos, aos amigos, aos compadres. Sabe-se que há empreendedores mais subsidiados pelo Estado do que outros, e que há mais continuidade entre o Estado e a pessoa social de alguns, considerados por ter relação incestuosa com ele. Quer dizer, esta situação de um particular assistencialismo dirigido aos ricos revela algo além de práticas manipulativas (Lanna, 2009, p. 12). Colchetes nossos
No momento em que a comunidade não se adequa à proposta do governo, surge a
ideia de não retribuição da dádiva, ou seja, uma dívida simbólica. Os moradores passam a
ser vistos como não merecedores das ações, o que vem repercutindo para a não criação de
mecanismos específicos de atuação do poder público na comunidade.
Segundo Balandier, “o poder, ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela
produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro
cerimonial”. Há um conjunto de fatores que colaboram para a não aplicação das políticas
públicas para a comunidade que vão da acomodação da gestão pública e da comunidade à
manipulação política do aparelho estatal. Não queremos com isso reproduzir aqui uma
situação de imobilidade social. Ao contrário, queremos refletir sobre as possíveis mudanças
desta realidade. Com estes apontamentos, vemos que o poder tem os seus momentos de
inversão e ruptura, e destas rupturas podem surgir novas conjunturas. Tentamos com esta
investigação sobre as relações de reciprocidade, esclarecer alguns pontos sobre a questão
das políticas públicas para quilombolas no município de Currais Novos. Visto que ainda há
muito que se avançar tanto no que se refere à organização política da comunidade, como na
percepção da sociedade e do Estado a respeito das demandas históricas dos Negros do
146
Riacho. É preciso vislumbrar a construção de novas possibilidades e outros cenários que
contemplem a realidade de cada contexto social a partir do diálogo entre os principais
envolvidos nas arenas das políticas públicas.
147
3.3 – Um cenário possível...
“Aqui pra trás era o Riacho das Alegrias, não sabe?” 46 Ao narrar fatos do passado de
sua própria família e da comunidade, Pretinha fala do tempo de seus avós e nos conta as
histórias que seu pai lhe contava. Hoje, Seu Laurentino, o pai de Pretinha, é o homem mais
velho da comunidade. Tem mais de 100 anos de idade. Naquela época não tinha registro de
nascimento e a idade do avô de quase todos da comunidade, não se sabe ao certo. Pretinha
fala das idas de seu avô, João Barreira, e Seu Laurentino à cidade para vender os potes de
barro e da paisagem antiga da feira de Currais Novos47. Seu João Barreira “era um velho
baixo, grosso. Carregava quatro potes daqui pra Currais Novos toda segunda-feira de pés (...)
ele chegava com quatro potes na cabeça, dois em cima e dois em baixo”. Conforme Pretinha
nos conta, no centro de Currais Novos no tempo de Seu Laurentino “só tinha duas casas e
uma capelinha bem pequenininha. Quando ele [Seu Laurentino] pensa hoje em dia dentro de
Currais Novos, né? Uma multidão de casa e gente”. Na fala de Pretinha, ela lembra a época
de seca quando os alimentos ficavam escassos e da receita do “caldo da caridade” que sua
mãe fazia em casa nos períodos mais difíceis, quando a fome se fazia presente na
comunidade. “Na época quando eu tinha dez anos, oito anos, comia xique-xique cozinhado.
Ave Maria, foi a pior vida que eu passei na minha vida! Foi na época da fome... grande. Essa
foi grande”. Supomos que esse período de sua infância e juventude corresponde aos anos de
1960 a 1970. Pretinha busca nos relatos dos mais velhos, também, as lembranças de outro
tempo mais antigo, das primeiras gerações do Riacho, das confraternizações da comunidade
nos forrós em dias de sábado e das farturas. Seu João diz que seus pais tiveram “trinta filhos
e foi criado tudo num tempo bom. Num tempo que tudo era franco. criava bicho, tinha tudo”
48. Seu João é um senhor de 74 anos, neto de Joana Caboclo, filho de Teresa Velha, irmão de
Teresa Filha. Na época da infância de Seu João, nos anos de 1940 era um tempo distinto do
tempo de Pretinha que nasceu na década de 1960. O problema da falta de alimentos na
comunidade relatado por ela aparece persistentemente, diferente da fala de Seu João, o
morador mais antigo da comunidade, depois de Seu Laurentino. Em sua infância, a
46
Fala de Pretinha, entrevista concedida em novembro de 2013. 47
Na década de 1950, a feira livre de Currais Novos foi transferida da Rua João Pessoa e passou a situar-se na Rua Dr. José Borges de Oliveira, hoje Rua Lula Gomes, atrás do cemitério velho (Quintino Filho, 2009, p. 136). 48
Fala de Seu João. Entrevista concedida em fevereiro de 2015.
148
comunidade era menor, a maioria dos adultos fazia cerâmica e a venda era mais garantida. A
década de 1940 corresponde ao período do início do auge da mineração em Currais Novos. A
Mina Brejuí iniciava a extração da scheelita que posteriormente viria a ser a maior reserva
do minério do país. Segundo Queiroz (2002),
Nos primeiros anos da exploração de garimpagem da mina, as dezenas de
trabalhadores compravam aos negros do Riacho grandes alguidares de
barro, que serviam de bateia para procurar xelita. A presença periódica dos
membros da comunidade na mina provocava verdadeira corrida para a
compra daquele utensílio (p. 63).
Por ser a população rural bem maior do que a da cidade nesta época, além das
vendas do artesanato na cidade, tinham também as vendas realizadas na vizinhança que
vivia no meio rural e utilizava os utensílios de barro em seu cotidiano. Na década de 1960 a
população rural em Currais Novos era de 12.778 habitantes, enquanto que na cidade
habitavam 8.522 pessoas (Lamartine, 1980, p. 89). As festas na comunidade foram sempre
vistas como eventos que aglomeravam estas pessoas da vizinhança e da cidade. Um
momento de encontros, de namoros, de alianças políticas, de fartura, também de
demonstração da fé nos santos de devoção da comunidade. Porém, junto com os mais
velhos que se foram e as histórias contadas por estes ficaram no passado também a época
de fartura e das grandes festas de São Sebastião e São João. Hoje em dia, segundo os
moradores, as festas não são animadas, nem tão fartas como no passado. Para os mais
velhos é difícil conter possíveis desavenças entre os mais jovens durante o evento, o que
reflete na qualidade da festa. Seu João diz que nos forrós do seu tempo não era preciso que
a polícia se fizesse presente, os próprios moradores conduziam a resolução dos conflitos que
ocorressem durante a festa. “Aqui pra trás era melhor porque não precisava trazer a polícia
(...) a polícia mesmo era a comunidade. Hoje em dia o povo não sabe beber. Esse
depoimento de Seu João faz parte de um discurso dos mais velhos da comunidade em uma
relação entre presente e passado que enfatiza as mudanças nas relações do grupo no que
diz respeito à coletividade. As transformações na organização das festas, nas formas de
sociabilidade e sobrevivência, no trabalho com a louça, são observados pelas pessoas que
experimentaram várias fases de vida na comunidade.
149
O “tempo pra trás” fora mais empolgante que o presente despedaçado e povoado pelos novos. Há, portanto, uma diferenciação entre o tempo no qual se fala e o tempo do qual se fala, em constante relação de alteridade entre passado e presente (Silva, 2009, p. 42).
A partir das expectativas dos moradores da comunidade, observamos que existe um
sentimento comum em busca de melhorias para o grupo que diz respeito ao atendimento
das demandas básicas. Paralelamente a isto reparamos que as pessoas se mostram também
descrentes em relação ao acolhimento destas demandas por parte do poder público. Outra
questão problemática é sobre qual seria a melhor forma de intervenção do grupo para
solucionar a defasagem das políticas públicas no Riacho.
Ao pensar no distanciamento entre passado e presente da comunidade, as pessoas
mais velhas do grupo enxergam um futuro desconectado com algo que venha favorecer à
coletividade. Quando Pretinha diz: “esse povo novo não se interessa em fazer barro”, ela fala
com um ar de descontentamento sobre o futuro, por perceber que atualmente não tem
nenhum jovem na comunidade que se interesse pela a arte do barro e que esta arte pode
com o tempo não ter mais adeptos. A prática da confecção das peças de barro são parte
fundamental da história da produção cultural e social da comunidade. O fato de não haver
uma valorização da prática artesanal dificulta as possibilidades de continuidade, o que pode
ser o motivo para a não adesão dos jovens de hoje. Da mesma forma, as lideranças do
passado são lembradas como mais atuantes na vida comum dos moradores. Os mais velhos
relatam não terem o mesmo vigor de antes para construir novas perspectivas de
organização comunitária e que os jovens, por sua vez, vivenciam uma outra realidade social
que não favorece a formação de lideranças. Não são formados espaços de diálogos com a
juventude sobre as questões pertinentes às demandas da comunidade. A projeção de um
novo cenário esbarra, entre outros problemas, em um conflito de gerações que dificulta o
diálogo interno sobre o futuro do grupo e consequentemente fragmenta as iniciativas de
reivindicação dos direitos da comunidade perante o poder público.
Os conflitos internos relacionados à diferenciação identitária do grupo, estudados
por Luiz Assunção nos anos de 1980, não são mais relatados pelos moradores. Porém
notamos que existem pequenos conflitos que podem ser resquícios das divergências sobre
os rumos do território que acirraram a divisão da comunidade na década de 1960 entre
“negros” e “caboclos”. Esta divisão em grupos pode ter distanciado as pessoas da
150
comunidade umas das outras no que se refere a uma organização coletiva mais
sistematizada voltada para o bem comum no presente. Ainda que não seja expresso
conscientemente como um conflito entre “negros” e “caboclos”, conforme observado nos
estudos de Assunção (2009), existe um distanciamento manifesto indiretamente entre
alguns membros do grupo. Observamos isto quando os moradores falam sobre a
concorrência no mercado interno da louça, nas disputas por doações quando há ações
caritativas na comunidade e nas menções às práticas de “catimbós”.
A “inveja”, muitas vezes citadas entre os moradores ao se referirem uns aos outros é
um ponto a ser investigado como impulsionador de conflitos e distanciamento entre
membros do grupo. No ramo das louceiras (os) existe uma competitividade acirrada em
demonstrar quem faz a melhor louça, quem usa o melhor barro e tem o melhor
acabamento. Foi comum ouvir “a minha louça é a melhor”, “esse povo aí não sabe fazer
barro não”, ou mesmo o silêncio sobre o trabalho do outro, o que já nos revelava alguma
tensão entre os artesãos. Uma das louceiras da comunidade diz haver na “outra
comunidade”, “uma mulher que também faz louça”. Quando fala em “outra comunidade”, a
louceira está se referindo ao lado norte da comunidade como um espaço distinto. Já “a
mulher” a quem se refere é sua prima que, no caso, é uma das suas mais fortes
concorrentes. A mãe de Luis Felipe, o menino que faleceu após ser atropelado pelo carro
que transportava as crianças para escola, nos relata que um dos principais motivos de não
solicitar uma indenização da prefeitura municipal era que isto poderia levar sua família a ser
alvo de muita “inveja” dos outros moradores. Verificamos que estes conflitos internos são
consequências também da falta de investimentos na comunidade. A comunidade necessita
de políticas públicas voltadas para a democratização do processo produtivo relacionado não
só à louça, mas à outras atividades; políticas que superem o assistencialismo; e políticas de
empoderamento que desenvolva a organização política do grupo.
Quando pensamos em uma participação consciente dos moradores da comunidade
como agentes ativos na construção de políticas públicas, desconstruímos a visão de que
estas ações limitam-se somente ao espectro do Estado. O Programa Brasil Quilombola
coloca em sua proposta inicial a importância da participação quilombola nas instâncias
deliberativas, na mobilização e capacitação de gestores e atores da comunidade. O caráter
descentralizador das políticas de promoção de igualdade racial no país, contidas no
151
Programa Brasil Quilombola, também apresenta algumas implicações no plano local que a
depender do contexto podem ser negativas ou benéficas para o acesso das comunidades às
políticas públicas.
Pode-se dizer que a reversão da desigualdade no acesso a serviços e benefícios ofertados pelas políticas sociais deve se efetivar nos municípios, mas esse processo depende, em larga medida, da ação indutora do governo federal, transformando o objetivo da reversão das desigualdades raciais e do combate ao racismo e a todas as formas de discriminação em prioridade nacional de dimensão macrossocial (Silva, 2009a, p. 168).
Esta ideia é reiterada por Arretche (1999).
Isto implica que, para que uma estratégia de indução seja bem-sucedida, é necessário que os níveis de governo interessados nas reformas tenham disposição — isto é, tomem decisões favoráveis a programas de descentralização — e meios — isto é, contem com recursos financeiros, políticos e administrativos — para implementar políticas cujo desenho institucional obtenha a adesão dos demais níveis de governo (p. 136)
A articulação entre as esferas operando a partir do princípio de transversalidade não
só pode gerar uma nova perspectiva para o município como também abrir horizontes para
novas formas de atuação da comunidade na implementação das ações locais. A percepção
do racismo na sociedade e no plano institucional é o primeiro passo para a tomada de
decisões. Contudo, entre estas possibilidades há uma série de outras questões a se
considerar, pois pensar a questão das políticas públicas específicas para quilombos no Brasil
exige uma reflexão sobre o significado do reconhecimento das alteridades para o Estado
brasileiro e para a realidade das populações negras e quilombolas no país. Existem fatores
no plano da política nacional que serão determinantes para a implementação destas ações
em âmbito local. A própria noção de cidadania e democracia, representada historicamente
por um ideal republicano adotado pelo país, consolidou-se através de mecanismos de
segregação social e racial como instrumentos de manutenção da “ordem” e do “progresso”
da nação. O modelo de Estado-nação desde então pautou-se numa política liberal, que
marcadamente regulou a sociedade em função das exigências econômicas de uma
determinada classe política. Com as mudanças políticas ocorridas nas duas últimas décadas,
as políticas para quilombolas confrontam-se com diversos posicionamentos políticos em
152
todos os campos da sociedade e nas diferentes esferas estatais. “As diferenças nas atitudes,
tal como as diferenças de posição (às quais elas se acham associadas) estão na origem de
diferenças de percepção e de apreciação e, por isso, de divisões bem reais” (Bourdieu, 1989,
p.98). Para Bourdieu, o “ser social é aquilo que foi”. Com isto o autor quer colocar que
“aquilo que foi” ficou inscrito não somente na história, mas também no ser social, nas coisas
e nos corpos.
Como ressalta Bourdieu, os esquemas de percepção e apreciação são produtos de
lutas simbólicas anteriores que integram
não só as representações que os agentes têm do mundo social, mas também, de modo mais preciso, a contribuição que eles dão para a construção da visão desse mundo por meio do trabalho de representação (em todos os sentidos do termo) que continuamente realizam para imporem a sua visão do mundo ou a visão da sua própria posição nesse mundo, a visão da sua identidade (1989, p. 139).
Segundo o autor, as categorias de percepção do mundo social são reproduzidas
através de forças objetivas que contribuem para a permanência das relações sociais. Porém
nestas estruturas objetivas estão contidos também elementos de indeterminação e
incertezas que constituem um porvir. Daí resulta a ação propriamente política, da “luta ao
mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar ou de transformar o mundo social
conservando ou transformando as categorias de percepção desse mundo” (Bourdieu, 1989,
p. 142). Partindo de um conhecimento do mundo social e das categorias que tornam sua
existência possível, ao objetivar o que estava implícito dando visibilidade ou tornando dizível
para a coletividade o que estava restrito apenas para os indíviduos como forma de mau-
estar, ou expectativa estabelece-se um exercício de poder do grupo que afirma sua visão de
mundo e coloca-se num campo de luta política. Das formas de percepção do racismo à
brasileira, relacionado à invisibilidade das opressões de cunho racial, à percepção do racismo
institucional com o reconhecimento da realidade de desigualdades raciais no país, há um
salto qualitativo para a efetivação de medidas de combate ao preconceito e discriminação
com a população negra.
As expectativas dos moradores do Riacho a cerca da relação entre ser quilombola e o
futuro da comunidade se relacionam historicamente com a esperança da efetivação de
melhorias e com a iniciativa do poder político local. As categorias de reconhecimento da
comunidade, enquanto “quilombo”, ainda estão sendo construídas efetivamente pelo grupo,
153
de modo que encontrar um consenso sobre como inserir-se conscientemente no campo de
luta e reivindicação da política quilombola é um desafio para os Negros do Riacho.
Aqui pra trás era o Riacho das Alegrias, não sabe? não era Riacho. Era o Riacho das Alegrias. Aí mudou. Riacho dos Angicos, disse: ─ não dá. Aí mudou pros quilombolas. (Pretinha, entrevista concedida em novembro de 2013).
De repente ser quilombola passou a significar para o grupo, uma realidade conectada
a eventos específicos de atuação do poder público, atrelados a forças do poder local na
comunidade e às políticas dos governos de Lula e Dilma. Os moradores, em geral,
consideram como um avanço o fato de serem reconhecidos como quilombolas, porém nem
a comunidade nem o poder público incorporaram o reconhecimento de fato.
É necessário reconhecer que a grande maioria das comunidades quilombolas foi excluída da educação formal, assim como da participação nas esferas de tomada de decisão, de debate ou mesmo, em alguns casos, foi excluída da simples sociabilidade municipal, em função de processos de segregação profundamente arraigados. Diante deste quadro, a desejável participação quilombola em tais políticas torna-se ou muito frágil ou puramente formal e o que foi pensado como um incentivo à boa vontade dos poderes municipais com as comunidades quilombolas, por meio da disponibilidade de novos recursos (quase sempre dotações orçamentárias) destinados especialmente ao atendimento destas comunidades, corre o risco de ter se tornado fonte de prestidigitação (Arruti, 2009, p. 107-108).
Colocar uma perspectiva de enfrentamento ao racismo institucional presente na
realidade local é confrontar-se com velhos padrões de políticas públicas assistencialistas e
eleitoreiras. No entanto, ao reivindicar o acesso às políticas públicas já legitimadas por um
aparato legal e político em nível nacional têm-se um respaldo para encampar uma luta por
direitos na esfera municipal, e conforme se avance neste sentido tenciona-se a realidade e a
estrutura de poder local. Quando Dumont (1985) afirma que a existência de elementos
contrários é um pressuposto da hierarquia, o autor analisa também a inversão destas
posições. Se pensarmos os posicionamentos que prevalecem atualmente sobre as políticas
para quilombolas, é difícil encontrar espaço para a construção de uma política de
reconhecimento no município de Currais Novos. No entanto, verificamos também olhares
distintos sobre a presente situação das políticas locais. Nas falas de alguns agentes
implementadores é considerada a falha das gestões municipais e dos próprios agentes no
154
que se refere à atenção para os grupos quilombolas locais. Como mostra a seguir a fala da
servidora municipal.
a minha percepção é que o projeto [Dignidade] foi conduzido assim, de uma maneira autoritária sem entender primeiramente, sem levantar como é a realidade cultural deles, quais eram as expectativas que eles tinham do poder público. Foi uma coisa jogada de cima pra baixo. E eu concordo que eu também acabei sendo uma agente autoritária para implementar uma política pública de uma hora pra outra que chegou lá na comunidade e precisava de pessoas. Então, assistente social, toda equipe que foi envolvida, a gente acabou sendo um agente que agiu de forma muitas vezes autoritária pela falta de conhecimento e pela obrigação da política pública tá chegando naquele momento e tinha que ser executada.
(...)
Então assim, a gente como agente tem que buscar. Não tô falando especificamente eu, fulano, sicrano ou secretaria tal, mas como um todo nós precisamos assim, é... não só ter essa noção, mas ter um compromisso prático com um trabalho direcionado a eles. Esse distanciamento, eu tenho consciência não é porque eles são pessoas que não querem nada. Ah, eles são vagabundos, eles não querem se envolver com nada? Não. Eu acredito que é pela falta de compreensão que nós temos. Aí cria essa barreira e a gente mesmo se distancia deles.
(Agente implementadora do Projeto Dignidade. Atualmente servidora da EMATER. Entrevista concedida em março de 2015).
Esta é uma análise e uma autocrítica de uma agente implementadora que trabalhou
diretamente na comunidade durante o Projeto Dignidade e que hoje faz esta avaliação e
assume também “mea-culpa” no trabalho desempenhado por ela mesma. É pertinente
observar que apesar de um senso comum que ronda os posicionamentos e ações do poder
público em relação às comunidades negras locais, existem também visões que tendem para
um enfrentamento da realidade de desigualdades na qual estão inseridas as comunidades
negras em Currais Novos. Porém, destaca-se a falta de instrumentos e mecanismos
institucionais que subsidiem uma mudança neste nível.
Para Arruti (2009), a política de promoção da igualdade racial no Brasil passa de uma
perspectiva de reconhecimento limitada à esfera cultural para um modelo de política
redistributiva que agrega o reconhecimento das especificidades socioculturais das
comunidades negras. Para o autor, na atual realidade, este é um processo incompleto, pois
“o avanço da questão quilombola, assim como as reações contrárias a que ele deu lugar, se
materializam em um comportamento ambíguo e oscilante do Governo Federal” (2009, p.
109). As contradições postas na condução das políticas públicas para quilombolas perpassam
155
todas as esferas de governo. O aparato legal que sustenta a legitimidade das demandas
quilombolas esbarra na burocracia das administrações públicas e até mesmo chega a
confrontar-se com mecanismos jurídicos que favorecem a restrição dos direitos já
constituídos. Deste modo, verifica-se que o Programa Brasil Quilombola não tem sido
executado conforme proposto por não conectar-se em todos os níveis de governo com suas
respectivas realidades. Assim, as características da política local, já colocadas neste trabalho,
somadas às contradições da efetivação do Programa no cenário nacional e das próprias
limitações do programa são um desafio para a realidade local no que tange à situação dos
Negros do Riacho.
Dentro do drama social vivenciado pela comunidade podemos destacar o momento
atual como uma das fases que antecedem algum tipo de ruptura temporal, visto que marca
a passagem de uma gestão da Associação Comunitária; é um cenário político em que o
poder público municipal fará novamente sua atuação como protagonista de uma mudança
significativa para a comunidade, referente à construção das novas casas; além disso, é um
ano que antecede o ano das eleições municipais. Benéficas ou não, as consequências deste
processo repercutirão de alguma forma no cotidiano e nas relações futuras da comunidade
enquanto coletividade e com o poder publico. Por isso, entendemos este momento como
um momento de liminaridade. Apesar das dissonâncias internas entre os moradores do
Riacho dos Angicos, pode acontecer mudanças sobre a percepção dos problemas da
comunidade que configurem novas formas de organização e uma nova postura diante do
poder público. É preciso desconstruir as barreiras sociais que atuam em desfavor da
comunidade e construir um novo cenário onde haja diálogo entre as comunidades negras
locais, onde o poder público atue em conformidade com as demandas colocadas pelos
quilombolas. Que haja uma mobilização a partir de um referencial mais amplo de
“quilombo”, de modo que o grupo e a administração municipal entrevejam seus papéis
políticos diante da realidade local e nacional e assim possam consolidar uma política
quilombola em Currais Novos.
156
Passam as políticas, ficam os quilombos
Quando optamos por uma abordagem antropológica para avaliar o Programa Brasil
Quilombola na comunidade Negros do Riacho em Currais Novos, entendemos que para
realizar um estudo sobre a aplicação de políticas públicas com recorte étnico-racial em um
contexto específico precisaríamos de um suporte teórico para além dos referenciais da
avaliação de políticas públicas para nos auxiliar na compreensão dos processos sociais
observados nesta pesquisa. Estes, carregados de valores simbólicos e disputas de interesses
entre os agentes envolvidos. Precisaríamos nos pautar numa avaliação das relações entre
atores situados em contextos permeados por situações de contato inter-étnico e
principalmente pela análise dos sinais diacríticos apresentados pelo grupo em questão, os
Negros do Riacho.
Se os estudos em avaliação de políticas públicas desde os anos de 1980 (Figueiredo e
Figueiredo, 1986) afirmam que é preciso avançar no sentido de ultrapassar a perspectiva
gerencialista da avaliação, esta proposta se torna possível na prática, considerando-se os
aspectos políticos e substanciais que compreendem a política pública, sua efetivação e os
problemas enfrentados pelos gestores e beneficiários. Algumas questões guiam a nossa
reflexão ao estudar o Programa Brasil Quilombola e possibilitam percorrer os caminhos
teórico-metodológicos desta pesquisa na comunidade Negros do Riacho. A primeira questão
em que pensamos foi se, de fato, existe uma política para quilombolas em âmbito local. Ao
longo deste trabalho observamos também as contradições que se apresentam nas políticas
de promoção da igualdade racial a nível nacional e estadual. O Programa, em si, traz uma
proposta ancorada no combate às desigualdades históricas e propõe seguir uma perspectiva
de enfrentamento à situação crítica do acesso às políticas públicas. Entretanto, quando
observamos contextos específicos, percebemos que o alcance da proposta é limitado. A
maioria das ações dos eixos temáticos do PBQ contemplam a dimensão redistributivista das
políticas sociais, mas deixam a desejar no tratamento dado às especificidades das
comunidades quilombolas. Em nível nacional o Programa se defronta com seus próprios
limites e as barreiras político-administrativas e jurídicas que são colocadas em meio aos
trâmites das ações. Em âmbito municipal, além da repercussão destes entraves no cenário
nacional, nos deparamos com características da política local que dificultam o acesso às
políticas de reconhecimento de direitos, em particular a titulação de terras coletivas.
157
Durante a pesquisa de campo, com o levantamento dos dados quantitativos e a
análise das entrevistas feitas com os agentes implementadores e os moradores da
comunidade, chegamos à conclusão de que as ações que foram desenvolvidas relacionaram-
se indiretamente com o PBQ, por abordar a questão quilombola de modo superficial e sem
fazer conexão entre as políticas e as demandas reais da comunidade. Considerando a atual
situação do PBQ em Currais Novos, trazendo o panorama das políticas públicas locais
realizadas antes e durante o período de surgimento do Programa, encontramos nos
discursos dos atores sociais e na literatura relacionada, elementos que precisam ser melhor
investigados para compreender os detalhes das intervenções na comunidade. Apesar de
existir todo um aparato da legislação brasileira referente aos direitos das comunidades
remanescentes de quilombo, os grupos ainda enfrentam dificuldades no acesso às políticas e
aos programas relacionados à categoria. Tentamos reunir elementos de natureza etnográfica
para compreender o que dificulta a efetivação destas políticas, já que as comunidades
permanecem sofrendo com a falta de resolução para suas demandas mais básicas.
Partimos da noção de “drama social” (Turner, 2008) por entender que existem
elementos do cenário histórico presentes no imaginário da sociedade curraisnovense entre
os caminhos e descaminhos, nos avanços e retrocessos enfrentados pelos quilombolas no
que se refere aos benefícios coletivos. Os contextos simbólicos se materializam com a
reprodução de estereótipos que reforçam a marginalização e a exclusão dos moradores do
Riacho. Estes elementos dizem respeito às relações existentes entre a comunidade e a “rua”
e a construção social das alteridades, que evidenciam-se nas trocas existentes entre os
grupos.
Como ponto de partida para a nossa reflexão sobre reciprocidade e hierarquia em
contexto quilombola, observamos neste trabalho, um destes elementos presentes no
imaginário coletivo, a mendicância. Por traduzir-se em práticas ritualizadas que envolvem a
percepção local sobre os Negros do Riacho, o gesto de “pedir” comumente relatado nos
discursos dos entrevistados nos levou a algumas ponderações sobre as representações
sociais construídas pela sociedade curraisnovense e como estas são absorvidas pelo poder
local e consequentemente pelo Estado. Buscamos assim, compreender as relações de
reciprocidade que permeiam a concretização de políticas públicas na comunidade. Visto que
as intervenções do Estado na comunidade são historicamente determinadas por
circunstâncias ligadas à manutenção do poder local, procuramos analisar as arenas sociais
158
compostas em torno da efetivação ou do fracasso das políticas a partir da noção de “dádiva”
(Mauss, 2001; Lanna, 1995, 2001). Entre os percalços no tempo e espaço, os quilombolas
encontram-se em meio a um “drama social” que reflete-se diretamente nas condições
objetivas da existência do grupo. A mendicância assume dimensões que extrapolam a esfera
individual transpondo-se para as relações institucionais.
Percebemos que há momentos específicos na atuação do poder público a serem
observados e que existem situações diretamente ligadas à manutenção das relações de
poder e de hierarquia. Elencamos três situações analisadas como processos rituais em que
as trocas entre quilombolas e Estado/Sociedade são determinantes na manutenção das
relações de poder no cenário local: a mendicância, a implementação de políticas públicas e a
compra de votos. O ritual da dádiva, neste contexto, caracteriza-se por relações assimétricas
na ocasião das trocas. Os atos de “dar”, “receber” e “retribuir” são recobertos por um valor
simbólico que incide nas relações sociais e políticas preexistentes, o que reafirma a posição
social dos indivíduos em níveis distintos.
Verificamos assim, que a prática da mendicância, as políticas públicas implementadas
na comunidade, e o voto envolvem relações de reciprocidade que na maioria das vezes são
assimétricas, o que consequentemente resulta em uma dívida simbólica em favor dos
gestores públicos e dos representantes da elite local. No momento em que a comunidade
não segue determinados padrões de comportamento estabelecidos ou não se adequa à
proposta de determinada política pública, surge a ideia de não retribuição da “dádiva”, ou
seja, estabelece-se uma dívida simbólica. Os moradores passam a ser vistos como não
merecedores das ações, o que repercute no desinteresse dos gestores em implantar novas
políticas públicas e faz com que a comunidade não entre nas prioridades da agenda política
do município. Sobre o voto e os “currais eleitorais”, percebemos que a situação local
permanece atrelada à logica do clientelismo. Os pequenos favores que fazem parte dos
mecanismos do processo eleitoral continuam sendo um elo entre os moradores e o poder
local. Os questionamentos sobre o cumprimento das promessas políticas aparecem de
maneira fragmentada em alguns relatos dos moradores, mas não apontam para o
enfrentamento desta situação. A lógica dos “currais eleitorais” é ainda uma prática
predominante na realidade política brasileira. Observamos que no contexto estudado, o
poder público tem negligenciado as demandas da comunidade, o que mantém a situação de
dependência do grupo. Deste modo, o poder público associado ao poder local e a um Estado
159
com características paternalistas encontra neste cenário um ambiente propício para a sua
atuação em momentos específicos e com ações pontuais. Quando se exime da
responsabilidade de promover políticas afirmativas e dialogar com a comunidade Negros do
Riacho, os representantes do poder público colaboram para a fragilidade do grupo,
facilitando assim a atuação de políticas assistencialistas ou desprovidas de uma proposta de
reconhecimento das diferenças.
Desde o início da sua formação social e política, a sociedade currais-novense tem um
discurso que contribui para manter a presença negra na invisibilidade. Ainda que alcance
quase a metade da população do município, os negros são mantidos nas periferias ou nas
áreas rurais do município. A elite política de Currais Novos, historicamente, pautou-se por
ideais ligados à forças conservadoras, como o integralismo e a maçonaria. As comunidades
negras rurais ou urbanas ao ultrapassarem os limites simbolicamente impostos pela
sociedade são logo estigmatizadas e criticadas em relação às forma de vida escolhida, ou
seja, a diferença é percebida como um elemento negativo numa sociedade que preza por
valores de uma cultura dominante etnocentrada.
Como apontam Montero, Arruti e Pompa (2012, p. 3), a alteridade é um “campo de
relações prático-discursivas sobre as diferenças”. Quando escolhemos como objeto de
estudo, as relações existentes entre a comunidade e poder público no que diz respeito à
implementação do Programa Brasil Quilombola, procuramos situar os agentes envolvidos.
Também é possível acompanhar a evolução histórica da produção das alteridades em Currais
Novos a fim de questionar porque não existe uma política atuante para as comunidades
quilombolas no município. Verificamos ainda que a produção do “outro” é ritualizada e que
é preciso considerar os interesses envoltos na construção destas alteridades. Assim
aparecem os mecanismos de manutenção da estrutura social fundamentados nas
desigualdades. Mas de que forma esta estrutura pode ser questionada e modificada?
As ações do poder público na comunidade Negros do Riacho são tradicionalmente
assimiladas como políticas de tipo assistencialista. Intimamente associadas às relações de
reciprocidade, elas atuam na manutenção do poder local através das práticas da barganha e
compra de votos. Neste trabalho, procuramos apresentar a situação atual das políticas
públicas na comunidade, considerando as dinâmicas que acompanham as intervenções do
poder municipal e os arranjos que configuram as identidades do grupo no cenário político.
Verificamos que existe um racismo institucionalizado acompanhado de práticas
160
assistencialistas com finalidades clientelistas. A isto, se soma a desarticulação da Associação
Comunitária dos Negros do Riacho, as limitações do Programa Brasil Quilombola e seu
alcance em contextos locais. Esses elementos dificultam o avanço na questão das políticas
públicas para quilombolas em Currais Novos. A perspectiva atual adotada pelo município no
que se refere a este recorte específico ainda não contempla nem as demandas mais básicas
da comunidade. As áreas de educação, saúde, infraestrutura, o incentivo à produção local,
como por exemplo, a cerâmica, entre outras necessidades não são tratadas com olhar
diferenciado. As políticas sociais do governo federal implementadas localmente têm caráter
redistributivo, mas não dialogam com uma perspectiva mais educativa e transversal, visando
o reconhecimento e a valorização das diferenças culturais.
Embora o cenário atual não seja favorável à mudança, vislumbramos a possibilidade
de transformação deste quadro atual a partir da desconstrução das barreiras simbólicas que
se impõem entre comunidade e poder público. As identidades quilombolas não são dadas,
são construídas: os moradores da comunidade apresentam as marcas de uma resistência
quando afirmam sua origem, sua história, seus modos de vida, suas habilidades, enfim sua
existência. Os aspectos identitários reatualizados na memória e na vida do grupo são
fundantes para a construção das políticas de reconhecimento. Tendo em vista a
complexidade que existe na valorização das alteridades e na construção de políticas públicas
com recorte étnico-racial e considerando a vastidão do tema, certamente temos um longo
caminho a ser percorrido no que se refere às políticas locais para quilombolas. Deixamos
aqui as nossas considerações para a continuidade de uma reflexão sobre as relações étnico-
raciais no Seridó.
161
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Links:
http://www.palmares.gov.br
http://seppir.gov.br
http://ipea.gov.br
166
Anexos
Panela da entrada da comunidade Negros do Riacho
Foto: Autora. Abril de 2015
Vista da comunidade Negros do Riacho
Foto: Autora. Março de 2015
167
Passagem do riacho na comunidade.
Foto: Autora, Março de 2015
Vista da comunidade de cima da caixa d’água.
Foto: Raphael Fernandes. Abril de 2015
168
Açude próximo à comunidade
Foto: Autora
Jovens da comunidade
Foto: Autora. Outubro de 2012
169
Casa de taipa centenária anexa à residência de seu João.
Foto: Autora
Cozinha de Seu João
Foto: Autora. Fevereiro de 2015
170
Seu João
Foto: Autora. Março de 2015
Seu Laurentino
Foto: Autora. Outubro de 2013
171
Açude próximo à comunidade
Foto: Autora. Março de 2015
Crianças da comunidade
Foto: Autora. Março de 2015
172
Louças de barro de Maria Anunciada
Foto: Autora. Abril de 2015
Forno para a queima das peças de barro
Foto: Autora. Março de 2015
173
Seu Zé Pereira, Louceiro.
Foto: Autora. Março de 2015
Ana, louceira.
Foto: Autora. Março de 2015
174
São Benedito. Imagem doada pela prefeitura à comunidade.
Foto: Autora. Outubro de 2014
Festa de São Benedito, outubro de 2014.
Foto: Autora. Outubro de 2015
175
Carro “pau de arara” chegando à feira de Currais novos com os moradores da comunidade Negros do
Riacho.
Foto: Autora. Fevereiro de 2015
Moradores e animais descendo do caminhão na feira livre de Currais Novos.
Foto: Autora. Fevereiro de 2015
176
Adesivos da campanha de 2014 colados em porta de casa de taipa na comunidade.
Foto: Autora. Março de 2015
Família de Pretinha em nossa primeira visita à comunidade
Foto: Autora. Outubro de 2012
177
Crianças do Riacho brincando.
Foto: Raphael Fernandes. Março de 2015
Moradores da comunidade
Foto: Autora. Outubro de 2012